5 minute read

A Arte e Suas Atribuições

Ana Liz

Advertisement

Nesse período de confinamento que se estende indefinidamente, muitos artistas nos brindam com lives de variados estilos musicais e poesias; amantes da literatura e cinema analisam obras; plataformas de streaming liberam filmes gratuitos, ajudando-nos no alívio de ansiedades, preocupações e incertezas diante da famigerada epidemia e suas repercussões sociais, políticas e econômicas. É a arte com sua capacidade redentora, mais uma vez nos dando forças para resistir e seguir em frente. Sigmund Freud no ensaio “O Mal-Estar na Civilização” [1], publicado pela primeira vez em 1930, ressaltou a arte como um dos principais mecanismos que o ser humano dispõe para fazer suas sublimações e catarses.

Através da arte ­– em todas as suas formas – podemos expressar nossos temores, indignações, tristezas, ódios, amores, sonhos... Nela o ser humano encontra meio de sublimar o que lhe é proibido, ou inalcançável. A arte, também, é instrumento de protesto, reflexão e transformação. Desse modo, ganha força e reage nos momentos de maior opressão política e social como uma forma de resistência. Isso fica claro, por exemplo, quando analisamos a história do surgimento do Blues e Jazz nos Estados Unidos no século XIX. Ritmos que se originaram entre os negros escravizados e, após a abolição, se tornaram válvulas de escape em relação à opressão vivida por eles em um período que a segregação racial era uma política de governo e prática constante. Da mesma forma, no Brasil, uma das maneiras encontradas pelos escravizados como alívio para a dura realidade vivida pela escravatura, foi a música. Ao som dos batuques e cantorias surgiu um dos ritmos mais populares de nosso país, o samba. Como o Jazz e o Blues, o que antes era música de grupo marginalizado foi consagrado e abarcado pelo mercado da música, como qualquer outra mercadoria que gera lucro.

A música, expressão artística mais difusa, como bem expressou Chico Buarque em “A Banda”, é alegria, bálsamo para aliviar as dores e sofrimentos. Entretanto, vai além quando assume um viés político. No Brasil o conturbado período marcado pelo regime ditatorial militar (1964 a 1985) foi rico em manifestações artístico-culturais que visavam, não apenas, o alívio da dor e angústia geradas pela repressão política e social, mas também faziam duras críticas à realidade do país. Apesar da rigorosa censura, das perseguições, prisões, torturas e exílios, muitos artistas não se calaram e contribuíram por meio de sua arte para criticar, denunciar e provocar reflexões. Como ressaltou Caetano Veloso, o período era excepcionalmente estimulante para os compositores, cantores e músicos. Reconhecia-se a força da música popular e, além disso, a repulsa à ditadura militar unia grande parte da classe artística em torno do objetivo comum de lhe fazer oposição[1] (VELOSO, 2017, p. 194).

Além da música, dança pintura, escultura, todas as demais manifestações artísticas podem servir de importantes instrumentos de registros históricos e de denúncia. O movimento Dadaísta exemplifica perfeitamente o engajamento de artistas nas questões políticas e sociais. Ele surgiu em Zurique em 1916 e reuniu vários artistas e estilos em reação à primeira guerra mundial e ao antissemitismo. Pablo Picasso em sua obra Guernica, retratou e denunciou ao mundo as atrocidades da guerra civil espanhola (1936 -1939). Com sua famosa obra “O grito” Edvard Munch retratou as angustias dos seres humanos. Nessa mesma perspectiva, Siron Franco registrou o que foi a catástrofe nuclear provocada pelo Césio 137, em Goiânia no ano de 1987. Além disso, viajou por vários países com sua obra feita de terra Goiana para mostrar ao mundo que esta não estava contaminada e, também chamar a atenção para que tal tragédia não volte a acontecer.

Guernica (1937) - Pablo Picasso

Guernica (1937) - Pablo Picasso

Série Césio 137 (1987) - Siron Franco

Série Césio 137 (1987) - Siron Franco

Para além de artistas plásticos consagrados temos os anônimos que se expressam e expõem suas obras em vários espaços, inclusive em feiras livres; os artistas regionais populares que preservam a cultura e identidade local; os grafiteiros, que surgiram na década de 80 e que não apenas propõem um estilo de pintura, mas um movimento cultural contra a exclusão social, promovendo o grito das periferias, utilizando muros e espaços públicos como tela.

Evidentemente, não poderia deixar de mencionar a sétima arte, que sintetiza todas as demais manifestações artísticas. Através dos filmes podemos viajar no tempo e espaço e deparar com diversas culturas, paisagens e fatos históricos. É possível com Chaplin conhecer os “Tempos Modernos” e as relações trabalhistas no contexto da Revolução Industrial. Podemos, também, vivenciar uma greve operária no Brasil em “Eles não usam Black tie”; observar a história contada pelo anglo de vencedores e, também, pelos vencidos; viajar por ficções futuristas ou intimistas, reveladoras da capacidade criativa dos humanos e nos permitir um pouco de ilusão. Embora a ficção não tenha compromisso com a verdade, pode revelá-la de forma explicita, ou, até mesmo, nas entrelinhas.

Tempos Modernos (1936) - Charles Chaplin

Tempos Modernos (1936) - Charles Chaplin

Eles não usam black tie (1981) - Leon Hirszman

Eles não usam black tie (1981) - Leon Hirszman

Quanto a nobre arte escrita quero ressaltar dois nomes distintos que, segundo seus próprios relatos escreviam para enfrentar e suportar a vida: Clarice Lispector e Eduardo Galeano. Lispector escrevia buscando respostas a seus questionamentos. Procurava reproduzir o irreproduzível e sentir até o fim sentimentos vagos e sufocadores. Dizia escrever para si mesma, para sentir sua alma falando, cantando e às vezes chorando. Para ela escrever era como respirar. Precisava do ato da escrita para sobreviver[1]. Já Eduardo Galeano escrevia por necessidade de comunicação e comunhão, escrevia para transmitir alegria, ou denunciar tristezas e injustiças. Dizia escrever para aqueles com quem se identificava – famintos, mal dormidos, rebeldes, humilhados – cuja maioria eram analfabetos. Escrevia para dissipar a morte e destruir os fantasmas. Reconhecia que sua escrita só poderia ser útil se coincidisse de alguma maneira com a necessidade coletiva de conquista de identidade. Como escritor desejava ajudar as pessoas a tomar consciência de si mesmas. Para ele a arte deveria ser considerada matéria de primeira necessidade e não um artigo de luxo[2].

Por fim a arte é, também, lugar de memória e expressa em suas mais variadas formas o registro de nossa história, sendo representação de seu tempo e meio social. Quem nunca chorou vendo um filme riu como criança na plateia de um teatro, ou circo, deslumbrou-se diante de um espetáculo de dança? Esse é o efeito catártico da arte, para quem a concebe e para quem a recebe. A Arte é ao mesmo tempo expressão e contemplação do belo, da estética, da capacidade humana de sair de sua essência e pronunciar-se, de fluir e transpor-se para além da realidade, criando novas subjetividades. A arte é, acima de tudo, libertação. Provavelmente, Freud não concordaria com essa referencia simplista sobre arte e, também, não a reconheceria em algumas formas de expressão, por considerá-las vulgares, entretanto, seguramente concordaria sim, sendo “pensador da cultura”, como bem o definiu Renato Mezan[1] (1985), que a arte está no mais alto nível do processo civilizatório.