CRIMES SEM ROSTO - Antologia de Contos Policiais

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COLECÇÃO SUI GENERIS

CRIMES SEM ROSTO ANTOLOGIA DE CONTOS POLICIAIS


COLECÇÃO SUI GENERIS Obras colectivas: A BÍBLIA DOS PECADORES – Do Génesis ao Apocalipse O BEIJO DO VAMPIRO – Antologia de Contos Vampirescos VENDAVAL DE EMOÇÕES – Antologia de Poesia Lusófona GRAÇAS A DEUS! – Antologia de Natal, 2ª Edição NINGUÉM LEVA A MAL – Antologia de Estórias Carnavalescas TORRENTE DE PAIXÕES – Antologia de Poesia Lusófona SALOIOS & CAIPIRAS – Contos, Causos, Lendas e Poesias SEXTA-FEIRA 13 – Antologia de Contos Assombrosos CRIMES SEM ROSTO – Antologia de Contos Policiais FÚRIA DE VIVER – Um Hino à Vida A PRIMAVERA DOS SORRISOS – Antologia em Prosa e Poesia TEMPO DE MAGIA – Antologia de Natal DEVASSOS NO PARAÍSO – Contos Sensuais e Eróticos OS VIGARISTAS – Crónicas, Poemas e Contos do Vigário Obras individuais: AMARGO AMARGAR – Isidro Sousa ALMAS FERIDAS – Suzete Fraga MAR EM MIM – Rosa Marques O PRANTO DO CISNE – Isidro Sousa DECIFRA-ME... OU DEVORO-TE! – Guadalupe Navarro SONHO?... LOGO, EXISTO! – Lucinda Maria PRISIONEIROS DO PROGRESSO – Rosa Marques DE LÍRIOS – Isidro Sousa


18 AUTORES

CRIMES SEM ROSTO ANTOLOGIA DE CONTOS POLICIAIS Organização e Coordenação ISIDRO SOUSA

EDIÇÕES SUI GENERIS EUEDITO | PORTUGAL


TEXTOS © 2017 SUI GENERIS E AUTORES

Título: Crimes Sem Rosto Subtítulo: Antologia de Contos Policiais Autor: Vários Autores Organização e Coordenação: Isidro Sousa Revisão e Paginação: Isidro Sousa Capa (design): Ricardo Solano Capa (fotografia): Depositphotos Editores: Isidro Sousa e Paulo Lobo 1ª Edição – Maio 2017 ISBN: 978-989-8856-58-6 Depósito Legal: 429168/17 EDIÇÕES SUI GENERIS letras.suigeneris@gmail.com www.euedito.com/suigeneris http://letras-suigeneris.blogspot.pt https://issuu.com/sui.generis EUEDITO geral@euedito.com www.euedito.com Impressão Print On Demand Liberis Direitos reservados pelo Organizador e pelos Autores. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida, por quaisquer meios e em qualquer forma, sem a autorização prévia e escrita dos Editores ou do Organizador. Exceptua-se a transcrição de pequenos textos ou passagens para apresentação ou crítica do livro. Os Autores podem usar livremente os seus textos. A utilização, ou não, do actual Acordo Ortográfico foi deixada ao critério de cada Autor. SEJA ORIGINAL! DIGA NÃO À CÓPIA! RESPEITE OS DIREITOS DE AUTOR!

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«A prontidão em acreditar no mal sem o ter examinado profundamente é um efeito do orgulho e da preguiça. Queremos descobrir os culpados, mas não queremos dar-nos ao trabalho de examinar os crimes.» FRANÇOIS DE LA ROCHEFOUCAULD

«Ninguém pode, por muito tempo, ter um rosto para si mesmo e outro para a multidão sem no final confundir qual deles é o verdadeiro.» NATHANIEL HAWTHORNE

«A intenção oculta do crime é já o próprio crime.» JUVENAL



ÍNDICE

Prefácio .................................................................................................... 9 À procura do Renoir, Ana Campos ..................................................... 13 Sem rosto, Angelina Violante ................................................................ 21 Crimes sem rosto, Carlos Arinto .......................................................... 29 Crime em Luanda, Estêvão de Sousa .................................................... 43 Mau Natal, Filipe Vieira ........................................................................ 53 Sal e areia, Gisa Borges ........................................................................... 63 Merlot 38, Grazielle Pacini Segeti ........................................................... 75 O susto de Matilde, Isidro Sousa .......................................................... 81 Crônica de um assassinato, João Natalino ....................................... 101 O reencontro, Joaquim Mendes .......................................................... 109 Desaparecimento de Amarildo sem porto, José Carlos Brandão ... 113 Natal em família, Manuel Amaro Mendonça ..................................... 119 Mão fantasma, Marcia Lins Zotarelli ................................................. 125 Reflexão sobre a natureza do mal, Sara Timóteo ............................ 135 SCDS, Suzete Fraga ............................................................................. 141 Nas malhas do crime, Teresa Morais ................................................ 149 Um mistério da fé, Tito Prates .......................................................... 159 A. Escritora, William Schmahl Barros ................................................ 169 Os autores ........................................................................................... 173 Edições Sui Generis .......................................................................... 181



PREFÁCIO

A literatura policial fascina-me desde que li o primeiro livro deste género. Achei-o numa das visitas iniciais, durante a adolescência, à Biblioteca Municipal de Moimenta da Beira, da qual me tornaria frequentador assíduo; esta biblioteca regional, instalada na conceituada Casa das Guedes, era o meu refúgio quando saía da escola. Perscrutando estantes repletas de livros, chamaram-me a atenção as prateleiras reservadas aos policiais. Agatha Christie, Arthur Conan Doyle, Erle Stanley Gardner, Patrícia Highsmith, Jorge Ibargüengoitia e Ruth Rendell são alguns autores cujas obras devorei sofregamente. Sim, devorei literalmente todos os livros que encontrei destes autores e não só, tornando-se o género policial, desde logo, a minha leitura predilecta. Heróis da cena policial como Miss Marple, Hercule Poirot, Sherlock Holmes ou Perry Mason encantavam-me. E se mais não li foi porque não havia; ou talvez não achasse... Foi igualmente nessa época que a minha veia literária despertou. Embora já redigisse, nas aulas de Português, pequenas estórias à laia de redacções, quase nada ou pouco elaboradas, seria a rainha do policial Agatha Christie (ou inspirado nela), após ter lido uma reportagem sobre a sua vida e dezenas dos seus livros, quem me faria aventurar em algo maior... na minha primeira obra literária: uma novela. A temática, influenciado pelas leituras de então, não poderia ser outra: policial. Talvez devido ao factor idade, fiz de um jovem estudante – um adolescente de 14 ou 15 anos, tal como o seu criador – o meu Hercule Poirot, construindo uma trama que se ambien9


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tava numa escola secundária provinciana, algures na Beira Alta, um estabelecimento de ensino fictício inspirado naquele que frequentei, no qual uma aluna pereceria. Suicídio ou assassínio era a (principal) questão que dominava toda a narrativa, sendo esclarecida somente nas derradeiras páginas. Mantive esse personagem adolescente, um estudante perspicaz com ares de detective, noutras novelas juvenis que concebi nessa altura, tendo-o recuperado mais tarde, volvidas cerca de duas décadas, para protagonizar uma obra de maior fôlego, sendo agora um homem maduro, jornalista bem-sucedido, que larga a monotonia da advocacia para se dedicar à emoção da investigação e procura desvendar várias mortes misteriosas, ocorridas sem qualquer elo de ligação, ao longo de um bastante complexo serial killer. E atrevi-me, ainda nos meus tempos de estudante, enquanto redigia a referida novela, a apresentar, num concurso literário promovido lá na escola, o primeiro conto que ousei mostrar: uma estória policial dactilografada em duas folhas, o mesmo texto que, transcorridas quase três décadas, resgataria da gaveta para o rever, amadurecendo e desenvolvendo algumas partes da narrativa, sem alterar a linha original, com o firme propósito de o incluir na primeira antologia literária dedicada ao género policial que decidi organizar. Quanto à literatura policial, esta é caracterizada, regra geral, pela presença, na sua estrutura narrativa, de (pelo menos) um crime, da sua investigação e da revelação do malfeitor. Neste género literário, o foco remete para o processo de elucidação do mistério, empreitada a cargo de um detective, seja ele profissional ou amador. A essência da narrativa policial é a busca da identidade desconhecida, pela totalidade dos indícios, achando-se sempre (ou quase sempre) o criminoso entre quem menos se espera, ou suspeita, demonstrando que não pode haver crime perfeito, logo, não há lugar para a impunidade, isto é, para o crime sem punição, como sucede habitualmente nas obras de Agatha Christie e de Erle Stanley Gardner. O texto de minha autoria inserido nesta antologia desvia-se um pouco desse padrão. Apresenta, numa “primeira vista” como sendo 10


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a trama principal, um episódio num restaurante perpetrado por um casal de marginais dedicados ao roubo que acabará por ser detido, no entanto, verifica-se em paralelo, na mesma trama, com alguma subtileza, uma sucessão de delitos bastante mais graves do que o acto de roubar, crimes hediondos praticados há muitos anos cuja autoria só será conhecida num momento de pânico – em que a personagem que os cometeu, escondida sob a máscara de pessoa virtuosa e acima de qualquer suspeita, é confrontada com outra situação assaz perigosa e, vendo a sua vida de novo em perigo, rememora o mal que fizera no passado. Aqui, esses crimes mostram um rosto porque a pessoa que os executou, deixando-se levar pelas emoções, confessa-se ao leitor sob a forma de dolorosas recordações, associando-lhes o seu rosto somente nestas circunstâncias, algo que difere na maioria das obras dos autores anteriormente citados; contudo, estes crimes permanecem sem rosto na investigação policial. Com o lançamento da Colecção Sui Generis, e após tantos e variados temas já terem sido abordados nas suas obras colectivas, era inevitável que viesse a organizar uma antologia dedicada ao policial, especialmente quando o próprio organizador, apesar de apreciar diversos géneros literários, é amante aficionado da literatura policial. Uma Antologia de Contos Policiais jamais poderia ser olvidada nesta Colecção! Todavia, em Crimes Sem Rosto não se impõe a fórmula que exige a presença de um crime e do respectivo investigador para o desvendar. Haja ou não haja detectives ou personagens com funções similares envolvidos, podemos criar um bom enredo com contornos policiais. Mais do que a comparência (ou inexistência) do investigador que apresenta soluções, privilegia-se, nos textos deste livro, a presença de um ou de vários crimes sem rosto, logo, não desvendados, cujo mistério é ou pode ser conhecido apenas pelo leitor. São disso exemplo os contos de Grazielle Pacini Segeti, Manuel Amaro Mendonça e Teresa Morais. No primeiro caso, as polícias chilena e brasileira que investigam a morte de uma mulher num tonel de vinho não chegam ao autor desse crime, que se revela so11


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mente ao leitor. No segundo caso, um jantar natalício que decorre na tranquilidade familiar só é perturbado pela notícia de outro homicídio ocorrido em escassos meses, sem que a polícia vislumbre qualquer pista que a conduza ao assassino, mas o leitor vê-lo-á a desfazer-se da arma do crime. No terceiro caso, a autoria dos assassinatos que abalam uma pacata aldeia, cometidos por uma reservada mas afável solteirona, apenas interessada no seu tricot e na sua jardinagem, só será revelada na mente da criminosa. Cito ainda o texto confessional de William Schmahl Barros cuja protagonista desprovida de algum tipo de arrependimento ou remorso se desnuda assumindo os seus crimes para justificar o seu sucesso profissional: Todas as mortes foram necessárias para que eu me tornasse quem sou hoje. Podia mencionar mais exemplos, mas não me parece conveniente expor a totalidade dos contos neste prefácio. E se a obra no seu todo contém outras estórias cujos crimes narrados se desvendam no decorrer das tramas, afastando-se do tema proposto, não deixa de ser verdade que, pelo menos por algum tempo, os mesmos ter-se-ão mantido sem rosto. Na cena real, inúmeros crimes permanecem demasiado tempo sob investigação até que a verdade seja conhecida, mas também há aqueles cujos malfeitores nunca são descobertos. Ainda que, por vezes, se verifique (em assassínios, por exemplo) algum crime perfeito, sem qualquer rosto associado, a maioria dos casos acaba sempre por ganhar, mais cedo ou mais tarde, um rosto. Nos textos que integram esta antologia literária, escritos por 18 autores portugueses e brasileiros, mais importante do que a solução do crime, ou a revelação do criminoso, é a existência do crime que não é desvendado na sociedade em que se insere, logo, que não tenha um rosto visível, apesar de, com bastante frequência, os autores desses crimes deixarem transparecer ao leitor, nalgum momento, as suas façanhas. Boas leituras! Isidro Sousa

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À PROCURA DO RENOIR Ana Campos

Era inverno, lá fora soprava um vento forte que contrastava com a calmaria que reinava naquela rua. Pouco passava das 10 horas da manhã. Cecília, a empregada, sente-se gelada. Apreensiva e já com a voz embargada, corre para o telefone, quase soluçando e muito trémula, o número marca e vai esperando... Do outro lado da linha, ouve-se um “Estou” em voz vigorosa e altiva. – Senhor Rodolfo, rápido, venha rápido! Desapareceu o Renoir! – O que estás dizendo, Cecília? O coração começa a palpitar, a cabeça a rodar. Não podia estar a acontecer tal coisa... Quase que nem as palavras consegue articular... Mas porque é que isto foi acontecer numa altura em que precisou de viajar?! – Sim. Desapareceu o Renoir – continuou Cecília. – A sua filha deu uma festa aqui em casa ontem à noite, e eu hoje, quando fui limpar a sala, reparei que o quadro não estava na parede. – Oh, chama imediatamente a polícia. Nós vamos já para aí... Por volta das 11:30, chega à vivenda da família Ramires Correia um agente da Polícia Judiciária. Depara com uma linda mansão, pintada em cor de carmim, com um enorme jardim e belo pomar defronte para o mar. “Que maravilhoso palacete!”, pensa. “Vou já fotografar.” 13


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A empregada Cecília, num estado de grande ansiedade, mal podia esperar, e ia pensando como tudo se havia de solucionar. – Bom dia. Sou o agente Pereira da Polícia Judiciária. Dá-me licença que entre? – Entre, entre – diz Cecília, enquanto prendia os seus cabelos negros, que tão bem combinavam com aqueles olhos rasgados e esverdeados. Alice, que estava no quarto descansando, ouve a conversa e vaise aproximando... – Esta é a menina Alice. Os seus pais estão em viagem mas já vêm a caminho. Ficaram muito abalados com o sucedido! – Ah, pois... Então conte-me, menina Alice. O que se passou aqui ontem à noite? – Oh! Foi uma festa que eu dei aqui em casa. Juntei os meus amigos todos para nos divertirmos. – Divertir?! Como? A senhora Cecília contou-nos que houve muito barulho, muita confusão, com música altíssima e até alguns copos partidos. Foi de tal ordem ensurdecedor que ela teve necessidade de se recolher e fechar no quarto. Ao que parece, o ambiente estava ao rubro – retorquiu o agente veemente. – O que se passou aqui, menina Alice? Vou precisar de saber tudo. Alice, já com um visível nervosismo e voz trépida, procura o seu casaco de lã, pois o frio era muito nessa manhã. Sentia-se exausta, tinha dormido pouco na noite anterior. E agora pensava: como poderia ter desaparecido uma peça de tanta estima e valor? Até lhe subiu um calor... – Por favor, senhor agente Pereira, lhe peço. Não conte nada aos meus pais, da festa. Os meus amigos beberam um bocado, excederam-se... E, para além disso, os meus pais nunca gostaram de alguns amigos que aqui estiveram. Jamais queriam que eles viessem aqui a casa. Alguns até já tiveram problemas com a polícia. – Problemas? Estou ficando curioso... Que género de problemas? 14


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– Oh, como lhe hei-de dizer? Drogas e outras coisas assim... Mas são pessoas de bem e nunca iriam roubar o quadro. Nunca fizeram mal a ninguém. Isso posso garantir. – Acha? E esses amigos são cá de Cascais? É que eu vou ter de falar com eles. – Sim. Alguns são; outros, conheci através do facebook. – Está certo! Vai ter que me dar os nomes deles. Vou ter de os interrogar. Quem são eles então? – pergunta o agente Pereira extremamente interessado. – É o Zé-Zé, que toca numa banda. O Tony pratica artes marciais. E a Marta é a minha grande amiga de infância. São todos de Cascais. – Mas e os outros? Eram mais!? – Sim. O Carlos, o Pedrito, a Isabel e a Teresa, que conheci no facebook. – E que fazem eles? – Não sei bem. Conheci-os recentemente. Mas sei que adoram festas, tal como eu. São muito fixes. Por isso, resolvi juntá-los todos aqui. – Ah, muito bem! Diga-me só mais uma coisa: tiraram fotografias da festa? – Não, não. Não cheguei a tirar. O ambiente estava muito bom; envolvidos pela música, até nos esquecemos. Bem, só depois de a festa ter terminado e de eles se terem ido embora é que tirei umas selfies para colocar no facebook e agradecer ao grupo. – Hum... Isso é bom. Vou precisar de ver essas fotos – prossegue. – E o que beberam? Com um nítido desconforto, estampado no rosto rosado, dando um suspiro: – Nada disto estava previsto... Tenta nomear algumas bebidas que degustaram de que se lembra. O grupo trouxe algumas e as garrafas vazias tinham ido já para o lixo. 15


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– Gin, whisky e algumas cervejas. É tudo que me lembro – diz. – Pois, pois, estou vendo... Já por volta das 14 horas, o agente Pereira saiu de casa da família Ramires Correia, depois de feito todas as diligências. Por conseguinte, com alguma delicadeza avisou: voltará no dia seguinte. Entretanto, Alice ligou à amiga Marta a informá-la do que se estava a passar e que também ela, assim como todos os outros amigos, iriam ser interrogados. Marta ficou logo muito assustada e em grande alvoroço. Já nem conseguiu acabar o almoço. Mas concluiu dizendo que poderia contar com ela para o que fosse preciso. No dia seguinte, como estava combinado, o agente Pereira, às nove horas da manhã, volta à casa da família Ramires Correia. Encontra já na residência o pai da menina Alice e vai mesmo ter de lhe dizer que houve aqui malandrice... O senhor Rodolfo, levantando-se da sua poltrona, poisa a chávena de chá e dirige-se ao agente Pereira. – Então, já cá está?! Deduzo que tenha novidades... Recuperou o quadro? Já conseguiu interrogar todos aqueles malandros? – Calma. Calma, senhor Rodolfo. A investigação está a decorrer. Já falei com alguns, mas não está muito facilitado. Há uns quantos que nem sequer se lembram onde foi a festa. O Tony, esse nem se manifesta. Mas também não me parece lá muito conhecedor de arte. A não ser o tal de Zé-Zé, que é todo espertalhão, mas pareceme que é um pouco aldrabão. Calculo que o quadro esteja no seguro. Assim, sempre ficamos mais tranquilos. Depois vou precisar da apólice, e naturalmente fazer algumas perguntas a si e à D. Laura. Mas diga-me: além da empregada, tem mais alguém aqui em casa? – Não. Só a minha esposa Laura, mas estava comigo em viagem. E a senhora Cecília, que já trabalha cá há muitos anos. Ainda o meu pai era vivo. Mas a Cecília é pessoa de muita confiança! – Sabe, senhor Rodolfo, estive a ver umas fotos que a sua filha pôs no facebook e tenho algumas dúvidas. Passarei aqui de novo amanhã. Vou precisar que estejam todos cá em casa, impreterivel16


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mente. Mas ainda no próprio dia, o agente, sem que ninguém o espere, volta à casa da família Ramires Correia. Ficou tudo muito apreensivo. Literalmente, ninguém sabia de nada. Só o esperavam no dia seguinte. O que houvera de novo? O que aconteceu? Será que o Renoir apareceu? Expectantes, foram escutando o que o agente Pereira teria para dizer. Mas ele continuou com o interrogatório. Era importante que todos se conseguissem acalmar e concentrar, para o poder finalizar. Eles olham uns para os outros e interpelam-se: como pudera ter acontecido tal coisa? Um quadro tão valioso, que tivera sido herança do pai do senhor Rodolfo. E que há tantos anos estava em posse deles... Inquieto, o senhor Rodolfo, num impulso, olhando fixamente a filha, lembra-se do namorado que ela teve... Aquele rapaz vendedor de motas, que trazia sempre no bolso um molho de notas. Andava sempre vestido de gangas. Era espadaúdo, tinha o cabelo ruivo e fizera também parte do grupo. “De noitadas e dos excessos de álcool”. Será que ele também esteve aqui em casa e a filha não lhe quis dizer? Será que ela contou tudo ao pormenor, ou escondeu alguma coisa? Num breve silêncio, tudo lhe passou pela cabeça. Tivera muitos problemas com ele e até o proibiu de entrar lá em casa. Por momentos, perde-se em pensamentos... Até parecia que estava a alucinar. Veio-o a acordar o agente Pereira. – Sabe, senhor Rodolfo, vou precisar de ir ao computador da sua filha, para ver de novo as fotos. Não se importa de mas mostrar, menina Alice? – Vamos lá então – disse ela. – Oh, é essa mesma, justamente! Amplie um pouco. Diga-me: a que horas tirou esta foto? – Não sei precisar bem. Foi um pouco antes de me deitar, lá para as duas horas da manhã. 17


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– Os seus amigos já se tinham ido embora? – Sim. Já tinham saído há algum tempo. – Ó senhor Rodolfo, espreite aqui. Veja este pormenor no cantinho da foto. O que lhe parece? Espantado, o senhor Rodolfo observa um canto do seu Renoir. Isso surpreendeu-o. Alguma coisa estranha estava a acontecer... – Ó senhor agente Pereira, o que está achando disso? – Agora preciso de falar com a senhora Cecília, pode chamá-la? – Sim, sim. Vou já chamar. *** – Diga, senhor Rodolfo. O que precisa de mim? – O agente Pereira precisa de lhe fazer umas perguntas. – Ora diga lá então, por favor. – É verdade que os rapazes saíram por volta da uma hora da manhã? – Sim. Devia ser mais ou menos isso. – Muito bem. Vou pedir-lhe só mais uma coisa. Se me permite, preciso de ir ao seu quarto. – Precisa de ir ao meu quarto porquê? Só lá tenho as minhas roupas e pouco mais... – Nesta foto conseguimos visualizar que o quadro, depois de a rapaziada ter saído, ainda continuava na parede. Cecília entra num pranto. D. Laura intervém: – Ó Cecília, estás chorando porquê? Vai lá, acompanha o agente Pereira ao quarto. Ela continuava soluçando... – Porque estás em prantos? Ninguém está a duvidar de ti. Tudo tem de ser examinado, para que a investigação prossiga. – Não posso, não posso. Não me façam isso. Não posso! – Vá lá, agente Pereira, acompanhe a Cecília ao quarto dela. Entorpecida, ela grita: 18


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– NÃO!!! – Mas porquê?! Porquê? Do que tens medo, Cecília? – Peço desculpa, é que eu guardei o quadro no meu quarto. – Guardaste o quadro? Para quê? – Era para ajudar o meu filho, que se encontra em grandes dificuldades. Eu pensava vendê-lo. Estupefactos... Todos se olham, sem saber o que dizer. Incrédula, D. Laura emudece e o nervosismo vai tomando conta dela... começa a ficar pálida, amarela. Aproxima-se da janela. O senhor Rodolfo, com ar sério e muito preocupado, já se sentindo embaraçado, vai virando a cara para o lado e profere: – Não havia necessidade de fazeres uma coisa destas. Porque não me disseste? Bem sabes que te ajudaria. Não devias ter feito isto. Era a última coisa que eu esperaria de ti. D. Laura, não entendendo nada, já bastante perturbada, ergue-se para tentar perceber. Pede explicações para o sucedido. – O que estão dizendo?! Tu tens um filho? Rodolfo, que sabes tu disso? E tu, Cecília, pára de chorar e conta-me: de quem é esse filho? Conta, conta! Vais ter de contar tudo. Vou querer saber até ao ínfimo pormenor. – Eu não tive culpa, minha senhora... Não tive culpa. – Não tiveste culpa de quê? – Eu era muito nova quando vim para esta casa trabalhar, como a senhora se deve lembrar. Um dia, quando a senhora estava doente, eu fui dar um passeio pelo jardim e o senhor Rodolfo aproximou-se de mim. E tudo aconteceu aí... É ele o pai do meu filho. D. Laura, muito consternada, já com o semblante triste e amargurada, grita: – Sai desta casa! – Desculpe, minha senhora, eu nunca consegui lhe dizer. Nunca tive coragem de o fazer. Peço perdão... Eu tenho para com a senhora muita gratidão. E acredite: eu já não tenho nada com o patrão. E, retirando-se, vai à toilette para se ajeitar e começa a chorar... 19


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O agente Pereira, muito resoluto, com voz altiva e até um pouco bruto, avança: – Bom, senhora Cecília, vamos despachar. Agora não há tempo para se arranjar. Faça o favor de me acompanhar. Vamos ter de ir para a esquadra. E quanto ao resto, são assuntos familiares que a mim já não dizem respeito. Acho que vão ter muito que conversar...

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SEM ROSTO Angelina Violante

A vida era calma e pacata na aldeia de Alheiras, até que acontecimentos estranhos vieram perturbar a vida na pequena aldeia. As suspeitas recaíam sobre o novo vizinho que ainda ninguém tinha visto e a quem todos chamavam “sem rosto”, pois dizia-se que o motivo de não sair à rua era a deformidade que tinha no rosto, um rosto sem feições. Verdade ou não, ninguém o podia afirmar com certeza pois ninguém o tinha visto, embora todos soubessem onde ele morava, e as pessoas que lhe tratavam da casa e dele também não se abriam pois tinham vindo com ele. Mas os estranhos acontecimentos, que não eram mais nada senão crimes hediondos... todas as semanas aparecia uma rapariga morta e desfigurada na rua do largo da igreja. Mas as raparigas nem eram da aldeia, a polícia por vezes tinha dificuldades em as identificar devido ao estado lastimável em que eram encontradas. Era sempre D. Ernestina, coitada, que dava com as raparigas naquele estado, pois era ela que estava encarregue de abrir a igreja e deixar tudo pronto para quando o padre chegasse para rezar a missa. D. Ernestina, uma senhora já com sessenta anos mas muito rija, mesmo depois de ter encontrado três raparigas em três semanas consecutivas, não passava a sua missão a ninguém nem queria 21


ANTOLOGIA DE CONTOS POLICIAIS

acompanhamento policial. – O malandro que lhes fez este serviço há muito que se foi embora! Não ficava cá para ser apanhado, por isso estou em segurança! – Palavras de D. Ernestina. A polícia está completamente às escuras, não sabe por onde começar, nunca aconteceu nada remotamente parecido por aquelas bandas. A verdade é que a população está aterrorizada; embora as raparigas assassinadas não sejam de Alheiras, todos têm receio de sair à noite. Outra coisa que a polícia também não percebia era o porquê de os corpos serem deixados ali, pois tudo levava a crer que tinham sido mortas noutro local, uma vez que o chão não apresentava vestígios de sangue. Os mais supersticiosos diziam que era coisa do diabo ou então que alguém andava a fazer macumba. Todos andavam desconfiados e já não confiavam em ninguém, mesmo as culpas tendo sido atribuídas ao estranho novo vizinho, o tal “sem rosto”. Todas as vítimas tinham em comum o rosto desfigurado, daí ser tão difícil a sua identificação. A polícia já não sabia o que pensar... Será que o pároco da aldeia tinha algo a ver com isto? Mas como podia isso ser se ele era um homem idoso e muito respeitado, que todos conheciam há anos? Teria o sítio onde elas eram deixadas algo a ver com a igreja, já que era mesmo no largo desta que eram largadas? O mistério continuava. Numa aldeia onde toda a gente se conhecia as coisas começavam a mudar. Tirando o homem novo que se tinha mudado recentemente para a aldeia, e no qual ninguém tinha posto os olhos em cima, todos se conheciam e ninguém achava os vizinhos capazes de tal barbaridade. A polícia não estava habituada a lidar com crimes tão violentos, nem com crimes de espécie nenhuma, uma vez que Alheiras era uma aldeia pacata até há relativamente pouco tempo. E uma nova semana estava a chegar e todos à espera de um no22


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vo corpo aparecer... E foi isso mesmo que aconteceu, na manhã de segunda-feira. D. Ernestina lá ia para os seus afazeres na igreja quando deparou com o corpo da quarta rapariga. Para não destoar das restantes, tinha também o seu rosto completamente desfigurado. Mas mesmo com os rostos desfigurados, elas eram identificadas; levava mais tempo, pois tinham de recolher as impressões digitais e passá-las na base de dados, mas isso teria de ser feito na cidade pois ali na província não havia nada disso, nem nunca tinha feito falta. Foi aquando do aparecimento do quarto cadáver que a polícia local recebeu a identificação do primeiro cadáver; era realmente uma rapariga de fora, mais precisamente do Alentejo, mas que raio se estava a passar? A rapariga tinha sido dada como desaparecida na sua terra dois dias depois de ter sido encontrada assassinada no largo da igreja, será que eram todas do mesmo sítio? De uma coisa o encarregado da investigação, o polícia Arnaldo, tinha a certeza: nenhum dos habitantes da região tinha-se deslocado ao Alentejo nessa altura. As famílias eram todas oriundas daquela região, não havia ninguém com familiares fora, ou haveria? As coisas tornavam-se cada vez mais estranhas, até o médico legista tinha dificuldade em saber de que tinham morrido as vítimas, uma vez que não aparentavam maus-tratos, tirando o rosto completamente desfigurado, como que derretido, sem feições que as distinguissem. O resto dos corpos encontrava-se inviolado, seria algum fetiche de um tarado, um assassino em série como se via na televisão? E nos corpos não eram deixados vestígios nenhuns que não pertencessem às vítimas. O assassino não deixava rasto. Por incrível que pareça, houve então duas semanas seguidas em que nada aconteceu, mais nenhum corpo foi encontrado. Será que o assassino se teria fartado ou não conseguira apanhar mais nenhuma rapariga incauta? Assim que chegaram todas as identificações viu-se que as raparigas eram todas da mesma zona do Alentejo, Preguiça. Mais estra23


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nho ainda, nunca ninguém tinha desconfiado do pároco Fernandes, um velhote já conhecido por todos naquela altura, pois há já muitos anos que se deslocava dentro desta freguesia a fazer o seu trabalho. Mas assim que se tornou pública a região de onde eram oriundas as raparigas falecidas, o pároco ia tendo um colapso e resolveu pedir escolta policial. O que haveria de tão obscuro no passado do padre para tal? Só o próprio o sabia e nem à polícia o quis dizer, simplesmente argumentou que era oriundo da mesma terra que as raparigas e se eram encontradas no largo da igreja era para o incriminarem a ele. Mas como, se o padre não saía da freguesia há anos? Desde que ali fora colocado nunca tirara férias nem fora visitar a família. E pior ainda, pediu proteção para a família que se encontrava em Preguiça, pois tinha umas sobrinhas da idade das raparigas que foram encontradas mortas. A verdade é que tudo isto começava a afetar o agente Arnaldo, que já não conseguia conciliar o sono, estando o seu cérebro dando tantas voltas a tentar descortinar o enredo de todo aquele pandemónio. Mas uma coisa tinha como certa: teria de ir ele próprio falar com as famílias das vítimas, falar com a família do padre e ver com os seus olhos a terra que era a origem de tudo isto, Preguiça. Entretanto, enviara os corpos das raparigas para a capital, de modo a serem vistas por um médico legista competente, não que duvidasse da competência do Dr. Felismino, mas o que é certo é que o velhote estava destreinado e tantos anos sem praticamente nada fazer, sem ser dar consultas de clínica geral, e a sua apetência para a boa pinga o tinham levado um pouco ao desleixo e à embotação dos sentidos. Quando chegou a Preguiça, o agente Arnaldo não divisou nada de muito diferente da sua própria terra e pensou que seria muito mais fácil fazê-los sentir uma certa empatia por vir de uma terra tão parecida e que os soubesse deixar à vontade para lhe contarem os seus segredos. Pois alguma coisa se tinha passado por ali há muitos anos e tinha a ver com o padre Fernandes... 24


CRIMES SEM ROSTO

Não contou foi com o ensimesmamento da família do próprio padre, que parecia não querer colocar todas as cartas na mesa. Algo lhe dizia que o padre tinha o “rabo preso” e a família não se descosia por vergonha e que todos na localidade se “tapavam” uns aos outros, olhando para ele até com desconfiança; estava a ficar agastado com tudo aquilo... Era mais importante preservar a segurança das raparigas da localidade ou os segredos obscuros de um padre? Não lhe deixavam outra saída, teria de pedir o processo do padre desde que entrara no seminário até se ter formado, já que para lá tinha sido enviado desde tenra idade, uma promessa da mãe. Enquanto esteve fora, apareceu mais um corpo e o padre estava à beira de uma apoplexia, mas mesmo assim não se dava por vencido e não contava aquilo que guardava e que podia ser o desenlace de todos estes crimes hediondos. Mas ao menos uma boa nova também o aguardava, afinal sempre tinha razão por enviar os corpos das raparigas ao médico legista da cidade antes de os entregar às famílias. As raparigas tinham sido desfiguradas com ácido. Entretanto, resolveu colocar o padre entre a espada e a parede, ou ele se descosia ou então, quando chegasse o relatório do seminário, a verdade viria ao de cima. O padre ficou simplesmente sem ação. Então o agente Arnaldo voltou à carga: – Se realmente é um padre na verdadeira aceção da palavra, peço-lhe: conte-me o segredo que anda a encobrir. Que diriam os seus crentes quando vier a lume que tudo aconteceu por alguma coisa que o senhor fez no passado? Pense bem! E a verdade é que o padre pensou e repensou, naquela noite não saiu da igreja, pela primeira vez em toda a sua vida como padre; nunca tinha deixado uma missa por celebrar, nem por doença, mas neste dia o padre Fernandes sentiu que o seu mundo ruía, e tudo por causa de um miserável arrufo de colegas de quarto. Depois de levar toda a noite a pensar o que seria o mais correto a fazer, com o amanhecer uma decisão estava tomada, iria contar 25


ANTOLOGIA DE CONTOS POLICIAIS

tudo e que Deus lhe valesse. E quando D. Ernestina ia para as suas lides na igreja, ela até se assustou ao ver o padre sair de lá de muito má cara, e ele disse-lhe que nesse dia não haveria missa. Mas estaria tudo louco? *** O padre Fernandes abriu a sua alma e o coração ao agente Arnaldo. No seminário, partilhava o quarto com um rapaz um pouco mais novo do que ele, e acabaram por se tornar muito amigos. Eram cúmplices em praticamente tudo, confidentes um do outro, faziam tudo em conjunto, eram como se fossem irmãos. Até que um dia o tal rapaz disse que ia sair do seminário porque estava interessado noutra vida, uma vida normal, como lhe chamou, aquilo de não ter mulher e família não era para ele... Fernandes ficou sentido pois amava o seu colega como mais que um amigo, um irmão, amava-o como um homem ama uma mulher e não podia consentir em ser deixado por uma galdéria, era o que ela devia ser, pois ele só tinha vindo com essa conversa depois de ter ido passar umas férias a casa, por altura do casamento de uma das suas irmãs. A verdade é que ele tinha convidado Fernandes para o acompanhar, melhor teria feito se tivesse aceitado, mas Fernandes não era dado a festas e a tais bulícios, ele gostava era do sossego. Se tivesse aceitado o convite não teria deixado o seu amigo cair nas garras de uma galdéria, só o podia ser porque, da maneira que o amigo falava dela, tinham feito muito mais que amizade, e o parvo caíra pois nunca tinha tido mais lidação com mulheres que a mãe e as irmãs. Mas ele, Fernandes, sabia bem que as mulheres não eram de confiança, pois se assim fosse ele seria filho não só de sua mãe mas também de seu pai, como o eram as suas meias-irmãs; a mãe metera-se com um homem enquanto o pai fora trabalhar uns tempos fora e o resultado foi ele. Daí a promessa da mãe: se o pai o aceitasse como filho dele e continuasse com o casamento, assim 26


CRIMES SEM ROSTO

que tivesse idade iria para um seminário. O agente Arnaldo nem queria acreditar naquilo que estava a ouvir, mas o padre ainda não tinha acabado... O seu amigo resolveu expor o caso aos superiores e já tinha deixado tudo apalavrado com a família. Os ciúmes corroíam Fernandes, que dava voltas à sua cabeça para achar uma maneira de acabar com aquele disparate. Até que teve uma ideia peregrina, ia esperar que o amigo estivesse a dormir para lhe deitar um pouco, mas só um pouco, de ácido na cara, para o desfigurar ao de leve, já que ele não calava que a tal galdéria lhe admirava muito o belo rosto; assim, se o desfigurasse um pouco, só ele o poderia amar verdadeiramente. O plano correu mal. Fernandes só queria deitar um pouco de ácido no rosto do amigo, mas o pior é que o amigo adormecido, assim que sentiu o ácido queimar, começou a esbracejar e acabou por derramar todo o conteúdo do frasco na cara, desfigurando-o por completo e deixando-o às portas da morte. Fernandes nunca abandonou a sua cabeceira, até ele recuperar os sentidos e conseguir voltar a falar e a ver, mas assim que lhe contou o que fizera, e porque o fizera, nunca mais o amigo o quis ver. O amigo abandonou o seminário, voltou para a sua família, e Fernandes nunca mais soube nada dele... Se alguém estava a cometer aqueles crimes para o fazer falar, era o seu amor, Bernardo. Quando acabou, o padre Fernandes parecia que tinha mirrado aos olhos do agente Arnaldo, o homem parecia uma sombra daquilo que tinha sido, um morto-vivo. Restava saber onde encontrar esse Bernardo, confrontá-lo com o depoimento do padre Fernandes e ver o que sairia daí. *** O padre Fernandes, para espanto de todos, resolveu chamar os fiéis à igreja e contou-lhes o que acabara de contar ao agente Arnaldo. Os pobres crentes não sabiam o que pensar, só lhes vinha à 27


ANTOLOGIA DE CONTOS POLICIAIS

ideia uma coisa: o mundo estava perdido! Assim que a notícia do desabafo do padre começou a ser falada em Alheiras, o vizinho, o tal “sem rosto”, apareceu na igreja, na última missa rezada pelo padre Fernandes, e para espanto de toda a congregação subiu ao púlpito e começou a falar... Confessou que era o tal Bernardo, que tinha sido ele a matar aquelas raparigas, pensando tratarem-se das sobrinhas do padre Fernandes, porque queria vingança, já que nada na terra o detinha, a sua vida estava por um fio, pois era um homem que nunca soubera o que era ficar doente e desde as queimaduras ele apanhava tudo, parecia uma esponja. E o seu amor, que iria casar com ele quando voltasse para a aldeia, assim que lhe viu o rosto nunca mais lhe falou, e acabou por casar com outro. A sua vida estava acabada, nunca ninguém o quis, mulher nenhuma se interessou por ele, passou a viver escondido, fazendo negócios que o faziam ser muito rico, mas de nada lhe valia a riqueza, pois não conseguia preencher o vazio que trazia dentro de si. Disse que morreria dentro de dias e que já tinha deixado toda a sua fortuna entregue aos familiares das raparigas que matara, mas iria levar o padre Fernandes com ele. E em plena igreja cheia e perante o olhar atónito da congregação, despejou um frasco de ácido pelo padre Fernandes abaixo, queimando-o de forma irreversível. Assim, dias mais tarde, morreu o padre Fernandes, envolto num grande sofrimento; nunca recuperou os sentidos desde que fora queimado, e no mesmo dia morreu Bernardo, o seu amor!

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