TEMPO DE MAGIA - Antologia de Natal

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COLECÇÃO SUI GENERIS

TEMPO DE MAGIA ANTOLOGIA DE NATAL


COLECÇÃO SUI GENERIS Obras colectivas: A BÍBLIA DOS PECADORES – Do Génesis ao Apocalipse O BEIJO DO VAMPIRO – Antologia de Contos Vampirescos VENDAVAL DE EMOÇÕES – Antologia de Poesia Lusófona GRAÇAS A DEUS! – Antologia de Natal, 2ª Edição NINGUÉM LEVA A MAL – Antologia de Estórias Carnavalescas TORRENTE DE PAIXÕES – Antologia de Poesia Lusófona SALOIOS & CAIPIRAS – Contos, Causos, Lendas e Poesias SEXTA-FEIRA 13 – Antologia de Contos Assombrosos CRIMES SEM ROSTO – Antologia de Contos Policiais FÚRIA DE VIVER – Um Hino à Vida A PRIMAVERA DOS SORRISOS – Antologia em Prosa e Poesia TEMPO DE MAGIA – Antologia de Natal DEVASSOS NO PARAÍSO – Contos Sensuais e Eróticos OS VIGARISTAS – Crónicas, Poemas e Contos do Vigário Obras individuais: AMARGO AMARGAR – Isidro Sousa ALMAS FERIDAS – Suzete Fraga MAR EM MIM – Rosa Marques O PRANTO DO CISNE – Isidro Sousa DECIFRA-ME... OU DEVORO-TE! – Guadalupe Navarro SONHO?... LOGO, EXISTO! – Lucinda Maria PRISIONEIROS DO PROGRESSO – Rosa Marques DE LÍRIOS – Isidro Sousa


62 AUTORES

TEMPO DE MAGIA ANTOLOGIA DE NATAL Organização e Coordenação ISIDRO SOUSA

EDIÇÕES SUI GENERIS EUEDITO | PORTUGAL


TEXTOS © 2017 SUI GENERIS E AUTORES

Título: Tempo de Magia Subtítulo: Antologia de Natal Autor: Vários Autores Organização e Coordenação: Isidro Sousa Revisão e Paginação: Isidro Sousa Capa (design): Ricardo Solano Capa (fotografia): Depositphotos Editores: Isidro Sousa e Paulo Lobo 1ª Edição – Novembro 2017 ISBN: 978-989-8896-01-8 Depósito Legal: 434802/17 EDIÇÕES SUI GENERIS letras.suigeneris@gmail.com www.euedito.com/suigeneris http://letras-suigeneris.blogspot.pt https://issuu.com/sui.generis EUEDITO geral@euedito.com www.euedito.com Impressão Print On Demand Liberis Direitos reservados pelo Organizador e pelos Autores. Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida, por quaisquer meios e em qualquer forma, sem a autorização prévia e escrita dos Editores ou do Organizador. Exceptua-se naturalmente a transcrição de pequenos textos ou passagens para apresentação ou crítica do livro. Os Autores podem usar livremente os seus textos. A utilização, ou não, do actual Acordo Ortográfico foi deixada ao critério de cada Autor. SEJA ORIGINAL! DIGA NÃO À CÓPIA! RESPEITE OS DIREITOS DE AUTOR! A cópia ilegal viola os direitos dos autores. Os prejudicados somos todos nós.


«Feliz, feliz Natal, que nos traz de volta as ilusões da infância, recorda ao idoso os prazeres da juventude e transporta o viajante de volta à própria lareira e à tranquilidade do seu lar.» CHARLES DICKENS

«A humanidade é uma grande, uma imensa família... Isso é provado pelo que sentimos em nossos corações no Natal.» PAPA JOÃO XXIII

«O Natal agita uma varinha mágica sobre todo o mundo, e observe, tudo é mais suave e mais bonito.» NORMAN VINCENT PEALE



O anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galileia chamada Nazaré, a uma virgem desposada com um homem chamado José, da casa de David, e o nome da virgem era Maria. Ao entrar em casa dela, o anjo disse-lhe: «Salvé, ó cheia de graça, o Senhor está contigo.» Ao ouvir estas palavras, ela perturbou-se e inquiria de si própria o que significava tal saudação. Disse-lhe o anjo: «Não tenhas receio, Maria, pois achaste graça diante de Deus. Hás-de conceber no teu seio e dar à luz um filho, ao qual porás o nome de Jesus. Será grande e chamar-Se-á Filho do Altíssimo. O Senhor Deus dar-Lhe-á o trono de Seu pai David, reinará eternamente sobre a casa de Jacob e o Seu reinado não terá fim.» Maria disse ao anjo: «Como será isso, se eu não conheço homem?» O anjo respondeu-lhe: «O Espírito Santo virá sobre ti e a força do Altíssimo estenderá sobre ti a Sua sombra. Por isso mesmo é que o Santo que vai nascer há-de chamar-Se Filho de Deus. Também a tua parente Isabel concebeu um filho na sua velhice e está já no sexto mês, ela, a quem chamavam estéril, porque nada é impossível a Deus.» Maria disse então: «Eis a escrava do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra.» E o anjo retirou-se de junto dela. SÃO LUCAS 1, 26-38


Por aqueles dias, saiu um édito da parte de César Augusto, para ser recenseada toda a terra. Este recenseamento foi o primeiro que se fez, sendo Quirino governador da Síria. E iam todos recensear-se, cada qual à sua própria cidade. Também José, deixando a cidade de Nazaré, na Galileia, subiu até à Judeia, à cidade de David, chamada Belém, por ser da casa e linhagem de David, a fim de recensear-se com Maria, sua mulher, que se encontrava grávida. E quando eles ali se encontravam, completaram-se os dias de ela dar à luz e teve o seu filho primogénito, que envolveu em panos e recostou numa manjedoira, por não haver para eles lugar na hospedaria. Na mesma região, encontravam-se uns pastores, que pernoitavam nos campos, guardando os seus rebanhos durante a noite. O anjo do Senhor apareceu-lhes e a glória do Senhor refulgiu em volta deles, e tiveram muito medo. Disse-lhes o anjo: «Não temais, pois vos anuncio uma grande alegria, que o será para todo o povo: Hoje, na cidade de David, nasceu-vos um Salvador, que é o Messias, Senhor. Isto vos servirá de sinal para o identificardes: Encontrareis um Menino envolto em panos e deitado numa manjedoira.» De repente, juntou-se ao anjo uma multidão do exército celeste, louvando a Deus e dizendo: «Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens do Seu agrado.» Quando os anjos se afastaram deles em direcção ao Céu, os pastores disseram uns aos outros: «Vamos então até Belém e vejamos o que aconteceu e que o Senhor nos deu a conhecer.» Foram apressadamente e encontraram Maria, José e o Menino, deitado na manjedoira. E, quando os viram, começaram a espalhar o que lhes tinham dito a respeito daquele Menino. Todos os que ouviram se admiraram do que lhes disseram os pastores. Quanto a Maria, conservava todas estas coisas, ponderando-as no seu coração. E os pastores voltaram glorificando e louvando a Deus por tudo o que tinham visto e ouvido, conforme lhes fora anunciado. SÃO LUCAS 2, 1-20


ÍNDICE

Prefácio ........................................................................................................... Natal em família, Afonso Duarte ................................................................... Sonhos de Natal, Lucinda Maria .................................................................. Estrela de Natal, Teresa Morais ..................................................................... Natal de amor, Maria Alcina Adriano .......................................................... Mensagem de Natal, Lucinda Maria ............................................................. Um Natal de uma menina, Sandra Boveto .................................................... O regresso do principezinho, Lucinda Maria ............................................. Glosando José Carlos Ary dos Santos, Lucinda Maria ............................. Aceita a minha mão, Daniel Vicente ............................................................. O Natal minhoto, Ramalho Ortigão .............................................................. Pés descalços, Carmem Aparecida Gomes ...................................................... A boneca da Adília, Maria Rosa Cunha Pinto .............................................. Lenda do pinheiro de Natal ......................................................................... Natal, Tânia Tonelli ......................................................................................... Natal, Mário de Sá-Carneiro ............................................................................ “O que é doce nunca amargou”, Ana Maria Dias .................................... No dia em que Deus desistiu de mim..., Amélia M. Henriques ................ O anjo Gabriel, Everton Medeiros .................................................................. E o milagre aconteceu, Amélia M. Henriques ..............................................

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O presépio, D. João da Câmara ..................................................................... 63 Os pastores, Gomes Leal ................................................................................ 67 Natal, crônica poética, Ivan de Oliveira Melo ................................................ 70 Sonho de Natal, Maria Albertina Santos ....................................................... 72 Natal, Mary Rosas ........................................................................................... 74 A consoada, Abel Botelho ............................................................................... 75 Natal, Mary Rosas ........................................................................................... 82 O som da flauta, Marizeth Maria Pereira ...................................................... 84 Sonho de neve, Paulo Galheto Miguel ............................................................ 86 A criação do mistério, Isa Patrício ................................................................ 88 A vida (nova vida), Olímpia Gravouil ............................................................ 89 O bem geral quer que se estime, Isa Patrício .............................................. 92 Natal da família portuguesa, Diamantino Bártolo ........................................ 93 Os flamingos, Sara Timóteo ........................................................................... 97 Ũa carta de gran coita por mi madre Aldonça, Sara Timóteo ................... 98 É Natal, Simone Marck ................................................................................. 100 O Pai Natal, Pina de Morais ......................................................................... 101 Noite de magia, Ana Isabel Bertão .............................................................. 112 Natal, Madalena Cordeiro .............................................................................. 114 Natal eterno, Cadu Lima ............................................................................. 115 Natal das crianças, Madalena Cordeiro ........................................................ 121 Nas asas do vento, Ana Isabel Bertão ......................................................... 122 Lenda do madeiro ....................................................................................... 124 Natal em liberdade, Joaquim Matias ........................................................... 126 O suave milagre, Eça de Queirós ................................................................. 127 A magia anda no ar, Angelina Violante ...................................................... 134 Do lado de cá da vidraça, Joaquim Matias ................................................. 136 Um sonho possível, Marilin Manrique ....................................................... 137 Dia de Natal, Fernando Pessoa ...................................................................... 141 Uma fonte de amor, Manuel Timóteo de Matos .......................................... 142


A carta... de Boas Festas, Maria de Fátima Soares ..................................... Juntos podemos caminhar!, Anderson Furtado .......................................... A magia do Natal, Ana Campos .................................................................. O encantamento da vida, Sténio Cláudio Afénix ....................................... Lenda de Natal, Júlio Brandão ..................................................................... O nosso Natal, Litas Ricardo ....................................................................... A Terra na magia do Natal, Aldir Donizeti Vieira .................................... É Natal, é Natal!, Litas Ricardo ................................................................... Lenda da Missa do Galo ............................................................................. As rabanadas de Bianca, Guadalupe Navarro ............................................. Natal dos pobres, Raul Brandão ................................................................. Noite de Natal, António Feijó ...................................................................... No trenó com o Pai Natal, Célia Sousa ..................................................... Também é Natal para os pecadores de boa vontade, César Alves ........ As bolinhas de Natal de Pinky Pie, Maria dos Santos .............................. Conto de Natal, Rosa Marques .................................................................... A prenda de Natal, Carlos Malheiro Dias ................................................... Porto místico, Rosa Marques ....................................................................... A magia da cidade, Rosa Marques ............................................................... O Natal da Branquinha e do Seroulas, Carla Santos Ramada ................. Quando um homem quiser, Ary dos Santos .............................................. Lenda do Bolo-Rei ...................................................................................... Conto de Natal, Fialho de Almeida ............................................................. Chega a neve e o Natal, DCM, O Poeta Maldito ....................................... O presépio ou a caridade cristã, César Alves ............................................ Lá no País do Natal, DCM, O Poeta Maldito ............................................ A noite do Natal, José Maria de Andrade Ferreira ...................................... O nascimento de Cristo, Bocage ................................................................. Caridade, Leandro Dupré .............................................................................. O contador de milagres, Lobo Alves ..........................................................

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As Janeiras, Brito Camacho ........................................................................... Natal todo dia .............................................................................................. Os magos do Oriente ................................................................................. Os autores ..................................................................................................... Ediçþes Sui Generis ....................................................................................

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PREFÁCIO

As circunstâncias que envolvem o nascimento de Jesus de Nazaré, proclamado Messias e Senhor, rodeiam-se de misticismo e magia. Se as representações no presépio, tal como chegaram ao nosso conhecimento, terão acontecido verdadeiramente ou se são fruto de lendas não se sabe ao certo. Mas sabe-se, e muitos factos o atestam, que Jesus existiu, e as principais religiões do Mundo ocidental reconhecem a sua existência – para os Cristãos, é o Filho de Deus tornado homem, pilar da Igreja Católica, cuja história sustenta a construção desta instituição; os Muçulmanos consideram-no um Profeta e os Judeus, por sua vez, vêem-no como uma espécie de charlatão. Pessoalmente, acredito em Jesus, acredito na sua vida terrena e admiro-lhe a trajectória enquanto homem, um ser humano fascinante que revolucionou a época em que viveu e a sua mensagem, uma mensagem essencialmente de amor, perdura ao longo dos tempos. De acordo com a Bíblia Sagrada, Jesus nasceu em Belém, a cidade de David, na província romana da Judeia, na época do imperador César Augusto, de uma mãe ainda virgem. O evangelho de São Lucas narra que o anjo Gabriel anuncia a uma virgem chamada Maria que ela irá conceber o Filho de Deus, ao qual porá o nome de Jesus. Mais tarde, Maria e José, seu esposo, viajam a Belém para se recensearem, não acham lugar na hospedaria da cidade e abrigam-se numa gruta, onde ela dá à luz. Anjos anunciam o nascimento do Messias a humildes pastores que guardam os seus rebanhos na região; estes deslocam-se a Belém para adorar o Menino Jesus e encontram-no deitado numa simples manjedoura. Neste cenário, outro evangelho, de São Mateus, acrescenta três Magos do Oriente. Diz o relato de São Mateus que estes astrónomos, mais tarde popularizados como Reis Magos, são guiados por uma estrela, para levarem presentes ao Menino Jesus: ouro, incenso e mirra. O rei Herodes, temendo “o rei dos Judeus que acaba de nascer”, ordena o massacre de todas as crianças daquela região com menos de dois anos de idade. E José, avisado em sonhos, foge com Maria e o Menino para o Egipto, para salvar Jesus 13


ANTOLOGIA DE NATAL

do “martírio dos inocentes”, de onde só regressam após a morte do rei Herodes, estabelecendo-se na Galileia, numa cidade chamada Nazaré – sendo aqui que finaliza o período conhecido como Natividade. Mais tarde, no Século III, a Igreja Católica oficializa o Natal, ou o Dia de Natal, passando então a comemorar-se, no dia 25 de Dezembro, o nascimento de Jesus Cristo. Em 1223, São Francisco de Assis produz o primeiro presépio do Mundo, em argila, numa floresta da cidade de Greccio, em Itália, com a presença de uma manjedoura, um boi e um burro, para melhor explicar o Natal às pessoas comuns, camponeses que não conseguiam entender a história do nascimento de Jesus – e outras figuras são incorporadas no presépio, representando não só o nascimento do Menino mas também o cantar dos anjos e a adoração dos pastores e dos Reis Magos ao Menino Jesus. Este costume vai-se espalhando pelas principais catedrais, igrejas e mosteiros da Europa durante a Idade Média. Já no Renascimento, o presépio passa a ser montado, também, nas casas de Reis e Nobres e no século XVIII dissemina-se pela Europa o hábito de montá-lo nas casas comuns, e depois pelo Mundo. Em paralelo, foram ganhando vida inúmeras lendas e tradições relacionadas com o Natal, que estão, presentemente, bem vincadas nestes festejos. Alguns exemplos: as estrelas, as bolas, o madeiro, as fogueiras e o pinheiro de Natal, a Missa do Galo, o Pai Natal ou, a nível culinário, o Bolo-Rei, que marca forte presença nesta quadra. Estes e muitos outros itens contribuem para tornar ainda mais mágico o evento natalino. É em torno da celebração do nascimento de Jesus e da sua envolvência que se debruçam os textos incluídos neste livro, em prosa e poesia, escritos por mais de quarenta autores lusófonos contemporâneos e intercalados com poemas e contos de autores clássicos portugueses, tais como Abel Botelho, Eça de Queirós, Raul Brandão, Fernando Pessoa, Bocage, Mário de Sá-Carneiro, entre outros, que tanto oscilam para o lado festivo do Natal como para a sua vertente melancólica, estando presente, nalguns deles, a visão do Natal tradicional das aldeias do Interior de Portugal que, com os seus costumes e tradições, caracterizam o Natal lusitano. Foram também incluídas, nesta selecção, lendas tradicionais portuguesas relativas à época do Natal. O conjunto de todos estes textos resulta numa obra literária muito rica... plena de magia natalícia. Desejos de um Feliz Natal.

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Isidro Sousa


TEMPO DE MAGIA

NATAL EM FAMÍLIA Afonso Duarte

Turvou-se de penumbra o dia cedo; Nem o Sol apertou no meu beiral! Que longas horas de Jesus! Natal... E o cepo a arder nas cinzas do brasedo... E o lar da casa, os corações aos dobres, É um painel a fogo no seu costume! Que lindos versos bíblicos, ao lume, Pelo doce Príncipe cristão dos pobres! Fulvas figuras para esculpir em barro: À luz da lenha, em rubro tom bizarro, Sou em Presépio com os meus pais e irmãos E junto às brasas, os meus olhos postos Nesta evangélica expressão de rostos, Ergo em graças a Deus as minhas mãos.

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ANTOLOGIA DE NATAL

SONHOS DE NATAL Lucinda Maria

Já sonhei com presentes pelo Natal E pensava ser o Menino Jesus quem, Depois de nascer na gruta de Belém, Vinha até nós, sanava qualquer mal. Essa crença era bela, sentia-se magia, Vestiam-se de cor os corações carentes... Sonhos simples... de meninos inocentes, Que bailavam, riam... na sua fantasia! Havia no ar um ambiente de verdade, Brilhavam nos rostos as luzes do amor, Aquela ansiedade... todo aquele fervor Inebriavam as almas de genuinidade. Agora, sonho Natal para todos os dias, Em que ninguém fique de mãos vazias!

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TEMPO DE MAGIA

ESTRELA DE NATAL Teresa Morais

Correu o fecho da parka até ao queixo e enterrou na cabeça, com força, o gorro de lã verde. Enrolou o cachecol listado, que a mulher lhe tricotara em dias de felicidade e bonança, à volta do pescoço. Uma, duas, três voltas. Só então calçou as velhas luvas de pelica forradas a lã de merino e bateu a porta de casa. Alberto sabia que nevara intensamente toda a gélida noite, por isso a paisagem branca não o surpreendeu nem desmotivou. Gostava de subir a montanha em dias frios e de neve, a brancura da natureza a contrastar com o negrume da sua alma. Se é que ainda lhe restava alma, porque pensava, muitas vezes, que até isso ela lhe levara, deixando-lhe apenas um invólucro com aparência humana. Foi subindo, em passo ligeiro e cadenciado, apesar das botas de cano alto se enterrarem na fofa camada de neve que se formara sobre o solo. Os flocos, que continuavam a cair ininterruptamente, eram empurrados por um vento agreste, batendo-lhe no rosto e picando-o como afiadas agulhas. Apesar da boa condição física, a respiração foi-se-lhe tornando ofegante, à medida que progredia em direcção ao cimo da montanha. De olhos semicerrados, observava a paisagem branca, típica de postal natalício, mal conseguindo distinguir, por baixo do manto alvo, as espécies autóctones que tão bem conhecia – o carvalho negral, a azinheira, o medronheiro; e o freixo e o salgueiro, junto aos pequenos cursos de água. Também o pinheiro-bravo e o pinheiro-lariço. Era Dia de Natal, a festa da família (dizia-se), mas que ele passaria só. Sorriu tristemente, ao reflectir sobre o conceito, até esse esmaecido na sua mente. A família era ele. Ninguém mais restara, digno desse nome. Interrompeu o pensamento, ao ouvir aqueles gritos horrendos, não sabia 17


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se de homem, se de bicho, se de assombração, que o penetraram e abalaram até às entranhas. Instintivamente, deslizou, tropeçou montanha abaixo, detendo-se apenas na humilde taberna da aldeia, praticamente vazia naquelas primeiras horas da tarde. *** O taberneiro e os dois clientes riram-se-lhe na cara: – Oh, homem, bebeste de mais com o estômago vazio! Lá em cima, só há silêncio. O único barulho é o do ribombar do trovão e o do estalar do raio, que não é o caso no dia de hoje... mas olha, fala com a Rosário, que também já veio ontem contar uma história esquisita. Ninguém lhe dá crédito, é meio apoucada das ideias... Alberto procurou-a na pequena casa e no quintal. Não estava. As portadas de madeira das janelas estavam abertas, deixando-o perceber o interior da pequena habitação, apenas iluminada pelas brasas da lareira. A neve continuava a cair suavemente, estendendo um manto uniforme sobre os caminhos e as casas da aldeia, a emprestar à paisagem pinceladas mágicas. Afastou-se da casa, aconchegando-se na parka bem acolchoada e enrolando-se mais no cachecol. Percebeu um vulto de mulher, sentado na base do pelourinho. Só podia ser a Rosário: minúscula, alquebrada, vestida de negro, os cabelos em desalinho cobertos de flocos de neve. Fixouo com um olhar angustiado, enquanto as palavras lhe saíam aos soluços: – Vi-o... com estes... que a terra há-de comer! Horrendo... enorme, meio-homem... meio-bicho. Os olhos amarelos... as mãos peludas de macaco... a arrastar-se descalço na neve... lá no cimo do bosque. Devo... ter cometido muitos pecados... para merecer esta assombração! Então, sempre era verdade! Qualquer coisa estranha se passava no cimo da montanha. Não tinha sido uma alucinação causada pelo álcool que ingerira ou pela fome de uma manhã de longa caminhada. Afastouse da figura negra sem se voltar para trás, enquanto uma força, quase magnética, o fez voltar a galgar a encosta. Caminhava com urgência e sem se deter, a escorregar, frequentemente, na terra coberta de neve. Não acreditara nas palavras da Rosário nem no Abominável Homem das Neves, apenas um mito nórdico, mas tinha que haver uma explicação para os gritos de dor e desespero que ouvira. O ar gélido do entardecer fazia-o soltar baforadas de ar, densas como 18


TEMPO DE MAGIA

fumo, os pés entorpecidos pelo frio, o coração acelerado pela constatação do impossível, totalmente esquecido do reconfortante jantar que o aguardaria na taberna da aldeia nessa noite de 25 de Dezembro, apenas mais uma no seu calendário anual de homem triste e só. Voltou a pensar que nem sequer acreditava no Natal e nas patacoadas que pais e catequistas lhe tinham tentado inculcar na mente e que desafiavam toda a sua razoabilidade de homem adulto e esclarecido. E o espírito de festa de família tinha-o perdido de vista nos muitos abanões que a vida lhe dera... Chegou ao cimo da encosta e soube que não era uma visão, uma ilusão de uma mente perturbada: numa pequena clareira do bosque de pinheiros-lariços, distinguiu o abrigo de pedra, de apoio a pastores e montanhistas. Limpou a neve acumulada no vidro da única janela: um recémnascido mal agasalhado estava pacificamente deitado numa pequena caixa de madeira, sob o olhar vigilante de uma mulher jovem e de um homem já de meia-idade. E sobre a clareira, iluminando a família, cintilava a estrela mais bela e brilhante daquele céu estrelado. Cumprira-se o Natal.

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ANTOLOGIA DE NATAL

NATAL DE AMOR Maria Alcina Adriano

Este ano, prevê-se um Natal Completamente diferente Para a maior parte da gente Que reside aqui, em Portugal! Nas cidades, as iluminações Deverão ser mais reduzidas, As ruas, as vielas e as avenidas Não atrairão tantas multidões. As viagens de sonho irão diminuir, As prendas caras irão escassear, A antiga convivência familiar Poderá, então, recomeçar a evoluir. As compras inúteis abrandarão Nas velhas lojas tradicionais E nos vários centros comerciais Não haverá tanta confusão. Será um Natal mais parecido Com os da minha infância, Em que não havia ganância Pelo brinquedo mais apetecido.

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TEMPO DE MAGIA

O Natal era a festa de reunião De toda a família e dos amigos Volta-se aos tempos antigos, Em que falará mais alto o coração. Se Natal significa nascimento E fora o do Menino Jesus Que, por nós, foi morto na cruz, Pensemos nele um momento. Deixemos os valores materiais, Ofereçamos um sorriso, um carinho Um beijo, um abraço, um miminho E comecemos a ser mais fraternais. No presépio passemos a colocar, Em volta do verde pinheiro, Não os envelopes com dinheiro, Mas o amor que temos para dar.

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ANTOLOGIA DE NATAL

MENSAGEM DE NATAL Lucinda Maria

Amor... solidariedade... ternura... União no querer e nos quereres, Mais importantes que os haveres: É a mensagem que fica e perdura... No primeiro Natal, lá em Belém, Houve simplicidade, houve paz... Cristo veio ao mundo e foi capaz De ser um pregador, pregar o bem. Mas há quem não o lembre sequer, Esqueça tudo aquilo que Ele quer: A verdade do seu amor verdadeiro. Agora, são máscaras de ostentação E esquece-se o outro, o nosso irmão... Pois devia ser Natal o ano inteiro!

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TEMPO DE MAGIA

UM NATAL DE UMA MENINA Sandra Boveto

A menina tinha onze anos. Era dia 24 de um dezembro. Ela voltava de uma curta viagem, apenas na companhia da irmã de quatro anos. Ambas retornavam de um passeio de alguns dias na casa da avó. Um responsável as embarcou no ônibus e os pais as esperariam no destino. A menina distraía a irmã, escondendo a presilha dos cabelos em uma das mãos e pedindo para que adivinhasse em qual estava. Inesperadamente, a menina sentiu um frio no estômago, uma angústia, como que um pressentimento de algo ruim. Entregou a presilha para a irmã para que reinventasse a brincadeira. Por um momento, sentiu-se ausente daquele espaço. Era como se o seu frágil corpo fosse jogado para dentro de uma parede densa que dividia dois mundos. O mundo de origem mostrava uma menina tímida, um tanto inocente e indefesa, que pertencia a uma família muito pobre, composta por um pai acriançado, uma mãe durona e uma irmã ingenuamente feliz. A pequena fração tolerável do seu universo resumia-se apenas àquela família completa. O restante era um mundo ostensivamente cruel, vivenciado na escola e retratado pela televisão, que já havia revelado à menina que famílias como a dela eram raras. Apesar de ter uma vida carente em muitos aspectos e de portar uma autoestima lastimável, a menina era muito grata pela sua família e unicamente por isso. Não havia nada mais na vida da menina. Não havia amigos. Não havia brincadeiras. Não havia alegria fora da sensação de ter uma família. As crianças chegaram ao destino – ao novo mundo. Um casal, com aparência idêntica à dos pais, levou-as para casa. A menina olhava para aquele homem e aquela mulher e evitava, a todo custo, sair completa23


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mente daquela parede densa para a paisagem à sua frente. No entanto, seu esforço foi em vão. A casa a que chegaram era a mesma, mas os pais não estavam lá. Havia apenas a presença perturbadora e insistente daquele homem e daquela mulher. Eles eram estranhos entre si e para as crianças. Um não olhava para o outro e nem para as meninas. Em determinado momento daquela véspera de Natal, o homem chamou a menina a um canto e, apontando para a mulher, resmungou: – Fala praquela bruxa ali que vou sair e não sei que horas volto! A menina, profundamente perturbada com a situação, obedeceu à ordem, tomando o cuidado de não mencionar a palavra bruxa. Ela gostava só de feiticeiras. Na sua visão de menina, havia um estereótipo de que bruxas eram feias e más e feiticeiras eram lindas, mágicas e bondosas. Até sonhava em se tornar uma linda feiticeira para combater todas as bruxas que a atormentavam. Naquela família, não havia o hábito de ceias de Natal. Havia um jantar comum na véspera e, no dia seguinte, o almoço especial de Natal. O homem voltou tarde para a casa, fazendo estardalhaço. O gelo no estômago voltou. “O que está acontecendo? Por que me trocaram de mundo? O que eu fiz de errado?” – questionava-se a menina, desoladamente. A mulher, então, ordenou à menina que desse um recado ao homem: – Diga para aquele bêbado irresponsável que faça silêncio, pois sua irmã já está dormindo. A menina obedeceu, sem mencionar a qualificação do destinatário. O homem ficou muito irritado com ela. A casa era pequena, muito pequena. O quarto em que a menina e sua irmã dormiam ficava ao lado do quarto em que aqueles dois estranhos se instalaram. Já deitada na cama, a menina ouvia uma discussão. Aquelas vozes pesadas eram irreconhecíveis. O choro da mulher atormentava sua mente. A irmã dormia como um anjo. Angústia! Persistia aquela aflição no estômago! A menina precisou levantar-se para ir ao banheiro, pois sentiu algo estranho e morno entre suas pernas – sangue! Entendia o que era aquilo, mas foi inesperado e assustou-a. Deu um jeito de enfrentar sozinha a sua novidade, pois as vozes alteradas ainda assolavam a casa. A menina, então, também já não era a mesma. Depois de haver, solitária e silenciosamente, resolvido seu problema, 24


TEMPO DE MAGIA

voltou para o quarto. E o tão celebrado dia fez-se presente. Era Natal. Todos acordaram bem cedo para ir à missa, um hábito de todos os domingos e dias santos. A menina estava pálida, o que ninguém quis notar. Mais uma vez, desmaiou na igreja por causa do jejum. Contudo, a bolachinha redentora a reanimou. Voltaram para a casa, e o homem saiu novamente para ir ao açougue. A bonita e pequena árvore de Natal enfeitava o canto da sala, parcialmente escondida por dois pacotes coloridos. A menina não sentia curiosidade ou vontade de abrir qualquer um. Sua irmã correu feliz, já sabendo qual era o seu pacotinho. Tirou de dentro um bicho de pelúcia azul, costurado pela mãe do velho mundo. A menina, sem alternativa, pegou o outro pacote e abriu-o devagar. Era um bicho de pelúcia amarelo de olhos arregalados. A hora do almoço aproximava-se e o homem não havia voltado. Pouco depois do meio-dia, chegou com um embrulho do açougue e com um cheiro desagradável adquirido em outro ponto comercial. Estava meio tonto e com os olhos vermelhos. Sentou-se em frente à televisão e lá ficou até que o almoço especial de Natal ficasse pronto. A menina não se sentia à vontade para perguntar à mulher ou ao homem o que havia acontecido com seus pais, durante sua viagem. Tinha medo. Aqueles estranhos estavam coléricos e não pareciam capazes de conversar. Nem olhavam nos olhos das meninas. A mulher corria de um lado para o outro ajeitando a casa, cozinhando e cuidando da pequena irmã, porém sem dizer uma palavra. O homem permanecia sentado no sofá e desatava em gargalhadas histéricas, diante de um programa da televisão. Com o almoço pronto, a mulher anunciou o fato a todos e sentou-se à mesa. As duas meninas sentaram-se também. Esperaram pelo homem, mas ele não aparecia. A mulher, então, serviu o almoço à irmã e a incentivou a comer. A menina ficou com a cabeça baixa, sem saber se deveria servir-se ou aguardar. Permaneceu inerte e, por isso, foi rispidamente repreendida pela mulher. Depois de algum tempo, o homem chegou e sentou-se à mesa, vociferando: – Eu não valho nada. Não faço diferença nessa casa. Se eu morresse hoje, vocês ficariam mais felizes. A menina, perplexa, queria acreditar que aquilo era um sonho bem 25


ANTOLOGIA DE NATAL

ruim, mas não entendia porque não conseguia acordar. A mulher, com ar apático, pediu para que a menina dissesse ao homem ali à sua frente que, se estivesse descontente, “a porta era a melhor serventia da casa”. O homem levantou-se bruscamente, pegou seu copo e dirigiu-se à pia. Jogou o copo e a louça que estava sobre a pia com força no chão. Olhou para dentro dos olhos da menina e disse: – Você não sabe nada da vida e não sabe o que é sofrer. Você ainda vai sofrer muito e, daí, vai poder me entender. Para essa bruxa aí o que importa é ter dinheiro. Eu não valho nada sem dinheiro. A pequena irmã começou a chorar, assustada com o barulho da louça estilhaçando-se e com os gritos do homem. A menina abaixou a cabeça. Que sentido deveria dar àquelas palavras e àquela cena? Uma mágoa e um sentimento de abandono intensos apoderaram-se do seu ânimo. Queria seus pais de volta. As últimas vinte e quatro horas foram mais lentas que a sua vida inteira de menina, uma eternidade de desapontamento e desilusão. Seu refúgio de paz e sua família foram corrompidos pela perversidade que testemunhava na televisão e sofria na escola. Aquele sonho ruim não acabava, porque, de fato, ela havia acabado de acordar do seu único sonho bom. Ela estava sozinha. Não havia família. Não havia refúgio. Lançou um olhar de consternação sobre a pequena irmã, desejando que ela não percebesse a realidade. Depois do almoço, a menina escondeu-se no seu quarto com a irmã, que tirou um cochilo na parte de cima do beliche. A menina quis dormir também, para sempre, talvez! No entanto, descobrira, a partir daquele Natal, que não poderia mais dormir, não da mesma forma. O antigo pai da menina trabalhava com carreto e sempre deixava o velho caminhão estacionado bem em frente ao portão da casa. O homem veio até à janela do quarto das meninas, pelo lado de fora, e disse: – Vou pegar aquele caminhão agora e me jogar do primeiro barranco que eu encontrar. E a culpa será de vocês. A menina finalmente começou a chorar, calada, olhando aquele homem estranho afastando-se, depois de colocar em suas costas um fardo penoso demais para carregar. Ao ouvir o barulho do caminhão distanciando-se, seu estômago revirou e sua cabeça começou a doer. Meia hora depois, o conhecido ronco de motor ressurgiu, crescendo nos ouvidos da menina, até extinguir-se na frente da casa. 26


TEMPO DE MAGIA

Anoiteceu. O homem estava no caminhão ainda, deitado. A menina resolveu espiar pela porta da sala. O portão enferrujado estava totalmente aberto. O caminhão de carga estava com a porta do motorista também aberta. Da sua perspectiva, a menina via duas pernas para o lado de fora da porta do motorista e uma barriga proeminente entre uma bermuda e uma camisa semiaberta. O homem estava deitado no caminhão, aparentemente com a cabeça no banco do passageiro e o quadril no banco do motorista. Já era madrugada e a menina não podia dormir. A casa ainda estava aberta. A mulher não fazia nada. A menina tinha medo de ladrões que, contudo, não teriam o menor interesse naquela casa. Mesmo assim, amedrontada, foi até à porta do caminhão e pediu para que o homem entrasse. O homem a ignorou. A menina, muito apreensiva, subiu no primeiro degrau da pequena escada do caminhão e o que viu a fez sentir o corpo inteiro retrair-se até seu próprio centro, como se houvesse encolhido a um tamanho invisível. Percebia o sangue em suas veias arrefecendo-se e uma poderosa fraqueza tomou conta da menina. A vida do homem não estava mais ali. A menina gritou e tudo se apagou. Passaram-se alguns dias e um silêncio lúgubre invadiu a casa, trazendo uma estranha paz para a menina. A mulher também não estava ali. Algumas vozes confusas deixaram a menina saber que a mulher estava internada em um manicômio e não havia expectativas de que voltasse para casa e pudesse cuidar das meninas. A menina escreveu uma carta para sua irmã e, depois, desapareceu. *** Hoje, dia 24 de outro dezembro, muitos anos depois, eu encontrei a carta daquela menina, a minha irmã mais velha: Querida irmã, Já disseram que seremos separadas. Estou tranquila, pois você ficará com a vovó. Mas eu decidi que vou para um lugar sem família e sem Natal, e estou muito aliviada por isso. Sabe, pequena irmã, descobri que vivia num mundo imaginário. O mundo que criei era como a casa de Cícero e havia muitos lobos lá fora. Nada sobrou. Acredito que até eu mesma seja feita de palha e acho que estou me desfazendo. 27


ANTOLOGIA DE NATAL

Você é diferente. Você é forte e verdadeira. Pertence a este mundo. Você nem precisa criar mundos para ser alguém. Sua casa será como a de Prático e nem haverá lobos lá fora. O que aconteceu com aquela menina nunca foi propriamente elucidado. Muitas vezes, cheguei a pensar que ela foi, de fato, uma fantasia de criança pequena, apenas uma amiga imaginária. Ninguém jamais quis falar sobre a menina depois daquele Natal. Porém, hoje, revirando uma caixa de lembranças na casa da minha avó, encontrei essa carta dentro da roupa de um bicho de pelúcia azul. Não esperava que essa caixa guardasse recordações que não coloquei ali, ou mesmo revelasse que certas memórias, antes consideradas ilusórias, eram dolorosamente reais.

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TEMPO DE MAGIA

O REGRESSO DO PRINCIPEZINHO Lucinda Maria

O Principezinho nunca mais se esqueceu dos amigos que conheceu na Terra. Sentia-se feliz com a sua terna e eterna rosa, cada vez mais linda. Tratava-a com um carinho desmedido. Amava-a. Agora, sabia que não era única, mas, para ele, continuava a sê-lo. Os embondeiros estavam cada vez maiores ou, então, pareciam, mas a sua sombra proporcionavalhe resguardo em dias mais quentes. Depois de cuidar dos vulcões adormecidos, dormia uma sesta debaixo das enormes árvores. Assim decorria a sua vida no asteróide B 612, mesmo como ele gostava. Mas a raposa bem dissera: “Quando alguém te cativar, corres o risco de chorar de saudades!”. Na altura, não entendeu muito bem, mas, à medida que o tempo passava, ia sentindo um aperto no coração, um nó na garganta. Tudo lhe fazia lembrar quem o cativara! Às vezes, os seus dias decorriam demasiado monótonos... demasiado previsíveis... demasiado iguais... sem surpresas! Começou a pensar seriamente num regresso à Terra, mesmo que fosse por pouco tempo. Uma noite, depois de apreciar um pôr-do-sol magnífico, tão magnífico que o emocionou até às lágrimas, decidiu-se. Não pôde deixar de lembrar-se do que lhe dissera a raposa: “Não chores ao ver o pôr-do-sol, pois as lágrimas não te deixarão ver as estrelas”. Mas ele era assim... comovia-se sempre! No dia seguinte, iria dar uma volta. Dormiu e sonhou. Dormiu e sonhou com o aviador, com a sua amiga raposa, com o deserto, com os picos das montanhas... Tudo parecia esperá-lo!... Acordou cedo... bem-disposto, animado, ansioso... Foi resguardar todos os seus pertences, tratar de tudo, aconchegar a sua rosa cada vez mais rubra e... partiu. Já sabia o caminho... ou pensava que já sabia. Não quis voltar a passar por aqueles planetas esquisitos... com aqueles adultos 29


ANTOLOGIA DE NATAL

esquisitos... que tanto o perturbaram!... Não queria voltar a ver o rei, o sábio, o matemático, o acendedor de candeeiros... muito menos o bêbedo que bebia para esquecer a vergonha de ser bêbedo! Coisas estranhas ele ficara a saber nessa viagem... estranhas e surpreendentes! Queria ir ter ao deserto do Sara, onde encontrara o seu primeiro amigo, que tão bem o compreendera sempre. Sim, o aviador a quem pedira para lhe desenhar uma ovelha. E o entendeu... até o seu riso cristalino! Afinal, como ele, também caíra do céu naquela geringonça a que chamava avião. Viu surgir no espaço uma grande ave, que lhe pareceu amistosa, e logo lhe pediu boleia. Ela acedeu e partiram pelos ares... voando... voando... cada vez mais perto da Terra. Pensava ele. A viagem foi longa... mas correu bem. Finalmente, a ave poisou num local e, despedindo-se, o Principezinho apeou-se. Era noite. Ainda meio tonto, olhou ao redor... e não reconheceu nada. Não havia areia... nem sinais nenhuns do que tinha visto na Terra. Era um lugar com muitos edifícios... muitas árvores... muitos jardins... muitas coisas de que ele desconhecia o nome, até a existência!... Mas... o que mais o encantou foram as luzes, tantas luzes a brilhar aqui e ali... pareciam estrelas na Terra! Resolveu. Tinha de ir ver de perto tudo aquilo... tinha de saber onde estava... tinha de procurar os seus amigos... Depois de andar um pouco, encontrou-se num grande largo. No meio, uma fonte ou um lago ou algo parecido de onde a água caía formando uma cascata de cristais iluminados que brilhavam à luz do luar. Nesse largo, desembocavam várias ruas com casas, umas mais altas, outras menos... De todas as janelas, saíam feixes de uma luminosidade quase feérica... O tecto das ruas também ostentava bolas coloridas e resplandecentes. Começou a ver pessoas apressadas, carregadas de embrulhos, entrando e saindo de locais que ele não sabia como se chamavam. Tentou abordar algumas dessas pessoas, mas ninguém reparou nele. Ninguém lhe ligou. Começava a sentir-se desesperado e perdido. Foi então que a viu. Encostada ao tronco de uma árvore, tiritando, uma menina chorava. Ao pé dela, dormia um pequenito tapado com uma mantinha de lã. Devia ser quente, porque a criança exprimia no rosto lindo uma serenidade impressionante. O Principezinho aproximou-se e o seu cachecol esvoaçou e reflectiu 30


TEMPO DE MAGIA

todas as luzes do largo... todas as estrelas do céu. E riu... o seu riso cristalino parecia-se com sininhos a tocar. A pequenita levantou para ele os olhos mais lindos e puros que ele já vira. Tão brilhantes e chorosos! Tão meigos! Então, com carinho, acariciou-lhe o rostinho e tentou enxugar as lágrimas, perguntando: – Quem és tu e o que fazes aqui? Como se chama este lugar? A menina sorriu e – curioso! – quando riu, ele também ouviu um ligeiro tilintar. Respondeu: – Eu chamo-me Oriana. Isto é uma cidade grande. Chama-se Oásis. – Tens um lindo nome! Parece de uma fada! Quem é o bebé? – questionou o Principezinho. Ela olhou ternamente para a criança a seu lado e retorquiu: – É meu irmãozinho. Chama-se Noel. Estamos sós. Não temos pais. – E diz-me: para que são todas estas luzes? Porquê? O que aconteceu? – ele queria sempre saber tudo. – É Natal! – respondeu Oriana e as lágrimas soltaram-se-lhe dos olhos. – Natal? O que é isso? – É uma festa. Há alegria... paz... prendas... amizade... amor... As pessoas são mais amigas e ajudam-se, enfeitam-se as ruas, há luzes por todo o lado... comem-se coisas boas... O Principezinho estava cada vez mais intrigado. Parecia-lhe tudo muito irreal. Bem, o essencial é invisível e aquilo que via saltava aos olhos. Até lhe ofuscava a vista. Não percebia. Se o Natal era tudo aquilo, por que razão os meninos estavam ali sós e abandonados? E sentiu-se cativado por aqueles dois seres indefesos e tristes. Perguntou... perguntou... perguntou... Oriana falou... falou... falou... Soube que eles viviam sozinhos com a mãe, mas que ela tinha morrido há pouco tempo. Não tinham dinheiro e o dono da casa depressa os despejou, por não poderem pagar a renda. Há dias que vagueavam pelas ruas a pedir. Algumas pessoas davam qualquer coisa, mas, naquele dia, como era véspera de Natal, ninguém tinha tempo para eles. Bateram a várias portas, mas mandavam-nos embora. “O quê?” – pensou o Principezinho – “Mas não é a festa do amor, da amizade, da ajuda?”. Qualquer coisa não batia certo. Tinha de fazer algo! Tinha de encontrar um amigo. Lembrou-se da raposa, mas viu logo que ali não iria encontrá-la... Tirou o seu cachecol esvoaçantemente amarelo e embrulhou com ele a menina, dizendo: 31


ANTOLOGIA DE NATAL

– Fica aqui sossegadinha. Eu vou procurar ajuda e volto já! Decidido, entrou numa rua... e noutra... e noutra... Em todas as janelas tremiam luzes. Em todas as portas havia brilho e cores. De todos os interiores saíam sons de risos... de alegria... Pois, ele agora já sabia... era noite de Natal. Mas não percebeu nada, cada vez percebia menos! Bateu a todas aquelas portas enfeitadas de verdura e bolas vermelhas... Umas nem sequer se abriram... Outras sim, mas logo se fechavam estrondosamente, deixando o Principezinho triste, cada vez mais triste! Às vezes, nem o deixavam explicar ao que ia... nem queriam saber... pareciam todos muito atarefados. Ele pensou: “Mas Oriana não disse que o Natal é uma festa de amor?” É que ele não conseguiu vislumbrar amor nenhum em lugar nenhum... mesmo sabendo que “o essencial é invisível”!... Começava a desesperar... até que avistou uma casa, mesmo... mesmo ao fundo de uma rua menos movimentada. Não estava tão enfeitada como as outras. Verdade, verdade... só brilhava uma pequena faísca de luz vinda de uma janela. Aproximou-se e viu um rosto bondoso encostado ao vidro. Uma senhora com neve nos cabelos e um sorriso que se abriu mais e mais, quando olhou para o rapazinho loiro. Ele sorriu também e as campainhas tilintaram de alegria. Soube logo que encontrara uma amiga. Nem precisou bater à porta... esta abriu-se e uma voz doce e meiga soou: – Olá, meu menino. Entra. Estava mesmo à tua espera, para não passar a noite sozinha. O nosso Principezinho entrou numa casa modesta, mas limpa... de aspecto acolhedor. Contou à senhora Maria – era assim que se chamava a velhinha – tudo o que se tinha passado. Não se esqueceu de Oriana, não! Foi buscá-la... Enquanto percorria o caminho de volta, já com a amiga e o seu irmãozinho, pensou que o Natal não era bem como ela dissera. Aliás, não viu vestígios de Natal em nenhuma das casas, a cujas portas batera. Só no coração da senhora Maria houve amor e carinho. E ali passaram todos a noite bem agasalhados, alimentados e protegidos. Sem alardes... sem luzes... sem brilhos... mas com muita doçura e o calor de uma verdadeira amizade. Quando já dormiam, o Principezinho olhou-os, um a um, com lágrimas nos olhos – lágrimas de felicidade! Primeiro, o rosto enrugado e 32


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bondoso da velhinha... depois, a carinha terna e calma de Noel... e, finalmente, a face linda e resplandecente de Oriana, a fadinha. Sentiu-se cativado. Não encontrara o aviador... nem a raposa. Mas... sentiu que, agora, tinha mais três amigos de verdade. Estes, como os outros, ficariam para sempre no seu coração. Tremente e emocionado, percebeu tudo. Não tinha sido em vão o seu regresso à Terra. E logo naquela época... era tudo lindo, sim, mas não exactamente como a menina dissera... Pensou que não devia ser preciso tanto espalhafato... tanto brilho... tanta cor... se, nas almas, não havia a verdadeira solidariedade! Pois, “o essencial é invisível” – lembrou e quase ouviu o sussurro da raposa ao seu ouvido!... De qualquer maneira, valeu a pena... e só na simplicidade sentiu o verdadeiro Natal!

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