
6 minute read
Capítulo I: Os Cilíndros e as Primeiras Chapas de Goma-Laca
Capítulo 1: Os Cilindros e as Primeiras Chapas de Goma-Laca
Imagine que o ano é 1965 e, caminhando pela Rua do Passeio no Centro do Rio, um transeunte decide ir ao cinema assistir ao mais novo lançamento no Cinema Odeon.[1] O filme musical “Minha Bela Dama” (ou, no título original, “My Fair Lady”),[2] estrelado por Audrey Hepburn e Rex Harrison, acompanha a história da jovem Eliza Doolittle em suas aulas de eloquência com o Professor Higgins; um “cientista da fala”. A história, inspirada na peça "Pigmaleão", de George Bernard Shaw (1913), é ambientada na Inglaterra, na virada do século XX, onde a "ciência da fala”, posteriormente conhecida como fonoaudiologia, começava a ser compreendida como profissão.
Advertisement
Durante a exibição do filme, o público se depararia com diversas máquinas interessantes no cenário do escritório do excêntrico Professor Higgins.
[1] Projetado por Francisco Serrador em 1926, o Odeon é o sobrevivente dos diversos cinemas localizados na antiga Praça Marechal Floriano que, em 1930, passa a se chamar Cinelândia (ABREU, 2009, p.99). [2] My Fair Lady, filme distribuído pela Warner Bros. Pictures lançado nos Estados Unidos em outubro de 1964, com direção de George Cukor, roteiro de Alan Jay Lerner. Vencedor de oito Academy Awards e três Globos de Ouro em 1965.
Apesar de pouco mais de meio século separar a estreia do filme de sua ambientação, o expectador muito provavelmente não saberia que todos esses aparelhos eram nada menos do que variações de uma mesma invenção, o primeiro sistema de armazenamento e reprodução de som da história da humanidade. É com ele que se inicia a nossa história.
Era véspera de natal de 1877 quando o primeiro aparelho de gravação e reprodução de áudio foi patenteado pelo inventor estadunidense Thomas Edison (BUTLER, 2012, p.
Imagem 2: Ator Rex Harrison e o fonógrafo em cena do filme My Fair Lady (1964).
8).[3] O mecanismo de Edison foi batizado de fonógrafo,[4] definido por Leopoldo Waizbort como:
(...) um aparelho mecânico que se presta tanto à gravação como à reprodução de sons. Na situação de gravação, os sons emitidos, em geral captados por um cone acústico, vibram uma membrana, por sua vez ligada a uma agulha que, acompanhando os movimentos da membrana, sulca uma folha de estanho que recobre um cilindro em rotação, deixando registrado assim, nos sulcos sobre a folha de estanho, uma trilha sonora helicoidal. A membrana (ou diafragma), vibrando em função das sonoridades recebidas, transforma os sons em oscilações mecânicas, repassadas à agulha e, desta, à folha de estanho. Na situação de reprodução, o processo é o mesmo, mas em sentido inverso. O cilindro recoberto de estanho é posto a girar em sentido contrário, oscilando a agulha e, assim, a membrana, que produz as oscilações sonoras ampliadas na campana (...) (WAIZBORT, 2014, p. 29).[5] Ainda segundo o autor, “cada cilindro permitia pouco mais de dois minutos de gravação/reprodução, chegando ocasionalmente a quatro.” (WAIZBORT, 2014, p. 30).

Imagem 3: Fonógrafo denominado “Edison Home Phonograph”.
[3] Para mais informações, consultar Rebecca P. Butler em “Thomas Edison Speculates on the Uses of the Phonograph”, artigo para revista Tech Trends Volume 56, n° 4 em julho/agosto de 2012. [4] Fonos-graphos: escrita do som (WAIZBORT, 2014, p. 29). [5] Para mais informações, consultar Leopoldo Waizbort - professor titular do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo e pesquisador do CNPq -, em “Fonógrafo”, 2014..

Imagem 4: Cilindro de cera juntamente com sua embalagem cilíndrica da marca Edison Records.
Em artigo publicado na revista The North American Review em 1878, o próprio Edison deixa claro que o aparelho não foi pensado exclusivamente para a gravação e reprodução de música, mas também para outras atividades ligadas ao som e à preservação de memória (EDISON, 1878, p. 531).[6]
Entre os usos pensados por Edison estavam, por exemplo:
1. Redigir Cartas; 2. Gravação de livros para pessoas com defici- ência visual ou analfabetos; 3. Aulas de eloquência; 4. Gravações musicais para entretenimento ou educação musical; 5. Registros familiares e das vozes de parentes; 6. Produção de caixas de música e brinquedos falantes; 7. Relógios falantes que mostrem a hora e nos avisem das atividades; 8. Preservação de idiomas e dialetos; 9. Preservação de explicações de aulas; 10. Gravação de conversas telefônicas.
Segundo o capista e pesquisador Egeu Laus (2005, p. 297),[7] quando o aparelho chegou ao Brasil em 1892, seus cilindros já não eram mais feitos apenas de estanho, e sim envoltos em uma cera que, para o desespero de qualquer pesquisador que trabalha com a preservação da memória, podiam ser raspados e recobertos para acomodar uma nova
[6] Para mais informações, consultar Thomas Edison em “The phonograph and it’s future”, artigo para a revista The North American Review, Vol. 126, n° 262 de maio e junho de 1878, p. 527-536. [7] Para mais informações, consultar Egeu Laus em “Capas de Disco no Brasil: os primeiros anos”, 2005. Egeu Laus é designer gráfico com mais de 200 capas projetadas nas décadas de 1980 e 1990. Pesquisador sobre capas de disco brasileiras pioneiro no país.
gravação. Ou seja, se o nosso personagem Professor Higgins tivesse à sua disposição um cilindro com uma gravação sem mais utilidade, poderia levá-lo à uma loja especializada que o raspasse e recobrisse e logo estaria pronto para uso novamente.
Quase simultaneamente, foi desenvolvido o gramophone, um aparelho de sistema similar ao fonógrafo patenteado por Emile Berliner em 1887,[7] mudando apenas o formato de armazenamento do som, não mais em cilindros, mas sim nas chapas de 78 RPM (Rotations per Minute, em português, rotações por minuto), feitos de ebonite, goma-laca e cera de carnaúba (posteriormente conhecidas como “discos”) (LAUS, 2005, p. 296).
Imagem 5: Um dos primeiros modelos do gramophone de Berliner.

[8] Emile Berliner (1851-1929). Inventor alemão, naturalizado estadunidense, fundador da United States Gramophone Company em 1894.
Ainda segundo Laus, ambos aparelhos chegaram ao Brasil na década de 1890, comercializados por Frederico Figner como “máquinas falantes”. Os historiadores da música Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello afirmam que, em 1902, Figner fundou a Casa Edison, onde fez as primeiras gravações de faixas brasileiras, enviadas para serem prensadas na Europa e devolvidas em lotes e vendidas no país de origem (SEVERIANO e MELLO, 2006, p. 17).[9]
A diferença principal entre os dois formatos (fonógrafo e gramophone) que acarretou na popularização das chapas e do gramophone foi o advento de sua reprodutibilidade. O historiador Rodrigo Gomes, afirma que:
Outro problema crucial que de início limitou o fonógrafo foi o fato de as gravações em cilindro não poderem ser replicadas. Somente com o advento do disco a replicação em massa tornar-se-ia possível e a indústria fonográfica começaria a decolar, tornando-se imediatamente internacional, uma vez que uma gravação poderia ser realizada em um local e transportada para outro para ser produzida e comercializada em massa. (GOMES, 2014, p.74).[10]
A indústria das chapas gravadas no Brasil cresceu largamente ao longo da década de 1900 levando à possibilidade de inauguração da primeira fábrica de prensagem de discos da América Latina, em dezembro de 1912. A fábri-
[9] Jairo Severiano produtor, historiador e pesquisador de música popular brasileira com Zuza Homem de Mello, jornalista e musicólogo em “ A Canção no Tempo: 85 anos de músicas brasileiras. Vol I.” (6° edição), 2006. [10] Para mais informações, consultar Rodrigo M. Gomes em “Do Fonógrafo ao MP3: Algumas Reflexões sobre Música e Tecnologia”, publicado na Revista Brasileira de Estudos da Canção – Natal, n.5, jan-jun 2014.
ca Odeon, localizada no bairro de Vila Isabel, na cidade do Rio de Janeiro, foi a responsável pela prensagem de “um milhão e meio de discos por ano, tornando-se à época a quarta maior produtora de discos do mundo'' (LAUS, 2005, p. 297).
Imagem 6: Outra versão do gramophone, já para comercialização.
