Machado #01

Page 79

Claro que não contei nada desses meus devaneios à minha mulher. Mal a convenci de que o moleque já tinha mais do que a idade suficiente pra fazer o que queria. Ela relutou sem parar, demorou um ano para o deixar fazer o maldito pulo. E, mesmo convencida, disse que não presenciaria o evento, eu que levasse e trouxesse, que não confiava nos amigos idiotas dele pra fazer uma coisa tão perigosa e irresponsável e nem sabia por que estava permitindo aquilo tudo, uma sandice sem tamanho. Ela, às vezes, dizia palavras como “sandice”. Pensei que ele ia ficar chateado de não poder ir com os amigos, já que é o costume, todo mundo se junta num só carro (preferivelmente 1.0, para deixar as subidas mais emocionantes) e vai, rindo o caminho todo, que nem nas propagandas das montadoras com um pop rock tocando seu refrão ao fundo sobre como a vida é maravilhosa. Acabou que ele nem se importou muito por isso, dizendo que ele até preferia fazer sozinho, que no final das contas na ponta da corda só cabe um. Já era hora. Eu filmei todo o local, fiz um panorama completo do cenário. Dali não se ouvia nada das pessoas da ponte, o único som captado era um ou outro pássaro piando. Dei o zoom (mais ou menos a metade do máximo possível, que era um absurdo) e vi o meu filho lá, camisa vermelha, se acoplando naquele elástico vermelho. O funcionário de lá dava as instruções finais de segurança, fazendo toda a gesticulação de praxe, como todas as outras vezes, parecia uma aeromoça bombada. Ri sozinho da própria piada. A imagem da câmera chacoalhou loucamente, filmando tudo menos o ponto do pulo. Tentei me controlar, ficar quieto, estabilizar a mão. Se continuasse daquele jeito, o filme estaria arruinado. Vai que o filme do pulo vira filme do mato da ponte, ou do asfalto onde parei o carro, ou de talvez outra coisa. Não. Eu precisava registrar esse momento adequadamente. Nunca mais haveria um momento como aquele, e aquela era a única chance de tê-lo para sempre. Às vezes eu me pegava pensando em coisas assim, a irrecuperabilidade das coisas da nossa vida. Não é só nos momentos únicos, mas nas migalhas mínimas da nossa rotina. Por exemplo, hoje de manhã foi a milésima sétima vez, digamos, que eu tomei café com adoçante por obrigação, e eu nunca mais vou tomar café com adoçante por obrigação pela milésima sétima vez, a próxima será a milésima oitava, uma coisa parecida, ao mesmo tempo que totalmente outra. Isso tudo piora se pensarmos nos momentos verdadeiramente únicos, como agora. Não só por ser a primeira vez (quase sempre a mais marcante), mas por ser algo que não se faz todo dia, nem


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.