Revista APDA #27 - 4º trimestre 2022

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ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE DISTRIBUIÇÃO E DRENAGEM DE ÁGUAS REVISTA ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE DISTRIBUIÇÃO E DRENAGEM DE ÁGUAS EDIçãO 27 4º TRIMESTRE 2022 Gestão de Conflitos no Uso da Água

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APDA

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EDITORIAL

Se por qualquer motivo existem restrições ao seu acesso é inevitável que, sob diversas formas, se exprima rivalidade entre os potenciais utilizadores e os conflitos no uso da água naturalmente apareçam. Estes podem assumir diversa natureza, extensão e gravidade. Podem envolver indivíduos, comunidades, regiões e Estados, podem ser internacionais, globais, regionais, nacionais e locais. Naturalmente que são em muito maior número nas áreas do globo onde a falta do recurso (escassez e seca) é maior. A gravidade e a própria duração do conflito variam substancialmente. Os motivos que originam os conflitos derivam sempre da ausência de recurso e da existência de diferentes interesses e prioridades dos atores em presença sejam eles económicos, sociais, políticos ou militares.

As causas são variadas. Podemos referir a competição pelo acesso ao recurso, entre os vários tipos de utilizadores, devido à escassez;

custos “financeiros” de acesso ao recurso elevados; insuficiência de infraestruturas (inexistência ou sub-dimensionamento); dificuldades de financiamento do investimento; falta de eficácia/eficiência na gestão das infraestruturas e na utilização da água; soluções institucionais inadequadas; exercício do poder e governança inábeis; desigualdade de poder entre as partes. Igualmente a utilização da água como instrumento de guerra é bem conhecido e, o que é mais grave, utilizado ainda hoje. O que se passa no Médio Oriente e mais recentemente na Ucrânia prova-o.

A existência de conflitos nasce com a história. A primeira referência na base de dados do Pacific Institute sobre conflitos no uso da água refere 2500 AC na Mesopotâmia como caso mais antigo. Preocupante é o que mostra este quadro em que se observa como os conflitos se alargaram nas últimas décadas.

A água é o “alfa e ómega” da vida.

O número de eventos de conflitos de água, 1980 a 2018

Os conflitos atrás referidos apresentam sempre um caráter violento. Ora, uma situação de crise hídrica não implica sempre, ou se pensarmos por ex. na europa, raramente implicará uma crise alargada que se transforma num conflito violento. De acordo com Mason e Siegfried, “a questão-chave é a de saber se os conflitos conduzem à violência ou se as diferenças são geridas de um modo não violento, isto é, através do diálogo e de mecanismos institucionais e legais.”1 Esta afirmação reflete o pensamento da generalidade dos autores que escreveram sobre o assunto, mas não

é clara quanto à questão de saber como o conflito ocorre, questão essencial para definir de que forma um conflito pode ser gerido. No dia-dia e mesmo em trabalhos científicos, os termos crise e conflito são utilizados como sinónimos, no entanto nem todos os conflitos de água têm origem em crises e por isso a gestão de conflitos deve ser vista de um modo mais abrangente. Uma crise significa sempre a rutura de um equilíbrio pré-existente surgida de um modo mais ou menos repentino. Ora os conflitos de água em regiões que sofrem de stress hídrico são essencialmente de outro tipo.

# EDITORIAL
100 90 80 70 60 50 40 30 20 10 0 E ventos por ano 1 980 1 981 1 982 1 983 1 984 1 985 1 986 1 987 1 988 1 989 1 990 1 991 1 992 1 993 1 994 1 995 1 996 1 997 1 998 1 999 2 000 2 001 2 002 2 003 2 004 2 005 2 006 2 007 2 008 2 009 2 010 2 011 2 012 2 013 2 01 4 2 015 2 016 2 017 2 018

Neste número da Revista são abordadas várias das formas que esta problemática assume.

A Prof.ª Manuela Moreira da Silva analisa o conflito do uso da água entre os humanos e a natureza; e o Comandante Rodrigues Pereira aborda ”As guerras da água: geopolítica e geoestratégia de um bem fundamental”. O Dr. Nuno Lacasta introduz o tema essencial da relação com Espanha, dado as nossas maiores bacias hidrográficas serem partilhadas com o nosso vizinho, abordando a Convenção de Albufeira. Por último, o Eng.º Manuel Moras escreve sobre o que designa por “Conflito institucional da água” e a Prof.a Manuela Simões sobre os trade-offs entre infiltração e recarga.

A todos o nosso agradecimento.

APDA
1
Water Conflicts, Compiled by: Simon J. A. Mason (Center for Security Studies, ETH Zurich), Tobias Siegfried (hydrosolutions GmbH ) , visto em http://www.sswm.info/content/water-conflicts J. Henrique Salgado Zenha Vice-Presidente do Conselho Diretivo da APDA
ESPAÇO CONSELHO DIRETIVO

Água. Usos. Conflitos

Neste Portugal já do fim do primeiro quarto do século XXI, a junção destas três palavras não desperta uma preocupação intensa, nem sequer uma apreensão imediata da dimensão da sua ligação pela maior parte dos portugueses. Uma primeira reflexão pode levar à perceção do excesso do uso da água para certo tipo de agriculturas intensivas, com consequentes repercussões nas disponibilidades dessa região, mas em geral o País vive numa doce dormência quanto à água, seja porque a zona temperada em que nos inserimos tinha poupado até há pouco o impacto de secas severas, seja porque as políticas públicas puderam, salvo raras exceções, assegurar o abastecimento de água para consumo humano em quantidade e qualidade.

É preciso acordar dessa dormência.

Sendo a água o maior dos bens, para além da vida, e sendo condição essencial da vida, não é aceitável que estejam afundadas na perceção pública e nas prioridades públicas as muitas questões conflituais que afetam a sua utilidade e a sua utilização.

Poderíamos descrever graficamente os conflitos do uso da água como um conjunto de círculos concêntricos, em que os círculos menores são os mais densos e fundamentais, mas também aqueles em que a intervenção corretiva é mais complexa, e os outros, sucessivamente, correspondem a conflitos importantes, mas progressivamente mais suscetíveis de racionalização e da aplicação medidas de médio ou curto prazos.

O conflito primordial é o que opõe, na Idade Contemporânea, a proteção da Terra e o impacto humano na gestação das alterações climáticas e nas suas repercussões no ciclo da água. Se pusermos uma hipótese teórica de inexistência do Homem e, sobretudo, do Homem contemporâneo, concluímos facilmente que o equilíbrio ecológico da Terra seria bem maior para a generalidade das espécies animais e vegetais. Esta simples constatação implica a primeira responsabilidade perante a água: por isso, nós, os que trabalhamos no setor da água, temos uma especial responsabilidade em contribuir para a sustentação de todas as medidas que visem promover a mitigação das alterações climáticas.

Uma outra face desse conflito, também essencial, corresponde ao confronto entre a proteção dos recursos hídricos em si próprios e a sua destruição, decorrente do excesso de utilização, desperdício ou poluição. Este conflito implica um macro-entendimento dos recursos hídricos e, como consequência, uma perspetivação harmónica, global e não fracionada das políticas públicas sobre todos os usos da água. E, claro, a subordinação das políticas aos princípios básicos: usar, mas não abusar, usar sem estragar e, se for necessário interferir no ciclo da água, fazê-lo devolvendo a água utilizada aos meios recetores nas melhores condições possíveis.

Parece lógico, mas nem sempre a lógica conduz à sua aplicação. Por exemplo, reduzindo este tema à escala nacional, não deveria haver planos de rega para a agricultura que ignoram os outros usos da água, nem investimentos em saneamento de águas residuais sem articulação com a solução da

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"É preciso acordar dessa dormência.”

ESPAÇO DO CONSELHO DIRETIVO

poluição pecuária, nem quase liberdade de captação de águas subterrâneas ao lado de grandes e disponíveis empreendimentos de abastecimento de água.

Um segundo nível de conflitos é o que respeita a confrontos geoestratégicos gerados pela água.

Por um lado, as guerras em que a água é um fator de eclosão, como aconteceu recentemente na revolução síria, ou um elemento de risco, como o novo e grande aproveitamento etíope no Nilo Azul para ansiedade do – mais forte – Egito, ou os conflitos larvares em que o controlo dos rios é um sério vetor de pressão estratégica, como a intervenção chinesa nos rios do Tibete, com construção de barragens a montante do subcontinente indiano e da península indochinesa.

Por outro lado, a terrível diferenciação do acesso à água entre os países desenvolvidos e o Terceiro Mundo. De facto, deveria ser quase vergonhoso para um cidadão europeu queixar-se das condições de fornecimento de água ou do seu módico preço (quando haja tarifas sociais e para famílias numerosas), se pensar que em muitas zonas das cinturas desérticas e semidesérticas do Mundo, um cântaro de água de má qualidade representa um enorme esforço de transporte ou um garrafão de água pode ser ainda mais caro do que em Portugal, onde, por litro, custa 150 a 200 vezes mais do que a mesma quantidade de água da torneira, incluindo a rejeição desta após tratamento. Há aqui conflito, perguntar-se-á? Sim e bem grave, bastando olhar para o que representa para muitos africanos a sua necessidade de fuga às origens e o progressivo encerramento das fronteiras europeias.

Outros conflitos estão mais próximo de nós e da possível intervenção dos atores relacionados com água; próximos, mas nem poucos, nem fáceis.

A dimensão económica é um dos mais surdos dos conflitos do setor da água, mas, contraditoriamente, muito relevante.

As diretivas europeias sustentam os princípios do consumidor-pagador e do poluidor-pagador e, antes disso, já a legislação portuguesa o previa, mas continua o País a resistir, em largas faixas de opinião e de prática, à respetiva aplicação, fazendo o contribuinte-pagador perder nesse confronto. Também estes princípios têm uma outra face, ainda mais prejudicial, correspondente à persistência da ausência ou limitação de contas certas em várias entidades gestoras dos serviços da água, no sentido de que as respetivas receitas e gastos se mantêm misturados “à molhada” com outros proveitos ou despesas: é um pouco a política da avestruz, em que mais vale não saber bem – e mostrar – se se gasta muito ou recebe pouco, porque depois talvez seja preciso aumentar algo a tarifa e lá se podem perder eleições… Compreendendo-se a dificuldade da face da recuperação de gastos e as cautelas em muitos casos necessários à sua progressão, não é aceitável que o princípio da confusão de gastos e subsídios escondidos presidam a uma atividade com grande relevância económica e social.

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Novos desafios surgem para os serviços da água e, com eles, zonas de melhoria para o recursoágua, mas também zonas de conflito.

A dimensão de poupança de recursos tem valorizado a previsão do recurso a água para reutilização (ApR) e têm, até, sido definidas metas quantitativas ambiciosas, em percentagem das águas residuais tratadas nas ETAR existentes em Portugal ou em número e dimensão das ETAR que devem produzir ApR. Concordando-se com a importância, em algumas regiões e para certos fins, do uso de ApR, terá a dimensão económica sido lembrada? É que o recurso a ApR está longe de ser necessário por igual em todo País e alguém tem de pagar os sobrecustos da sua produção e – mais significativos – da sua distribuição. Ora, por um lado, nem todos os potenciais utentes estão preparados para suportar esses custos, por outro, podem tais custos ser mais elevados do que os da água para consumo humano disponível e, ainda por outro lado, tem de ser salvaguardado o equilíbrio das entidades gestoras de abastecimento de água.

Conflito de interesses idêntico se coloca com a gestão das águas pluviais: podendo fazer sentido a sua gestão conjunta com a das águas residuais urbanas, não é possível aceitar que os custos correspondentes deixem de ser cobertos pelos impostos municipais e sejam suportados por consumidores de água que não produzem essas águas pluviais nem as consomem.

Também no âmbito interno dos serviços da água há novas áreas de colisão, resultantes da persistente necessidade de fazer face a investimentos de reabilitação, de combate às perdas de água, de solução para o tratamento de lamas, ou seja, de investimentos e custos ligados à sustentação técnica e ambiental, quando surgem vetores de perturbação do statu quo, como a inflação e a escassez de certos produtos: como privilegiar investimentos necessários, se disparam os custos de energia e as receitas não dão para tudo? Não é um conflito menor…

Finalmente, um dos mais difíceis confrontos do setor da água é com o silêncio: o paradoxo dos serviços da água é o de que quanto pior se está, mais se fala e mais se elogia um pequeno progresso; quanto melhor se está, menos se fala e, portanto, mais se ignora. Não é com certeza, a única atividade em que isto acontece; mas é bem mais marcante no nosso caso, porque muito foi feito e, sendo o investimento em grande medida subterrâneo, a enorme dimensão do esforço efetuado passa inda mais despercebida.

O pior que pode acontecer aos conflitos é deixá-los correr. Enfrentemo-los, pois.

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"O pior que pode acontecer aos conflitos é deixá-los correr. Enfrentemo-los, pois.”
Conflito institucional da água Infiltração e recarga na renovação de reservas hídricas subterrâneas Usos da água para os humanos versus natureza - Conflito ou pacto de sobrevivência? Manuel Moras Manuela Simões 42 48 14 Manuela Moreira da Silva As guerras da água - Geopolítica e geoestratégia de um bem fundamental JOSÉ ANTÓNIO Rodrigues Pereira 22 Convenção de Albufeira Nuno Lacasta 36
EVENTOS
INFOGRAFIA 58 60
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Desilusão juvenil Deterioração da saúde mental Estagnação prolongada Atividades económicas ilegais Poluição prejudicial saúde Desastres geofísicos Migração involuntária Doenças infecciosas Contestação de recursos geopolítico Confrontos geoeconómicos Falha

infraestrutura pública Erosão da coesão social Colapso da segurança social Colapso do multilateralismo Falha na ação climática

ATUALIDADE

ATUALIDADE

USOS DA ÁGUA PARA OS HUMANOS versus NATUREZA - CONFLITO OU PACTO DE SOBREVIVÊNCIA?

Manuela Moreira da Silva Professora na Universidade do Algarve, Investigadora no CEiiA e CIMA

Bióloga, Mestre em Ecologia Aplicada e Doutora em Ciências e Tecnologia do Ambiente pela Universidade do Porto. Professora no Instituto Superior de Engenharia da Universidade do Algarve, Diretora do Mestrado em Ciclo Urbano da Água, Responsável pelo Grupo Disciplinar de Hidráulica, Recursos Hídricos e Ambiente do Departamento de Engenharia Civil, Membro da UAlg na Cátedra UNESCO em Ecohidrologia – Água para os Ecossistemas e Sociedades, Investigadora Principal no CEiiA onde integra a Direção do CoLAB Smart and Sustainable Living, Investigadora no Centro de Investigação Marinha e Ambiental, CIMA-ARNET. Atualmente desenvolve investigação em ecohidrologia urbana, em estratégias de adaptação às alterações climáticas nas cidades para sequestro de carbono e implementação de origens alternativas de água como as ApR e a dessalinização.

“... numa sociedade informada e focada na construção do futuro, não faz sentido a existência de conflitos entre o uso da água para os humanos e para a Natureza, porque sem esta também a humanidade se extinguirá!”

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atualidade

Este ano de 2023 que agora se inicia, traz à humanidade oportunidades para superar grandes desafios sociais, à escala local e global, com destaque para a urbanização crescente, as desigualdades económicas, as alterações climáticas e a perda de biodiversidade, este último provavelmente, o mais intangível para o cidadão comum. Estes desafios encontram uma

Europa (ainda) em guerra, a enfrentar um inverno para muitos com frio e fome, e onde se tentam desenvolver soluções que capitalizem as lições adquiridas na última pandemia, responsável pela morte de mais 6 642 800 pessoas (WHO COVID-19 Dashboard, 2022). Neste contexto, a distribuição de água potável, primeiro no cenário de pandemia e depois da atual guerra na

Ucrânia, tem sido um tema permanentemente abordado, incluindo nos media, mostrando bem o importante retorno, sobretudo para os mais vulneráveis, dos grandes investimentos realizados nas últimas décadas no domínio do ciclo urbano da água. Mas o trabalho nunca está terminado... e a nível nacional, 2022 foi um exemplo disso. Muitos esforços foram investidos

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USOS DA ÁGUA PARA OS HUMANOS versus NATUREZA - CONFLITO OU PACTO DE SOBREVIVÊNCIA?

# atualidade

pelos diversos stakeholders para promover resiliência à acentuada escassez de água. Utilizando-se diversas abordagens, apostou-se no envolvimento das pessoas e das entidades para a eficiência do uso da água e em simultâneo têm-se implementado origens alternativas, sobretudo para usos não potáveis, urbanos e agrícolas. Mas 2022 foi também um ano que mostrou que a gestão da água, ainda tem um longo caminho a percorrer, e que o país tem falta de recursos para responder a eventos de precipitação forte e persistente, cada

vez mais frequentes. O ano hidrológico 2022-23 iniciou-se com um aumento significativo de precipitação (Figura 1), enfrentamos nas últimas semanas do ano graves inundações urbanas, sobretudo no sul do país, com irreparáveis danos humanos e avultados prejuízos materiais. Perante estes acontecimentos, parece agora existir um alinhamento de políticas, para se encaminhar, reter e aproveitar a água “que nos cai do céu”, sendo imperativo acautelarem-se vários aspetos fundamentais, nomeadamente: o facto do país não se resumir

à sua capital, e portanto da necessidade de se cumprir justiça social e de se viabilizarem soluções inclusivas para outras zonas do território, igualmente vulneráveis a este tipo de eventos;

(2) capitalizando o que vivenciamos na pandemia, não se recorrer apenas as soluções tecnológicas de engenharia convencional, desenvolvendo-se sempre que possível soluções baseadas na Natureza, que para além de nos ajudarem a gerir a água, nos assegurem outros serviços ecossistémicos igualmente importantes para as pessoas.

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out 1000.0 900.0 800.0 700.0 600.0 500.0 400.0 300.0 200.0 100.0 0.0 Ano hidrol. 2022/23 Normal 1971-2000 Ano hidrol. 2021/22 Precipitação (mm) nov dez jan fev mar abr mai jun jul ago set
Figura 1 - Precipitação mensal acumulada nos anos hidrológicos 2022/23, 2021/22 e precipitação normal acumulada 1971-2000 (IPMA, 2022)

Olharmos para o cenário atual, numa perspetiva meramente setorial e tecnológica, poderá levar-nos à incapacidade de protegermos a sociedade atual das alterações que (já) vivenciamos e a não acautelarmos as necessidades das gerações futuras. Nas últimas décadas, a par da inovação tecnológica têm-se desenvolvido muitos esforços científicos no estudo de como a Natureza funciona e de como pode beneficiar as pessoas. É agora o momento para transformarmos este conhecimento em ações locais, centradas nas necessidades das pessoas de forma inclusiva, sustentável e harmoniosa, cumprindo o desafio do Novo Bauhaus Europeu, e tirando partido do digital, com produtos ciber-físicos que nos levem a uma gestão cada vez mais preditiva, de forma a não desperdiçarmos recursos naturais e a acautelarmos a qualidade de vida das pessoas.

Crise climática e perda de biodiversidade

Em 1987, quando a população mundial atingiu os 5 mil milhões

de pessoas, o Relatório Anual das Nações Unidas com o título Our Common Future fez referência pela primeira vez à necessidade de se apostar num Desenvolvimento Sustentável, para se responder às necessidades das gerações (então) atuais sem se comprometer os recursos necessários para as gerações futuras. Passados vinte e oito anos e já ultrapassados os 7,2 mil milhões de pessoas, foi publicada a Agenda 2030 integrando 17 Objetivos fundamentais para o Desenvolvimento Sustentável (ODS), com metas definidas e organizados em cinco eixos de atuação (Figura 2), as pessoas (do ODS 1 ao ODS 6), a prosperidade (do ODS 7 ao ODS 10), o planeta (do ODS 11 ao ODS 15), a paz (ODS 16), e as parcerias (ODS 17). Ultrapassamos em novembro de 2022 os 8 mil milhões de pessoas, num momento de especial fragilidade para os eixos da paz, das parcerias e da prosperidade, sendo de prioridade absoluta o desenvolvimento de ações locais centradas nas pessoas e no planeta. No século que se quer da descarbonização, garantir as necessidades de todos, em termos de água, energia e alimento, exige

uma grande redução de desperdícios e a adaptações locais aos diversos efeitos das alterações climáticas, já tão vivenciadas em Portugal e no Mediterrâneo em geral, onde atualmente vivem mais de 520 milhões de pessoas.

A biodiversidade é a variedade das formas de vida no planeta e as interações entre os diversos seres vivos a todos os níveis, em ambiente terrestre, aquático e no ar, incluindo as diversas dimensões, genes, espécies, populações e ecossistemas. A perda da biodiversidade é irreversível, não só em termos de património genético, mas também dos efeitos diretos e indiretos que cada ser vivo representa para os outros, incluindo os humanos. Ao

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USOS DA ÁGUA PARA OS HUMANOS versus NATUREZA - CONFLITO OU PACTO DE SOBREVIVÊNCIA? Figura 2 - Os cinco eixos do Desenvolvimento Sustentável (UN Agenda 2030, 2015)

# atualidade

longo dos tempos o Homem foi ocupando os ecossistemas naturais, retirando deles água, alimento e energia, criando sociedades e desenvolvendo economias, sem frequentemente, ter consciência e/ou valorizar a finitude dos recursos. O impacte global do crescimento populacional das últimas décadas e a consequente urbanização, associados aos atuais padrões de consumo, trouxeram-nos alterações climáticas, como ondas de calor e secas que têm gerado a mortalidade massiva de árvores, pássaros,

morcegos e peixes. Não se trata apenas de um problema ambiental, porque afeta diretamente a economia, o desenvolvimento, a segurança, a ética, entre outros (WWF, 2022). Se não enfrentarmos com medidas eficazes a crise climática e a perda da biodiversidade não atingiremos os 17 ODS.

No que concerne à água, se os atuais padrões de consumo à escala mundial se mantiverem, prevê-se que em 2030 tenhamos apenas 60 % da água que necessitamos (UN Water Report, 2021).

Se é certo que a água para consumo humano deve ser absolutamente prioritária, é questionável se será aceitável a quantidade de água que tiramos da Natureza, tratamos para consumo humano, e que perdemos antes de chegar às nossas torneiras. No panorama nacional em 2020, as entidades gestoras da água em baixa reportaram perdas que em média representam cerca de 5 m3/h de água potável por km de conduta, numa realidade nacional de um sistema de distribuição com mais de 110 000 km de condutas

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(ERSAR, 2021). Um rio não pode mais ser encarado como um canal de água para os humanos usarem...é um ecossistema aquático cheio de vida, que precisamos de manter. No último ciclo de avaliação do estado das massas de água em Portugal, constatou-se de um modo generalizado um agravamento do cenário, não só das águas superficiais (estados ecológico e químico), mas também das águas subterrâneas (estados quantitativo e qualitativo), encontrando-se justificação para tal na acentuada e crescente pressão antrópica e na diminuição da precipitação média sobretudo a sul do Rio Tejo (APA, 2022).

Se nos focarmos em Portugal, que em 2020 tinha 10 343 066 residentes (CENSUS, 2021), cada um consumiu em média 190 L/dia de água (ERSAR, 2021) e gastou 19,9 kWh/dia de energia, 54 % de fontes renováveis (eólica, hídrica e outras) e 46 % não renováveis (gás natural, cogeração fóssil e carvão). A alimentação é igualmente um fator relevante e altamente dependente dos ecossistemas naturais, e tem sofrido grandes alterações nos últimos 50 anos. Os consumos de carne e de

doces dispararam e os de hortícolas tornaram-se mais ocasionais, com consequências nefastas para a nossa saúde e para a saúde do planeta (Graça, 2020 in PORDATA, 2021). Os nossos padrões de consumo (alimentares e não só) privilegiam produtos tipicamente mais baratos, transportados a longas distâncias, embalados e conservados para permanecerem em bom estado mais tempo, mas que produzem grandes quantidade de resíduos sólidos urbanos, nesse ano foram recolhidos 1,40 kg/dia por residente (ERSAR, 2021). Por tudo isto, e numa lógica de mobilidade e de produção industrial maioritariamente suportada por combustíveis fósseis, no século que se pretende a descarbonização, cada residente nacional emitiu em 2020, 5,5 t CO2e (PORDATA, 2021).

As cidades são atualmente consideradas os pontos mais vulneráveis do planeta, onde se concentra mais de metade da população mundial, se localiza a maioria dos edifícios e das infraestruturas, se consome a maior parte da água, energia e alimento, e onde se geram

70 % das emissões de CO2e. Em 2020 na União Europeia morreram precocemente 310 000 pessoas com doenças cardiorespiratórias associadas à poluição atmosférica, sobretudo nas cidades (European Environment Agency, 2021). As ações locais para adaptação das cidades à crise climática, por um lado às ondas de calor cada vez mais intensas, e por outro às inundações cada vez mais frequentes, são de prioridade absoluta para a segurança das pessoas. Assim, nos últimos anos muitos centros de investigação e desenvolvimento têm aprofundado estudos sobre quantificação dos diversos serviços ecossistémicos e do papel que a Natureza deve ter nas zonas urbanas.

A integração de espaços verdes nas cidades como elementos de gestão territorial que assegurem serviços ecossistémicos fundamentais à qualidade de vida das pessoas passo a ser prioritário. Devem selecionar-se espécies autóctones tendo por base o conhecimento científico do seu papel, em termos de escorrências evitadas, controlo térmico, remoção

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USOS DA ÁGUA PARA OS HUMANOS versus NATUREZA - CONFLITO OU PACTO DE SOBREVIVÊNCIA?

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de poluentes, produção de oxigénio, sequestro e armazenamento de carbono e efeitos na polinização, etc. Não é recomendável, nem será possível a médio prazo, vivermos em cidades sem a Natureza devidamente integrada... fez-se isso nas últimas décadas, e os resultados levaram-nos ao atual estado de emergência.

Portanto, estrategicamente a gestão sustentável do ciclo urbano da água deve incluir água para assegurar as necessidades dos habitats urbanos e da biodiversidade, numa lógica de circularidade e tendo presente que, sempre que possível, as necessidades hídricas da vegetação não devem ser supridas com água tratada para consumo humano. Os usos externos não potáveis representam normalmente mais de 50 % da água que as cidades consomem, e são muito diversos e apresentam diferentes exigências em termos de qualidade da água. Alguns municípios portugueses, mais avançados nos ODS Locais têm identificado origens de água alternativas à água potável para esses usos, sempre numa lógica de proximidade e de qualidade adequada,

para não comprometer a saúde pública ou o ambiente. Estão a desenvolver e/ou a recuperar sistemas anteriormente existentes para captação e armazenamento de água da chuva, e de reutilização da água diariamente descartada em algumas piscinas municipais. Dos 600 hm3 de água tratada para consumo humano que Portugal consumiu em 2020, foram drenados 545,8 hm3 de efluentes urbanos e tratados 528,4 hm3, em 2829 ETAR distribuídas pelo território nacional. Grande parte destes efluentes urbanos tratados estão disponíveis em quantidade e qualidade ajustadas (Água para Reutilização - ApR), para diversos usos não potáveis, como a rega de algumas culturas agrícolas e ornamentais. Nesse sentido, deve ser bem caracterizada a procura de ApR na envolvência das ETAR, de forma a potenciar os usos mais próximos e o transporte por gravidade, ou quando isso não é possível, bombagens a curtas distâncias, reduzindo o consumo energético associado ao transporte da ApR. Nas zonas costeiras do sul do país, também a dessalinização da água do mar está a ser utilizada por

alguns empreendimentos turísticos, para rega de jardins e para usos recreativos, tirando partido da energia solar produzida para o funcionamento das estações de osmose inversa. A par das origens alternativas, a eficiência nos diversos usos, urbanos e não urbanos, é outra questão imperativa que alguns municípios já levam muito sério, reduzindo perdas e desperdícios e otimizando sistemas de rega, tirando partido de sistemas de gestão inteligente.

Por todas estas questões, numa sociedade informada e focada na construção do futuro, não faz sentido a existência de conflitos entre o uso da água para os humanos e para a Natureza, porque sem esta também a humanidade se extinguirá!

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ÁGUA, ONDE A VIDA SE MULTIPLICA

A VALORIZAR A ÁGUA E A VIDA ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE DISTRIBUIÇÃO E DRENAGEM DE ÁGUAS

AS GUERRAS DA ÁGUA Geopolítica e geoestratégia de um bem fundamental1

“A água doce potável é, ao lado do petróleo, o mais estratégico dos recursos naturais da actualidade, sendo fundamental para o funcionamento das sociedades. Mas, ao contrário daquele, não possui formas alternativas.“

Entrou para a Escola Naval em 1966 e reformou-se em 2010. Embarcou nos NRP Jacinto Cândido, Afonso de Cerqueira e São Miguel. Comandou os NRP Zaire e Polar, desempenhou os cargos de Capitão do Porto de Aveiro e Diretor do Museu de Marinha. Foi professor da Escola Naval, do Instituto de Estudos Superiores Militares, da Universidade Autónoma de Lisboa e do Instituto Superior de Ciências da Informação e da Administração. Académico Emérito da Academia de Marinha, Académico Honorário da Academia Portuguesa da História e Vogal do Conselho Científico da Comissão Portuguesa de História Militar. Além de mais de uma centena de artigos, e colaborações em obras coletivas, publicou 14 monografias de que destacamos Marinha Portuguesa Nove Séculos de História.

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atualidade

AS GUERRAS DA ÁGUA - Geopolítica e geoestratégia de um bem fundamental

O planeta Terra é constituído genericamente por 30 % de terra firme e 70 % de água. Dessa água – que maioritariamente constitui os Oceanos (97,61 %) –apenas uma pequena parte é constituída por água doce (2,5 %) e apenas 0,26 % está disponível para ser utilizada

pelo Homem para as suas necessidades: os consumos doméstico, agrícola, industrial e a produção de energia.

Por mais sérias que sejam as crises financeiras, alimentares, ou energéticas, nenhuma é tão ameaçadora em relação ao futuro da Humanidade como a perspectiva de escassez da água.

No início do século atual foi afirmado que ele seria o Século dos Oceanos, ou em sentido lato, o, Século da Água tal a importância que lhes foi atribuída.

Durante um longo período da História, a água foi tratada, na maioria das sociedades,

1 O presente texto foi adaptado de uma intervenção no Webinar “Água uma questão de sobrevivência - do fornecimento às vulnerabilidades” organizado pela Armed Forces Communications and Electronics Association (AFCEA) Portugal e pela Associação Portuguesa de Distribuição e Drenagem de Águas (APDA)

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1. O Conceito da Água e do Seu Uso 2. A Importância da Água para a Sociedade

# atualidade

como um bem abundante sem se questionar a sua disponibilidade.

Alguns estudiosos consideram que foi o crescimento da população mundial o culpado pela crise; recordemos que esta triplicou nos últimos 70 anos; mas o consumo de água aumentou seis vezes no mesmo período.

Da água que se estrai dos rios, lagos e aquíferos do Mundo, 70 % é utilizada na rega, apenas 10 % são utilizados para abastecer a população.

3. As Guerras da Água

O primeiro conflito internacional pelo uso da água ocorreu há mais de 4 500 anos e envolveu duas cidades-estado da Mesopotâmia – Umma e

Lagash – que disputavam áreas das bacias dos rios Tigre e Eufrates fundamentais para a irrigação da sua agricultura.

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Figura 1 - Mapa da Mesopotâmia (Fonte: Jewish Virtual Library. Maps of the Middle East, BCE: Mesopotamia)

No Egito surgiria, cerca de 1200 a.C, o chamado Canal dos Faraós que ligava o delta do Nilo ao mar Vermelho através das cidades de Bubástis, Herópolis e Serapeu.

Esta estrutura viria a ser aterrada para submeter a cidade revoltada de Herópolis, retirando-lhe a água e forçando-a a render-se.

Akbal, imperador mongol do império indo-persa construiu, no século XVI, uma imponente capital a que deu o nome de Cidade da Vitória, mas não foi auspiciosa a sua vida, e o imperador abandonou-a ao fim de 13 anos devido à escassez de água.

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AS GUERRAS DA ÁGUA - Geopolítica e geoestratégia de um bem fundamental Figura 2 - Canal dos Faraós (Fonte: Wikipédia, a enciclopédia livre)

Hoje poderemos encontrar quatro grandes regiões - África, Médio Oriente Subcontinente Hindustânico e Himalaias – onde a água, o acesso às suas fontes e a sua gestão são objecto de conflitualidade.

Na bacia do rio Cubango ou Okavango, a disputa envolve Angola, Namíbia e Botswana, num rio especial que não desagua no mar, mas termina em delta numa planície do Botswana. O provável aproveitamento hidroeléctrico do seu leito por Angola, e o seu possível transvase para irrigação de terrenos no curto percurso através da Namíbia, poderá afectar o caudal que atinge o Botswana e chega à sua foz.

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Figura 3 - Bacia do rio Cubango (Foto: DR/Arquivo in Novo Jornal, Luanda, 08OUT2020: Petróleo: Última grande descoberta onshore antes do triunfo das energias alternativas vai ser na bacia do Okavango)

AS GUERRAS DA ÁGUA - Geopolítica e

Hoje, o rio mais longo do planeta, com uma extensão superior a 7 000 quilómetros, cruza um território onde a escassez hídrica é cada vez mais notória, provocando disputas pelo controlo das águas da sua bacia. Desde 1959 que o Egipto e o Sudão monopolizaram o acesso às águas do rio, por um acordo.

A controvérsia surgiu em 2011 quando a Etiópia iniciou a construção da hidroeléctrica Grande Renascimento da Etiópia que seria a maior barragem de África. Como a hidroeléctrica depende do desvio das águas do Nilo Azul, um dos afluentes do Nilo, alguns países opuseram-se ao projecto. O Sudão e o Egipto temem que o fluxo das águas do Nilo para os seus territórios – a jusante da barragem – fique comprometido.

A bacia do rio Nilo, também no continente africano, enfrenta problemas de gestão de recursos envolvendo o Egipto, Etiópia, Tanzânia, Uganda e Sudão.

O rio Nilo, representa historicamente a sobrevivência da economia do Egipto pela importância na sua agricultura e também como via de comunicação.

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geoestratégia de um bem fundamental Figura 4 - Bacia do rio Nilo (Fonte: El Pais. La batalla por la gran presa del Nilo amenaza con desatar una crisis regional. José Naranjo, Madrid 06OCT2019)

O Médio Oriente é a região do Mundo de maior risco de disputa internacional pela água porque, dos 15 países que mais sofrem com a escassez de água, 10 estão nesta região.

Na Guerra dos Seis Dias (1967), Israel ampliou as suas fronteiras e ocupou os Montes Golan. Pertencentes à Síria, além de representarem uma posição geográfica de grande valor militar, abrangem as nascentes do rio Jordão, o mais importante daquela região desértica e os lençóis freáticos da Cisjordânia e do Mar da Galileia; aquele rio de onde sai 1/3 da água consumida em Israel, é muito utilizado para a irrigação pela agricultura israelita. Recordemos que Israel, Jordânia e Palestina reúnem 5 % da população mundial, mas tem apenas 1 % das reservas hídricas.

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Figura 5 - Bacia do rio Jordão (Fonte: Águas e fronteiras na Palestina, Cássio Murilo, 04ABR2014)

AS GUERRAS DA ÁGUA - Geopolítica e geoestratégia de um bem fundamental

com os Estados Unidos da América ocupando o Iraque – e quase deu em conflito armado.

Uma enorme seca em 2007 levou os sírios e os iraquianos a questionar a utilização abusiva da água em território turco.

Em 2009 a seca voltou diminuiu o fluxo daqueles rios, tendo mesmo havido falta de água no Iraque, levando este país a acusar os outros de gastarem acima do permitido.

Como resposta o Governo Turco afirmou que a água dos rios é tão turca como o petróleo é iraquiano.

A bacia dos rios Tigre e do Eufrates, é outra região de disputa pelos recursos hídricos que envolve a Turquia, a Síria e o Iraque. As suas nascentes estão em território turco, mas a sua bacia é fundamental para as economias dos outros dois países.

Controlando as nascentes, a Turquia vem realizando uma

série de obras hidroeléctricas na bacia destes rios.

Em 1998, a construção da barragem hidroeléctrica de Ataturk pela Turquia, levou a alguma tensão com a ameaças de invasão por parte da Síria e do Iraque, face à possibilidade de diminuição do caudal que chegaria àqueles países. A situação repetiu-se em 2003 – agora

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Figura 6 - Bacia dos rios Tigre e Eufrates (Fonte: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Geografia, Departamento de Geografia Humana - Publicado por Rodolfo F. Alves Pena, créditos da imagem: Wikimedia Commons)

(Fontes: Índia e Paquistão: uma questão geopolítica chamada Caxemira, Diego Moreira Pereira e Rafael Ramos Gurjão. Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Geografia, Departamento de Geografia Humana, 2012. Professor James Onnig. O Tratado da Água do Rio

No subcontinente hindustânico encontramos a disputa indo-paquistanesa sobre o rio Indo da qual já resultaram quatro conflitos armados.

Desde 1960 que os dois países são signatários do Tratado das Águas do Indo (Indus Water Treaty - IWT), um tratado assinado sob a coordenação do Banco Mundial

Este tratado atribuiu ao Paquistão os chamados três rios ocidentais – o Indo e os seus afluentes Jhelum e Chenab e atribuiu à Índia os chamados três rios orientais – Ravi, Beas e Sutley –também afluentes do Indo.

A Índia deseja ver reconhecido o seu direito ao uso limitado, da nascente do Indo e dos seus dois afluentes ocidentais confiados ao Paquistão. Nova Deli pretende legalizar os seus projectos de barragens na Caxemira, numa questão mais estratégica que jurídica, pois o Paquistão não se sente tranquilo com a possibilidade de os indianos poderem regular os seus cursos de água.

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Figura 7- Bacia Hidrográfica do Rio Indo com suas nascentes na região da Caxemira, nas escarpas da Cordilheira do Himalaia Indus: Um outro olhar sobre a Caxemira)

AS GUERRAS DA ÁGUA - Geopolítica e geoestratégia de um bem fundamental

Outra região com problemas hídricos é o Planalto do Tibete, na China e cujos problemas envolvem a China, a Índia, o Bangladesh, a Tailândia, o Laos, o Camboja e o Vietname.

No planalto tibetano, no Sudoeste da China, correm cinco grandes rios que conduzem as águas do degelo da cordilheira do Himalaia e das chuvas das monções para vários países do Sul e do Sudeste Asiático.

Um desses rios é o Brahmaputra. A China

fez planos para construir barragens e desviar as águas desse rio para gerar energia, o que afectará drasticamente o abastecimento de água para a Índia e o Bangladesh.

Saindo do Tibete, o Brahmaputra atravessa os estados indianos de Arunashal Pradesh e de Assam (NE) antes de percorrer o Bangladesh.

O governo de Nova Deli vê com bastante desconfiança a construção de tais barragens que podem alterar o curso

do rio nas suas terras de Nordeste.

A inauguração da primeira barragem ocorreu em finais de 2015 e afectou as relações da China com a Índia, que já não eram das mais amistosas.

A Índia também tem problemas hídricos com o Bangladesh relativas a este rio, e também há disputas entre estes dois Estados, envolvendo as águas do rio Ganges.

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Figura 8 - Bacias dos rios Brahmaputra e Ganges. Rio Ganges (Fonte: Wikipédia, a enciclopédia livre)

# atualidade

A Índia debate-se ainda com a hostilidade do Nepal, que se apoiou nos indianos para a construção das suas barragens, e entende que foi forçado a acordos desiguais.

Além do rio Brahmaputra, o planalto do Tibete abriga também a nascente do rio Mekong, que nasce na China e percorre quase 2.000 quilómetros passando pela Tailândia, Laos, Camboja e Vietname. Estes quatro países dependem das suas águas, mas o abastecimento está a ser comprometido pela construção de grandes centrais hidroeléctricas pela China.

Da mesma forma, o Laos também desenvolveu projectos para construção de barragens no Mekong para produzir energia eléctrica, o que gerou atritos com o vizinho Camboja.

Destes cenários resulta que o controlo da água nas nascentes dos grandes rios e nas áreas aquíferas subterrâneas é altamente estratégico, sendo previsível o aumento de conflitualidade e até mesmo de guerras generalizadas pela posse da água potável, que se encontra cada vez menos disponível

em várias regiões do Globo.

A fronteira dos EUA com o México – com os seus lençóis freáticos subterrâneos – a bacia do rio da Prata –com os seus afluentes Paraná e Uruguai – e o rio Gâmbia, são, em três diferentes

continentes, outros pontos de previsíveis conflitos sobre a água.

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Figura 9 - Bacia do rio Mekong. Os problemas das águas: o Mekong (Fonte: Scienzeedintorni. Tradução de Massimo De Maria. 5 junho 2010)

AS GUERRAS DA ÁGUA - Geopolítica e geoestratégia de um bem fundamental

4. A Geopolítica da Água no Século XXI

O tradicional conceito de segurança teve de ser revisto, integrando-lhe agora também as preocupações ambientais e aqui surge mais uma vez a água.

Nos últimos 50 anos foram identificadas 1831 situações conflituosas de partilha de bacias hidrográficas; dessas, 1228 acabaram em acordos de cooperação, 507 em conflitos diplomáticos; apenas 37 implicaram o uso de violência e 21 levaram ao enfrentamento militar (18 envolvendo Israel)2 (Costa, 2003, 312).

Só nos anos de 1990 surgiria a definição de rio internacional, onde as obras hidráulicas – barragens e transvazes – ou as actividades poluentes –como centrais nucleares –podem prejudicar o fluxo e a qualidade da água a jusante num país vizinho.

2 Há ainda mais 38 situações conflituosas cujo desfecho não foi identificado pelo autor citado

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Figura 10 - Mapa com destaque das áreas de escassez hídrica. Previsão de disponibilidade de água por pessoa em 2025 (Fonte: United Nations Environment Programme)

5. Conclusão

A água doce potável é, ao lado do petróleo, o mais estratégico dos recursos naturais da actualidade, sendo fundamental para o funcionamento das sociedades. Mas, ao contrário daquele, não possui formas alternativas.

A escassez de água pode ainda ter como consequências a fome, o aumento de doenças e os seus efeitos sociais, a diminuição de produtividade, o desaparecimento de espécies animais e vegetais e o deslocamento forçado de populações.

Bibliografia

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COSTA, Jordana. Geopolítica da Água.

COSTA, Wanderley Messias. Geografia Política e Geopolítica; discursos sobre o território e o poder. São Paulo, Hucitec, Editora da Universidade de São Paulo, 1992.

DARCEL, Loic. La Bataille de L’Eau. Cherche Midei, 2018.

FINCKH, Manfred e PROPPER, Michael (Coord.). Capítulo 3Situação Actual da Bacia do Okavango

htpps://www.researchgate.net/publication/280876471

GUSTAVO, Prof. Luís. Geografia Política e Económica da Água.

PENA, Rodolfo F. Alves. Geopolítica da Água.

PENA, Rodolfo F. Alves. Conflitos pela Água

PENA, Rodolfo F. Alves. Conflitos pela Água no Mundo

RIBEIRO, Wagner Costa. Geografia Política das Águas. Tese (Livre Docência). Universidade de São Paulo, Departamento de Geografia FFLCH – USP. São Paulo, 2004.

RODRIGUES JR, Gilberto Souza. O Conflito IsraeloPalestino: a viabilidade do Estado Palestino sob a perspectiva dos recursos hídricos. Trabalho de Graduação Individual – FFLCH/USP, São Paulo, 2004.

RODRIGUES JR, Gilberto Souza Rodrigues. Geografia Política dos Recursos Naturais SOARES, Guido Fernando Silva. Direito Internacional do Meio Ambiente; emergência, obrigações e responsabilidades. São Paulo, Atlas, 2001.

Sítios consultados

www.ana.gov.br/hibam/

www.un.org

www.unesco

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atualidade
ÁGUA,
A VALORIZAR A ÁGUA E A VIDA ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE DISTRIBUIÇÃO E DRENAGEM DE ÁGUAS
ONDE A VIDA SE MULTIPLICA

Convenção de Albufeira

“Este percurso comum prestigia os dois países, tem inspirado muitos estados e instituições

internacionais que regularmente pretendem saber como funciona a CA e dá-nos a responsabilidade de fazermos ainda mais e melhor.”

Trabalha em temas ambientais e de desenvolvimento sustentável há mais de 20 anos, na Europa e nos EUA. Desenvolveu atividade académica em várias universidades e de consultoria para organizações internacionais como a OCDE, ONU e Comissão Europeia.

Desde 2002 desempenha funções de serviço público, tendo liderado a área internacional e a área de política climática e gestão de carbono do Ministério do Ambiente.

É licenciado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL), tem um mestrado (LLM) pelo Washington College of Law da American University e o Advanced Management Program da Kellogg Business School/Católica Business School.

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# atualidade

Portugal e Espanha têm um percurso comum de articulação no domínio dos recursos hídricos, com mais de 150 anos de Acordos bilaterais que foram sendo cada vez mais ricos em conteúdo, fruto da experiência adquirida e acervo internacional que foi sendo criado.

O “Tratado de Limites” para a delimitação de fronteiras e

de usos comuns celebrado em 1864 entre Portugal e Espanha iniciou, do ponto de vista institucional, as relações formais luso-espanholas no domínio dos recursos hídricos.

Posteriormente, os governos de Espanha e Portugal estabeleceram vários instrumentos jurídicos bilaterais sobre o uso e aproveitamento dos rios transfronteiriços que

Convenção de Albufeira

refletiram a evolução política, social e económica de ambos os países.

Assim, em 1927, assinaram o Convénio para regular o aproveitamento hidroelétrico do troço internacional do rio Douro, substituído pelo Convénio de 1964 com idêntico propósito.

Em 1968 subscreveram o Convénio para regular o

REVISTA APDA 2022 | 37

atualidade

uso e o aproveitamento hidráulico (não apenas hidroelétrico) dos troços internacionais dos rios Minho, Lima, Tejo, Guadiana, Chança e seus afluentes. No processo de preparação deste tratado, Portugal e Espanha avaliaram o potencial hidroelétrico dos troços internacionais dos vários rios, tendo em consideração os volumes e afluências que seriam reduzidos pelo transvase do Aqueduto Tejo-Segura (ATS) e regadios de Badajoz. Neste contexto foi viabilizada a execução do aproveitamento hidroelétrico de Alto Lindoso no Lima (Portugal), de Monte Fidalgo no Tejo (Espanha), de Alqueva (Portugal) e Chança (Espanha), estes últimos na bacia do Guadiana com a possibilidade do desvio de caudais para outras bacias hidrográficas e outros fins que não os hidroelétricos, e foi ainda considerado o aproveitamento conjunto de Sela, no rio Minho, cuja produção seria repartida entre os dois Estados no quadro da partilha equitativa do potencial hidroelétrico, mas que não se veio a concretizar por motivos ambientais.

Esta longa tradição de cooperação em matéria

de água culminou com a assinatura da “Convenção sobre a Cooperação para a Proteção e o Aproveitamento Sustentável das Água das Bacias Hidrográficas LusoEspanholas”, na Cimeira de Albufeira a 30 de novembro de 1998, ficando conhecida por “Convenção de Albufeira” (CA) e que entrou em vigor a 17 de janeiro de 2000.

Dez anos depois, em 2008, os dois países acordaram aprofundar a definição de regime de caudais da Convenção de Albufeira, através de um Protocolo de Revisão, no qual se melhorou a escala temporal de caudais, com um regime sazonal mais fino, para além do anual.

Embora o objetivo principal dos acordos assinados em 1964 e 1968 tenha sido a partilha equitativa do potencial hidroelétrico ou hidráulico dos rios partilhados, o Convénio de 1968 já incorpora referências a outros temas, como sejam a necessidade de garantir caudais mínimos de estiagem e o uso da água para outros fins para além dos hidroelétricos.

Enquanto os tratados anteriores incidiam apenas

nos troços internacionais dos rios, nas águas superficiais e em determinados usos hidroelétricos ou hidráulicos, a CA é mais abrangente, tendo como objeto:

“…a proteção das águas superficiais e subterrâneas e dos ecossistemas aquáticos e terrestres deles diretamente dependentes, e para o aproveitamento sustentável dos recursos hídricos…” (artº. 2º) e como âmbito:

“…bacias hidrográficas dos rios Minho, Lima, Douro, Tejo e Guadiana.” (artº. 3º).

A CA assenta, assim, nos princípios modernos de gestão dos recursos hídricos: gestão integrada e baseada na unidade ecossistémica da bacia hidrográfica.

A CA aparece, aliás, na linha da Diretiva Quadro da Água (DQA), aprovada mais tarde, em outubro de 2000, nomeadamente, prevendo ações de aproveitamento sustentável das águas superficiais e subterrâneas, bem como ações que contribuam para mitigar os efeitos das cheias e das situações de seca ou escassez.

Prevê igualmente mecanismos de comunicação

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entre as Partes e de informação e participação do público sobre as matérias objeto da Convenção.

Para a prossecução dos seus objetivos a Convenção estabeleceu dois órgãos de Cooperação, um de natureza mais política, a “Conferência das Partes”, e outro de natureza mais técnica e operacional, a “Comissão para a Aplicação e Desenvolvimento da Convenção (CADC)”.

Nos 24 anos de vigência da CA, a Conferência das Partes reuniu três vezes (2005, 2008 e 2015) e a Comissão realizou 24 reuniões plenárias, para além dos inúmeros encontros técnicos dos grupos de trabalho e das permutas de informação institucionalizadas, traduzindo assim uma intensa cooperação bilateral.

A elaboração dos Planos de Gestão de Região Hidrográfica (PGRH) previstos na DQA para as Regiões Hidrográficas Internacionais, Minho-Lima, Douro, Tejo e Guadiana tem sido um dos domínios onde se verificou progresso na coordenação luso-espanhola, apesar das diferenças dos modelos

de tomada de decisão em Espanha e em Portugal.

A CA tem hoje uma importância acrescida como quadro de referência na gestão dos recursos hídricos luso-espanhóis, uma vez que as características específicas da península ibérica exigem o reforço da coordenação dos dois países e a concertação de posições europeias e internacionais para enfrentarem os riscos resultantes das alterações climáticas, nomeadamente a redução do escoamento e da recarga dos aquíferos, o aumento da variabilidade do escoamento, o incremento da frequência de secas e cheias, a elevação do nível

médio das águas do mar, bem como os impactes induzidos por aquele fenómeno.

Apesar dos defeitos que setores da sociedade nos dois países apontam ao funcionamento da Convenção, a verdade insofismável é que Portugal e Espanha alcançaram progressos assinaláveis na coordenação dos processos de planeamento das regiões hidrográficas internacionais e, sim, na gestão das massas de água partilhadas.

A situação que hoje vivemos é-nos muito mais favorável do que aquela que vivíamos antes da existência da Convenção de Albufeira,

REVISTA APDA 2022 | 39 Convenção de
Albufeira

atualidade

em 1998, quando nenhuma obrigação de caudais existia na relação entre os dois Estados, requisito particularmente relevante nos anos em que a precipitação é escassa.

Contudo, as alterações climáticas são já uma realidade, fazendo com que ano após ano sejamos confrontados com situações novas que nos levam a ter que ajustar os processos

de transição em curso, seja na agricultura e florestas, na energia, nos recursos hídricos, na saúde e em mutos outros setores.

Por isso, é necessário alterar comportamentos em ambos os países e as atividades económicas ajustarem-se à realidade, avaliando se o que produzem e forma como o fazem é compatível com as disponibilidades de recursos hídricos

atuais, mas especialmente antecipando-se aos cenários do futuro, poupando água, melhorando a eficiência no uso, recorrendo a práticas de circularidade da água, designadamente de utilização de água residual tratada.

A Convenção de Albufeira é igualmente um instrumento de referência internacional na relação entre Estados que partilham bacias hidrográficas, cujo texto

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prevê o aprofundamento contínuo do seu funcionamento, matéria que tem sido praticada. É interessante acelerar esse processo, especialmente ao nível operacional.

No ano de 2022 verificou-se um enorme esforço de articulação por parte das equipas dos dois países no quadro da Convenção, igualmente por parte dos decisores políticos e da diplomacia.

Ao nível operacional têm sido criados inúmeros instrumentos que concretizam os objetivos da Convenção, como é o caso do mecanismo de acompanhamento trimestral dos caudais, que em 2022 passou a mensal, do Grupo de Trabalho de Secas e Inundações para a harmonização dos indicadores de seca e escassez usados por ambos os Estados, do Protocolo de troca de informação de dados hidrometeorológicos em tempo real para a gestão de situações extremas, do Projeto INTERREG “Albufeira” destinado à implementação conjunta e coordenada de ações para promover e proteger o bom estado das

massas de água partilhadas e dos ecossistemas associados, dos projetos conjuntos de combate a espécies invasoras, para apenas referir alguns.

Em 2022 foi ainda decidido pelos dois governos, no âmbito da Cimeira LusoEspanhola, o alargamento institucional da CA, através da operacionalização de um Secretariado Técnico Permanente, já em 2023. Esta equipa permitirá consolidar o trabalho técnico transfronteiriço em matéria de água e, assim, ajudar a responder aos importantes desafios nos próximos anos.

Este percurso comum prestigia os dois países, tem inspirado muitos estados e instituições internacionais que regularmente pretendem saber como funciona a CA e dá-nos a responsabilidade de fazermos ainda mais e melhor.

A gestão dos recursos hídricos Luso-Espanhóis é um desafio maior na intensa e profunda relação ibérica neste século XXI. Os desafios naturais, como as alterações climáticas e socioeconómicas que dependem deste escasso recurso, ditam um contínuo aperfeiçoamento dos

mecanismos de coordenação e gestão da água entre os dois países. A Convenção de Albufeira é a base dessa cooperação e tem provado nestas duas décadas de vigência ser, no essencial, adequada a responder aos desafios enfrentados.

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Convenção de Albufeira

# atualidade

Conflito Institucional da Água

Licenciado em Engenharia Civil pela FEUP, Pósgraduado em Gestão de Serviços de Abastecimento de Água pela International Union of Local Autorities que decorreu na Holanda, Alemanha e Hungria, e atualmente aposentado.

De 2017 a 2021 foi Vogal Executivo do Conselho de Administração da Águas do Norte, S.A. De 2013 a 2017 presidiu ao Conselho de Administração da EMARVR – Água e Resíduos de Vila Real, E.M., S.A. De 2002 a 2013 foi Diretor de Infraestruturas da Empresa Águas de Trás-os-Montes e Alto Douro, S.A.

Entre 2000 e 2002 coordenou a Ação Integrada de Base Territorial do Douro – “ON DOURO”, no âmbito do III Quadro Comunitário de Apoio.

Entre 1998 e 2000 foi Administrador Delegado da Associação de Municípios da Terra Quente.

Entre 1990 e 2000 dirigiu o GAT da Terra Quente Transmontana.

Entre 1989 e 1990, ao serviço da CP, dirigiu a 2ª Área de Transportes.

Entre 1988 e 1989 coordenou o Gabinete de Apoio Empresarial do NERVIR.

Entre 1978 e 1988 exerceu atividade no Gabinete de Apoio Técnico do Vale do Douro Norte. É membro sénior da Ordem dos Engenheiros e de diversas instituições.

“O não desenvolvimento da cooperação entre sistemas, a contabilização e faturação dos valores mínimos e das águas pluviais levou ao agravar das já frágeis relações de confiança entre as entidades que gerem a “alta” e a “baixa”, bem como ao aumento da indesejável litigância entre entidades gestoras de um serviço público essencial tão relevante como é o abastecimento de água.”

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Na sequência do convite que me foi dirigido pela APDA, tenho o gosto de partilhar um pouco da minha experiência profissional sobre os conflitos institucionais da água.

Aceite o desafio, cumpre esclarecer que as opiniões aqui expressas apenas refletem a minha experiência ao longo de cerca de 12 anos na gestão da, então recentemente criada,

Águas de Trás-os-Montes e Alto Douro, S.A. (ATMAD), seguidos de 3 anos na gestão de uma empresa da “baixa”, a Empresa Municipal de Águas e Resíduos de Vila Real, E.M., S.A. (EMARVR) e de cerca de 4 anos na gestão da Águas do Norte, S.A., já no período pós cisão que recriou a SIMDOURO, S.A. e Águas do Douro e Paiva, S.A.

Como todos os conflitos que nascem da dificuldade

em chegar a acordo entre as partes, aqueles que emergem entre as entidades responsáveis pela gestão dos serviços de águas resultam, objetivamente, por um lado da incapacidade de uns para cumprimento dos contratos, e por outro da incompreensão de outros quanto à desadequação das cláusulas contratuais face à realidade do país e das regiões.

REVISTA APDA 2022 | 43 Conflito
Institucional da Água

Refiro-me à grande disparidade entre a capacitação técnica e de gestão dos sistemas em “alta” criados nas últimas décadas, beneficiando de um quadro institucional e financeiro francamente favorável e os seus clientes, geralmente também acionistas minoritários, entidades em “baixa”, gestoras seculares de sistemas deficitários, herdeiros de infraestruturas obsoletas e tradicionalmente sem capacitação técnica e de gestão.

Muitos dos contratos de fornecimento e recolha estabelecidos entre “alta” e “baixa” não foram objeto de análise suficiente pelas entidades em “baixa”, sem capacidade crítica para o fazerem (algumas afirmam mesmo que tais contratos lhes foram impostos em benefício da região e da solidariedade intermunicipal), só se apercebendo da sua verdadeira dimensão quando os mesmos tiveram impacto na tesouraria do Município.

Dessa falta de esclarecimento a que, em minha opinião, tem tido maior impacto é a que resulta da aplicação da cláusula contratual que confere à “alta” o direito de debitar caudais mínimos,

mesmo que estes não tenham sido fornecidos ou recolhidos.

De facto, para assegurar a viabilidade da concessão multimunicipal, como forma da garantir os proveitos das sociedades concessionárias, os contratos exigiam que as entidades em “baixa” consumissem, no caso do fornecimento de água, ou entregassem, no caso da recolha e tratamento de águas residuais, um valor mínimo garantido, sob pena de se não atingido, a concessionária debitava esse valor mínimo.

A título de exemplo, os valores mínimos constantes do contrato de concessão da Águas do Norte após cisão da Águas do Douro e Paiva e SIMDOURO, mereceram um comentário da ERSAR por considerar necessário clarificar o fundamento do cálculo dos valores mínimos. Na realidade não se compreende que sejam debitados mínimos a um determinado Município onde a entidade gestora em “alta” não dispõe de qualquer infraestrutura, não estando por isso criadas as condições para a prestação do serviço.

A este princípio dos valores mínimos acresce a garantia de exclusividade que confere ao concessionário uma dupla garantia e, embora mais pacífica, não deixa de ser politicamente contestada quando respeita a pequenos aglomerados abastecidos por origens locais da confiança dos consumidores. Esta dupla garantia é considerada excessiva, desproporcionada e geradora de conflitos que têm minado a confiança e cooperação entre as partes, sendo estes os aspetos que devem presidir nos contratos desta natureza.

De facto, é incompreensível, se não mesmo intolerável, que instituições públicas (“alta” e “baixa”), que gerem em regime de exclusividade territorial um serviço essencial e que estão obrigadas a uma gestão eficiente e racional dos recursos, ao invés de cooperarem para garantir um melhor e mais sustentável serviço, nas vertentes económica, ambiental e social, consumam recursos e meios na gestão destes conflitos, cujos custos, em última instância, irão ser suportados pelo cliente final.

Se dúvidas há quanto à dimensão do problema,

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atualidade

aconselho a consulta dos relatórios e contas das empresas concessionárias dos serviços multimunicipais, principalmente as que operam em territórios de baixa densidade, para constatar que as centenas de milhões de euros que aguardam decisão judicial merecem por parte destas empresas e de quem as tutela, uma melhor atenção ao problema, face a algumas decisões que, na generalidade, tem sido favorável aos Municípios gestores da “baixa”.

Até se pode considerar que a faturação destes caudais mínimos, mesmo que não tenham sido pagos, é um bom ato de gestão, uma vez que são contabilizados como rendimentos nas contas das empresas e rendem juros de mora de cerca de 8 %, (o que é um bom negócio, pois as empesas em “alta” financiavam-se na banca a cerca de 2 % obtendo ganhos de cerca de 6 %). O problema é que, como se tem vindo a constatar pelas últimas decisões judicias, esta não é receita “certa”,

mas o problema já recairá em administrações futuras.

Este também é um problema que as entidades gestoras da “baixa” não compreendem pois que aos seus utilizadores em débito são obrigados a cobrar taxas de juro em mora da ordem dos 4 %, enquanto pelo mesmo tipo de serviço público essencial, se faltarem, ser-lhe-ão cobrados juros de cerca de 8 %.

A este conflito acresce, nos serviços de recolha e tratamento de águas

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Conflito Institucional da Água

residuais, a contabilização dos caudais pluviais.

De facto os contratos de concessão que designarei de primeira geração (até 2010) eram omissos em relação a este fenómeno, ignorando completamente a sua existência. A comunidade científica e técnica reconhecia a existência de caudais de infiltração nas redes de recolha, através das juntas das tubagens e defeitos de construção, mas não as afluências indevidas por ligações de sistemas pluviais a redes de drenagem de águas residuais.

Mais uma vez o problema só tardiamente é detetado e gera conflitos quando a sua contabilização se reflete na tesouraria das entidades gestoras dos sistemas “em baixa”.

À reclamação das entidades em “baixa” para o valor excessivo do tratamento destes serviços que em épocas de precipitação, nalguns casos, mais que quadruplica, a entidade em “alta” refugia-se nos direitos que o contrato de concessão lhe confere e que não pode deixar de faturar os valores contabilizados nos pontos

de recolha, geralmente nas ETAR.

Argumenta-se ainda que as infraestruturas da “alta” são recentes e não têm infiltrações, partindo do errado princípio que por serem novas, mesmo que implantadas em leito de cheia, estão imunes a infiltrações e que as da “baixa” são velhas, defeituosas e sujeitas a todas as infiltrações indevidas.

A “baixa” ainda argumenta que o contrato de concessão em vigor não confere ao concessionário da “alta” o direito de debitar caudais pluviais pois que, em todo o clausulado nada se refere quanto a esta contabilização e que dispõe, à entrada das ETAR, descarregadores de tempestades através dos quais pode e deve controlar estas afluência indevidas desviando-as para as linhas de água.

Toda esta argumentação só veio a ter acolhimento nos novos contratos de concessão na fase de agregação de diversos sistema multimunicipais ocorrida em 2015, onde, através de um anexo se define uma “Metodologia

para a quantificação dos volumes de águas residuais afluentes às infraestruturas do sistema multimunicipal” procurando contabilizar as infiltrações também nos coletores da “alta”.

A este propósito, a pedido do concedente, o Município de Vila Real teve oportunidade de se pronunciar transmitindo que os volumes de infiltração eram ignorados pela “alta” mas suportados pela “baixa” e que independentemente da metodologia proposta, à falta de estudos e de melhor conhecimento do problema deveria ficar consignado nos contratos a necessidade de cooperação, entre os sistemas, para uma melhor avaliação futura destas ocorrências.

O não desenvolvimento da cooperação entre sistemas, a contabilização e faturação dos valores mínimos e das águas pluviais levou ao agravar das já frágeis relações de confiança entre as entidades que gerem a “alta” e a “baixa”, bem como ao aumento da indesejável litigância entre entidades gestoras de um serviço público essencial tão relevante como é o abastecimento de água.

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atualidade

Parece-me que um maior envolvimento do concedente (Governo) e regulador (ERSAR) na elaboração dos contratos de concessão poderá contribuir para que estes sejam mais justos e equilibrados nos direitos e garantias das partes, pois na realidade, estes são elaborados por uma das partes, a “alta”, limitando-se o concedente e acionista maioritário à sua aceitação e o regulador à emissão de parecer, nem sempre acolhido.

Da experiência na gestão da “baixa” e da necessidade de implementar um processo de controlo de perdas e redução de volumes não faturados resultou alguma conflitualidade com um reduzido número de instituições utilizadoras que habitualmente não pagavam o que consumiam. Curiosamente, os seus representantes enquanto consumidores domésticos cumpriam escrupulosamente as suas obrigações, reivindicando para as entidades que representavam a isenção do seu pagamento.

Na generalidade foi fácil explicar que todos tínhamos que pagar e quando

necessário, poderiam recorrer ao sistema de apoio em vigor no Município.

Concluo pois esta minha análise sublinhando que para a eliminação da grande maioria (senão todos) os conflitos existentes neste nosso Cluster da Água, existem apenas dois ingredientes essenciais: bom senso e diálogo. Bom senso na definição e execução dos contratos e diálogo justo e sério na sua execução.

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Conflito Institucional da Água

Infiltração e recarga na renovação de reservas hídricas subterrâneas

Manuela Simões Professora na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade NOVA de Lisboa

É Professora Auxiliar com Agregação na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade NOVA de Lisboa, onde leciona as unidades curriculares de Hidrogeologia e Gestão e Qualidade da Água.

É investigadora no polo da NOVA do Centro de Investigação GeoBioTec e Membro da Comissão Especializada de Águas Subterrâneas da APRH. Tem desenvolvido atividade científica no domínio das águas subterrâneas, com especial enfoque no conhecimento hidrogeológico da Bacia Sedimentar do Tejo-Sado.

É autora de artigos científicas publicados em revistas nacionais e internacionais. Participou em Projetos PDR (Biofortificação de alimentos) e PRR (Agricultura 4.0), na componente de intervenção da água, nomeadamente na caracterização do escoamento subterrâneo e qualidade da água.

“A

subterrâneos não pode de modo algum ignorar a capacidade de regeneração dos sistemas e deve, recorrendo a modelos de simulação e previsão, ajustar as extrações à renovação considerando intervalos temporais compatíveis com os equilíbrios desejáveis entre renovação e utilização.”

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atualidade
gestão sustentável de recursos hídricos

Infiltração e recarga na renovação de reservas hídricas subterrâneas

Ciclo hidrológico, infiltração e recarga

Em cada ciclo hidrológico anual, o surgimento de fluxos subterrâneos, resultantes da precipitação, é condição indispensável para a reposição ou renovação das reservas hídricas subterrâneas. Contudo, para que tal aconteça, devem verificar-se condições climáticas, geomorfológicas, geológicas e ocupação territorial, favoráveis à ocorrência de infiltração.

Porém, a existência de infiltração não garante só por si a ocorrência de recarga. Tal depende do modelo hidrogeológico dos sistemas aquíferos, da carga hidráulica à superfície e do potencial hidráulico em profundidade. Desta relação surgem nos sistemas direções e sentidos de escoamento verticais, ascendentes e descendentes, e horizontais, gerando situações complexas de escoamentos à escala local e regional, superficiais e profundos, de pequena, intermédia e de longa extensão.

Os escoamentos locais são caracterizados por serem pouco extensos e com áreas de descarga situadas geralmente nas linhas de água e as de recarga nos interflúvios, onde predominam os fluxos descendentes.

Os escoamentos extensos e profundos ocorrem à escala regional, onde podem ser individualizadas zonas de escoamento caracterizadas por fluxos descendentes, nos locais de recarga, e de fluxos ascendentes, nos locais

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# atualidade

de descarga, conectadas por zonas intermédias de transferência de escoamento com fluxos horizontais.

Em toda a extensão destes sistemas podem existir condições favoráveis à ocorrência de infiltração, mas recarga só se verifica nos locais de fluxo descendente e intermédio e quando a distribuição e intensidade de precipitação anual atinge valores e regularidade temporal específicos para cada região, passíveis de serem avaliados pelo balanço hídrico de água no solo ou por outros métodos compatíveis.

Nos locais de fluxo ascendente a infiltração, quando ocorre, acentua a existência e permanência temporal de alagamento, muitas vezes resultando no surgimento de zonas húmidas, charcas ou lagos.

A recarga dos sistemas aquíferos predomina, assim, nas terras altas marginais e a descarga nos vales e leitos das linhas de água, configurando um modelo conceptual de escoamento que, em equilíbrio, pode ser confirmado pela ocorrência de níveis

hidrostáticos, em poços e furos, demonstrativos do aumento do potencial hidráulico em profundidade em zonas de descarga e o inverso, decréscimo da carga hidráulica, nos locais de recarga. Nestes locais o nível piezométrico tende a posicionar-se mais profundo em relação à superfície do solo. Enquanto, nas zonas planas, nos vales, junto à foz das linhas de água, onde se manifestam existir descargas de água subterrânea, observáveis nas pequenas oscilações anuais dos níveis hidrostáticos em poços e furos e na reduzida profundidade destes em relação à superfície do solo e no comportamento perene das linhas de água, são, ao contrário do que é comum considerar, zonas de descarga.

Avaliação da recarga

Na bibliografia são descritas ferramentas e técnicas para estimar a recarga de aquíferos, contudo todas são passíveis de erros e como tal não passam de metodologias para aproximação da realidade, porém, têm a virtude de permitirem atribuir ordens de grandeza aos

volumes que anualmente alcançam a zona saturada. Todas elas assentam em variáveis que controlam a infiltração com o objetivo de expeditamente e com custo reduzido quantificarem o recurso hídrico renovável a cada ano hidrológico. Podem ser citados métodos para a estimar, relacionando balanço de cloretos, isótopos, subida de níveis piezométricos, modelos numéricos de fluxo subterrâneo ou balanços sequenciais temporais de água no solo.

A complexidade dos sistemas hídricos subterrâneos contribui para esta diversidade de metodologias, sempre suscetíveis a novas propostas. Aspetos da superfície, como inclinação do terreno, litologia, tipo de solo e vegetação têm sido valorizados para a estimação da recarga em detrimento do conhecimento do circuito subterrâneo. Deste procedimento têm sido confundidas áreas de descarga com áreas de recarga, sempre que variáveis deste tipo são introduzidas em sistemas de informação geográfica para produzir mapas de zonas de máxima infiltração.

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Infiltração e recarga na renovação de reservas hídricas subterrâneas

É recomendável adotar métodos que se baseiem no conhecimento do circuito subterrâneo e em observações diretas, em tempo real, da evolução dos níveis piezométricos em zonas de recarga após ocorrência de precipitações para quantificar a infiltração que alcança a zona saturada.

Os recursos hídricos disponíveis numa região, quer na forma superficial ou subterrânea, assemelham-se com grande aproximação ao superavit de água num dado intervalo de tempo que é não mais do que o excesso da precipitação sobre a soma da evapotranspiração potencial e a quantidade máxima de água que é cedida ao solo, nesse mesmo período temporal. Nos meses em que a precipitação é superior há superavit, este alimenta o escoamento superficial e o fluxo subterrâneo. Quando é inferior ou igual não existem condições para ocorrência de escoamento à superfície ou em profundidade, sendo de esperar nula a recarga de aquíferos nestas condições.

O método do balanço hídrico de água no solo baseia-se na ponderação entre o volume de água

precipitado (P) a variação da reserva de água no solo (dR), a evapotranspiração real (ETR), e os excedentes (E) ou défices (D) gerados, segundo a equação simplificada: P = dR + ETR + E + D. Podendo ainda ser escrita na forma diferencial: P - R = dS/dt, sendo P a precipitação, R o escoamento superficial e dS/dt a variação do armazenamento de água no sistema.

A equação do balanço hídrico obedece ao princípio da conservação da massa ou princípio da continuidade aplicado a um sistema fechado, de modo que o fluxo à entrada é igual ao fluxo à saída mais o retido no sistema. Se sobre este ocorrer uma determinada precipitação (P) esta gera um escoamento superficial que poderá ser medido na saída ou na linha de água no caso de uma bacia hidrográfica.

Em geral, para uma região, a equação básica do balanço hídrico pode ainda ser escrita em função da evapotranspiração real (ETR), a componente da precipitação que não chega a aparecer no escoamento superficial e na zona saturada, por ficar retida e depois

devolvida pelo sistema, do escoamento superficial (R) e da infiltração (I), da seguinte forma: P - ETR - R - I = ΔS

Estas equações, aparentemente simples, estão associadas a grandes dificuldades na resolução de problemas reais devido à incapacidade em medir ou estimar com rigor os termos das equações. Em estudos locais, de pequena escala, os erros associados são menores por serem mais fiáveis as estimativas encontradas para os parâmetros envolvidos. Porém, a nível regional a quantificação é mais grosseira.

O balanço hídrico de água no solo tem início no primeiro mês que prossegue à época seca, que marca o início das primeiras chuvas ou do ano hidrológico. Em Portugal, o início do ano hidrológico pode oscilar entre os meses de setembro e outubro, contudo convencionou-se o seu início a 1 de outubro de cada ano. O balanço é executado considerando as condições iniciais de humidade zero no solo ou nula a reserva de água utilizável no sistema. Os valores de precipitação são os observados em estações ou

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posto udométricos situados no local de estudo e devem ser tomados a partir de médias de séries de 30 anos de registos consecutivos.

A evapotranspiração potencial é na maior parte das vezes estimada a partir de fórmulas empíricas deduzidas tendo como referência a temperatura média mensal e a insulação à latitude do local considerado.

A capacidade de campo é a humidade máxima do solo após libertação por percolação da água gravítica. Resulta do equilíbrio entre as forças de retenção e a ação da gravidade. Chama-se coeficiente de emurchecimento permanente ao limite mínimo da humidade do solo que é compatível com a sobrevivência das plantas. Abaixo deste valor as plantas são incapazes de extrair água ao solo para suporte dos seus processos vitais. A diferença entre a capacidade de campo e o coeficiente de emurchecimento designa-se por capacidade de água utilizável ou reserva útil. Qualquer uma destas grandezas pode ser expressa em mm de altura equivalente de água existente numa dada

massa de solo. Uma vez que o valor da reserva útil varia com o tipo de solo e vegetação, faz todo o sentido utilizar um valor uniforme de 100 mm dadas as dificuldades de o estimar com rigor em regiões muito extensas.

Caso de estudo

Tomando como exemplo a região de influência da estação de Alcochete (21D/01UG), da rede de monitorização meteorológica da Autoridade Nacional da Água (https:// snirh.apambiente.pt/index. php?idMain=2&idItem=1), procedeu-se à elaboração de balanços sequenciais mensais de água no solo para o período compreendido entre os anos hidrológicos de 1931/32 e 2021/22, para estimar os excedentes gerados em cada ano hidrológico e assim constatar a possibilidade de ocorrer recarga de aquíferos.

Nesta estação, a série de registos de precipitação é praticamente contínua até 2006, data a partir da qual surgem hiatos de informação por vezes em anos hidrológicos completos que se devem a motivos vários, podendo estes estar relacionados

com a inoperacionalidade do pluviómetro por este se encontrar com a bateria descarregada. Para tornar possível a elaboração de balanços até ao ano hidrológico de 2021/22, os valores em faltam foram estimados a partir dos registos, sempre que possível, observados na estação mais próxima. Foram considerados os valores registados nas estações de Vila Nogueira de Azeitão, Monte de Caparica, Sacavém e São Julião do Tojal.

A evapotranspiração potencial considerada nos balanços para a mesma envolvente territorial foi a proposta para a estação de Alcochete PU por Mendes & Bettencourt, 1980. Sendo o valor anual de 818 mm e nos meses de setembro a outubro de 92 mm, 68 mm, 40 mm, 25 mm, 23 mm, 27 mm, 43 mm, 56 mm, 84 mm, 109 mm, 129 mm e 122 mm, respetivamente. Tomou-se como início do ano hidrológico o mês de setembro e nula a humidade do solo no início do balanço e valor máximo de 100 mm.

Nos balanços é percetível a irregularidade temporal na intensidade e distribuição da precipitação bem como na

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Infiltração e recarga na renovação de reservas hídricas subterrâneas

ocorrência e nos valores de excedente gerado (figuras 1 e 2). Dos 90 balanços efetuados apurou-se que para valores de precipitação média anual inferiores a 265 mm é nula a probabilidade de ocorrência de excedentes e consequentemente também a inexistência provável de se verificar recarga subterrânea. Para valores superiores de precipitação e

até aos 466 mm o excedente hídrico gerado depende da intensidade da precipitação e da distribuição ao longo do ano hidrológico, podendo este oscilar entre 7 e 127 mm. Nestas condições, a possibilidade de ocorrer recarga é muito aleatória e os valores também. A existência de excedente somente fica garantida quando a precipitação anual ultrapassa

os 466 mm. A partir deste valor de precipitação e até aos 710 mm o excedente gerado poderá situar-se entre os 32 e os 300 mm. Para valores máximos de precipitação, superiores a 710 mm, o excedente anual surge proporcional ao valor da precipitação e superior a 300 mm, sendo independente da distribuição da precipitação ao longo do ano.

Figura 1 - Excedente gerado pela precipitação anual, considerando os balanços de água no solo e os dados de precipitação dos anos hidrológicos de 1931/32 a 2021/22, observados na estação udométrica de Alcochete (21D/01UG) e admitindo a Evapotranspiração Potencial igual à estimada pela fórmula de Thornthwaite, 1948, e a capacidade de campo, 100 mm, igual à água utilizável ou reserva útil para a estação de Alcochete PU (Lat. 38045’ N, Long. 8059’ W)

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800 700 600 500 400 300 200 100 0 200 400 600 800 1000 1200 0 Excedente anual (mm) Precipitação anual (mm)
Precipitação vs. Excedente, incluindo recarga

Distribuição da precipitação anual (mm) desde 1931 e excedente gerado

anos com excedente superior a 300 mm anos com excedente variável, entre 7 e 300 mm anos sem excedente e sem carga

Anos hidrológicos: 1931/32 a 2021/22

Considerando ainda a precipitação anual estimada nos últimos 14 anos hidrológicos, de 2008/09 a 2021/22, verifica-se que em 11 anos não houve condições favoráveis à ocorrência de recarga e em 9 dos quais em anos consecutivos, de 2013/14 a 2021/22. A precipitação anual neste período oscilou entre 39 mm (2018/19) e 250 mm (2011/12), sendo a média destes anos de 131 mm/ano, menos de

20 % da precipitação em ano médio. A frequência, nas últimas 2 décadas, de anos com precipitação muito baixa não agoira nada de bom para a renovação das reservas hídricas subterrâneas, cada vez mais depauperadas face ao aumento da exploração. Em anos secos o pedido de licenciamento para novas captações aumenta consideravelmente e o volume de água captada dos aquíferos.

Valores estimados a partir de registos de estações próximas

Conclusão

A gestão sustentável de recursos hídricos subterrâneos não pode de modo algum ignorar a capacidade de regeneração dos sistemas e deve, recorrendo a modelos de simulação e previsão, ajustar as extrações à renovação considerando intervalos temporais compatíveis com os equilíbrios desejáveis entre renovação e utilização.

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1200 1000 800 600 400 200 0 1930 1940 1950 1960 1970 1980 1990 2000 2010 2020 2030 Precipitação (mm/ano)
atualidade
Figura 2 - Distribuição da precipitação anual por ano hidrológico desde 1931/32 a 2021/22 9 anos consecutivos sem recarga (2013/2014 a 2011/2022)

Infiltração e recarga na renovação de reservas hídricas subterrâneas

Referências bibliográficas

Mendes, J. Casimiro & Bettencourt, M.L., 1980.

O clima de Portugal: Contribuição para o estudo do balanço climatológico de água no solo e classificação climática de Portugal

Continental. Instituto Nacional de Meteorologia e Geofísica. Lisboa. 287 p.

Recursos online

https://snirh. apambiente.pt/index. php?idMain=2&idItem=1

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EVENTOS

EVENTOS | 05

Para mais informações www.apda.pt

Eventos APDA

Colóquio “Águas: Valores e Custos, Riscos e Oportunidades”

Comissão Especializada de Legislação e Economia da APDA

Local: Observatório do Sobreiro e da Cortiça, Coruche

Data: 11 janeiro 2023

Encontro “Gestão das Perdas Aparentes de Água - O contributo dos Contadores”

Comissão Técnica de Normalização CT 1116 da APDA

Local: Cine-Teatro Avenida, Castelo Branco

Data: 29 março 2023

Encontro “Redução das Perdas de Água - Um desafio ao alcance de todos”

Comissão Especializada de Sistemas de Distribuição de Água da APDA

Local: Fábrica de Santo Thyrso, Santo Tirso

Data: 6 e 7 junho 2023

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EVENTOS
eventos

Eventos nacionais

Conferências de Março - “Economia CirculAR”

ERSAR

Local: Pavilhão do Conhecimento, Lisboa

Data: 6 março 2023

16o Congresso da Água

APRH

Local: LNEC, Lisboa

Data: 21-24 março 2023

Eventos INTERnacionais

UNESCO-IWRA Online Conference

UNESCO | IWRA

Online

Data: 17-19 janeiro 2023

World Water Tech Innovation Summit 2023

Rethink Events

Local: Londres

Data: 21-22 fevereiro 2023

UN Water Conference 2023

Nações Unidas

Local: Nova Iorque

Data: 22 -24 março 2023

REVISTA APDA 2022 | 59 APDA, NACIONAIS E INTERNACIONAIS

interconectividade entre os riscos globais

Os riscos climáticos e ambientais são o foco central das percepções de riscos globais na próxima década – e são os riscos para os quais parecemos estar menos preparados. A falta de um progresso profundo e coordenado nas metas climáticas expõe a divergência entre o que é cientificamente necessário para alcançar o "net zero" e o que é politicamente viável.

Como as crises atuais desviam recursos dos riscos que surgem a médio e longo prazo, os encargos nos ecossistemas naturais crescerão devido ao seu papel ainda subestimado na economia global e na saúde do planeta. A perda da natureza e as alterações climáticas estão intrinsecamente interligadas – uma falha num núcleo afetará o outro.

Sem mudanças políticas ou investimentos significativos, a interação entre impactos das alterações climáticas, perda de biodiversidade, segurança alimentar e consumo de recursos naturais irá acelerar o colapso do ecossistema, ameaçar a oferta de alimentos e os meios de subsistência em economias vulneráveis ao clima, amplificar os impactos dos desastres naturais, podendo desencadear uma crise humanitária e ecológica – de guerras de água e fome, à sobreexploração contínua de recursos - e limitar o progresso futuro da mitigação climática.

Cenário de riscos globais: um mapa de interconexões

Uso de armas de destruição massiva Resultados adversos das tecnologias de fronteira

Concentração do poder digital

Desigualdade digital

Colapso de infraestruturas tecnológicas críticas

Erosão da coesão social

Grave deterioração da saúde mental

Doenças infecciosas

Colapso ou falta de infraestruturas públicas e serviços

Núcleos

Influência do risco

Alto Médio Baixo

Crime cibernético generalizado e insegurança cibernética

Ataques terroristas

Falsa informação e desinformação

Colapso do Estado

Conflito interestadual

Confronto geoeconómico

Ineficácia das instituições multilaterais

Desastres naturais e condições climáticas extremas

Incidentes de danos ambientais

Migração involuntária em larga escala

Perda de biodiversidade e colapso do ecossistema

Proliferação de atividades económicas ilegais

Condições crónicas de saúde

Recessão económica prolongada

Crises de emprego

Falha na adaptação às alterações climáticas

Crises de recursos naturais

Colapso de uma cadeia de fornecimento de importância sistémica

Fracasso na estabilização da trajetória de preços

Crises de dívida

Crises de custo de vida

Estouro da bolha de ativos

Falha na mitigação às alterações climáticas Limites

Alto Médio Baixo

Categorias de risco Económico

Geopolítico Social Tecnológico Ambiental

Influência relativa

Efeitos de Riscos Globais

Riscos com maior potencial de dano (linha superior) e riscos que irão agravar (linha inferior)*

Económico Ambiental Geopolítico Social Tecnológico

Falhas nas ações climáticas

Condições climáticas extremas

Perda de biodiversidade

Crises de subsistência Erosão da coesão social

Desilusão juvenil

*Espessura da linha dimensionada de acordo com a conta g em de links

Colapso do Estado

Deterioração da saúde mental

Estagnação prolongada

Atividades económicas ilegais

Poluição prejudicial à saúde

Crises de recursos naturais

Desastres geofísicos

Migração involuntária

Doenças infecciosas

Danos ambientais humanos

Contestação de recursos geopolítico s

Confrontos geoeconómicos

Fratura nas relações interestaduais

Falha na infraestrutura pública

Condicões climáticas extremas

Erosão da coesão social

Crises de subsistência

Crises de dívida

Colapso da segurança social

Colapso do multilateralismo

Falha na ação climática

Perda de biodiversidade

Fonte: WorldEconomicForum, The GlobalRisks Report 2022 e 2023 https://www.weforum.org/reports?platform=centre-for-the-new-economy-and-society#filtert

ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE DISTRIBUIÇÃO E DRENAGEM DE ÁGUAS

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AS GUERRAS DA ÁGUA - Geopolítica e geoestratégia de um bem fundamental

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USOS DA ÁGUA PARA OS HUMANOS versus NATUREZA - CONFLITO OU PACTO DE SOBREVIVÊNCIA?

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ESPAÇO DO CONSELHO DIRETIVO

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FICHA TÉCNICA

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