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Descoberta da Morte

SER

OU NÃO SER

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A cláss ica quest ão do ovem Ha mlet ec oa na quilo que dizem os ps icólogos e pe dag ogos sobre o amadurec iment o de crian ças e adolescentes e a relação desse process o com a desc oberta do que é a morte

Texto: Yuri Correa yuri.celico@gmail.com Fotos: Cainan Silva e Bruna Jacobovski bruna-pjacobovski@hotmail.com itscainan@live.com Diagramação: Filipe Batista filipe.batista@ufrgs.br

“E, naquele momento, eu podia jurar que nós éramos infinitos”, pensa Charlie, o jovem protagonista do livro As Vantagens de Ser Invisível, de Stephen Chbosky. Ainda um adolescente, o personagem, recém curado de um longo processo de luto pela perda do melhor amigo, se deixa apreciar um instante poético de sua vida com essa frase. Uma constatação prazerosa frente à realidade que acabou de entender e que lhe diz justamente o oposto disso: eles, Charlie e seus amigos, são finitos, assim como todas as outras pessoas.

Pode soar macabro, mas a morte e a juventude andam de mãos dadas em muitas das histórias que reverberam na cultura popular, seja nas páginas ou nas telas dos mais diversos tamanhos. Harry Potter, por exemplo, conta sobre um menino que, para derrotar seu arquiinimigo, precisa aprender aquilo que esse algoz jamais entendeu: que todos temos que terminar, cumprir ciclos e acolher a ideia de que vamos morrer. Por rejeitar esse destino, Voldemort torna-se um vilão odioso e deformado de maneira moral, ética e fisicamente. Já Stephen King foi bem menos sutil, a morte seguiu os passos de vários dos seus jovens protagonistas, assombrando aqueles que a temiam, seja na forma do palhaço Pennywise, do gato ressuscitado em Cemitério Maldito ou na forma do monstruoso trem que surge nos momentos mais inconvenientes para os meninos de Conta Comigo.

Pensem em Bruce Wayne e como a perda traumática dos seus pais na infância o transformam num justiceiro mascarado. Aliás, já repararam em quantos dentre os mais cultuados heróis e protagonistas do cinema e da literatura foram enobrecidos pelo entendimento precoce do que é morrer? Do Hamlet que intitula este texto, passando por Oliver Twist e até Luke Skywalker, quantas gerações de órfãos e jovens enlutados não fizeram e ainda fazem parte do imaginário popular? O arquétipo, logo, não deve ser um acaso. Se surge em tantas obras e em tantas mídias através dos tempos, é porque há algo de muito natural em associar o amadurecimento com o entendimento de que a morte é parte essencial da vida. Mas quando aprendemos isso?

Perspectiva inf antil

A doutora em psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Paola Vargas Barbosa explica que os primeiros contatos com a morte se dão na primeira infância de maneira inconsequente. Ela destaca que, na modernidade, a mídia tem um papel central na formação dessas ideias e cita como exemplo as animações infantis, em que um piano ou uma bigorna podem cair na cabeça de um personagem e ele continuar vivo e atuante na trama. Isso não é uma representação errada, pois crianças entre cinco e sete anos ainda não entendem a irreversibilidade de um evento como a morte, sua concepção de mundo tende a se basear na estabilidade, ou seja, elas ainda acreditam que o que foi vai voltar.

Antes disso, até uns três ou quatro anos, as crianças apenas conseguem compreender que há algo errado fora do seu entendimento, observando que as pessoas a sua volta estão tristes ou consternadas. Porém, nessa fase, o indivíduo ainda é jovem demais para entender a lógica de perda definitiva.

Ainda segundo Paola, o ideal não é excluir as crianças dos processos relacionados à morte. De acordo com o artigo de pesquisadoras da UFRGS “Intervenção para Promoção de Práticas Parentais Positivas”, a negligência, na qual se encaixa

ria o descuido com a introdução de certos conceitos à criança, tende a resultar no subdesenvolvimento das habilidades emocionais e sociais do adulto que ela se torna depois. A pesquisa destaca alguns estudos para explicar que certas práticas negativas em relação às meninas e meninos nos primeiros anos de vida (e a desinformação seria uma delas), costumam afetar o comportamento dessas pessoas na adolescência e até na fase adulta. O artigo, assinado pelas pesquisadoras Beatriz Schmidt, Ana Cristina Pontello Staudt e Adriana Wagner, diz que a infância é um estágio muito curto da vida em comparação aos outros, mas é o mais importante nas definições de todo o resto por se tratar de um período em que comportamentos, associações e aprendizados ainda estão sendo construídos.

Paola segue nessa linha de pensamento ao dizer que considera uma boa estratégia falar com a criança a respeito e deixar que ela participe de certos rituais “mais leves” em relação à morte, para que faça suas primeiras construções sobre esse tipo de evento. É sabido que muitas vezes os tutores precisam levar a criança a um velório ou enterro porque não têm com quem deixá-la em casa, mas Paola diz que esse não seria o cenário ideal para o primeiro contato. Ela sugere que se comece falando da morte de um bichinho de estimação. Diz que é importante mostrar o corpo, perguntar à criança como ela se sente sobre aquilo e convidá-la a participar de algum tipo de processo de encerramento, como um pequeno enterro ou qualquer forma de descarte do cadáver.

A doutora em psicologia ressalta que a sociedade ocidental possui muitos estigmas sobre a morte, provavelmente ligados à formação dos países baseados em religiões cristãs, que trazem consigo uma carga pesada de conceitos opressores sobre o pósmorte, como céu e inferno. A psicóloga e mestra em ciências sociais e humanidade Jaciane Guimarães também comenta sobre os casos em que esses processos são atravessados por diferentes dogmas, como os do espiritismo, ressaltando que neles tanto a aceitação quanto o evento da morte costumam ser menos traumáticos.

Já segundo Paola, é uma quebra de paradigma atribuir aos pais certa responsabilidade na formação desses aprendizados, pois nossa configuração social ainda relega demais a abordagem desses temas a especialistas e instituições, como os médicos, os hospitais ou as funerárias, por exemplo. Raramente é trazida para dentro de casa ou para o cerne familiar a iniciativa de iniciar essa conversa com as crianças, e por isso a mídia acaba tendo um papel tão central, pois é ali que acabam se dando os primeiros contatos com o assunto.

Adolescência e luto

Agora, tanto Paola quando Jaciane ressaltam que não existe um cenário ideal. O adolescente, por exemplo, segundo elas, vai se relacionar com a morte de maneira bem diferente da criança, e essas da do adulto. Em todas, a morte deixa uma marca. Ela sempre é uma quebra, explicam, mas é preciso levar em conta se o contexto familiar, religioso, social e psicológico do indivíduo o preparou para tal quebra e como essa preparação foi feita. A partir daí, definem-se processos de luto e aprendizagem. Jaciane diz que os especialistas consideram uma média de dois anos para um período de luto muito intenso, acionado pela perda de alguém próximo – seja morte, separação ou algum afastamento repentino de outro tipo. Porém, dependendo da estrutura psicológica de cada um, esse processo pode levar menos ou bem mais tempo.

Paola fala que na adolescência o entendimento do jovem sobre a morte será provavelmente mais racional. Ele vai compreender a ideia de perda, seja em que sentido for, mas talvez ainda não vá possuir as ferramentas emocionais para lidar com ela, o que o torna mais instável nesses processos.

O ce rt o é que t odos morremos, e enten der iss o é, antes de t udo, uma pe ça-chave pa ra compreen der o mundo

Além disso, na adolescência é quando estamos construindo um olhar mais voltado para dentro e menos para o mundo lá fora. O conflito é mais sobre a imagem que passamos para o exterior, por isso a ideia de morte nessa fase é potencializada, pois está associada ao medo de se perder alguém ou algo que está fazendo parte da sua construção. A perda tende a parecer menos consolável e mais pessoal. Não é incomum que o adolescente abrace algum extremo: ou a negação intensa da morte, ou a sua aceitação fervorosa – algo que pode ser notado através de movimentos jovens geração após geração que adotaram a temática ou seus arquétipos: os beatniks, os punks e, mais recentemente, os emos.

De uma forma ou de outra, as especialistas deixam claro que, quando se solidifica a ideia de finitude, normalmente se tem um adulto com seu processo básico de amadureci mento completo. Jaciane, entretanto, alerta: muitas vezes nem mesmo o adulto lida muito bem quando perde alguém próximo, porque entender a própria finitude e aceitar que a morte se aplica a todos são processos diferentes. Às vezes são mais fáceis e às vezes mais complexos, depende das variáveis que moldaram o caminho do indivíduo até ali.

O certo é que todos morremos, e entender isso é, antes de tudo, uma peça-chave para com preender o mundo para além de nós mesmos. Sem ela, deformase, o mundo parece distorcido e os elos que nos ligam a ele ficam debilitados. Desenvolvem-se dificuldades de interação, de empatia e de estreitamento de laços. As nossas obras e feitos podem perpetuar pela eternidade ou ao menos por um bom tempo, mas e os nossos corpos humanos? Contra todos os instintos e costumes milenares que nos prometem imortalidade e invencibilidade, especialmente na juventude, quando a perspectiva do que vem pela frente ainda é vasta e cheia de possibilidades, parece essencial aceitar que somos finitos.

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