Revista APDA #25 - 2º trimestre 2022

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REVISTA

EDIçãO 25 2º TRIMESTRE

2022 ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE DISTRIBUIÇÃO E DRENAGEM DE ÁGUAS

ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE DISTRIBUIÇÃO E DRENAGEM DE ÁGUAS

ÁGUA, ENERGIA, ALIMENTOS


Edição APDA

Projeto Gráfico OT Comunicação

Diretor Sérgio Hora Lopes

Diretora Criativa Sandra Souza

Conselho Editorial Inês Matos Margarida Esteves Paulo Nico Pedro Béraud Pedro Laginha

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Coordenação Ana Antão

ÓRGÃOS SOCIAIS DA APDA ASSEMBLEIA GERAL Presidente: Francisco Silvestre de Oliveira Secretário: Francisco Marques Secretário: Gertrudes Rodrigues

EDITORIAL

# FICHA TÉCNICA

CONSELHO DIRETIVO Presidente: Rui Godinho Vice-Presidente: Joana Felício Vice-Presidente: J. Henrique Salgado Zenha Vice-Presidente: Nuno Campilho Vice-Presidente: Rui Marreiros Vice-Presidente: Susana Ferreira CONSELHO FISCAL Presidente: Carlos Pinto de Sá Secretário: Carlos Silva Secretário: Jorge Nemésio

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte pode ser reproduzida, no todo ou em parte, por qualquer meio, sem indicação da respetiva fonte. Revista APDA é uma publicação trimestral. Para mais informações sobre publicidade ou informações gerais, Tel.: (+351) 218 551 359 ou E-mail: geral@apda.pt APDA - Associação Portuguesa de Distribuição e Drenagem de Águas Av. de Berlim, 15 - 1800-031 Lisboa - Portugal • Tel.: (+351) 218 551 359 • E-mail: geral@apda.pt


Nexo água-energia-alimentos A relação entre a água, a energia e a produção de alimentos é uma evidência e uma realidade que, pode dizer-se, existe desde a sedentarização do ser humano e o aparecimento da agricultura e das primeiras cidades.1 A disponibilização de água (captação, transporte, distribuição) requer energia, e esta, sob distintas formas, para ser gerada necessita de água, indispensável pelo seu lado para produzir, processar e distribuir alimentos, atividades que, por sua vez, igualmente requerem energia. Com a evolução da história humana a importância desta relação torna-se cada vez mais evidente. As razões são as mais diversas: a demografia crescente implica mais disponibilidade de água, energia e alimentos, a escassez de água intensifica-se, a erosão do solo alarga-se, as modificações do clima alteram as caraterísticas locais do ambiente e impactam em áreas mais diversas, e a geopolítica, que interfere na forma como os recursos são utilizados e na sua produtividade, mudou e continua a ganhar novas formas. Enfim, este processo de alterações da forma como se vive no planeta tem-se acentuado e assume feições tais que parece vivermos em tempos em que os designados “cisnes negros”, de tão frequentes, se tornam” brancos”. Habitamos um mundo mais complexo, além de complicado, e temos de encontrar respostas para essa complexidade a bem da nossa sobrevivência.

O Nexo água-energia-alimentos, entendido como uma forma de gestão que potencia as sinergias aproveitando as conexões e interdependências entre os três setores, ganha uma importância crescente e torna-se um tema cada vez mais realçado a partir da década passada. As razões são fáceis de entender se pensarmos nos desafios que são colocados a todos os agentes políticos e empresariais responsáveis por gerir a produção de bens e serviços imprescindíveis à vida humana, com uma crescente escassez de recursos naturais (água, solo, energia). Como diz Holger Hoff, num texto de 2011, considerado seminal sobre o tema, publicado pelo Stockholm Environment Institute, “A abordagem de nexo pode melhorar a segurança hídrica, energética e alimentar, aumentando a eficiência, reduzindo trade-offs, construindo sinergias e melhorando a governança em todos os setores.”2 Já referimos atrás, ainda que indiretamente, que a questão da segurança, realçada por Hoff, ganhou nos últimos tempos uma importância acrescida pois ninguém arrisca prognosticar como iremos evoluir no futuro, mesmo a curto prazo. A pandemia ainda inacabada da COVID-19, seguida pela guerra na Ucrânia, cujo fim e efeitos políticos, ambientais, económicos e sociais são de antecipação impossível, agravou riscos já conhecidos, nomeadamente os derivados da mudança climática. Este agravamento dos riscos, quando se vive num mundo cada vez

Uma perspetiva histórica para se compreender como a água, a produção de energia e a alimentação estão profundamente ligadas (sem esquecer o caráter político da relação entre todos estes elementos) pode ser vista, por ex., em Boccaletti, Giulio “Água: uma biografia”, 2022, Edições Saída de Emergência, Lisboa. 2 Hoff, H. (2011), Understanding the Nexus, Background Paper for the Bonn 2011 Conference: “The Water, Energy and Food Security Nexus”, Stockholm Environment Institute, Stockholm. 1


# EDITORIAL mais incerto, torna ainda mais necessário para quem gere bens como a água, a energia e os alimentos tenha em conta nas suas decisões empresariais ou de política pública o nexo existente entre eles e o potenciar das suas sinergias. Independentemente do que se possa dizer ou pensar sobre o que irá acontecer num futuro mais próximo ou mais longínquo, qualquer português compreende bem a importância deste nexo e para isso bastar pensar no que tem sido o ano hidrológico em curso. Devido à seca prolongada, a insuficiência de recursos hídricos refletiu-se quer no abastecimento de água à população, embora sem que ela a tenha sentido, na produção de energia, na agricultura e na pecuária. Mas o que é mais grave é que a situação vivida este ano não é uma exceção no comportamento da precipitação nas últimas décadas. Se se referir que, em 30 de setembro, data que assinala o fim do ano hidrológico, nos últimos oito anos pelo menos uma parte do território nacional estava em seca e nalguns casos mesmo a sua quase totalidade, percebe-se bem que tudo indicia que este fenómeno não seja propriamente conjuntural. Abordar e divulgar formas de potenciar este nexo é sempre importante, mas, dada a situação internacional e nacional, tem uma particular oportunidade a escolha deste tema para o número do 2.º trimestre de 2022 da Revista APDA. Para analisar esta complexa realidade convidámos vários especialistas que de um modo ou outro refletiram, investigaram e publicaram sobre os temas em apreciação e que nos dão uma multifacetada visão do assunto. Teremos assim Pedro Cunha Serra, que nos fala sobre uma “A tempestade (quase) perfeita”, e Clemente Pedro Nunes, que faz

uma “reflexão cívica e estratégica” sobre o “Abastecimento de Água e a Eletricidade em Portugal”. Numa perspetiva bem diferente, João Joanaz de Melo reflete sobre “Água, energia e alimentos: conversão, eficiência, colaboração”. Helena M. Ramos escreve-nos um detalhado artigo sobre a melhoria da eficiência energética das redes de água através da utilização da tecnologia microhídrica (MHP). Sobre as formas eficientes do uso da água na agricultura escrevem Gonçalo C. Rodrigues e Ricardo Braga. Por último, a Comissão Especializada de Economia Circular da APDA avalia as práticas de economia circular das Entidades Gestoras portuguesas. A todos os autores os nossos agradecimentos pelos contributos e esperemos que os nossos leitores saiam destas leituras mais conscientes da importância de olhar os recursos de um modo mais integrado e mais convictos de que, mesmo em conjunturas como a que vivemos, é sempre possível inovar e encontrar novos caminhos.


O Conselho Editorial da Revista APDA foi alargado com a entrada de duas jovens, mas já experientes técnicas, que o vieram enriquecer e diversificar, quer em termos de conhecimento quer de género. Refiro-me a Inês Matos e a Margarida Esteves. A Inês Matos é licenciada em Engenharia do Ambiente pela Universidade de Aveiro e pósgraduada em Direito das Águas. Iniciou a sua carreira profissional na Luságua em 1996, foi Diretora de Produção da Macraut Ingenieros SL, foi Coordenadora na Águas de Trás dos Montes e Alto Douro, SA. Desde 2009 é Diretora na Águas do Ribatejo, EIM, SA. A Margarida Esteves é formada em Engenharia Civil pela FCT/UNL, com Mini-MBA do ISCTE e pós-graduação em Gestão e Estratégia na NOVA SBE (School of Business and Economics). Iniciou a sua carreira na DVH Tecnopor - Consultores Técnicos, Lda em 2004, foi responsável do Serviço de Operação e Manutenção de Redes da Águas do Sado, SA, Diretora de Projeto da Hubel Indústria da Água, SA, Administradora Executiva da Praia Ambiente, EM da Ilha Terceira - Açores e, desde 2019, é Diretora Comercial do Departamento de Águas Potáveis e Residuais da Tecnilab, SA.

Sérgio Hora Lopes Diretor da Revista APDA


CONSELHO DIRETIVO

ESPAÇO J. Henrique Salgado Zenha Vice-Presidente do Conselho Diretivo da APDA


É necessário fazer uma nova abordagem à política geral da água em Portugal, investindo na sua definição global e não exclusivamente setorial. Tal decorre de várias razões, desde uma relativa secundarização das políticas da água e o apagamento de uma perspetiva intersetorial para os recursos hídricos até à explosão dos choques estruturais, com tremendas consequências neste século. Se há um tema que sublinhe a necessidade de reinventar a política da água é exatamente a relação entre água, energia e alimentação. Antes de mais, convém refletir na profunda alteração da vivência do último quartel do Século XX, pelo menos nos seus dois polos dominantes, Ocidente e Ásia-Pacífico: a perspetiva otimista então corrente, de desenvolvimento constante e globalmente harmónico, voou em pedaços, com repercussão na dimensão dos recursos hídricos. Nos tempos presentes estamos bem imersos no Século XXI, não apenas em termos cronológicos, mas também no sentido habitualmente usado de associação da noção da mudança de século a transformações inesperadas ou roturas com a evolução do século anterior. O Século XXI, nos seus primeiros 22 anos, brindou-nos com três crises ou - mais corretamente três mudanças estruturais, impensáveis imediatamente antes para o comum dos mortais: a crise financeira do fim da sua primeira década, com efeitos permanentes em Portugal desde então, a pandemia, no fim da segunda década, e a guerra na Europa, no princípio da terceira década, estando ainda a ser apreendida a totalidade das consequências destas últimas. Subjacente a todos estes profundos impactos estruturais, o Século XXI deu-nos também, não a emergência de outra crise, mas a emergência da consciência acentuada da mais profunda questão com que nos defrontamos atualmente: as alterações climáticas e a dimensão das suas repercussões na estruturação do ambiente da Terra. A implosão do otimismo novecentista e a presença dessas alterações estruturais têm de conformar toda a análise da relação entre água, energia e alimentação e obrigam a uma reflexão sobre as políticas da água e a uma reaprendizagem da sua essencial importância. Um dos aspetos mais curiosos da situação atual no País é, provavelmente, a constatação de que os problemas centrais do setor não são os financeiros, mas os políticos, no duplo sentido de escassa prioridade e difícil harmonização política (politics) e de fracionamento das medidas para os recursos hídricos e a sua relação com os serviços da água, a energia e a agricultura (policies). De facto, todos temos assistido, provavelmente com opiniões diferentes, a desenvolvimentos políticos relativos aos serviços da água (agregação de entidades gestoras em alta, criação do Fundo Ambiental, agregações de entidades gestoras em baixa, atribuição de fundos europeus ainda importantes, investimentos previstos no PRR, preparação do PENSAARP 2030, entre outros), REVISTA APDA_ APDA _ 2022

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# ESPAÇO DO CONSELHO DIRETIVO bem como temos assistido a desenvolvimentos políticos relativos à energia de origem hídrica (previsão, atribuição e abandono de concessões hidroelétricas) e, até, a desenvolvimentos de planos de irrigação (recente Estudo de Regadio 20/30) com repercussões na produção agrícola do País. A APDA tem vindo a produzir documentos temáticos sobre todos estes temas, que estão disponíveis no seu website (www.apda.pt, Documentação - Pareceres). Mas é essencial uma visão geral - que se sobreponha a abordagens setoriais ou casuísticas e lhes dê um enquadramento orientador e global - ainda mais nesta fase de profunda recriação dos paradigmas energéticos, alimentares e ambientais. Assim, citando só para alguns exemplos em que uma visão global da água teria ajudado muito, a relação do Fundo Ambiental com o setor em geral poderia ser mais sustentada e mais equitativa, poder-se-ia, com harmonização das vontades política e regulatória, ter ido mais longe na relação entre fundos europeus, transparência contabilística e sustentabilidade financeira tendencial, as atribuições exclusivamente casuísticas do PRR poderiam ter sido evitadas, as oscilações sobre os aproveitamentos hidroelétricos não seriam tão grandes, o estudo do regadio ter-se-ia lembrado que existem outros usos da água além dos agrícolas, alguns consumidores de água não estariam a pagar tarifas quase inúteis, já que certos meios recetores continuam poluídos por efluentes pecuários, as entidades gestoras de águas residuais não teriam regimes fiscais diferentes consoante a sua natureza, as agregações em baixa não teriam uma oneração fiscal mais gravosa do que os municípios de origem, etc. Quer isto dizer que tudo se fez mal? Não, pelo contrário, várias políticas, esforços institucionais e empresariais e investimentos melhoraram a situação do País e o seu reconhecimento só sublinha o interesse em conformá-las sob uma estratégia global. De facto, neste 2022 fraturante, impõe-se, ainda com maior evidência, pensar os recursos hídricos como um todo e não como uma resultante de outras políticas setoriais. As gravíssimas crises energética e alimentar que vivemos, com as dificuldades económicas ainda provenientes das consequências da crise financeira e agora da crescente inflação, são acentuadas em Portugal pela seca e, em plano mais profundo, pela emergência climática. Por isso, é importante olhar para a água como recurso essencial gerador de condições de sustentabilidade ambiental e económica, que deve ser governado como bem essencial e escasso, sob uma orientação política geral que não esteja subordinada, como tantas vezes tem acontecido, aqui à política energética, ali à política fiscal, acolá à política agrícola. Essa governação deve obedecer também a uma visão equilibrada das contribuições dos subsetores, como é, por exemplo, fundamental na relação dos serviços da água com as captações particulares de água e poluidores pecuários ou pluviais e na definição do equilíbrio das respetivas responsabilidades económicas. Ou enfrentar o debate entre as potencialidades e as limitações ambientais da energia hidroelétrica, de forma a obter um equilíbrio de opções estáveis e consequentes.

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Por outro lado, é bem certo que as tremendas carências dos serviços da água no fim do século passado, levaram por vezes à atribuição de maior prioridade à eficácia das soluções do que à respetiva eficiência: há agora um espaço significativo de oportunidades de contribuição daqueles serviços para maior eficiência energética, no que respeita tanto à importante redução de consumos, como à geração de energia pelos caudais de alguns sistemas ou pelas potencialidades do tratamento de lamas; e, além dos benefícios ambientais advenientes desses contributos, há também espaço para outros, que resultem de políticas - regionais, seletivas e equilibradas - de reutilização de águas residuais.

SE ÁGUA É VIDA, A VIDA AGORA TEM DE SER ÁGUA. MAIS DO QUE NUNCA.

Seriam muito bem-vindos três vetores: uma visão que sustente a governação dos recursos hídricos de cima para baixo; a imposição de um tratamento intersetorial e não esparso dessa governação; e o aproveitamento das condições de estabilidade política para superar as inconsistências existentes nos vários subsetores que dependem dos recursos hídricos ou para estes contribuem. Essas são as contribuições mais importantes que podem ser dadas à sustentação energética e alimentar do País.

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# ATUALIDADE

Pedro Cunha Serra

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A tempestade (quase) perfeita

João Joanaz de Melo

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Água, energia e alimentos: conversão, eficiência, colaboração

Clemente Pedro Nunes

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O abastecimento de água e a eletricidade em Portugal: uma reflexão cívica e estratégica

Gonçalo C. Rodrigues e Ricardo Braga

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Digitalização e uso eficiente da água na rega

Helena Margarida Ramos

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Nexo entre Água - Energia - Alimento

Comissão Especializada de Economia Circular

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Economia circular no setor da água e saneamento em Portugal: situação atual e linhas de atuação futura

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EVENTOS

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INFOGRAFIA

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ÇA

• AL OB GL

ADE SUSTENTÁVEL ERID • FR OSP ON PR TE IRA S

PL AN S IA ÁR ET

MU DA N

CEEC - Comissão Especializada de Economia Circular

ENERGIA

procura, oferta e ativos PESSOAS, PAISAGENS E ECOSSISTEMAS

ALIMENTO

ÁGUA

ÇA

• AL OB GL

procura, oferta e ativos

MU DA N

ADE SUSTENTÁVEL ERID • FR OSP ON PR TE IRA S

S IA ÁR ET

procura, oferta e ativos

PL AN


ATUALIDADE


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# atualidade

A tempestade (quase) perfeita

Pedro Cunha Serra Consultor independente

Engenheiro Civil pelo IST (1969), iniciou carreira na COBA, onde participou em estudos e projectos de aproveitamentos hidráulicos. Entre 1994 e 1999 foi Presidente do Instituto da Água, tendo participado ativamente nas negociações da Convenção de Albufeira para os rios internacionais ibéricos, nos trabalhos preparatórios da DQA e na coordenação dos trabalhos de elaboração do Plano Nacional da Água e dos planos de bacia. Nessa qualidade foi responsável pela segurança das barragens nacionais. Entre 1999 e 2001 foi Presidente do IRAR, o Instituto Regulador de Águas e Resíduos. Entre maio de 2005 e novembro de 2011 foi Presidente da AdP, SGPS, SA. Dirigiu a elaboração do Plano Estratégico de Abastecimento de Águas e Saneamento de Águas Residuais 2007-2013. É consultor independente.

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“Mais-do-mesmo não nos vai conduzir ao destino que todos almejamos: mais sustentabilidade, maior resiliência, mais valor acrescentado, mais progresso, melhor qualidade de vida. A esta tempestade quase perfeita temos de responder com soluções fora da caixa! São estes alguns dos desafios que vamos ter de enfrentar nos próximos anos.”


A TEMPESTADE (QUASE) PERFEITA

O

nosso país beneficia de recursos hídricos relativamente abundantes, sejam os que têm origem no nosso território, sejam os que nos chegam da nossa vizinha Espanha. Em valores per capita estamos a falar de cerca do dobro da média dos cidadãos europeus: 6 000 contra pouco mais de 3 000 m3/hab/ano. Mas esses recursos estão mal distribuídos sobre o território,

são muito abundantes a Norte do rio Tejo, que deles não retira todo o proveito que seria possível esperar devido à orografia dominante, e escassos no Sul, onde temos mais insolação e melhores terrenos para a prática da agricultura, e sofrem de uma grande irregularidade interanual. Assistimos nos últimos meses a uma seca muito severa, que tem levado muitos comentadores a dizer

que estamos à beira de uma catástrofe ecológica e social. Que esta seca tem sido severa, não restam dúvidas, ainda que mais recentemente tenha começado a chover. A memória do Homem é curta e tendemos a varrer para o sótão do nosso cérebro as memórias mais desagradáveis, como é o caso de muitas outras secas que vivemos no passado mais REVISTA APDA_ APDA _ 2022

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# atualidade ou menos recente. Ossos do ofício, tenho bem presente a seca de 1991-1995, quando, particularmente no último ano desse período, sendo Presidente do Instituto da Água, me coube na sorte andar a percorrer o Alentejo à procura de soluções para o abastecimento de água às populações, abrindo furos e instalando jangadas nas albufeiras para ir buscar água aos seus volumes mortos, água essa que depois transportávamos por autotanque até às aldeias e vilas alentejanas. Alqueva ainda não existia (nem Odeleite, nem Odelouca, mas o Algarve dispunha ainda de alguns recursos subterrâneos de que se valia) e muitos já apontavam as baterias contra este projecto alegando danos e prejuízos vários, cada qual mais inverosímil e que a realidade não veio confirmar. No último ano deste período de seca, mais precisamente no dia de S. Martinho (11 de novembro) de 1995, choveu copiosamente e as inundações surgiram por todo o lado, fazendo com que passados uns dias já ninguém se lembrasse da seca tão severa que assim acabava. É sempre assim, a nossa memória é curta e

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esquecemos rapidamente os fenómenos extremos tão característicos do nosso clima! No ano hidrológico de 1944/45 não correu uma gota de água na bacia do rio Sado, pesem embora os seus mais de 7 500 km2 de área, e o caudal integral anual do rio Tejo em Santarém terá sido da ordem dos 1 700 hm3 (contra os 13 000 que são a sua média anual). Em contrapartida, no ano de 1978 ocorreu no Tejo uma cheia com um caudal de ponta de cerca de 14 200 m3/s, com o que, só no mês de fevereiro daquele ano, terão passado naquela mesma secção cerca de 8 300 hm3! Naquele ano a povoação de Reguengo do Alviela esteve isolada durante cerca de 3 meses do resto do Ribatejo, coisa de que nos começa a faltar a memória. Os aproveitamentos hidráulicos, leia-se as barragens e suas albufeiras, como é o caso da cascata do Zêzere ou o Alqueva, oferecem um contributo muito importante para a criação de riqueza, para a redução das emissões de GEE e para os progressos que podemos observar na empresarialização da nossa agricultura, para a nossa autonomia alimentar e para o

equilíbrio da nossa balança de pagamentos com o exterior. Atendendo às características do nosso clima, sem elas estaríamos muito pior! O sucesso de Alqueva já no início deste século veio pôr termo entre nós ao bloqueio na construção de novas barragens que teve origem na suspensão da construção da barragem de Foz Côa em 1996 e no processo lançado pela Comissão Mundial de Barragens em 1998 que questionava a sua necessidade, e outros projectos saltaram imediatamente para cima da mesa como cogumelos. Surgiu então o PNBEPH, o Plano Nacional de Barragens com Elevado Potencial Hidro-eléctrico, com as suas 10 barragens a construir na metade Norte do país, da margem direita do Tejo ao Minho. Desatentos ao quanto o mundo havia mudado neste intervalo de tempo, foram desenterrados vários projectos que estavam nos planos de barragens dos anos 1960 do século passado, e os transvases respectivos. Longe iam, no entanto, os tempos em que dizíamos que “nem uma gota de água


A TEMPESTADE (QUASE) PERFEITA

deve chegar ao oceano sem ser aproveitada” e que “cada escudo aplicado em obras hidráulicas é dinheiro bem aplicado” ... É que as barragens e as suas albufeiras têm sempre um impacto muito significativo, praticamente irreversível e dificilmente mitigável. Podem construir-se escadas de peixes, assegurar caudais ecológicos, reduzir a afluência de águas sujas e proteger a qualidade das suas águas, mas não se consegue garantir o transporte de caudal sólido para jusante que é tão necessário à protecção da nossa orla costeira, impedir a introdução de espécies exóticas ou garantir as condições para a migração dos peixes que sobem os rios para a desova. Os benefícios que podem ser conseguidos com a construção de uma barragem têm por isso de ser devidamente confrontados com os prejuízos de toda a ordem que também daí advêm, incluídos os de ordem social, que também podem ocorrer. Esses benefícios têm de ser devidamente ponderados, e têm de o ser numa perspectiva multiusos como foi feito com o EFMA. Isso

foi praticamente ignorado no caso do PNBEPH, o Plano Nacional de Barragens com Elevado Potencial Hidroelétrico. E foi assim porque, para além da redução da nossa dependência dos combustíveis fósseis para a produção de energia, pretendia-se encaixar uma receita das concessões para a produção de energia hidroelétrica, que se tinha em vista. O Nexus foi ignorado, ou seja, a possibilidade de desenvolvermos estes aproveitamentos numa perspetiva aproveitamentos multiusos, e as consequências estão à vista: dos 10 aproveitamentos previstos 2 nunca foram sequer licitados (Pinhão, no Vouga, e Almourol, no Tejo) e 4 foram já abandonados por um ou outro motivo pelas suas concessionárias: Fridão, no Tâmega, e Alvito, no Ocreza, pela EDP, Girabolhos no Mondego pela Endesa, e Padornelos, no Tâmega, pela Iberdrola na sequência de declaração de impacte ambiental negativa. Por tudo isto, a gestão dos recursos hídricos tem de estar subordinada a um planeamento estratégico que contemple todas as variáveis desta tão complexa

equação: quantidade e qualidade, montante e jusante, superficiais e subterrâneas, distribuição no território, presente e futuro, Portugal e Espanha, energia, agricultura e outros sectores económicos. É isto o Nexus, nosso conhecido há mais de 50 anos, mas que, para surpresa daqueles que trabalham no sector, redescobrimos há cerca de uma década atrás aquando da Conferência de Bona (2011) de iniciativa da administração hidráulica alemã. Os últimos planos elaborados nesta perspectiva pela nossa Administração Hidráulica foram-no ainda na década de 1990, ao abrigo do DecretoLei n.º 47/94, de 22 de fevereiro. O Plano Nacional da Água de 2016, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 76/2016, de 9 de novembro, veio retomar esta tradição nacional que tem os seus alicerces naquelas condições do nosso regime hidrológico. Este diploma previa, no seu artigo 2.º, Vigência e Revisão, que ao fim de 8 anos o plano seria revisto, o que devia estar a ser feito neste momento. Mais previa a criação de uma Comissão Interministerial de Coordenação da Água à qual presidiria o ministro titular REVISTA APDA_ APDA _ 2022

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# atualidade da pasta, o que não veio a acontecer. Em vez disso foi criada mais recentemente uma Comissão de Gestão da Seca, de âmbito mais limitado como o nome indica, mas que tem vindo a desenvolver um trabalho que temos de considerar notável. E não se culpem os Planos de Gestão de Região Hidrográfica (PGRH) da DQA por esta situação, pois eles não podem ir para além da gestão da qualidade das águas, lato sensu, sob pena de violarem os limites do direito comunitário. O PNBEPH não foi o único plano sectorial desenvolvido entre nós nos últimos anos, pois também a agricultura tem produzido os seus planos, os mais recentes dos quais o Plano Nacional de Regadio, PNR 2021, e o plano Regadio 2030. E o sector dos serviços de água para consumo tem tido desde o início deste século os seus Planos Estratégicos de Abastecimento de Água e Saneamento de Águas Residuais (PEAASAR), estando em curso de elaboração a sua 4.ª edição (PENSAARP 2030). Tudo isto a par dos PGRH, que vão já no seu terceiro ciclo (2022-2027). E, ainda que de âmbito mais limitado,

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os planos de resiliência hídrica que a APA tem vindo a desenvolver para as regiões que já se encontram em situação deficitária, como é o caso das bacias do Tejo e ribeiras do Oeste e do Algarve. Nada disto é demais, se atendermos às circunstâncias peculiares em que nos encontramos mergulhados: • Saída da crise pandémica e necessidade de retoma das actividades económicas e do convívio em sociedade, com toda a pressão sobre os recursos hídricos que lhe está associada: regresso dos turistas, aumento do consumo, aumento da mobilidade; • Necessidade de combater e de nos adaptarmos às alterações climáticas, promovendo as energias renováveis (as hidroelétricas têm aí um papel a desempenhar, como seu viu recentemente quando a EDP quase despejou as albufeiras da cascata do Zêzere para assegurar a satisfação da procura de energia elétrica) e aumentando a eficiência no uso da água (redução das perdas, digitalização, recuperação dos custos, reutilização das águas residuais em

fins compatíveis com a sua qualidade) e da energia (dificuldades no abastecimento, custos em brutal aumento); • Naquilo que estiver ao nosso alcance, e tendo em conta a nova ordem internacional emergente do conflito na Ucrânia, necessidade da promoção da nossa autonomia, alimentar e energética, ainda que no quadro da EU; • Volume excecional de recursos financeiros que estão disponíveis para esta transição, PRR e outros, e condições muito favoráveis de mercado que nos estão a ser proporcionadas pelos nossos parceiros comunitários. O novo ciclo político que se inicia com a tomada de posse dos deputados eleitos em 30 de janeiro e do novo Governo, vai exigir que sejamos sensíveis e estejamos atentos ao novo paradigma que vai emergir destas novas circunstâncias e que procedamos em conformidade. Mais-do-mesmo não nos vai conduzir ao destino que todos almejamos: mais sustentabilidade, maior resiliência, mais valor acrescentado, mais progresso, melhor qualidade de vida.


A TEMPESTADE (QUASE) PERFEITA

A esta tempestade quase perfeita temos de responder com soluções fora da caixa! São estes alguns dos desafios que vamos ter de enfrentar nos próximos anos.

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# atualidade

Água, energia e alimentos: conversão, eficiência, colaboração

João Joanaz de Melo Professor Associado na Universidade Nova de Lisboa

Licenciado e doutorado em Engenharia do Ambiente e agregado em Sistemas Ambientais. Professor Associado na Universidade NOVA de Lisboa, investigador no CENSE, desenvolve ensino, investigação e consultoria, sobre avaliação e políticas de sustentabilidade, ecodesign, eficiência energética e conservação da Natureza. Coordena o Mestrado em Engenharia do Ambiente. Orientou estágios e investigação aplicada em mais de 200 parcerias universidade-empresas. Autor do livro de divulgação científica “O que é Ecologia” e de cerca de 300 artigos, relatórios e comunicações científicas, 1/3 com circulação internacional. Membro do Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável. Amante da Natureza desde sempre, foi fundador e presidente do GEOTA.

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“O maniqueísmo e a lógica que “a culpa é dos outros” simplesmente não funciona. Precisamos de criar mecanismos de diálogo muito mais eficazes.”


Água, energia e alimentos: conversão, eficiência, colaboração

O PROBLEMA Desde há muitos séculos que a Humanidade tem vindo a sobre-explorar os recursos naturais (Harari, 2011). Contudo, nas últimas décadas começámos a ultrapassar os limites planetários em questões fundamentais como os recursos vivos, o clima, a água, o solo, a extracção de matérias-primas e a

capacidade de depuração da poluição gerada (WWF, 2020). Em grande parte do Planeta já existe um estrato geológico, especialmente abundante em metais refinados e plásticos, que filósofos e geólogos já designam como Antropoceno - e não pelas melhores razões. Repetidos alertas da comunidade científica já levaram a decisões políticas moderadamente ambiciosas, como o Acordo de Paris no

âmbito da Convenção das Alterações Climáticas, ou o Pacto Ecológico Europeu; mas a implementação destes acordos está muito aquém dos compromissos e necessidades. Alertas dramáticos chegaram-nos nos últimos dias pela voz do SecretárioGeral das Nações Unidas, em vários domínios: segundo a Organização REVISTA APDA_ APDA _ 2022

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# atualidade Meteorológica Mundial (WMO, 2022), indicadores climáticos críticos estão a bater records com cada nova avaliação, excedendo as previsões; a escassez de cereais no mercado internacional, provocada pela invasão da Ucrânia pela Rússia, poderá causar uma crise alimentar global sem paralelo; e o número de refugiados e deslocados em todo o Mundo não pára de aumentar, pela combinação dos desastres climáticas e conflitos político-militares. Os domínios da água, energia e alimentação são especialmente críticos e inextricavelmente ligados. Nunca conseguiremos resolver os problemas presentes e latentes sem os considerar em conjunto, usando o conhecimento que já temos (e frequentemente desprezamos) e procurando soluções inovadoras, incluindo novas tecnologias. É importante aqui dizer, especialmente entre engenheiros e cientistas (que damos o mote para o resto da sociedade): devemos evitar a tentação tecnocrática. A inovação é essencial, mas a nossa história está cheia de tecnologias aparentemente

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milagrosas que se revelaram social e ambientalmente desastrosas, dos CFC aos plásticos ou à energia nuclear. Um exemplo lamentável desta postura em Portugal, bem no centro do nexo água-energiaalimentos, foi o Programa Nacional de Barragens: obliterou o Baixo Sabor, o Tua e o Alto Tâmega, os nossos melhores ecossistemas ribeirinhos, destruindo modos de vida, paisagens únicas, actividades agrícolas e turísticas, para gerar 0,2% da energia do País a custos 3 vezes superiores à média do mercado (Melo e Brazão, 2016). Não há soluções fáceis para problemas desta envergadura e complexidade. Precisamos de criar novos paradigmas, que vão além do vulgarizado (mas muito mal compreendido) “desenvolvimento sustentável”. Proponho aqui para reflexão uma filosofia centrada em três princípios: conversão, eficiência e colaboração.

Conversão Conversão ecológica: esta expressão profética é usada pelo Papa Francisco (2015), na Encíclica Laudato Sí, em linha com propostas da Academia como “parcimónia”, “suficiência” e “decrescimento sustentável”, e também com o slogan popular “não há Planeta B”. Temos hoje um estilo de vida consumista baseado num paradigma de desenvolvimento insustentável, onde o sucesso é medido por sinais exteriores de riqueza (a casa, o carro, as jóias, a feira das vaidades em geral) - não apenas no Ocidente, mas em grande parte do Mundo, com exclusão dos mais pobres. Consumimos e descartamos recursos naturais e bens de consumo (água, energia, alimentos, solo, matériasprimas, biodiversidade), e também pessoas, como se não houvesse amanhã. As guerras são mais um sinal deste modo de estar prevalecente, de desrespeito pelo outro. Enquanto não mudarmos este paradigma, não há esperança de resolvemos os conflitos presentes e previsíveis.


Água, energia e alimentos: conversão, eficiência, colaboração

É hoje muito claro que os caminhos de menor conflitualidade social e maior probabilidade de sucesso passam por uma estratégia de baixa intensidade de uso da energia, e em geral do uso parcimonioso dos recursos (IPCC, 2018). A transição para uma sociedade mais sustentável requer uma profunda mudança de mentalidades. Em particular, temos de ser capazes de distinguir o essencial do acessório. Não podemos degradar mais os nossos ecossistemas, em especial os ribeirinhos, que se encontram entre os mais ameaçados. Não podemos destruir mais solos com capacidade agrícola, que já são escassos, em Portugal e no Mundo. Se um qualquer projecto vai causar danos irreversíveis nestes recursos, temos de ser capazes de encontrar alternativas.

Eficiência Há hoje em dia já um reconhecimento generalizado da necessidade de tornarmos muito mais eficiente o uso de recursos. Mas não estamos a pôr em prática esta convicção.

Transversal a todos os domínios e à sua interrelação é a necessidade de cruzar e aprofundar o nosso conhecimento científico. Já sabemos muito, temos em muitos casos o know-how e a tecnologia, mas precisamos de saber muito mais, em especial nos sistemas ambientais e sociais: água, solo, práticas agrícolas, instrumentos de intervenção eficazes na sociedade. Só se consegue gerir o que se conhece. Temos de tomar decisões com base em indicadores de desempenho reais (sociais, ambientais, económicos) e não com base em preconceitos, voluntarismos, ou corrupção, que privilegiam uma tecnologia ou um ator económico em detrimento de outros. No domínio da energia, temos potenciais técnicos de poupança que atingem os 50% do consumo presente, enquanto os potenciais economicamente interessantes atingem 20 a 30%, em todos os sectores, com destaque para os edifícios, a indústria e os transportes (Melo et al., 2020). A maioria das medidas necessárias para cumprir estes potenciais de

eficiência (quer tecnológicas quer organizacionais) tem custos substancialmente inferiores à substituição de fontes. Nos edifícios, as questões críticas são o adequado isolamento das envolventes, o aquecimento de águas (idealmente solar) e a renovação de equipamentos. Na indústria, a questão crítica é a criação de incentivos para a gestão de energia e para o apoio a investimentos com períodos de retorno de 3 a 7 anos. Nos transportes, a questão crítica é a disponibilização de uma rede de transportes públicos de alta qualidade (leia-se alta densidade e frequência, e boa informação), com enfoque nos modos ferroviários apropriados, e complementada com modos suaves. Na transição de fontes energéticas, a questão crítica é optar por tecnologias descentralizadas de baixo impacte (que não são as favoritas do poder políticoeconómico). No domínio da água, já temos ferramentas para fazer uma boa gestão, mas frequentemente não as usamos (Melo, 2021). Refiram-se algumas ideias simples (e nem sequer inovadoras) para melhorar a REVISTA APDA_ APDA _ 2022

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# atualidade

gestão dos nossos recursos hídricos. A salvaguarda dos habitats ribeirinhos e ordenamento das bacias são fundamentais para a biodiversidade e para a regulação do ecossistema em geral, e das secas e cheias em particular. O uso eficiente da água tem de ser a primeira e última prioridade das políticas de gestão. A água tem de entrar na economia circular, incluindo o aproveitamento de águas residuais tratadas,

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a recolha da água da chuva em espaços urbanos, e o tratamento das águas residuais a um nível adequado em função do meio receptor. O planeamento e gestão da água devem ser feitos à escala da bacia hidrográfica. A armazenagem deve ser repensada, privilegiando as águas subterrâneas. É certo que no nosso clima mediterrânico a armazenagem de água é uma

necessidade, quer sazonal quer inter-anual. No passado tem-se seguido a prática de criar oferta excedentária para eliminar constrições à procura. Esta política deve ser invertida: “temos de viver com a água que temos”. Devemos usar primariamente estratégias de armazenagem que se aproximem do ciclo natural da água, como a recarga de aquíferos e a alteração do uso do solo nas bacias, incluindo a


Água, energia e alimentos: conversão, eficiência, colaboração

regeneração de ecossistemas degradados e a promoção da mata de espécies autóctones. São processos difíceis e lentos, mas a melhor aposta a prazo nas múltiplas dimensões da regulação do ciclo da água, da captura de carbono e da salvaguarda da biodiversidade. O domínio alimentar é certamente o mais complexo, desde logo porque tem a ver com o essencial dos hábitos de cada um de nós, e com sistemas de produção pouco flexíveis num mundo em mudança. Portugal sofre de uma grande dependência alimentar do exterior, em especial nos cerais, que são uma das bases da nossa alimentação, o que em qualquer situação de crise gera problemas graves. Podemos ainda assim apontar alguns caminhos. Desde logo, o solo arável tem de ser intransigentemente protegido, e o seu uso adequado incentivado, incluindo o fomento das hortas urbanas e a recuperação de territórios abandonados para fins socialmente úteis. Precisamos de mudar os nossos hábitos alimentares, pelo duplo motivo de ser o mais saudável e de reduzir a nossa pegada

ecológica: comemos e bebemos excesso de açúcar, de gordura, de carne, de refrigerantes; genericamente, comemos em excesso! Do terreno ao que efectivamente comemos, só o desperdício ultrapassa os 50% (entre a actividade agrícola, o transporte, o processamento e o que deitamos fora em nossas casas). Do lado da produção, as últimas décadas viram algum progresso tecnológico (p.e. agricultura biológica, técnicas de irrigação mais eficientes), mas ainda aquém do necessário. Continuam a ser praticadas técnicas culturais destrutivas do solo, como a tradicional lavra ou a aplicação excessiva de pesticidas e fertilizantes, que por sua vez degradam as águas.

más opções. Podem ser substituídas com vantagem pela aposta prioritária na eficiência, e por soluções como a energia solar descentralizada, as comunidades energéticas, os combustíveis derivados de resíduos, as propriedades agrícolas em policultura.

Soluções para a transição energética ou a agricultura que representam conflitos de uso da água e do solo e outros recursos - como as grandes barragens, os parques fotovoltaicos em meio rural, as culturas energéticas, o regadio em larga escala em solos inapropriados, a continuada promoção do automóvel (ainda que com tecnologias ditas “verdes”) - são estrategicamente

Temos que afirmar claramente que nestas matérias a responsabilidade é de todos e cada um. Não há varinhas mágicas. As medidas que é necessário desenvolver são de variada natureza (tecnológica, regulamentar, económica, investigação, informação educação), devendo necessariamente envolver todos os sectores da sociedade (famílias, empresas, sector público, sector associativo) e

Colaboração As soluções tecnológicas existem, mas falta vontade política para criar incentivos e desincentivos adequados, que tendem a afrontar os interesses instalados. Não há soluções fáceis, mas podemos dizer que as soluções mais interessantes são as que decorrem do diálogo entre os parceiros.

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# atualidade todos os níveis de decisão (familiar, organizacional, municipal, regional, nacional, internacional). É muito importante que compreendamos que somos todos parte do problema e, portanto, temos de nos comprometer em ser parte da solução. É uma questão tanto de necessidade como de equidade. O maniqueísmo e a lógica que “a culpa é dos outros” simplesmente não funciona. Precisamos de criar mecanismos de diálogo muito mais eficazes. Há bons exemplos (é o caso, entre outros, do Conselho Nacional de Ambiente e Desenvolvimento Sustentável), mas não têm sido bem aproveitados. Do conhecimento de todos e de esforços de diálogo nascem frequentemente soluções inovadoras e com melhor desempenho dos que as opiniões iniciais de cada parte.

Referências Francisco (2015). Carta Encíclica “Laudato Sí: Sobre o Cuidado da Casa Comum”. Libreria Editrice Vaticana. Harari, Y.N. (2011), Sapiens - A Brief History of Humankind. Vintage (Penguin Random House), London, UK. ISBN: 9780099590088. IPCC (2018). Global Warming of 1.5°C. An IPCC Special Report on the impacts of global warming of 1.5°C above preindustrial levels and related global greenhouse gas emission pathways, in the context of strengthening the global response to the threat of climate change, sustainable development, and efforts to eradicate poverty [Masson-Delmotte et al. (eds.)]. International Panel for Climate Change. Melo, J.J.; Sousa, M.J.F.; Pereira, A.M.; Galvão, A.; Zúquete, E. (2020). Estratégia energética alternativa: avaliação ambiental e económica. Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade NOVA de Lisboa, Dezembro 2020. 79 pp. ISBN 978-972-8893-86-6. Melo, J.J. (2021). Água é vida: 10 mandamentos para a gestão da água no século XXI. In: Martins, J.P, Godinho, F. (Eds), A água e os rios no futuro: contributos do CNA para decisões estratégicas no setor da água, 159-163. Conselho Nacional da Água, Lisboa. ISBN 978-989-33-2396-0. Melo, J.J., Brazão, A. (2016). Saving the last wild rivers in Portugal. In: Melo, J.J. et al (Eds), Proceedings of the 22nd International Sustainable Development Research Society Conference (ISDRS 2016), vol. 1, 602-611. Lisboa, Portugal, 13-15 July 2016. ISBN 978-972-674-791-8. WMO (2022). State of the Global Climate 2021. WMO-No. 1290. World Meteorological Organization. WWF (2020) Living Planet Report 2020 - Bending the curve of biodiversity loss. Almond, R.E.A., Grooten M. and Petersen, T. (Eds). WWF, Gland, Switzerland. https://livingplanet.panda. org/en-us/

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Água, energia e alimentos: conversão, eficiência, colaboração

ÁGUA, ONDE A VIDA SE MULTIPLICA

ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE DISTRIBUIÇÃO E DRENAGEM DE ÁGUAS

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# atualidade

O Abastecimento de Água e a Eletricidade em Portugal: Uma Reflexão Cívica e Estratégica

Clemente Pedro Nunes Professor Catedrático do Instituto Superior Técnico

Licenciado em Engenharia Química - Industrial pelo Instituto Superior Técnico (IST) de Lisboa, 1971. Doutor em Engenharia Química pelas Universidades de Birmingham, 1975, e Técnica de Lisboa, 1976. Agregado em Engenharia Química pelo IST, da Universidade Técnica de Lisboa, maio 2003. Sócio-Gerente da Clemente Nunes - Gestão Empresarial, Lda. Coordenador do Grupo Nacional de Integração de Processos da Agência Internacional de Energia. Vice Chair do TCP IETS da Agência Internacional de Energia. Gestor e consultor de empresas. Investigador do CERENA da FCT. Membro da Assembleia de Representantes da Ordem dos Engenheiros. Membro Conselheiro da Ordem dos Engenheiros. Membro titular da Academia de Engenharia.

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“… nos últimos 20 anos a introdução crescente de novas potências intermitentes, eólicas e fotovoltaicas … veio dar maior importância aos sistemas de barragens”


O Abastecimento de Água e a Eletricidade em Portugal: Uma Reflexão Cívica e Estratégica

O

abastecimento de água às populações e às atividades económicas é uma base indispensável à vida em sociedade. Em Portugal Continental, situado geograficamente na confluência entre os climas atlântico e mediterrâneo, a gestão da água é, desde há séculos, uma das preocupações dos governos, sendo disso exemplo

histórico a construção do Aqueduto das Águas Livres nos tempos do Rei D. João V para abastecer Lisboa e zonas envolventes, e mais recentemente os sucessivos Planos de Rega do Alentejo que se iniciaram em meados do século XX e que culminaram com a construção da Barragem e do sistema integrado de utilização de água do Alqueva, no Baixo Alentejo.

Atualmente os desafios colocados pela necessária adaptação às alterações climáticas, que incluem a construção de grandes albufeiras para fins múltiplos que integram a produção hidroelétrica e o abastecimento de água às populações, bem como à agricultura e às restantes atividades económicas, exigem um planeamento estratégico profundo REVISTA APDA_ APDA _ 2022

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# atualidade que tenha em atenção as interligações aconselháveis entre diferentes bacias hidrográficas, de forma a se poder otimizar a armazenagem e a utilização da água no conjunto de todo o território continental português. Um dos exemplos estrategicamente mais relevantes deste tipo de “utilizações multifacetadas de bacias hidrográficas” é o vale do Zêzere onde atualmente já existem três barragens sequenciais: Cabril, Bouçã e Castelo de Bode. Sendo que é desta última albufeira que se assegura a maior parte do abastecimento de água à Grande Lisboa, e a uma parte significativa da Região Oeste. Para além disso, nos últimos 20 anos a introdução crescente de novas potências intermitentes, eólicas e fotovoltaicas, como elemento estruturante do Sistema Elétrico Português, veio dar maior importância aos sistemas de barragens que podem atuar como “armazenagem indireta de eletricidade” através de sistemas de bombagem/ turbinagem. Em termos tecnológicos simplificados, estes sistemas

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de bombagem/turbinagem podem funcionar sempre que haja pelo menos duas barragens na mesma bacia hidrográfica, em que a albufeira da barragem a jusante tenha a superfície da água a uma cota que permita a respetiva bombagem para a albufeira da barragem situada a montante. Para esse efeito utilizam-se os “excessos“ pontuais de eletricidade criados na rede pelas potências intermitentes. E existirá esse “excesso” de eletricidade na rede sempre que a produção das potencias intermitentes, eólicas e fotovoltaicas, for superior ao consumo que se registe nesse momento. Ao bombar água para montante, está-se a armazená-la a uma cota superior o que permite que depois, quando o consumo de eletricidade aumentar na rede, essa água possa ser turbinada para satisfazer essa procura. Embora este processo sequencial de bombagem/ turbinagem tenha no conjunto perdas energéticas apreciáveis, da ordem dos 25 a 30%, e implique também investimentos adicionais significativos, ele tem sido no caso português a forma

mais económica e eficaz de “armazenar indiretamente eletricidade”, pois desta forma a eletricidade intermitente pode ser “aproveitada“ quando os consumidores efetivamente dela necessitarem. É de sublinhar que a eletricidade enquanto “fluxo de eletrões” não pode ser armazenada diretamente, e que os outros esquemas de “armazenagem indireta de eletricidade” como as baterias, tecnicamente “reatores eletroquímicos reversíveis”, são no caso português mais caros e ambientalmente mais complexos do que a bombagem/turbinagem. Ao viabilizar assim a construção de novas barragens para armazenar/ produzir eletricidade de forma a satisfazer os consumos no momento em que são necessários, possibilita-se também a armazenagem de água e o respetivo fornecimento às populações e às atividades económicas das regiões envolventes destas bacias hidrográficas. É isso que se passa já hoje de certa maneira no Alqueva/


O Abastecimento de Água e a Eletricidade em Portugal: Uma Reflexão Cívica e Estratégica

Bacia do Guadiana, e é isso que se poderá passar em breve na Bacia Hidrográfica do Alto Tâmega, onde estão neste momento em construção várias barragens interligadas com sistemas de bombagem/turbinagem. Mas considero que em termos de reflexão estratégica se pode e deve ir mais longe ao equacionar soluções adicionais que podem permitir simultaneamente aumentar a satisfação dos consumos de eletricidade e de água às populações, aumentando assim a resiliência do nosso território em termos económicos e sociais. Vejamos assim seis potenciais investimentos que poderão ter grande impacto, quer em termos energéticos quer em termos de assegurar o abastecimento de água às populações, num cenário de progressiva redução da pluviosidade em Portugal devido às alterações climáticas: 1. Os baixos caudais do Tejo nacional entre a barragem de Cedilho e a foz do Zêzere têm sido motivo de grande preocupação quando se verificam períodos de estiagem.

Uma das formas de aumentar a resiliência do abastecimento de água nesta região da Beira Baixa/Alto Ribatejo será o transvase a partir do Douro, nomeadamente retomando os trabalhos da barragem de Foz Côa. Não se desconhece a sensibilidade política que levou à suspensão das respetivas obras há mais de 20 anos, mas julga-se que o agudizar das questões relativas ao acesso à água impõe que esta alternativa seja reequacionada. 2. O reforço dos caudais do Médio Tejo acima referido, poderá propiciar a disponibilidade de água nos afluentes da margem esquerda do Tejo, e eventualmente permitir transvases para a bacia do Sado, que está periodicamente sujeita a escassez de água. 3. O reforço da interligação entre a bacia do Mondego e a bacia do Zêzere, logo a jusante da Aguieira, poderá ajudar a regularização dos caudais do Baixo Mondego, evitando assim cheias destrutivas em períodos de grande pluviosidade e, simultaneamente,

aumentando as afluências às barragens já existentes no Zêzere, incluindo ao Castelo do Bode que é a reserva estratégica para o abastecimento de água à Grande Lisboa. 4. No Zêzere, e dada a existência sequencial de três barragens - Cabril, Bouçã e Castelo do Bode - será de estudar a instalação no Cabril e na Bouçã de escalões de bombagem, de forma a permitir produzir eletricidade de acordo com os consumos e, em simultâneo, sem prejudicar as reservas estratégicas de água para Lisboa/ Zona Oeste. Ou seja, o Zêzere passaria a ser um instrumento adicional no controlo das intermitências das potências eólicas e fotovoltaicas sem incorrer nos riscos bem evidenciados este ano com o baixo nível da água da barragem do Castelo do Bode, e que sublinha bem a importância dum projeto deste tipo. 5. Relativamente à armazenagem das águas do rio Zêzere a jusante da barragem do Castelo do Bode, é de sublinhar que já existiram, desde os anos 50 do século XX, vários REVISTA APDA_ APDA _ 2022

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# atualidade projetos para a construção duma barragem no Tejo, logo a jusante do castelo de Almourol. Essa barragem permitiria instalar um sistema de bombagem/turbinagem na própria barragem do Castelo do Bode, para além de reforçar a armazenagem de água no Tejo português. Trata-se, todavia, dum projeto muito complexo com grandes exigências ao nível da engenharia hidráulica e da mitigação de prováveis impactos ambientais. Assim, considera-se que a instalação de escalões de bombagem/turbinagem nas duas barragens já existentes a montante do Castelo de Bode Cabril e Bouçã - poderá alcançar os mesmos objetivos prioritários, mas com muito menos custos: disponibilizar mais eletricidade “firme“ aos consumidores e, em simultâneo, assegurar as reservas estratégicas de água para a Grande Lisboa. 6. O Projeto do Alqueva tem sido de facto um sucesso no aumento

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da disponibilidade de água numa das regiões tradicionalmente mais secas do nosso País. Com a ligação do Alqueva/Bacia do Guadiana à bacia do Rio Mira da maior importância para toda a Região do Sudoeste Alentejano, coloca-se agora a questão das alternativas para o reforço do abastecimento de água ao Algarve, que é a região portuguesa que deverá sofrer o maior stresse hídrico no horizonte 2050. Neste quadro, parece fazer todo o sentido analisar comparativamente o investimento na ligação das barragens e sistemas de abastecimento de água do Mira/Guadiana às barragens da Serra Algarvia, face à hipótese alternativa de se instalarem unidades de dessalinização da água do mar, eventualmente no Sotavento algarvio. Sublinha-se que neste caso, como nos restantes, é a análise estratégica global devidamente fundamentada dos custos/ benefícios das diferentes alternativas que deverá ditar as opções a tomar.

A armazenagem e a gestão integrada da água numa perspetiva estratégica nacional, envolvendo a produção de eletricidade e agora também a “armazenagem indireta“ da eletricidade proveniente das potencias elétricas intermitentes, eólicas e solares, são hoje de facto um dos maiores desafios que se colocam à engenharia portuguesa. Por isso, e na sequência do convite da Revista APDA, estas propostas para reflexão estratégica são o meu contributo cívico para alguns investimentos prioritários na área do abastecimento de água/produção e “armazenamento” de energia elétrica, feitas por quem há mais de 50 anos procura refletir sobre as melhores formas concretas de utilizar a engenharia e as tecnologias para valorizar Portugal, através do reforço da sua competitividade económica e da sua coesão social.


O Abastecimento de Água e a Eletricidade em Portugal: Uma Reflexão Cívica e Estratégica

ÁGUA, ONDE A VIDA SE MULTIPLICA

ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE DISTRIBUIÇÃO E DRENAGEM DE ÁGUAS

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# atualidade

Digitalização e uso eficiente da água na rega

Gonçalo C. Rodrigues Professor Auxiliar no Instituto Superior de Agronomia

Licenciado em Engenharia do Ambiente, com especialização em Gestão de Águas e Melhorias Rurais, pelo Instituto Superior de Agronomia (ISA). Doutorado em Engenharia de Biossistemas, pelo ISA, e Pósgraduado em Gestão, pela Escola Nova de Business and Economics. Atualmente é Professor Auxiliar do ISA. Participou como coordenador e membro da equipa em projetos nacionais e internacionais nos temas da agricultura de regadio, clima e relações solo-água-planta. Participou como orador em diversas conferências, congressos e seminários, em Portugal e no estrangeiro, e publicou diversos artigos técnicocientíficos e capítulos de livros, principalmente nas áreas da agricultura de regadio.

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Ricardo Braga Professor Auxiliar no Instituto Superior de Agronomia

Licenciado em Engenharia Agronómica (1993) pelo ISA/ Universidade de Lisboa (UL). Mestre em Produção Agrícola Tropical (1996), pelo ISA/UL. Doutor em Agricultural Operations Management (2000) pela University of Florida, EUA. Atualmente é Professor Auxiliar (2013 -) no ISA/UL, onde ministra cursos de Licenciatura e Mestrado em Agricultura Geral e Maquinaria, Agricultura de Precisão, Modelação de Sistemas Agrícolas. É investigador do Centro de Robótica Industrial e Sistemas Inteligentes do INESC TEC - Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores, Tecnologia e Ciência. Participou de diversos projetos nas áreas de agricultura de precisão, otimização de sistemas agrícolas, modelos de culturas e disseminação e adoção de tecnologia.


Digitalização e uso eficiente da água na rega

A

importância do recurso água, a importância económica das culturas regadas e o crescente movimento tecnológico que atualmente se vive no setor agrícola, conjugam-se cada vez mais para dar resposta à necessária intensificação sustentável da produção agrícola, fundamental para responder à pressão de um aumento exponencial do número de habitantes à escala mundial. Se há uma parte

importante da agricultura que pode beneficiar da inovação tecnológica para aumentar a sua eficácia e eficiência é a rega, permitindo um melhor uso de um recurso cada vez mais escasso. Mas antes de discutir a atualidade do panorama tecnológico nacional do regadio, importa caracterizar o caminho percorrido até aqui. Tentemos, antes de mais, entender a importância do

regadio para a Agricultura Portuguesa. Em 2019, segundo os dados do mais recente Recenseamento Agrícola (RA 2019), a Superfície Agrícola Utilizada (SAU) era de, aproximadamente, 3,96 milhões de hectares. Nesse ano, a Superfície Irrigável era de 630 517 hectares (cerca de 16% da SAU), enquanto a Superfície Regada foi de 566 204 hectares. Contudo, é importante referir que o REVISTA APDA_ APDA _ 2022

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# atualidade regadio é prática adotada em cerca de 45% das explorações existentes em Portugal; no entanto, as explorações onde o regadio é predominante representam apenas 18% do total. De maior importância é o impacto do regadio no valor da produção gerado nas explorações agrícolas. De acordo com o RA 2019, um hectare exclusivamente de sequeiro gera um valor de 997 €/ano contrastando com o valor de 5 509 €/ano criado por um hectare predominantemente de regadio. Por outro lado, a agricultura nacional usa mais de 70% da água disponível; este número contrasta com os da Alemanha onde apenas 2% da água é utilizada pelo sector agrícola. Este facto, resultando da influência do nosso clima mediterrânico, é particularmente impactante sobre a agricultura, e em particular, sobre as necessidades hídricas. Se tomarmos como exemplo a região de Beja, vulgarmente tida como referência para a região Alentejana, é notório o défice de água nos meses de maio a setembro, sendo a

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evapotranspiração (cerca de 1 200 mm/ano) largamente superior à precipitação (aproximadamente 500 mm/ano). Estas condições climáticas, levam a que sem água (e sem regadio) seja praticamente impossível garantir à agricultura nacional resultados economicamente interessantes que assegurem a sustentabilidade económico-financeira do empresário agrícola. Contudo, e consciente desta pressão sobre os recursos, o setor agrícola nacional tem conseguido ser mais eficiente. Dados apurados pela FENAREG - Federação Nacional de Regantes de Portugal1 apontam para uma redução significativa nos últimos 50 anos: em 1960 o consumo de água por hectare era de cerca de 15 000 m3; já em 2014, era de 6 600 m3. Faltam apurar dados mais recentes, mas se olharmos para o regadio de Alqueva, em pleno Alentejo, onde são produzidas culturas como o olival, amendoal, vinha e milho, em 2020 o consumo médio foi 2 700 m3/ha. Esta evidente melhoria fez-se através de duas vertentes: eficiência

FENAREG, 2019. Contributo para uma Estratégia Nacional para o Regadio 2050

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na aplicação e adequação da quantidade de água a entregar à cultura. Nas últimas duas décadas, de acordo com um relatório produzido pela FENAREG1, o sector tem apostado na escolha de sistemas de rega mais eficientes. No fim do século passado a área regada era maioritariamente ocupada por sistemas de rega por gravidade (vulgo por alagamento); 20 anos passados e encontramos mais de metade da área a ser regada por sistemas de rega localizada (maioritariamente gota-a-gota) e menos de 20% por sistemas gravíticos. Esta mudança representa ganhos expressivos aumentando a eficiência em cerca de 35%. Apesar de um investimento avultado pelos produtores, o custo compensa. Mas, independentemente do sistema de rega, importam as técnicas capazes de promover a boa gestão de água armazenada no solo, reduzir a evaporação e otimizar o volume de água utilizado pelas plantas, adequando a rega à real necessidade de água pelas


Digitalização e uso eficiente da água na rega

culturas. Alguns exemplos são: o aumento do teor de matéria orgânica do solo (nomeadamente através da redução da mobilização do solo) e a prática de culturas de cobertura/mulch; a promoção do volume de solo explorado pelas raízes (culturas perenes); a promoção da dessalinização do solo; a redução da compactação do solo, responsável por escorrimentos superficiais e evaporação; a monitorização das necessidades de rega das culturas, controlando as taxas de aplicação de água; e, ajustar a gestão da rega tendo por base previsões meteorológicas. Da mesma forma importa lembrar a importância das auditorias e intervenções de manutenção e conservação dos equipamentos de rega, sem as quais se torna impossível a correta aplicação das prescrições de rega. Falar em inovação tecnológica em regadio é hoje sinónimo de rega de precisão, automação e digitalização do processo de identificação das necessidades hídricas, e modelação e criação de mapas de prescrição de rega. Esta inovação está intrinsecamente ligada ao conceito relacionado com a

tomada de decisão sobre o quando, quanto e onde regar, envolvendo a capacidade de georreferenciar a variabilidade espacial da parcela regada, quer em termos de necessidades quer em termos de dotação de rega a aplicar. Para tal, é fundamental proceder à monitorização da água no solo e conhecer o estado hídrico e vegetativo da cultura. Atualmente, podemos considerar quatro níveis de inovação que aponte ao uso mais ponderado da água de rega. Num primeiro nível, importa caracterizar da variabilidade dos solos. Esta variabilidade influencia não só a implementação, como também a gestão do sistema de rega. Para tal, podem ser adotadas inovações tecnológicas como a Técnica de Indução Eletromagnética (EMI) para o levantamento da variabilidade espacial do solo. A EMI permite o mapeamento georreferenciado dos solos, permitindo caracterizar a sua condutividade elétrica, textura, compactação, pH, e teores de matéria orgânica e água. O tratamento desta informação, recorrendo a sistemas de informação geográfica, permite determinar a variabilidade espacial dos

solos. O conhecimento desta variabilidade, e respetivo mapeamento, é fundamental para o projeto e implementação do sistema de rega que, aliada ao conhecimento das características agronómica, hidrológica e hidráulica da parcela, permite a distribuição e aplicação da água, de acordo com as necessidades em água das plantas, de uma forma eficiente e uniforme. Tendo em conta o solo de cada zona, é possível projetar a respetiva sectorização do teor de água do solo na parcela. Num segundo nível, a monitorização de água no solo assenta em sistemas sensoriais, que colocados criteriosamente na parcela (por exemplo em função do mapeamento da condutividade elétrica aparente do solo) medem o teor de água do solo a diferentes profundidades, sendo capazes de emitir alarmes em situações em que se atinjam valores abaixo do programado para regar ou mesmo acionar o sistema de rega. Tais sistemas permitem calcular o volume e o tempo de rega necessários e ajustar o plano de rega ao estado de desenvolvimento da cultura. REVISTA APDA_ APDA _ 2022

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# atualidade Num terceiro nível, é-nos hoje possível monitorizar em tempo real a performance da rega através da interpretação de índices vegetativos obtidos a partir de imagens aéreas por técnicas de deteção remota, recolhidas por aeronaves (de aviões a drones), em voos de baixa altitude, ou por imagens de satélite. Destes, pela grande disponibilidade e aplicabilidade destaca-se o NDVI (Índices de Vegetação por Diferença Normalizada). Outros índices vegetativos começam a ser utilizando tirando partido de outros comprimentos de onda, inclusive do térmico. De facto, as imagens térmicas, e índices derivados, começam a ganhar alguma expressão na gestão de sistemas de rega. Também sensores para avaliação do estado hídrico da cultura em tempo real se enquadram neste nível. Aqui se incluem os já clássicos sensores de fluxo de seiva e dendrómetros (capazes de avaliar micro variações do diâmetro do caule, e, portanto, do fluxo de água na planta) assim como os mais recentes sensores do potencial hídrico da planta, a medida mais rigorosa do estado hídrico das culturas, e, portanto, inestimáveis

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quando o objetivo é a eficiência e eficácia no uso da água de rega.

de performance e/ou altera a programação do funcionamento.

Num quarto nível, existem hoje soluções assentes em softwares e plataformas digitais, capazes da integração de dados de diferentes origens, como os dados de condutividade elétrica aparente do solo, textura, teor de água, a previsão meteorológica em tempo real e o estado de desenvolvimento da cultura. Baseados em modelos preditivos, muitos deles apoiados em Inteligência Artificial, permitem determinar a prescrição de rega a aplicar à cultura num dado momento e local, sendo esta informação capaz de ser acedida pelo agricultor à distância através de um dispositivo móvel. Estas plataformas permitem a monitorização remota de todo o sistema de rega e seus indicadores de performance em tempo real. Permitem ainda o controlo do sistema de rega acionando o seu funcionamento ou o inverso conforme seja o requerido. Num modo de funcionamento mais avançado, é possível o controlo automático do sistema de rega em que o operador apenas monitoriza os indicadores

Qualquer que seja o modo de funcionamento, manual ou automático, o custo energético deve ser sempre um aspeto decisivo a ter em conta no maneio, até porque muitas vezes é o custo principal da rega. Desta forma a seleção do tarifário e a determinação rigorosa do período de rega tornam-se igualmente críticos. A conjugação destes quatro níveis de inovação com sistemas de rega eficientes e uniformes, possibilita “consumir” apenas a água estritamente necessária para um bom desenvolvimento e produção das culturas e ao mais baixo custo.


Digitalização e uso eficiente da água na rega

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# atualidade

Nexo entre Água - Energia - Alimento “Estima-se que o setor da água potável em Portugal tenha um potencial de Helena M. Ramos Professora no Instituto Superior Técnico

Professora no Instituto Superior Técnico, Departamento de Engenharia Civil, Arquitetura e Georecursos (DECivil), investigadora do CERIS, na Universidade de Lisboa. Tem 7 livros publicados, cerca de 170 publicações em revista científicas internacionais com referee, 156 em conferências internacionais, 36 capítulos de livros internacionais, apresentando um elevado número de citações - 6800, com índice h de 43 e índice i10 143 (in Google Scholar). Participou em 17 projetos internacionais e 14 nacionais, tem sido Editor-in-chief da revista Water e Guest Editor de 11 special issues em várias revistas científicas internacionais, com inúmeros convites de participação em webinars e seminários. Ao longo da sua vasta carreira, essencialmente no Técnico, tem orientado alunos de doutoramento e de mestrado e ocupado vários cargos de gestão universitária, salientando-se entre os demais, a Presidência do CEHIDRO, foi Diretora do Laboratório de Hidráulica e Vogal da Comissão Executiva do DECivil.

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65,5 GWh de energia disponível em instalações do tipo MHP”


Nexo entre Água - Energia - Alimento

1. Introdução A análise da Agência Internacional de Energia (IEA) demonstrou que o setor de energia retira cerca de 340 mil milhões de m3 de água (volume de água utilizada) e consome cerca de 50 mil milhões de m3 (volume de água consumido). Por outro lado, a energia é vital para uma variedade de processos

no setor da água, incluindo a captação, transporte, distribuição de água, tratamento de águas e, cada vez mais, a dessalinização. A maior parte dessa energia é na forma de energia elétrica (850 TWh), representando cerca de 4% do consumo global de eletricidade. A forma como esses binários de água energia - alimento são geridos é da maior importância para a comunidade, uma

vez que tem implicações na transição energética com vista à utilização de uma energia limpa, na segurança dos sistemas e nas metas de objetivos para um desenvolvimento sustentável. A Indústria da Água na Europa contribui para um consumo significativo de energia, com emissões de CO2 elevadas, o que, por sua vez, afeta negativamente o meio ambiente e a economia. REVISTA APDA_ APDA _ 2022

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# atualidade O setor da água é um dos setores com maior consumo de energia nas regiões industrializadas. Estudos apontam para o quarto maior consumidor de energia no Reino Unido, tendo como resultado a forte contribuição para as emissões de CO2. Grande parte desse consumo de energia é efetuado de forma ineficiente na distribuição de água para os consumidores, nos sistemas de rega, nos processos industriais e no transporte de águas residuais para as estações de tratamento. Exemplos da ineficiência do processo de distribuição de água são: o excesso de pressão que existe nas redes de abastecimento e que normalmente é dissipada em válvulas redutoras de pressão e em câmaras de perda de carga, e, ao longo do circuito hidráulico, a existência de roturas ou fugas, assim como, incrustações devido ao envelhecimento das infraestruturas de captação, abastecimento e distribuição. Sabe-se que essa distribuição ineficiente de água e a presença de excesso de pressão existem em redes de sistemas de abastecimento e de saneamento, em sistemas de rega e em instalações industriais com

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utilização intensiva de água. Se considerarmos que a irrigação e o uso industrial da água representam 40% e 44%, respetivamente, do uso de água na UE, enquanto a água potável representa apenas 15%, esses valores mostram a extensão do uso ineficiente do recurso no setor da água, em particular nas redes de distribuição.

2. Reduzir a dependência energética no setor da água Nesta conformidade, pretende-se descrever o progresso na redução do consumo de energia em redes de água através do uso de microturbinas de baixo custo, como um meio de aproveitar o excesso de pressão nessas redes, produzindo eletricidade para consumo local ou para injetar na rede, dependendo da potência instalada. A União Europeia atribuiu 2,9 milhões de euros para o desenvolvimento do projeto REDAWN (Reducing the Energy Dependency of Atlantic Water Networks), de apoio à eficiência energética na indústria da água, no espaço Atlântico, que conta com a colaboração portuguesa do

Instituto Superior Técnico, em cooperação com várias instituições internacionais (e.g. académicas, empresariais, organizacionais e entidades gestoras) (Figura 1). Com esse objetivo, desenvolveu-se uma investigação aplicada para a seleção, projeto e implementação de instalações piloto de demonstração de soluções micro-hídricas em sistemas de abastecimento de água potável, em sistemas de rega e em processos industriais. Os resultados forneceram informações relevantes sobre a proposta de soluções a adotar, de baixo custo, demonstrando os impactes nas reduções do consumo local de energia, no controlo de perdas de água, assim como em componentes económicas, ambientais e sociais.


Nexo entre Água - Energia - Alimento

Figura 1 - REDAWN: Países intervenientes do espaço Atlântico e componentes do setor da água

Uma estimativa do uso de energia no setor de água até 2040 mostra que a quantidade de consumo de eletricidade aumentará em 80%. Este incremento abrangerá todos os aspetos do sector da água, desde o abastecimento, até ao consumidor final. Deste modo, os maiores incrementos no uso de energia serão observados na transferência de água em grande escala e no tratamento de águas residuais. Na última década observaram-se no setor de água importantes resultados da atividade de investigação e das inovações tecnológicas daí resultantes. A inovação concentra-se em três aspetos principais: implementar o controlo de perdas, reduzir o consumo de energia melhorando a eficiência do sistema e recuperar o

potencial energético na produção, transferência, distribuição, drenagem e tratamento. É do interesse da comunidade do setor da água apostar na eficiência dos sistemas de bombagem baseada em novos padrões de eco-design de produtos e na grande oportunidade de reduzir o consumo de água e das perdas ao longo da cadeia de suprimentos resultantes de fugas, roturas e ligações ilegais, que consequentemente, vão contribuir para economizar água e energia. Mesmo as águas residuais contêm quantidades significativas de energia incorporada que, se aproveitada, poderia cobrir mais de metade das necessidades de eletricidade das concessionárias municipais.

Nesta conformidade, e em complementaridade, a utilização de novos desenvolvimentos tecnológicos, modelos de simulação em tempo real (Digital Twin), modelos de otimização, equipamentos hidro-electro-mecânicos com atuadores e sensores, no contexto das redes inteligentes de água (Smart Water Grids) irá também permitir: (i) redução dos volumes de água em fugas ou roturas; (ii) uso mais eficiente de energia no transporte de água; (iii) práticas de irrigação mais eficientes; (iv) o uso mais sustentável de água e energia no abastecimento, saneamento, indústria e rega; (v) ter consciência do novo paradigma de análise integrada do nexo águaenergia-alimento, com (vi) a abertura de um novo mercado de tecnologias

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# atualidade verdes para o setor de água e (vii) um novo modelo de gestão multiusos da água no contexto da economia circular.

3. A importância da recuperação de energia micro-hídrica no nexo água-energiaalimento 3.1. Interdependência de recursos Água, energia e alimentos são recursos interdependentes e finitos, que enfrentam um consumo crescente devido ao crescimento populacional com a expansão das zonas urbanas. Esses recursos estão sujeitos a impactes negativos na sua disponibilidade devido às mudanças climáticas. O potencial para a geração de pico e/ou micro-hídricas por meio da recuperação de energia hidráulica tem sido demonstrado em alguns setores do nexo águaenergia-alimentos, muitas vezes denominado como energia hidroelétrica oculta. O potencial para recuperar essa energia (oculta) no abastecimento de água, na produção agrícola, no processamento de alimentos e na produção de energia

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é demonstrado por meio de alguns casos de estudo, avaliações regionais e modelos experimentais. Deste modo, é necessário apresentar uma visão holística do papel associado ao potencial e aos impactes da recuperação de energia em micro-hídricas no nexo águaenergia-alimento, quando a preocupação aumenta relativamente às alterações climáticas e às crises energéticas mundiais. Uma revisão e síntese em setores relacionados à água no nexo água-energia-alimento permite salientar quais as implicações do potencial da energia hídrica oculta no custo do abastecimento de água, na criação de alimento, na produção de energia em diferentes domínios da água, no rendimento das colheitas agrícolas e no fornecimento de alimentos. Outra preocupação prende-se com a identificação das barreiras políticas e tecnológicas ainda existentes para a exploração de recursos hídricos ocultos dentro do nexo, onde se pretende delinear possíveis recomendações para superá-las. Os resultados desta investigação destacam o potencial da recuperação

de energia micro-hídrica em sistemas hidráulicos para reduzir o consumo de energia até 4% em vários setores e regiões, com consequentes impactes nos custos operacionais e de consumo de alimentos, água e energia, bem como nas emissões de CO2 dessas atividades. Essa energia hidroelétrica oculta tem o potencial de aliviar as pressões do nexo água-energiaalimento e é um elemento importante do caminho para a sustentabilidade. A segurança hídrica, energética e alimentar reveste-se de uma enorme preocupação devido às incertezas futuras. Existem inúmeras interdependências entre esses três recursos, bem como a sua relação com o desenvolvimento tecnológico e as políticas de gestão [1]. O aumento do consumo de alimentos devido ao crescimento populacional e, assim, o aumento da pressão sobre os recursos também é diretamente afetado pelas alterações climáticas. Os aproveitamentos hidroelétricos ocultos identificam-se em infraestruturas hidráulicas existentes que possuam um excesso de carga


Nexo entre Água - Energia - Alimento

hidráulica (ou de pressão), onde a eletricidade pode ser gerada a partir deste recurso sem interferir na função primária da referida infraestrutura. Isso pode estar presente em sistemas como o abastecimento e tratamento de água potável, drenagem e tratamento de águas residuais, sistemas de irrigação, em barragens e açudes existentes, em eclusas de canais e em indústrias com uso intensivo de água (e.g. do papel, cerveja, minas, entre outras). Geralmente, a investigação relacionada com a energia hídrica [2, 3] em pequenos aproveitamentos hidroelétricos permite extrapolar os mesmos conceitos para as hídricas ocultas que se concentram na avaliação dos locais ideais para a instalação de turbinas/ou bombas como turbinas (pump as turbine - PATs) em redes de água existentes [4], bem como o potencial de recursos para exploração dessa possível micro-hídrica oculta [5-7] em redes de distribuição de água pressurizada. Várias oportunidades de micro-hídricas ocultas são, então, identificadas em várias indústrias-chave do

setor da água, por meio de avaliação de estudos de caso específicos, destacando os trabalhos orientados para os sistemas de água potável [8–10], sistemas de irrigação [11], águas residuais [12], instalações industriais intensivas [13], e cursos de água [3, 14], entre outros. A seleção das turbinas ou PATs disponíveis mais adequadas para recuperação de energia em redes de distribuição de água [15-18], ou previsões sobre o custo do equipamento com base no caudal e na queda disponíveis [19], também têm sido um tema importante de investigação nos últimos anos, conjuntamente com a análise de viabilidade da energia hidroelétrica oculta, integrando critérios de eficiência, confiabilidade e sustentabilidade [20]. O esforço para melhorar a sustentabilidade no setor da indústria da água por meio da energia hidroelétrica (oculta) inclui a estimativa do potencial de energia recuperável em diferentes áreas. São disso exemplo a identificação de um potencial de geração de energia de 17,9 GWh por ano na infraestrutura de abastecimento de água e

de águas residuais no Reino Unido e na Irlanda [21] e a identificação de 19 locais rentáveis com 9,3 GWh/ano acumulados de potencial de recuperação de energia na Suíça [22]. O setor de águas residuais também tem sido o foco de novos desenvolvimentos tecnológicos para testes de energia hidroelétrica oculta, considerando os caudais variáveis comuns em estações de tratamento de águas residuais [23]. Flutuações de caudal também são comuns no setor de irrigação, no qual as possibilidades de geração oculta de energia hidroelétrica foram exploradas através do desenvolvimento de metodologias baseadas em probabilidades e distribuição de consumos em redes reais [24-26]. Assim, um potencial significativo de energia hidroelétrica oculta no setor da irrigação tem sido identificado em diferentes casos de estudos, como, por exemplo a estimativa de 270 MW e 108 t CO2eq. potenciais por ano em uma rede de irrigação pressurizada no sul da Espanha [27], e a aplicação de redes neuronais artificiais e modelos de REVISTA APDA_ APDA _ 2022

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# atualidade regressão para prever o potencial de recuperação de energia em microhídricas (Micro-Hydropower: MHP) de redes de rega pressurizada, com potencial de recuperação de energia de 21 GWh, identificados em 164 000 ha irrigados no sul da Espanha [11]. Esses trabalhos comprovam importantes reduções no consumo de energia e os benefícios económicos e ambientais associados e proporcionados pela

recuperação de energia MHP no setor agrícola [28,29].

ramificados com excesso de pressão.

A recuperação de energia através das MHP pode ser conseguida em vários locais no setor da água, como em válvulas redutoras de pressão (VRP), entrada ou saída de reservatórios de armazenamento, junto de reservatórios intermédios e câmaras de perda de carga, em estações de tratamento, em válvulas de regulação e controlo, ou em trechos

A Figura 2 ilustra alguns possíveis locais, numa rede de água típica para os setores de água potável, indústria e águas residuais, onde esse excesso de energia do escoamento pode existir e, desta forma pode ajudar na identificação do local apropriado para a implementação de um sistema de recuperação de energia.

Figura 2 - Alguns locais típicos para recuperação de energia no sector da água

Uma vez identificados os possíveis locais, em seguida é necessário reunir informações sobre o caudal e a queda disponíveis em cada local, para permitir a avaliação potencial dos recursos energéticos. No caso do setor de irrigação, a modernização

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das redes de distribuição de água verificada nos últimos anos melhorou significativamente a eficiência no uso da água, mas também tem significado um aumento no consumo de energia associada ao consumo de água. Esses resultados são a consequência da pressurização das redes

de rega e da promoção de técnicas específicas de irrigação, entre outras. O aumento do consumo de energia, decorrente da pressurização dos sistemas hidráulicos, aliada, em geral, ao aumento do preço da energia, tem levado o setor a focar-se não apenas na redução do consumo


Nexo entre Água - Energia - Alimento

de água, mas também na melhoria da eficiência energética e na otimização da operação das instalações. 3.2. Pontos fortes das hídricas “ocultas” num contexto de alterações climáticas Além da produção de energia limpa e da redução do impacto devido à economia de construção, um importante ponto forte das micro-hídricas (microhydropower: MHP), quando integradas nas instalações de água existentes, é que a energia é gerada durante o horário de funcionamento das infraestruturas. Assim, a energia gerada pode, na maioria dos casos, ser consumida no local num regime de autoconsumo, sem necessidade de transporte ou armazenamento, descentralizando o consumo na rede elétrica ou reduzindo o consumo de combustíveis fósseis, no caso de locais remotos e isolados. Em relação à energia hidroelétrica como tradicionalmente concebida, ela só pode ser gerada se a água estiver prontamente disponível em redes de condutas, em rios ou na entrada ou saída de reservatórios. A capacidade global instalada de energia

hidroelétrica é agora de cerca de 1300 GW, incluindo 158 GW de armazenamento por bombagem. Assim, em 2020, a energia hídrica contribuiu com 13% do total de eletricidade gerada na UE-27, com 254 GW de capacidade instalada, e 676 TWh gerados por energia hídrica, salientando-se o seu importante papel como fonte renovável no mix elétrico na Europa [4]. No entanto, a energia hidroelétrica pode ter uma pegada substancial onde os reservatórios (albufeiras criadas por barragens) precisam de ser construídos. As pequenas tecnologias hidroelétricas e de escoamento fluvial evitam a construção de grandes reservatórios, prevenindo a evaporação significativa, os impactos ambientais e socioeconómicos decorrentes de grandes projetos hídricos. Deste modo, a instalação de novas centrais hidroelétricas em infraestruturas hídricas existentes, sem prejudicar as suas funções primárias, são uma solução atrativa e sustentável. A exploração destes recursos hidroelétricos ‘ocultos’ pode contribuir com um “aporte” extra de energia verde, com impacto positivo na diminuição dos

custos de produção e na minimização do impacto ambiental associado aos diferentes setores, nos quais a água desempenha um papel essencial [5-6]. 3.3. Impactes potenciais no custo, produção de alimentos e energia As micro ou pequenas hídricas para a recuperação de energia nas redes de água potável, águas residuais, indústria intensiva em água e redes de rega representam uma redução da dependência energética destes setores. A redução de custos pode ter impactes diretos na rentabilidade dos agricultores e produtores (i.e., no caso da produção agrícola e industrial), no custo dos serviços (i.e., nos processos de abastecimento de água e tratamento de águas residuais) e no custo final dos produtos (agrícolas e industrializados) com benefícios significativos para os consumidores finais. A produção de alimentos representa entre 20% a 30% do consumo total de energia na Europa, dos quais 15-20% se devem ao processamento dos alimentos. Esses números revelam o significativo consumo de energia no REVISTA APDA_ APDA _ 2022

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# atualidade setor primário relacionado à produção de alimentos, representando, em média entre 7 a 10% dos custos anuais para os agricultores. 3.4. Políticas e barreiras tecnológicas na exploração da recuperação de energia hidroelétrica oculta Ainda existem muitas barreiras na implementação de micro-hídricas nas infraestruturas hidráulicas. Desde o nível regulatório e tecnológicas à exploração de hidroenergia oculta, onde o custo do equipamento hidromecânico e o retorno do investimento são fundamentais. É necessária uma tecnologia de baixo custo que mantenha bons rendimentos em cenários que muitas vezes são de alta, média e de baixa queda, contendo flutuações significativas de caudal.

4. Consumo global de água e desafios a implementar O consumo global de água tem aumentado 1% ao ano desde a década de 1980 e é esperado continuar a crescer em ritmo semelhante até 2050, com os setores

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industrial e doméstico apresentando as maiores contribuições. Espera-se que o stress hídrico seja mais significativo, em particular, em áreas do globo onde os recursos hídricos já são escassos, ou onde os serviços de água são deficientes. Para superar esses desafios, os diferentes atores que intervêm no setor da água precisam de agir e implementar metodologias de otimização para melhorar a eficiência dos seus sistemas. Nos últimos anos, a classe média tem crescido de forma rápida e às vezes concentrada em determinadas áreas, especialmente nos países em desenvolvimento, resultando em populações migrando de áreas rurais para áreas urbanas. Esta mudança rural leva a mudanças nos padrões de consumo de água, nos alimentos e de energia. O desenvolvimento socioeconómico sustentável depende, entre outros fatores, da disponibilidade e acessibilidade de água doce, energia e alimentos [2]. O acesso à água potável e saneamento tornou-se um direito humano adquirido na maioria dos países e uma gestão intersectorial pode melhorar a eficiência do uso

de recursos, especialmente em sistemas multiuso, onde a economia circular toma um papel relevante (i.e., na utilização de resíduos, de infraestruturas existentes ou do mesmo recurso) e pode utilizar um recurso para outros produtos e serviços, como a integração de águaenergia-alimentos numa base de consumo eficiente, flexível e sustentável. Para superar estes novos desafios que se avizinham, o setor deve agir rapidamente e implementar metodologias de otimização, utilizar sistemas digitais e de recuperação de energia com vista à descarbonização, implementar, quando necessário, sistemas de dessalinização junto da costa, integrar outras fontes de energia renovável com armazenamento por bombagem, proceder à reutilização de recursos numa base de economia circular, redefinir o conceito de projetos utilizando eco-design mais eficiente e de baixo custo, para melhorar a flexibilidade, a segurança e a eficiência no sector. Entre outras medidas, a implementação de micro ou pequenas-hídricas para recuperar o excesso de energia em sistemas


Nexo entre Água - Energia - Alimento

hidráulicos representará um importante contributo na transição energética. Deste modo, a avaliação do potencial de recuperação de energia em sistemas de abastecimento de água (SAA) permitirá a produção de energia por conversão do excesso de pressão em energia elétrica e que de outra forma teria que ser dissipada (Figura 3). Por esta

razão, as válvulas redutoras de pressão (PRVs) podem ser analisadas conjuntamente com bombas a funcionarcomo-turbinas (pump-asturbines: PATs), que podem melhorar a sustentabilidade e eficiência do sistema, reduzindo os impactes ambientais e a pegada hídrica. Para avaliar os benefícios, deve atender-se a uma série

de variáveis que influenciam significativamente a geração de energia. Em primeiro lugar, um fator chave é o recurso disponível que define a capacidade de geração de energia de um sistema. O recurso disponível e o seu potencial energético dependem fundamentalmente de dois parâmetros: caudal e queda (Figura 3).

Figura 3 - Identificação de pontos com excesso de carga hidráulica (em cima) e avaliação do potencial energético (em baixo)

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# atualidade 5. Estimativas do potencial energético no sector da água Em geral, nas redes de água, as principais atividades que podem causar impactos ambientais durante a operação e manutenção são identificadas como: - Consumo de energia elétrica: os efeitos ambientais considerados são as emissões de CO2 e outros gases com efeito estufa associados à produção e transporte da energia elétrica consumida nesses sistemas; poluição e os riscos causados pelas redes de distribuição e

transporte de energia. - Manutenção e conservação do equipamento: os efeitos ambientais considerados estão associados a riscos de contaminação do solo e da água por derrames acidentais de produtos químicos ou na gestão de resíduos. - Roturas em condutas: os efeitos ambientais considerados são a contaminação de água tratada por entrada nas condutas devido a pressões subatmosféricas, fugas em juntas, roturas de condutas, através da modificação das condições envolventes das condutas enterradas por saturação dos solos. - Adicionalmente, nas

fases de tratamento de água e tratamento de águas residuais (urbanas e industrial), existem outras atividades ligadas à operação de Estações de Tratamento de Água potável (ETA) e em Estação de Tratamento de Águas Residuais (ETAR) com alto potencial de geração de impactes ambientais: observa-se que o impacte ambiental mais importante está associado ao consumo de energia. Deve salientar-se que nos últimos anos houve um aumento significativo no consumo de energia em processos de distribuição e, em particular, no tratamento de água (Figura 4).

Água não tratada

Decantação

Pré-oxidação

Remoção de sedimentos

Sedimentos

Filtragem

Desinfecção

Água potável

Reservatório com água tratada

Esquema do processo de tratamento de água

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Nexo entre Água - Energia - Alimento

Sistema de drenagem

Pré-tratamento

Desarenadores

Arejamento

Decantação

Resíduos sólidos

Compostos agrícolas Água tratada

Secagem de lamas

Esquema do processo de tratamento de águas residuais Figura 4 - Processos de tratamento e distribuição com consumo energético

Tendo por base o projeto de investigação REDAWN, o objetivo consiste em demonstrar como reduzir a dependência energética das redes de água no espaço atlântico (AA) melhorando a eficiência energética das redes de água através da utilização da tecnologia micro-hídrica (MHP). O consumo de energia ligado à indústria da água é responsável por contribuições significativas para as mudanças climáticas, sendo necessárias medidas para transformar o setor tornando-o mais eficiente

e sustentável (neste link pode visualizar as principais componentes do projeto REDAWN - https://www. redawn.eu/). Para desenvolver este estudo é necessário criar uma base de dados sobre as infraestruturas das redes de água existentes que possibilitem uma extrapolação fidedigna de uns casos de estudo para outros. Esses sistemas do sector da água são muito extensos e complexos e os dados nem sempre existem ou estão disponíveis por forma a apoiar

estudos deste tipo. Como tal, na fase de aquisição de dados o projeto produziu modelos de previsão baseados em SIG, modelos de avaliação de recursos energéticos usando os dados das redes de água disponíveis, juntamente com informações estatísticas sobre áreas irrigadas, população beneficiada e consumos de água. A utilização de modelos avançados de previsão, otimização, análise de correlações, de parâmetros estatísticos, redes neuronais e de Digital Twin (DT) permitiram extrapolar os resultados da avaliação de

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# atualidade recursos para outras regiões da área de estudo. Contudo, noutras situações, em que nem todas as informações requeridas estavam disponíveis, a extrapolação foi baseada em parâmetros estatísticos populacionais e económicos de tarifas associadas.

É provável que a estimativa conseguida seja subestimada em relação ao potencial real, em alguns casos, uma vez que os dados recolhidos não representam a redução de pressão ideal ou até mesmo a previsível num dado sistema hidráulico. A estimativa também não contempla

outros aspetos devido à falta de dados detalhados, às variações de caudal e a viabilidade prática de cada solução. O Quadro 1 ilustra as extrapolações baseadas na população e nos dados coletados e conseguidos até ao final do projeto.

Quadro 1 - Potência estimada (> 2kW), baseada na população para o sistema de água potável em três países da UE Country

Power Estimated

France Spain Portugal

95 34

Pop. covered (M people) 1.02 0.11

Total pop. (M people)

kW per 1000 ppl

65.26 47.10 10.28

0.09 0.31

Extr. Power Extr. Power potential I* potential II** 4403 3153

47490 34277 7479

* Extrapolation of power (kW) using country specific ratio. ** Extrapolation of power (kW) using average ratio 0.73 kW/1000 population.

Dos estudos realizados conclui-se que as duas principais variáveis para a avaliação do potencial de recuperação de energia das ETARs são o volume e a carga disponível existente na conduta de descarga. Os valores do caudal podem ser extrapolados, uma vez que são ditados por fatores como a população, atividades

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industriais intensivas e os de drenagem pluvial. A carga hidráulica depende também da elevação do terreno onde se situa a ETAR, e deve ser avaliada para cada uma, individualmente. Deste modo, as extrapolações para o setor de águas residuais, apresentadas no Quadro 2, foram baseadas na correlação encontrada

entre a população atendida e o potencial estimado para a MHP nos diversos locais e regiões analisados: y = 4.4222 ∙ 10−5x − 1.4565, em que y representa o potencial de energia estimado à saída de cada estação de tratamento de águas residuais (kW), e x representa o tamanho da população atendida por cada ETAR.


Nexo entre Água - Energia - Alimento

Quadro 2 - Potência e energia potencial extrapolada para as águas residuais em três países da UE Country

Population

France Spain Portugal

65256433 47100396 10276617

Power Extrapolated (kW)* 2884 2081 453

Energy Extrapolated (GWh)* 25.3 18.2 4.0

* Power estimated on the basics of Eqn Energy extrapolated for 24-h and 365-days

No caso do setor da irrigação, a partir de análises de sensibilidade a vários perímetros de rega, foi criada uma base de dados

georreferenciada para mostrar graficamente os resultados e o potencial disponível de MHP (Quadro 3), só nos países com maiores

necessidades de rega, que correspondem aos do Sul, do espaço Atlântico, a que diz respeito o projeto REDAWN.

Quadro 3 - Potência e energia potencial extrapolada para os sistemas de rega de dois países da UE Country Spain Portugal

Surface for localized irrigation (ha) 2032752 143424

Power Extrapolated* (MW) 108.7 11.8

Energy Extrapolated + (GWh) 220.9 24.0

* Power extrapolated on the basis of the average power per irrigated surface area 0.082 kW/ha. +Energy estimated on the basis of the average energy per irrigated surface area 0.167 MWh/ha.

Para tentar melhorar a estimativa para o caso do setor industrial, além das informações sobre a população, foi adicionado

ao modelo de previsão, um coeficiente baseado no percentual do produto interno bruto relacionado à atividade, por forma a

ponderar a importância variada do setor industrial nos três países da EU (Quadro 4).

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# atualidade Quadro 4 - Estimativa da energia produzida no setor industrial em função da população e do PIB nos três países analisados Country

Population

France Spain Portugal

65256433 47100396 10276617

Industry % MHP energy potential representation on GDP* (MWh) 0.17 14383.0 0.20 12289.6 0.19 2569.5

* GDP: gross domestic product based on information published in the United Nations Conference on Trade and Development statistics (www.unctadstat.org)

6. Extrapolação de recursos energéticos O estudo desenvolvido permite efetuar a extrapolação de recursos energéticos disponíveis nos

quatro setores da água (i.e., abastecimento de água potável, águas residuais, irrigação e processos industriais) resultando no potencial de energia apresentado no Quadro 5, que totaliza 20 MW para

Portugal, considerando a extrapolação de energia para o setor de água potável com base no indicador médio de 0,73 kW/1000 habitantes, como resultado dos diferentes casos de estudo analisados.

Quadro 5 - Estimativa para a extrapolação de recursos energéticos nos 4 setores da água Country France Spain Portugal

Drinking Water 47490 34277 7479

Wastewater

Irrigation

2884 2081 453

0 108700 11761

Process Industry 1642 1403 293

Total 52016 146461 19986

* Considering the extrapolation of power (kW) using average ratio 0.73 kW/1000 population for the drinking water sector

Esses resultados demonstram que a tecnologia MHP pode desempenhar um papel importante nos diferentes setores da água analisados (nesta análise só se apresenta para 3 países da UE) (Figura

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5), contribuindo, desta forma, para a redução do consumo de energia elétrica e, ao mesmo tempo, permitindo a redução das emissões de gases com efeito de estufa associadas ao setor da água,

nomeadamente a sua pegada de carbono.


Nexo entre Água - Energia - Alimento

Drinking Water 91% Wastewater 6% Irrigation 0% Process Industry 3%

Drinking Water 23% Wastewater 2% Irrigation 74% Process Industry 1% France

Spain

Drinking Water 37% Wastewater 2% Irrigation 59% Process Industry 2%

Portugal

Figura 5 - Extrapolação do potencial MHP para os três países analisados e nos diferentes setores da água

Em seguida mostra-se a estimativa da pegada de carbono, valorizada na forma de emissões de CO2, causada

pelo consumo elétrico das infraestruturas do setor da água em Portugal (Figura 6). Na Figura 7 apresenta-se

o potencial estimado de produção de energia em Portugal e a respetiva redução de emissões de CO2.

150.000 418.000

54.000 683.000

150.480 245.880

Electrical consumption (MWh/year) Drinking Water

CO2 emissions (t CO2/year)

Waste Water (urban & industrial)

Irrigation

Figura 6 - Consumo elétrico e emissões de CO2 nas redes de água em Portugal por tipo de infraestrutura

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# atualidade De acordo com os dados fornecidos pela Redes Energéticas Nacionais (REN), o fator de CO2 das emissões

associadas à geração do sistema elétrico em Portugal continental atingiram o valor médio de 0,26 t CO2/MWh

em 2020, tendo por base a média móvel de 5 anos.

23.900 6.600 65.500

8.604 245.880

Estimated production (MWh/year) Drinking Water

2.376

Potencial emissions reduction (t CO2/year)

Waste Water (urban & industrial)

Irrigation

Figura 7 - Potencial estimado de produção elétrica e de redução de emissões como consequência da instalação de MHP nas redes de água em Portugal (por tipo de infraestrutura)

Considerando a análise alargada aos diferentes estados-membro da EU-27, o potencial total de recuperação

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de energia poderia atingir um total de 3 662 GWh (77%, 14%, 5% e 4% para os setores de água potável, irrigação,

águas residuais e indústria) por ano, com a distribuição por país conforme mostrado na Figura 8.


9.E+07

1.E+03 9.E+02 8.E+02 7.E+02 6.E+02 5.E+02 4.E+02 3.E+02 2.E+02 1.E+02 0.E+00

8.E+07 7.E+07 People

6.E+07 5.E+07 4.E+07 3.E+07 2.E+07 1.E+07

Total MHP potencial (min)

Total MHP potencial (max)

Portugal

Ireland

France

Spain

Slovakia

Slovenia

Sweden

Romania

Poland

Netherlands

Malta

Latvia

Luxembourg

Italy

Lithuania

Hungary

Croatia

Finland

Greece

Estonia

Denmark

Germany

Czech Republic

Cyprus

Bulgaria

Belgium

0.E+00 Austria

GWh/year

Nexo entre Água - Energia - Alimento

Population

Figura 8 - Gama do potencial total extrapolado para recuperação de energia através de MHP e da população correspondente nos países da UE-27

7. Conclusões O nexo água-energia-alimento enfrenta uma crescente pressão devido ao crescimento populacional e à escassez de recursos, em particular no contexto da situação de conflito atual e das alterações climáticas. As interdependências entre água, energia e produção de alimentos significam que mudanças num dos fatores podem levar a consequências multidirecionais. As micro-hídricas ocultas são

soluções descentralizadas de produção de energia verde, no contexto de uma economia circular, de instalações existentes e de recurso renovável e limpo, com caudais garantidos para as necessidades de cada setor, contribuindo para a redução do consumo de energia no setor integrado da água. Esta redução do consumo de energia leva a uma redução dos custos de produção, tanto na agricultura, como na indústria, bem como nos serviços de abastecimento e saneamento urbano.

Estima-se que o setor da água potável em Portugal tenha um potencial de 65,5 GWh de energia disponível em instalações do tipo MHP. Esta estimativa é baseada em modelos de previsão/ extrapolação de dados com base em 7 775 locais identificados nos países da EU da Área Atlântica (i.e., parte de UK, Irlanda, parte de França, parte de Espanha e Portugal - Figura 1) e numa relação do potencial energético para a população atendida com base em diferentes suposições, incluindo o rácio médio e a mediana para os

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# atualidade rácios individuais de todos os países, e o rácio individual para Portugal de 0,31 kW/1 000 habitantes. A extrapolação do potencial na irrigação é baseada no valor encontrado para as redes de rega analisadas no sul de Portugal e em Espanha, bem como a informação sobre a superfície total da região com redes de rega semelhantes. O potencial energético extrapolado para Portugal é então identificado como 23,9 GWh, prevendo-se, no entanto, que possa ser superior. Estima-se que o setor das águas residuais em Portugal tenha um potencial de 4 GWh de energia ao longo do ano. Este valor foi estimado

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com base na população e na correlação encontrada entre o potencial de MHP nas estações de tratamento de águas residuais analisadas e a população atendida na Irlanda e em Espanha. Os dados recolhidos para o setor industrial em Portugal foram baseados no projeto da instalação piloto efetuado para a fábrica da Renova. A extrapolação foi realizada com base em informações sobre efluentes industriais e descargas em Espanha, estimando-se um potencial energético anual para Portugal de cerca de 2,6 GWh, podendo atingir valores superiores. Para finalizar apresenta-se a estimativa do potencial

hidroelétrico “oculto” no sector da água, bem como os potenciais impactes económicos e ambientais associados, para o conjunto dos países da UE-27. A complexidade de uma extrapolação de tamanha escala, resultou num leque de valores de um potencial total de valorização energética máximo da ordem de 3662 GWh por ano, o que representa uma poupança económica e ambiental de M€ 313, e 1,01 milhão de toneladas de CO2, respetivamente, para o conjunto de países da EU-27, considerando um custo médio de energia e taxas de emissão de CO2 nos vários países.


Nexo entre Água - Energia - Alimento

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# atualidade energy nexus towards developing countries’ water sector efficiency, Energies. 14 (2021). https://doi.org/10.3390/en14123525. [11] M. Crespo Chacón, J.A. Rodríguez Díaz, J. García Morillo, A. McNabola, Estimating regional potential for micro-hydropower energy recovery in irrigation networks on a large geographical scale, Renew. Energy. 155 (2020) 396–406. https://doi.org/10.1016/j. renene.2020.03.143. [12] C. Power, A. McNabola, P. Coughlan, Development of an evaluation method for hydropower energy recovery in wastewater treatment plants: Case studies in Ireland and the UK, Sustain. Energy Technol. Assessments. 7 (2014) 166–177. https://doi.org/10.1016/j.seta.2014.06.001. [13] A. Mérida García, J.A. Rodríguez Díaz, J. García Morillo, A. McNabola, Energy recovery potential in industrial and municipal wastewater networks using micro-hydropower in Spain, Water (Switzerland). 13 (2021). https://doi.org/10.3390/w13050691. [14] M. Fujii, S. Tanabe, M. Yamada, T. Mishima, T. Sawadate, S. Ohsawa, Assessment of the potential for developing mini/micro hydropower: A case study in Beppu City, Japan, J. Hydrol. Reg. Stud. 11 (2017) 107–116. https://doi.org/10.1016/j.ejrh.2015.10.007. [15] A. Carravetta, G. Del Giudice, O. Fecarotta, H.M. Ramos, Energy Production in Water Distribution Networks: A PAT Design Strategy, Water Resour. Manag. 26 (2012) 3947–3959. https://doi.org/10.1007/s11269-012-0114-1. [16] A. Carravetta, G. del Giudice, O. Fecarotta, H.M. Ramos, PAT design strategy for energy recovery in water distribution networks by electrical regulation, Energies. 6 (2013) 411–424. https://doi.org/10.3390/en6010411. [17] M. Crespo Chacón, J.A. Rodríguez Díaz, J. García Morillo, A. McNabola, Hydropower energy recovery in irrigation networks: Validation of a methodology for flow prediction and pump as turbine selection, Renew. Energy. 147 (2020) 1728–1738. https://doi.org/10.1016/j. renene.2019.09.119. [18] F.M. Griffin, Feasibility of energy recovery from a wastewater treatment scheme, Proc. Inst. Mech. Eng. Part A J. Power Energy. 214 (2000) 41–51. https://doi org/10.1243/0957650001537840. [19] D. Novara, A. Carravetta, A. McNabola, H.M. Ramos, Cost Model for Pumps as Turbines in Runof-River and In-Pipe Microhydropower Applications, J. Water Resour. Plan. Manag. 145 (2019) 04019012. https://doi.org/10.1061/(asce)wr.1943-5452.0001063. [20] O. Fecarotta, H.M. Ramos, S. Derakhshan, G. Del Giudice, A. Carravetta, Fine Tuning a

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Nexo entre Água - Energia - Alimento

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# atualidade

ECONOMIA CIRCULAR NO SETOR DA ÁGUA E SANEAMENTO EM PORTUGAL: SITUAÇÃO ATUAL E LINHAS DE ATUAÇÃO FUTURA

“Concluiu-se que, atualmente, as entidades gestoras se encontram longe

Comissão Especializada de Economia Circular

do caminho a percorrer para alcançar as metas regulamentadas e transitar de

uma economia linear para uma economia circular.” Alda Pereira (Águas do Norte, SA); Álvaro Pedroso (Penafiel Verde, EM); Ana Santos (Águas de Coimbra, EM); António Eusébio (Águas do Algarve, SA); Bernardo Taneco (Ecodepur, Lda); Carla Cavaco (EMAS de Beja, EM); Clara Varandas (Be Water, SA); Cristina Rocha (LNEG); Elza Ferraz (Águas e Energia do Porto, EM); Fernando Ferreira (Águas de Gaia, EM, SA); Helena Saraiva (EPAL, SA); Pedro Costa (SMAS de Sintra); António Martins (Águas do Algarve, SA); Sandra Jorge (Águas do Centro Litoral, SA); Sandra Silva (Águas de Coimbra, EM); Susana Silva (Águas do Alto Minho, SA); Zélia Fernandes (Esposende Ambiente, EM)

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ECONOMIA CIRCULAR NO SETOR DA ÁGUA E SANEAMENTO EM PORTUGAL

1. INTRODUÇÃO

recuperação, reciclagem e valorização de materiais, produtos, serviços e energia.

a proteção do ambiente e conceder novos direitos aos consumidores.

A economia circular, nos últimos anos, tem ocupado um espaço recorrente na agenda Europeia e Nacional. O aumento populacional e a consequente pressão sobre os recursos naturais têm vindo a evidenciar a necessidade, urgente, de mudar profundamente o paradigma atual de economia linear, tornando-se fundamental a adoção de um novo modelo de economia circular, baseado na redução, reutilização,

Em 2020 a Comissão Europeia adotou um Plano de Ação para a economia circular, um dos principais alicerces do Pacto Ecológico Europeu e roteiro da Europa para o crescimento sustentável. Foram propostas medidas a aplicar ao longo de todo o ciclo de vida dos produtos, de forma a preparar a economia para um futuro verde, a reforçar a competitividade, a manter

Medidas do Plano de Ação: • Fazer com que os produtos sustentáveis passem a ser predominantes na UE; • Concentrar a ação nos setores que utilizam a maior parte dos recursos e em que o potencial para a circularidade é elevado; • Garantir a diminuição dos resíduos; • Capacitar os consumidores através de conhecimento e opção de escolha. REVISTA APDA_ APDA _ 2022

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# atualidade Sendo um tema estratégico, em 2020, a APDA decidiu criar um Grupo de Trabalho de Economia Circular que, entretanto, evoluiu para Comissão Especializada de Economia Circular (CEEC). A CEEC, com o objetivo principal de perceber o “estado da arte” nas Entidades Gestoras de Água e Saneamento, em Portugal, e a partir daí estabelecer procedimentos adequados que funcionem como instrumentos de apoio à implementação de boas práticas de Economia Circular no setor, ou que promovam a sua melhoria caso já sejam utilizadas, desenvolveu um inquérito.

2. INQUÉRITO O inquérito sobre economia circular, enviado para todas as Entidades Gestoras nacionais, sob forma de questionário digital, foi realizado em 2021 tendo as primeiras linhas de tendência sido apresentadas no Encontro Nacional das Entidades Gestoras (ENEG) desse mesmo ano, realizado em Vilamoura. A estrutura base, iniciada com a caracterização

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geral da Entidade, foi concebida respeitando a transversalidade do tema e assim apresentada em grandes grupos: Conceitos Gerais de Economia Circular | Organização e Estratégia de Implementação | Ação e Operacionalização | Gestão de Recursos (energia, água, combustíveis, consumíveis diversos, etc.) | Gestão de Resíduos | Gestão da Cadeia Logística e Transportes | Gestão de Compras | Gestão da Relação com as Partes Interessadas | Política de Inovação e I&D | Performance de Informação, Sensibilização e Educação Ambiental. O que se pretendeu analisar em cada grupo?

Conceitos Gerais de Economia Circular • Aferir o grau de conhecimentos presente em cada Entidade relativamente ao conceito de economia circular em geral e aplicada ao setor de água e saneamento, bem como levantar as necessidades de informação e conhecimentos que se entendem necessários de modo a transitar da teoria à prática, em matéria de economia circular na Entidade.

Organização e Estratégia de Implementação • Avaliar quais os modelos ou os princípios de gestão de economia circular que integram a estratégia das Entidades; • Apurar as medidas concretas que estão a ser executadas, ou que se pretendem adotar, para a implementação da economia circular na gestão das infraestruturas, assim como a relevância da adoção de políticas e ferramentas para a sua promoção; • Identificar as principais dificuldades e constrangimentos no desenvolvimento e na concretização de projetos de economia circular.

Ação e Operacionalização • Conhecer se a utilização de energia “limpa” na atividade é uma realidade e ainda qual o nível de utilização de subprodutos das ETA e das ETAR pelas Entidades; • Considerando a entrada em vigor do Regime Jurídico de Produção de Água para Reutilização (DL 119/2019), pretendeu-se averiguar qual o interesse por parte dos potenciais utilizadores em adquirir água para reutilização. Averiguar se a


ECONOMIA CIRCULAR NO SETOR DA ÁGUA E SANEAMENTO EM PORTUGAL

tarifa é um constrangimento e avaliar o nível de utilização para uso próprio da Entidade; • Avaliar se a reutilização de infraestruturas inativas pelas Entidades é uma realidade; • Verificar se as Entidades consideram ou planeiam produzir hidrogénio verde ou promover a recuperação de outros materiais a partir das águas residuais; • Apurar quais as Entidades Gestoras que gerem e controlam as águas pluviais e se têm um plano de controlo para a deteção e redução de perdas de água nas redes de abastecimento; • Determinar se as Entidades têm implementados sistemas de aproveitamento de energia solar e/ou eólica e qual a percentagem de energia (eletricidade, combustível, entre outros) usada na exploração e manutenção das infraestruturas proveniente de fontes renováveis.

Gestão de Recursos (energia, água, combustíveis, consumíveis diversos, etc.) • Avaliar o consumo de recursos da organização e em que medida esses recursos foram reduzidos

por forma a tornar mais eficiente a atividade da organização.

Gestão de Resíduos • Apurar a existência de uma estrutura própria dedicada à gestão dos vários fluxos de resíduos produzidos, quais as medidas implementadas na área da gestão de resíduos e qual o destino final das lamas produzidas nas ETAR e nas ETA, assim como de outros subprodutos.

Gestão da Cadeia Logística e Transportes • Verificar a existência de procedimentos implementados que promovem a utilização de meios, infraestruturas, equipamentos e ferramentas de forma partilhada com o objetivo de melhorar a eficiência dos recursos, avaliando ainda a existência de procedimentos e operações de logística reversa.

Gestão de Compras • Verificar a existência da inclusão de princípios e requisitos da economia circular nos procedimentos associados às compras e/ou contratação de serviços.

Gestão da Relação com as Partes Interessadas • Aferir sobre a existência de networking/benchmarking com organizações, pessoas, investidores e outros agentes que possam contribuir para a economia circular; • Avaliar a possibilidade de os utilizadores/clientes dos serviços contribuírem para a identificação de soluções que visem melhorar a economia circular.

Política de Inovação e I&D • Apurar a existência de políticas de inovação, investigação e desenvolvimento nas Entidades.

Performance de Informação, Sensibilização e Educação Ambiental • Conhecer o trabalho desenvolvido ao nível da educação ambiental e aferir os meios de divulgação de informação pela população dos conceitos e boas práticas de economia circular.

3. LINHAS DE TENDÊNCIA Do total de Entidades inquiridas, apenas 64 responderam (cerca de 30%):

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# atualidade • 4 operam em Alta; • 30 operam em Baixa; • 30 operam nas duas valências. Do universo das Entidades que responderam, 35 eram Municípios, dos quais 30 com um número de habitantes servidos inferior a 30 000. Com base nas respostas recolhidas enquanto amostragem para o setor, foi possível estabelecer uma primeira análise que nos revela as seguintes tendências. 1. A maioria das Entidades considera médio o seu grau de conhecimento do conceito de economia circular (66%); Qual o seu grau de conhecimento do conceito de economia circular? Baixo 22% Médio 66% Muito elevado 9% Nulo 3%

2. Mais de 70% admite que ainda não identificou os riscos de permanecer numa economia linear e das cerca de 30% que

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admitem ter identificado os riscos, cerca de 80% assumem ter identificado as oportunidades relacionadas com a transição para uma Economia Circular; Na sua Entidade já foram identificados os riscos de permanecer numa economia linear?

Não 78% Sim 22%

3. Em relação às principais dificuldades e constrangimentos no desenvolvimento e na concretização de projetos de economia circular nas Entidades, as principais causas evidenciadas foram de forma destacada e quasi consensual a falta de recursos humanos e de recursos financeiros;


ECONOMIA CIRCULAR NO SETOR DA ÁGUA E SANEAMENTO EM PORTUGAL

Quais as principais dificuldades e constrangimentos no desenvolvimento e na concretização de projetos de Economia Circular na sua Entidade?

Estratégia global.

2%

Falta de recursos humanos. Falta de recursos financeiros. Não é uma prioridade da gestão de topo.

5%

Falta de recursos financeiros. Não é uma prioridade da gestão de topo.

3%

Falta de recursos humanos. Não é uma prioridade da gestão de topo.

5%

Falta de recursos humanos. Falta de recursos financeiros.

34%

Não é uma prioridade da gestão de topo.

14%

Falta de recursos financeiros.

15%

Falta de recursos humanos.

23%

0%

4. Quanto ao interesse por parte dos potenciais utilizadores em adquirir água para reutilização, cerca de 80% das respostas foram negativas. Entre os que responderam positivamente, a utilização da ApR em sistemas de rega foi predominante nas respostas recolhidas; 5. Quando questionadas sobre as intenções de produzir hidrogénio verde ou recuperar outros materiais a partir das águas residuais, mais de 95% das respostas foram negativas; 6. Ao nível da gestão de

5%

10%

15%

ativos, 71% das Entidades declararam não ter como prática a reutilização de infraestruturas inativas; 7. A valorização das lamas produzidas em ETA não tem ainda a expressão desejada nas entidades inquiridas. Cerca de 30% das respostas apontam o aterro sanitário como principal destino dessas lamas. No que respeita a lamas produzidas em ETAR, 38% responde que o destino final das mesmas é a valorização agrícola e compostagem; 8. Mais de 70% das Entidades reconheceu que não

20%

25%

30%

35%

promove junto dos fornecedores a implementação e cumprimento de medidas associadas à economia circular, contudo, verificou-se que cerca de 65% das Entidades afirma estar, no âmbito da educação ambiental, a informar e a divulgar pela população os conceitos e boas práticas de economia circular; 9. Por último, quase todas as Entidades afirmam conhecer e controlar os recursos energia, água e combustíveis.

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# atualidade 4. CONCLUSÃO Nos últimos anos as políticas europeias orientadas para a economia circular não pararam de crescer. Portugal aprovou um conjunto de planos de ação que têm ajudado o país na transição de uma economia linear para uma economia circular, com destaque para o Plano de Ação para a Economia Circular em Portugal (PAEC - Resolução do Conselho de Ministros n.º 190-A/2017, de 11 de dezembro) 2017-2020, onde são referidos o “planear” e o “agir” como fatores chave para a promoção desta transição, com o objetivo de definir uma estratégia nacional para a economia circular assente na produção e eliminação de resíduos e nos conceitos de reutilização, reparação e renovação de materiais e energia. O modelo de governação adotado reúne as valências necessárias para poder avançar nas orientações através de instrumentos específicos, como os acordos circulares, e congregar o apoio, acompanhamento e o retorno de informação necessários à avaliação e ajuste do PAEC. Foram

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considerados três níveis de ações: • Macro: ações de âmbito estrutural, que produzem efeitos transversais e sistémicos que potenciam a apropriação de princípios da economia circular pela sociedade; • Meso (ou setoriais): ações ou iniciativas definidas e assumidas pelo conjunto de intervenientes na cadeia de valor de setores relevantes para o aumento da produtividade e utilização eficiente de recursos do país, capturando benefícios económicos, sociais e ambientais; • Micro (ou regionais/ locais): ações ou iniciativas definidas e assumidas pelo conjunto de agentes governativos, económicos e sociais, regionais e/ou locais, que incorporam o perfil económico local e o valorizam na abordagem aos desafios sociais. Atendendo ao resultado obtido no inquérito, é evidente que o Setor das Águas, apesar de já ter algum conhecimento e perceção das vantagens da gestão sustentada na economia circular, está, ainda, longe de a considerar uma prática

essencial e eficiente para a boa gestão das organizações e recursos, justificando tal facto com a falta de recursos humanos e financeiros. A gestão através da economia linear ainda se encontra muita enraizada nas organizações. Apesar de os técnicos, designadamente os que responderam ao inquérito, estarem bastante sensibilizados e cientes das vantagens da adoção de procedimentos de economia circular, várias respostas indicaram que tal não é, neste momento, uma prioridade da gestão de topo, aspeto que deve ser relevado. Concluiu-se que, atualmente, as Entidades Gestoras se encontram longe do caminho a percorrer para alcançar as metas regulamentadas e transitar de uma economia linear para uma economia circular. É neste cenário que a Comissão Especializada de Economia Circular da APDA pretende desenvolver a sua ação. Da primeira análise, com base na amostragem recolhida e reflexo do estado da arte nas Entidades que participaram no inquérito, entende esta Comissão que a produção


ECONOMIA CIRCULAR NO SETOR DA ÁGUA E SANEAMENTO EM PORTUGAL

de documentação enquanto ferramenta de apoio e incentivo à participação de todas as Entidades neste processo de transição será uma mais-valia para o setor. No formato de dossier, digital, será armazenada e atualizada uma série de informações e orientações sobre os conceitos, definições, tipologia

e classificação. Este material apresentará ainda propostas de procedimentos e protocolos exemplo de boas práticas e estratégias de gestão de matérias-primas, produtos e serviços já implementados (ou em fase de implementação) por Entidades. Não terá chegado a hora de criar uma rede de partilha

dedicada à economia circular? Todos, em particular os que todos os dias tomam decisões que influenciam o ambiente e a sua preservação, devem assumir e desempenhar um papel relevante e determinante para a mudança.

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EVENTOS


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# EVENTOS Eventos APDA Sessões públicas de assinatura da “Declaração de Compromisso para Adaptação e Mitigação das Alterações Climáticas nos Serviços de Águas” APDA Locais: Ponta Delgada, Açores | Funchal, Madeira Data: a definir Encontro “Estado da arte da transposição da Diretiva ACH” APDA Local: a definir Data: 7 outubro 2022

eventos

PURA 2022 - Comunicar em Crise APDA Local: Sintra Data: 20 outubro 2022

Para mais informações www.apda.pt

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APDA _ 2022 | REVISTA APDA_

Encontro “Gestão da Dívida nas Entidades Gestoras” APDA Local: Porto Data: 4 novembro 2022


APDA, NACIONAIS E INTERNACIONAIS

Eventos nacionais

Eventos INTERnacionais

O Caminho da Inovação - Expo & Networking Águas do Tejo Atlântico Local: Fábrica de Água de Alcântara, Lisboa Data: 4 outubro 2022

World Water Week 2022 Stockholm International Water Institute Local: Estocolmo, Suécia (e online) Data: 23 agosto - 1 setembro 2022

Portugal Smart Cities Fundação AIP Local: FIL, Lisboa Data: 11-13 outubro 2022

IWA World Water Congress & Exhibition International Water Association Local: Copenhaga, Dinamarca Data: 11-15 setembro 2022

REVISTA APDA_ APDA _ 2022

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NEXO ÁGUA - ENERGIA - ALIMENTOS O Nexo Água, Energia, Alimentos consiste em compreender os impactos associados ao uso dos recursos naturais e as suas inter-relações, permitindo criar estratégias para alcançar melhores resultados ambientais, sociais e económicos na conservação dos ecossistemas e bem-estar da população. [HOFF, 2011; BAZILIAN et al., 2011]. Os estudos do Nexo procuram alternativas para um melhor desempenho nos parâmetros do sistema e, pela sua capacidade de avaliar os recursos de forma integrada e evidenciar as sinergias, o Nexo tem adequada aplicação na definição de políticas públicas e na monitorização dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. [FAO, 2014]. a extração de combustíveis fósseis, culturas energéticas e sequestro de carbono têm impactos no fornecimento de alimentos

E SUSTENTÁVE RIDAD L•F SPE RO RO NT P • EIR L A AS B O L PL G AN ÇA

S IA ÁR ET

MU DA N

a produção, processamento e transporte de alimentos necessita de energia

ENERGIA

procura, oferta e ativos

SEGURANÇA ENERGÉTICA, governança e investimento

PESSOAS, PAISAGENS E ECOSSISTEMAS

SEGURANÇA ALIMENTAR, política e investimento

ALIMENTO procura, oferta e ativos

ÇA

• AL OB GL

ADE SUSTENTÁVEL ERID • OSP PR

F R O NT EIR A SP LA N a produção de energia (incluindo sequestro de carbono) necessita de água e tem impactos na qualidade e disponibilidade da água

ÁGUA

procura, oferta e ativos

a infraestrutura hídrica e sua utilização tem impactos na disponibilidade de peixe, alimentos e ocupação do solo

M U DA N

AS RI Á ET

o fornecimento de água potável necessita de energia

a produção de alimentos necessita de água e tem impactos na qualidade e disponibilidade da água

SEGURANÇA HÍDRICA, gestão e investimento Fonte: http://lindseynicholson.org/2021/03/water-energy-food-nexus/

INFOGRAFIA


DE 7,9 MIL MILHÕES DE PESSOAS NO MUNDO [2022]: 2,3 mil milhões

733 milhões

2,3 mil milhões

vivem em países com escassez de água

não têm acesso a eletricidade

não tem acesso a alimentação adequada

Fonte: www.unwater.org

Fonte: www.news.un.org/en/story/2022/06/1119452

Fonte:www.who.int/news/item/12-07-2021-un-reportpandemic-year-marked-by-spike-in-world-hunger

O CONSUMO NO MUNDO [2022]: Consumo de energia

Consumo de água

Exploração e abate

Petróleo e derivados

Biomassa

31,1%

9,3%

Gás natural

Outros

23%

2%

Nuclear

Hidráulica

5%

Desperdício de alimentos

2,6%

Carvão mineral

Agricultura

70% Consumo doméstico

11% Indústrias

19%

27% Fonte: https://www.epe.gov.br/pt/abcdenergia/matriz-energetica-e-eletrica

Fonte: https://wellwo.es/en/more-responsible-water-consumption-at-home/

Energia para alimentos • Bombagem de água para rega • Produção de fertilizantes • Colheita • Processamento pós-colheita • Transporte • Uso de combustíveis para cozinhar • Custo de oportunidade do uso do solo Alimentos para energia • Biomassa para biocombustível • Produção

8% Distribuição

14% Supermercados e serviços de restauração

7% Doméstico

11% Fonte: https://www.ift.org/news-and-publications/food-technology-magazine/issues/2021/december/

Energia para água • Produção de água potável • Tratamento de águas residuais • Dessalinização Água para energia • Extração de recursos • Hidroeletricidade • Arrefecimento Água para alimentos • Irrigação de culturas • Processamento de alimentos

NEXO água - energia - alimentos

Fonte: https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0301421517307838#f0010


ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE DISTRIBUIÇÃO E DRENAGEM DE ÁGUAS


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