Mentes Inquietas - um livro reportagem sobre a marginalização da loucura

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“A verdadeira viagem de descobertas não consiste em procurar por novas paisagens, mas sim em ter novos olhos” Marcel Proust

Dedico esse livro a todos àqueles que se permitem trocar de olhos.

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O que dizer do mundo invisível que vi?

Que todos saibam, sabiá

Bem-te-vi voa

Louco voa Rua voa Vício voa Liberdade voa e sobra depois a memória do ninho

Um estranho, dois estranhos, três

Três vidas num mesmo mundo

inquieto, voo rasante sem razão

Só e profundo 4

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POR DENTRO DO SISTEMA

Pensei em escrever um livro sobre a loucura e suas marginalizações. Sobre a parcela de culpa do mundo em que vivemos para a manutenção da classe daqueles em situação de rua. Sobre as genialidades daqueles que não tem diploma e, talvez, principalmente, sobre as experiências de vida desses que dormem nas mesmas calçadas que passamos todos os dias.

Era imprescindível pra mim ter a opinião de dentro do sistema público. O que acontecia, afinal de contas, no campo das políticas públicas, que não se dava conta do tratamento psicológico dos moradores de rua? Ou seriam eles os únicos culpados por não procurar esse auxílio? Para não ser leviana, fui atrás da psicóloga social Maria Camila Lima, mestre em educação, que atende no Centro Estadual de Atenção Especializada (CEAI) em conjunto com o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) na cidade de Lavras, Minas Gerais.

Diferente do que consegui extrair dos jeitos e do momento da entrevista dos moradores de rua, com Camila, absorvi as palavras. Suas experiências ligadas a pacientes, embora tão valiosas quanto, me davam menos material sensível dela para analisar, por isso faço desse capítulo menos analítico e mais descritivo da conversa que tivemos.

Marco um encontro em seu horário e local de trabalho e levo comigo uma lista de dúvidas que as leituras e conversas com meus entrevistados geraram. Seu consultório era pequeno, organizado e todo branco, com uma estante e uma mesa com duas cadeiras. Sentei-me de frente a ela e fomos, aos poucos, destrinchando as falhas e os acertos das políticas públicas e suas experiências dentro desse universo.

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POLÍTICAS PÚBLICAS, NO PAPEL, SÃO LINDAS

Camila já começa trazendo à discussão um grande estereótipo: de que não existem políticas públicas de qualidade voltadas à essa população. “Eu costumo sempre falar que as políticas públicas, no papel, são lindas, maravilhosas. Elas existem! A real dificuldade é colocar em prática tudo isso dentro da nossa sociedade e com os nossos recursos. Não é somente a pessoa que precisa de tratamento que não consegue ou quer chegar até a gente, mas também todo esse estigma de isolamento que existe dos dois lados: do que cuida e do que é cuidado.

Todo o SUS em geral é um projeto de saúde humanizada. Mas existe muita falha, não no papel, não nas políticas públicas, mas no fazer políticas públicas. Na formação desses profissionais.”

Segundo material do Ministério da Saúde (MDS) de 2019, retirado do próprio site, o governo propõe a “ implantação de uma Rede de serviços aos usuários que seja plural, com diferentes graus de complexidade e que promovam assistência integral para diferentes demandas, desde as mais simples às mais complexas/graves” (NOTA TÉCNICA Nº 11/2019-CGMAD/DAPES/SAS/MS).

Porém, comenta Camila, o despreparo para lidar com a saúde mental ainda é grande. “Eu conheço um rapaz que estava em uma palestra no Rio de Janeiro e simplesmente teve um surto psicótico pela primeira vez. Levaram ele para a Polícia e a própria Polícia falou que ele devia estar drogado e soltou ele na rua de novo. E isso não é algo incomum, infelizmente.”

Camila conta que o Centro, que trabalha também com a saúde da mulher, já recebeu gravidas em condição de rua e toxicodependentes cujo trabalho mereceria certas especificidades clínicas que, em muitos municípios, não são disponibilizadas. Em Lavras existe o CAPS AD, para adictos, o CAPS saúde mental, o CAPSzinho, para crianças e ainda espaços de atendimento

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especializado para mulheres, mas muitas cidades, conta ela, tem apenas um ou dois desses núcleos.

Pergunto se teve algum caso que a marcou mais. Ela olha pra cima e me conta uma história: “Teve um caso de uma gestante que a gente cuidou aqui que estava em situação de rua. Ela estava na sua segunda gestação, usuária de crack e não queria aderir ao tratamento. E, infelizmente, quando você fala que vai ter um acompanhamento psicológico, aí que eles fogem mesmo por que tem esse estereótipo. Ela veio encaminhada do PSF ( Programa Saúde da Família, criado pelo Ministério da Saúde em 1994) para consultar, quase de 6 meses já de gravidez e não tinha feito nenhum exame de pré-natal por que não queria ficar com o bebê.

Embora ela tivesse uma rejeição muito grande à gente, ela estava vindo certinho, apesar de não participar muito. Ela tinha transtorno de ansiedade e surtos psicóticos que estavam sendo agravados pelas crises de recente abstinência do crack e ainda mais por não querer o bebê, tínhamos medo dela fazer algo contra si mesma em um dos surtos.

No final, ela estava vindo quase todos os dias, conversávamos muito, chamamos a assistente social para arrumar a papelada de adoção do bebê, mas, no final das contas, assim que ele nasceu, ela decidiu ficar com ele. Ficou fazendo acompanhamento aqui comigo por uns meses e sumiu. Só depois de muitos meses ela voltou com a companheira, me abraçou e agradeceu por tudo, ficamos muito emocionadas e ela falou ‘eu pensei que você fosse me largar como todas as outras pessoas fizeram’. Foi muito gratificante.” Concluiu com os olhos marejados.

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HIGIENISMO SOCIAL

Depois de contada a história, me pego pensando no que eu faria se me deparasse cotidianamente com situações e vivências como a que ela descreveu.

Seria eu a pessoa que conseguiria conter as emoções, se é que isso é possível, e trabalhar racionalmente sem trazer o trabalho para casa? Até que ponto deixamos de ser seres humanos ao nos colocarmos em uma redoma de vidro onde vamos e voltamos de um trabalho difícil desse sem nos deixarmos atingir? Creio que o cenário do jornalismo brasileiro, ainda mais no contexto sócio-político atual, também permeia essa mesma questão. Camila continuou, séria: “Acho importante ressaltar, sempre que vamos debater esse tema, sobre o processo das definições de saúde mental através da história. Estamos colhendo agora o que plantamos décadas atrás. Ao meu ver, há uma separação muito clara em três etapas até os dias de hoje. A primeira etapa foi quando houve a existência dos manicômios, onde as pessoas eram literalmente deixadas para morrer pois não havia, de acordo com a visão da época, o que fazer. Depois a loucura foi interpretada como uma doença mesmo, o que presume uma cura, mas ainda assim num processo de isolamento” Ela respira fundo e continua “e, finalmente, hoje em dia, que trabalhamos o conceito de loucura, a partir de uma vitória das lutas antimanicomiais, que é a concepção do ser bio-psico-social. E esse ser é analisado pelo conjunto de fatores de influência social-cultural, de predisposições genéticas e bioquímicas e, principalmente, como indivíduo psicologicamente único. E isso trouxe a desinstitucionalização, onde entra o CAPS, o CRAS, a assistência social e tudo mais.”

Converso com ela o quão estranho é pensar que essa marginalização de pessoas com distúrbios mentais existe há tantos séculos e, até hoje, não foi 9

solucionada. O primeiro manicômio que se tem registro, foi no Egito, no século VII. Mas o boom foi na Europa, mais de 600 anos atrás. “Os espaços foram criados para abrigar os leprosos, mas como a lepra já havia esmorecido” complementou ela “o governo começou a jogar lá pessoas que davam trabalho. E esse é um termo muito forte. É um higienismo social.”

Fico refletindo a expressão. Higienismo social e urbano. Limpar da cidade aquilo que se considera indigno de ser visto, ouvido, sentido. Limpar da cidade pessoas.

UMA IDENTIDADE COM A RUA

“Quando pensamos em qualidade de vida para um morador de rua, é necessário sempre trabalhar a questão da identidade dele: quem eu sou? Como eu me vejo dentro dessa sociedade? É uma dificuldade de pertencimento que eles têm muito forte por que a rua muda. Então eles criam uma identidade com a rua.

Da mesma forma que a gente gosta de certos aspectos da nossa casa, eles também desenvolvem isso e passam a gostar de lá.” Fala Camila.

Ela me conta que no CEAI Lavras, quando chove, moradores de rua se aglomeram na parte coberta do espaço e fazem uso do bebedouro e do banheiro do espaço. Algo que, ao meu ver, seria extremamente comum, visto que o ambiente foi construído justamente para amparar essas pessoas, se torna um incômodo para algumas das próprias pessoas que trabalham no espaço. “Eu ainda escuto muito de várias colegas de trabalho muitos estigmas e preconceitos.

Nessas situações de chuva mesmo, algumas pessoas sugerem ligar para a prefeitura pra vir recolher por que tá causando mau cheiro, sabe? Daí pra pior.

Falta a tão falada humanização do SUS.”

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INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA

Tomamos um gole de água e lembro que no início do ano houve um debate acerca da internação compulsória voltar a entrar em vigor por parte do Estado e pergunto sua opinião acerca do assunto. “O Bolsonaro sancionou a lei1 né? Agora, depois de décadas lutando pela humanização do tratamento com dependentes químicos, eles voltam a poder ser internados contra a própria vontade. Olha... vou te falar uma coisa, mudando de assunto rapidinho, a psicologia ainda é uma profissão elitizada. No serviço privado, é de 1962. No serviço público é agora que a gente tá realmente entrando. Então sempre houve a máxima ‘vá ao psicólogo somente se você tem condição de pagar’. E a internação compulsória tem muito a ver com isso. Que tipo de tratamento psicológico e qualidade de vida você vai fornecer ao indivíduo que não gostaria de estar lá? Eu fiz estágio em um CAPS que tinha um paciente que era mais agressivo e eles davam esse medicamento injetável, que é um ‘sossega leão’, chamado Haldol.”

O Haldol, cujo princípio ativo é o Haloperidol é um medicamento criado em 1957 na Bélgica, originalmente como anti-psicótico, mas conhecido pela comunidade médica por acalmar os pacientes, uma vez que serve como bloqueador seletivo do sistema nervoso central. “Mas a questão na verdade é a seguinte” continua “O paciente não vai conseguir uma melhora se ele estiver extremamente medicado. Isso é fato. Por que nós, psicólogos e psiquiatras, precisamos do surto para entender o processo do surto. O que gerou aquilo, como se desenvolveu, como encerrou. É como se a gente camuflasse o sintoma, mas e a causa?”

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Lei nº 13.840, de 5 de junho de 2019, que altera a lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006.

Disponível em www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13840.htm. Acesso em 19/11/2019

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Nesse momento, percebo um revirar de olhos e uma chateação de Camila.

Como se não acreditasse que isso ainda deve ser explicado em pleno século XXI. Como se não fosse óbvio que, como seres pensantes e empáticos, devemos tentar sempre compreender o outro sem nossas medidas. Pergunto se ela quer falar mais sobre isso, ela afirma com a cabeça “Na psicologia a gente sempre aprende a respeitar o que é meu e o que é do outro, quase como uma técnica mesmo, sabe?

E talvez seja uma maneira Pollyana2 de pensar, mas eu queria ver isso em todo mundo dessa área da saúde pública” Camila fecha os punhos em cima da mesa e balança a cabeça como quem nega a realidade.

“Mas voltando ao assunto” retoma a linha de pensamento “A internação compulsória não vai resolver o problema do paciente. É uma técnica pra resolver o problema do governo municipal que não sabe o que fazer com aquelas pessoas.

Eles não querem ver alguém caído, fedido, com a roupa rasgada. A burguesia não quer ver isso que eles chamam de sujeira. Ah, deve ser doente mental, então vamos internar. Assim como tem também os adictos que são colocados em instituições pela família que não está preocupada com um plano de recuperação.

Então essa é, pra mim, a maior prova de que toda essa questão não perdeu a raiz dos manicômios lá atrás, a gente continua reproduzindo isso.”

Desde 2001 está vigente a lei 10.216 que estabelece que qualquer internação só deve ocorrer após todos os recursos extra hospitalares se exaurirem sem a melhora do paciente. Porém, o que ocorre, é que o que deveria ser a última opção tem se tornado a primeira, afirma Camila “Na grande maioria das vezes é a própria família que interna a pessoa. E eu não vou julgar, eu entendo que deva ser extremamente difícil lidar com alguns casos extremos. Se até profissionais do próprio sistema de saúde não compreendem e não aceitam a dependência, a doença, imagina quem passa 24 horas por dia com a pessoa? Mas é por isso que 2

Pollyanna é um livro de Eleanor H. Porter, de 1913, cuja protagonista homônima sempre tenta, apesar de todas as adversidades da vida, ver o lado positivo das coisas e influenciar aqueles ao seu redor a fazer o mesmo.

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a nossa rede tem que funcionar. Está no papel, o suporte não é apenas para aquela pessoa que precisa de tratamento, é para todo o núcleo familiar que é atingido psicologicamente com aquele distúrbio ou aquele vício, entende?”

A RESSOCIALIZAÇÃO

Na teoria, uma vez que o indivíduo aceita uma internação ou um programa de desintoxicação, o mais comum é, eventualmente, ele voltar para a sociedade. Essa reinserção, no entanto, tem sido cada vez mais difícil uma vez que o estereótipo do ex usuário ou da pessoa que tem distúrbios mentais, continua se propagando.

Em 2006 foi criado o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad) através da Lei n. 11.343. O projeto, prescreve medidas de prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas e, contextualmente, acaba sendo aplicado a pessoas com distúrbios psicológicos em condição de rua também. Camila me explica um pouco sobre as leis, mas volta a afirmar que, na prática, a reinserção não funciona. “A ressocialização depois de um processo de tratamento ou desintoxicação é, claro, uma coisa difícil. No caso da Eterna Misericórdia aqui em Lavras, que acompanhei reuniões por uns meses, tinha esse grupo terapia semanal com depoimentos de todo mundo que estava lá e que já tinha saído. Eles fazem essa rede de apoio com um psicólogo, amigos, família, para que quando vc saia, você seja amparado, mas no sistema público essa situação é uma exceção. Tem pacientes que são esquizofrênicos e catatônicos e a gente pensa, no que ele seria reinserido? Que espaço a sociedade realmente abre pra ele?”

Pensei rapidamente em uma resposta para essas perguntas, mas me surgiram outras: A mesma sociedade que os exclui, deveria os recepcionar de 13

braços abertos no mercado de trabalho? Quais são as reais capacidades de uma pessoa que já passou por tantas coisas ruins? Na lei citada 11.343 temos artigos afirmando que é obrigação do Estado o desenvolvimento da política de saúde mental, a assistência e a promoção de ações de saúde aos portadores de transtornos mentais. Mas se a própria sociedade sustenta essa barreira, como ultrapassá-la? Camila percebe minha expressão de desalento, dá um meio sorriso e continua: “Olha só, no caso dos transtornos psicológicos, claro que a gente precisa trabalhar na doença em sí e na reinserção no mercado, mas nem sempre esse deve ser o foco, entende? Por que a gente precisa cair no assunto de qualidade de vida dentro das limitações que o indivíduo tem: qual a melhor forma DELE viver? E não ficar constantemente tentando isolar ou encaixar ele em moldes que não foram feitos pra ele. A gente tem muito disso de analisar que o é bom pra mim, necessariamente é bom para o outro. E não é assim. Não dá pra impor isso. O mundo tá enlouquecendo justamente por que as pessoas querem pegar uma única caixa, de um único tamanho e fazer todo mundo caber nela.” Achei uma metáfora (abuso aqui dos superlativos) lindíssima, mas, principalmente, tristíssima. Era verdade.

FUTURO

Ouso perguntar, em meio ao um riso nervoso, qual sua perspectiva de frutos a serem colhidos com o que estamos plantando agora? Ela bebe um gole de água, séria e responde: “Eu acredito que a luta pela saúde mental, assim como a própria importância da psicologia tem ganhado espaços. Acredito que em 20, 25 anos, as pessoas vão ter esse respeito do sujeito ao lado como um indivíduo biológico, social e psicológico também. E vamos ter profissionais que consigam 14

manter essa rede de apoio. Essa é a minha perspectiva otimista!” e dá uma gargalhada nervosa.

Depois da risada, Camila junta as mãos em cima da mesa e continua: “Mas, na realidade, eu torço apenas para essas situações que a gente tá passando de política, de intolerância e desrespeito, que tem muito a ver com tudo o que a gente conversou, sejam problematizadas. Torço para que pessoas boas, novas, com ideias legais ocupem cargos bons e consigam fazer algumas coisas. Na psicologia, o sofrimento é necessário para o aprendizado, a gente não muda à toa na vida. Eu acredito, melhor, eu quero acreditar, que essa é a parte do nosso sofrimento, nesse contexto nacional e mundial, para que a gente consiga ter uma mudança positiva.”

Dá um longo suspiro e um sorriso como quem diz “acabei” e eu compreendo. Requer coragem criticar o sistema estando dentro dele. E ela havia acabado de o fazer.

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COMEÇEMOS DO COMEÇO

Entre um “me dá uma ajuda” e outro tive meu encontro com o Gaguinho.

Ao longo dos anos sempre o via no mesmo local, pedindo moedas; vez e outra dava e trocava uma ideia. João, morador de rua da cidade de Lavras, olhou no fundo dos meus olhos e começou sua história afirmando com uma risada “não é pra ter pena, hein!”. Rapaz de números exatos e palavras rebuscadas. Foram, ao longo dos seus 20 anos de rua, 37 passagens pela delegacia, 32 cidades que já morou, 17 tentativas de suicídio ao se lançar em frente um veículo e mais 22 com veneno.

Mas começo de onde as coisas sempre vem: do começo. Sentei com João no chão da calçada em frente ao Banco do Brasil, na praça Doutor Augusto Silva, centro da cidade. Acendi um cigarro e ofereci outro, ele negou. “Mas cê tem isqueiro?”, perguntei, pois tinha esquecido o meu. Não tinha. Pediu pro colega sentado do outro lado e mudou de ideia “Me dá um sim, vai!”. E entre um trago e outro, começou sua história: nascido em 1982, em Montes Claros, Minas Gerais, cerca de 600 quilômetros de Lavras, viu sua vida despedaçar quando a família decidiu que ele não morava mais com eles e que não iam ajudá-lo.

“Eu vim pra rua pelo motivo primeiramente familiar, minha família virou as costas pra mim eu tinha só 16 anos. Na rua eu comecei a entrar em depressão, a querer fazer besteira, a querer o suicídio e eventualmente comecei a cair nas drogas. Primeiro na cocaína e por fim parei no crack.” Resumiu ele.

Entre as 32 cidades que passou durante a vida, foram desde capitais como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Brasília até as pequenas pelo interior do estado de Minas e São Paulo. Ao longo das cidades também passaram amores.

“Uma foi quase 7 anos e outra 4 anos e 5 meses, os dois relacionamentos

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terminaram por traição das duas, mas hoje eu tô bem assim sozinho” contou um sorriso de canto de boca.

João é moreno, de barba negra e cabelo ralo, magro e alto e, frequentemente, com um boné enterrado na cabeça. Filho do meio de uma família de 3 filhos, não gosta de falar deles. Apenas reafirma categoricamente que família, pra ele, não existe. O que existe é a rua, as esmolas e os colegas de sarjeta e cachimbo (termo usado para se referir ao uso de crack) e nada mais.

O cigarro acaba e ele levanta. “Quer que eu jogue a bituca no lixo pra você?”. Aceito com um sorriso na boca. Ele volta e continua “Sabe, eu me sinto um estranho. Sinto que o Estado não tá nem aí pra mim. Minha família não faz nem ideia da onde eu tô. Aqui em Lavras tem gente que gosta de mim e gente que tá doida pra eu ir embora” solta uma gargalhada arreganhando os dentes que, provavelmente, nunca viram um dentista. “E, olha… Eu acordo todo dia e o que eu realmente sinto é revolta. Eu não vou generalizar, mas boa parte da sociedade é muito hipócrita. É muito falsa. Na sua frente tá tudo bem, mas pelas costas? Ah-ah… Mas eu tenho que segurar a minha onda” Percebo um momento, suas mãos encostam umas nas outras como quem aperta o próprio punho pra vir a lembrança do que aquelas mãos já passaram.

Suas mãos. Calejadas pelo desafeto, pelos acidentes, pelas brigas e pelo asfalto.

Unhas curtas, que rói com frequência, e dedos longos com as juntas grossas.

“Me dá uma ajuda?” Passa uma senhora e sorri pra nós “Hoje eu não tenho! Mas e aí, menino, vai voltar pra casa?”. João dá uma risada sem graça e responde “Vou, vou sim. Um dia né?”. A senhora agora olha diretamente pra mim e pergunta “O que você está fazendo nesse chão sujo, menina?”. João prontamente responde “Tá me entrevistando! Tou falando da minha vida” e volta a cabeça pra mim enquanto a senhora, um pouco confusa, entra no Banco.

“Eu tô pensando em ir morar com uns parentes meus lá no Complexo da Maré,

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no Rio de Janeiro. Eu não terminei de estudar, mas tenho o QI um pouco elevado.

Dá pra arrumar alguma coisa por lá” falou pensativo e ficou um tempo encarando o vazio, mas logo se interrompeu e voltou seus olhos fundos e negros pra mim “Uma vez eu pedi pra um professor uma prova pra ver se eu ia passar no ensino médio. Eu passei com louvor mas nunca fui buscar o certificado. Tudo o que eu sei eu aprendi da vida, sozinho.” falou ele orgulhoso de sí.

“Me dá uma ajuda?” pediu a um homem que passou. O homem respondeu “vai trabalhar”. João, rapidamente, respondeu “precisa ser grosso não, o tio”.

Mas o homem continuou andando e não virou pra trás. “Sabe por que a sociedade tá fodida? Peço até desculpa pela palavra. Por que a maioria da sociedade poderia cooperar. Chegar na gente, sentar e tentar dialogar com a gente. Ai o que acontece? Com ela dialogando com a gente, a gente podia tentar entrar em um acordo. Isso se eles topassem fazer uma reunião comunitária: Sociedade e morador de rua. Mas a maioria quer mais é que a gente morra”.

Subitamente ele parou de falar e voltou a apertar os punhos. Fechou a cara e olhou para o céu. Talvez pensando no que acabara de dizer. Saber que tem alguém que quer ver você morto; qual peso disso na cabeça de uma pessoa dependente química com distúrbios psicológicos em condição de pobreza? Qual o peso disso na cabeça de qualquer pessoa? O silêncio foi interrompido por um clique. Foi o isqueiro acendendo o cigarro, acendemos mais um e ele, já retomando sua expressão normal, continuou.

A DEPRESSÃO

“A gente na rua não pode ter depressão. Tem que ser forte e fazer o que tem que fazer. Mas é claro que não é fácil por que todo dia, além da luta diária a gente tem que lutar contra a própria mente. Minha depressão não tá agravada 19

hoje em dia. Antigamente ela era pesada, aos poucos foi enfraquecendo e hoje eu controlo ela e não o contrário.”

Perguntei de suas tentativas de suicídio quando mais novo. Mas lembrei instantaneamente da minha. Em alguns poucos segundos de uma praça de Lavras, voltei 10 anos e estava parada em frente à minha cama, em Campinas, com meus 18 anos. Em uma mão a minha carta de despedida e o Rivotril na outra.

Depois, as lâminas, o sangue, o pulso. Já contei tantas vezes essa história que hoje em dia conto-a como se não fosse minha, como se fosse uma parte de mim que realmente morreu aquele dia para que outra continuasse.

João, ao que pareceu, também se sentia assim, pois ia contando de cada tentativa de suicídio como quem conta uma ida ao cinema, um filme de ação que já viu 30 vezes e sabe de cor: “pulei em frente de carro, de moto, de caminhão...até de viatura, acredita?” perguntou olhando pra tela imaginária em sua frente “mas eu sempre só me machucava. Teve uma vez que eu tomei veneno. Não tomei chumbinho não, por que não mata, mas dá uma dor de barriga do caralho, me perdoa a palavra!” e riu mais um pouco. “Dessa vez, eu queria mesmo morrer.

Tomei um monte de medicamento, tomei até Roundup e fiquei 3 meses e 15 dias no hospital, em coma. Eu acordei achando que tinha dormido muito, quando fui ver... rapá! 3 meses que eu perdi e ainda tava algemado pra não tentar de novo” conclui indignado.

Conversamos sobre o peso do olhar do outro. Ele me diz que uma das coisas que fez ele ter depressão, era a família julgar que ele não era capaz de nada.

Que não via potencial nele pra nada. E que, hoje, é a mesma coisa que ele sente nos olhares da população que passa por ele. Pergunto, se ele tivesse uma chance de mandar um recado a essas pessoas, o que diria. Ele não hesitou, já aumentou o tom de voz e falou: “Não me julgues prá não ser julgado. Se quer saber o que a gente passa verdadeiramente, faz uma prova, passa uma semana na rua pra ver como que é. Se você não ia fazer alguma coisa errada. A maioria das pessoas que 20

estão na situação de rua são safados, não vou generalizar, mas não vou mentir pra você também. Muitos são intrusões, o que que é intrusão, são moradores da própria cidade que vem pra rua pra conseguir dinheiro, conseguir droga, usufruir daquilo, e depois volta pra casa como se nada tivesse acontecido.” Dá um tapa no chão como forma de protesto e faz que ‘não’ com a cabeça.

Depois, com mais calma, ele diz que até entende quem faz isso. A rua é viciante, disse. “Mais viciante que o crack, cocaína, açúcar tudo isso aí. A própria rua te vicia a morar nela pela liberdade. Você não tem que dar satisfação pra ninguém do que você faz. Mas, ao mesmo tempo, ela é muito prejudicial também pra cabeça e pro corpo. Se a pessoa não tiver uma psicologia um pouco mais concreta ela acaba fazendo merda. Se não tiver a mente firme começa a ter esquizofrenia, distúrbios psicológicos. Eu consegui me virar, mas conheço uma pá de gente que se perdeu”

A POLÍCIA, OS HOMI

“Eu tenho problema de distúrbio emocional. Tenho crise nervosa. É por isso que tem hora que eu enfureço e aí explode. Tem muitas vezes que eu vou usar minha transparência pra falar a verdade pra sociedade, ela não aceita e, por pegar raiva, aciona os policiais”. Nesse momento vejo um brilho nos olhos que ainda não tinha visto. A revolta da qual se referiu anteriormente se apossa dele e ele joga a bituca com raiva no chão. “A maioria não tem coragem de bater de frente e usa a polícia como escudo, chama proteção de bloqueio isso. A pessoa não tem... coragem de agir e chama quem tem”.

João me conta que a polícia militar tem um papel importante na vida dos moradores de rua. Para ele, motivos pra ser detido não faltaram: desacato a 21

autoridade, tentativa de destruição patrimônio público, ofensa verbal, posse de substância química. Durante sua estadia na rua, apenas em São Paulo capital, foram dezenas de vezes que apontaram a arma pra ele. Perguntei qual experiência marcou pra ele “Marcar, marcou todas né. Mas o pior momento que eu já passei na vida, foi um dia em que eu acordei de madrugada e tavam os homi com 7 quadrado [nome para pistola] e dois fuzil na minha cara. Eu abri os olhos e já gritei ‘crendeuspai!’” e começou a rir, como se tivesse contado uma piada.

Logo passou uma conhecida “me dá uma ajuda?” e o assunto, por hora, findou.

João tinha amigos na rua. Um deles, Pedro, sentava todo dia de manhã em frente ao mesmo banco, mas no outro fluxo. João pedia pra quem chegava da direita, Pedro para quem chegava da esquerda. Uma competição amigável, me disse rindo. Pedro, quando ouviu João falar de policiais foi logo tirando sarro “Vou chamar seu amigo, o Claudião pra você!” e ele responde “ta doido rapá” e riram. João me explica que o amigo sabe do seu medo de policiais e tira sarro dele dizendo que o Tenente Claudio está vindo. Como se fosse um bicho papão ou o homem do saco, penso eu, mas baseado em medos reais. Experiências reais.

Pergunto sobre injustiça, sobre como ele se sente dentro da sociedade militarizada. Ele faz uma cara amarga, como quem toma uma limonada na qual esqueceu de colocar açúcar, deu dois soquinhos no chão e respondeu “A sociedade é muito ligada a televisão, ao governo, ao senado... E são tudo um bando de safado. Por exemplo, algumas coisas que acontecem, eles distorcem a informação. Por que se um cara tá lá do meu lado e leva um tiro, a televisão coloca como se tivesse levado uns 10. Mas se foi gente que eles não ligam, as vezes nem dá notícia” Nesse momento, para uma viatura ao lado do Banco do Brasil, onde estávamos. O quinto dia útil se aproximava e os carros forte cheios de dinheiro descarregavam suas quantias nos terminais. Os policiais logo olharam para João, seu colega, Pedro e para mim. Acenaram com a cabeça olhando pra mim, 22

certificando se estava tudo bem; eu acenei de volta com um sorriso e voltei a olhar para João, que estava de cabeça baixa resmungando algo ininteligível. Acendi mais um cigarro pra mim e outro pra ele e cutuquei seu joelho esticando o cigarro para seu campo de visão. Ele aceitou e, em um tom mais acanhado, talvez pelos olhares da polícia alguns metros na frente, porém não menos intenso, continuou.

“O governo defende a Polícia Militar como se fosse acima da lei. Ai, o que a polícia fala é verdade, o que o cidadão fala é hipocrisia. Enquanto a sociedade acreditar no governo e, não vou generalizar, mas em alguns policiais militares, a sociedade vai estar, perdão da palavra, fodida. Por que muitos, inclusive aqui em Lavras, são corruptos e são covardes, pois, se escondem atrás de um escudo, que é a farda.”

DIREITOS E DEVERES

“Muitas vezes usam as imagens da gente ilegalmente. Tiram voto, compartilham e isso é crime perante a lei. E eu sei que se a gente exigisse direitos autorais de cada foto que tiram da gente, a gente tava rico, viu?” e deu uma risada curta. Mas logo emendou com mais uma verdade: esse abuso só se dá por conta da situação de rua. Se eles tivessem direitos não seriam abusados e, se fossem, teriam como recorrer por meios judiciais sem serem debochados, afirma João.

“Um morador de rua querendo abrir processo de difamação contra um cidadão que tirou uma foto? É quase piada pronta!” dessa vez não riu. Abaixou a cabeça e olhou pra quem estava saindo do banco na hora “me dá uma moedinha?”, deram 3 e ficamos um tempo em silêncio, fumando nossos cigarros e ouvindo o sertanejo que vinha de uma loja de tênis próxima.

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Passou uma amiga minha na nossa frente. Amiga mesmo, de ir em casa e contar segredos. João, que havia se calado um pouco, pediu uma moeda. Ela não olhou pra baixo, não o viu e não me viu. Fiquei pensando, como seria realmente se sentir invisível? Ou pior, propositalmente ignorada? Em menos de uma hora, já me sentia incomodada: os olhares de canto de olho, o desconforto nas pernas de sentar no chão, o sol queimando a cabeça, as poucas moedas que eram dadas pelas poucas pessoas que prestavam atenção. Seria, afinal, o desprezo algo que o ser humano consegue se acostumar? Faz parte de ser humano ansiar por empatia, mesmo quando essa já te foi negada tantas vezes?

Quando estudei Ciências Sociais há alguns anos, tive uma disciplina na qual lemos alguns textos do filósofo Genebrino Jean-Jacques Rousseau. Ele acreditava que o indivíduo, na sua essência, nascia genuinamente bom e capaz de sentir pelo sofrimento do outro. Mas, que a vida em sociedade, o obrigava a ser egoísta e moralmente corrupto. Oras, se isso fosse verdade, se o convívio social fosse causa inerente de imoralidade, como podia eu estar sentada com um morador de rua cuja ética aparente sobressaía a muitos indivíduos que vivem em seus pequenos mundos? Seria, afinal, o dinheiro e o poder, e não o convívio social, os maiores corruptores?

Voltei meus olhos para João que contava na mão as moedas que tinha recebido. Feliz, me informou que quando passa do dia 1º até o final da segunda semana do mês, recebe as melhores esmolas, da metade pro final do mês, já tem que “dar seus pulos” pra descolar o dinheiro necessário para sobreviver. Quando perguntei o que seriam esses pulos, fechou o punho cheio de moedas, deu uma risadinha e mudou de assunto.

“Sabe por que os policiais não gostam da gente? Por que a gente não ajuda a pagar o salário deles. Os cidadãos, todo imposto que eles pagam, ajudam no salário deles. Ai o que acontece, como a gente não faz parte disso, eles ficam com raiva. Aí nós somos estorvo, eles falam que a gente tem direitos mais não tem 24

deveres. E é por isso que nas capitais se matam moradores de rua, não é segredo, todo mundo sabe. Eu mesmo já presenciei várias vezes.”

Vejo ele guardar as moedas na mochila rota e apertar o punho de novo, com força. As lembranças de noites em São Paulo emergem à superfície e quase transbordam. Me conta que, por vezes, nas madrugadas frias da cidade, acordava com a execução de companheiros e via, no escuro, o sinal com o dedo indicador de silêncio. Novamente, afirma que Deus estava lá, que o poupavam. Pergunto o que ele sentia nessas horas de quase-morte. Ele pensa, ajusta as costas na parede do banco e admite: “Uns 40 porcento... não, 30 porcento de alivio e 70 porcento de raiva. Alivio pra sair dessa vida. Mas raiva por causa desse abuso de poder. E eu falava pra eles, Deus tá vendo, isso vai ser cobrado. Eu acredito que aqui se faz, aqui se paga. Se você faz uma coisa boa, vai vir coisa boa pra você e o contrário também.”

SAIR DA RUA, SOSSEGAR

Perguntei por que ele não tinha saído da rua ainda. Ele me olhou com um misto de carinho e deboche, mas não respondeu. O sol batia forte na nossa cara.

Era quase meio dia e, por conta do horário de almoço, a praça principal da cidade onde estávamos, na qual todos os bancos ficam, ia enchendo de trabalhadores com seus vinte minutos de paz. Vinte minutos sem ter que olhar por cima do ombro pra mexer no celular. Vinte minutos para pagar contas e passar em frente ao João que agora interrompia a entrevista de 40 em 40 segundos pedindo a moeda do almoço. “não tenho moedinha, rapá” respondeu um homem gordo de terno e gravada. “Pode ser notinha então, senhor!” e riu alto dando um tapa na própria perna.

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Olhou pra mim e respondeu a pergunta que tinha feito 5 minutos antes.

Esperei por que sabia que a resposta vinha, João não parecia o tipo que se desviava daquilo que o incomodava, pelo contrário. E assim, olhou no fundo dos meus olhos: “Até o presente momento eu não quis sair daqui” silêncio.

Ficamos conversando com Pedro, amigo de João. Ele ficava repetindo que já tinha dado o horário do João e que daqui uns minutos o “neguim” chegaria e ele tinha que passar o ponto. Conversavam rindo, mas era perceptível que havia algo sério no aviso. João virou pra mim e falou mais baixo “vou ficar aqui até o último segundo, é o melhor ponto da cidade, mas só posso ficar de manhã” Existe um acordo, por vezes explícito, por vezes velado, entre os moradores de rua e os policiais, de onde eles poderiam ficar sentados para pedir esmola. Uns anos atrás, algumas lojas, incluindo os bancos, colocaram em todo perímetro, espinhos de metal no chão para limitar o espaço nos quais moradores de rua poderia dormir ou sentar. Por isso, explica João, o número de locais bons diminuiu fazendo com que eles tivessem que fazer uma espécie de rodízio e ele, que antes ficava o dia inteiro no Banco do Brasil, agora ficava na parte da manhã lá e todo começo de tarde ia para outro ponto menos movimentado.

E como se nunca tivesse saído do assunto, voltou a falar do porquê permanece na rua “Vou ser sincero. Eu tinha a fé de mudar o pensamento de algumas pessoas, ficando aqui na rua fazendo com que elas, me olhando, se colocassem no meu lugar”. Achei bonito. E pesado. “Eu poderia até tentar mudar o pensamento de toda a sociedade. Chama-se persuadir. Persuasão. Fazer com que elas entendam de verdade o que é passar o que eu passo. Que nem eu fiz com você” e ficou sério de novo. Não foi uma brincadeira. Ele sabe que mudou algo em mim.

O pensamento me lembrou de um documentário que vi na adolescência, Estamira, chama-se. O filme, de 2006, de roteiro e direção de Marcos Prado, fala

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de uma mulher que mora num lixão com alguns amigos e questiona sobre a relação do homem com o lixo e sobre sua própria existência. Num certo momento a protagonista fala “O “trocadilho” (expressão que usa para se referir a uma entidade divina) fez uma tal maneira que quanto menos as pessoas tem, mais eles menosprezam, mais eles jogam fora. Quanto menos eles têm. Eu, Estamira sou a visão de cada um. Ninguém pode viver sem mim. Ninguém pode viver sem Estamira” conta.

João continua a prosa “é muito fácil pra quem tá de fora julgar quem tá nessa. Ai o que que eu faço, eu uso a psicologia contra a própria pessoa, entende?

Eu uso o que ela vai jogar em mim contra ela mesma. Você podia estar aqui.

Agora me conta, como que eu vou sair da rua, sossegar, se eu sei que tá essa merda aqui fora?”

Conta que já passou por muitas casas de recolhimento e abrigos, mas que, na maioria dos lugares que prometem uma reabilitação, há alguma contrapartida oculta “Pode ser religião, isolamento, mudança de princípio, sempre querem algo de volta. Na verdade mesmo querem é te ver morto. Mas aí não dá. Então não te tratam como pessoa, mas sim como um robô que tem que obedecer mil regras e não é assim que funciona pra quem já morou na rua. A rua é liberdade, reabilitação é prisão” encerra.

EU NÃO VOU AMALDIÇOAR DEUS

João acredita em Deus. Disse pra mim, que se não fosse ele, não estaria vivo até hoje. Olhou pra cima com olhos marejados. Os raios de sol entraram nos seus olhos por debaixo do boné e ele os teve que fechar. Pela primeira vez, o vejo emocionado, desfocado da necessidade de ter resposta pra tudo, de ser forte pra 27

tudo. Olha pro céu e faz um sinal de afirmação com a cabeça e um sorriso de canto de boca, como se tivesse um acordo com Ele que só eles soubessem, portanto, só eles saberiam se o acordo foi honrado ou não. “Cada situação que eu já passei. Fui tratado que nem cachorro louco a maioria da minha vida. As pessoas ou tinham medo de mim ou me desprezavam. Igualzim cachorro. Não que o cachorro merece a vida que eu levo, claro.” Deu uma risadinha.

“Aquela vez que eu acordei com os policiais apontando a arma pra mim eu sei que não morri por que Deus não quis, por que um policial puxou o gatilho, mas logo a bala da pistola dele mascou” conta com os olhos brilhando e sorrindo com deboche.

João leva com ele uma bíblia. No que começamos a falar de Deus, ele pega a bíblia de dentro da mochila surrada e começa a procurar alguma coisa entre as páginas. A bíblia, muito usada e com algumas páginas quase soltas, não é daquelas edições pequenas de cabeceira. É grande e, apesar de surrada, era manuseada com todo o cuidado que poderia receber.

Enquanto procurava a citação que queria me ler, conta que a parte favorita é a de Jó. Eu, que nunca fui incentivada a ler a bíblia quando mais nova, sabia apenas algumas coisas que apareciam, vez ou outra, em algum filme, série ou como argumentos em debates acerca de pensamentos retrógrados do Cristianismo. Falei, com certa vergonha, que não sabia quem ele era, pedi para me contar um pouco sobre ele.

“Jó foi o mais paciente e mais fiel a Deus que toda a bíblia teve. Deus permitiu que Satanás matasse todos os filhos dele. Sem razão alguma, sem nada contra Jó, Deus permitiu que o inimigo fizesse isso. Ele era o mais rico em todo oriente, com milhares de animais e Deus permitiu que tomassem tudo dele... E aguentou tudo calado e não atribuiu nada do que aconteceu a ele a Deus. E quanto ele já estava sem dinheiro e sem filhos, depois de contrair Lepra, a própria

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mulher dele falou: ‘você ainda acredita no seu Deus? Amaldiçoa ele e morra! Mas ele não abandonou” João começou a ler baixinho alguns versículos e virava as páginas com as pontas dos dedos sujos. Página por página ia lendo como quem sabe de cor o que acontece em seguida, então passava duas, três páginas de uma vez. “Achei! Logo depois que os filhos morrem, olha o que tá escrito: ‘Ao ouvir tudo isso, Jó levantou-se, rasgou o manto que vestia e foi raspar a cabeça. Logo em seguida, ajoelhou-se, encostando o rosto no chão, em sinal de humildade e adoração diante de Deus” Jó adora a Deus. E João adora a Jó. Alguma coisa brilhou nele nesses minutos em que falamos dessas passagens. Não resisto e pergunto se ele se identifica com essa história, ele ri e afirma com a cabeça e com lágrimas nos olhos, pela primeira vez em toda a conversa: “Você pode ter certeza que se tudo isso que aconteceu com Jó, fosse com um morador dessa cidade, ele ia amaldiçoar a Deus. Eu não vou amaldiçoar Deus. Eu recebo o que tenho que receber e me viro pra lidar. Não vou virar as costas pra quem me salvou tantas vezes. Não vou.”

Eu, mesmo não crendo nesse Deus bíblico, confirmo com a cabeça e assimilo a informação. João não precisa de culpados divinos. Ele tem dentro dele a certeza de instituições que o deixam na mão e motivos pelos quais agora faz sentido continuar vivendo.

NUMB

Encerro a entrevista agradecendo e pauso o gravador do celular. João repara no aparelho e pergunta “cê tem música aí pra eu ouvir um pouco?”. Faço que sim com a cabeça, coloco na lista de artistas do player de música e dou meu

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celular em sua mão. Ele, com o mesmo cuidado que teve com a Bíblia Sagrada, manuseia o aparelho a procura de um artista que goste. Nesse momento, me pego pensando nessa outra forma de privação que sequer pensamos quando vemos um indivíduo em situação de rua. O acesso à cultura já é restrito dentro das classes C e D. Cultura é informação, informação é poder.

João deu um grito de exclamação e abriu um largo sorriso “essa aqui é do meu tempo!”, encontrou uma banda que gostava. Procurou um pouco e colocou a música Numb da banda americana Linkin Park. Cantando em um inglês enrolado, mas com muita empolgação, eu não consegui decifrar se ele conhecia a letra ou simplesmente se identificava com a melodia. A música, de 2003, fala coincidentemente (ou não) sobre uma pessoa que se sente cobrada para ser alguém que ela não é que, com o passar do tempo, se cansa e decide desabafar.

O refrão fala, em uma livre tradução mais ou menos assim: “Cada passo que eu dou, é um outro erro para você. Eu me tornei entorpecido e não consigo te sentir mais. Me tornei tão cansado, mas muito mais consciente. Estou me tornando nisso daqui e tudo o que eu quero fazer é ser mais como eu e menos como você.”

Fui ouvindo ele cantar, cantava eu também junto, baixinho, mas percebendo nele a mistura de raiva com prazer em escutar uma música depois de anos e lembrar para quem ele cantava. Ele sabia a letra.

Ao terminar a música, ouviu mais algumas da mesma banda, Cachimbo da Paz, do Gabriel, O pensador e Raul Seixas. No final de Metamorfose Ambulante, de Raul, que cantou empolgadíssimo, chega o outro rapaz, que ficaria no local até o começo da noite “pode vazar Gaguinho, agora sou eu”.

Levantamos, ele deu um sorriso debochado e um tapinha no ombro dele, que continuou sério. Olhou pra mim, com o sol batendo forte em nossos rostos, devolveu meu celular e se despediu com um aperto de mãos: “Falou nega, a gente se vê por aí” e antes da minha resposta, virou de costas e foi subindo a rua

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Francisco Salles, rua principal da cidade. Os transeuntes não conheciam João.

Será que eu conheço?

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PODE COMEÇAR?

Em uma pequena sala dentro da Comunidade Eterna Misericórdia, um sítio em Lavras, MG, que recolhe homens entre 18 e 75 anos em situação de exclusão social tenho meu encontro com Marcelo.

Antes de conhecê-lo, cheguei no local, cheio de árvores, bancos e aves, e todos me olharam de forma estranha. Era um grande pátio com algumas cadeiras, como aquelas de bar, na qual os acolhidos, como eram chamados, sentavam-se e conversavam. Em geral, descubro através do cozinheiro, as mulheres que chegam lá são parentes ou palestrantes e a curiosidade é em saber qual das duas eu sou. Rimos um pouco e logo expliquei quem eu era e com quem havia vindo conversar, ganhei um copo de café e um pastel de fubá recém frito (ê Minas Gerais, quem te conhece...) e o cozinheiro, Maurício, foi chamar Marcelo.

Magro, cabelos ralos e pretos, com um jeito expansivo e sorriso no rosto, ele chega e aperta minha mão. “opa! Tava te esperando! Quer ir prum lugar mais tranquilo? A rapaziada aqui não vai dar sossego!” me leva pelos corredores do enorme sobrado e chega a uma sala com dois sofás cor de vinho escorados na quina da parede da direita e um pequeno altar com uma cruz do lado esquerdo “aqui é uma das salas de oração, lugar mais quieto que tem”. A janela, bem em frente a porta, dá para o pátio onde alguns dos rapazes abrigados conversam e, ao longe, as montanhas se perdem no horizonte. “Pode começar?” pergunta empolgado. Eu aceno que sim, ligo o gravador e ele começa sua história.

Filho mais velho de 4 homens, pai caminhoneiro e mãe dona de casa, natural de São João Del Rei, conta com um sorriso no rosto que a infância foi muito boa “tive tudo que uma criança pode ter desde bicicleta, pipa, escola boa, merendeira sempre com comida. Eu, com 11 anos, sonhava em ser gerente do Banco do Brasil.” Enquanto conta daquela época, Marcelo gesticula muito, como 33

aqueles italianos do Sul da Itália que nem precisam realmente falar para serem compreendidos, apenas as mãos bastam.

“Mas teve um acontecimento interessante na quarta série. A professora chegou do nada e falou ‘hoje eu vou dar uma prova’. E eu fiz, mas realmente não era meu dia aquele dia e eu não fui bem. E eu fui levado para uma sala inferior.”

O sorriso esvai do seu rosto e percebo uma tristeza. Ele conta que aquele momento desencadeou um problema grande na sua vida, pois a partir daquela reprovação em uma prova, foi colocado no meio de pessoas repetentes que já eram pais e mães e utilizavam bebidas alcoólicas.

“Claro que eu já tinha desde as raízes alguns problemas psicológicos, de dependência e tudo mais por causa do meu histórico familiar, mas eu tava na quarta série e eu tive que lutar pra sobreviver e aquilo ali despertou uma pessoa em mim que eu ainda não conhecia.” Enquanto ele fala, seu semblante muda. A pessoa alegre que me recebeu no pátio se transforma em alguém acanhado, encolhido, pequeno. Alguns segundos passam quando ele volta a sí e me olha nos olhos: “Eu, inclusive estava até 1990 querendo processar o MEC por conta desse evento por que mudou tudo pra mim” Ele conta que a mãe fez o que pode fazer na época, foi na escola conversar com a professora, mas ficou por isso mesmo. “Eu consegui até me formar na quarta série, mas dali em diante nada mais deu certo pra mim, repeti a quinta e a sexta série, eu virei a própria ovelha negra. Aí, pra piorar, meus irmãos foram nascendo, então se eu tinha aniversário todo ano, depois eu não tinha mais. Tanto meus primos como meus irmãos foram passando na minha frente e isso foi me abalando de um jeito que aquela pessoa que despertou não queria mais dormir” conclui.

Marcelo falava rápido e com eloquência, tinha obviamente dentro dele o dom de contar histórias e trazer o ouvinte praquele universo. Descobri depois

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que ele dava palestras para adolescentes em escolas públicas contando suas experiências, por isso, talvez, algumas partes de sua estória iam saindo como repetição, enquanto por outras vezes, eu sentia sua alma nas frases como se estivessem sendo contadas pela primeira vez.

Com muito custo, Marcelo conseguiu se formar no Senai e arrumou uma profissão: operador em uma empresa pequena de pedra de isqueiro. Quando fez 17, surgiu uma oportunidade da empresa de amortecedores COFAP que o levou como estagiário para São Paulo “Naquela hora meu maior sonho já era outro, eu queria conhecer o mundo, conhecer as discotecas, prédios, praias, pessoas. E eu consegui.” Parou um segundo, tomou um grande gole de água e continuou.

“Mas a minha vida se resume assim: onde eu entrava as pessoas me abraçavam e sorriam, mas depois queriam que eu fosse embora. Por que eu não deixava ninguém em paz, eu bagunçava, manipulava, confundia as coisas e ninguém queria alguém assim vivendo com você. Então perdi meu emprego e aí voltei pra São João Del Rei. Depois de 8 meses desempregado um primo meu arrumou um emprego pra mim lá em Salvador, na Bahia, de estagiário dos correios. Quase 2 anos, praia o dia inteiro, só conhecia lugar bom. E eu tentei me segurar, tentei fazer as coisas certas. Mas aí eu fui conhecendo a rapaziada e não teve outra. Ai, de novo, me receberam de braços abertos, mas quando foi passando o tempo tavam implorando pra eu ir embora. E então, pela primeira vez eu fui realmente morar na rua. Lá em Salvador” Nesse momento batem na porta, entre um rapaz alto e forte, de pele negra com lágrimas nos olhos. Marcelo levanta num pulo e corre dar um abraço no rapaz, ficam um tempo abraçados, se olham nos olhos e Marcelo fala “bem-vindo de volta, amigo!”, murmura algo em seu ouvido, se despede e fecha a porta chorando. “Essa cara... esse cara entrou comigo aqui, quatro anos atrás. Mas teve uma recaída uns meses atrás, sumiu e acabou de voltar” conta sorrindo e enxugando as lágrimas 35

Voltando à contação de história, Marcelo explica que quando foi pra rua, ainda não tinha perdido o emprego, por isso ia trabalhar drogado, sem dormir e que passou a confundir quando era dia, quando era noite e acabou sendo despedido “Foi quando eu consegui um emprego em Campinas por causa do meu irmão que era soldado. Como você pode ver, eu sempre tive muitas oportunidades, mas alguma coisa aqui dentro de mim, essa outra pessoa que vive aqui dentro, só quer fazer coisa errada” Foram ao todo 16 anos que passou em Campinas, de 2000 até 2016. Morou na mesma cidade, no mesmo bairro e na mesma época que eu. Será que nos cruzamos? Pergunto a mim mesma. Ele, sem saber da minha indagação, continua “Foi em Campinas que eu conheci o crack. Aí não teve outra. Voltei pra rua.”

Percebo que essa lembrança da sua vida é uma das partes que não costuma falar.

Seus olhos não encaram mais os meus e passam a olhar, com firmeza, a cruz dependurada na parede, fazemos um minuto de silêncio, talvez em respeito à memória, talvez para tomar fôlego para o que estava para contar.

“Olha, eu morei num lugar que eu vou falar pra você, é o fundo do fundo do poço. Você abre a porta e tem alguém com a mão estendida com a droga. Ai depois vem cobrar com a arma na sua cara, sem conversa. O crack coloca você abaixo de qualquer animal da face da terra, você vira um bicho. Aí que você descobre o que é homem, quem é você de verdade. Onde você acorda de madrugada, rato andando em cima de você, a latrina mais suja do que o amarelo do sol, fogueira do lado da onde você tá, 3, 4 meses sem tomar banho. Um cemitério ambulante ao seu redor” Conforme ele ia descrevendo o local, eu ia imaginando o cômodo e uma tristeza invadia meu peito, não transpareci nada e continuei escutando “Desculpa falar assim, mas onde você caga e mija, é onde você dorme. Ai nesse dia, nessa condição, refletiu tudo dentro de mim, eu entendi que eu não merecia isso, que

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aquilo não tava certo e que eu precisava de tratamento tanto químico quanto psicológico” Como quem coloca o rosto fora da água depois de quase se afogar, Marcelo respira fundo e se ajeita no sofá. Toma mais um gole de água e volta a olhar pra mim. “Aí eu vim parar aqui” e volta a mostrar seu largo sorriso.

E AÍ, VOCÊ COMEÇA A VIRAR RUA

Pergunto sobre o que pensava sobre morar na rua. Sobre suas experiências e sentimentos daquela época. Ele pensou por um instante e apontou o dedo pra mim “É o seguinte. A rua cobra muito caro. É a mesma coisa, por exemplo, se você é um político honesto, você entra lá no meio dos desonestos. Eles vão te chamar no canto e falar ‘olha amigo, ou você anda com nós ou não tem como andar com a gente, por que a gente faz uma coisinha aqui e uma ali’ a rua é exatamente assim. Sem tirar nem por. E quando você entra nesses ambientes, você entra em contato com pessoas que são mais loucas do que você, que tem menos controle ainda do que você. E isso nunca é bom.” Deu uma risada amarga e olhou novamente pra cruz.

“O ser humano, ele precisa de algo pra se apoiar, sabe?” e voltou seus olhos para mim “Quando você tem uma casa, mas escolhe estar na rua, isso é muito simbólico. Por que é uma forma de agredir a si mesmo e eu me perguntava dia e noite: por que eu estou me punindo? Não tem como você andar na rua e não andar com ela, então você vira uma escuridão... e aí, um dia, você começa a virar rua.”

Nesse momento me lembrei do conceito de reificação, que havia aprendido há alguns anos em leituras de Karl Marx. A palavra vem do alemão

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verdinglichung, que significa, literalmente: "transformar algo em coisa” e não pude deixar de pensar que o “virar rua”, seria a mesma perda de humanidade que o capitalismo impõe sobre sua classe trabalhadora. Um antagônico de prosopopeias, como se as ruas falassem, mas os humanos deixassem de fazê-lo.

Deixo de lado meus pensamentos e percebo que ele também está absorto nos dele, encontramos nossos olhares e ele, com muita calma afirma acreditar que ninguém que esteja na rua seja realmente feliz. Pondero comigo mesma, não sei se concordo. Mas entendo a importância da afirmação e continuo ouvindo.

“Tem momentos que eu, poxa, eu gostaria de botar a culpa em alguém. Eu gostaria de falar: aquela professora da quarta série, ela poderia ter me dado um tempo a mais pra fazer a prova. A primeira pessoa que me deu um cigarro, poxa, ela podia ter explicado melhor o que era aquilo. Será que aquele professor que me suspendeu, ou minha ex mulher, será que ela não poderia entender que eu tenho meus defeitos? A dor é tão grande que a gente tem que esvaziar. Tem que lançar pra alguém. Pras pessoas que passaram por você, pro governo, pra polícia, pra sociedade”. Marcelo para e diz que precisa ir ao banheiro, eu aceno com a cabeça e pauso o gravador.

Fico pensando na última coisa que havia me dito. De colocar a culpa de tudo que passou unicamente em suas costas. Deve ser um peso e tanto; um peso que precisa ser exaurido. No caso dele, a religião, a crença em Deus e em um plano maior o deu forças para carregar essa culpa. Mas e quem não tem essa fé?

Seria errado pressupor que a própria culpa é um sentimento inútil quando tratamos de dificuldades pessoais? Talvez. Mas o que eu não consigo conceber é a retirada da parcela de culpa pelo adoecimento individual da própria sociedade doente em que vivemos.

Marcelo volta para a sala com a garrafinha de água cheia e senta confortavelmente no sofá ao meu lado. Respira fundo e diz que lembrou de uma coisa que queria falar sobre o olhar de julgamento dos outros quando estava na 38

rua. Eu ligo de novo o gravador, e ele conta pausadamente e muito sério que uma das coisas que mais doem no ser humano é o olhar do outro ser humano. “É tão doído... que quando a pessoa olha com olhar de punição, dói, mas quando olha com olhar de compaixão, dói também!” ele ri de nervoso, como se estivesse revivendo aqueles momentos. Mas retoma a postura e lembra de uma analogia que conta às vezes em suas palestras e gostaria de repetir pra mim: “Sabe aquele desenho do Frajola e do Piupiu? tem uma cena que ele tem que atravessar um terreno lá pra chegar no Piupiu, sabe? E quando ele olha por cima tem um monte de cachorro daquela raça brava. Aí ele espera escurecer pra atravessar o terreno. Ele vai, passinho por passinho no meio dos cachorros.”

Gesticula com seus dedos pequenos passinhos no braço do sofá onde está sentado “E quando ele tá no meio do terreno, cercado de dezenas de cachorros, o Piupiu acende a luz! Os cachorros só abrem os olhos devagarzinho e vai descendo uma linha pelo corpo do Frajola até ele ficar branquinho!” solta uma risada como se estivesse vendo o desenho na sua frente e logo lembra o porquê da história e fica sério de novo “é exatamente isso que acontece com o ser humano de rua quando olham pra gente. Como se fosse morrer. Por isso que, às vezes, as pessoas ficam loucas mesmo. Desenvolvem doenças da mente. Se matam. Por que a dor é insuportável.”

Conversamos um pouco sobre mim. Ele pergunta por que eu escolhi esse assunto e como cheguei até ele. Explico que um dos fundadores da comunidade, Bruno Nogueira, era amigo de uma conhecida. E que, quando falei do meu projeto, Bruno pensou imediatamente nele, Marcelo, para conversar comigo.

Percebo que Marcelo enche o peito de orgulho. Dentro todos que estavam lá, o fundador recomendou logo ele. Pergunto como ele se sente com essa indicação e ele me diz que depois de tantas coisas ruins que ele passou, essas pequenas coisas boas fazem toda a diferença. Pra poder aquietar os pesadelos, ele disse. “Você se

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importaria de dizer algum desses pesadelos pra mim?” pergunto tentando não ser incisiva.

“Ah...” começa ele olhando pra frente “Memórias de tomar pico todo mundo junto (referindo-se ao uso de heroína injetada na circulação sanguínea), prostituição sem proteção, beber etanol no desespero”. Parou um segundo e desviou o olhar para o teto, como se estivesse fuçando nas memórias para tentar lembrar de uma específica que merecesse ser contada. Seus olhos brilharam e sua boca contorceu rangendo os dentes. Havia lembrado de uma. Ele olhou pra mim com os olhos tristes e continuou.

“Teve uma vez que eu fiquei com um travesti numa calçada lá da marginal Tietê, em São Paulo. Passamos um tempo juntos tentando, sabe, aliviar a dor um do outro. Mas teve uma vez que a gente usou muita droga, muita mesmo. E ela amanheceu morta do meu lado” Marcelo respirou fundo e abaixou o tom de voz “E eu não percebi. Achei que ela quisesse dormir mais um pouco e fui conversar com um rapaz que tava passando. Até que ele veio e cutucou ela e disse ‘sua amiga tá estranha, ela tá meio dura’”. Nessa hora, sua voz ficou rouca, ele apertou forte uma mão na outra entre uma mistura de reza e raiva. Fechou os olhos, pigarreou e continuou com a voz um pouco trêmula “É uma situação difícil por que você tem que largar pra trás” Ficamos alguns segundos em silêncio e ele repetiu um pouco mais alto “você tem que largar pra trás. Você tem que chamar alguém e ir embora por que você não pode ter vínculo com aquilo, entende? Então me marcou muito por que era uma pessoa que fazia companhia... uma pessoa jovem... E o coração dela não aguentou... E eu tive que partir “ Ficou silêncio no cômodo. Nenhum de nós ousou interrompê-lo por alguns minutos. Um luto póstumo, por assim dizer.

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EU NÃO CONHECIA DEUS, COM LETRA MAIÚSCULA

Conversamos um pouco mais sobre mim, sobre as cidades que já morei e ele, repentinamente, perguntou “Você já foi mudar prum lugar mais apertado da onde você morava antes? Não é difícil ter que encaixar tudo que você tem lá dentro? Pra mim, é a mesma coisa a mudança que Deus quer para o ser humano.

Tem milhares de coisas que podem dar errado, tem, claro. Mas você deixa de mudar por isso? Não.”

A Eterna Misericórdia é uma Organização Não Governamental que tem como missão, segundo sua cartilha “ser um bálsamo na vida dos homens que suspiram por um acolhimento, carinho e uma escuta diferenciada” Embora tenha fortes raízes cristãs, o Coordenador me informou, antes de me indicar alguém, que só participa das missas quem quiser. E Marcelo desde que chegou, me conta, se apegou muito aos estudos bíblicos.

Perguntei se ele já era religioso antes, ele me responde “Eu já acreditava em deus, mas eu não conhecia a Deus com letra maiúscula, entende? A gente passa a conhecer quando vem pra um lugar desse aqui. Aí vão te dizer que Deus deixou você passar por tudo isso pra amanhã ser exemplo pra alguém. Vão dizer que você precisava passar por isso por causa do projeto Dele. Tem um monte de história, um monte de coisa, um monte de dúvida e de medo” Quando começa a falar de Deus e dos planos que tem para a própria vida, o rosto de Marcelo se ilumina. Volta a gesticular e sorrir, mesmo quando relata coisas mais negativas que lhe ocorreram. Me conta rindo que essa mania de concorrência com tudo só estraga a vida. “Tá todo mundo achando que tá competindo e na verdade tá todo mundo tentando ir pro mesmo lugar!”

Fico pensando no meu ceticismo. No quanto eu queria, mesmo que por um dia, confiar em algo maior que eu para entregar de olhos fechados todos os 41

problemas que não sei lidar nas Suas mãos. Nunca fui assim. Tenho meu anjo da guarda e minha medalhinha de São Bento. Mas não passa disso. Não consigo crer que o Deus onipotente que me fez tão privilegiada é o mesmo que se perde em inúmeras orações vindas da África. Mas qualquer que seja minha impressão crítica sobre o papel da religião na sociedade, não poderia nunca, sob a pena de me sentir moralmente podre, questionar a fé desse homem. Ele deve tudo a Deus, sendo Ele ópio3 ou não.

“Esses dias” continuou rindo “eu juntei aqui na comunidade num grupo de neuróticos anônimos e descobri que eu sou neurótico também! Aqui não tem muito isso de anonimato né, mas taí, mais uma coisa que Deus me deu pra eu cuidar de mim mesmo” demos um sorriso e brindamos com a garrafinha d’água pelo pensamento.

Marcelo conta que quando morou em Campinas, se casou com uma moça e teve um filho. Fico surpresa de não ter falado disso antes e pergunto sobre sua relação com eles. Ela faleceu na mesa de cirurgia, anos atrás, fazendo uma simples operação na vesícula. O filho ficou com os avós maternos, que devido à condição de Marcelo na época, abriram um processo e o proibiram de vê-lo e de entrar em contato.

Depois de um ano internado, ele entrou em contato com eles, contando sobre a recuperação e pedindo uma chance de reaproximação, que lhe foi dada.

“Eu acho que recuperar (a guarda) meu filho, eu não recupero. Mas a gente se fala quase todo dia e eu tenho esperança que quando ele crescer, ele fale pros avós dele ‘quero passar um tempo com meu pai’ aí vai ser maravilhoso. E eu não tenho nenhuma dúvida de que foi Deus que me trouxe até aqui e assoprou nos

Referência à frase “Religião é o ópio do povo” presente na Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel de Karl Marx, publicada em 1844 3

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ouvidos dos meus ex-sogros que eu tava bem, que eu tenho bom coração” concluiu olhando, mais uma vez, para a cruz.

PEDIR AJUDA É DIFÍCIL, AJUDAR TAMBÉM É

“Aquele dia, que eu te contei, que tinha rato andando em cima de mim. O dia que eu sabia que aquilo era o fundo do poço, eu vim até minha família e pedi por ajuda. Ai meu irmão morava em Lavras, achou essa casa. Fiquei 9 meses de recuperação, sem contato com ninguém. E eu sabia que precisava ficar mais de nove. Então eu passei para voluntário, monitor, conselheiro e até hoje funcionário” Conta que nos últimos 3 anos a vida melhorou muito, que seu pai é seu melhor amigo, a mãe o adora, reencontrou amigos de quem tinha se distanciado e reconciliou. “Sabe, eles falam que quase ninguém consegue recuperar, que a porcentagem é pouca de quem sai da rua. Mas isso não é por que a pessoa não quer, ela quer, mas tem um monte de barreira, inclusive daquelas pessoas que ajudam. Por que, vou te contar um segredo: pedir ajuda é difícil, mas ajudar também é!”

Lembrei daquela velha frase: você pode ter consciência do que disse, mas nunca vai ter certeza do que o outro escutou. E, a partir daí, o indivíduo pode escolher entre se responsabilizar pelo que o outro ouve o não. No caso de oferecer ajuda, faz mais sentido ainda: como ajudar alguém se não sabemos o real efeito de nossas palavras (e atitudes) sobre o outro? Marcelo continuou: “Às vezes eu saio com a Kombi no inverno pra perguntar se quer só passar a noite aqui, já aconteceu muitas vezes isso, o morador de rua vê a Kombi e se esconde. A pessoa não quer vir. Hoje eu posso fazer isso. Posso trazer ele, ai

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ele se alimenta, a gente dá uma roupa, uma toalha pra tomar banho, uma pasta de dente. Daqui dois, três dias, acordo ele 7 horas da manhã e pergunto se ele não pode capinar um jardim, ou ajudar na cozinha. E isso já faz ele querer voltar pra rua. Por que para ele isso é uma afronta, como se eu tivesse obrigando ele pra pagar a estadia ou humilhando ele. Pra mim é meu jeito de ajudar. De fazer ele se sentir útil, entende?”

Eu afirmo com a cabeça e concordo com o coração. Claro que entendo.

Afinal, não seria esse um dos maiores desafios do mundo moderno: estar bem consigo para poder ajudar ao próximo? Marcelo bebe mais um gole de água e me oferece um café. Eu aceito, afirmando que achava ter todo o material que precisava. Desligo o gravador e descemos até o pátio, onde ele me mostra a imagem de Nossa Senhora, a arara de estimação da comunidade e a horta com muitas folhas e legumes e me traz mais um pastel e um copo de café. “que vida você teve hein?” afirmo sorrindo, pegando o copo e sem me tocar da gafe. Ele, sutilmente, responde, como sorriso habitual “estou tendo, moça...estou tendo!”

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