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Paranormal

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CORRIDA PELA VIDA

A rot ina de quem sa lva pode se r pa rec ida com a sua: ass ist ir ao Grena l, t omar chimarrão ou fazer churrasc o. Só te m um deta lhe: se o ce lular bipa r, ca da seg undo se t orna prec ioso pa ra os socorristas do SAMU

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Texto: Bárbara Lima barbaragdlima@gmail.com

O cheiro de café passado, a carne na churrasqueira e a TV sintonizada no jogo da final do Gauchão em nada lembravam a tensão e a adrenalina que vivem diariamente os socorristas do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu). Na realidade, a primeira impressão de quem entra na base do Samu de Sapucaia do Sul, na Região Metropolitana de Porto Alegre, é de estar em casa. Nas paredes, cartazes avisavam: “Não deixe seus pertences em cima do armário!”. Os quartos, onde descansam os socorristas entre um chamado e outro, estavam com as camas desarrumadas, o que fez Letícia Santomé, enfermeira-chefe e coordenadora da unidade, alertar em tom de brincadeira: “Estamos com visitas, pessoal!”. Tínhamos conversado pouco quando a calmaria foi interrompida pelo primeiro chamado da noite no celular especial do Samu. Passava das 19h10min e a Central Metropolitana

Fotos: Anderson Cardozo e

Leonardo Melgarejo

cardozo.anderson@hotmail.com melgacorrea@gmail.com Diagramação: Vinicius Rodrigues Dutra vini.rrosa@hotmail.com

comunicou o total de 10 vítimas em uma colisão na Rua Aracaju, no centro da cidade. Foi solicitada a ambulância USA (Unidade Móvel de Suporte Avançado), além da USB (Suporte Básico). Os motoristas Silvio dos Santos e Anderson de Lima ligaram as sirenes e não pararam nas sinaleiras. “Respeitamos o limite de velocidade das vias, a diferença é que podemos ultrapassar o sinal vermelho e, eventualmente, ir na contramão”, contou Anderson. No local, cinco das vítimas não quiseram ser atendidas, o que é direito do paciente. Dentre as outras cinco, apenas uma foi encaminhada à Unidade de Pronto Atendimento (UPA), com ferimentos leves.

De volta à base, Jeferson Donadel, técnico em enfermagem, assumiu o posto diante da churrasqueira, enquanto os demais conversavam sobre os acidentes que já atenderam. Lidar de perto com a morte não faz com que os socorristas se acostumem com ela, mas faz com que a vejam sob outras perspectivas. “Aprendi que sempre devo me despedir dos meus filhos antes de sair e que não devo brigar por coisas pequenas”, refletiu Anderson. Para Letícia, o mais doloroso é ver o sofrimento das famílias. “A gente entra na intimidade da casa das pessoas, vemos de tudo. O pesar da família diante da perda abala muito. A vida é um sopro”. Kátia de Mello, também técnica em enfermagem, acredita que a morte precoce é a mais difícil de aceitar. “No último domingo, uma jovem de 20 anos morreu em decorrência de um acidente de carro, uma menina saudável”.

No último quadrimestre de 2018, o Samu de Sapucaia registrou 947 atendimentos, sendo 36% traumáticos e 64% clínicos. Nos casos traumáticos, foram 382 atendimentos por colisão, enquanto nos casos clínicos o maior número foi registrado por problemas

cardiovasculares, com 304 atendimentos. O apoio emocional que os servidores precisam vem dos próprios colegas, uma vez que o serviço não prevê auxílio de psicólogos. “No Natal, a ceia estava pronta quando atendemos um suicídio por enforcamento. Alguns de nós não quiseram conversar sobre isso, o clima ficou pesado. Fomos jantar lá pelas 3h da manhã só’’, lembrou Letícia. Ela disse que algumas vezes o pessoal se reúne em roda e conversa sobre o que está sentindo, mas que a presença de psicólogos seria muito bem-vinda.

O churrasco já estava pronto, e a equipe se acomodava para começar a assistir ao Grenal quando entrou o segundo chamado. Queda de moto. A moto não estava no local. Os socorristas encontraram um corte de profundidade média na perna direita de um dos homens (o outro recusou atendimento). Um curativo simples deu conta do recado, e o jovem de 19 anos foi encaminhado à UPA. Alguns mistérios, como o sumiço da moto, nunca são desvendados. Segundo a explicação de Jeferson, a segurança dos socorristas está em primeiro lugar. “Não é nosso trabalho saber o que aconteceu com riqueza de detalhes. Atendemos todo o tipo de gente. Já atendi um homem que estava armado, não tenho nada a ver com isso”. Em silêncio, quem trabalha no Samu tem a oportunidade de conhecer a realidade brasileira como poucos. “Entendemos que o nosso serviço não seria sobrecarregado se outras políticas públicas funcionassem”, analisou Letícia.

Finalmente, às 22h40min, conseguimos jantar. As horas seguintes foram de relativa tranquilidade. As conversas giraram em torno de quem deveria lavar a louça, ou qual seria o resultado do jogo. Enquanto comíamos, o médico plantonista do dia, Adriano Oliveira, com sotaque baiano, perguntou: “Que carne é essa?”. Ao que Jeferson respondeu: “Não te digo! Quero ver fazerem esse churrasco quando tu voltar para Floripa”. Assim que o Grêmio ergueu a

“A gente ent ra na int imidade da casa das pess oas , vemos de t udo. O pesa r da família diante da pe rda abala muit o. A vida é um sopro”

Letícia Santomé Enfermeira-chefe

taça do Gauchão, a maioria dos socorristas foi dormir. Jeferson terminou o plantão e foi para casa. Ficamos acordados eu, o repórter fotográfico, Anderson e Kátia.

Madrugada e pioneirismo f eminino

Às 0h44min, uma paciente de 86 anos estava em sono profundo quando o alerta do Samu bipou no celular de

Kátia. Os dois socorristas estavam à caminho da Fundação Hospitalar Getúlio Vargas (FHGV) para pegar medicamentos que estavam em falta e tiveram que desviar da rota. A família da senhora estava em desespero, mas logo Kátia, que trabalha há 16 anos no Samu, constatou hipoglicemia. Após a medicação, a paciente acordou sem complicações. “Esse é um dos medicamentos mais mágicos que têm. Você injeta glicose e a pessoa já vai voltando”, disse a técnica em enfermagem.

Kátia, 41 anos, foi a primeira mulher a conduzir uma ambulância no Brasil. Ela contou que no Samu sempre foi respeitada. Os anos de experiência lhe renderam muitas histórias. Apesar de estar constantemente em contato com a morte, ela também ressalta como está em contato com a vida. “Já fiz quatro partos. Foram momentos gratificantes da profissão, junto com os casos graves que conseguimos reverter. Já fui convidada para aniversário e casamento dos meus pacientes”.

Anderson, 36 anos, é mais jovem na área da saúde. Iniciou como condutor do Samu há três anos. Antes disso, era caminhoneiro. “Um dia me perguntei: como posso ser útil? Como caminhoneiro, não importava se eu fazia bem meu trabalho, sempre ganharia o mesmo. Decidi então entrar para área da saúde como condutor. Usar esse uniforme é motivo de orgulho”. Hoje, Anderson está fazendo o curso técnico em enfermagem e pretende ingressar na graduação de Enfermagem assim que possível.

Ao retornarem à base, um morador de rua pediu comida. Kátia serviu alguns cachorros quentes que sobraram. A compaixão e a doação parecem ser um estilo de vida para esses profissionais. “No acidente que matou a menina de 20 anos , eu fiz questão de mandar louvores ao marido que ficou viúvo. Sou cristã e acredito na minha missão”, disse Kátia.

Kátia tinha acabado de se deitar e o alarme soou mais uma vez, perto das 2h50min. Atropelamento. A rua era próxima à base. Ela deu um longo suspiro e correu para a ambulância. Quando chegaram no local, ela e Anderson viram um homem caído no canto da calçada. Ninguém prestou socorro. Quem chamou a ambulância não quis acompanhar até o hospital. O homem tinha muita dor no braço esquerdo e na região do abdômen. Usuário de crack, ele pedia por morfina e dizia: “Hoje é meu aniversário, sabia? Olha o que ganhei de presente”. Anderson e Kátia tiveram alguma dificuldade para colocá-lo na maca, já que estava bastante alterado. A Central recomendou que o paciente fosse levado ao FHGV. As luzes da base só se apagaram por completo às 4h29min, quando todos puderam dormir. O sono foi mais um cochilo. Cerca de duas horas depois, um chamado de urgência: parada cardiorespiratória. Os socorristas pularam das camas. Esse é um dos casos mais tensos e mais difíceis de ser revertido. É preciso agir rápido e com precisão. Contudo, para a surpresa e impaciência geral, as duas ambulâncias estragaram. Eles foram, então, em um pequeno veículo de transporte enquanto pediam auxílio

Atendimento feito pelo técnico em enfermagem e condutor Anderson. Abaixo, a equipe reunida para o jantar. Churrasco é a especialidade do assador e técnico em enfermagem Jeferson (de pé)

da central, que enviou uma ambulância de Esteio, cidade vizinha. A paciente, infelizmente, não sobreviveu. Os primeiros raios de sol surgiram, e os rostos, já familiares, foram embora. Os plantonistas da noite davam espaço para os colegas do trabalho diurno, que apareciam com o semblante descansado. Só Kátia permaneceria até o meio dia. O trabalho seria intenso, pois os problemas técnicos das ambulâncias não foram resolvidos. Começava mais um dia no Samu Sapucaia do Sul. Para o café da manhã, ovo frito. “Vamos precisar de energia”, disse Luciamari Lima, enfermeira, na boca do fogão.

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