Leilão de julho de 2011

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11 Já no meio urbano, nas grandes cidades, os artistas tendem a restringir sua parceria com o mundo animal aos cães e aos gatos. Aldo Bonadei contava apenas 22 anos quando retratou o seu cachorro Ipo dormindo (fig. 15, catálogo de novembro de 2010). Pintura surpreendente, se levarmos em conta a juventude do artista e o ano de sua realização, 1929. De fato, é notável a desenvoltura com que Bonadei lança suas pinceladas em espaço tão exíguo. Pinceladas que se “desmancham” numa espécie de exercício prévio de abstração informal. Tendência à qual nunca aderiu, pois uma das características marcantes de sua pintura era circunscrever a cor em áreas contidas por traços negros, impedindo sua expansão. Djanira tinha um belo cão pedrês, de nome Horácio, que ela retratou à frente de seu apaixonado marido, Motinha, ambos de pé, rígidos, sobre um fundo geométrico articulado em diferentes tonalidades de cinzas. Tudo nesse retrato, pintado em 1967, é limpo, liso, preciso. Não se percebe sequer o rastro do pincel. Oito anos antes, Djanira já pintara outro de seus cães. Feio e estranho cão. Tem algo de mortiço na cor de sua pele e na fronte lisa, desnuda e arredondada, olhos puxados e focinho curto. Flagrado, sozinho, sobre um fundo totalmente vermelho, estica o pescoço como se quisesse alcançar o que poderia ser um prato ou apenas uma armação circular, de cor azul, mas cujo conteúdo é o mesmo vermelho da tela. Sempre ágil em estabelecer imprevistas relações visuais, no ctálogo de maio de 2010, Soraia Cals situa frente a frente, no alto de páginas contíguas, o cão de Djanira (fig. 16) e um tatu esculpido em madeira pelo ótimo Arthur Pereira (fig. 17). Um pouco mais e poderiam se chocar, cabeça contra cabeça. No entanto, não se olham. Enigmático, o feio cão segue mirando o aro ou utensílio que tem a sua frente. O tatu retém a postura de quem está prestes a fuçar o chão de terra. São dois animais ensimesmados. Nos intervalos que me dou, enquanto escrevo este texto, estou lendo o último livro do escritor espanhol Enrique Vila-Matas, Dublinesca, cuja trama gira em torno do Ulisses de Joyce, ou melhor, de um grupo composto por um editor falido e alguns escritores que vão a Dublin para celebrar mais um bloomsday. Mas são frequentes as referências a outros autores como Samuel Beckett, como a que se segue: “Uma noite de março em Dublin, o escritor irlandês teve uma revelação definitiva, o tipo de revelação que dá inveja: ‘No final do cais, no vendaval, nunca me esquecerei, ali tudo de repente me pareceu claro. Por fim, a visão.’ Era noite na verdade, e como tantas vezes, o jovem Beckett vagava solitário. Encontrou-se na ponta do cais varrido pela tempestade.” “Salvo engano” – prossegue Vila-Matas – “esse noturno no cais dublinense apareceria mais tarde, um pouco modificado, em A última gravação de Krapp. O que restará de toda esta nossa miséria? Afinal, só uma velha puta passeando com uma gabardina irrisória, num dique solitário, debaixo da chuva”. E de repente, como um flash, me vêm à mente, íntegras, duas das mais extraordinárias xilogravuras de Goeldi, “Chuva” (fig. 18) e “Rua molhada” (fig. 19), por sorte, reproduzidas, respectivamente, nos catálogos de setembro de 2007 e abril de 2009. E com a mesma instantaneidade a memória me trouxe de volta, superpondo-os, fragmentos de textos que escrevi sobre a obra de Goeldi, em diferentes épocas. É sempre bom rever Goeldi. É como reler um bom romance, reencontrar aqueles personagens que nos fascinam. Aliás, existe algo de construção literária em Goeldi. Não por suas excelentes ilustrações de textos literários, mas antes de tudo por ser ele um poderoso criador de atmosferas. Suas gravuras são noturnas e soturnas e, nelas, os objetos têm grande importância, juntamente com os animais. Ruas vazias ou molhadas pela chuva, latas de lixo


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