Jornal Cultural Movimente #01

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Jornal Cultural Movimente

CRÔNICA

Coloridas e invisíveis Doulgas França

H

oje, acordei atrasado como de costume, e tive que mais uma vez tomar aquela velha decisão entre chegar no horário no trabalho ou tomar um café da manhã decente. “Tomo café da manhã e vou de uber”, decidi, já que o transporte público me faria chegar ainda mais atrasado. No uber, ainda sentindo o gosto do café amargo na boca, o motorista ouvia um áudio de um de seus companheiros motoristas, falando que tinha sofrido um acidente na T-8 e deveria perder a semana de trabalho. O motorista, um tanto cabisbaixo, terminou de ouvir o áudio e aumentou o som do carro, onde no noticiário falavam sobre a aprovação da reforma trabalhista. Desci do Uber desejando um bom dia e bom trabalho, como sempre fazia. Enquanto esperava para atravessar, meus olhos brincavam de passear entre as cores das mochilas dos motociclistas. Da verde eu passava para vermelha e logo me aparecia uma amarela. Passavam tão rapidamente que mal dava para registrar, como se estivessem bem apressadas para o seu destino final. Também avistei uma dessas mochilas no noticiário, na TV da recepção do trabalho, mas essa não cortava a tela rapidamente e apressada, estava jogada em um canto, enquanto os cinegrafistas filmavam o

motociclista deitado após um acidente com um automóvel. A manhã passa voando quando a gente tem muito trabalho, não é? Quando vi era meio dia e meu estômago já doía pedindo comida novamente. Porém, tinha uma reunião em quarenta minutos, não podia sair para almoçar. Peguei o celular, abri o ifood e pedi o de sempre, por sorte ainda dava para usar o cupom de desconto. Dessa vez, porém, o pedido demorou mais do que o esperado, eu já estava trinta minutos atrasado para minha reunião quando o entregador chegou super preocupado, “desculpa moço, o trânsito estava terrível e o aplicativo travou, por isso o pedido atrasou, não me avalia mal, por favor!”. Não avaliei o entregador no aplicativo depois desse pedido, mas se fosse pela minha irritação, teria apertado o ícone de desaprovação milhões de vezes. A reunião tomou o resto da tarde, o sol já estava se pondo quando desligava meu computador para terminar meu dia de trabalho. Exausto, porém, ainda tinha que cumprir minha meta de atividade física na academia próxima. Decidi ir caminhando já que não tinha mais sol para me prejudicar. No caminho, percebia o trânsito caótico do horário de pico. Mais uma vez as mochilas coloridas passeavam. Dentro dos carros, via os motoristas irritados com o trânsito enquanto procuravam novas rotas no

GPS. Na calçada, mais mochilas coloridas, mas essas estavam paradas, seguradas por pessoas com aparente cara de frustração e cansaço, enquanto manuseavam aplicativos de celular. Enquanto trocava o uniforme de trabalho por uma regata, calção e tênis fiquei pensativo. Como essas pessoas, que até agora chamei de mochilas, motoristas ou aplicativos, eram tão presentes e tão ausentes ao mesmo tempo? Fiz aquele caminho tantas vezes que nem sei dizer e não me dava conta de quantos passavam pelos meus olhos. Cem? Duzentos? Mil? Não sei. Só sei que enquanto meu dia de trabalho estava terminando, o deles ainda estava por começar, afinal, a noite o Uber tem mais tarifa dinâmica e as entregas no ifood devem bombar. Os pensamentos foram se perdendo enquanto eu começava a correr na esteira. Cheguei em casa, já era noite alta, os olhos lacrimejando com a quantidade de luzes e faróis pelo caminho. O cansaço batendo forte e a vontade de um banho quente e depois deitar esparramado na cama. “Ah! Na dieta, o nutricionista falou que tenho que comer uma proteína à noite! ”, pensei. Peguei o celular, abri o aplicativo, e pedi a omelete daquele restaurante duas quadras acima, ainda bem que nele a taxa de entrega é grátis. Quando o entregador chegou, trocamos olhares, ele entregou meu pedido e me agradeceu com voz arrastada. “Bom trabalho!”, falei, tentando esboçar um sorriso. Ele acenou com a cabeça, mas sem conseguir mostrar muita animação nos olhos cheios de olheiras. Observei-o entrar no elevador com suas vestes marcadas por poeira e fuligem de um longo dia de trabalho. Aquela cena me deixou bastante pensativo enquanto abria a embalagem que protegia minha omelete. Comecei a comer ainda lembrando do olhar daquele entregador. Pensei o que aquele aceno final realmente significava como resposta a minha tentativa de ser educado desejando um bom trabalho. Sou capaz de apostar que ele só queria estar em casa, acompanhado da família, talvez brincando com o cachorro ou comendo uma omelete como eu. Que tipo de trabalho é esse? O trabalho não serve para que cresçamos como indivíduos social e intelectualmente? Para que possamos ter o dinheiro necessário para fazer coi-


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