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Masculinidades

Homens matam e morrem

O modo idea lizado de se r homem pe la sociedade é um ca minho se m volta pa ra muit os

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Texto: Paola Pavezi Nascimento pavezipaolan@gmail.com

Ilustrações: Breno Dias brenobdias@gmail.com Diagramação: Caroline Silveira e

Diego Rodrigues

c.silveira794@gmail.com diego.antonio@ufrgs.br

Em 2019, ainda existe um contexto social binário, dividido em duas categorias de pessoas, às quais são ensinadas formas diferentes de ser e estar no mundo. A psicóloga Tayara Maronesi dá atenção às questões de gênero em seus atendimentos, assim como outras integrantes do grupo de terapeutas Empodera, de Porto Alegre. “O que temos como considerado masculino e feminino de forma estereotipada são as performances que a sociedade nos impõe como se fosse uma receita a ser seguida”. O resultado dessa diferença social é provavelmente responsável pelo fato de os homens matarem e morrerem mais. Um estudo feito pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC), em 2014, aponta que 95% dos assassinos no mundo são homens.

“A humanidade é masculina, e o homem define a mulher não em si, mas relativamente a ele; ela não é considerada um ser autônomo”. Tal afirmação faz parte da obra O Segundo Sexo, de 1949, de Simone de Beauvoir, teórica francesa referência no movimento feminista. “Não se nasce mulher, torna-se mulher”, um dos seus postulados mais famosos, nega a existência de uma natureza feminina. Se o feminino é um conceito construído ao longo dos tempos, o masculino também. Mas quais atributos necessários a um sujeito para ser reconhecido socialmente como homem? Michael Kimmel, teórico norte- -americano e um dos maiores nomes no campo das masculinidades, criou um conceito chamado “a caixa do homem”. Dentro estão os comportamentos e modos de ser típicos da masculini dade hegemônica ou tradicional, a mais bem aceita socialmente. Ser “macho de verdade” requer uma performance constante de muitas características: ser estritamente racional, heterossexual, agressivo, forte, atlético, intimidador, sexualmente ativo, predador, durão, não demonstrar vulnerabilidade e impor respeito a qualquer custo, sendo vio

lento se preciso for. “Bicha”, “viado”, “filhinho da mamãe”, “fraco”, “mulherzinha”, são os termos usados de forma pejorativa para punir quem desvia do esperado. Apesar de toda a pesquisa em masculinidade tradicional e seus efeitos nocivos para homens e mulheres, o próprio Michael Kimmel foi acusado de assédio sexual por estudantes.

Evandro Machado leciona história e filosofia para crianças e adolescentes em Porto Alegre. A convivência com alunas e alunos foi um dos motivos para criar, em parceria com a psicóloga Tayara Maronesi, um projeto para trabalhar masculinidades em escolas, ainda em fase de planejamento. Ele explica que

tornar-se homem faz parte também de abrir o horizonte dos elementos de violência que constituem determinada sociedade. As estatísticas de mortes existem como um reflexo disso. O Instituto Avante Brasil, com base em dados do Ministério da Saúde, constatou que, em 2010, 91,4% dos homicídios no Brasil eram de homens.

Massacres e masculinidades

Os Estados Unidos já são conhecidos pelos frequentes atentados à mão armada, sendo o país que os registra em maior número. No início de outubro de 2017, acontecia o 273º ataque, o que significou quase um massacre por dia naquele ano, segundo pesquisas da ONG Gun Violence Archive. Já o Brasil não é comumente associado a esses crimes – embora exista um histórico recente de dez massacres armados em escolas nos últimos nove anos.

Em cinco deles, a narrativa é parecida: o autor dos atentados sofreu bullying e resolveu se vingar. Em outros, de acordo com portais de notícia, existem relatos de discussões banais como provável motivação. Um exemplo foi a morte de duas meninas no Colégio Sigma, no ano de 2002, em Salvador. Amigos das estudantes comentaram que o atirador havia prometido vingar- -se após as meninas darem nota baixa a

ele na prova de uma gincana na escola. Com a arma do pai, perito policial, ele cumpriu a promessa. Outro aluno, em 2011, na Região da Grande São Paulo, utilizou a arma do pai, que era guarda civil, para matar sua professora, e, em seguida, cometer suicídio.

Nos dez casos brasileiros desde 2002, assim como em 94% das ocorrências nos Estados Unidos, os crimes são de autoria masculina. O professor Evandro comenta que as construções e referências de violência endereçadas aos homens se intensificam na fase da pré- -adolescência e começo da vida adulta. “Um período crucial na formação identitária desses sujeitos”. Essas mensa

“As ca racte ríst icas cons ideradas masc ulinas é que são exa lta das na nossa sociedade”

Tayara Maronesi Psicóloga

gens, emitidas a partir de diversos meios (como filmes, livros, videogames), trazem valores muito diferentes daquelas enviadas às meninas na mesma idade. Helen Barbosa, doutora de psicologia social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e estudiosa em masculinidades há oito anos, aprofunda: “Na socialização masculina, que é mais ou menos violenta, a depender do contexto social, eles têm que se diferenciar de tudo que é socialmente atribuído como feminino e infantilizado. Isso acontece através de uma relação hierárquica, de meninos mais velhos para meninos mais jovens, de homens adultos para meninos e jovens”. Empatia e cuidado mútuo. Vulnerabilidade e profundidade nas relações. Capacidade de demonstrar afeto e de compartilhar fragilidades. São capacidades socialmente associadas às mulheres e ao feminino – e, no contexto do homem tradicional, devem ser evitadas.

A psicóloga Tayara acrescenta que o que é considerado feminino não é valorizado nem por homens nem por mulheres. “As características consideradas masculinas é que são exaltadas na nossa sociedade. No consultório me deparo muito com homens e mulheres felizes em poder ser mais racionais, práticos, objetivos em determinados momentos, considerando isso como o oposto do emocional, sentimental, sensível”.

As masculinidades também entram em debate na discussão dos tiroteios em colégios, pois, na visão de Helen, que também é ex-consultora da Saúde do Homem na Unesco, a explicação desses crimes somente em torno do transtorno mental ou do bullying não é mais suficiente. Ela utiliza o termo “masculinidades”, no plural. “Pois não estamos falando de uma entidade, nem do sujeito em si, mas de práticas discursivas e sociais que perpassam os corpos masculinos”.

Suzano e a raiva do homem branco

Na manhã do dia 13 de março de 2019, dois jovens de 17 e 25 anos entraram na Escola Estadual Raul Brasil, em Suzano, São Paulo, portando revólveres, arco-e-flecha, machado e explosivos. Os dois vestiam roupas pretas, utilizavam luvas e cinto tático. Eles fizeram sete vítimas fatais e depois o mais moço atirou no mais velho, se suicidando em seguida. O mais novo tinha o rosto coberto por uma balaclava de caveira, assim como “Tate”, o assassino fictício do seriado estadunidense American Horror Story.

A caveira é um símbolo que vem sendo usado por grupos de neonazistas e supremacistas brancos nos EUA. O teórico Michael Kimmel, a partir dos anos 90, observou que o perfil dos atiradores em massa mudou. Meninos e jovens adultos brancos de classe média passaram a protagonizar os atentados. No Brasil, pode ser observada a mesma prevalência desde 2002. No livro Angry White Man (Meninos brancos raivosos), Kimmel fala sobre os man’s shooting – atentados à mão armada feitos por homens – e questiona: por que é o menino branco de classe média que comete esses crimes, e não meninos negros, asiáticos ou imigrantes?

Para Kimmel, o motivo está na sensação de “direito lesado” pairante sob a categoria dos homens brancos. O professor Evandro explica que, em decorrência das últimas crises do sistema capitalista e do avanço das pautas das mulheres e dos negros, hoje não basta só ser um homem branco, numa metrópole, para ter garantida uma vida boa, de sucesso material, status e articulação de diversos privilégios sociais, como era há 50 anos. Entretanto, os filhos e netos dos homens daquele momento são expostos ao mesmo sistema de valores da masculinidade tradicional, que também possui um recorte de raça. Em especial para os homens brancos, é reforçada a ideia de que o mundo lhes pertence. “Mas eles vão buscar isso em uma sociedade muito diferente”, explica o professor.

Estudantes sob ameaça

No dia 20 de março, seis dias após Suzano, a UFRGS acionou a Polícia Federal devido a uma postagem encontrada em um fórum anônimo da internet. Tratava-se de uma conversa, na qual os usuários falavam em realizar um massacre na universidade e elogiavam os atiradores da cidade paulista. Como principal alvo, as mulheres estudantes. O conteúdo foi retirado do Dogolachan, fórum online de extrema-direita, conhecido por ser palco de discursos de ódio às minorias. Esse portal não pode ser acessado pela internet comum, ele pertence a deep web – camada oculta da internet.

No mesmo mês, a Polícia Civil do Rio Grande do Sul registrou pelo menos 20 denúncias de ameaças a escolas no Estado. Nenhuma chegou a se concretizar, mas, no dia 15 de abril, uma escola em Porto Alegre amanheceu pichada com o dizer: “Suzano voltará aqui”, em referência ao atentado em São Paulo. No muro do lado de fora do banheiro feminino foi pichado: “canto das putas”.

É comum a participação dos autores desse tipo de crime em fóruns online semelhantes ao Dogolachan. A misoginia, por exemplo, é um componente que já apareceu em outros massacres. Para a pesquisadora Helen, o que existe de diferente hoje é que esses discursos foram amplificados. “Temos um modelo de homens que fazem arminha, que se colocam no mundo político agenciados por uma ideologia absurdamente machista, sexista, transfóbica, homofóbica e racista”. Para ela, isso promove toxicidade ainda maior nas relações.