Setúbal Revista Nr. 22

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LIVROS E LEITURAS estreia de Joana Lopes, autora de vários livros infanto-juvenis. Publicado em 2018, o livro trata do (des)encontro de um homem consigo próprio, com a sua essência, debatendo-se, enquanto isso, com uma obsessão debilitante e patológica pela escrita, pela poesia e uma incapacidade que o tolhia, impedindo-o de escrever o almejado poema, de “(...)provar o corpo interdito da poesia” (LOPES, 2018:65). Na abertura do livro é-nos apresentado um homem que retorna à aldeia, depois de uma longa ausência, sabendo que só a “morte” o poderia curar da opacidade em que vivia, desvelando o seu ser, recuperando-o para a vida, para o amor, quiçá para a vertigem da escrita libertadora. O homem de quarenta anos, que perseguia poemas, é o narrador protagonista e é, portanto, na primeira pessoa e num registo intimista, que a história é narrada, estabelecendo empatia entre a personagem e o leitor. O começo da narrativa faz-se “in ultimas res” (técnica literária em que a narrativa começa pelo fim), com as primeiras páginas dando conta de um homem sem nome, de uma aldeia também não identificada, à qual retorna, determinado, cerca de vinte anos depois de a ter deixado para trás: “Quase vinte anos depois, regresso à aldeia, regresso a esta casa, regresso a mim. Estremeço, sou um homem que vem para morrer, sou um homem que vem para nascer dessa morte, agora que estou finalmente lúcido, venho curar-me.” (LOPES, 2018:5). Com esta estratégia narrativa, fazendo lembrar os romances policiais, onde este tipo de abertura é comum, a autora consegue prender a atenção do leitor. Um início desta natureza irá reivindicar a posterior narração das situações que antecederam o episódio inicial, como forma de apresentar a trama em que o protagonista se vê envolvido. A narrativa, dividida em seis partes, sendo que a última é uma espécie de epílogo, decorrerá com sucessivas e recorrentes viagens entre o presente e o passado (analepses ou “flashbacks”), de modo a informar e esclarecer sobre factos passados determinantes para a construção da personagem, para a apresentação do conflito e para o desenvolvimento da diegese. As incursões na infância e na adolescência do protagonista, ditadas pelas memórias que a casa e os objectos suscitam, vão sendo encaixadas na narrativa, fazendo com que o leitor viaje entre pas-

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Setúbal Revista

Joana Lopes Fotografia, 2018 ©Joana Lopes

sado e presente, conheça as sensações que o percorrem, conheça a casa, enquanto espaço e tempo de encontros e desencontros, muitos deles profundamente traumáticos e envoltos em grande sofrimento, como o abandono pelo pai, a morte da mãe e as várias situações de violência a que fora sujeito e que constituem momentos de grande tensão na

narrativa. Numa noite, percorrerá os seus quase quarenta anos de vida, numa espécie de monólogo interior, um discurso não pronunciado, sem ouvintes ou interlocutores, que se desenvolve na sua interioridade, no que em si existe de mais íntimo e profundo. Assim vamos adentrando na sua história de vida, na trama que sustenta e fundamenta a acção narrativa. A avó, mulher de semear coisas boas, é a primeira figura a ser evocada, por ser a figura de referência. O peito da avó, o consolo e a


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