Setúbal Revista Nr. 23

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Revista Bimensal | N.º 23 - II Série - 4º Ano Outubro / Novembro 2020

A vacina, o interesse público e o carrinho de compras

Nesta edição, entrevista com Pedro Martins e a história das histórias de um piloto...

"Senti o click e senti que era aquilo que eu queria fazer, voar, queria ser piloto..."

Setúbal está mais saudável



EDITORIAL

O que está para vir? A “quarta vaga” Maria João Ferro Diretora Editorial

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afinal isto pode não ser assim tão negativo…tudo passa pela nossa capacidade de adaptação, pelos nossos esquemas mentais, pelas nossas crenças cognitivas e pelas expectativas que temos sobre o que é viver o ano de 2020. Afinal até se conseguem levar as coisas para a frente…não parece assim tão difícil…haja atividade física e mental, saúde e responsabilidade social. Entre as tarefas profissionais e sociais e os cuidados preventivos e de responsabilidade social, temos, ao dispor, um sem número de novas atividades a explorar. Adotando (obviamente) atitudes responsáveis, rezando para que o vírus não nos bata à porta, criando a coragem para o combater, no caso de nos cruzarmos com ele, poderemos viver e sobreviver à chamada quarta vaga… que se perspetiva que seja sobre a saúde

mental, sendo que as três primeiras são os expetáveis ao nível da saúde física. O que será isto da quarta vaga? Segundo os mais recentes estudos, um dos impactos da pandemia do covid -19 surgirá centrado nas SEQUELAS PSICOLÓGICAS...a chamada quarta vaga. Consequência do isolamento, do distanciamento, do medo, da crise económica, da perda de emprego...da perda de familiares, dos lutos afetivos, dos eventuais traumas emocionais subjacentes .... de sequela física e emocional da própria doença. Existem, na verdade, uma multiplicidade bem complexa de fatores sociais, psicológicos, económicos que podem ser potenciadores de transtornos ao nível da saúde mental. Sabemos que, a este nível, o principal quadro emergente, desta pandemia, se relaciona com a Ansiedade, nas suas mais variadas formas, acusando também o registo aumentado dos quadros depressivos e dos sinais de somatização de questões psicológicas. A principal forma de mitigar este impacto será centrarmo-nos na PREVENÇÃO...Não podemos descurar a Saúde Mental nem a Saúde Física... fazem parte de um todo indivisível...comecemos por aí! Um corpo saudável para conseguirmos uma mente

sã... e vice-versa... caminhar, exercitar-se, mexer-se, estipular um horário de atividades, explorar interesses, fazer acontecer, dar mundo às crianças e dar-se mundo a si próprio, implementar tarefas a cumprir, manter a mobilidade...Física e Mental. Leia, procure e explore…dentro dos sistemas de segurança existe um mundo a conhecer, com plasticidade tudo se consegue, com criatividade e deitando para trás das costas, medos irracionais e pouco objetivos. Sabemos que teremos esta quarta vaga, mas cabe, a cada um de nós, levar a cabo um treino mental, para que esta não nos consiga atingir…ou pelo menos evitando-a o mais que consigamos. Durante o processo leia a nossa SER, edição 23, que acima de tudo apresenta-nos uma visão positiva e alargada do atual Novo…que já não é normal, mas que continua a desafiar os nossos sentidos, os nossos esquemas mentais e as nossas atitudes. Leia esta nossa edição 23, que nos traz histórias das histórias de um piloto e de outras tantas pessoas que se ajustam ao Novo Real, às novas condições de vida e a todas as restrições com que temos que lidar, neste 2020. Protejam-se e Bem Hajam. Saúde para todos!

FICHA TÉCNICA: Setúbal Revista – Registo na ERC: 126664; Depósito Legal Nr. 390882/15. Propriedade: João, Pedro & Armindo, Lda. [Sócios: Armindo Manuel Fernandes da Conceição (33%); Maria João Moreira da Conceição Ferro (33%); Pedro Manuel Moreira da Conceição (33%)]; Diretora Editorial: Maria João Ferro; Editores: Maria João Ferro. Colaboram nesta edição: Maria Pereira; Isabel Marques; Maria do Carmo Branco; Nuno Castro Luís; Jorge dos Santos Forreta; Paula Cunha e Silva; Eugenia Canito; Silvia Silva; José Gomes; Alexandra Aleixo; José Nobre; Carolina Bico; Alexandra Mendes; Cristina Pinho; Sara Loureiro. Contactos: redacao@setubalrevista.com - Avenida 5 de Outubro, 111, 2900-312 Setúbal; Publicidade: 967 122 006 - Estatuto Editorial em www.setubalrevista.com. Setúbal Revista respeita a opção dos seus colaboradores quanto ao Acordo Ortográfico

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SUMÁRIO

Pedro Martins A história das histórias de um Piloto… “…a segurança é uma das áreas mais importantes da vida de um piloto” P. 18 a 23

Setúbal está mais saudável

P. 34 a 36

O novo normal no Brasil anormal P. 24 a 27 4 SETÚBAL REVISTA


IDEIAS SOLTAS

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embro-me de ser muito criança e massacrar a minha Mãe com perguntas como “Porque é que as pessoas choram?”, “E porque é que suam?”, “Os peixes dormem?”, “Os números nunca acabam?”… Com isto condenava-a constantemente à urgência de me comprar enciclopédias que me acalmassem a curiosidade. E talvez por isso, anos mais tarde, descobri na Biologia (uma das minhas grandes paixões) muitas respostas para muitas das perguntas que me assaltavam desde que me lembro. É na Ciência que mais me revejo e que encaro como a minha espinha dorsal e me continua a responder às perguntas que (ainda) hoje continuo a ter. Sim, porque mal seria se estagnássemos e não mantivéssemos a curiosidade e sede de saber de uma criança. Mas como escrevi acima, tenho em mim muitas paixões (demasiadas), e há pouco tempo resolvi estudar Medicina Homeopática. Por essa razão ouvi um “senhor” que foi falar na televisão, dizer-me que eu devia ser burra, uma vez que, sendo Bióloga, não tinha qualquer sentido “acreditar” na Homeopatia (…). Vamos por partes: eu não “acredito” na Medicina Homeopática, eu já comprovei a sua eficácia, o que é uma coisa totalmente diferente. A quantidade de substância ativa nos medicamentos homeopáticos é o principal motivo de discussão sobre esta medicina, mas não deveria, se nos debruçássemos um pouco sobre nanociência. Para mim (e não posso dizer isto aos meus colegas Homeopatas uma vez que são na sua maioria unicistas), os medicamentos homeopáticos funcionam como uma espécie de vacina ou imunoterapia (eu que me revejo mais na vertente tera-

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IVONE CAMPOS Bióloga; Professora; Musicoterapeuta; Curso de Educação Musical pelo Conservatório Nacional de Música; Curso de Piano pelo Conservatório Nacional de Música

Tanta coisa por dizer…

"Tenho em mim muitas paixões (demasiadas), e há pouco tempo resolvi estudar Medicina Homeopática" pêutica da Homeopatia). Por esta razão, a Biologia e a Homeopatia casam em mim sem qualquer conflito. O mesmo acontece com a Música (outra

das minhas muitas paixões), por exemplo. Descobri há uns anos a Biomusicologia, que envolve a neuromusicologia, que por sua vez estuda quais as áreas do cérebro que estão envolvidas no processamento da música em nós. Isto significa que é possível relacionar a habilidade musical, as funções terapêuticas da música (musicoterapia) e as suas variadíssimas expressões com a Biologia (a minha espinha dorsal). Poderia continuar a relacionar a Biologia com muitas das minhas outras paixões (a escrita, a representação, ou até mesmo a Fé…), mas na verdade gostaria de concluir dizendo que o mais importante no meio disto tudo é a grandeza da complementaridade. Somos muitos dentro de cada um de nós. Assumamos então todas as paixões com que somos abençoados. Dêmos-lhes palco. Aliás é esse o segredo. SETÚBAL REVISTA 5


MARIA DO CARMO BRANCO Administradora da UNISETI (Universidade Sénior)

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á uma profunda ansiedade em quase todos nós neste tempo do nosso descontentamento, que nos leva a questionar: quem somos; porque vivemos; o que queremos: para onde vamos? Nenhum computador, nem nenhum investigador nos dá essa resposta. Parece, por vezes, que a vida não tem qualquer sentido, dada a profunda ansiedade e o tédio que muitos de nós sentimos. Não me entendam mal: a partir de uma certa idade e com a vida a escorrer pelos dedos, nunca pensámos deixar de ser livres: a liberdade de andar sem máscara, sem distanciamento, sem abraços e sem beijos, e, o mais importante, sem a presença mais assídua dos nossos filhos, netos e restante família, embora já possamos encontrar-nos com restrições. Nessa angústia, esquecemos que o corpo é governado pela cabeça e as emoções do dia-a dia tornam-na instável como se atravessasse uma tempestade. Os sinais desse desequilíbrio estão a aparecer com muita frequência e poucos pensam que as únicas pessoas que podem alterar o modo de vida somos nós próprios e que a única possibilidade de mudar o mundo é alterarmos os nossos hábitos: alimentação, roupa, humildade e, sobretudo, respeito e partilha. É muito fácil pôr tudo na mão dos governos e dizerermos que não temos nada com isso. Estamos completamente errados, porque o nosso comportamento pode pôr em causa toda uma comunidade. A minha angústia não é pela perda parcial de liberdade, mas porque há em meu (nosso) redor tanto sofrimento e abando6 SETÚBAL REVISTA

Para onde vamos? DIREITOS RESERVADOS

OPINIÃO

no, envolvido por gente indiferente. Felizmente, ainda há pessoas que se envolvem numa ajuda, quase sem limites, aos mais necessitados, num voluntarismo exemplar, numa dádiva que me comove. No entanto, o número ainda é bastante reduzido para as necessidades que todos os dias vão surgindo. Para agravar toda esta situação temos o viver a alguns idosos: sozinhos, isolados, sem amor familiar, abandonados à sua sorte. Verificamos no dia-a-dia que isso não importa a alguns populistas que só lutam pelo poder, chegando mesmo ao desplante de dizerem: os velhos não produzem, não consomem, estão sempre doentes, são um estorvo social, esquecendo-se que foram

eles que lutaram para que os mais jovens tivessem a liberdade e o bem-estar de que usufruem Nem se interrogam: como serei quando for mais velho? Serei aceite pela sociedade ou serei posto de parte como um trapo velho? É um mundo frenético, afastado das raízes da ética e da civilidade. Uma sociedade que não respeita a velhice é uma sociedade vazia, sem memória e sem passado. Temos que refletir sobre a modificação que tem vindo a crescer numa sociedade que só procura o lucro e que tem destronado todos os outros valores humanistas. Se não o fizermos, o mundo será cada vez pior.


CULTURA

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screver ou não escrever? Escrevia sobre tudo e escrevia sobre nada. Por algo que me espantasse. Hoje, se o fizesse, não faria mais nada. Tudo me impressiona, menos pela positiva do que pela negativa. Tudo me maravilha e tudo me indigna. A normalidade descambou numa paisagem de extremos, de barricadas. Torna-se muito difícil encontrar alguém tranquilo para encetar uma conversa. Nem nesta página que se vai enchendo de caracteres, o espelho das ideias, consigo a calma necessária para desenvolver o que quer que seja. Estou apenas navegando com os dedos ao sabor do pensamento. A escrita é uma arma? A sê-lo tenho-lhe dado tréguas, não vá ela aleijar alguém. Necessito da paz que teima em fugir-me, só a consigo alcançar no silêncio, ou na música. Falarei de quê, primeiro? Dos colegas que morrem cedo demais, ou das razões que os mataram? Da fome, ou da lei da cessação obrigatória de trabalho? Das leis laborais que nunca tivemos, ou da protecção social que nunca teremos? Da ministra, ou da sua sinistra e afunilada retórica? Tudo está mal, mas tudo vai indo, mais ou menos bem, até chegar outra notícia explosiva que nos devaste, que nos varra por dentro. Ultimamente fico a olhar para o silêncio de uma página em branco e fico contente por vê-la, por escutá-la, assim. Perscruto-a e concluo que só com os caracteres pretos, as luzes do meu pensamento, ela almejará o seu sentido de existência, mesmo quando a realidade parece não fazer sentido nenhum. Onde andará o humor, no meio de todo este surrealismo a que o mundo se entregou? Fugiu. E levou com ele o amor, a esperança, a sobriedade, a tolerância, o respeito, o bom-senso, e toda a restante rede de amizades da sua lista de contactos. Ficámos sós.

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JOSÉ NOBRE Ator

O silêncio de uma página em branco

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PEDRO SOARES Terapeuta motivacional Desenvolvimento Pessoal

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monge Zen-Budista vietnamita Thich Nhat Hanh, utilizou sempre a sua sabedoria dispersa em inúmeras publicações e conferências, utilizando poucas palavras e exemplos retirados da simplicidade, que é residência fixa da simplicidade, para passar mensagens que todos pudessem entender. Para nos passar uma incrível mensagem sobre não-discriminação, usou um diálogo entre a sua mão esquerda e a sua mão direita, deixando os seus ouvintes enternecidos com o seu bom humor e a sua invulgar capacidade para enternecer quem o escutasse. Era uma metáfora sobre o nosso próprio comportamento. Basicamente a mensagem constatava que as mãos, sendo distintas uma da outra, não se confundem. Dizia que a sua mão direita havia escrito quase todos os seus textos e que, ainda assim, a mão direita nunca tinha tido qualquer complexo de superioridade por esse feito. E que a sua mão direita não pensava ou dizia coisas como: ”Mão esquerda, você sabe que eu escrevi quase todos os poemas? Você sabe que eu posso fazer caligrafia? Eu posso convidar o som do sino? E você, mão esquerda, não parece ser boa para nada! Minha mão direita nunca pensa deste modo, nunca tem essa atitude. Minha mão direita nunca é capturada por um complexo de superioridade. Um complexo de superioridade só nos faz sofrer. Não é apenas quando temos baixa autoestima que sofremos, mas quando temos alta autoestima também. O sentimento de que somos mais poderosos, mais talentosos, mais importantes, isso também nos traz sofrimento. Embora a minha mão esquerda não tenha escrito poemas ou feito caligrafia, não sofre de nenhum complexo de inferioridade. É mara8 SETÚBAL REVISTA

Somos todos co-dependentes DIREITOS RESERVADOS

SIMPLES ASSIM


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vilhoso. Ela não sofre absolutamente. Não há comparação, não há baixa autoestima. É por isso que minha mão esquerda é perfeitamente feliz. Um dia eu estava tentando pendurar um quadro na parede. Minha mão esquerda estava segurando um prego e minha mão direita um martelo. Neste dia, não sei por que, ao invés de bater no prego, eu bati no meu dedo. Quando acertei o meu dedo, minha mão esquerda sofreu. Imediatamente a mão direita largou o martelo e tomou conta da mão esquerda do modo mais carinhoso, como se estivesse tomando conta de si mesma. Ela não via isso como sua obrigação. Este tipo de coisa aconteceu muito naturalmente; minha mão direita faz coisas para minha mão esquerda como se tivesse fazendo para si mesma. Minha mão direita considera o sofrimento da mão esquerda como seu próprio sofrimento. É por isso que fez tudo para tomar conta da mão esquerda. Minha mão esquerda não estava com raiva. Ela não disse: “Você, mão direita, me fez injustiça. Dê-me o martelo. Eu quero justiça!” Ela não tinha tais pensamentos. Isto confirma que há uma inerente sabedoria na minha mão esquerda, a sabedoria da não discriminação. Quando temos essa sabedoria, absolutamente não temos que sofrer. A sabedoria da não discriminação significa sabedoria. E esta sabedoria é inata a todos nós…” Contudo, se um dia magoarmos a nossa mão direita, é com a esquerda que a vamos tratar e iremos tentar com ela, fazer o que normalmente pertence à direita. Quão grata será a direita por estar a ser cuidada pela esquerda? Ninguém é alguém sem alguém, e sozinhos não somos rigorosamente nada. Nós nascemos por sonho e desejo de outro alguém, o nosso nome foi escolhido por outro alguém, a nossa saúde, o andar, o aprender foi fruto do trabalho de outros. Os nossos (muitos) primeiros banhos foram dados por outros e por outros fomos vestidos enquanto crianças. Foram outros que nos fizeram o parto para que se desse o nosso nascimento.

Sempre que apanhamos um avião, um autocarro, vamos a um cinema ou a um restaurante, existe sempre o trabalho de outros Por detrás de pequenos gestos que tornamos rotina e demos por definitivos. A nossa vida depende de outros. Não termos morrido durante uma cirurgia é trabalho de outros. O nosso último ou últimos banhos serão outros que nos irão dar… E pasme-se, o nosso funeral será realizado e acompanhado por outros e todos somos esse outro. Qualquer outro está dependente de ti que também és o outro para outro alguém! E é desta não discriminação que se tecem as pessoas humildes que não sonham com a fama, que vivem a vida como um presente ao qual devemos ser gratos todos os dias. Nenhum de nós nasceu racista, homofóbico nem com qualquer outro preconceito. Teve que ser instalado em nós, através das nossas conexões com o mundo e as múltiplas influências que fomos recebendo daqui e d'alem. Como ensinava Mahatma Gandhi “Eu e tu somos uma coisa só. Não te posso maltratar sem me ferir.” Não podemos passar por este planeta sem termos esta motivação de sermos mão oposta e complementar. Não nos devíamos permitir ver como mão esquerda qualquer semelhante nosso. Não devíamos

poder achar que uns são filhos de alguém e outros de ninguém. Isso não existe. Não devíamos ter “permissão” para usar pessoas e até este planeta como se fosse tudo nosso. Não devíamos hipotecar, colocar no prego, este planeta que não é nosso mas nos foi confiado para o tratarmos como “coisa” nossa. Quem nos trouxe à vida, emprestou-nos um planeta mais cuidado e respeitado. Hoje parece valer tudo a qualquer preço. Quem vier atrás que se “lixe”, quem vier atrás bata com a porta e apague a luz… E é aqui que arrepia um pouco mais. Afinal, quem vem atrás? O meu filho? O neto? Como é possível que nos esqueçamos que, quem vem atrás, são os nossos? Como é possível sermos felizes e dormirmos o sono dos justos, quando conhecemos algumas pessoas que agem assim? Atribui-se a Martin Luther King uma frase de valor inquestionável: “O que me preocupa não é o grito dos maus, mas o silêncio dos bons”. Esta frase está prenhe de significado, neste tempo em que o nosso conforto pessoal supera a nossa vontade de ver um mundo mais justo. Não discriminar implica coragem. Coragem para não o fazer e ainda mais coragem para confrontar quem o faz. Estamos, como nunca, a viver um tempo em que todos precisamos contar com todos. SETÚBAL REVISTA 9


PSICOLOGIA

Decisões

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aberemos o que é o melhor para nós? Escolhemos sempre o certo e o que nos faz bem? Devemos arrepender-nos caso tomemos decisões erradas? E o tempo? O tempo ajuda? Faz-nos crescer? Apaga ou diminui as dores da vida? Tantas questões que nos colocamos e que nem sempre conseguimos responder. Antes de tudo é importante que nos coloquemos questões, já é um bom princípio. Significa que nós pensamos e que nós queremos perceber. E esse trabalho interior é tão importante, muito provavelmente o mais importante do e no nosso desenvolvimento enquanto seres humanos. É essa procura individual e intrínseca que nos permite ser connosco e com os outros em termos relacionais. E eventualmente mudar quando consideramos que um comportamento habitual em nós, de forma padronizada tem um resultado diferente do desejado, ler pior. Somos o resultado da soma dos dias, das horas e dos minutos que vivemos e consequentemente dos acontecimentos que vivenciamos e dos quais tomamos conhecimento, sendo que os primeiros são mais impactantes no nosso processo individual por nos colocarem no papel principal e assim exigirem uma gestão, também ela mais impactante de nós próprios. Ainda assim, o que acontece aos outros não deixa de ser informação e, caso estejamos atentos, e tenhamos a “ferramenta empatia” disponível, pode servir-nos e muito para nos preparar para uma situação semelhante. Sabemos que não somos a mesma pessoa de há cinco, dez ou muito menos vinte anos atrás. Bem pensado nem sequer somos a mesma pessoa de há um 10 SETÚBAL REVISTA

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SILVIA SILVA Psicologa, Psicoterapeuta Torres Vedras psicologa.silviasilva@gmail.com


ano ou um mês a esta parte. Então vejamos a questão do arrependimento. Quando tomamos uma decisão, tomamo-la sob as condições e informações de que dispomos no momento. Pode efectivamente ser mais ou menos reflectida, mas, se decidimos daquela maneira é porque considerámos no momento ser o melhor para nós. Se corre bem achamos-nos o máximo, se corre mal achamo-nos uns fracassados. O arrependimento é uma tentativa ilusória de voltar atrás no tempo e mudar o rumo das coisas, sendo que desta vez, já sabemos o que aconteceu a seguir a essa

tomada de decisão. A questão é que no filme da vida não dá para fazer rewind. E por essa razão, é injusto que haja lugar a arrependimentos. Devemos sim substituir esse sentimento por aprendizagem. Devemos pegar nessa situação, revê-la e tentar perceber se realmente numa ocasião futura semelhante, uma decisão diferente possa ser melhor. É essa reflexão sobre nós e as nossas circunstâncias que nos faz aprender mais sobre o que somos, o que nos incomoda e os nossos propósitos. Diria com alguma convicção que quanto melhor nos conhecermos, melhores são as chances de diminuir os arrependimentos sobre o rumo que tomamos para as nossas vidas. Uma vez num curso de desenvolvimento pessoal ouvi uma opinião que me marcou: quando compramos um telemóvel, primeiro pomo-lo a trabalhar e só se alguma coisa não funcionar, ou se não conseguirmos fazer o que desejamos, mesmo tentando várias vezes, é que vamos ao último recurso que é ler as instruções. Infeliz ou felizmente fazemos o mesmo com as nossas vidas, só se alguma coisa não funcionar ou se não conseguirmos fazer o que desejamos, mesmo tentando várias vezes, é que vamos ao nosso último recurso que é ler as instruções, ou seja, reflectirmo-nos ou melhor ainda, fazermos um trabalho de desenvolvimento pessoal que nos permita, antes que a vida aconteça, nos conhecermos e nos anteciparmos aos acontecimentos. O tempo por si só não nos muda. Apazigua as dores, mas não nos muda enquanto pessoas na nossa personalidade. O que muda é o que fazemos de nós durante esse tempo. E isso não é fácil. Nada fácil. Olharmos para dentro de nós obriga muitas vezes a que nos esventremos, a que vejamos coisas feias e a que tenhamos que admitir que o erro não é só do outro. É muitas vezes o que permitimos que o outro faça connosco. A maneira como nos tratam e como permitimos que nos tratem diz de nós aquilo que pensamos da nossa pessoa e a auto estima que temos. Importa muito, importa tudo que saibamos o que nos magoa e porque nos magoa, e o que nos agrada e porque nos agrada. Que sejamos conhecedores da nossa forma de funcionar e de processar os acontecimentos e os sentimentos. Só assim poderemos estar atentos aos sinais da vida. E por sinais falamos

do desconforto que algumas pessoas nos fazem sentir na sua presença; do facto de não nos vermos reconhecidos ou realmente amados por quem nos esforçamos; por mesmo ouvindo um aparente elogio, pressentirmos que a forma como nos é dito não é autêntica e nos deixa angustiados. Sempre que nos sentimos cansados, chateados, traídos, não desejados ou incomodados nas nossas relações, devemos olhar para estes sinais. Olhá-los e perceber o que causou este efeito, o que essas pessoas significam para nós e porque é que, psicossintomaticamente o nosso organismo está a reagir desta forma. Quando fazemos esta pesquisa interior, quando humildemente tentamos descolar-nos da postura do “sei tudo sobre mim e estou preparado para tudo nesta vida” e admitimos que podemos saber mais sobre nós e nos podemos preparar mais e melhor para o futuro, conseguirmos melhorar-nos enquanto seres humanos. Quando para além disso nos conseguimos colocar no lugar do outro de forma empática, não necessariamente para desculpar o que o outro faz, mas sim para entender porque o faz, por vezes acabamos por perceber que fomos nós que lhe demos a indicação e a permissão para nos tratar menos bem. E isso acontece sempre que mesmo atentos aos tais sinais, ainda assim não dizemos nada e por vezes ainda acatamos e sorrimos. Acontece quando alimentamos essas relações, ou quando permitimos que essas pessoas se mantenham nas nossas vidas por não querermos dizer NÃO. Costumo pensar que sempre que me contrario para não magoar outra pessoa, para além de me estar a contrariar a mim, não estou a ser genuína, e consequentemente estou a dar indicações de que a outra parte pode continuar a agir da tal forma que me deixou desconfortável. E essa não é uma boa decisão. Mais do que pensarmos nas grandes decisões que tomámos na nossa vida e que ainda teremos que tomar, pensemos nas mais pequeninas, as de todos os dias. Naquelas que nos fazem estar apenas com quem gostamos de estar e que nos permitem fazer apenas o que queremos fazer. Para tudo o resto há que ter a humildade de estar atento aos sinais, de perceber o que nos faz sentir bem ou mal e neste último caso dizer NÃO, “porque não é isto que quero para a minha vida”. SETÚBAL REVISTA 11


CULTURA

Memórias no tempo

EUGENIA CANITO Professora

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utubro é o mês em que se celebra o Dia Internacional da Música, por todo o mundo é dia da Música. Podemos dizer que a Música é uma forma de arte e é também através da música que acontece uma via de união entre as pessoas, uma expressão emocional, uma forma de comunicação. A música surge , na vida do homem, relacionada aos contextos sócio recreativos, mas tornou-se ao longo dos tempos, parte das nossas vidas, ela está em todo o lado. A música não é só basicamente designada para ser ouvida, mas também para promover bem-estar, físico e psicológico. São os grandes músicos, compositores e intérpretes, que nos têm oferecem e transmitem pela sua arte uma forma de linguagem musical, e nos tornam enriquecidos pela magia da música. Eu não sou de Setúbal, mas vivo nesta bonita cidade há cerca de 40 anos. Sinto por esta cidade, que me acolheu, um grande carinho. E falando de Setúbal, sabemos que esta cidade é rica em pessoas de grande valor e no que respeita à música, começando por Luísa Todi, vários nomes se tornaram uma referência pelo seu valor na música e não só. Por estas bandas, nesta cidade do Rio Azul, uma grande senhora dedicou a sua vida à música, ao ensino e à cidade. Uma senhora com quem tive a honra de privar, uma senhora, que até hoje admiro muito: a Senhora D. MARIA ADELAIDE ROSADO PINTO. Os meus filhos frequentaram a Academia de Música e Belas Artes Luísa Todi de Setúbal. Esta instituição foi fundada por esta professora e compositora, conheci-a sempre sorridente, dinâmica, presente tanto no pátio do colégio, no seu gabinete, mas também ao portão, sempre pronta

Maria Adelaide Miguéns Rosado Pinto ...uma senhora


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para dar uma palavra aos pais, para compreender o terreno, as dificuldades e acima de tudo para transmitir a segurança. Era exímia nestas funções. Ficará para sempre conhecida pelas “batidas do Gongo” nas datas temáticas, nas festas do colégio, acompanhava as exibições tocando o seu “gongo”, numa pose engraçada e divertida. A alegria, a espontaneidade, a naturalidade e a descontração com que sempre se apresentava e a entrega que sempre dedicou à sua vida, aos seus projetos, à música eram sem dúvida fascinantes. A sua genuinidade e aos mesmo tempo, a forma como nos envolvia, a nós pais, nas vivências do colégio. Naquele tempo eu pouco sabia quem era a D. Maria Adelaide, era a diretora do colégio dos meus filhos. Só depois, anos mais

tarde, constatei que era uma senhora com uma força, um dinamismo, uma vocação musical extraordinária, uma senhora iluminada, visionária. Esta ilustre setubalense, nasceu em Setúbal, no dia 30 de junho de 1913 e foi batizada na Igreja de S. Julião, situada na Praça do Bocage. Era filha do conceituado Maestro Celestino Rosado Pinto, cujo espólio musical foi doado à Câmara Municipal de Setúbal. Em 1931, Maria Adelaide começa a lecionar como professora do ensino particular, diplomada com o Curso Superior de Piano pelo Conservatório Nacional de Lisboa, abraçou a docência com toda a sua dedicação. Ao longo da sua carreira de Pianista frequentou várias especializações na área de piano com o Mestre Campos Coelho e com

Maria Adelaide Rosado Pinto uma grande figura setubalense que amou a sua terra e as suas gentes, deixando um imenso espólio à cidade.

Helene Zumstagde, em Basileia (Suíça). Foi bolseira da Fundação Calouste Gulbenkian a partir de 1958, o que lhe permitiu também estudar em diversos países. Em 1960 foi a cofundadora da Escola de Música e Belas Artes Luísa Todi de Setúbal, tendo lecionado e dirigido esta escola até 1988. Passou pelo ensino público e lecionou em várias escolas e conservatórios nacionais de música. Escreveu várias obras infantis, para o teatro musicado, bem como vários livros didáticos e de poesia. Foi sócia fundadora da Associação Portuguesa de Educação Musical, nomeada representante na Escola de Educação Musical na Zona Sul e membro do Conselho Nacional de Música. Colaborou na organização da Delegação da Pró-Arte. Participou na criação dos parques infantis de Setúbal. Foi cofundadora do clube de Setúbal da Organização Internacional Soroptimist International e foi colaboradora, conjuntamente com Aurélio Fernandes, no Coral Luísa Todi. Fez ainda parte do grupo de fundadores do Conservatório Regional de Setúbal, em1988. Colaborou e dedicou à APP-CDM, com aulas de Musicoterapia. Igualmente, organizou a Academia de Música Eborense, tendo sido nomeada Diretora Pedagógica. Fundou ainda a Associação de Canto da Cidade de Setúbal, da qual foi Presidente. Orientou os Cursos de Didática Musical nas Escolas do Primeiro Ciclo Básico, juntamente com a Autarquia Setubalense. Entre 9 e 17 de maio de 1997, realizou na Biblioteca Municipal de Setúbal, um certame de serões musicais, comemorando o bicentenário de Schubert e o Centenário de Brahms, com a participação dos seus alunos, tendo sido um enorme êxito. Era sócia honorária da Associação do Património Cultural e Natural da Região de Setúbal. Faleceu em 22 de setembro de 1997, deixando um grande contributo musical à cidade e um cunho pessoal a todos os que acompanhou como professora. Maria Adelaide Rosado Pinto uma grande figura setubalense que amou a sua terra e as suas gentes, deixando um imenso espólio à cidade. Com toda a sinceridade vos digo: “A sua entrega, o seu valor intelectual e a sua dedicação, solar por natureza, teve esse alegre poder de iluminar as sombras. Há quem diga que “a Paz mora em todos nós!”. Ela de certeza está em paz. P.S. – Agradeço à minha amiga e colaboradora desta Revista Maria do Carmo Branco a cedência do curriculum. SETÚBAL REVISTA 13


Bolo de cenoura e noz

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Outono chegou e com ele as primeiras chuvas, o cheiro a terra molhada, as primeiras folhas que caem formando lindos tapetes coloridos. Este bolo faz lembrar um pouco o colorido das folhas caídas, a sua massa fica salpicada pelo tom alaranjado da cenoura e pelo tom castanho das nozes. O sabor a canela confere-lhe um toque quente mais apreciado nos meses mais frios. Disfrute deste bolo na preciosa companhia da nossa revista e de um chá acabado de fazer.

Ingredientes para o bolo: 4 ovos 2 chávenas de chá de açúcar 2 chávenas de chá de farinha 2 chávenas de chá de cenoura ralada 1 chávena de chá de miolo de noz picado 1 chávena de chá de óleo 1 colher de sobremesa de canela 1 colher de sobremesa de fermento em pó 1 colher de chá de sal Ingredientes para a cobertura: 1 embalagem de queijo mascarpone (+-200 gr) 2 colheres de sopa de açúcar em pó 75 ml de natas 1 colher de sopa de extrato de baunilha 14 SETÚBAL REVISTA

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CULINÁRIA


DIREITOS RESERVADOS

Modo de preparação: Pré-aqueça o forno a 175º C. Unte com manteiga e polvilhe com farinha uma forma com cerca de 22 cm Ø. Peneire a farinha com o fermento, a canela, o sal e reserve. Com a ajuda de uma batedeira elétrica, misture muito bem o óleo com o açúcar. Adicione os ovos um a um, batendo bem entre cada adição. Incorpore, pouco a pouco, a mistura dos ingredientes secos, previamente peneirados (farinha, sal, canela, fermento). Por fim, junte a cenoura e as nozes e mexa muito bem. Transfira a massa para a forma e leve a cozer durante aproximadamente 45 minutos ou até o palito sair sem vestígios de bolo. Coloque numa grelha até arrefecer completamente. Faça o creme batendo o queijo, com as natas, o açúcar e o extrato de baunilha até ficar bem homogéneo. Espalhe o creme por cima do bolo e decore com fruta.

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Com o apoio de Merengue & Chocolate email: merengueechocolate@gmail.com

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CULINÁRIA

Alimentação Vegana é mais cara?

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iço muitas vezes dizer que uma alimentação vegana não é possível ser praticada por ser demasiado cara e, por isso, não ser compatível com a carteira de muitos portugueses. Ora vamos lá então desmistificar esta questão! Para começar, o tipo de alimentação que faço, para além de ser vegana, é uma alimentação saudável com o mínimo de produtos processados possíveis. Porque ser vegano não é significado de ser saudável. Sabiam que as bolachas Oreo são veganas….? Então perguntam vocês: o que é comer saudável à base de plantas? Segundo os médicos e especialistas, um prato vegano equilibrado é constituído por: 50% hortícolas (legumes, salada,…), 25% leguminosas e 25% cereias e/ou tubérculos. No caso da alimentação omnívora, este também é o modelo de prato mais equilibrado, apenas substituímos a proteína vegetal, as leguminosas, por proteína animal. A verdade é que sim, os produtos processados especificamente veganos são mais caros. Por exemplo um hambúrguer de carne de vaca custa cerca de 6$ o kg, enquanto o Beyond Burguer, que para quem não conhece é um hambúrguer 100% vegetal criado em laboratório que tem o sabor, textura e cheiro da carne de vaca, custa 20$ o kg. No entanto, não é uma opção saudável se a nossa alimentação for com base neste tipo de produtos, será cara e totalmente desaconselhada. Podemos sempre fazer os nossos hambúrgueres em casa com base de uma leguminosa e até com alguns vegetais. Ficará mais barato, saudável e delicioso. Se tentarmos comparar um dia inteiro na alimentação de um vegano e de um omnívoro saudável, vemos que não é assim tão diferente e os valores não variam muito. Vejam o quadro:

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JOANA SOL Autora da página do instagram Cookie Food Project


1 – Melina V, Craig W, Levin S. Position of the Academy of Nutrition and Dietetics: Vegetarian Diets. J Acad Nutr Diet. 2016 Dec;116(12):1970-1980. doi: 10.1016/j. jand.2016.09.025

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Assim, como podem ver, os valores batem certos, pois apesar de a alimentação vegana ter alguns produtos mais caros, como é o caso dos iogurtes e bebidas vegetais, comparadas com as alternativas animais, também tem alguns produtos mais baratos como por exemplo o feijão que ainda pode ficar mais em conta e sustentável se for demolhado e cozido em casa. Outra questão que muitas vezes me é colocada é: e como é que fazes quando vais comer fora e não há opções na ementa? Posso já dizer uma coisa: fome nunca passei! Hoje em dia cada vez mais os restaurantes têm em consideração em ter pelo menos uma opção vegetariana/ vegana. Ainda assim, sei bem que há um grande número que não tem. Nesse caso é preciso haver flexibilidade tanto da parte do cliente como do restaurante. Pela minha experiência, é possível pedir um acompanhamento (batata cozida/assada, arroz, massa,…), legumes e/ ou salada, e uma leguminosa cozida ou salteada em azeite e alho (feijão, grão,…). Às vezes, ao vermos a ementa também podemos pedir aquele prato mas com algumas alterações. Voltando ao tema, está comprovado cientificamente que uma dieta vegetariana/vegana adequada e saudável, poderá trazer benefícios à nossa saúde, nomeadamente a prevenção e tratamento de algumas doenças (1). Também posso-vos garantir que não é nenhum bicho de sete cabeças, ninguém deixa de ir comer fora porque é vegano! Alias, na maior parte das vezes, o meu prato sai sempre o mais barato, pois é considerado “guarnição”. Assim, se fizerem a vossa alimentação quer seja vegana ou não de forma equilibrada, variada e com o menor número de produtos processados possível, será mais barata a nível económico e ainda “poupam” a vossa saúde.

Panquecas de trigo-sarraceno Ingredientes (cerca de 10 panquecas): -2 bananas maduras; -128g de farinha de trigo-sarraceno; -175ml de bebida vegetal; -1c.s de sementes de linhaça em pó; -1c.c de canela em pó; -1c.c de fermento em pó; -1c.c de extrato de baunilha; -pitada de sal Junte numa taça todos os ingredientes secos e envolva. Esmague as bananas com um garfo e adicione ao preparado juntamente com a bebida vegetal e o extrato

de baunilha. Misture bem e aqueça uma frigideira ao lume. Se necessário unte com um bocadinho de óleo de côco. Deite duas colheres de sopa da massa na frigideira e baixe o lume, quando se começarem a formar bolhinhas de ar vire e espere mais uns minutos. Sirva com os toppings que mais gostar. Eu usei manteiga de amêndoa, pepitas de cacau e framboesas. Nota: Para os mais gulosos, pode fazer uma calda de chocolate para regar as panquecas- derreter um bocadinho de chocolate com um pouco de óleo de côco em banho maria ou no mico-ondas. Bom apetite! SETÚBAL REVISTA 17


ENTREVISTA

A história das histórias de um Piloto…

“…a segurança é uma das áreas mais importantes da vida de um piloto”

Pedro Martins 18 SETÚBAL REVISTA


Texto: Alexandra Mendes Fotografia: Arquivo pessoal de Pedro Martins

P

edro Martins é um contador de estórias. Ao longo da nossa longa conversa deixou sobressair a sua capacidade inata, para a arte do bem conversar, tornando fácil acompanhar a narrativa, salpicada de vez em quando por risos espontâneos e um sentido de humor muito à moda british, quiçá, talvez por ter estado sujeito durante vários anos ao ar enovoado da Velha Albion… De forma humana e descomplicada, foi revelando o valor que atribui à vida, à família e aos amigos, ao gosto intrínseco que nutre pela Natureza e pela aviação. Gosta tanto de Setúbal, conhece tão bem o Sado, nasceu na Cidade do Rio Azul? Não, sou lisboeta …Vivi aí até aos seis anos de idade, depois o meu pai, médico dentista, foi para Moçambique durante quatro anos, levando a família com ele. Entretanto, também por razões profissionais, acabou por se fixar em Setúbal e por isso aos onze anos vim estrear o Ciclo Preparatório, atual Escola E,B 2,3 du Bocage. Depois fui para o Liceu de Setúbal a atual Escola Secundária du Bocage. Com o 25 de Abril e com toda a confusão que se instalou na altura, a nível escolar e pedagógico, a formação ressentiu-se. Em vez de frequentarmos as aulas, frequentávamos as RGAs (Reuniões Gerais de Alunos), dispensávamos professores, escrevíamos sumários, enfim era uma enorme confusão. A minha formação escolar acabou por não se solidificar e no 5º ano voltei para Lisboa e fui estudar para o Colégio Manuel Bernardes. Mais tarde regressei a Setúbal, para frequentar o 12º ano... tinha aqui os grandes amigos e era aqui que eu praticava vela, e tinha a namorada.. Foi nessa altura que se decidiu a tirar o brevet e seguir a carreira de Piloto Comercial? Foi algo que sempre soube que queria? Não, não… Na altura, apesar de não ser uma prática muito comum, fui fazer testes de orientação vocacional que indicaram a minha apetência para a área das ciências. Como eu gostava imenso

de tudo o que tivesse a ver com o meio ambiente optei por me candidatar a uma nova engenharia que surgia na época: Engenharia do Ambiente. Naquela altura, quando atravessava o rio enchia o meu 470 de sacos de plástico que encontrava a flutuar, com medo que os golfinhos os engolissem. Mas apesar deste meu gosto, infelizmente não consegui ter média para esse curso e entrei numa engenharia ligada à produção textil, na Covilhã… Nem me cheguei a matricular, resolvi antes ir trabalhar e estive na ControlData que tinha uma fábrica em Setúbal, onde se faziam discos rígidos de 80 GB. Naquele tempo, os discos rígidos, tinham o tamanho de um frigorífico (risos).. Em 1983, tinha eu 22 anos, tropecei no meu amigo Luís Branco, que já voava e que me levou a dar uma volta.. Senti o click e senti que era aquilo que eu queria fazer, voar, eu queria ser piloto. Ser piloto naquele tempo não deveria ser fácil. Quais foram os seus passos? Comecei por fazer um curso de pilotagem privada. Fiz o primeiro voo a solo muito cedo, os meus instrutores consideraram logo que eu tinha potencial, mas quis ter a confirmação e fui fazer um teste ao simulador da TAP. Depois disso, explorei muitas opções para tirar o brevet de Piloto Comercial. As melhores que encontrei foram nos USA. Juntei o dinheiro necessá-

É claro que já transportei muitas pessoas famosas e amigos. O Primeiro Ministro, deputados, a Seleção de Futebol, pilotos de Fórmula 1, artistas. A nossa Presidente da Câmara

rio e parti para Memphis, no Tennessee, onde estive durante 7 meses. Cheguei a Portugal com uma licença americana e tive que a converter para uma nacional… Exames e mais exames… Sei que em Memphis teve um colega muito especial… Sim, o Eduardo Albarran, que eu conhecia desde os meus tempos de escola… Extraordinariamente inteligente, teve uma vida pontuada de episódios incríveis, dava uma série de TV fascinante… A quantidade de aventuras que viveu… A nível da aviação de ultraligeiros foi pioneiro, mas apesar de ter uma apetência nata para se meter em sarilhos (risos), tinha low profile no que dizia respeito às façanhas que cometia. Foi o primeiro a atravessar os EUA de Este a Oeste num ultraligeiro, naquele tempo uma asa com uma cadeira na frente e um motor atrás, sem qualquer proteção. Foi também o primeiro a fazê-lo entre Lisboa e o Funchal. Morreu a voar a sua paixão, um ultraligeiro, num voo absolutamente corriqueiro. Foi fácil arranjar emprego? Comecei a voar na LAR e passado dois anos mudei-me para a Air Atlantis que em 1993, devido às consequências económicas da Guerra do Golfo, acabou por fechar. Em tempos de crise a aviação é sempre a primeira a sofrer, as viagens deixam de acontecer. Foi uma altura difícil, tinha acabado de nascer a minha primeira filha. De repente vi-me desempregado e sem grandes espectativas.. Mas esta situação acabou por se mostrar vantajosa nalguns aspetos, nomeadamente ter tido o privilégio de poder estar com a minha filha a tempo inteiro. Éramos companheiros inseparáveis, tanto mais que a minha mulher estava na linha da frente, a trabalhar. Esteve muito tempo sem trabalhar? Estive um ano e meio e depois de repente, de um dia para o outro, uma companhia que se estava a formar e que precisava de pilotos contatou-me… A Ryanair, que tinha a base em Dublin. Na mesma semana estava num avião a caminho da Irlanda.. Fiquei 8 anos e fiz o primeiro voo da Ryanair low cost em 1994, entre Londres e Cork, dois portugueses no cockpit, Comandante e Copiloto. A Ryanair gostava imenso de trabalhar com portugueses e tínhamos com a Companhia uma relação muito gira. Em dezoito meses fui promovido de Copiloto a Comandante. E quem diria que se viria depois a tornar na maior companhia aérea da Europa? SETÚBAL REVISTA 19


ENTREVISTA Mas vivia na Irlanda? Não, vivia perto de Stansted, um dos aeroportos de Londres. Tinha sido acabado de construir e era na altura o aeroporto mais avançado do mundo e mais ecofriendly. Adorei viver em Inglaterra, adoro sociedades organizadas e que pensam no bem estar geral e individual, que reconhecem o nosso trabalho e nos facilitam a vida, que se preocupam verdadeiramente com os seus colaboradores. Mas não ficou na Ryanair? Acabei por mudar para a DHL, uma Companhia que me ofereceu a enorme vantagem de poder ter uma escala de serviço em que trabalhava semana sim, semana não e deste modo passar a ter mais tempo de qualidade com a família que já tinha crescido outra vez. As ausências eram menos sentidas. E depois tive um experiência giríssima a pilotar aviões mais antigos, os Boeing 727 que já não voavam em algumas partes do mundo, com uma tripulação diferente em que, para além do Comandante e do Copiloto, ainda fazia parte um Flight Engineer… Isto sem falar das cargas que transportávamos, algumas muito particulares… Lembra-se de alguma em especial? Cavalos de corrida! Descolávamos de manhã em Shanon, na Irlanda, com um cavalo e 3 horas depois aterrávamos na Europa Continental onde passava o dia a treinar ou em competição e depois voltávamos a transportá-lo de volta a casa para poder dormir na sua boxe. Eram uma carga muito valiosa, faziam-se 50 a 60 milhões de euros em apostas, worldwide. Tínhamos algumas preocupações no transporte, nomeadamente o voo era sempre operado por um Comandante Instrutor e um Copiloto Sénior, treinados em técnicas de descolagem, subida e descida. Uma aterragem em que se penalizava a performance do avião e o consumo de combustível em detrimento da suavidade e conforto deste passageiro diferente. Um dia, a meteorologia no aeroporto de destino estava péssima, com ventos cruzados e muita turbulência e a pista era curta. Atendendo à natureza da carga sugeri que o voo fosse divergido para outro aeroporto com melhores condições. Fui informado que o fretador não tinha aceite a minha sugestão. A aterragem foi mais firme e como consequência o cavalo sentou-se. Enorme problema, parece que um cavalo de corrida não se senta! Passados 15 minutos estava ao telefone com o 20 SETÚBAL REVISTA


americano, o proprietário do animal, ele aos gritos.. Dizia que o cavalo ia ter que parar cerca de seis meses para ser recuperado psicologicamente, wooops… Foi aberto um processo pela companhia de seguros e fui ouvido por uma espécie de Julgado de Paz e acabaram por dar razão à DHL, devido às condições atmosféricas. O proprietário do cavalo deveria ter aceite a sugestão do Comandante. E qual foi a pessoa mais importante que já levou no seu avião? Vai-se rir, mas para mim foi o João Cabeçadas o maior navegador português depois do Vasco da Gama e que faz parte da tripulação do Alinghi, vencedor da America’s Cup. O João já participou em três regatas à volta do mundo e ganhou duas vezes. É uma pessoa incrível. Quando está em Setúbal pode sempre encontrá-lo a fazer kitesurf aqui no Sado. É claro que já transportei muitas pessoas famosas e amigos. O Primeiro Ministro, deputados, a Seleção de Futebol, pilotos de Fórmula 1, artistas. A nossa Presidente da Câmara,

O ensino da Aviação Comercial em Portugal evoluiu imenso, passou a ser muito mais profissionalizado e já não existe a necessidade de se ir para o estrangeiro tirar o brevet

a Maria das Dores num voo com algum simbolismo: a Presidente da Câmara de Setúbal, com um Comandante de Setúbal, num avião batizado Setúbal. Qual foi avião que mais gostou de pilotar? E qual aquele que gostaria mas que não teve ainda oportunidade? Foi o Boeing 727, um avião extraordinário, um dinossauro da aviação, o segundo avião a jato construído pela Boeing. O que gostaria? O Dakota DC3, um avião de passageiros do tempo da Segunda Grande Guerra. Tenho um projeto, já em andamento, de alugar este avião nos EUA e levar como passageiras a minha mulher e as minhas duas filhas… E claro, um Copiloto com experiência neste tipo de avião. Um piloto fardado transmite um charme inegável e ocupa um espaço absolutamente especial no nosso imaginário. É muito assediado? Risos. Tem imensa experiência, já voou milhares de horas, alguma vez teve que fazer uma aterragem de emergência? Já, uma vez. Descolei em Londres Gatwick e tive uma falha de motor, fiquei com apenas um operacional, ía com 160 pessoas a bordo. Tive que voltar para trás, saiba que durante a vida profissional, 70% dos pilotos terminam as suas carreiras sem nunca terem experimentado uma situação do género. O público em geral tem mais receio da aterragem, mas na verdade a parte mais crítica do voo é a descolagem, a situação em que o avião vai mais pesado, pelas toneladas de combustível que leva a bordo, por isso, a avaria mais temida pelo Piloto é a falha de um motor nesta fase, pior só falharem os dois motores, como aconteceu com o avião do Comandante Scully em Nova York, que fez aquela aterragem forçada no rio Hudson, em 2009. Depois do 11 de Setembro as regras de segurança na aviação mudaram imenso… Sem dúvida. E a segurança sempre se constituiu como um das áreas mais importantes da vida de um piloto, não nos limitamos a ligar botões, a mexer na manche, a cumprir rotas... O 11 de Setembro veio mudar muita coisa, inclusivé a relação com o passageiro, foi preciso acalmar os ânimos e a determinada altura quando um de nós saía do cockpit fechava-se tudo atrás para que ninguém pudesse lá entrar… Hoje em dia já se mudou esse mindset, o perigo pode não ter SETÚBAL REVISTA 21


ENTREVISTA obrigatoriamente origem nos passageiros, já houve casos infelizmente em que o piloto se constituiu como a fonte dos problemas, como o caso da Germanwings em 2015 em que o Copiloto chocou o Airbus A320 contra os Alpes causando a morte de todos a bordo. Qual é o país que controla maior espaço aéreo e qual o que mais importância tem tido a nível da aviação mundial? Penso que são os EUA, mas a zona terminal mais movimentada do mundo é Londres, com quatro Aeroportos Internacionais. Tenho uma grande admiração pelos Controladores Aéreos de Londres, são muito competentes . E Portugal? Qual tem sido o nosso papel na contribuição da evolução e qualidade da aviação? Os passageiros nacionais e internacionais sentem-se seguros

Debati-me para que os Pilotos femininos tivessem mais lugar na Companhia

a voar nas nossa linhas e a frequentar os nossos aeroportos? Bem, aí entramos numa área que daria para escrever um livro (risos), mas resumindo, posso-lhe dizer que o grupo TAP está em quinto lugar no ranking das companhias mais seguras do mundo. No entanto um passageiro pode partir uma perna num dia de temporal no Aeroporto de Lisboa porque chove lá dentro. Como é que foi parar à Portugália? Depois da DHL ainda voltei mais 3 anos para a Ryanair, mas com as miúdas a crescer e a entrar na adolescência, sentimos que era importante eu voltar a estar em Portugal, até porque a minha mulher, que é advogada, também tinha a própria carreira para gerir. Foi uma decisão pensada, a melhor decisão familiarmente falando. Já estou na Portugália há catorze anos e já passei por várias fases em termos de carreira. É uma companhia familiar, que me cativou, conhecemo-nos bem uns aos outros, conheço os meus colegas todos pelo nome, conheço os nome dos filhos… Teve cargos diferentes na Companhia.. Sim, já fui Instrutor, Examinador, Chefe de Frota, Piloto Chefe e Diretor de Operações de Voo. A minha experiência internacional foi rapidamente reconhecida pela Companhia, mas tive que conquistar o respeito dos meus colegas. No nosso país o establishment exige ainda que as promoções não sejam atribuídas pelo mérito da pessoa, mas sim pela antiguidade… Um ano depois da minha chegada já era Instrutor e passados dezoito meses, Examinador. Todos nós, para voarmos, de seis em seis meses passamos pelo simulador, temos que provar que somos proficientes aos comandos de um avião e existe sempre um Examinador reconhecido pela Autoridade Aeronáutica. Atualmente um simulador apresenta um realismo incrível, quase a 100%. Mas não são as únicas provas que temos que prestar, a nível médico também existem regras muito restritas, por exemplo a partir do momento em que completamos sessenta anos, vamos aos testes duas vezes por ano. E aos sessenta e cinco perdemos a licença para pilotar voos comerciais. Ainda é Diretor de Operações de Voo? Há dois anos demiti-me do cargo de Diretor, tinha chegado a um ponto de pré-burnout, dormia com um caderninho ao lado da cama e acordava para tomar nota das minhas preocupações… Como Piloto Chefe e Chefe de Frota fui responsável

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pelo fase out da frota anterior e a fase in da nova.. Em 2017 ganhamos o prémio de Best Airline of the Year. Foi a cereja no topo do bolo. Agora voltei a ser apenas Comandante e adoro voar. É claro que não me deixei de preocupar com os problemas da Portugália e acompanho com muita atenção o desenrolar da situação, com a pandemia as dificuldades agravaram-se.. Qual o conselho que gostaria de deixar a alguém que queira seguir uma carreira na aviação? Diria que é difícil para um piloto hoje em dia encontrar emprego? O ensino da Aviação Comercial em Portugal evoluiu imenso, passou a ser muito mais profissionalizado e já não existe a necessidade de se ir para o estrangeiro tirar o brevet, o país tem várias academias até porque a meteorologia aqui é excelente, um fator a se ter em consideração nesta área. Agora, com a pandemia, aconselharia evitar pensar-se em aviação, vivemos tempos muito difíceis, a formação é dispendiosa e estima-se que neste momento hajam cerca de 150 000 pilotos desempregados worldwide e as previsões não são nada encorajantes. Sei que se preocupava com o papel das mulheres na aviação enquanto esteve numa posição de chefia… Sou um homem que vive rodeado de mulheres (risos), mulher e duas filhas... Sim, debati-me para que o número de quotas aumentasse, ou pelo menos, para que os Pilotos femininos tivessem mais lugar. Foi difícil porque a partir do momento em que ficam grávidas têm imediatamente de deixar de voar e é necessário substituí-las, o que cria alguns constrangimentos na companhia. Consegui a aprovação, a reboque do projeto da Assembleia da República da discussão das quotas de paridade para aumentar o quadro de mulheres Piloto na Portugália, passamos de 3 para 12. Pode parecer pouco, em termos de valor absoluto, mas quadrupliquei o número existente. Foi um projeto muito giro e muito gratificante. Qual é a situação da Portugália neste momento em que pelo mundo fora, com a pandemia, os aviões se encontram de forma geral, a funcionar a meio gás? O que acha que vai acontecer? Como a Portugália opera a frota mais pequena da TAP, neste momento encontra-se a 100%, mas com uma ocupação na ordem dos 60%. Os indicadores são preocupantes, sendo a procura muito inferior ao estimado para esta fase da retoma.

Fiz o primeiro voo da Ryanair low cost em 1994

Usando aquela famosa frase do futebol “prognósticos só no fim do jogo”, se calhar talvez essa seja a melhor resposta para a sua pergunta. Durante a Pandemia fez alguns voos especiais? Não. Os aviões da Portugália são limi-

tados em capacidade de carga. Sei que a Companhia esteve envolvida num projeto de carga na cabine, mas o retorno não compensava, por outro lado toda a carga associada à pandemia tem muito volume apesar de ser pouco pesada, excetuando claro o material mecânico médico. Quando não está a voar como costuma gastar o seu tempo? Gosto imenso de cozinhar e cada vez mais tenho cuidados com a alimentação. Cozinho de tudo, ainda estou para provar um arroz de pato melhor que o meu (risos). Também gosto muito de fazer doces conventuais, como as Fatias de Tomar. Tenho até uma panela própria e especial para os fazer (risos). Continuação de bons voos Comandante! SETÚBAL REVISTA 23


SER PORTUGAL- BRASIL

SÓIRA SOLEDADE DOS ANJOS CELESTINO Correspondente no Brasil da revista SER

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ano de 2020, que segundo o calendário chinês é o ano do rato, trouxe consigo um vírus que nos apanhou a todos de surpresa. Subitamente, a nossa liberdade foi tolhida, assim como um número crescente de vidas brasileiras. Um cenário como este, faz-nos compreender a finitude de nossa existência, ao mesmo tempo que nos obriga

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O novo normal no Brasil anormal à adaptação diante de tão grande desafio. A conclusão é que somente sobreviverão a este momento aqueles que forem os mais fortes e adaptáveis, como veremos nos pontos explorados a seguir, a partir das mais variadas percepções. Desde o final de março, os brasileiros foram obrigados a permanecer em casa, com saídas restritas, para o atendimento de necessidades básicas, obrigados ao

uso de máscara e álcool para higienização. Tal medida ensejou na adoção de mudanças drásticas e urgentes em todos os aspectos das relações humanas, sendo algumas, provavelmente, de caráter permanente e contemplando todas as faixas etárias. As relações familiares foram as primeiras a serem impactadas e testadas. As dinâmicas profissionais, principalmente nos grandes centros urbanos, não propiciam a possibilidade de maior convívio social e familiar. Uma das grandes mudanças mundiais. Segundo a secretaria nacional da família, Ângela Vidal Gandra da Silva Martins “a COVID nos tirou da esfera individual para o social e como seres humanos crescemos em solidariedade. Ainda que em decorrência do maior convívio familiar o número de denúncias de violência doméstica tenha aumentado, por outro lado, observou-se uma aproximação relevante nas famílias, mais solidariedade intergeracional, maior oportunidade de acompanhamento do estudo dos filhos, além da descoberta da compatibilidade e produtividade do home office” . E quando o assunto são as Artes, em suas mais variadas formas de expressão, os impactos da covid foram expressivos e muito desajustados. Como curadora de inúmeras exposições no Brasil, Tereza de Arruda, residente na Alemanha e proprietária da T.A. Arts Project, traçou um paralelo sobre as medidas adotadas no Brasil e na Europa. No contexto da arte contemporânea, os museus, instituições e galerias de arte fecharam suas portas no Brasil e no mundo em meados de março. Em muitos países europeus, onde a cultura e arte são considerados como itens essenciais, as atividades nestas dependências culturais foram retomadas em meados de maio. De cos-


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tume, nestes locais não é permitido tocar nos objetos expostos, há usualmente um percurso pré-elaborado de circulação dependendo da curadoria ou foco específico das exposições. Além disso, estes locais sempre são visitados por uma quantidade mais limitada de pessoas, com exceção de mostras temporárias concorridas. A retomada das atividades na Europa foi acompanhada de agendamento virtual tendo assim automaticamente um maior controle de visitantes, uso de máscara e disponibilidade de álcool gel em todas as dependências dos espaços culturais. O público se adaptou rapidamente a estas medidas e passou a desfrutar muito mais da visita às exposições com um caráter ainda mais de apreciação. No Brasil, somente seis meses após fechamento dos estabelecimentos institucionais, temos no momento as primeiras aberturas de museus. Percebe-se logo que a ordem de importância é distinta à utilizada na Europa, onde primeiramente se abriram os museus e não os shopping centers. Ainda dentro da área das Artes

A economia global, devido à pandemia, tem sofrido um impacto econômico maior do que a crise de 2008, segundo o secretário-geral da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), Ángel Gurría

parece-me importante referir exeplos de artistas que veem suas vidas suspensas, como é o caso de Michel Moe Pereira, músico, professor, compositor, técnico de áudio e gravação, que teve seus eventos e música ao vivo cancelados. As lives foram uma alternativa para manter a divulgação de seu trabalho. As aulas passaram a ser todas online e aos poucos tem voltado a ser presencial. Um exemplo de empreendedorismo e adaptação à mudança. Durante a pandemia, este músico aproveitou ainda para trabalhar com a gravação do seu projeto pessoal, o Atomic Lab e aprimorar sua estrutura e conhecimento, o que tem ficado cada vez mais difícil, uma vez que a entrada de dinheiro é rara e tudo ficou mais caro no Brasil. Mas não é só nas Artes que sentimos mudança, em todas as esferas da vida e da vida cultural. Outra área problemática centra-se no mercado literário que está saturado, nas livrarias e nas editoras, que estão fechando as portas. Ser escritor é um desafio hercúleo. O baixo investimento no fomento à leitura seja por entidades privadas ou governamentais, as dificuldades de acesso aos livros ou mesmo a falta de estímulo, tornaram o Brasil uma nação que pouco lê. As diferenças em relação à pandemia se deram em função de um número maior de lives que como os eventos de lançamentos físicos, tão pouco rendem a atenção e vendas necessárias. As redes sociais, como anteriormente à pandemia, continuam sendo utilizadas como ferramenta de divulgação. Os ebooks, com custo menor e preço de venda mais acessível, têm sido uma alternativa de produção. Mas lembre-se que o acesso à internet e a falta de dinheiro seguem sendo problemas mesmo nesta tentativa. Ao questionar a escritora Simone O. Marques, que possui uma vasta publicação sobre o novo normal, obtive como resposta: "Eu não consigo perceber o novo normal, porque, para mim, tudo continua igual. A única diferença na minha vida é que passarei a desconfiar mais das pessoas que cruzarão meu caminho. O novo normal só expôs o antigo egoísmo do ser humano, nada de realmente novo no front. Só tentarei lutar para não deixar minhas histórias mais amargas. " Na realidade brasileira, não são somente as livrarias e editoras que estão fechando as portas. Com a manutenção da abertura dos comércios para atender os itens de primeira necessidade, aqueles que não dispunham de capital, tiveram que cerrar mais do que temporariamente suas portas, mas, em definitivo, suas atividades. Outros tiveram que se reinventar SETÚBAL REVISTA 25


e buscar formas alternativas de vendas. O e-commerce ganhou mais adeptos, grupos de whatsapp foram criados como forma de divulgação e venda de produtos e a prestação de serviços de entrega obteve uma demanda expressiva. As formas de divulgar, comercializar, vender e prestar serviços ganharam novos contornos e tais mudanças comportamentais poderão ser permanentes em alguns casos. Medidas governamentais, apoio de associações, entidades de classe e de profissionais capacitados, a obtenção de créditos de Capital de giro com a pactuação de juros adequados à atual conjuntura, são algumas das ações necessárias para evitar uma recessão. Nos últimos anos, a redução das taxas de juros é uma das principais transformações do mercado financeiro brasileiro. Sob a ótica de André Massaro, autor e professor de finanças, os temores de recessão profunda em meio à pandemia da COVID-19, aceleraram a queda dos juros, que hoje estão em 2%, algo inédito por ser anormalmente abaixo dos padrões brasileiros. O efeito mais visível é a euforia nas bolsas de valores a despeito do que acontece na chamada “economia real”. Contrariando as expectativas de fuga de investidores individuais, o que se observou foi um aumento expressivo neste período, nos aproximando de 3 milhões de investidores individuais. Inúmeros brasileiros estão migrando suas economias para a bolsa de valores conseguindo recuperar parte significativa das perdas ocorridas no início da pandemia. O que chama a atenção nesta mudança de comportamento é o fato de que uma grande quantidade de brasileiros que enfrentam os desafios da economia real (como fechamento de empresas, desempregos ou sua perspectiva) invistam suas parcas economias em mercados de risco como a bolsa de valores. Para aqueles que analisam a economia brasileira, fica clara a impressão de que o mercado financeiro e a economia real estão completamente “fora de sintonia”. Isto porque enquanto a economia real sofre de forma acentuada os efeitos da pandemia e das medidas de distanciamento social, sem qualquer perspectiva concreta de recuperação, o mercado financeiro age “como se nada tivesse acontecido”. De qualquer forma, o que se espera é que as taxas de juros tenham caído em definitivo e não apenas como uma medida emergencial e temporária. O Brasil conseguiria, enfim, apagar os resquícios da era de hiper inflação. Análises mais aprofundadas e orienta26 SETÚBAL REVISTA

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ções financeiras podem ser obtidas no site www.andremassaro.com.br. O cenário de tantas incertezas enfatiza quão necessários são os profissionais de contabilidade e finanças para auxiliar nas tomadas de decisões e continuidade dos negócios empresariais. Marco Aurélio Silva, sócio-diretor da PP&C, relata que para pedir apoio e orientação para a aplicação correta dos diversos dispositivos jurídicos e medidas governamentais publicados durante a pandemia, orientações empresariais sobre projetos de continuidade ou simplesmente para ouvir o desabafo dos empresários castigados durante este período e que necessitam de suporte, o escritório

passou a receber contatos diários em todos as áreas. Além de ter uma demanda de mais horas de trabalho, os colaboradores tiveram que ser treinados e orientados para a aplicação prática de todas estas mudanças. Os escritórios adotaram o home office, o que foi possível devido à aquisição de tecnologias e equipamentos exigidos pela revolução digital e inovações disruptivas, inclusivé no que tange aos aspectos comportamentais, amplamente patrocinados pela firma. Os empregos foram mantidos e foram necessárias novas contratações. Como resultado, a continuidade e qualidade da prestação de serviços foi mantida sem aumento de custo para o cliente e dentro do modelo de home offi-


ce, que apresentou resultados positivos e bem estar social para todos, devendo ser adotado futuramente como forma de trabalho mista. A economia global, devido à pandemia, tem sofrido um impacto econômico maior do que a crise de 2008, segundo o secretário-geral da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), Ángel Gurría. Rita Campagnoli, CEO da DAHLL International e Presidente do Conselho Deliberativo da CECIEx, enxerga que o Brasil tem um grande potencial de crescimento no mercado globalizado. No entanto, as empresas terão de rever suas estratégias de suprimento, gestão de riscos e planos de contingência, ten-

do em vista as rupturas em cadeias de valor globais. Deverão reavaliar a perda do poder aquisitivo de seu mercado que levará à redução da capacidade de produção e consumo. O comércio exterior, em especial para o Brasil, representa um mecanismo essencial para promover o crescimento económico e a competitividade da indústria. Infelizmente, a indústria brasileira ainda é pouco arrojada quando se trata de internacionalização. Nossa balança comercial se mantém positiva graças a uma crescente concentração da pauta exportadora em commodities, em especial o agronegócio, frustrando eventuais esforços de diversificação. A indústria brasileira precisa exportar pro-

dutos de maior valor agregado e não só produtos in natura. A participação do Brasil no comércio mundial representa apenas 1,2%. Tais dificuldades, nesse momento, agravam-se ainda mais com um ambiente internacional mais propenso à imposição de restrições aos fluxos de comércio e ao investimento direto estrangeiro. A atração de investimento estrangeiro direto para o Brasil se faz ainda mais necessária, tendo em vista o déficit de infraestrutura bastante expressivo. Dentre as muitas reflexões e pesares na pandemia, nada se compara à dor em si causada pela enfermidade. Particularmente, permaneci em oração por pessoas muito queridas que foram detectadas com COVID. Perdemos um amigo da minha família que era muito amado por todos, o Sr. Adolfo. Para ele e todos os falecidos registro aqui minha homenagem. Por mais que desafios tenham se apresentado durante a pandemia nenhum deles supera o das pessoas que estiveram à frente na batalha para salvar os enfermos e a si mesmo. Encerro este artigo, com as palavras do Dr. Flávio Medeiros Jr., médico e escritor, para reflexão dos caros leitores. “Muito se fala sobre um suposto “novo normal”. Em medicina, entretanto, aprendemos que curas verdadeiras só acontecem quando se trabalha nas causas, não nos efeitos. Numa infecção bacteriana respiratória, por exemplo, a medicação que combate a dor e a febre trazem bem estar ao paciente, mas são paliativos. A doença só se combate definitivamente com antibióticos, que matam o agente causador. Nessa pandemia, vi muitas medidas paliativas, com vistas a tentar diminuir os efeitos socioeconômicos, muitas delas controversas até hoje, o que é natural considerando o pouco conhecimento alcançado sobre essa doença nova. No entanto, quando vejo autoridades desviando dinheiro que deveria ir para a compra de respiradores, e, vejo comerciantes aumentando seus preços para se aproveitarem da necessidade e do temor da população, quando vejo oportunismo de sobra e tão pouca bondade verdadeira, quando muitas palavras de solidariedade acabam se revelando como discursos que atendem a outros objetivos ocultos, concluo: tirando uma e outra mudanças pontuais de hábitos, sobretudo nos cuidados higiênicos, não haverá um “novo normal” que impacte a sociedade; porque o ser humano, passada a crise externa, na intimidade de seu ser, continua sendo o mesmo de antes.” SETÚBAL REVISTA 27


CONSULTÓRIO JURÍDICO

NUNO CASTRO LUIS Advogado

N DIREITOS RESERVADOS

os últimos tempos fala-se da esperada vacina para a COVID-19 como se toda a nossa vida dependesse do seu aparecimento. A economia, a vida social, as relações pessoais e familiares, a forma de estar nas escolas e locais de trabalho, tudo parece estar modificado e suspenso à espera de resultados da investigação

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A vacina, o interesse público e o carrinho de compras médico-laboratorial. Imaginemos que a referida vacina, provinda da China, da Grã-Bretanha, dos E.U.A ou até de Cantanhede (como ultimamente foi noticiado), aparece e se torna de distribuição generalizada. Seremos nós obrigados a tomá-la? Não é propriamente sobre a obrigatoriedade da vacina que pretendo incidir este pequeno texto, ainda que também disso

vá falar, mas antes do interesse público. O que é o interesse público? Quais as suas necessidades e qual a nossa intervenção na sua defesa? Deixem-me contar uma história antes de continuar a falar de interesse público. No outro dia, num fim de semana, desloquei-me a um supermercado, no concelho de Setúbal, e quando cheguei ao local que indicava “carrinhos de compras higieniza-


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dos”, não havia nenhum disponível. Chamei um funcionário que me sugeriu que fosse buscar um carrinho de compras ao parque de estacionamento, onde deixara o meu automóvel. Surpreendido perguntei-lhe se esses carrinhos também estavam higienizados. Respondeu-me que não, que ao fim de semana não havia tempo para “isso”. Recusei, pedi para chamar a gerente de loja e foi-me facultado um carrinho de compras desinfetado à minha frente; mas, enquanto esperava, várias pessoas passaram por mim com carrinhos trazidos do tal local no parque de estacionamento. E o que tem isto a ver com interesse público? Todos temos uma noção aproximada. Aquilo que é de todos e que a todos afeta pode, em alguns momentos, sobrepor-se ao que é de um só. O interesse público será, pois, o que nos permite, enquanto sociedade, salvaguardar-nos de uma mera lei do mais forte, é a preocupação com o todo e a sua defesa, ainda que, de alguma forma, possa prejudicar o interesse de um

determinado particular. É o interesse de todos que nos leva a não fazer barulho a partir de uma determinada hora, por sabermos que o todo

De que forma é que poderemos, até haver uma solução com mais garantias, proteger o que é de cada um e o que é de todos?

precisa do seu descanso. É o nosso respeito pelo interesse público que nos pode levar a admitir que, em certas ocasiões, ainda que nos apeteça descansar, uma iniciativa que ocorre no espaço público possa ser admitida e levar a que haja mais barulho do que o que é normal, pois o todo sobrepõe-se ao meu interesse particular. A salvaguarda do interesse público tem, porém, limites. O interesse particular não pode ser afetado de forma desproporcionada e excessivamente limitadora que quase o anule. Veja-se o que acontece com os nossos direitos fundamentais individuais. O artigo 18º, nº2, da Constituição da República Portuguesa é muito explícito quando refere que a lei só pode restringir os direitos fundamentais nos casos expressamente previstos na própria Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros interesses constitucionalmente protegidos. Se alguém é obrigado a levar uma vacina, uma parte da sua liberdade e disposição sobre o seu corpo está a ser limitada, mas o interesse público, no caso concreto densificado na saúde pública, está a ser defendido, não se prevendo motivos de proporcionalidade que o impeçam. Aliás, esta situação nada tem de inovador, porquanto já existem, atualmente, algumas vacinas que são de toma obrigatória. Voltemos ao tema que é aqui relevante: o interesse público. Se, ainda que não de forma totalmente consensual, a admissão de uma vacina como obrigatória será facilmente assumida, de que forma é que o interesse público, na vertente da saúde pública, poderá ser salvaguardado até lá? De que forma é que poderemos, até haver uma solução com mais garantias, proteger o que é de cada um e o que é de todos? A resposta não será difícil. Os meios de salvaguarda e prevenção, pelo menos aqueles que cada um de nós pode usar, são sobejamente conhecidos: distanciamento, máscaras, desinfeção dos espaços e das mãos… E o que poderemos todos fazer pelo interesse público, além de abdicar da nossa livre disposição quando houver uma vacina? Exigir, exigir como ato de cidadania e salvaguarda do interesse público que todos façam a sua parte, pois esse interesse também se reflete no “isso” para que temos de ter tempo, mesmo que ao fim de semana quando se vai buscar um carrinho de compras que deve estar higienizado. SETÚBAL REVISTA 29


CRISTINA PINHO Médica Gastroenterologista / Homeopata cristinapinhomedica@gmail.com

H

á uns anos acompanhei uma amiga a uma consulta de cardiologia e o colega perguntou qual era a minha especialidade. Eu respondi que era gastroenterologista e homeopata. E o colega retorquiu: “Ah! A colega é mística!” Eu disse que sim no sentido em que pratico uma medicina que cuida do ser. Escuto as queixas do corpo e interesso-me pelo psiquismo assim como pelo desenvolvimento espiritual das pessoas que me procuram. No fim do confinamento tive uma conversa com outra colega que disse: “Eu vejo tudo isto como um crivo. Os que sentem e vibram a consciência da unidade sabem que esta é mais uma oportunidade para praticarmos a compaixão e o desapego projectando saúde, cooperação e abundância para toda a nossa vida. Os que ainda só conhecem o medo e a insegurança esperam directrizes dos meios de informação correntes e adoecem física e mentalmente que é exactamente o que lhes é proposto pela velha ordem mundial. Cada vez mais baralhados e enfraquecidos vão acordar com uma vacina e a inteligência artificial a controlar a sua existência. E não vão perceber. O que até é bom porque assim sofrem pouco ou mesmo nada.” Há três semanas um outro colega mandou-me um artigo superinteressante e intrigante sobre a pandemia que decorreu entre janeiro 1918 e dezembro 1920. Acaba assim: “Na realidade a doença aparece da maneira como os investigadores quiserem acreditar … que pode ser transmitida de pessoa a pessoa … mesmo que a ciência mostre claramente o contrário.” (1). Nos últimos dias temos assistido a um extremar de posições sobre o que é realmente verdade sobre a situação Covid 19. 30 SETÚBAL REVISTA

O feitiço SarsCov2 DIREITOS RESERVADOS

SAÚDE


Esta é uma época revolucionária (Mística? Filtro? Crença? Guerra?) que convida ao autoconhecimento e à expressão da essência humana. Somos convidados a escutar cada uma das teorias deste imbróglio mundial com um coração aberto e amoroso e a decidir: “Eu quero ir por aqui e aceito as consequências da minha escolha.” Mesmo não sendo político, aparentemente estes são os únicos que parecem ditar soluções, não permita que definam a sua maneira de viver esta aventura. Informe-se com as fontes em quem mais confia e que lhe parecem mais sensatas em toda esta saga, converse com o seu coração e, serenamente, diga sim ou não à máscara, ao distanciamento social, à falta de cuidados de saúde, à devastação da economia, e perceba qual é o seu papel nesta grande batalha pela nossa huma-

nidade. Só assim saberá quem realmente é e como está disposto a viver. Nada há de certo ou errado, bom ou mau em todo este processo. É simplesmente assim. Uma escala de consciência que nos coloca exactamente onde temos que estar momento a momento. Enfeitiçados por uma história de medo, humilhação e carência ou encantados por um movimento imparável de construção de uma vida em comunhão plena com um elevado nível de unidade com a mente de DEUS. (1) https://www.greenmedinfo.com/ blog/studies-question-transmission-1918-spanish-flu (2) https://observador.pt/opiniao/ andamos-a-contar-constipacoes-ou-nem-isso/

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Somos bombardeamos com fogo cruzado. Uns dizem que o cenário é apenas político e que a maior parte dos profissionais de saúde se deixa manipular: “Porque se não houver bom senso, a nossa DGS vai continuar a contribuir de forma criminosa para o aumento da doença e da morte pública.” (2). Outros dizem que a situação é muito grave e que temos que nos preparar para uma segunda vaga sem nos terem mostrado a primeira. Uma facção com cada vez mais adeptos quer proteger a população com medidas que lhe fortalecem a saúde de maneira a não estarem frágeis perante seja qual for o cenário.

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CULTURA

Manuel Pedro Marques ISABEL OLIVEIRA MARQUES Poema Sobre Imagens

Dois olhares sobre...

"O lugar onde a fotografia e as palavras se encontram.

UM ABRAÇO CONSENTIDO Abraça-me Verão na despedida sem fazer perguntas indiscretas que neste mundo virado do avesso nem eu nem ninguém te dará respostas certas Abraça-me Verão na incerteza de voltar a SENTIR a água morna do meu sul as luas deslumbrantes a transparência tépida das águas da Arrábida (meus dois amores que a generosa natureza me ofereceu) Hoje há caminhos que não vejo onde tropeço tonta de lembranças caminhos que agora desconheço cara tapada olhos embaciados ouvido confuso ausentes os sorrisos 32 SETÚBAL REVISTA


abraça-me Verão abraça-me Verão mais desejado e neste resto de ti ainda morno que me aquece deixa-me acreditar que o nevoeiro pode durar muito ou pouco tempo mas é e será sempre o tempo que medeia entre dois raios de sol ao longe há-de haver uma ponte para qualquer lado...

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DESTAQUE

Setúbal está mais saudável

A FOTOS: DIREITOS RESERVADOS

Bloomy Market abre sob a batuta de Carla Neves- um restaurante/café que fazia falta, mesmo antes das pessoas que lá habitam ou passam o saberem e que resulta da sintonia perfeita entre geografia, vontade de partilha, inconformismo, paixão por alimentação saudável e know-how em decoração. Tudo alinhado em sintonia como um mapa astral. Não é assim que florescem os negócios mais bonitos?

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A FILOSOFIA Por aqui contam-se nutrientes em vez de calorias. Praticamente tudo o que se serve é feito com ingredientes frescos e naturais de origem nacional, sazonais e enquadrados na nossa tradição culinária. O convite fica, no desenrolar destas páginas: venham, escolham e partilhem cada refeição em boa companhia para que possam nutrir o corpo e alimentar a alma.

ESPÍRITO BLOOMY A Bloomy é um state of mind. Um estilo de vida. Quis morar no Mercado do Livramento e o universo fez acontecer. Onde caberia melhor um conceito que vive de alimentos frescos, da cultura simples das gentes, do apregoar de simplicidade? A Bloomy é sofisticada, porque acredi-


ta na qualidade dos produtos, charmosa porque o espaço cresceu entre plantas verdadeiras, madeiras e mármores claros, num design despretensioso, que deseja passar um ambiente moderno e global. Somos cidadãos do mundo. E ainda bem! Queremos ser dos setubalenses e de todos os que visitam o nosso país e a nossa terra bonita. Um ponto de encontro da cidade. De quem quer, de coração, tornar Setúbal um lugar ainda mais atraente. ALIMENTAR A ALMA Traduz a nossa paixão e a crença de que comer bem é uma escolha e pode ser um mantra que torna corpo e alma mais felizes. Refeições diversas, multifacetadas, numa viagem gastronómica orgânica. O DIA-A-DIA BLOOMY Aberto desde as oito da manhã, o dia começa com taças de fruta fresca com granola, aveia, panquecas de frutos secos e de frutas, bebidas vegetais e sumos naturais, claro.

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DESTAQUE Dia dentro, até às 16h as mãos das mestres cozinheiras criam pratos coloridos e saudáveis a partir dos vegetais e leguminosas numa confecção perfeccionista e carregada de alma. É hora de almoço e o menu desenrola sabores com alternativas apetitosas, que isto de ser vegetariano e vegano não é mesmo nada monótono! Ainda a experimentar são os lanches com tostas abertas e fechadas, as incontornáveis sobremesas e bolos veganos. Quem não prova, não vai saber nunca o que anda a perder. CHEIRA A PÃO GLEBA

Aqui venera-se o pão. O bom! E por isso, a Bloomy é representante oficial do pão GLEBA. De fermentação artesanal lenta e prontinho para levar para casa , todas as terças! MAIS OFERTA BLOOMY MARKET Faz falta ainda dizer que temos um linear com produtos saudáveis, selecionados com carinho, que complementam as escolhas para TAKE AWAY. E ainda os “miminhos Bloomy” confeccionados cá em casa (Biscoitos, compotas, etc. ). Falar ainda das embalagens isotérmicas exclusivas para se poder desfrutar da refeição em qualquer lugar e que a Bloomy é também um TAKE AWAY e tem SERVIÇO DE ENTREGAS Ah e por último, mas de não menos importância: somos Dog Friendly!

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CENAS DA VIDA FAMILIAR

Ser feliz JORGE SANTOS FORRETA Médico

A

felicidade que avidamente buscamos e se nos escapa entre os dedos: depende de tudo, E de tão pouco.... é o momento: a vida é feita dos pequenos grandes momentos, do amor ao próximo e do amor egoísta, dos amigos. É recordar. Vencer os medos: Ser livre e chorar com as gaivotas. Reencontrar o "Eu" apartado de nós, “Ser", dono de coisa nenhuma E ter tudo: - Pai, brincas connosco?... É simples. E tão complicado. Gosto de gente, com casca e com rugas: com sumo., Se passaram horas e o coração arranca, passou tanto e passo tanto, é a pele que te dás e os teus lábios que me tocam... Sem ti, estou perdido: contigo, mais do que me oriento, Só os teus afetos me prendem. É a tua falta que tortura. É complicado. E tudo tão simples... www.cenasdavidafamiliar.blogspot.com

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LIVROS E LEITURAS

SARA LOUREIRO Mestre em Ciências da Educação Mediadora de Leitura Produtora Cultural Co-fundadora da PLUS Academy

Ainda não chegou o homem-que-sabe-viver!

No ano da graça de 2050 a sair para o meio da rua

José de Almada Negreiros

E

m literatura a contenção não existe. As grandes utopias e as grandes distopias da literatura, aquelas que causam um estremecimento espinal, nascem desta infinita ausência de limites, das múltiplas possibilidades que a literatura oferece, da liberdade e do poder da ficção. O escritor é livre de percorrer os caminhos da sua imaginação. Contudo, ao partir para o labor literário e ao embrenhar-se na construção da sua narrativa, o escritor irá abraçar uma espécie de compromisso tácito com vista à produção de uma história coerente, que não tem que ser real, mas que tem que ter uma essência e intensidade verdadeiras, ainda que seja um fingimento, uma “mentira”. E é através desta “mentira”, desta construção, que se augura chegar à essência. (TORDO, 2020:32-33). Numa obra de ficção, tenha ou não contornos de utopia ou de distopia, a “mentira” literária que o escritor vai tecendo deverá ser sustentada, pois é isso que confere complexidade e densidade à obra e a torna verosímil aos olhos do leitor, levando-o a acreditar naquilo que não aconteceu e a senti-lo como se fosse verdadeiro (idem). “As mentiras são mais fascinantes que a verdade”, disse Umberto Eco. E o fascínio das palavras é poderem ser usadas para falar de coisas que não existem, que nunca foram vistas, mas que pré-existem na cabeça do escritor. E o que irá na cabeça do escritor, interrogamo-nos, quando se propõe escrever 38 SETÚBAL REVISTA

Carlos Almeida Mutações Fotografia, 2017 © Carlos Almeida


Carlos Almeida Mutações Fotografia, 2017 © Carlos Almeida

uma utopia ou uma distopia? E que importância têm os exercícios utópicos ou distópicos? Serão meras fantasias? Ou sinalizarão algo que importa realmente analisar? Haverá intencionalidade pedagógica subjacente a uma utopia ou a uma distopia? Poderíamos continuar a elencar outras questões relevantes. Mas podemos também, em contraponto, considerar exemplos de grandes utopias e distopias da história da literatura e sumariamente lembrar o que umas e outras nos permitiram: entrever para além da contemporaneidade (qualquer que seja) e dos antolhos, diagnosticar situações, evidenciar a barbárie, explorar contingências, desvelar o caos, apresentar cenários, novas ideias, visões e possibilidades, criar caminhos e alternativas, lançar luz, analisar e reflectir criticamente. Em suma, deixar “avisos à navegação” e inquietar. Foi assim com UTOPIA (1516), de Thomas More. Foi assim com 1984 (1949), de George Orwell. Foi assim com tantas outras utopias e distopias da história. “Quem, para além dos pássaros, sabe voar?” Esta será, porventura, a inquietação primeira suscitada pela obra PONTE PEQUIM SOBRE O TEJO, de António Oliveira e Castro. Estamos no ano da graça de 2050, em Lisboa ou na Aldeia do Canto, a sair para o meio da rua. Saímos? Mas sim, saímos! E já nada é como dantes. Esta inquietação do voo nasce de Curibeca, ou da memória de Curibeca, o avô, figura central, o fundador, que percorre o livro de lés a lés, morto, mas nunca ausente. No seio da distopia, Curibeca, o homem-pássaro, é a voz da liberdade, da justiça e do questionamento, do direito à (sua) utopia, do direito a ser singular; é aquele que vê e sente e pensa o que os outros não vêem nem sentem nem pensam. Por isso voa, voa muito. Um louco, dizem os simplistas. Di-lo também Ricardo, o neto que um dia fora o favorito. Também Salamaleque, ou a memória de Salamaleque, ou a reencarnação de Salamaleque, o cão fiel, percorre a narrativa, ligando passado e presente, interligando gerações e memórias, costurando peripécias aqui e ali, uma espécie de compère, diria, mostrando que a amizade existe e conta. Perante o leitor, e ao longo de dez capítulos, irão desfilar quatro gerações, navegantes de uma embarcação em colapso. A narrativa desenrola-se entre Lisboa e a Aldeia do Canto (onde quer que seja), ao longo de dez dias, correspondendo a dez capítulos, havendo um capítulo antes do primeiro, digamos que um prólogo, um SETÚBAL REVISTA 39


LIVROS E LEITURAS

Lisboa, cidade imunda e em destroços, há muito cercada por uma alta muralha protectora, à semelhança de outras cidades costeiras, igualmente ameaçadas pela subida incessante das águas do mar, está a braços com terríveis pragas ameaçadoras

dia zero e um capítulo depois do último, um epílogo. No dia zero e no capítulo depois do último, abrindo e encerrando a narrativa e cumprindo um ciclo de vida, numa antevisão do princípio do fim, o protagonista é Belchyor, filho de Ricardo, um jovem da quarta geração que, vitimado pela guerra e pela insanidade dos homens que a movem, se tornaria um milagre da ciência, da técnica e da arte, “(...) uma farsa demasiado moderna” (CASTRO, 2020:318), um resquício de Homem num mundo em agonia, um símbolo do degredo entre o ser e o nada ser, mas também um sonhador, um herói, alguém que ousa escolher o seu destino, não pactuando com a ordem estabelecida, nem com a história que o envergonha. Talvez a reencarnação de Curibeca, seu bisavô, o homem primordial, a primeira geração: “(...) herdara a sensibilidade, para não dizer a loucura, do bisavô: ‘Sou um pássaro, as asas dos livros libertam-me 40 SETÚBAL REVISTA

Carlos Almeida Mutações Fotografia, 2017 © Carlos Almeida

(...)’.” (CASTRO, 2020:220). Em “A Parábola”, José de Almada Negreiros anuncia: “(...)Vae acontecer qualquer coisa – os que passam vão mais depressa, os outros já estão à espreita. (...) Ainda não chegou o homem-que sabe-viver! As duas grandes alas da humanidade querem ver com os olhos da cara o homem-que-sabe-viver!” (NEGREIROS, 1921:22). É o que também anuncia PONTE PEQUIM SOBRE O TEJO. A iminência do cataclismo está sempre lá. Alguma coisa se prenuncia. Alguma coisa vai acontecer: “Curibeca, um dos cidadãos da aldeia, dizia a quem o quisesse ouvir: mais do que medo da rebelião dos homens, temo a

revolta dos elementos, e, acima de tudo, o silêncio da água que bebemos.” (CASTRO, 2020:20).” No livro, até os topónimos que António Oliveira e Castro usa funcionam como índices, como presságios: a aldeia onde decorrerá grande parte da narrativa é a “Aldeia do Canto” (sendo que Canto é também o próprio apelido da família), a casa da aldeia é conhecida por “Casa Velha”, sita numa rua que tem por designação “Rua das Lágrimas na Boca”. E assim se tece a acção. Depois de sucessivas e descontroladas vagas de “abertura” e “metamorfose”, Portugal surge, por um lado, esquartejado, descaracterizado e dividido entre


chineses, angolanos, russos e sauditas, numa espécie de colonização servindo interesses vários; por outro lado, surge transbordante de refugiados e imigrantes, é assaltado por gangues e por corruptos, vê monumentos emblemáticos serem transformados em casinos, a contrapartida para a construção, pelos chineses, de uma nova travessia sobre o Tejo, “Ponte Pequim sobre o Tejo”; por outro lado, ainda e concomitantemente, o país torna-se palco de confrontos religiosos, do aparecimento de seitas, de intolerâncias várias e perseguições; vive-se uma crise ambiental sem precedentes, com níveis extremos de poluição e céus permanentemente toldados, ar irrespirável, desflorestação, carência de água, fogos incessantes, desertos que avançam, terras improdutivas e ao abandono, temperaturas extraordinariamente elevadas, rios que deixam de correr, degradação generalizada das condições e da qualidade de vida dos seus habitantes, que têm medo, muito medo, um medo que começa de manhã: “(...) tudo começa de manhã, o caos e a ilusão da certeza, a solidão e a tristeza (...) até o beijo e o ódio que expulsamos da boca.” (CASTRO, 2020:251). Em PONTE PEQUIM SOBRE O TEJO, a acutilância dos cenários criados por António Oliveira e Castro convive com a beleza e o despojamento da escrita poética, da poesia - qual “oráculo da palavra” - recorrente ao logo da obra, quer pelas múltiplas referências que lhe são feitas e pelo impacto da poesia em algumas das personagens, quer pelos poemas com que o autor brinda o leitor, constituindo-se como momentos de verdadeiro apaziguamento no seio do caos. Em PONTE PEQUIM SOBRE O TEJO a contenção não existe. Espera-se o pior. E o pior acontece. O autor não poupa na apresentação dos cenários apocalípticos, inquietando persistentemente o leitor, quer com a dimensão dos problemas ambientais que põe em evidência, quer com a demonstração da falta de ética e de hombridade, de solidariedade, de compreensão e de respeito pela pessoa humana, pela natureza, pela vida, pelo direito a sonhar o futuro e a permanecer. Em 2050, como hoje, persistem as guerras, religiosas ou outras, os extermínios, o fanatismo e os fundamentalismos, as grandes migrações, as crises de refugiados, tudo isto em simultâneo com a fúria dos elementos e uma sucessão de catástrofes ecológicas encadeadas: “(...) as ondas de calor e a violência das tempestades vinham tor-

Depois de sucessivas e descontroladas vagas de “abertura” e “metamorfose”, Portugal surge esquartejado, descaracterizado e dividido entre chineses, angolanos, russos e sauditas, numa espécie de colonização servindo interesses vários

nando extensas regiões do planeta inabitáveis, levando populações inteiras, um pouco por todo o mundo, a fugir do sol. E à procura da água que faltava desesperadamente.” (CASTRO, 2020:66). Saberão os homens encontrar outros caminhos, criar outras narrativas, outras formas de ser, de estar, de fazer, de viver, de desenhar o futuro, que não os urdidos por António Oliveira e Castro? A resposta deveria ser sim. A história diz-nos que o Homem pouco tem aprendido com a história que tem feito. Será o Homem capaz de cultivar a esperança no futuro e de se bater por ele? Haverá inquietação maior do que esta? A narrativa vai sendo tecida em torno do reencontro de dois irmãos, Mafalda e Ricardo, protagonista e antagonista, netos de Curibeca e representantes da terceira geração, unidos num derradeiro esforço para encontrar os pais desaparecidos - segunda geração - e, entretanto,

convertidos ao islão. Mafalda e Ricardo não são próximos nem partilham os mesmos pontos de vista. Antagonizam-se frequentemente. Expõem e esgrimem as suas diferenças. Continuam, ambos, irremediavelmente ligados à memória de Curibeca, o avô, ainda que de forma completamente diferente. Ela, reconhecida. Ele, relutante. Ela, sempre sonhadora. Ele, sempre calculista. Na memória de ambos, as palavras indeléveis de Curibeca, o avô: “O homem, antes de pão, precisa de sonho.” (CASTRO, 2020:224). À medida que a narrativa avança, avança o caos e a destruição. O mundo torna-se mais pequeno; a loucura e a guerra, maiores. Lisboa, cidade imunda e em destroços, há muito cercada por uma alta muralha protectora, à semelhança de outras cidades costeiras, igualmente ameaçadas pela subida incessante das águas do mar, está a braços com terríveis pragas ameaçadoras, numa muito provável alusão ao universo bíblico e à narrativa das “Dez Pragas do Egipto”, contada no Livro do Êxodo. “Vae acontecer qualquer coisa”. Será, este, o início da descida aos infernos? Um icebergue dirige-se, entretanto, em direcção ao estuário do Tejo. “Ó Deus antigo do Testamento Velho e do Novo, do Alcorão e dos que acreditam na alma das pequenas e das grandes coisas; (...) Deus das palavras de antes e de depois do silêncio, do amor a reis e a generais, esquecido dos demais; (...) Deus (...) dos vivos e dos mortos, dos órfãos e das viúvas, dos famintos e dos obesos (...); Deus vingativo e genocida (...); Deus dos pecadores e dos inocentes (...); Deus da ciência e da ignorância(...); Deus dos crentes e dos ateus, da mentira e da verdade (...); Deus do preconceito das raças (...); Deus do nada e de si próprio (...); (...) é preciso mais coragem para aceitar viver, ó Deus, que acreditar em ti; (...) deixa-me, esta noite, dormir em paz. Ámen.” (CASTRO, 2020:169-171). Há orações que vão passando de geração em geração. Consta que será o caso. Referências: CASTRO, António Oliveira e. PONTE PEQUIM SOBRE O TEJO. Gradiva. Lisboa. 2020 NEGREIROS, José de Almada. A INVENÇÃO do DIA CLARO. Assírio e Alvim. Lisboa 2005 TORDO, João. Manual de sobrevivência de um escritor. Companhia das Letras. Lisboa. 2020 SETÚBAL REVISTA 41



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