Jornal Cultural Movimente #01

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MOVIMENTE

Arte: Glenda Andrade

Um jornal cultural do Sintef-GO

Coloridas e invisíveis A precarização sob o disfarce de empreendedorismo p. 3 e 4

A arte e suas atribuições Uma reflexão sobre a importância da arte nas suas diversas formas de expressão p. 4 e 5


EDITORIAL

Um jornal de trabalhadores

E

m 1975 o Brasil conheceu o Jornal Movimento. Um jornal de resistência às injustiças impostas pela ditadura empresarial-militar no país. Além de se colocar em defesa dos direitos e liberdades, o Movimento buscou valorizar a arte e a cultura, dando destaque em suas páginas para charges, caricaturas e poemas. Enquanto circulou, adotou o slogan “O jornal sem patrão”. Desde a criação do Movimento até os dias de hoje bastante coisa mudou, entretanto nos vemos novamente sob tendências (descaradamente) totalitárias, sob ataques e incisivas tentativas de retirada de direitos. Em face desse contexto, apresentamos o Movimente, um jornal cultural idealizado e produzido pelo Sintef-GO, um jornal dos trabalhadores. Leia, escute, contemple, escreva e, mais importante, movimente-se!

INSPIRE-SE

Vida em Branco Zélia Duncan

Você não precisa de artistas? Então me devolve os momentos bons. Os versos roubados de nós. As cores do seu caminho. Arranca o rádio do seu carro, destrói a caixa de som. Joga fora os instrumentos e todos aqueles quadros, deixa as paredes em branco, assim como a sua cabeça. Seu cérebro cimento, silêncio, cheio de ódio. Armas para dormir, nenhuma canção de ninar, e suas crianças em guarda, esperando a hora incerta para mandar ou receber rajadas. Você não precisa de artistas? Então fecha os olhos, mora no breu. Esquece o que a arte te deu, finge que não te deu nada. Nenhum som, nenhuma cor, nenhuma flor na sua blusa. Nem Van Gogh, nem Tom Jobim, nem Gonzaga, nem Diadorim. Você vai rimar com números. Vai dormir com raiva, e acordar sem sonhos, sem nada. E esse vazio no seu peito não tem refrão para dar jeito, não tem balé para bailar. Você não precisa de artistas? Então nos perca de vista. Nos deixe de fora desse seu mundo perverso, sem graça, sem alma.

Princípios Jornal Cultural Movimente Olá, este é o Jornal Cultural Movimente. Somos uma publicação on-line do Sintef-GO, primordialmente produzido por servidores docentes e técnico-administrativos do IFG e do IF Goiano. Nossa linha editorial e publicação estão sob a responsabilidade do coletivo Espaço de Ideias, cabendo à entidade sindical a viabilização das condições materiais da sua produção. Buscamos refletir acerca de temas que articulam arte e cultura de forma crítica, criativa e inclusiva. Acreditamos na arte engajada, feita para transformar, integrando a condição de veículo e movimento político-cultural, em perspectiva crítica e emancipatória em sentido amplo. Assim, temos a perspectiva de ir além da reunião e publicação de obras e textos culturais e artísticos, promovendo ou participando de atividades direta ou indiretamente vinculadas a esses temas. Nosso objetivo é constituir um espaço de cultura popular e de contra hegemonia, opondo-se às culturas e estéticas burguesas, autocráticas e neoliberais. Comprometemo-nos com a busca de um olhar para a sociedade a partir das lentes dos trabalhadores e trabalhadoras, engajados na luta contra as formas de exploração, dominação e opressão presentes na sociedade contemporânea, na defesa intransigente das liberdades democráticas, bem como com posição forte contra a exploração predatória do meio-ambiente, em defesa dos povos tradicionais e contra qualquer expressão do fascismo, LGBTQIA+fobia, racismo e machismo e demais manifestações obscurantistas. A condição de publicação que integra as estruturas de mídia do Sintef-GO não significa submissão às orientações político-sindicais da entidade, ou a qualquer outra forma de organização política e social, partidária ou não. Por este motivo, nem sempre as publicações expressarão a nossa opinião. Acreditamos que, com isso, poderemos fomentar o debate sobre temas que julgamos importantes. O coletivo Espaço de Ideias tem o compromisso de zelar pela natureza, caráter, objetivos e princípios do Jornal Cultural Movimente, mas assegurando que o mesmo esteja aberto para diálogo e ações conjuntas com organizações sociais que compartilham nossos compromissos.

Publicação do Espaço de Ideias Sintef-GO Sindicato dos Trabalhadores em Instituições Federais de Educação Profissional e Tecnológica - Goiás Ano I - Nº 01. Agosto de 2020

Capa: Organização: Espaço de Ideias Revisão e diagramação: Igor Barreto Contatos: espacodeideias2019@gmail.com sintef.go@gmail.com Realização:


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CRÔNICA

Coloridas e invisíveis Doulgas França

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oje, acordei atrasado como de costume, e tive que mais uma vez tomar aquela velha decisão entre chegar no horário no trabalho ou tomar um café da manhã decente. “Tomo café da manhã e vou de uber”, decidi, já que o transporte público me faria chegar ainda mais atrasado. No uber, ainda sentindo o gosto do café amargo na boca, o motorista ouvia um áudio de um de seus companheiros motoristas, falando que tinha sofrido um acidente na T-8 e deveria perder a semana de trabalho. O motorista, um tanto cabisbaixo, terminou de ouvir o áudio e aumentou o som do carro, onde no noticiário falavam sobre a aprovação da reforma trabalhista. Desci do Uber desejando um bom dia e bom trabalho, como sempre fazia. Enquanto esperava para atravessar, meus olhos brincavam de passear entre as cores das mochilas dos motociclistas. Da verde eu passava para vermelha e logo me aparecia uma amarela. Passavam tão rapidamente que mal dava para registrar, como se estivessem bem apressadas para o seu destino final. Também avistei uma dessas mochilas no noticiário, na TV da recepção do trabalho, mas essa não cortava a tela rapidamente e apressada, estava jogada em um canto, enquanto os cinegrafistas filmavam o

motociclista deitado após um acidente com um automóvel. A manhã passa voando quando a gente tem muito trabalho, não é? Quando vi era meio dia e meu estômago já doía pedindo comida novamente. Porém, tinha uma reunião em quarenta minutos, não podia sair para almoçar. Peguei o celular, abri o ifood e pedi o de sempre, por sorte ainda dava para usar o cupom de desconto. Dessa vez, porém, o pedido demorou mais do que o esperado, eu já estava trinta minutos atrasado para minha reunião quando o entregador chegou super preocupado, “desculpa moço, o trânsito estava terrível e o aplicativo travou, por isso o pedido atrasou, não me avalia mal, por favor!”. Não avaliei o entregador no aplicativo depois desse pedido, mas se fosse pela minha irritação, teria apertado o ícone de desaprovação milhões de vezes. A reunião tomou o resto da tarde, o sol já estava se pondo quando desligava meu computador para terminar meu dia de trabalho. Exausto, porém, ainda tinha que cumprir minha meta de atividade física na academia próxima. Decidi ir caminhando já que não tinha mais sol para me prejudicar. No caminho, percebia o trânsito caótico do horário de pico. Mais uma vez as mochilas coloridas passeavam. Dentro dos carros, via os motoristas irritados com o trânsito enquanto procuravam novas rotas no

GPS. Na calçada, mais mochilas coloridas, mas essas estavam paradas, seguradas por pessoas com aparente cara de frustração e cansaço, enquanto manuseavam aplicativos de celular. Enquanto trocava o uniforme de trabalho por uma regata, calção e tênis fiquei pensativo. Como essas pessoas, que até agora chamei de mochilas, motoristas ou aplicativos, eram tão presentes e tão ausentes ao mesmo tempo? Fiz aquele caminho tantas vezes que nem sei dizer e não me dava conta de quantos passavam pelos meus olhos. Cem? Duzentos? Mil? Não sei. Só sei que enquanto meu dia de trabalho estava terminando, o deles ainda estava por começar, afinal, a noite o Uber tem mais tarifa dinâmica e as entregas no ifood devem bombar. Os pensamentos foram se perdendo enquanto eu começava a correr na esteira. Cheguei em casa, já era noite alta, os olhos lacrimejando com a quantidade de luzes e faróis pelo caminho. O cansaço batendo forte e a vontade de um banho quente e depois deitar esparramado na cama. “Ah! Na dieta, o nutricionista falou que tenho que comer uma proteína à noite! ”, pensei. Peguei o celular, abri o aplicativo, e pedi a omelete daquele restaurante duas quadras acima, ainda bem que nele a taxa de entrega é grátis. Quando o entregador chegou, trocamos olhares, ele entregou meu pedido e me agradeceu com voz arrastada. “Bom trabalho!”, falei, tentando esboçar um sorriso. Ele acenou com a cabeça, mas sem conseguir mostrar muita animação nos olhos cheios de olheiras. Observei-o entrar no elevador com suas vestes marcadas por poeira e fuligem de um longo dia de trabalho. Aquela cena me deixou bastante pensativo enquanto abria a embalagem que protegia minha omelete. Comecei a comer ainda lembrando do olhar daquele entregador. Pensei o que aquele aceno final realmente significava como resposta a minha tentativa de ser educado desejando um bom trabalho. Sou capaz de apostar que ele só queria estar em casa, acompanhado da família, talvez brincando com o cachorro ou comendo uma omelete como eu. Que tipo de trabalho é esse? O trabalho não serve para que cresçamos como indivíduos social e intelectualmente? Para que possamos ter o dinheiro necessário para fazer coi-


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sas com as pessoas que gostamos? Que tipo de trabalho é esse que suga todas suas horas disponíveis, principalmente aquelas em que todos estão descansando? Em minha breve reflexão pensei que tudo que esses uberizados queriam era um pouco de dignidade e respeito à vida humana. Dignidade que ele deve

ter enxergado em mim como algo que ele não podia alcançar, então decidiu apenas acenar com a cabeça. Dignidade essa, tão injusta por presentear uma parcela tão mínima da sociedade, enquanto todos os dias, essas milhares de mochilas amarelas, vermelhas, verdes, laranjadas passeiam pela cidade de for-

ma completamente invisível. Fui dormir, meio enjoado, não pela comida, mas por desconforto de uma realidade tão insanamente cruel. Escovei os dentes e meus olhos já se fechavam. O despertador tocou e meu corpo ainda se recusava a levantar, “Vou ter que chamar um Uber de novo”, pensei.

OPINIÃO

A Arte e Suas Atribuições Ana Liz

N

esse período de confinamento que se estende indefinidamente, muitos artistas nos brindam com lives de variados estilos musicais e poesias; amantes da literatura e cinema analisam obras; plataformas de streaming liberam filmes gratuitos, ajudando-nos no alívio de ansiedades, preocupações e incertezas diante da famigerada epidemia e suas repercussões sociais, políticas e econômicas. É a arte com sua capacidade redentora, mais uma vez nos dando forças para resistir e seguir em frente. Sigmund Freud no ensaio “O Mal-Estar na Civilização” [1], publicado pela primeira vez em 1930, ressaltou a arte como um dos principais mecanismos que o ser humano dispõe para fazer suas sublimações e catarses. Através da arte ­– em todas as suas formas – podemos expressar nossos temores, indignações, tristezas, ódios, amores, sonhos... Nela o ser humano encontra meio de sublimar o que lhe é proibido, ou inalcançável. A arte,

também, é instrumento de protesto, reflexão e transformação. Desse modo, ganha Sigmund Freud. / Reprodução: Carta Capital sa, como bem expressou Chico Buarforça e reage nos momentos de maior opressão política e social como que em “A Banda”, é alegria, bálsamo uma forma de resistência. Isso fica cla- para aliviar as dores e sofrimentos. Enro, por exemplo, quando analisamos a tretanto, vai além quando assume um história do surgimento do Blues e Jazz viés político. No Brasil o conturbado nos Estados Unidos no século XIX. Rit- período marcado pelo regime ditatomos que se originaram entre os negros rial militar (1964 a 1985) foi rico em escravizados e, após a abolição, se tor- manifestações artístico-culturais que naram válvulas de escape em relação à visavam, não apenas, o alívio da dor e opressão vivida por eles em um período angústia geradas pela repressão política que a segregação racial era uma políti- e social, mas também faziam duras críca de governo e prática constante. Da ticas à realidade do país. Apesar da rigomesma forma, no Brasil, uma das ma- rosa censura, das perseguições, prisões, neiras encontradas pelos escravizados torturas e exílios, muitos artistas não se como alívio para a dura realidade vivida calaram e contribuíram por meio de sua pela escravatura, foi a música. Ao som arte para criticar, denunciar e provocar dos batuques e cantorias surgiu um dos reflexões. Como ressaltou Caetano Veritmos mais populares de nosso país, o loso, o período era excepcionalmente samba. Como o Jazz e o Blues, o que estimulante para os compositores, canantes era música de grupo marginaliza- tores e músicos. Reconhecia-se a fordo foi consagrado e abarcado pelo mer- ça da música popular e, além disso, a cado da música, como qualquer outra repulsa à ditadura militar unia grande parte da classe artística em torno do obmercadoria que gera lucro. A música, expressão artística mais difu- jetivo comum de lhe fazer oposição[2] (VELOSO, 2017, p. 194).

[1] FREUD,Sigmund. O Mal-Estar na Civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1997. | [2] VELOSO Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. | [3] http://ww Blucher,2019.


Além da música, dança pintura, escultura, todas as demais manifestações artísticas podem servir de importantes instrumentos de registros históricos e de denúncia. O movimento Dadaísta exemplifica perfeitamente o engajamento de artistas nas questões políticas e sociais. Ele surgiu em Zurique em 1916 e reuniu vários artistas e estilos em reação à primeira guerra mundial e ao antissemitismo. Pablo Picasso em sua obra Guernica, retratou e denunciou ao mundo as atrocidades da guerra civil espanhola (1936 -1939). Com sua famosa obra “O grito” Edvard Munch retratou as angustias dos seres humanos. Nessa mesma perspectiva, Siron Franco registrou o que foi a catástrofe nuclear provocada pelo Césio 137, em Goiânia no ano de 1987. Além disso, viajou por vários países com sua obra feita de terra Goiana para mostrar ao mundo que esta não estava contaminada e, também chamar a atenção para que tal tragédia não volte a acontecer. Para além de artistas plásticos consagrados temos os anônimos que se expressam e expõem suas obras em vários espaços, inclusive em feiras livres; os artistas regionais populares que preservam a cultura e identidade local; os grafiteiros, que surgiram na década de 80 e que não apenas propõem um estilo de pintura, mas um movimento cultural contra a exclusão social, promovendo o grito das periferias, utilizando muros e espaços públicos como tela. Evidentemente, não poderia deixar de mencionar a sétima arte, que sintetiza todas as demais manifestações artísticas. Através dos filmes podemos viajar no tempo e espaço e deparar com diversas culturas, paisagens e fatos históricos. É possível com Chaplin conhecer

os “Tempos Modernos” e as relações trabalhistas no contexto da Revolução Industrial. Podemos, também, vivenciar uma greve operária no Brasil em “Eles não usam Black tie”; observar a história contada pelo anglo de vencedores e, também, pelos vencidos; viajar por ficções futuristas ou intimistas, reveladoras da capacidade criativa dos humanos e nos permitir um pouco de ilusão. Embora a ficção não tenha compromisso com a verdade, pode revelá-la de forma explicita, ou, até mesmo, nas entrelinhas. Quanto a nobre arte escrita quero ressaltar dois nomes distintos que, segundo seus próprios relatos escreviam para enfrentar e suportar a vida: Clarice Lispector e Eduardo Galeano. Lispector escrevia buscando respostas a seus questionamentos. Procurava reproduzir o irreproduzível e sentir até o fim sentimentos vagos e sufocadores. Dizia escrever para si mesma, para sentir sua alma falando, cantando e às vezes chorando. Para ela escrever era como respirar. Precisava do ato da escrita para sobreviver[3]. Já Eduardo Galeano escrevia por necessidade de comunicação e comunhão, escrevia para transmitir alegria, ou denunciar tristezas e injustiças. Dizia escrever para aqueles com quem se identificava – famintos, mal dormidos, rebeldes, humilhados – cuja maioria eram analfabetos. Escrevia para dissipar a morte e destruir os fantasmas. Reconhecia que sua escrita só poderia ser útil se coincidisse de alguma maneira com a necessidade coletiva de conquista de identidade. Como escritor desejava ajudar as pessoas a tomar consciência de si mesmas. Para ele a arte deveria ser considerada matéria de primeira necessidade e não um artigo de luxo[4].

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Por fim a arte é, também, lugar de memória e expressa em suas mais variadas formas o registro de nossa história, sendo representação de seu tempo e meio social. Quem nunca chorou vendo um filme riu como criança na plateia de um teatro, ou circo, deslumbrou-se diante de um espetáculo de dança? Esse é o efeito catártico da arte, para quem a concebe e para quem a recebe. A Arte é ao mesmo tempo expressão e contemplação do belo, da estética, da capacidade humana de sair de sua essência e pronunciar-se, de fluir e transpor-se para além da realidade, criando novas subjetividades. A arte é, acima de tudo, libertação. Provavelmente, Freud não concordaria com essa referencia simplista sobre arte e, também, não a reconheceria em algumas formas de expressão, por considerá-las vulgares, entretanto, seguramente concordaria sim, sendo “pensador da cultura”, como bem o definiu Renato Mezan[5] (1985), que a arte está no mais alto nível do processo civilizatório.

POEMA

Andarilho Ana Liz

O Homem só, caminhando na estrada O homem só caminhando na estrada Para aonde? Sem teto... Sem pão... Sem trabalho... Sem projetos... Sem educação... Para aonde vai o homem ?

ww.tirodeletra.com.br/porque/ClariceLispector.htm | [4] http://www.tirodeletra.com.br/porque/EduardoGaleano.htm | [5] MEZAN, Renato. Freud, Pensador da Cultura. S.Paulo:


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Leia + Mulheres IFG

O

Leia + Mulheres IFG, é um projeto criado pelo coletivo de servidoras, estudantes e egressas do Instituto Federal de Goiás, com o objetivo de conversarmos um pouco mais sobre literatura escrita por mulheres e com temática feminista. Nesse momento tão delicado de crise sanitária e em tempos de quarentena, que a literatura nos ajude a sobreviver! Quantas mulheres você já leu nessa quarentena? E esse ano? E na sua vida toda? Você já se fez essas perguntas? Mas isso não é lá bem sua culpa. Temos uma sociedade, uma estrutura e um mercado editorial que ainda dão pouca visibilidade para as mulheres. E é pensando nisso, que nós conversaremos a cada quinze dias sobre a obra de uma escritora, sempre tentando trazer mulheres nas suas diversas nuances de existência e resistência: mulheres periféricas, de diferentes etnias, negras, latino-americanas, cis, trans, lésbicas. Com o objetivo de divulgar suas obras e promover a leitura de mais mulheres. Em nosso primeiro programa, temos a dica da Camila Leopoldina, Professora do IFG, Câmpus Goiânia, que trouxe pra gente o livro “Quarto de despejo”.

Quarto de despejo, de Maria Carolina de Jesus “Estou aqui para fazer uma indicação de um livro importantíssimo e potente que

é Quarto de despejo: Diário de uma favelada da Carolina Maria de Jesus. “Eu faço a indicação desse livro, chego nesse livro, porque ele é um do que tenho revisitado recentemente como uma forma de resgatar o pensamento de homens e mulheres negras e indígenas, porque eu acredito que a leitura desses autores e dessas autoras pode nos auxiliar a repensar nossa existência nesse mundo diante da pandemia que a gente tem enfrentado. E a Carolina não podia ficar de fora. “E por acaso esse livro dela completa agora 60 anos, então achei bacana trazer essa indicação perto do aniversário de publicação do livro. “A Carolina foi uma mulher muito importante, uma mulher preta, favelada, mãe de dois filhos e uma filha, catadora de papel e outros materiais recicláveis e escritora. Além desse livro, ela também escreveu outros cinco livros, de memórias e também poesia. “E o seu livro Quarto de Despejo foi um dos livros mais publicados e traduzidos pelo mundo afora. Então ela tem seu lugar na literatura. E é um livro que foi produzido, que foi organizado a partir da reunião dos diários que ela escrevia de 1955 até o início de 1960, em que ela contava seu dia-a-dia na época em que viveu na favela do Canindé, que hoje é onde está construída a marginal Tietê em São Paulo. “Em uma linguagem muito autêntica e certeira como um míssel, eu diria,

ela vai revelando a realidade da vida na favela e fazendo diversas denúncias sociais. Ela falava do oportunismo de políticos que iam até a favela, faziam promessas em troca de votos e, depois que eram eleitos, essas promessas não eram cumpridas; ela falava também da violência doméstica que muitas das suas vizinhas sofriam pelos maridos abusadores; falava também da violência e discriminação que ela própria sofria por ser preta, pobre, mãe solo, e ao mesmo tempo também dizia da liberdade que ela sentia em não ter um marido; falava também do carinho pelos seus filhos, ela tratava seus filhos e as crianças de modo geral com muito carinho e respeito; da importância do estudo, do livro. Ela dizia que o livro era ‘a maior invenção do homem’. “Mas um tema que é mais evidente nos seus diários é a fome. Trabalhando como catadora de papel, ela vendia os materiais e o dinheiro era insuficiente para colocar comida na mesa todos os dias, e daí escrever era uma forma de esquecer a fome. Ela dizia assim ‘Quando eu não tinha nada o que comer, em vez de xingar, eu escrevia. Tem pessoas que quando ficam nervosas, xingam ou pensam na morte como solução. Eu escrevia o meu diário.’ “Então é um livro que eu penso que tem um impacto muito grande hoje, revelando questões que são muito urgentes. O povo preto e pobre ainda sofre nas comunidades do país inteiro sem acesso a condições ditas básicas de vida como moradia, saúde, saneamento básico, alimentação, educação de qualidade. E eu gostaria de finalizar fazendo a leitura de um trecho do diário dela, do dia 13 de maio de 1958, que é o dia da Abolição da escravatura, uma data muito emblemática.’[leitura do trecho]’ Ou seja, é ainda uma realidade no país: o genocídio do povo preto é projeto político.” Leia + Mulheres e apoie a educação: Pública, gratuita e de qualidade! Conheça a indicação de Camila Leopoldina e não deixe de acompanhar nossas publicações na nossa página no Instagram e os novos podcasts. Conheça: Leia + Mulheres IFG https://linktr.ee/LeiaMaisMulheresIFG leiamaismulheresIFG


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CAPA

A militância que é “tóxica”? Douglas França

H

oje, seguindo minha rotina diária de ver as notícias atualizadas no twitter, o que tem sido a cada dia uma atividade menos prazerosa (fora Bolsonaro!), logo no início uma reportagem me chamou mais atenção: a expulsão violenta e desnecessária da transexual Lanna Hellen, de 31 anos, do banheiro feminino de um Shopping em Maceió. Ainda na mesma manhã, em um grupo de WhatsApp que participo, composto pela maioria de gays, uma discussão acalorada sobre o novo filme do humorista, também gay, Paulo Gustavo, “Minha Mãe é uma Peça 3”. A discussão consistia no fato de que em uma das partes do filme, era exibido o casamento do filho da protagonista “Dona Hermínia”, porém, o casamento não possuía o aclamado beijo, como em qualquer outro casamento, a diferença é que o beijo seria entre dois homens. As opiniões se dividiam em um lado inconformado com o fato de que o casamento “sem beijo” só atende a imposição de uma sociedade heteronormativa e machista que define que nós homossexuais devemos obedecer um padrão de comportamento e não “esfregar” nosso modo de vida na cara das pessoas, enquanto o beijo, se fosse heterossexual, não teria nenhum impacto, e outro lado aplaudindo o

filme, dizendo que aborda questões interessantes em relação à comunidade LGBTQIA+ e que o beijo é uma questão secundária. Este lado ainda tentava reforçar seu argumento dizendo que existiam muitas famílias heterossexuais assistindo o filme, e que a militância que criticava Paulo Gustavo era desnecessária e “tóxica”. Lembro-me que esse mesmo argumento foi utilizado meses atrás, para defender Carlinhos Maia, outro gay famoso nas redes sociais que tem os stories do Instagram com visibilidade mundial e também foi envolvido em uma polêmica parecida afirmando que seu casamento “é a união entre dois caras, não um casamento gay”. Fiquei, durante todo este dia, analisando as duas questões que me foram bombardeadas logo nas primeiras horas e você, leitor, agora deve estar se perguntando qual a relação dos dois acontecimentos? Pensando com meus botões, me perguntei porque gays como Paulo Gustavo e Carlinhos Maia possuem tanta visibilidade? Por que a tão chamada “família tradicional brasileira” assiste e aplaude esses caras? As características, tanto comportamentais quanto físicas dos dois são essenciais para entendermos as respostas a esses questionamentos. Nem Paulo Gustavo, muito menos Carlinhos Maia carregam as características do gay afeminado, que várias vezes já foi motivo de chacota na televisão brasileira, e quando olhamos a posição social que ocupam, a resposta fica ainda mais clara, ambos são ricos e brancos, há anos-luz da bicha preta, pobre e favelada. Paulo Gustavo e Carlinhos Maia são a personificação do que uma sociedade essencialmente dominada por machos heterossexuais quer de nós da comunidade: “pode ser gay, mas não precisa mostrar”, “não sei pra que ficar se vestindo de mulher, que aberração!”, “para de viadagem, menino!”. Por isso, um filme de Paulo Gustavo vai ser sempre aclamado e vai servir de

embasamento para muita gente desinformada classificar a militância LGBTQIA+ como exagerada, agressiva e “tóxica”. Não digo que o filme não mereça a aclamação, nem estou questionando o talento do humorista, porém, acredito que antes de tecermos críticas à militância, devemos sair do discurso raso e dos achismos e entendermos questões sobre visibilidade de membros mais marginalizados da nossa comunidade. Ainda me assusta ver gente da própria comunidade usando o termo “militância tóxica”. Termo que me parece tão grotesco quanto neologismos como “padrãofobia” ou “heterofobia”. O uso dessa expressão revela uma falta de empatia por quem viveu um inferno que nós, gays brancos e de classe média, nunca vamos entender. O cerne da crítica relacionada à “falta do beijo no casamento gay” é reforçar o estereótipo de que compor qualquer símbolo da sigla LGBTQIA+ é anormal, é diferente, é uma aberração. A sociedade não quer ver, mas o papel da militância é bater o pé e falar “ela vai ver sim, porque nós existimos!”. O “pode até ser gay, mas não precisa mostrar” vai ser combatido com “vamos mostrar sim, porque somos iguais a vocês!”. E isso tem acontecer para todos e não só para uma parcela privilegiada. Enquanto o filme de Paulo Gustavo bate recorde de bilheteria e você vê um tanto de “mãe, pai e criança”, a travesti preta é expulsa e humilhada por machos com aplauso da mesma família tradicional. E sabe quem pode defendê-la? A “militância tóxica”, que é sim agressiva, é sim abrasiva, é sim escandalosa, e não leva desaforo para casa porque está cansada de ser empurrada para as periferias da sociedade. Minha dica final para você, que ainda quer sustentar o discurso de que “a militância tá demais”, “a militância só quer causar e ganhar likes”, presta atenção se a militância que você tá falando não é rasa, branca e de internet. Talvez, o primeiro passo seja dar um passo para trás e tentar dar voz a quem precisa muito mais que você.


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Atemporal Xica Bezerra

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la é das antigas. Seu percurso na administração pública começou nos idos de 1981 como estagiária na FUNAI – Fundação Nacional do Índio, quando era aluna do curso de Licenciatura em História, em Brasília. Não fazia parte da burguesia, apesar de ter iniciado a graduação numa das faculdades mais caras. Tão cara que não concluiu. Contudo, sua experiência nos arquivos da Funai acendeu uma vontade de pertencer ao serviço público. Aprovada no concurso para o Ministério da Justiça foi lotada na Superintendência Regional do Arquivo Nacional. Inaugurado como Arquivo do Império em 1838, o Arquivo Nacional recolhe, guarda, preserva e divulga o patrimônio documental do País. Que maravilha! A moça estava com sorte, porque à Superintendência Regional coube a função de recolher todo tipo de documento apreendido pela extinta DCDP – Divisão de Censura e Diversões Públicas. Esse patrimônio estava à beira de ser inci-

E nerado pela Polícia Federal. Trabalho árduo foi o que ela encontrou, uma vez que, de tudo um pouco, estava junto e misturado. Entre tantas pérolas, lhe chamou atenção um LP (long play) de Luiz Gonzaga Júnior – Gonzaguinha. Ela amava ouvir músicas no rádio de casa. MPB era tudo. Era a Elza Soares no videoclipe de Comportamento Geral. forma poética cultural de bri- Clique na imagem para assistir. gar com os cachorros grandes. dizer sempre: muito obrigado. Gonzaguinha sabia fazer isso. Mas aquele disco… que músicas seriam São palavras que ainda te deixam dizer aquelas? Por que foram censuradas? O Por ser homem bem disciplinado. que explicaria o motivo de uma canção Você merece, você merece…” levar seu autor a depor na DCDP e ter Atualmente ela acompanha um seriado proibido a execução, em todo territó- nacional que discorre sobre as dificuldario nacional, daquela obra-prima? Ao des de jovens e adultos para retomarem ler todos os pareceres e carimbos e as- seus estudos. Qual não foi sua surpresa sinaturas ela se deparou com a face da que a música de abertura é justamente censura em sua mais escancarada signi- aquela do Gonzaguinha! Interpretada ficação: critérios morais! O que pode ser pela diva Elza Soares! mais imoral do que proibir a expressão Então ela se delicia e pensa: quem seria mais atemporal dos três? E cantarola da arte? Especificamente a letra da música bem alto: Comportamento Geral incomodava os “Você merece, você merece generais. Nela, Gonzaguinha expôs o Tudo vai bem, tudo legal. Cerveja, samba, e amanhã, seu Zé cabresto colocado no povo. Se acabarem com teu Carnaval?” “Você deve aprender a baixar a cabeça

Nas brenhas Larissa Leal

Andar pelas longiquidades é, de repente, quando se pensa que está no meio do nada, topar com um pequeno vilarejo, uma fazenda, uma casinha perdida. É quase um susto, com uma pergunta quase inevitável: como essas pessoas vieram parar aqui? “O Brasil já é por demais triste nas suas imensidões melancólicas”, disse meu amigo Braga, há uns 60 anos, e nessas situações essa frase sempre ecoa na minha mente. Não sei bem o que é essa melancolia que ele fala, mas ela deve se parecer

com a imagem dessa velha senhora esperando o tempo passar na janela, ou com essas crianças que procuram com o que brincar e param, e procuram outra coisa e param de novo. Estamos nos anos 2010, e alguma coisa nesse tempo todo não mudou. O longe é uma questão de ponto de vista: longe de onde? Lembro da história que li sobre as origens de uma comunidade quilombola aqui próximo. Vieram andando de muito longe, até que um dia chegaram numa região onde acharam que podiam ficar e ficaram. Estão lá até hoje. Não vivem melancolicamente, vivem como qualquer um de nós vive na vida em que nasceu. Estão longe

das grandes cidades, mas as grandes cidades também estão longe deles, o que é um alívio. Já andei muito de ônibus por esse país nos últimos anos. As distâncias continuam enormes, muitas tecnologias e serviços ainda não acharam caminhos diferentes daqueles de séculos atrás. É preciso que achem. Não deveria ser preciso que as pessoas saíssem de seus lugares para usá-los. Há muito tempo alguém andou muito para achar aquele cantinho distante por alguma razão. Se eles quiserem se mudar, bem, mas não deveriam ser impelidos a isso. E o que eu quero dizer é apenas isso: Todo mundo deveria ter o direito de viver na sua brenha sem ser incomodado.


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