FÚRIA DE VIVER - Um Hino à Vida

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COLECÇÃO SUI GENERIS

FÚRIA DE VIVER UM HINO À VIDA


COLECÇÃO SUI GENERIS Obras colectivas: A BÍBLIA DOS PECADORES – Do Génesis ao Apocalipse O BEIJO DO VAMPIRO – Antologia de Contos Vampirescos VENDAVAL DE EMOÇÕES – Antologia de Poesia Lusófona GRAÇAS A DEUS! – Antologia de Natal NINGUÉM LEVA A MAL – Antologia de Estórias Carnavalescas TORRENTE DE PAIXÕES – Antologia de Poesia Lusófona SALOIOS & CAIPIRAS – Contos, Causos, Lendas e Poesias SEXTA-FEIRA 13 – Antologia de Contos Assombrosos FÚRIA DE VIVER – Um Hino à Vida Obras individuais: AMARGO AMARGAR – Isidro Sousa ALMAS FERIDAS – Suzete Fraga MAR EM MIM – Rosa Marques O PRANTO DO CISNE – Isidro Sousa DECIFRA-ME... OU DEVORO-TE! – Guadalupe Navarro SONHO?... LOGO, EXISTO! – Lucinda Maria


56 AUTORES

FÚRIA DE VIVER UM HINO À VIDA Organização e Coordenação ISIDRO SOUSA

EDIÇÕES SUI GENERIS EUEDITO | PORTUGAL


TEXTOS © 2017 SUI GENERIS E AUTORES

Título: Fúria de Viver Subtítulo: Um Hino à Vida Autor: Vários Autores Organização e Coordenação: Isidro Sousa Revisão e Paginação: Isidro Sousa Capa (design): Ricardo Solano Capa (fotografia): Depositphotos Editores: Isidro Sousa e Paulo Lobo 1ª Edição – Julho 2017 ISBN: 978-989-8856-57-9 Depósito Legal: 429166/17 EDIÇÕES SUI GENERIS letras.suigeneris@gmail.com www.euedito.com/suigeneris http://letras-suigeneris.blogspot.pt https://issuu.com/sui.generis EUEDITO geral@euedito.com www.euedito.com Impressão Print On Demand Liberis

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«Viver é a coisa mais rara do mundo. A maioria das pessoas apenas existe.» OSCAR WILDE



ÍNDICE

Prefácio ........................................................................................................... 11 Prosa ................................................................................................................ 13 “Salete do céu”, Pedras Nuas ........................................................................ 15 Além da ponte, Sandra Boveto ....................................................................... 17 Celebremos a vida!, Amélia M. Henriques .................................................... 21 Na gangorra das existências, Júlio Gomes .................................................... 25 Usar o silêncio para falar, Carlos Arinto ...................................................... 29 Mulher alada, Renata Loyolla ......................................................................... 35 O piano, Rosa Marques ................................................................................... 38 A taberna, Airton Parra Sobreira .................................................................... 39 A menina coragem, Carla Santos Ramada .................................................... 43 Tudão e Nadinha, Marizeth Maria Pereira ................................................... 47 A última carta de amor, Graça Alves ............................................................ 50 Um brinde à vida dos meus filhos, Madalena Cordeiro .............................. 52 Encontro inesquecível, Estêvão de Sousa ..................................................... 53 Mensagens poéticas, Tânia Tonelli ............................................................... 56 O carrossel da vida, Lucinda Maria .............................................................. 59


Destino ou signa?, Luís Cardoso ................................................................... 61 Apenas um reflexo, Ana Maria Dias ........................................................... 63 Louvor à vida, Diamantino Bártolo ................................................................ 66 Out of the blue, Everton Medeiros ................................................................. 71 Força de vontade, Angelina Violante ............................................................ 74 Vida vadia, Jorge Manuel Ramos ..................................................................... 77 A decisão, Adelina Antunes ............................................................................ 80 Biluxa, Nardélio F. Luz .................................................................................. 83 Gidório, Suzete Fraga ..................................................................................... 86 Croniqueta, Pedras Nuas ................................................................................ 89 A esperança não morreu, Ângela Caboz ...................................................... 91 Mónadas do sentir, Ana Horta ..................................................................... 93 O universo, Sara Timóteo ............................................................................... 95 A única gangorra de Zoí, Sandra Boveto ...................................................... 97 O sorriso de Adriano, Isidro Sousa ............................................................. 100 Poesia ............................................................................................................. 103 Menina, Guadalupe Navarro ......................................................................... 105 A vida é bela, Isaac Soares de Souza ............................................................. 109 Tocador de gaita, Rafa Goudard .................................................................. 112 Vem!, Daniel Vicente ..................................................................................... 113 Espião, Roseni Gentilin Pintinha ................................................................... 115 Corre lágrima, Marizeth Maria Pereira ........................................................ 117 Vida que chama, Paulo Galheto Miguel ....................................................... 118 Viva a vida como ela é, Adriano Ferris ...................................................... 119 Quero..., Nicol Peceli ..................................................................................... 121 Celebremos a vida, Rosa Marques ............................................................... 122 Filho, Tiago Gonçalves ................................................................................... 124


Ânsia de viver, Lia Molina .......................................................................... 126 A vida e o tempo, Lucinda Maria ............................................................... 127 A magia da vida, Maria Alcina Adriano ..................................................... 128 Tua ausência, Neca Machado ........................................................................ 131 Restaurante da vida, Deise Zandoná Flores ................................................. 133 A escola da vida, Aldir Donizeti Vieira ...................................................... 135 Côncavo e reconvexo, Tereza Santos Farias .............................................. 137 Arco-íris do amor, Joaquim Matias ............................................................. 138 Viva la vida, Sténio Cláudio Afénix .............................................................. 140 Hino à vida, Ivan de Oliveira Melo ............................................................... 141 Viver na asa de um sonho, Ana Campos ................................................... 143 Superação é vida, Amélia Luz ..................................................................... 145 Retrato vida, Beco da Preta ........................................................................... 146 Você, Roger Gonçalves .................................................................................... 148 Navego numa caravela quinhentista, Isabel Martins ................................ 151 Partida, Tayná Messi ..................................................................................... 152 Teresa, Pedras Nuas ...................................................................................... 154 Moça(mbique), Ernesto Moamba ................................................................. 156 Mãe amada natureza, Anderson Furtado ..................................................... 159 Ser, José Lopes ................................................................................................ 161 Não quero morrer, Daniel Vicente .............................................................. 163 Qual é o sentido da vida se não sabemos vivê-la?, Nicol Peceli ............. 165 Se joga, Jonnata Henrique .............................................................................. 166 Dá-me as tuas asas, Paulo Galheto Miguel .................................................. 167 Radiância, Sara Timóteo ................................................................................ 168 Vale a pena, Isaac Soares de Souza ............................................................... 169 Não posso viver sem você, Adriano Ferris ............................................... 170


Deixa o ninho, Marizeth Maria Pereira ....................................................... 171 Vida breve, Rosa Marques ............................................................................ 173 Alegria de viver, Lia Molina ........................................................................ 175 Minha amiga, Rafa Goudard ........................................................................ 177 Cynefin, Tiago Gonçalves ............................................................................... 178 Proibido, Roseni Gentilin Pintinha ................................................................ 180 A vida, Lucinda Maria .................................................................................. 182 Os autores ..................................................................................................... 185 Edições Sui Generis .................................................................................... 199


PREFÁCIO

Em tempos (eu nem imaginava ainda que viria a organizar antologias e, consequentemente, criaria a Sui Generis), talvez devido ao facto de ter tido, desde tenra idade, uma vivência nada facilitada, embora tão sofrida quão irreverente, destacando-se continuamente por uma certa “diferença”, foi-me sugerido, por várias pessoas, que redigisse uma autobiografia. Argumentavam que a minha vida era rica, fértil em emoções, tanto na esfera privada como na área profissional. E insistiam: se essa biografia fosse divulgada seria um sucesso. Ou algo parecido. Mas eu mostrava-me avesso a escrevê-la. Não lhe vislumbrava qualquer importância. Nem entendia que interesse poderia despertar em outrem... Gostei sempre de escrever, é um facto; desde a adolescência, apesar de só recentemente ter conseguido concretizar sonhos literários. Prefiro combinar ficção com realidade numa narrativa – esta fórmula, para mim, é o casamento perfeito, seja no drama ou na aventura. E esquivava-me à biografia respondendo «Se querem conhecer a minha vida, leiam as minhas estórias». Imensos textos que desenvolvi revelam muito do seu autor. Pensamentos, emoções, sentimentos, alegrias, tristezas, sonhos, ilusões, vivências... Sim, gosto disso. De misturar. Fundir. Casar a ficção com a realidade. Construir outras tramas a partir daí... No entanto, não raras vezes dei comigo a pensar nessa sugestão que tantas vezes me fizeram de um modo deveras insistente. Tipo água mole em pedra dura tanto bate até que fura... Embora me mostrasse avesso a essa possibilidade, confesso que a considerei algumas vezes. E ao ponderá-la uma ideia desenhou-se-me na mente: «Se vier a escrevê-la, chamarse-á Fúria de Viver.» Porque a “fúria de viver” caracteriza-me... é um certo reflexo da minha personalidade, ou a minha existência não fosse pautada, 11


UM HINO À VIDA

desde sempre, pela sede/fome de vida. O título não é inédito, tão-pouco é exclusivo de alguém. O actor James Dean protagonizou o filme de Nicholas Ray que recebeu o mesmo nome e a SIC exibiu, em 2002, uma telenovela que apresentava este título. Creio que foi nessa época que se me enraizou na mente. Registei-o no arquivo. Porque aplica-se, perfeitamente, à minha trajectória de vida. Porque, de facto, adoro viver. Adoro fazer. E fazer que gostem de viver. Vivo todos os dias com intensidade – cada dia como se fosse o último. Sim, tenho fúria de viver... ou vivo a vida com fúria, não haja dúvidas. Nunca redigi qualquer autobiografia; não obstante apreciar leituras biográficas, essa ideia não me seduz. Em 2015, a minha vida seguiria um rumo inesperado, fazendo-me organizar obras colectivas. E cada antologia, apesar de ser constituída por vários autores, contém sempre algo de mim – algumas contêm muito! Como, por exemplo, Graças a Deus!, publicada em Dezembro de 2016. Se dei sempre (continuo a dar) Graças a Deus por tudo o que sucede na minha vida, porque não transformar esse sentimento, essa fé, esse louvor numa obra literária? Fi-lo, sem hesitar. Ocorreu-me algo similar quando decidi organizar esta nova obra colectiva intitulada Fúria de Viver. Se existe “fúria de viver” na minha pessoa e a literatura é, presentemente, o meu instrumento de trabalho, o que me impede de fazer um Hino à Vida sob a forma de literatura? Fascinou-me mais a ideia de organizar esta antologia do que redigir a biografia. Lançado o desafio a quem desejasse participar, foram submetidos imensos trabalhos, em prosa e poesia. Resultou num Fúria de Viver bastante vasto e abrangente – vislumbrando-se uma “fúria de viver” em cada texto porque se gosta realmente de viver, ou podendo existir essa mesma “fúria de vida” por outras razões, talvez menos felizes... como numa situação de enfermidade em que o seu portador, de algum modo, se agarre furiosamente à vida, visando manter-se vivo. O resultado global, sem mais delongas, é a belíssima obra que tendes nas mãos. Boas leituras! Isidro Sousa 12


PROSA

Ilustração: “O paciente numa tarde de Sol”, de Pedras Nuas 13



“SALETE DO CÉU” Pedras Nuas

A chave roda na fechadura. A porta abre-se. – Salete, minha querida Salete! A recém-chegada baixa-se e toma o rosto da velha senhora nas mãos: – Bom dia, D. Teresa, com paz e alegria! Abraçam-se e Salete senta-se ao seu lado e pergunta-lhe pela noite, pelo sono e depois lá ficam ambas a conferenciar, numa lógica que só as duas sabem decifrar; sorrisos, risos, gargalhadas; imensa cumplicidade. A mais jovem levanta-se calmamente e vai preparar o banho da idosa senhora. Lá dentro, tudo igual; conversas muito divertidas. Após o pequeno-almoço, a senhora pede: – Salete, leve-me lá fora se faz favor! – Com certeza, D. Teresa! Segure o meu braço! Lá fora, o dia esplendoroso; o casario estendido não rouba a visão ao cais; como pano de fundo, barcos, navios, céu e mar... Teresa aperta a mão a Salete. Entreolham-se com extremosa simpatia. – Nunca me deixe, Salete! Se me deixa, eu morro! – Jamais vou abandoná-la! A D. Teresa é uma mãe para mim! Não se fala em morrer diante desta beleza toda, pense na vida! – Tem razão! E a Salete é como uma filha para mim. Uma filha dedicada! Vamos regar as minhas flores? – Com certeza, eu ajudo! Assim foi; um bocadinho de água dentro do regador, Teresa foi matando a sede às florinhas que tanto estima e sonha com elas. No fim, 15


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satisfeita com a tarefa cumprida, entrega o regador a Salete, que vai imediatamente colocá-lo no sítio habitual; enfrentam-se e entrelaçam-se novamente por entre risos engraçados. – Linda manhã de sol! Rica coisa! – Teresa ergue o rosto ainda formoso, apesar da idade avançada, e exclama com vivacidade: – Salete do céu! A outra mulher não se contém e remata, muito efusiva: – Só a D. Teresa para me fazer rir! De mãos dadas, numa dedicação amorosa, entram as duas, muito lentamente, dentro de casa.

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FÚRIA DE VIVER

ALÉM DA PONTE Sandra Boveto

Tudo mudou quando comecei a olhar para você, a encarar todas as suas faces insondáveis. Parei de fugir, de não aceitar o que se tornou parte de mim. Agora, olho para você sem receio. Assisto a você acontecendo. Observo... Sinto... Cansei de tentar escapar e de buscar uma estrada onde você não me atingirá, como um tanque de guerra atropelando um soldado, esmagando seu corpo e separando-o de sua alma. Já não tenho mais aquele medo de você, Dor. Não mais. Afinal, você nunca me impediu de viver. Nem mesmo quando eu chorava, nem mesmo quando eu me revoltava ou me lamentava. Eu nunca autorizei sua presença em mim, e nem mesmo perto. Mas, se é assim que tem que ser, venha, então! Atropele-me uma vez mais... muitas vezes mais. Que seja! Venha, Dor miserável, venha! Eu te desafio. Continue. Mate-me de uma vez! Sim, mate-me! Não? Por que não? Ah, o motivo é tão óbvio, não é mesmo? Você é insidiosa, cruel, implacável, mas não é tola. Você sabe que não me vencerá com a minha morte. Não sou eu, mas a morte, a sua verdadeira antagonista. Conduza-me até ela e você me perderá. Ela é a minha grande e invencível aliada contra você. Entregue-me a ela e você perderá sua vítima. Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Dor imbecil! Eu gargalho porque não há saída para você, ora! Esse é o seu eterno paradoxo! Você quer que eu morra, mas precisa 17


UM HINO À VIDA

da vida em mim para que você exista. Por isso mesmo, não tenho medo de você... e também não tenho medo da morte. Eu sei o que você está pensando – você acha que me vencerá em vida. Acha que vencerá minha vida, minha vontade, meu ânimo. Que me prostrarei a você. Pois saiba que isso nunca acontecerá. Esqueça, Dor! Perante você, sou eu o vencedor. Sou maior que você, pois a vida em mim é maior que você, entende? Você é apenas uma parte dela, não é tudo. A minha vontade, a minha ânsia de viver é maior que você, dor estúpida... dor compulsória... dor necessária... dor sábia... Perdão, Dor! Eu sei, eu fui injusto. Às vezes, você me tira do meu eixo, você sabe. Perdoe-me! Entendo você. Entendo seu papel. Entendo! E te devo muito. Sem você, o que seria de mim, hoje? Essa força... A minha resistência é o resultado da sua própria existência. Dor, você é peça fundamental da vida. Não apenas você, claro! Mas você me ensinou tanto sobre a vida... Tanto! Mostrou-me a vida por ângulos que antes eu não conhecia. Assim como a morte é sua rival, você é a maior aliada da vida, cuja grandeza vem na sua contramedida. Tal é a sua importância, Dor! Você é parâmetro para o gozo da vida. Então, como algo tão nobre e valioso como a vida teria como parceira uma coisa ruim? Você não é ruim, mas apenas um desafio vital, uma mestra na arte de viver. E sou o aprendiz das suas lições, um discípulo que recebe uma atenção toda especial de seu preceptor. Sei que, de fato, nem mesmo você entende por que deve ser tão presente, tão severa comigo. Mas eu te imploro... clamo por uma trégua! Não, não sou incoerente. Preciso de você e preciso de uma trégua. Vocês não são inimigas, não são excludentes. Pense! Ela te fortalece. Sim, a trégua. Pois é na trégua que saio da sua escola e me encontro verdadeiramente com a vida, a sua mentora. Na trégua, permitindo-me um pouco de prazer, eu me esquecerei por um momento de você e, quando você voltar, serei surpreendido, como se não te conhecesse. Então você vai cumprir o seu papel de me fazer sofrer... novamente. 18


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Mas me levantarei, como sempre, mais e mais fortalecido. Nunca me curvarei a você. Não permanecerei no chão. Quanto mais você me açoitar, mais íntegro ficarei; mais conhecerei seus golpes; mais saberei onde você está; mais convicto serei de que você não me vence... E mais especializada você se tornará, Dor! É uma simbiose e, para que ela funcione, a trégua é necessária. Há tempos você não me permite essa pausa, esse intervalo. Eu sei que existe vida com você, que vivo apesar de você. Mas quero viver além de você, entende? Preciso viver! Quero sentir novamente aquele prazer que mora do outro lado de você, e que te usa como ponte. Além dessa ponte, encontro a alegria infinita em qualquer ponto da amplitude da vida. Lá estão a satisfação e o encanto de perceber a beleza e a grandeza naquilo que poucos sequer reparam que existe. Mergulho no cativante brilho mutante de um besouro de ouro. Deixo que as estrelas cresçam em número no céu negro, e mergulhem fundo nos meus olhos. Permitome ser deslumbrado e permito-me ser místico. Conceda-me essa trégua, Dor! Não apenas mereço, mas espero e anseio pelos prazeres experimentados apenas pelos que estão dispostos a enfrentá-la. É como uma recompensa, um presente, um prêmio que recebo, mas apenas quando você me concede essa pausa, Dor, permitindo-me atravessar para a vida que se esconde do outro lado de você. É além da ponte que eu enxergo a cor real do céu. De tão transparente, a atmosfera me permite ver um tom de azul hipnotizante, distinto. Não pisco. Meus olhos ficam marejados. O choro que chega é bom, conforta a alma e permite que ela descanse da árdua luta por manter a minha consciência viva. Quando você não está, tudo é tão transparente que percebo as moléculas de oxigênio, e quase as vejo. O ar chega suave e delicado, invade e acaricia meus pulmões e, com calma, percorre meu corpo e me traz a leveza que só posso sentir porque você, tão teimosamente, já me negou. Do outro lado da ponte, sou capaz de ouvir verdadeiramente; ouvir os detalhes escondidos atrás dos ruídos do mundo; sentir o prazer no silêncio que conquisto em meio à multidão. Posso escutar a minha respiração e a cadência do meu coração. Sou capaz de ver, ouvir, saborear, 19


UM HINO À VIDA

inalar e tocar a vida em mim. Lá, além de você, posso também olhar além de mim. Vejo a grandeza, a dimensão da vida no entorno... e mais além. Tenho, então, a prova de que, mesmo sendo imensidão, sou fração – um ínfimo fragmento do universo, com uma breve oportunidade de apreciar e experimentar a vida; de extasiar-se perante todos os demais fragmentos, perante toda a paisagem, e com cada nova cor que é possível enxergar no intervalo de cada dor. Vejo, nesse quadro, matizes sem nomes, num espectro de luz único, exclusivamente criado para mim pelo que há de divino e inescrutável na vida. Vejo o que é sabiamente revelado por você, Dor, minha austera preceptora.

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FÚRIA DE VIVER

CELEBREMOS A VIDA! Amélia M. Henriques

Viver ou saber viver? Eis a grande questão, da sabedoria da Vida! Nascemos e começamos a viver... a Vida na sua plenitude de um mar de incertezas. Viver não custa, saber Viver exige sabedoria e desprendimento... torna tudo tão complicado quando a Vida se nos apresenta tão simples. Viver plenamente... só com Amor... esse estigma que nos faz suar através da pele, que nos tapa os poros por vezes, que nos derruba sem dó nem piedade... porque Eu não concebo a Vida sem Amor! Tema deveras complicado... admito. Vivi e aprendi que Viver é muito mais abrangente do que essa palavra pressupõe... estou fumando o último cigarro... saboreando-o e rindo-me da minha dependência que me colmata a Vida... Serei mais forte que o meu vício companheiro? Um pária na solidão... que me corrompe a Alma e o Viver... Sou muito mais que isso... aspiro a algo de sublime e sobrenatural... para me deixar vencer por vícios terrenos. Exalo o último aspirar do cigarro... não me deixo vencer porque a Vida fez de mim algo de inatingível... sou um ser vivo e ao mesmo tempo sou aparição irreal, nesta irrealidade da vida. Verdade! Celebremos a Vida... tão cheia de facadas e não me toques... passo a passo. Purifico-me nas ondas furiosas que avassalam o meu ser... e riome das armadilhas que a Vida teima em me lançar... porque sou uma enguia fugidia... que se desliza com garra... que dribla sagazmente e se 21


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escapa incólume! A minha missão de vida é ser feliz e tornar o próximo feliz... ter sempre uma palavra de incentivo, um sorriso nos lábios, não me deixar abater pelas vicissitudes e ultrapassar os obstáculos. Saber viver é viver com gratidão, por cada ai suspirado... ser um pouco mais egoísta, neste mundo parco de emoções verdadeiras e materialista. É dar o braço a torcer neste mundo corrupto, é saber ser solidário, sem se deixar conspurcar pelos dogmas da Vida que nos ensinaram a ser, desde pequeninos, fiéis a um certo paradigma da Vida. É sermos e agirmos, no sentido do que nos faz felizes e livres, sem termos de nos cingir ao que a sociedade acha ser correto, a fim de tal alcançar... Apesar de tantas quedas e levantamentos, quer desilusões e momentos felizes, o saldo é positivo. Vale a pena celebrarmos a Vida e cantar-lhe os Parabéns, repletos de amizade e amor! Quem disse que a Vida era fácil? Se tudo fosse um mar de rosas... tudo teria menos sabor. Para a valorizarmos, necessitamos de Desafios, de experiência, de aprendizagem. A Vida é uma caixinha de surpresas, que nos pega de mansinho, sem contarmos, por vezes, com alguns episódios maus. Só temos que identificar... e banir o que nada nos acrescenta e poderá fazer menos realizados e infelizes! Temos de ter um coração aberto, entrega e muita fé. Colocar amor e dedicação em todos os nossos sonhos para objetivá-los. Não nos rendermos e fazer valer cada segundo que se viva. À medida que formos tendo mais obstáculos na caminhada, é sinal de que a nossa capacidade para enfrentá-los é maior do que o comum das pessoas, porque temos garra para obter a vitória. A caminhada, de quem faz a diferença, é uma roda com altos e baixos, mais baixos inclusive, mas no final valerá a pena. Nunca desanime nem reclame porque quanto mais lutas tiver mais força vai acumular, para lidar com novos desafios e obter o êxito que o compensará disso tudo. A nossa força é baseada na fé, no querer, no persistir e, quando assim somos, transformamo-nos num Golias, conseguimos derrubar qualquer um ou situação. A sua vida pode ser motiva22


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ção para qualquer um que se encontre em desespero, sem saída e com medo. Façamos a diferença porque só ganhamos com isso. O desejo é o Deus de muitas vitórias! O nosso exemplo poderá ser um guia a seguir, por isso façamos história. Busquemos sempre conhecimento, novos desafios e obstáculos para encontrar o potencial escondido dentro de nós. Vencer na vida requer muita coragem, disciplina e batalhas, e se te sentes escolhido é porque és especial. Ter um espírito vencedor é algo mágico... e um dia ouvir as bocas dizerem: tenho orgulho em te conhecer! É gratificante. Tudo depende exclusivamente de nós, ultrapassar barreiras, ser mais realizado e reconhecido pelos nossos feitos. Se deseja, se quer mesmo, acredite, tenha fé, lute, vá em frente porque vai conseguir ter êxito e chegar lá ao topo. Os sonhos realizados são uma grande alegria e motivo de celebração da vida. São eles que nos levam ao caminho da verdadeira felicidade! São eles a mola que nos impulsiona a ir em frente, caso contrário, ficamos estagnados. Onde quer que eu vá, levo um pedacinho das minhas memórias porque não há vida sem passado. Lembro-me dos momentos bons que me animam e dos erros para me direccionar melhor. Hoje, estou num caminho diferente, nada do que é material é minha ambição porque a minha filosofia de vida vai muito além disso, numa vertente mais espiritual e emocional, não sem alguma racionalidade, mas não é o mundo material que me faz sonhar. A minha felicidade passa muito além disso, do normal e do comum dos mortais. Sem dúvida que gosto de boa cama e boa mesa, mas também uma enxerga e um parco repasto não causam a minha infelicidade. Adaptação e persistência nos meus sonhos fazem-me sair do marasmo e dão-me força para lutar. Não quero uma vida normal ou luxuosa sem nada que a acrescente porque tudo isso tive e a saída foi a minha libertação para um plano, de liberdade de acções e decisões de ser feliz, fazendo o que gosto, criar com as minhas mãos... Arte. Tudo isso foram e são sonhos, pelos quais luto com toda a minha força interior, tamanha que desconhecia, sofrimento maior, ora arrastada, ora levando pontapés, ora colhendo frutos, sem jamais desistir, sorrindo entre lágrimas, durante uma dezena 23


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de anos, cheia de limitações materiais... Isso sim, é palco e mote para Eu poder dizer: Celebremos a vida, porque vale a pena viver!

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NA GANGORRA DAS EXISTÊNCIAS Júlio Gomes

Na minha primeira vida eu fui rocha. Mas não uma rocha qualquer, parada, imóvel ou estática. Não fui pedra cristalina, força bruta, intocável, como um legítimo e faustoso diamante vermelho. Mas me satisfiz como rocha mais comum, basáltica, eruptiva, de coloração escura, de grande dureza e resistência. Movimentava-me de tempos em tempos, com a ajuda de terremotos, maremotos e furacões e rolava de barrancos, de precipícios, de lugares altos. Destruí, com meu peso, muitas casas encravadas nas encostas das montanhas, muitos vilarejos existentes nos sopés dos morros. Protegi muitas pessoas e muitos bichos da chuva e da tempestade. Aliviei o sofrimento nas épocas das avalanches. Rolei, rolei e rolei até me espatifar no chão e virar areia pequenininha que voava com o vento e com a erosão. Vivi milhares de anos. Mas meu principal inimigo era a lava da torrente vulcânica que por muitas vezes eu lutei com coragem e bravura. Porém um dia, no final, a lava me venceu e me derreteu. Como eu queria continuar a viver rocha! Na minha segunda vida eu fui vegetal. Mas não qualquer vegetal de tamanho minúsculo, feio ou raquítico. Eu era uma gigantesca planta plumosa. Uma daquelas enormes, robustas e pomposas. Ficava solitária no alto de uma montanha esverdeada e era a rainha da natureza. Minhas raízes espalhavam-se por quilômetros abaixo da terra. Minhas folhas, longas e grossas, balançavam tresloucadas durante as ventanias, num ritmo alucinante, numa dança maluca, num pacto de amor profundo 25


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entre as moléculas de ar e as minhas paredes celulares. Minhas flores respeitavam todas as cores e iluminavam os dias e as noites. Eram coloridas de um misto de verde e lilás. Meus frutos, saborosos apenas para os animais, causavam doenças mortais para os homens que ousavam me desrespeitar e comer. Meus galhos, términos de meu caule, sustentavam espinhos finos e pontiagudos que, igualmente deletérios, fustigavam a todos que me queriam derrubar. Zurzi aqueles muitos que tentavam comer meu fruto indistintamente ou subir em meu corpo feito de madeira de sândalo. Vivi centenas de anos. Mas um dia um maldito trator enferrujado passou por cima de mim e me esmagou. Como eu queria continuar a viver planta! Na minha terceira vida eu fui bicho. Mas, dessa vez, por algum motivo, eu não fui tão grande, belicoso ou feroz. Pois então nasci sutil, corpo semiesférico, cabeça pequena, seis patas curtas, duas antenas. Tinha asas membranosas, com carapaças quitinosas, estilosas e bem desenvolvidas, bem coloridas, vermelhas com pontinhos pretos. Era um inseto coleóptero da família Coccinellidae. Tinha lá meus cinco milímetros e com o tempo descobri que era um tipo de besouro e que as pessoas que me viam me chamavam carinhosamente de Joaninha. Vivi quase 150 dias, voando pelas paredes das casas, pelos matos ciliares de rios caudalosos, observada por casais apaixonados que suspiravam juntos ao me ver caminhando lentamente pela superfície das pontas das rosas híbridas em jardins iluminados. Corria de meus predadores terríveis e maus. Zunia de sapatos indelicados e desatentos. Mas acabei sendo pego por um inseticida agourento. Como eu queria continuar a viver bicho! Na minha quarta vida eu fui ser humano. Nasci Maria Aparecida. Um Milagre! Com um ano de idade mordi minha mãe. Aos dois anos, mamei com dificuldades. Aos três, andei e caí inúmeras vezes. As quatro, quebrei o dedo da mão. Aos cinco tive pneumonia, diarreia, anemia, desnutrição. Aos seis, falei sem parar: aprendi vários palavrões. Aos sete, roubei uma bicicleta de um amigo. Peguei no pênis do meu primo. Aos oito, já gostava de beijar. Quebrei o braço brigando na rua. Aos nove, vi minha mãe, uma exímia madame, ser violentada. Furei a orelha. Tentei fugir 26


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de casa. Aos dez, senti muito medo do mundo. Aos onze, conheci meu pai, presidiário. Aos doze, já satisfazia os amiguinhos da rua. Aos treze, quebrei a perna e a bacia andando de moto. Engravidei. Tive meu primeiro filho: Muriel. Aos quatorze repeti, de novo, o ano na escola. Aos quinze dancei na festa. Aos dezesseis tive o meu segundo filho: Miguel. Aos dezessete, o terceiro: Rafael. Aos dezoito saí de casa. Aos dezenove fiz programas, virei meretriz. Aos vinte, quebrei o nariz. Tirei foto em um chafariz. Arrumei um outro emprego. Foi demitida logo cedo. Tive dengue. Depois uma nova pneumonia. Vinte e um me converti. Todo domingo estava na igreja. Vinte e dois, casei. Linda de vestido longo, amarelo, véu e grinalda como nos filmes. Vinte e três tive o quarto filho: Manoel. Tive complicações no parto. Entrei em coma. Nuvens brancas me rodeavam. Na minha frente Deus, transfigurado numa antiga máquina de fazer sorvetes, falava comigo sobre planetas, marmelada e futebol. Voltei à vida aos cinquenta e vivi cuidando dos filhos e dos netos e dos bisnetos até os cento e dez anos de idade. Retornei aos céus numa noite quente quando dormia solitária, abandonada, num quarto úmido nos fundos de um asilo. Como eu queria continuar a viver humano! Na minha quinta vida eu fui máquina. Voltei triunfante. Tinha a força elétrica perpassando pelos meus fios envoltos pelas minhas entranhas. Não tinha mais sangue. Mas pensava, raciocinava, alegre e feliz, como antes. Sabia de minhas funções e de minha missão. Novamente tinha asas, mas agora feitas de aço e ferro. Eu tinha um tanque cheio de gasolina que alimentava minhas energias. Era sempre pilotado por controle remoto. Às vezes ia sozinho com minha própria inteligência artificial. Dessa vez eu era um jato, tipo drone, da esquadrilha dos bombeiros. Era todo vermelho, brilhoso. Feito exclusivamente para salvar vidas em locais de difícil acesso. Ia e voltava trazendo gente de hospital, gente acidentada em locais perigosos, nos imprevistos nas estradas, nos prédios que pegavam fogo. A vida era minha relíquia, meu objetivo, meu vício. Salvá-la era tudo para mim, de todas as formas que eu pudesse. E assim eu fiz. Vivi centenas de anos sendo remodelado, restruturado a cada atualização da tecnologia e do sistema. Até que minha vida útil acabou. 27


UM HINO À VIDA

Fui jogado num armazém fedorento e escuro como uma carcaça abandonada. Por lá fiquei esquecido por muitos anos enferrujando lentamente. Até que fui descoberto novamente e acabei por ser triturado numa fábrica de reciclar. Como eu queria continuar a viver máquina! Na minha sexta vida, que agora eu vivo, sou um corpo celeste. Sou um tipo de estrela cadente, fugaz. Observo do alto cada um de vocês. Seus vícios, seus medos, suas angústias, suas traições, suas guerras, suas invenções. À noite sou tão brilhante como de dia. Sou a mais bela das estrelas do espaço, desse universo que vos cerca. Permaneço grande, imenso, do tamanho de uma lua, deveras iluminada. Viajei por velocidades indizíveis, por grandezas quânticas inenarráveis e passei por portais dimensionais de tamanhos de milhares de sóis. Amo as anãs azuis. Admiro as gigantes vermelhas. Tenho uma paixão secreta pelos buracos negros. Viajei a quilômetros por hora pela via láctea. Adentrei ao vosso sistema solar atraindo planetas, satélites, luas e órbitas sem precedentes. Aqui, no infinito colorido, o etéreo é impossível e palpável diante daquilo que não tem nenhum sentido. Em algum momento virei asteróide. Agora, viajo indistinto e interminável, inevitável, em direção ao vosso planeta. Viajo com o único e pleno objetivo de restabelecer o conflito natural e destituir a velha ordem. Trago o fim pela subversão da parte mais bela da existência: a vida.

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FÚRIA DE VIVER

USAR O SILÊNCIO PARA FALAR Carlos Arinto

(Pequenos apontamentos para o tema: Fúria de Viver) Rebelde Sem Causa é um filme, com James Dean, que em português mereceu o nome de Fúria de Viver. Também Orlando era furioso, um poema épico escrito em 1516. Depois, o tema e a junção das duas palavras foram sendo associadas em novelas, umas mais mexicanas do que outras, todas à procura de emoções e de vidas aceleradas, por entre peripécias e o correr dos dias iguais. Uma chatice! Fúria de Viver poderia ser um “romance de cordel”, uma crise de adolescência, uma maneira de impetuosidade, se não fosse estúpido. Fúrias e furiosos são traquinices ou desvios de comportamento. Pode-se ser um furioso tranquilo? Pode a fúria celebrar a vida? Um tornado, uma tempestade, um tsunami são fúrias da Natureza! Um touro é furioso quando assanhado. Fúrias são comportamentos repentinos. Pois é! A vida é tão curta! (apresentação do tema proposto) 1º QUADRO O mar levantava-se em fúria. 29


UM HINO À VIDA

Eu olhava para as ondas encaracoladas, vindas lá do longe, para o ribombar das águas contra as rochas, para o salpico que o vento fazia erguer e não pensava em nada. Viver pode ser contemplativo. Eu via uma luz, uma réstia que se vislumbra e abre em seta, em persiana, para o céu, mas também para os cardumes que existirão nas profundezas. Uma âncora a segurar o interior ao nada. Uma amarra a ligar a geotermia do choque das calotes. A erupção! A fúria, toda a fúria está à nossa volta. Vivo com a fúria do repentino encabelado ao amainar. Ergo a mão para suster a claridade ou a escuridão que me fere os olhos, sentindo que o meu gesto é compreendido pela Natureza. O meu viver é um lago com cisnes brancos. 2º QUADRO O despertador toca e levanto-me em fúria. Atrasado como é costume, mesmo com o despertador, que já tocou três vezes, e por outras tantas o mandei esperar. Lavo-me, visto-me e tomo um café, para re-acordar, ou pelo menos sentir que começo a ficar desperto. Maldita noite. Maldita gaja que me cansou durante toda a noite, foi uma fúria mansa, sem cornaduras, uma estopada de sexo inútil. Porque é que não tenho juízo!? Ligo para o trabalho a dizer que estou “um pouco atrasado” e logo hoje que o trânsito está igual a sempre: caótico, confuso e emaranhado. A primeira reunião do dia já foi. A promoção também, ainda bem que não tenho “porta aberta para a rua”, porque, se fosse assim, já estaria despedido. Ouço notícias e música em algazarra. Bato com a mão no tablier do carro. Porra! Chiça! Estou furioso. Logo vou tomar um copo para esquecer. Sopro o vento pelas narinas. Merda! Esqueci-me de fazer a barba! 30


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3º QUADRO O menino brincava com o cavalo: Aiô Silver! Era o cavalo do Zorro! Um cavalo que se chamava com um assobio. Tantas aventuras, quando a inocência nos acompanha no imaginário da banda desenhada. Já lá vão tantos anos! Depois os cavalos passaram a estar em galope pelas pradarias, nos pastos selvagens, em coletivos de vida, em manada, em boiada... até que um rapaz os puxa para o rancho e os domestica, em pinotes, em trote, em cavalgadas. Ou simplesmente os deixa à solta. Cavalos que são montadas de toureiros e de enxutos militares, em torneios hípicos, ou corridas à volta de uma cerca oblonga, onde as senhoras exibem chapéus e sombrinhas coloridas. Cavalos que transmitem coragem, bravura e confiança a crianças carentes de afectos e de empatias. A velha fúria, sempre pronta, num coice. Num abanar de pescoço, num arreganhar de nariz. Uma bravura elegante, limpa, lusitana ou árabe, nobre e altiva. Como a vida. 4º QUADRO A área psiquiátrica estava cheia. Às vezes davam-lhes fúrias e era preciso muito treino e habilidade para controlar os doentes. O mesmo acontecia no centro de dia onde viviam os pacientes mais graves. Cada doente tinha o seu assistente pessoal, especialista que acompanhava e acarinhava os utentes, dando-lhes amor, alegria e razão para viverem, no nevoeiro do seu discernimento. Mas, numa qualquer repentina alteração de comportamento, fervia estalada. – Toma! Os médicos, os assistentes, o pessoal auxiliar, os enfermeiros e mesmo os técnicos de inserção nada podiam fazer. Era levar e calar. 31


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Inconscientemente a agressividade explodia em fúria. Não para viver, mas como erupção. Como esvaziamento das entranhas, como desabafo e eclosão. 5º QUADRO Em Perúgia milhares de pequenas pedras e bolas de chumbo foram desenterradas com mensagens. Isto aconteceu quando Octaviano cercava a cidade, que tinha Lúcio António e Fúlvia como seus prisioneiros. (40 a.C.) Estes projécteis foram usados nas fundas, para atacar os soldados dentro da cidade murada. Era uma arma que os soldados, ditos rasos, usavam com frequência, sendo a funda uma arma comum e mortífera, quando bem utilizada. Estes projécteis, em formato de bola oval, que hoje denominaríamos de “râguebi”, embora minúscula, antecessores da bala, possuíam o tamanho suficiente para levarem uma mensagem escrita. A fúria que levavam estes impactos transportando frases destinadas a desmoralizar os atacados foi notável: do obsceno ao propagandístico, do amoral ao conselho. “Para o clítoris”; “apanhei-te”; “abram o olho traseiro”; “vão morrer de fome” e também o insulto de “careca” que era considerado uma comum crítica romana. Ofendia, mesmo! Notável a vida, a sua energúmena raça de cariz sexual militar, a fúria de arrasar e de esconder o medo. Um sistema de comunicação exemplar. 6º QUADRO 2017 é um ano de fúrias. De vida e de morte! Afinal, fúrias de viver. Cem anos do início do pastoreio de Fátima. Cem anos da Revolução Bolchevique, uma das mais sangrentas e bárbaras da nossa história recente. Fizeram bem os “pastorinhos” em alertar para esta anormalidade, para este credo – semi-ideológico, semi-religioso – que desabou em Berlim, muitos anos depois... depois de ter trucidado e esventrado muitos 32


FÚRIA DE VIVER

homens, mulheres, crianças e idosos. A eito, por pura maldade! Existe uma fúria natural que castiga estes criminosos. A fúria dos Homens! 7º QUADRO Hoje começou a chover. É a fúria dos céus em todo o seu esplendor. É a alegria de viver. Salvé! Rainha, mãe, amante, mulher! Abençoa-nos com o teu aspergir. Hoje começou a chover e o riso das crianças é superior. Fico danado! Eu queria ser criança e chuva e lágrima. Eu queria ser toda a fúria e a ternura que não sou!

EPÍLOGO O funicular eleva-se até muito depois das nuvens. Lá em cima, onde o vento não sopra, existe um anel de apaziguamento. Ah! O meu cachecol encarnado! Onde vive o caracol que não foi batizado? – Bicho feio. Homem bonito e mulher esbelta. Tenho um javali gravado no meu brasão, no escudo, no elmo, nas válvulas do coração. Dão comprimidos aos soldados para lhes exacerbar as fúrias. Avé Maria cheia de graça, que graça não te encontro. Sítio estranho, este, dos namorados. Vivamos com a paixão, o tornado, a elegância e a cuspidela da cobra.

POSFÁCIO Um Deus que usa o silêncio para falar (Laurinda Alves, in Observador) Os emigrantes holandeses construíram um muro em Nova Amster33


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dam. Os ingleses construíram uma estrada ao longo do muro, na parte protegida. O perigo eram os nativos. Debaixo de um salgueiro reuniram-se para conversar e fazer acordos os homens do Novo Mundo. Nem tudo este faroeste. O sítio ficou conhecido como Wall Street. Hoje uma rua, coração de Nova York. A city. Do ano 220 a.C. ao século XV a China construiu um muro com 22.000 quilómetros de comprimento. De 1961 a 1989 houve um muro a dividir a cidade de Berlim, com 302 torres de observação e rede eletrificada. Em 1979 os Pink Floyd compuseram o tema “Another bick in the Wall” para o álbum “The Wall” Na fronteira do México com os Estados Unidos existe um muro com 1130 quilómetros separando os dois países. Tijuana e San Diego, mar e mar, pessoas e pessoas. Israel construiu um muro com 760 quilómetros de comprimento e oito metros de altura, entre o seu território e a Cisjordânia. Fúria de dividir, separar, criar gavetas, isolar, defender... fúria de agrimensar. Viva la vida! Com fúria!

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ESTE LIVRO TEM 214 PÁGINAS

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