"A ilha das árvores perdidas" TAG Curadoria - Setembro/2022

Page 30

PERDIDASÁRVORESDASILHAA2022SET

TAGGEROLÁ

Nesta edição da revista, você encontra tex tos introdutórios e críticos à obra e entrevistas com Shafak e com a curadora Adriana Ferreira Silva. Para situá-lo ainda mais no universo de A ilha das árvores perdidas, publicamos também uma contextualização histórica do conflito na ilha de Chipre e uma reportagem sobre nar radores tão surpreendentes quanto a figueira do livro do mês. Boa leitura!

Levada com eles para território inglês, uma figueira é a testemunha dessa história: é do seu ponto de vista, com reflexões dotadas de beleza e melancolia, que passamos a compreender os fios dessa trama cheia de personagens complexos e cativantes.

TAGGEROLÁ Olá, tagger

A mor proibido, guerra e memórias fami liares estão entre os ingredientes de A ilha das árvores perdidas, livro que chega às suas mãos este mês. Escrito pela premiada autora turca Elif Shafak, o romance apresenta de forma poética (e pouco convencional) a história de uma garota que busca desvendar o passado de seus pais, um casal que migrou do Chipre, ilha dividida por um conflito étni co-religioso, para viver em Londres.

Sua opinião é muito importante

Vocêecríticascadaproduzirmospararevistasvezmelhores.Temousugestões?Deixeasuaavaliaçãocompartilhesuasimpressõesnoaplicativo!tambémpodeescreverdiretamenteparanóspeloe-mailrevista@taglivros.com.br.

TAGtaglivroswww.taglivros.comcontato@taglivros.com.brComérciodeLivrosS.A. Tv. São José, 455 | Bairro Navegantes Porto Alegre — RS | CEP: 90240-200 (51) 3095-5200 2022SET QUEM FAZ RAFAELA PECHANSKY Publisher LIZIANE KUGLAND Revisora ANTÔNIO AUGUSTO Revisor GABRIEL RENNER Designer JÚLIA CORRÊA Editora Impressão Gráfica Ipsis Capa Gabriela Heberle Página da loja Lais Holanda Preciso de ajuda, TAG! Olá, eu sou a Sofia, assistente virtual da TAG. Converse comigo pelo WhatsApp para rastrear a sua caixinha, confirmar pagamentos e muito mais! +55 (51) 99196-8623

22 Saiba mais 24 Entrevista Elif Shafak 31 mêsPróximo 14 Contextualização 20 doIlustraçãomês 10 Entrevista Adriana Ferreira Silva 86 Por que ler o livro O indicadolivro 4 doExperiênciamês prefácioposfácio deguia conteúdos 29 Crítica

Leia até a página 276 As últimas páginas reforçaram a importância de Yusuf e Yiorgos para a trama, e parece que as peças dessa história estão finalmente se encaixando. Vamos para as páginas finais?

LEITURADEJORNADA

Leia até a página 307 Uau! Quando achávamos que tudo já estava esclarecido, descobrimos ainda um importante segredo envolvendo a figueira, com muitas simbologias por trás. Que tal ler agora o posfácio da revista e refletir sobre o que acabamos de ler?

Leia até a página 131 Marcada por estranhamentos, as conversas entre tia e sobrinha trazem uma série de questionamentos sobre o passado. O que você está achando das trocas entre as duas? Leia até a página 104 A narrativa nos desloca para o passado no Chipre, onde uma taberna é palco de uma delicada (e arriscada) história de amor. Como os personagens vão lidar com os obstáculos que começam a surgir? Leia até a página 74 Aos poucos, vamos conhecendo melhor os personagens dessa história. E, agora, uma visita inesperada parece abalar a rotina de Ada, Kostas e da própria figueira.

Leia até a página 233

C riamos esta experiência para expandir sua leitura. Entre no clima de A ilha das árvores perdidas colocando a playlist especial do mês para tocar. É só apontar a câmera do seu celular para o QR Code ao lado ou procurar por “taglivros” no Spotify. Não se esqueça de desbloquear o kit no aplicativo da TAG e aproveitar os conteúdos complementares!

4 EXPERIÊNCIA DO MÊS

Um reencontro tenso e emocionante marcou as últimas passagens. O que será que vem pela frente?

Aponte a câmera do seu celular para o QR Code ao lado e escute o episódio de nosso podcast dedicado ao livro do mês. No aplicativo, confira também a nossa agenda de bate-papos. A ilha das árvores perdidas pode ter terminado, mas a experiência não! cadaaMarque concluídaparte

Leia até a página 172 Ao que tudo indica, não foram apenas os humanos que sofreram com a violência da guerra na ilha. São interessantes as reflexões que a figueira nos propõe, não é mesmo? Confira no app o que os outros taggers estão comentando!

jul fev ago mar set abr out mai nov jun dez jan 5EXPERIÊNCIA DO MÊS

Desenvolvido pela designer Gabriela Heberle, o projeto gráfico deste mês explora o universo botânico em destaque no livro de Elif Shafak. Como não poderia ser diferente, a figueira e seus frutos ganham protagonismo, aparecendo ao lado de pássaros e borboletas. Elementos simbólicos na trama, estas últimas, aliás, ganham lugar especial na guarda: “A ideia foi aproveitar o movimento de abertura do livro para simular o bater de asas das borboletas”, explica a designer, que foi responsável por outros projetos gráficos da TAG, como o de Afirma Pereira, de Antonio Tabucchi.

O mimo deste mês é fruto de uma parceria entre a TAG e a Tea Shop. Enviamos uma caixinha de Chá Verde Ushuaia Ginger Citrus, uma mistura surpreendente e intensa, assim como o casal protagonista da história. Sugerimos prepará-lo ao chegar na página 29, para deixar a leitura ainda mais sensorial. projeto gráfico mimo

2022

6 POR QUE LER O LIVRO

Inédito no Brasil, A ilha das árvores perdidas é o livro mais recente de Elif Shafak, premiada autora turco-britânica, com obras traduzidas para mais de 55 idiomas. O romance trata de temas dramá ticos, como o conflito étnico na ilha de Chipre, o luto e a memória coletiva, com um lirismo surpreendente e contagiante. Pela perspectiva de uma figueira levada a habitar um quintal londrino, acompanhamos uma jovem que busca compre ender o seu passado familiar, que remonta a um caso de amor proibido. LIVROO

POR QUE LER

Harper's “O romance de Shafak mostra como as histórias de nossos ancestrais podem chegar até nós de forma oblíqua e inconsciente [...].“ Post

“Uma bela contemplação de algumas das maiores questões da vida sobre identidade, história e significado.“

7POR QUE LER O LIVRO

Washington

TIME “Shafak é uma contadora de histórias convincente. Ela escreve tanto sobre a irascibilidade adolescente quanto sobre o profundo sofrimento humano e, tal como a figueira sábia, entende a interconexão de todas as grandes e pequenas coisas.“

Nas profundezas do passado

Esse é o romance mais recente de Elif Shafak, uma doutora em Ciência Política e romancista cujas obras exploram com frequência a relação entre tragédias históricas e vivências pessoais, e que aqui escolhe para isso as lentes da memória, não apenas a memória comum e pessoal que cada um de nós carrega, mas a memória coletiva, histórica, cultural, e os riscos e meandros de seu encobrimento e transmissão. Tudo isso comentado por uma espectadora que entende mais do que ninguém como a vida humana é, ao mesmo tempo, pequena e enorme diante dos tempos

O LIVRO INDICADO8

A ilha das árvores perdidas abre com Ada, uma adolescente introspectiva e solitária que olha pela janela da sala de aula, seus pensamentos distan tes do que está sendo dito pela professora. Embora seja nascida e criada na Inglaterra, Ada não parece caber ali, naquela turma de ensino médio, naquela escola, naquela vida. Ela sente coisas maiores do que si mesma: uma tristeza e uma raiva que vêm de outro lugar e outro tempo.

Atordoada por tudo isso, ela, sem querer, abre a boca e grita por minutos inteiros bem no meio da sala. O grito é seu, mas também não é seu, e é essa explosão que desencadeia o trabalho de escavação que é a trama desse livro.

Crítica literária e ensaísta. Formada em Cinema, é doutora em Literatura Judaica pela USP. Atua também como tradutora e professora.

Em uma narrativa cativante, Shafak nos transporta entre uma ilha paradisíaca e um ordinário quintal londrino, instigando reflexões a respeito da transmissão de memórias culturais ISADORA SINAY*

da natureza: uma centenária figueira. Na tradição do coro das tragédias gregas, essa personagem peculiar não é exatamente uma narradora, mas uma constante nota de rodapé que nos apresenta os personagens, contextualiza situações e organiza os muitos fios do passado que se enrolam nessa narrativa.

A figueira, afinal, foi trazida do Chipre pelos pais de Ada e, embora agora sobreviva ao inverno lon drino, quem ela é estará eternamente ligado a essa pequena ilha no Mediterrâneo que, há décadas, é disputada entre gregos e turcos. Seus guardiões são Kostas, um grego ortodoxo, e Defne, uma turca muçulmana. Namorados de adolescência, eles se conheceram em um mundo carregado de hostilidade, mas no qual gregos e turcos viviam entremeados, tentando traçar separações impossíveis entre suas histórias, culinária e expressões. Conforme o rela cionamento deles se aprofundava, essa hostilidade se tornava o conflito armado que tornou Nicósia a última das capitais divididas da Europa.

O LIVRO INDICADO 9

A história do amor em tempos de violência é o que Ada quer desvendar. Shafak dá à história de um amor impossível um ângulo totalmente original quando desvia seu olhar dos amantes e pensa como é ser o fruto de um romance épico, da fenda terres tre aberta por um casal digno das grandes paixões míticas. Juntas, a figueira centenária e a menina adolescente precisam aprender como guardar e transmitir histórias maiores do que ambas: histórias de viajantes e animais, amores profundos como o oceano e rivalidades irreparáveis.

Os personagens desse livro são todos exímios, ainda que relutantes, contadores de história, assim como sua criadora. Em uma narrativa cativante, Shafak nos transporta entre uma ilha paradisíaca e um ordinário quintal londrino, o passado e o presente, e também entre a história desses seus personagens e da angústia de Ada em relação ao passado de seus pais e reflexões teóricas a respeito da transmissão de memórias culturais, do trauma coletivo e se é mesmo possível se libertar de um passado sangrento. Ada, como sua mãe arqueóloga, escava o passado para tentar curar feridas e assim desvendar quem ela é e quem pode vir a ser.

Entusiasta da literatura feminina, a jornalista Adriana Ferreira Silva fala à TAG sobre a sua relação com os livros e sua admiração pela obra de Elif Shafak, autora indicada por ela ao clube JÚLIA CORRÊA*E

ra dezembro de 2018 quando a revista Marie Claire destacava em seu site a seguinte manchete: "Editora passa um ano lendo só mulheres e indica novidades para o fim de ano". A editora em questão era Adriana Ferreira Silva, jornalista, escritora e palestrante convidada pela TAG para ser a curadora deste mês. Atuante há mais de duas décadas no jornalismo, Adriana já foi correspon dente internacional em Paris e passou por veículos como Vogue, Folha de S.Paulo e CBN. Cobre temas como desigualdade de gênero e liderança feminina, sempre com a literatura como aliada — em seu currículo, aliás, constam entrevistas e encontros com ninguém menos do que Angela Davis e Chimamanda Ngozi Adichie.

10 ENTREVISTA

As suas indicações na editoria de cultura da Marie Claire já haviam evidenciado um recorte bastante feminista, motivando até mesmo a realização de even tos físicos, como a participação da revista na Flip. O desafio daquele fim de ano, no entanto, partiu de uma percepção pessoal de que, ao listar suas obras favoritas, vinham-lhe à mente majoritariamente autores homens. Foi a partir daquele momento, conta ela na matéria, que um universo começou a se expandir: de autoras premiadas a jovens poetas, as descobertas envolveram até mesmo uma primeira leitura de Rachel de Queiroz, prima de sua avó, e de Maria Valéria Rezende. Elif Shafak, autora indicada agora à TAG, viria na esteira dessas novidades. Na entrevista a seguir, descubra as motivações da nossa curadora para escolher A ilha das árvores perdidas e saiba mais sobre sua relação com os livros e a literatura. É pela literatura que renovo minhas pesquisas sobre diferentes temas” É editora na TAG. Jornalista formada pela UFRGS, é mestranda em Teoria Literária e Literatura Comparada na USP. Antes, foi repórter cultural do Estadão e colaboradora do portal Fronteiras do Pensamento. “

Como você entrou em contato com a produção de Elif Shafak? O que mais lhe chamou atenção na obra dela? Descobri Elif Shafak pelo livro 10 minutos e 38 segundos neste mundo estranho e me apaixonei por sua escrita e pela escritora. Além de ser uma excelente contadora de histórias, autora de um texto irretocável, Shafak faz uma literatura engajada, em que temas como misoginia, LGBTQIA+fobia, xenofobia e extremismo religioso se encontram, sem que a narrativa seja pan fletária. Ao contrário, cria personagens profundos e envolventes, transformando pessoas à margem da sociedade em protagonistas de fábulas contemporâ neas. Também me fascina a trajetória de Shafak como escritora, ativista feminista e defensora de direitos humanos, e seu podcast é dos mais poéticos que ouvi. Se você tivesse de convencer alguém a ler A ilha das árvores perdidas, que atributos do livro você destacaria? Bem, eu começaria dizendo que ser uma obra indi cada pelos mais populares clubes de leitura do mundo (incluindo o da atriz Reese Witherspoon), assinada por A curadora do mês, Adriana Ferreira Silva. Crédito: Acervo pessoal

um dos principais nomes da literatura contemporâ nea, já seria motivo suficiente para ler o livro, mas as qualidades de A ilha das árvores perdidas não se restringem à sua fama. A começar pela escolha da narradora, uma árvore, e a excepcional pesquisa que a autora realizou para dar vida e voz a essa heroína cuja jornada é repleta de lances surpreendentes. Mas a protagonista não é a única personagem encantadora desse romance, em que os temas se sobrepõem em diversas e diferentes camadas de interpretação, costuradas com excelência por Shafak. A ilha das árvores perdidas é a história de um amor impossível, em que a xenofobia delimita com quem se pode ou não se relacionar. Ele é também um livro sobre identidade, perda, trauma e busca pela construção de uma memó ria do passado. Se esses não forem argumentos suficientes, basta saber que traz uma história original, viciante e muitíssimo bem escrita, daquelas que a gente não consegue parar de ler e sente prazer a cada capítulo. Como você reagiu ao perceber que uma figueira era narradora da história? Fiquei surpresa. No início, causou um estranhamento, mas, ao longo do livro, vai se tornando um vício encarar a vida pela perspectiva dessa árvore, testemunha da história de todas as persona gens que orbitam ao seu redor. Obviamente, nunca mais olhei para minhas plantas da mesma maneira. Ada é uma jovem que desconhece boa parte de seus antepassados. O romance parece ressaltar a importância de nos mantermos conectados às nossas raízes — a própria figueira demonstra a sua melancolia por estar apartada de sua terra natal. Como você avalia o tratamento dado pela autora a esse tema? “A literatura é central desde sempre”, diz a jornalista. Crédito: Mariana Pekin

12 ENTREVISTA

Qual a importância da literatura na sua atividade como jornalista? A literatura é central desde sempre. Por meio dela, descobri um mundo maravilhoso de histórias e realidades diversas na infância. Adulta, é pela literatura que renovo minhas pesquisas sobre diferentes temas, me inspiro em novas formas de escrita e me alimento de informações para seguir aprimorando tanto o meu modo de trabalhar como a maneira como me expresso por meio de palavras.

Eu adorei a maneira como Shafak trata de herança e trauma transgera cional por meio das personagens de Ada e da figueira. Por mais que se tente esconder ou esquecer o passado, ele se impõe em algum momento, pela memória que carregamos de nossos ancestrais no DNA, pelas surpresas que a vida nos reserva (como a visita da tia de Ada) ou por lances do destino que nos levam a buscar explicações num pretérito desconhecido mas repleto de sentidos.

MINHA ESTANTE O primeiro livro que você leu: Ixi, acho que foi Branca de Neve e os sete anões (mas pode ter sido outra fábula infantil, pois era fanática por todas e lia compulsivamente na infância). O livro que está lendo: Não fossem as sílabas do sábado, de Mariana Salomão Carrara. O livro que mudou a sua vida: Foram muitos, em diferentes épocas, mas uma mudança profunda de pensamento ocorreu após ler a autobiografia de Angela Davis. O livro que gostaria de ter escrito: Os anos, de Annie Ernaux. O último livro que a fez rir: Os coadjuvantes, de Clara Drummond. O último livro que a fez chorar: O acontecimento, de Annie Ernaux. O livro que dá de presente: Garota, mulher, outras, de Bernardine Evaristo. O livro que não conseguiu terminar: Agora veja então, de Jamaica Kincaid.

13ENTREVISTA

Quais outros autores e autoras des pertam o seu interesse atualmente? Ah, são muitos! Tenho interesse especial pela literatura feita por mulhe res e autoras e autores não brancos, de diferentes nacionalidades. Leio e pesquiso todas as feministas (de vete ranas como bell hooks, Angela Davis, Virginia Woolf e Lélia Gonzalez a autoras menos conhecidas como Lucy Delap, Sara Ahmed e outras). Na ficção, sou fã de Bernardine Evaristo, Rachel Cusk, Chimamanda Ngozi Adichie, Natalia Borges Polesso, Aline Bei, Mariana Salomão Carrara, Yara Nakahanda Monteiro, Jacqueline Woodson, Leïla Slimani, Annie Ernaux, entre muitas outras. E, para não dizer que não falei deles, adoro Itamar Vieira Junior.

14 CONTEXTUALIZAÇÃO

Chipre, uma ilha e dois mundos

Já Semprecomportamento.sobreescreveupolíticabrasileira,relaçõesinternacionaisecomumlivronamão,nãodispensaumaleituracomideiasquetranscendemseutempo,detemascomplexosaamenidades.

Encruzilhada entre três continentes, ilha mediterrânea tem vasto patrimônio cultural, fruto da mescla de diversos povos ao longo dos séculos EDUARDOAPALMA*última capital dividida no mundo, com cercas, barricadas e controle de fronteiras. Tropas de paz da ONU em uma zona neutra de 180 km. Muros que separam idiomas, culturas, histórias, religiões e vidas. É esse o pano de fundo de A ilha das árvores perdidas. A história do Chipre, ilha com 1,2 milhão de habitantes no mar Mediterrâneo, é complexa. Por muito tempo, gregos, turcos e outros povos conviveram em relativa harmonia nesse território cobiçado. Mas, desde a segunda metade do século passado, reviravoltas políticas e conflitos passaram a integrar a rotina cipriota. De colônia britânica a país independente, com golpe de Estado, invasão estrangeira, quatro mil mortos e quase dois mil desaparecidos, o passado ainda ressoa. “É um conflito prolongado, com várias camadas entrelaçadas”, resume Hayriye Rüzgar, oficial de comunicação da Home for Cooperation (H4C), instituição que trabalha para integrar os turco-ciprio tas e os grego-cipriotas. “Embora a linha divisória existente hoje tenha tomado sua forma atual em 1974, os primeiros casos de conflito intercomunitário começaram muito antes, no fim da década de 1950”, diz ele. Entenda mais na linha do tempo abaixo. Sucessivas ocupações O Chipre foi alvo de ocupações e fluxos de povos ao longo da história pela proximidade com o Oriente Médio, o norte da África e a Europa. Pertenceu a gregos, egípcios, romanos, bizantinos, venezianos, otomanos e britânicos. Por séculos, os gregos tiveram forte presença na ilha. Até hoje, são a maioria étnica do país, com quase 80% da população. Muitos veem

CHIPRE TURCAREPÚBLICADOCHIPREDONORTEREPÚBLICADOCHIPRE

a ilha como uma extensão da Grécia e gostariam de uma união formal. Curiosidade: o hino nacional do Chipre é o mesmo dos gregos. Chegam os otomanos Em 1570, o Império Otomano conquistou o Chipre.

O domínio durou até 1878 e deixou marcas: a adoção do islamismo, da cultura e de hábitos muçulmanos. Apesar das diferenças, os cipriotas de origem grega e de origem turca conviveram em paz por muito tempo. “Os mais velhos, mesmo tendo vivido o conflito, também viviam juntos em aldeias mistas, falavam as línguas uns dos outros e homenageavam as celebrações religiosas e culturais uns dos outros”, afirma Hayriye Rüzgar. Sob o controle britânico No fim do século XVIII, era grande o medo na Europa de que os russos avançassem para o Mediterrâneo. Daí, os britânicos se aliaram com o Império Otomano para proteger a região. Para isso, se estabeleceram no Chipre e passaram a admi nistrá-lo. Assim foi até 1914, quando começou a 1ª Guerra Mundial e o Império Britânico e os otomanos entraram em conflito. Então, os britânicos anexaram o Chipre. Sob o controle britânico, os laços com a Grécia foram intensificados. As sementes da divisão Com o decorrer do século, os cipriotas batalharam por sua independência. Ameaçados, os britânicos decidiram se aliar aos turcos, que eram cerca de 20% da população. "A população turca foi instigada a rever e defender os seus direitos na ilha”, escreveu Teresinha da Silva Pereira em dissertação sobre o tema. “Numa tentativa de frustrar as ambições da comunidade grega e obstruir o curso natural dos acontecimentos, o governo britânico acabou por explorar a presença da minoria turca procurando a ajuda da Resultado?Turquia."Osturcos passaram a se opor à união com a Grécia. Seu objetivo passou a ser dividir o Chipre em duas partes. No fim da década de 1950, os gregos criam a EOKA, uma organização nacionalista. E os turcos criam a Organização Paramilitar Turca

NICÓSIAONUZONANEUTRA

TURCAREPÚBLICADOCHIPREDONORTE ÁREADOREPÚBLICACHIPREVERDE A capital, Nicósia 15CONTEXTUALIZAÇÃO

Zona neutra controlada pela ONU divide a capital, Nicósia.

16 CONTEXTUALIZAÇÃO

Crédito: Terry Hassan de Defesa, com o objetivo de promover a política de partição da ilha, chamada de taksim. Além dos con frontos com atentados, bombas e assassinatos, esse período é lembrado no livro de Shafak, no qual lemos que, em determinado momento, as ruas da capital, Nicósia, ficaram sem nome, já que cada organização apagava o nome no idioma da rival.

Independência A independência veio em 1960, após longas nego ciações entre Turquia, Grécia e Reino Unido, os garan tidores do sistema político cipriota. Foi desenhada uma Constituição que impedia uma futura anexação e foi decidido que o Chipre seria liderado por um grego-cipriota e um vice turco-cipriota. O parlamento seria de 70% cipriotas gregos e 30% turcos. Não funcionou. Cipriotas gregos queriam ver o país unido com a Grécia e avaliaram que os turcos estavam com muito poder. Do outro lado, os cipriotas turcos continuaram desejando uma intervenção turca para garantir a divisão da ilha. Os conflitos, acirrados desde o fim dos anos 1950 até 1964, viriam a configurar a Guerra Civil do Chipre e deixaram um rastro de destruição no país, com refugiados, desaparecidos e mortos. As tropas de paz e a linha verde O conflito chegou à ONU, que criou uma força de manutenção da paz. Era para ser temporária, mas foi estabelecida em 1964 e segue até hoje. Quase 200 de seus integrantes foram mortos desde então. Também foi estabelecida uma linha neutra, chamada de linha verde, dividindo Nicósia e o país em duas regiões, a grega e a turca. As negociações seguiram pelos próximos anos. O descontentamento também. A invasão turca Em julho de 1974, os cipriotas gregos, apoiados pela Grécia, invadiram o Palácio Presidencial e toma ram as rádios do país. O pretexto era proteger o país da comunidade de cipriotas turcos. Na prática, foi um golpe de Estado. Em represália, a Turquia interveio militarmente com a alegação de proteger a comunidade turco-cipriota. "Durante a invasão turca, estima-se que cerca de 180.000 pessoas, um terço da

Mais pobre e isolada, a região não tem voos para o exterior e a economia depende fortemente dos turcos. Ao longo das décadas, uma grande emigração ocorreu. Para resolver a questão, o governo turco enviou milhares de cidadãos para a região, alterando a demografia local. Apesar do impacto negativo do conflito que perdura por décadas, o Chipre tem taxas elevadas de desenvolvimento econômico e social e vive um ambiente democrático. Tanto que, mesmo dividida, a ilha entrou na União Europeia em 2004 e também na zona do euro, sendo um pilar de estabilidade em uma área instável.

Construindo a paz Há muita gente batalhando para curar as feridas do conflito cipriota. A Home for Cooperation (H4C) organiza atividades culturais, como as travessias para o lado grego ou turco. O ato de “cruzar a linha” tem muito significado, porque o primeiro ponto de passagem foi inaugurado apenas em 2003. Até então, não havia possibilidade de interação entre as duas partes da ilha. “Organizações como a H4C buscam formas alternativas de praticamente reintroduzir as comunidades umas nas outras. Isso é crucial para a geração mais jovem, que não tem memórias de viver juntos." Em 2021, a H4C fez 360 eventos, recebeu 6 mil visitantes presenciais e mais de 50 mil online. Outra entidade que trabalha pela paz é a Associação para o Diálogo Histórico e Pesquisa (AHDR). “O diá logo sobre a história é parte integrante da democracia e é uma ferramenta para fomentar compreensão e pensamento crítico”, afirma Loizos Loukaidis, diretor da AHDR, que produz materiais didáticos que rompem com a divisão. A AHDR implementa vários projetos nas áreas de ensino de história e educação para a Crédito: Marco Fieber

17CONTEXTUALIZAÇÃO

população do Chipre, tenham se tornado refugiados", relata Teresinha Pereira. Com isso, os turcos ocu param 37% do país. E ainda ocupam. Em 1983, foi declarada a independência unilateral da República Turca do Norte do Chipre, na região ocupada pela Turquia. Somente o governo turco reconhece esse país, em um gesto de retaliação da comunidade internacional, já que um país só tem legitimidade se é reconhecido pelos outros.

paz — em inglês, turco e grego —, em tópicos como aldeias mistas, história, antirracismo, visitas a locais importantes e assim por diante. Um dos mais bem-su cedidos é o projeto Imagine, que incentiva o contato e a colaboração entre alunos e professores das duas comunidades. Com apoio da ONU e da Alemanha, são realizadas oficinas com uma comunidade primeiro, depois com as duas juntas na área neutra, propondo atividades lúdicas e culturais. Sempre nos três idiomas.

“Mais de 6 mil alunos, acompanhados por mais de 660 professores, foram treinados, e outros 500 professores foram capacitados em educação para a paz”, relata Kemal Asik, diretor de desenvolvimento do projeto Imagine. É um trabalho que fomenta uma pers pectiva crítica para permitir às pessoas questionarem os preconceitos e estereótipos existentes, lançando luz sobre as diversidades, semelhanças e celebrando as diferenças. “Isso contribui para a construção de mecanismos para lidar com o conflito e cultivar a esperança e resiliência, essenciais para não desistir e capacitar as pessoas a trabalhar pela paz”, avalia Asik.

Crédito: Jules Verne Two/julesvernex2.com/TimesCC-BY-SA-4.0 18 CONTEXTUALIZAÇÃO

Gabriel Renner é artista gráfico gaúcho. Observa o conflito que a estética urbana causa no meio em que habita e como se ramifica para ambientes de cultura e propaganda. @rennergabriel A pedido da TAG, o artista interpretou uma passagem do livro do mês: “Foi dentro desse famoso restaurante e bar — lotado, barulhento, alegre e hospitaleiro — que espalhei minhas raízes e cresci através de um buraco no telhado que foi aberto especificamente para mim. Todo mundo que ia a Chipre queria comer lá — e provar as famosas flores de abobrinha reche adas seguidas de souvlaki de frango assado na brasa —, se tivesse a sorte de encontrar uma mesa. Aquele local oferecia a melhor comida, a melhor música, o melhor vinho e a melhor sobremesa, especialidade da casa: figos ao forno com mel e sorvete de anis. Mas havia algo mais no lugar, era o que diziam os fregueses habituais: ele fazia esquecer, mesmo que por apenas algumas horas, o mundo lá fora e suas tristezas desmedidas”. Ilustração do mês

20 ILUSTRAÇÃO DO MÊS

!Se você ainda não leu o livro, feche a Revista nesta página. A seguir, você confere conteúdos indicados para depois da leitura da obra. POSFÁCIO

ANDRÉ CÁCERES*

Em um artigo de 2014, os estudiosos Lars Bernaerts, Marco Caracciolo, Luc Herman e Bart Vervaeck defendem que narradores não convencionais “desa fiam nosso conceito do que é humano”. Esse pacto ficcional ocorre por meio de uma via de mão dupla, que propõe empatia e estranhamento (ostraniênie, conceito cunhado por Viktor Chklóvski). Dessa forma, os leitores “projetam experiências humanas

Um pacto de empatia estranhamentoe

22 SAIBA MAIS

Narradores não convencionais, como animais, plantas e até conceitos abstratos, povoam a história da literatura A ilha das árvores perdidas, de Elif Shafak, não é narrado por uma árvore qualquer, mas sim uma com simbologia milenar: “No judaísmo, sentar-se sob uma figueira há muito é associado a um estudo profundo e devoto da Torá. E embora Jesus tenha desaprovado certa figueira estéril, não esqueçamos que foi um cataplasma feito de nós que, ao ser aplicado em sua ferida, salvou Ezequias. O profeta Maomé dizia que a figueira era a única árvore que ele desejava ver no paraíso — há uma sura no Alcorão com nosso nome. Foi enquanto meditava sob uma Ficus religiosa que Buda alcançou a iluminação”.

É editor na Sesi–SP Editora, autor de Nebulosa (Patuá, 2021) e escreve na imprensa sobre literatura.

em criaturas e objetos dos quais não se espera esse tipo de perspectiva mental”, enquanto são forçados “a reconhecer a alteridade extrema de narradores não humanos, que podem colocar em cheque suposições e expectativas sobre a vida e a consciência humana”.

Se o narrador de Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, é um defunto, quem narra 10 minutos e 38 segundos neste mundo estra nho , de Shafak, é o corpo quase morto de uma prostituta. Assim como em A ilha das árvores perdidas , Ursula K. Le Guin usa uma árvore — um carvalho à beira de uma estrada — para narrar The Direction of the Road , que usa a imobilidade como mote para tratar de perspectiva. De modo semelhante, o quadrinista francês Chabouté elege como âncora de Um pedaço de madeira e aço um banco de praça pelo qual personagens vêm e vão com suas histórias efêmeras.

Narradores podem tomar várias formas: Enclausu rado, de Ian McEwan, é narrado por um feto dentro do ventre da mãe; A menina que roubava livros, de Markus Zusak, pela morte; A seta do tempo, de Martin Amis, de trás para a frente; Nós, os afogados, de Carsten Jensen, na primeira pessoa do plural; no conto "História sem nome", de Paulo Henriques Britto, o narrador hesita sobre como relatar a trama, che gando inclusive a perder uma personagem de vista.

Narradores antropomórficos são comuns: Kafka os emprega em Investigações de um cão , A cons trução e Josefina, a cantora, ou do povo dos ratos; em Flush , Virginia Woolf relata a vida da poeta Elizabeth Barrett Browning pelos olhos de seu cocker spaniel; O vendedor de passados , de José Eduardo Agualusa, é narrado por uma lagartixa; e Meu nome é Vermelho , de Orhan Pamuk, tem diversos narradores: uma árvore, a cor vermelha, umMaiscavalo...abstrato ainda é o narrador de algumas histórias de As cosmicômicas, em que Italo Calvino explora os limites da linguagem por meio de per sonagens como Qfwfq, de nome impronunciável, incorpóreo e cuja existência tende à infinitude — assim como a variedade caleidoscópica de nar radores possíveis na literatura.

23SAIBA MAIS

CORRÊA*N

É editora na TAG. Jornalista formada pela UFRGS, é mestranda em Teoria Literária e Literatura Comparada na USP. Antes, foi repórter cultural do Estadão e colaboradora do portal Fronteiras do Pensamento.

Atualmente, Shafak vive em Londres. Ativista dos direitos femininos e LGBTQIA+, assim como da liber dade de expressão, é vice-presidente da Royal Society of Literature e foi escolhida pela BBC como uma das 100 mulheres mais influentes e inspiradoras do mundo. “Acredito que o trabalho de um romancista é fazer perguntas, incluindo as difíceis”, diz ela em entrevista exclusiva à TAG, em que reflete, com sua habitual sensibilidade, sobre literatura, natureza, memórias familiares e tradições culturais.

“ 24 ENTREVISTA

Em conversa com a TAG, Elif Shafak fala sobre o pro cesso de escrita de A ilha das árvores perdidas, avalia a relação humana com a natureza e comenta como a literatura pode romper fronteiras JÚLIA ascida em Estrasburgo, na França, em 1971, Elif Shafak é PhD em Ciência Política e lecionou em universidades na Turquia, nos Estados Unidos e no Reino Unido. Viveu a adolescência em Madri, mudando-se depois para Ancara, capital da Turquia. É também doutora em Humanidades pelo Bard College, dedicando-se à filosofia política e aos estudos culturais. Seu nome ganhou repercussão internacional em 2006, ao publicar seu segundo romance em inglês, The Bastard of Istanbul. A obra pôs em evidência o genocídio armênio e, por essa razão, ela foi processada pelo governo turco, que nega o extermínio (ela seria absol vida). O livro seguinte, The Forty Rules of Love (2009), tornou-se um best-seller na Turquia, com mais de 200 mil cópias vendidas. Entre outros títulos, 10 minutos e 38 segundos neste mundo estranho (HarperCollins Brasil, 2021) foi finalista do Booker Prize e do RSL Ondaatje Prize. Com A ilha das árvores perdidas, figurou entre as seis finalistas do Women's Prize 2022.

Nós, humanos, tendemos a pensar que somos o centro do universo”

25ENTREVISTA

Como você teve a ideia e adquiriu segurança para tornar uma figueira narradora da história?

Como uma contadora de histórias, sou atraída não apenas por histórias, mas também por silêncios. Acho que é isso que a literatura faz — trazer a periferia para o centro, empoderar os desempoderados, reumanizar aqueles que foram desumanizados e dar voz aos silêncios e aos silenciados. Adoro o Chipre e havia muito tempo que queria escrever sobre a ilha. É um lugar bonito com pessoas bonitas — de norte a sul. Mas, ao mesmo tempo, é uma história muito difícil e complicada de contar. O passado não é um assunto encerrado. O passado está vivo — ainda respirando, ainda sangrando. Guerra, divisão e partilha significam memórias conflitantes. Como você aborda uma his tória tão difícil como escritora sem cair na armadilha do nacionalismo e na armadilha do tribalismo? Não ousei escrever — até encontrar a figueira. A árvore me deu uma perspectiva completamente diferente — para além do nacionalismo, para além do tribalismo. Sou uma "abraçadora de árvores", adoro árvores e sou ecofeminista. Para mim, escrever esse livro foi como ligar os pontos entre o sofrimento humano e a destruição do meio ambiente. A autora do mês, Elif Shafak. Crédito: Zeynel Abidin

Yiorgos e Yusuf são personagens cativantes. A relação deles têm muito em comum com a de Defne e Kostas. Qual foi o seu objetivo ao “espelhar” esses relacionamentos?

Há duas histórias de amor proibido nesse livro. A segunda história de amor é inesperada, revela-se à

Você declarou certa vez que as histórias “atravessam fronteiras”. Foi isso que a motivou a escrever A ilha das árvores perdidas, colocando em cena o conflito no Chipre? Histórias cruzam fronteiras. Assim como as aves migratórias e as borboletas. Superstições, canções e comidas também não podem ser detidas por fronteiras nacionais e nacionalistas. E, claro, o amor — amor, irmandade e amizade. Nesse livro, eu queria focar naquelas coisas que, apesar dos obstáculos, conse guem transcender fronteiras. Por exemplo, embora as religiões entrem em conflito e briguem, na verdade as superstições convivem muito bem. Recebi muitos comentários de cipriotas de todas as origens e idades. Tenho muito respeito pelo CMP — Committee on Missing Persons —, que é uma organização bicomu nitária. Entre eles, há muitas mulheres, muitos jovens que trabalham como voluntários pela paz, convivência e reconciliação. Eles fazem escavações para encontrar os ossos das pessoas que desapareceram durante a época dos conflitos. O trabalho deles é incrivelmente importante, comovente e necessário para a cura. A certa altura do livro, lemos que “a natureza estava sempre falando, contando coisas, mesmo que o ouvido humano fosse muito limitado para ouvi-las”. Em sua visão, o que explica essa limitação?

ENTREVISTA26

Arrogância, principalmente. Nós, humanos, tende mos a pensar que somos o centro do universo, acha mos que somos superiores a todos os outros seres. Nos tornamos consumidores. Consumimos a natureza e a descartamos. Não percebemos que não estamos acima da natureza, somos apenas e meramente parte de um grande e complexo ecossistema. Quando destruímos esse ecossistema, destruímos a nós mesmos e, quando destruímos uns aos outros em nome do nacionalismo, do fundamentalismo religioso e do sectarismo, também estamos destruindo todo um ecossistema.

Há um grito crescendo dentro de tantas pessoas em todo o mundo. Especialmente em jovens. Está se acumulando, reunindo-se como uma tempestade. Esta é a era da angústia e da raiva. Na era das tecnologias digitais, quando todos deveriam ter uma voz mais alta, a

É curioso observar como, apesar de ser uma arqueóloga para quem as descobertas sobre o passado são muito importantes, Defne não quer permitir que a sua filha saiba sobre o passado de sua própria família. Qual é a sua visão sobre essa suposta contradição da personagem?

Não é fácil. Existem diferenças intergeracionais quando se trata de memória, especialmente em famílias que vivenciaram deslocamentos, migrações e traumas. A primeira geração, os idosos, é aquela que passou pelos maiores obstáculos, mas não fala deles. A segunda geração não está tão interessada em falar do passado, porque tem de construir uma nova vida. Mas isso significa que, geralmente, são a terceira ou quarta geração dessas famílias, as mais jovens, que estão fazendo hoje as maiores perguntas sobre identidade, memória de seus ancestrais e silêncios familiares. Às vezes, são os jovens que se tornam os guardiões da velha memória. Acho isso fascinante. Ada parece ter muitos sentimentos represados. Seu nome significa “ilha”, o que parece condizer com o seu isolamento emocional. No momento em que o seu grito viraliza nas redes sociais, uma multidão a imita na internet, reproduzindo o seu grito. Na sua opinião, isso revela um isolamento humano mais amplo, perceptível no mundo de hoje?

medida que a história se desenrola. Imagine, é muito difícil para um homem grego cristão e uma mulher turca muçulmana se apaixonarem e viverem seu amor aberta e alegremente, sobretudo no meio de uma guerra civil entre os dois lados. Mas isso é ainda mais difícil para um casal gay. Então, nesse sentido, uma das histórias de amor do livro é ainda mais “proibida” aos olhos da sociedade. Para mim, dar voz às histó rias LGBTQIA+ é muito importante, é algo pessoal, próximo ao meu coração. Como mulher bissexual, sempre senti isso pessoalmente — as histórias das comunidades LGBTQIA+ importam.

ENTREVISTA 27

verdade é que muitos de nós nos sentimos sem voz. As pessoas sentem que suas vozes não são ouvidas. A necessidade de gritar é uma necessidade universal. Embora Ada seja muito cética, tal como sua mãe, ela parece simpatizar gradualmente com os costumes e as superstições de Meryem, sua tia. Que lições podemos aprender com o rela cionamento delas, considerando o conflito de tradições e gerações? Acredito que o trabalho de um romancista é fazer perguntas, incluindo as difíceis. Quero abrir um espaço, um espaço inclusivo onde uma variedade de opiniões possa ser ouvida, uma multi plicidade de perspectivas seja compartilhada, uma abordagem diferenciada possa ser encorajada e a empatia possa ser nutrida com compaixão. Eu sempre deixo as respostas para o leitor, porque cada leitor vai apresentar suas próprias respos tas. Também adoraria que minha escrita fosse uma ponte — entre Oriente e Ocidente, cultura escrita e cultura oral, passado e presente… Sinto que conheço a tia Meryem porque fui criada por mulheres como ela — minha mãe e minha avó. A casa de vovó estava cheia de superstições, histórias, magia, irracionalidade... Ela lia xícaras de café ou derretia chumbo na água para afastar o mau-olhado, entre outras coisas. Ela também era uma contadora de histórias, e aquele mundo ficou comigo, com todas as suas cores e complexidades.

O último livro que a fez rir: A escrita de Shalom Auslander, um soberbo humor fatalista que se faz próximo do coração de quem vem de culturas feridas.

No fim do romance, descobrimos que o espírito de Defne se transmutou na figueira. Foi algo calculado desde o início? Não foi calculado de forma alguma. Aconteceu organicamente e veio a mim quando eu estava mergulhada no romance. Enquanto escrevia, per cebi que o “mundo dos humanos” e o “mundo das árvores” se aproximavam cada vez mais. Eles estavam conectados. Na parte do mundo de onde venho, existem mitos sobre mulheres que se trans formaram em plantas e árvores — mitos antigos que foram em grande parte esquecidos. Parecia muito natural que uma mulher como Defne se transformasse em uma árvore.

O livro que mudou a sua vida: Orlando, de Virginia Woolf. O livro que você gostaria de ter escrito: São tantos, mas os que me vêm à mente agora são O mestre e Margarida, de Bulgákov; People of the Book, de Geraldine Brooks; e Middlesex, de Jeffrey Eugenides. O último livro que a fez chorar: Open Water, de Caleb Azumah Nelson.

O livro que você dá de presente: Nos últimos tempos, adoraria dar a coletânea Poetry Unbound, de Pádraig Ó Tuama.

O livro que você não conseguiu terminar: Os poemas de Rumi. Você não pode terminá-los, você só pode tomar um golinho, matar a sede, ler, fechar o livro e depois voltar de novo, beber de novo…

O livro que você está lendo: Out of the Sun: On Race and Storytelling, de Esi Edugyan.

ENTREVISTA

MINHA ESTANTE 28

O primeiro livro que você leu: O primeiro que teve um imenso impacto para mim quando criança foi Um conto de duas cidades, de Charles Dickens.

CRÍTICA 29

A história da literatura sugere que as fronteiras sempre convidam ao atravessamento, sejam as divisas morais entre duas situações-limite, sejam as barreiras físicas que distinguem locais ou povos. A ilha das árvo res perdidas é justamente um romance fronteiriço em que as linhas estão sempre sendo riscadas — por vezes, de um modo doloroso e literal, como o traçado feito com tinta verde por um oficial britânico que separou o Chipre entre gregos e turcos. A capital do país, Nicósia, é retratada como um ponto delicado nessa cisão, em que as divisões étnicas são porosas.

lternando passagens no presente e no passado, a obra A ilha das árvores perdidas, da escritora turca Elif Shafak, se passa entre o Chipre da década de 1970, fragmentado política, religiosa e etnicamente entre gregos cristãos ao sul e turcos muçulmanos ao norte, e a Londres atual, marcada pela confluência de imigrantes e refugiados de conflitos espalhados pelo planeta, cada qual carregando cicatrizes de suas migrações. Dessa forma, o livro mescla o drama par ticular do casal Kostas e Defne — ele, descendente de gregos; ela, de turcos — à turbulência política da ilha em guerra civil. Eles vivem uma história de amor proibida no Chipre antes de emigrarem para a Inglaterra, onde nasce sua filha, Ada, que é a protagonista dos trechos contemporâneos do livro.

A ilha das árvores perdidas mescla dramas particulares e coletivos em uma ilha cuja beleza convive com a barbárie BRUNAAMENEGUETTI*

Jornalista, escritora e dramaturga. Autora do livro O último tiro da Guanabara, vencedor do Prêmio Bunkyo de Literatura de 2021.

Situada entre o ser animado e o inanimado, a figueira que narra trechos da obra definhava no Chipre quando foi levada por Kostas e Defne para a Inglaterra, numa analogia do imigrante que se desenraíza para buscar nova vida. Na mitologia grega, o Chipre era a terra natal Um

fronteiriçoromance

Nesse romance fronteiriço, o símbolo que mais se repete e varia é o da borboleta, ícone universal da metamorfose. Quando viajam em bandos, surgem como metáfora da migração; quando interrompem a barbárie da guerra, surgem como promessa de esperança. A analogia mais impactante, no entanto, é a desses seres belos que car regam seus esqueletos pelo lado de fora do corpo, como o próprio Chipre: “Uma ilha borboleta. Linda, vistosa, adornada com um esplendor de cores, tentando alçar voo e adejar livremente sobre o Mediterrâneo, mas sobrecarregada pelas asas revestidas de ossos quebrados”.

de Afrodite, sempre mencionada quando Shafak trata da temática feminina, como quando Defne ensina Ada sobre as contradições da deusa da beleza e do amor: “Por trás daquele rosto bonito havia uma manipuladora que tentava controlar as mulheres. (...) Em todos os mitos e contos de fadas, uma mulher que rompe com as convenções sociais é sempre punida”.

Mãe e filha, aliás, fazem parte do caldo iconográfico do romance: “Ada”, em turco, significa “ilha”, e, nas passagens atuais do romance, a adolescente se sente deslocada, sem conhecer suas raízes cipriotas, em meio a uma Inglaterra que despreza seus imigrantes. Já Defne tem o nome da náiade que é perseguida por Apolo contra sua vontade e, para não ceder às investidas, se vê transformada em uma árvore — depois de morta, Defne é projetada por um Kostas enlutado na figura da figueira narradora.

Apolo e representadosDafne em escultura de Gian Lorenzo Bernini. Crédito: Borghese.Galleria

CRÍTICA30

4. Defne e Kostas. Yiorgos e Yusuf. Como você enxerga o modo como esses dois casais enfrentam os obstáculos sociais do lugar em que vivem? 5. Na sua opinião, qual mensagem o desfecho da trama nos transmite? encontros TAG: Guia de perguntas sobre A ilha das árvores perdidas novembro Envolvendo mistério e road trip, o livro de outubro, indicado por Scholastique Mukasonga, foi escrito por uma romancista e cineasta francesa conhecida por seu “feminismo punk”. A trama gira em torno das buscas por uma jovem pertencente a uma família parisiense abastada e disfuncional, que desaparece no caminho para a escola. Para quem gosta de: literatura francesa, thrillers, tramas LGBTQIA+ A autora do livro do mês é um importante nome da literatura espanhola contempo rânea. Aguarde um romance potente, que vem sendo classificado como um “épico da vida feminina”, oferecendo também uma imersão no passado recente da Espanha, do final da ditadura franquista até a explosão do feminismo. A curadoria é de Giovana Madalosso. Para quem gosta de: literatura espanhola, temas feministas, história contemporânea

1. Qual a sua impressão sobre a escolha de uma figueira como narradora da história? O que achou das reflexões que ela apresentou ao longo do livro?

2. Você já tinha ouvido falar sobre o conflito no Chipre? A partir da contextualização apresentada na página 14, avalie o tratamento dado pela autora a esse evento histórico.

31PRÓXIMO MÊS

3. De acordo com a sua leitura, o que há por trás do grito de Ada na sala de aula?

outubro vemaí

“Nós olhamos para o mundo uma vez, na infância. O resto é memória.” – LOUISE GLÜCK

Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.