Setúbal Revista Nr. 22

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Revista Bimensal | N.º 22 - II Série - 4º Ano Junho / Julho 2020

Luto com(sem) finado

PELO MUNDO FORA...

QUATRO HISTÓRIAS DIFERENTES DE UMA MESMA PANDEMIA


NÃO É SÓ SETUBALENSE É TAMBÉM SOLIDARIEDADE

OBRIGADO O SETUBALENSE PRESTA HOMENAGEM AOS QUE LUTAM NOS HOSPITAIS E CENTROS DE SAÚDE DA REGIÃO


EDITORIAL

Edição número 22

`tÜ|t ]ÉûÉ YxÜÜÉ Diretora Editorial

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evereiro, 2020, 7:30 da manhã, Naples, Flórida, tal como todas as manhãs iniciei a caminhada pelo passeio da US 41, também chamada Route 41 ou Tamiami Trail, ou se quiserem caminhei pela 9th Street sentido Sul, a caminho do local onde decorria o curso de formação, que frequentei à época. A Route 41 é uma autoestrada, nos estados unidos, construída em 1926, tem cerca de 3.219 quilómetros, começa no norte do país, no estado do Michigan e termina, em Miami na Flórida. Pelo caminho atravessa várias cidades e localidades e desta feita Naples, na Flórida. E foram assim as minhas manhãs de Naples, durante os meus 30 minutos de caminhada. Era este o meu antigo normal …em fevereiro deste ano. Foi, por aquelas bandas que ouvi falar, pela primeira vez, da hipótese de virmos a sofrer

FICHA TÉCNICA

uma pandemia…informação fornecida por um dos professores da Escola de Medicina da Harvard, portanto capaz de ser credível. Mesmo assim a informação não foi validada, numa primeira abordagem, por nenhum dos 24 alunos do curso. Se nos reportarmos a fevereiro de 2020, não parecia uma hipótese ainda a colocar, parecia exagerada, algo descabida, fora do contexto e que gerou muita celeuma. Rapidamente e diariamente a realidade veio a mostrar-se outra… a velocidade dos acontecimentos ultrapassavam a nossa capacidade de adaptação à má notícia, a uma realidade assutadora. Semanas depois e já em março, de volta a Portugal, com a crença que o estado de pandemia vinha por aí…. começa o meu Novo Normal, e com ele, o trabalho não presencial, plataformas digitais, socialização pelas redes, afastamento daqueles que nos são queridos e próximos e de resto tudo igual…a vida segue o seu curso. Muitas teorias sobre os “castigos” divinos, a natureza, o planeta e a crença de que a humanidade estaria a pagar por um suposto “mau comportamento” que, por razões desconhecidas, a levaria a uma melhoria da qualidade humana. Parece que não foi bem assim que aconteceu…. De uma, ou de outra forma seguimos todos em frente…mantivemos padrões de comportamento, ajustámos, mas não mudámos na nossa essência. Do chocante caso de Peniche, em Portugal, ao caso de George Floyd, a natureza humana faz das suas…e mostra que não são as pandemias que trazem tomadas de consciência…as pandemias trazem de tudo. O melhor e o pior de nós….e a sua durabilidade tem certamente influência nas sequelas que ela nos deixará, a todos os níveis. No entanto, dois meses e meio passados, e até parecíamos um bocadinho modificados, mais responsáveis e cumpridores. Alguém

chega a utilizar a metáfora dos “Suecos do Sul da Europa”, quando se refere a Portugal e aos portugueses. Abrimos telejornais em todo o mundo como exemplo de bom comportamento. Mas durou pouco, perdemos rapidamente o título. As notícias dão-nos conta de ajuntamentos com milhares de pessoas, festas com centenas de outras, parques de campismo com festas de jovens às dezenas… perdemos realmente o título. Esta atitude não é original… Não foi momento único na história da humanidade! Ao meio-dia de 21 de novembro de 1918, as sirenes soaram em muitas cidades dos estados unidos, anunciando o regresso à normalidade, depois de meses intensamente duros de isolamento: sem ipads, sem televisores e sem qualquer tipo de écran. A população estava farta do isolamento, cansada de estar em casa e ao soar das sirenes, celebraram, saíram à rua, deitaram as máscaras ao lixo e correram para os cafés, restaurantes, teatros, encheram os passeios e praças de todo o país….Não correu bem! Meses mais tarde surge a segunda vaga da pandemia, esta ceifou a vida a milhares e milhares de pessoas, tendo sido a mais mortífera, das três vagas da Pandemia da Gripe Espanhola ou da Pneumónica….Parece-me familiar parte desta história, espero muito sinceramente que não corra da mesma forma…. E por falar de comportamento humano… Leiam a nossa edição 22, que transborda esperança, histórias de vida felizes ou menos felizes ao longo deste confinamento, histórias que nos chegam de quatro continentes, quatro vivências, quatro entrevistados, quatro resilientes por natureza, simbolizando o padrão existente na diversidade e na variabilidade do comportamento humano. Espero sinceramente que apreciem esta abordagem. Muita saúde e resiliência para todos vós! n

Setúbal Revista – Registo na ERC: 126664; Depósito Legal Nr. 390882/15 Propriedade: João, Pedro & Armindo, Lda. [Sócios: Armindo Manuel Fernandes da Conceição (33%); Maria João Moreira da Conceição Ferro (33%); Pedro Manuel Moreira da Conceição (33%)]; Diretora Editorial: Maria João Ferro; Editores: Maria João Ferro. Colaboram nesta edição: Maria Pereira; Isabel Marques; Maria do Carmo Branco; Nuno Castro Luís; Jorge dos Santos Forreta; Paula Cunha e Silva; Eugenia Canito; Silvia Silva; José Gomes; Alexandra Aleixo; José Nobre; Carolina Bico; Alexandra Mendes; Cristina Pinho; Sara Loureiro. Contactos: redacao@setubalrevista.com - Avenida 5 de Outubro, 111, 2900-312 Setúbal; Publicidade: 967 122 006 - Estatuto Editorial em www.setubalrevista.com

Setúbal Revista respeita a opção dos seus colaboradores quanto ao Acordo Ortográfico Setúbal Revista

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SUMÁRIO ENTREVISTA

P.18 A 27

LEITURAS

P.28 E 33

Não se pode adiar o poema para outro século Quatro Continentes, uma realidade vivida a quatro

SAÚDE

P.6 E 8

Neste número 22 da Setúbal Revista entrevistámos 4 cidadãos do mundo, atravessámos fronteiras e abraçámos quatro continentes: Viajámos, de forma não presencial, até a América do Sul, Brasil de seguida ligámo-nos à América do Norte, depois foi a vez de ligarmos a plataforma digital ao continente Africano, e por aqui, mais perto, na Europa, em França. Tentámos compreender como cada um dos nossos entrevistados viveu, está a viver e analisa o futuro próximo neste quadro pandémico.

VIAGENS

P. 44 A 47

As crianças no aqui e agora CULINÁRIA

Viajar em Pequim - China 4

Setúbal Revista

P.38 E 39

Semifrio de morango


SAÚDE


SAÚDE

ANA GRANDÃO Terapeuta da Fala

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alar sobre o tempo de quarentena é difícil para todos, porque todos o vivemos de um modo doído. Farei deste espaço um lugar de partilha, sobre o que sinto e como vivo este momento, ou talvez esta época. Eu prefiro dizer época porque desde há algum tempo que encontro diferenças na forma como as pessoas se comunicam, ou não comunicam! Sou Terapeuta da Fala já lá vão 18 anos, e desde sempre encontrei nas crianças inúmeras dificuldades de Linguagem e Fala, todas elas espectáveis e para o qual eu me preparei academicamente. As crianças de há 18 anos atrás estavam ávidas por ouvir uma história, por partilhar, por perguntar,…e aquele nosso momento de ouro era rico tão rico. Sempre fiz questão de partilhar com os pais que para a resolução da fala o passo principal é a relação interpessoal, o contacto ocular, o toque, o abraço, o conversar sobre as emoções, o ir para um jardim andar de bicicleta, o fazer um bolo em família,… e alguns foram questionando: “- o que é que isso tem a ver com a fala?” pelo que fui respondendo: TUDO!. O tempo passa, a tecnologia avança, a tão importante tecnologia do qual todos nós necessitamos para o avanço da humanidade! O problema é o que esta tem de precioso, mas também de necrótico quando não usada de forma adequada. E este é um dos problemas das crianças de hoje, ou melhor de quem as educa. Hoje é difícil manter uma criança atenta, os jogos de tabuleiro não têm luzinhas nem músicas para prender a sua atenção e concentração tal como acontece nos jogos interativos, as crianças de hoje estão dependentes disso para conseguirem estar atentas,

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As crianças no aqui e agora


SAÚDE

é quase como um vício para o seu pequeno cérebro que não aprendeu a funcionar de outro modo. Quando estou com uma criança que me faz perguntas, que se interessa “por mim”, que quer brincar e aceita as regras, que se envolve na história e coloca ativada a sua imaginação, estabelece-se ali uma transcendência e inter-relação tão humana, mas também tão rara que quase me esqueço que existe. A acrescer a isto, desde há 2 ou 3 anos para cá fui percebendo em crianças demasiado pequenas expressões linguísticas não relacionadas com o Português Europeu, a construção das frases muito diferente das usadas na nossa Língua Mãe, o uso de pronúncia

do Português do Brasil, enfim…! Ao ponto de não conseguirem corrigir-se, porque só conhecem aquelas palavras. Era estranho mas surgiam demasiadas crianças com o mesmo problema para ser uma coincidência. Fui questionando e foram-me respondendo: “ sabe os vídeos no tablet estão todos em Brasileiro!” Até aí tudo bem, mas,… .quanto tempo por dia? “- às vezes está uma tarde inteira ou ao fim de semana o dia todo, e não se entretém com mais nada!” Como é que uma criança de 3 ou 4 anos não se entretém com mais nada? Onde estão os jogos imaginativos, as brincadeiras em família? Como é que “uma máquina” consegue suprimir a

Língua Mãe das crianças? São precisas muitas horas a olhar para um ecrã. Aqui não importa se é Inglês, Espanhol, Chinês ou Brasileiro, o grave disto é que as crianças passam mais horas a ouvir vídeos do YuoTube que a brincar socialmente ou a conversar com os seus pais. A Língua Mãe deixou de ser aquela que correspondente ao lugar social onde as crianças vivem, deixou de ser a que se aprender de um modo inato e vivendo com pessoas. E isto acontece simplesmente porque as crianças de hoje não “vivem no aqui e agora”, porque os seus pais já se esqueceram de o saber fazer, ou porque não querem recuar um pouco e recordar como eram maraSetúbal Revista

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SAÚDE vilhosas as histórias do avozinho e onde isso os levava na imaginação. Dêem-lhes espaço para a fantasia, para o desenvolvimento das emoções e relações, é tão importante! Nós tornamo-nos pessoas pela envolvência do espaço com outro ser humano, por partilharmos palavras, mas também por partilhar todo um conjunto de informação não-verbal que a outra pessoa nos está a dar, inclusive os silêncios que se estabelecem nas relações. Podemos “ver” muito de alguém pela forma como a outra pessoa se movimenta no espaço, no seu comportamento físico, na forma como olha, no modo rápido ou lento que fala. Podemos até perceber como aquele ser humano se está a sentir naquele momento. É esta inteligência emocional e esta comunicação inata que estamos a perder e que os nossos filhos não estão a aprender a fazer, alguns não a entendem sequer. E isto não se aprende com a tecnologia! Esta é uma nova realidade, metade das queixas dos pais são de que as crianças não constroem bem as frases nem usam adequadamente o vocabulário, muitas vezes têm comportamentos difíceis e não entendem regras. Alguns deles falariam correctamente se não fossem tantas horas de tecnologia! Mas…,faço questão de frisar que nenhum Terapeuta por mais competente que seja poderá resolver isto se não se mudarem comportamentos. Será que querem! Por vezes sinto-me angustiada, tão angustiada…, amo o que faço e sinto-me a remar contra uma corrente demasiado forte. Sei que estou demasiado perto deste problema e isso faz-me ver com clareza. Mas assusta! Durante a quarentena também utilizei a videochamada para atendimento de algumas crianças no qual seria possível, uma vez que as sessões presenciais não estavam a decorrer e porque sempre se poderia trabalhar alguma coisa. Sim foi positivo, mas faltou a humanização que tanto defendo e que é fundamental para a linguagem. Como esta quarentena me fez sentir?! Tudo o que todos e qualquer um sentiu, medo, respeito,…Mas questionei mais que nunca, e…, em alguns momentos coloquei em causa a minha profissão. Eu sabia que quando regressasse as minhas crianças estariam a falar pior que nunca, porque

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durante este tempo o YouTube foi rei. Não vou mudar nada nem ninguém. Nos últimos anos até me sinto quase impotente em relação a esta questão, mas vou continuar a lutar, com certeza farei eco em alguém! Sim voltei, para perto das minhas crianças, lado a lado, numa troca e partilha de expressões e emoções. Ao fim de algumas sessões passamos a ser dois cúmplices, às vezes até confidentes. Não me perguntem como é possível com crianças de 3, 4 e 5 anos, mas é. E é delicioso. É ao pensar nisto que me sinto uma privilegiada! Voltei, aos poucos mas voltei, e adaptei, ambos de viseira, sem máscaras. Pois é,….Terapia da Fala com máscara não existe. Precisamos de ver os movi-

mentos dos lábios para treinar a fala. As crianças começam agora a regressar aos poucos, e confesso que estou com dificuldade em escapar aos beijos e abraços, fico sem saber como me esquivar e com tanta vontade de os retribuir, vou retribuindo dentro do possível. Estão felizes, tão felizes,…são só gargalhadas, tudo o que eu disser é motivo para rir muito…. Finalmente têm alguém que lhes dá aquela atenção, algo que se parece com a sua vida normal... Afinal estas crianças também me dão tanto e eu…, eu vou tentando mostrar que o mundo é um lugar cheio de emoções uma vezes boas outras más mas muito bonito para se viver! Obrigada à Revista por me deixarem “gritar”. Conseguem ouvir!? n


IDEIAS SOLTAS

IVONE CAMPOS Bióloga; Professora; Musicoterapeuta; Curso de Educação Musical pelo Conservatório Nacional de Música; Curso de Piano pelo Conservatório Nacional de Música

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á quase dois meses que não escrevo. Não me apetece. Nada me apetece. As coisas (ainda) parecem não fazer sentido sem ti. Mas uma amiga pediu-me que escrevesse sobre o luto em confinamento e eu vou tentar. Sabes que não gosto da palavra “finado” porque, para as pessoas que como eu, acreditam que a vida não se extingue com a matéria, não faz sentido. Significa “que se finou”, “falecido”, “morto”, “defunto”, “extinto”. E tu, como ambas sabemos, não estás nem nunca estarás extinta. Só escolhi a palavra para fazer o trocadilho no título desta qualquer coisa que estou a tentar escrever. Quando o pai morreu, eu queria ter pegado num bloco e numa caneta e fugido para muito longe. Escrever muito. Escrever tudo. Na tentativa de afogar em tinta aquela dor. Mas em vez disso, era mãe e pai a tempo inteiro de duas crianças que dependiam de mim e tentei dar-te todo o colo que precisasses e te ajudasse a suportar a partida do teu grande amor e companheiro de uma vida. Passaram onze anos e gosto de acreditar que me sentiste sempre perto e devotando-te um afeto imenso e incondicional. Há dois anos ficaste doente e desde então a minha vida eras tu. As consultas, os exames, o combinar nas tuas costas com os médicos estratégias para te esconder a sentença de morte, a farmácia a toda a hora, os tratamentos e, mais perto da tua partida, tudo. Dormi de mão dada contigo, li-te passagens de livros que te fizessem não pensar, cantei, acalmei-te o peito, vigiei-te o sopro e disse-te muitas vezes que te amava. Hoje acho que te devia ter dito

Luto com(sem) finado muitas mais, mas creio que tu sabes isso. Partiste nos meus braços, quando o teu olhar perdido e já distante do nosso, dizia que já ías a caminho. Aposto tudo em como o pai lá estava, à tua espera. Mas eu fiquei sozinha, sem ti nos braços e nos dias. E órfã. E por muito crente que seja, a ausência física dói. Dói muito. Dói até sentirmos que não temos chão nem caminho. Dói até acordarmos sobressaltados na madrugada com o coração na boca e o peso de um elefante no peito. Dói até esquecermos o nome da vida. Partiste numa época estranha. Numa época em que as pessoas usam máscaras, cumprimentam-se com o cotovelo e fogem a sete pés de quem comece a tossir. Uma época histórica em que devemos ficar confinados em casa para

evitarmos a propagação desta pandemia. Seria a altura ideal para agarrar no tal bloco e na caneta e despejar a dor para o papel. Mas não. Não me apetece. Há quase dois meses que não escrevo… Despedi-me do teu corpo onde tantas vezes me aninhei, de forma simples e numa cerimónia singela de família próxima. E a seguir só me apetecia fugir. Fugir para bem longe daqui. Para um sítio onde a realidade fosse completamente diferente. Mas isso não existe. Este vírus perverso espalhou-se pelo mundo e em parte alguma se pode chorar abraçado. Estreei-me numa webinar sobre luto confinado e não aprendi nada. Vagueio pela casa sem nada me tirar deste lugar anónimo e a única coisa que me apetece fazer é deitar coisas fora. São dias atrás uns dos outros apenas abençoados pela companhia de um filho de quem agora não consigo ser mãe. Sim, que às vezes as mães também precisam de colo. Os telefonemas misturam-se entre úteis e daninhos. Muitos são os que não consigo atender. Também porque o que tenho para dizer é sempre o mesmo. Viver o luto neste caos torna o caminho mais penoso e arrastado. Como se a máscara facial fosse afinal um enorme e asfixiante escudo que me isola e fragiliza ainda mais. Como se os meus dias fossem iguais aos de um hamster que corre na roda sem parar, sempre na mesma direção, sem chegar nunca a lado nenhum. E assim vou aprendendo, muito devagar, a abraçar a dor, deixando-a fazer o seu papel, até ao dia em que te consiga escutar com outros ouvidos, enlaçar-te sem serem precisos braços e seguir contigo, a sorrir. n Setúbal Revista

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SAÚDE

CRISTINA PINHO Médica Gastroenterologista / Homeopata cristinapinhomedica@gmail.com

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ais uma vez, esta semana, escutei o seguinte: - “Cristina não posso dar-lhe as vitaminas nem os probióticos que tu lhe prescreveste. A tua colega do IPO disse que não pode tomar absolutamente nada mais para além da quimioterapia e da medicação associada para os efeitos secundários. - E pode comer? Pode caminhar na rua ao sol? Bebe água ou sumos? Respira? - Como assim? A minha amiga parecia

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Medicina de superfície

baralhada. - Sim claro, mas não posso dar-lhe os comprimidos das vitaminas nem das bactérias por que podem interferir com o tratamento e depois os teus colegas não sabem avaliar a sua eficácia. - Como é que consegues retirar as vitaminas da comida e dos sumos? É certo que já sabemos que só o sol não chega para sintetizar toda a vitamina D3 que precisamos, mas alguma há-de produzirse. Está a comer tudo biológico ou a co-

mida tem conservantes, corantes, etc? E consegues que ele não respire as bactérias do ar? Isso não interfere com a avaliação do tratamento?” Pois... é ridículo! Mas acontece todas as semanas, invariavelmente! Podemos comer mas não nos permitem engolir ácido fólico. Expomo-nos ao sol mas não é aconselhado tomar vitamina D3. Somos pouco mais de 10% humanos mas não convém suplementar com todas as bactérias que nos ajudam a


SAÚDE manter ou recuperar a saúde. - “Fez o primeiro ciclo na segunda feira e já está cheio de aftas. Vai fazer um composto com nistatina e lidocaína.” Esta é a prática corrente da medicina que não aceita o ser humano na sua totalidade fisíca (corpo, pensamentos e emoções - partícula), electro-magnética (onda) e espiritual. Navega à vista, mede a forma e a função, suprime o que está a mais sem alimentar o suporte, ou seja os triliões de células saudáveis que estão intrinsecamente ligadas entre si e em permanente comunicação com a “parte” doente. Claro que este é o pior de todos os exemplos, é o extremo. Muitas vezes a medicina não é tão superficial e já fala em alimentação, exercício, psicoterapia e suplementação adequadas. Porque não há afecção das partes sem atingimento do Todo. Não há patologias locais. A doença atravessa corpo e mente (pensamentos e emoções) simultaneamente. E produz-se devido a uma alteração de vibração energética (electro-magnética). Está tudo sincronizado. Tudo influencia tudo! Se escondemos ou suprimimos determinados sintomas sem tratar as causas (é sempre multifactorial) vão aparecer, sucessivamente, outros... e mais doença. E não ficamos por aqui. A verdade em relação à saúde é que ela depende menos daquilo que comemos, do exercício físico/descanso que fazemos, das vitaminas/medicamentos que tomamos ou dos tratamentos a que somos submetidos e muito mais dos nossos pensamentos/emoções. E ainda mais além… à conexão com o que há de mais íntimo e sagrado em nós: “Onde me desiludi? Quando me magoei? Como me condicionei? Em que altura me perdi? Fiquei agarrado a quê?...” Para lá de uma personagem traumatizada com uma alma ferida há uma consciência pura, inocente e incólume que é preciso reencontrar. Aí sim reside a cura. «Convido a ver esta entrevista do médico Gabor Maté: https://www.youtube.com/watch?v=CmJnYmdVmQ&fbclid=IwAR1D68j5forbk 3VGs4qnFPlH_hgXj9SZGqwpfQOXzGQ WKG-6azs17sOh5Ic Minuto 39:39: “… para esta sociedade funcionar tem que separar o corpo da alma, porque jamais trataríamos as pessoas da maneira como o fazemos se elas tivessem alma …” n Setúbal Revista

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PSICOLOGIA

SILVIA SILVA Psicologa, Psicoterapeuta Torres Vedras psicologa.silviasilva@gmail.com

Relações confinadas

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um momento particularmente difícil das nossas vidas há muitas (ler demasiadas) situações às quais nos temos que ajustar. O confinamento obrigou-nos a todos a lidar não só connosco próprios, mas também, de forma continuada e perpetuada com o nosso núcleo familiar. E não, ninguém estava preparado para isso. A verdade é que as relações têm dinâmicas próprias, distintas entre si. Então vejamos: a mesma pessoa, dependendo do seu interlocutor também varia a sua postura e configuração em como se relaciona com os outros. Independentemente das opiniões sobre o certo e o errado, iremos considerar que errado é tudo o que nos prejudica e faz sofrer (ou aos que nos rodeiam) e que possa ser considerado tóxico. Na mesma linha de pensamento, correcto é tudo aquilo que não nos magoa e nem nos faz sentir bem, tanto quanto aos que nos são chegados. Posto isto, importa pensar que nós “somos nós e as nossas circunstâncias” e que, as decisões que tomamos na vida são o reflexo dessas circunstâncias. Pensamos a curto, médio e longo prazo. Temos uma margem de manobra. E agimos, uns mais outros menos, com base no que antecipamos e projectamos para a nossa vida. Conseguimos, através das rotinas multitarefas que impomos para o nosso quotidiano, não nos confrontar constantemente com as mesmas situações ou pessoas. No emprego por exemplo, se tivermos algo que nos aborreça, sabemos que no final do nosso horário de trabalho iremos para casa e isso vai-nos desfocar desse

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aborrecimento e por ventura, alimentar-nos emocionalmente de maneira a nos reequilibrar e ajudar a enfrentar o dia seguinte. Familiarmente passa-se algo semelhante, ou seja, ainda que haja um conflito, o facto de passadas umas horas sairmos daquele ambiente faz-nos desanuviar e relativizar o problema. Podemos considerar que termos vários ambientes é como termos vários balões de oxigénio, que nos permitem respirar, descentrar-nos e perspetivar de um outro ângulo. É esta gestão que permite que nos sintamos preenchidos consoante as nossas necessidades habituais ou momentâneas. Isto numa situação dita normal, tendo em conta a anterior

realidade que todos tínhamos.Mas isto ninguém esperava, este vírus que nos transformou a todos em “donos de casa desesperados”. E para além das sérias implicações e alterações financeiras e sociais, o impacto familiar foi brutal e veio testar a qualidade das relações. Percebemos que esta situação afecta de forma mais intensa umas famílias que outras, uns relacionamentos mais que outros. Salvam-se os bons? Terminam os maus? Não é assim tão taxativo. Tem sobretudo a ver com o revestimento de cada relação. E forma como esse revestimento encaixa nestas condições sui generis. Poderemos nós dizer que


PSICOLOGIA um casal que preza o seu espaço individual, que tem actividades separadas (um vai ao ginásio outro participa em teatro amador), ou gostam de passar algum tempo com os respectivos amigos, separadamente, seja um casal que tenha uma má relação ou que, como vimos, se prejudiquem, se façam sofrer ou aos que os rodeiam? Parecenos que não. No entanto imaginar este casal em que os seus elementos são autónomos, e considerar que por terem uma relação equilibrada e saudável até ao confinamento então (como numa equação de causa-consequência), este não os abalou, não é correcto. Claro que a qualidade da relação importa e muito. Serem mais ou menos cúmplices. Serem mais ou menos amigos e unidos. Mas a verdade é que o tipo de dinâmica a que estavam habituados terá uma influência considerável na resposta a esta situação tão difícil como especial. Outros factores a ter em conta são as personalidades de cada um e a capacidade de tolerância, resiliência e imagi-

nação. Estes três ingredientes podem ser comparados a elásticos ou dito de outro modo, são a plasticidade que cada um de nós tem de se adaptar a novas situações. Personalidades agressivas, têm por base processos mentais altamente rígidos em que a dificuldade em aceitar um pensamento ou atitude distintos do que elas pretendem, promove um conflito interno, que por norma desemboca numa alteração de comportamento, isto é, num comportamento agressivo. É por isso que se pensarmos numa pessoa agressiva, que como sabemos tem altos handicaps ao nível da compreensão e tolerância, numa situação que exige um ajuste psicológico tão grande como esta do confinamento, não será difícil entender que se criam condições “bomba-relógio”, agudizados pela falta dos tais balões de oxigénio. E por último, é não menos importante analisar o estado psicológico em que cada um de nós já se encontrava antes de aparecer este vírus que virou

o mundo do avesso. Pessoas que estavam extremamente cansadas, deprimidas ou frustradas, estavam menos estáveis e consequentemente menos equilibradas. Uma vez mais a conjugação dos dados não se pode escamotear. A reação destas pessoas depende se ficaram em teletrabalho e tinham condições domésticas para isso (espaço suficiente em casa ou na divisão; partilha de casa com muitas ou poucas pessoas, sendo estas crianças ou não); se ficaram sem remuneração ou se continuaram a trabalhar e como encararam esta situação no caso da última hipótese. Todas estas alterações ao que considerávamos ser a normalidade, têm exigido um esforço que nunca imaginámos vir a ser necessário. As relações e a qualidade das mesmas são e serão sempre o nosso porto de abrigo. São elas que nos suportam ou nos fragilizam, que nos acolhem ou nos debilitam. Tanto as relações com os outros como a que temos connosco próprios. n

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SIMPLES ASSIM

Estranha forma de vida! PEDRO SOARES Terapeuta motivacional Desenvolvimento Pessoal

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stamos a viver um tempo de infinita estranheza. O tempo do elogio da máscara. Antes disso, víamos os asiáticos usá-la como forma de proteção das agruras da poluição. Michael Jackson também a usou e todos sabemos quantas vezes nos interrogamos sobre as suas razões. Fugíamos de pessoas que a usavam porque tínhamos consciência de que só uma razão muito forte, levava a que alguém a usasse. O que seguramente sabemos sim, é que ainda somos de um tempo em que amar e socializar era igual a abraçar, cumprimentar, sorrir, parar para conversar ou beijar o nosso semelhante. Fazia parte integrante da estabilidade dos humanos o facto de se aproximarem uns dos outros. É provável que nunca nos tenha passado pela cabeça que amar o outro seria igual a manter distancia, não estar com ninguém, fugir das pessoas se as encontramos em lugar público. Quem diria, que ainda havíamos de ouvir, e de dizer: - Se me amas, não me toques nem te aproximes. Dá muito que pensar. Um dos grandes problemas desta pandemia, é a desinformação e a informação deturpada que temos vindo a receber. Algumas coisas que são verdade pela manhã já são mentira à tarde. Pessoas com pouca capacidade de assimilação, ficam confusas e desconfiadas. E a desconfiança leva ao medo, o medo leva ao desespero, o desespero à depressão e assim por diante. Neste momento vivemos também a crise da desconfiança: quem está infetado? Somos todos alvos da dura dúvida de podermos estar infetados. Depois

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existem os imunizados, os portadores assintomáticos e os infetados com sintomas. Se alguém faz o teste e é dado como negativo, vem um alívio de pouca dura porque dada a rapidíssima e facílima forma de contaminação, dez minutos depois de receber o resultado do teste, a pessoa pode efetivamente ser infetada. Tudo começa e acaba na mente. Principalmente o medo. Sabe-se e está estudado, que no caso

de uma pessoa que seja dada como portadora de cancro por erro ou troca dos seus exames. Essa pessoa vai criar a doença dentro de si. Como referiu Einstein, a nossa mente dá vida àquilo em que acredita. O contrário também é verdade. Se nos disserem que está tudo bem, quando a realidade não é bem essa, a nossa mente vai retroagir e criar um cenário de saúde. Todos conhecemos ou já ouvimos falar


SIMPLES ASSIM do efeito placebo. Porque queremos agregar todos e para quem nunca ouviu falar, é como se alguém em quem confiamos, e que nos afirma que determinado medicamento, curandeiro, ação, método ou filosofia poderá libertar-me ou curar-me de algo sem cura. Está provado que funciona e de tal forma que há muitos anos existem os “medicamentos” placebos. Ou seja, supositórios, comprimidos, xaropes e etc. com zero de químicos, mas por ignorarmos e por acreditarmos na nossa mente que é bom, pode mesmo promover aqui e ali alguns milagres! Nós temos duas mentes, uma racional e outra emocional. Se quiser, a consciente e a inconsciente e podemos ainda simplificar mais, se decidirmos pensar que o nosso cérebro que tem dois hemisférios, é como se tivesse dois “quartos” alugados. No quarto à esquerda mora a razão e no da direita mora a emoção. Portanto, não falam a mesma língua e nunca se entendem na mesma situação! A Mente Consciente é crítica, analítica, estuda, mede e absorve tudo à sua volta, mas não sabe fazer nada. A Mente Inconsciente não critica, não analisa nada, é estúpida, mas é altamente realizadora. Realiza o quê? Tudo, o que for dado como certo pela Mente Crítica. Exemplo A: Eu sou o maior, ninguém bate a minha produção, beleza, etc Eu sou capaz e vou dar tudo para atingir isso… Esta informação crítica será a verdade

emocional e vai ser realizada pela mente Inconsciente. Exemplo B: Ninguém gosta de mim, não sou capaz, sou feio não valho nada, sou um doente assintomático... Já percebeu o leitor que a sua Mente inconsciente vai tornar isso em realidade! Assim é na gravidez psicológica ou simpática, na dor fantasma, com a força irracional com que uma mãe consegue levantar um carro para salvar o filho atropelado… Deixo-lhes para reflexão o seguinte trocadilho: A nossa Mente, mente! É mentirosa e por isso é assim chamada! Mas como um mentiroso compulsivo, acredita e realiza tudo o que for repetido sistematicamente. De tanto mentir para si e para os outros, acaba por acreditar e “mata” quem disso duvidar!

Tudo para dizer, cuidado com o assintomático. Eu não sinto nada mas dizem que tudo tenho! Se eu criticamente pensar e acreditar, vou enviar esta informação para a mente realizadora e começam todos os sintomas possíveis e imaginários! Se repetidamente enviarmos mensagens de que somos saudáveis e que o nosso sistema imunitário é forte, pode ser que fique forte, pode ser que o “bicho” não pegue porque, em boa verdade, dá muito trabalho deitar abaixo alguém que morrendo, decide morrer de pé! Como disse o renomado médico e cientista francês, Louis Pasteur: “A sorte favorece a mente bem preparada.” Haja saúde e desejo-vos uma boa gestão mental para esses tempos estranhos em que vivemos realmente uma estranha forma de vida! n

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OPINIÃO

MARIA DO CARMO BRANCO Administradora da UNISETI (Universidade Sénior)

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este momento que atravessamos, pelo estado de alma que me invade, estou mais inclinada para a amizade, com exceção para o amor “ Storge (amor familiar) ou Philautia (amor próprio) ” A amizade é um dos sentimentos mais bonitos que há porque dá riqueza, emoções, cumplicidade e porque é totalmente gratuita. Ao longo da minha vida tenho tido verdadeiras amizades que me têm dado força e alegria. Outras, que mantenho na distância, porque a vida nos obriga a mudanças, estão para sempre albergadas no meu coração e nas minhas memórias. Quanto tempo perdido por comodismo? Às vezes, bastava um telefonema, uma mensagem, para que a chama se mantivesse sempre acesa. Privilegiamos muitas vezes o acessório em vez do essencial. Bastaria um telefonema, uma boa conversa, um encontro para reavivar o que foi tão importante no nosso percurso de vida. Só nas situações complexas e graves, como esta que atravessamos, é que damos valor e procuramos os verdadeiros amigos. Sei que a vida às vezes é tão intensa e nos preenche de tal forma, que nos faz esquecer os mais elementares deveres para com tantos amigos. Neste momento de reflexão obrigatória, revejo toda uma vida que estava um pouco arquivada nas gavetas da minha memória. Nunca é tarde para fazer fluir as coisas boas perdidas no tempo. É o que vou fazer. Quanto ao amor conjugal, a única forma de se compreender uma pessoa e a sua personalidade, é através do amor que se sente por ela, porque ninguém pode conhecer a essência de outro ser se não o amar de qualquer forma.

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Amizade e Amor


OPINIÃO

É sempre mais fácil descobrir os defeitos e qualidades de outra pessoa se houver uma ligação forte que os una. Não estou a referir-me ao amor/sexo, embora os dois sejam primordiais. O sexo deveria ser um modo de expressão do amor, mas nem sempre é assim. O amor verdadeiro resiste sempre às dificuldades que surgem no dia-a-dia. Há muita gente que discute se o amor verdadeiro existe. Eu acho que sim, principalmente se os intervenientes tiverem amor por si próprios. Não existem padrões para a construção do amor, o que é necessário é o empenho

e a vontade num compromisso diário, sem se concentrarem em coisas fúteis. É preciso ter a capacidade de demonstrar, todos os dias, afeto e carinho, mesmo dentro das divergências que acontecem, mas sem passividade! O amor é gradual com o passar dos anos, desde que nunca se manifeste o sentimento de “posse” de qualquer um. Para ser livre e duradouro, tem de ser aprendido e partilhado todos os dias. Quantas vezes só se apercebem do verdadeiro valor de uma relação quando a perdem. Acontece, por vezes, que só o facto de

alguém se sentir carente e solitário, o leva a confundir um encontro passageiro com uma relação amorosa, se encontra alguém que lhe desperta algum interesse. Isso, na maior parte das vezes, pode levar a conflitos bem graves. A passividade é um dos grandes defeitos de uma relação. Tornar-nos passivos é deixar de crescer. Há momento em que paramos por pensarmos que não podemos ou não devemos ir mais além. É difícil explicar o amor, mas é fácil explicar a amizade pura, sem reservas e sem cobrança. n Setúbal Revista

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ENTREVISTA

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este número 22 da Setúbal Revista entrevistámos 4 cidadãos do mundo, atravessámos fronteiras e abraçámos quatro continentes: Viajámos, de forma não presencial até a América do Sul, Brasil, e fomos ao encontro de Oton Bastos; de seguida ligámo-nos à América do Norte com a Darlene Costa, depois foi a vez de ligarmos a plataforma digital ao continente Africano, fa-

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lando com Sónia Mordido, residente em Cabo Verde, Ilha de Santiago, e por aqui, mais perto, na Europa, em França diretamente de Paris, o setubalense Luís Ratinho. Tentámos compreender como cada um dos nossos entrevistados viveu, está a viver e analisa o futuro próximo neste quadro pandémico. Na expetativa, desta entrevista vos ser aprazível, deixo-vos com os testemunhos dos nossos convida-

dos…


ENTREVISTA

Quatro Continentes, uma realidade vivida a quatro Por Alexandra Mendes

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ENTREVISTA

“Podemos afirmar que o mundo e todos nós estamos mudando...” OTON BASTOS

Dizer que Oton Bastos é brasileiro porque veio ao mundo em Castro Alves, na Bahia de Todos-os-Santos é ser-se redundante quando se pretende descrever alguém que fez do mundo casa e do trabalho a área das Relações Públicas. Oton Bastos exerce funções a bordo dos navios de cruzeiros, da empresa Costa Cruzeiros e faz da navegação uma forma de estar. Qual é o panorama geral do país face ao Covid-19? Como tem reagido a população em confinamento? Que medidas foram tomadas pelo governo local? Quando foi dado o alarme da pandemia eu me encontrava a trabalhar a bordo de um cruzeiro que havia deixado o Brasil no dia 9 de março, com destino à Europa. Dois dias depois soubemos que as fronteiras estavam sendo fechadas…Conseguimos com muita dificuldade desembarcar todos nossos hóspedes dado que os governos dos países mudavam a cada dia os parâmetros da repatriação... Depois começou a nossa quarentena. Tive muita sorte de estar num navio onde não houve nenhum caso de Covid-19, foi algo muito bom. Cumpri 18 dias a bordo e depois fui repatriado para o Brasil pela minha empresa na mais absoluta segurança. Em casa cumpri mais 14 dias para prevenir qualquer possibilidade. No Brasil estamos vivenciando grandes problemas. Grande parte da população não respeita a quarentena, a vida se está processando como em tempo normal, as pessoas saem o tempo todo, para todos os lugares, o que mais querem é voltar a trabalhar. Na TV falam sobre desvios do dinheiro público destinado às obras nos hospitais de apoio. Estamos com os hospitais lotados e muita gente morrendo a cada dia. Ao mesmo tempo o país está se

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reabrindo gradativamente. Na minha cidade são poucos os casos, tivemos apenas seis mortos, mas esta semana o Brasil teve um pico, 1382 mortes num período de 24 horas e assim segue…Eu continuo na minha casa, só saio para coisas básicas, ir no supermercado ou na farmácia. Como viveu a quarentena e quais as situações complexas ou diferentes com que se deparou? Trabalhar numa companhia de navegação é uma das minhas coisas favoritas, adoro navegar e adoro apreciar o fim de tarde e a luz lunar em alto mar. Adoro co-

nhecer novos países e diferentes pessoas, acordar cada dia numa cidade maravilhosa e vivenciar culturas diferentes, que nos fazem crescer intelectualmente. Para mim felicidade é trabalhar em algo que se goste, que dá prazer. Viver uma quarentena, estar isolado não é o mais agradável, mas temos que o fazer, é a única chance para essa pandemia ir embora rápido. Aqui, no Brasil, é bem diferente da Europa, onde se fez uma quarentena rígida. Estamos todos sofrendo as consequências, os números não irão descer tão depressa... De que forma foi afetada a sua vida


ENTREVISTA profissional? A minha vida profissional foi afetada a cem por cento, sou Relações Públicas (RP), na Companhia Costa Cruzeiros e os barcos não estão podendo navegar. Fiquei sem trabalho e sem previsão de retorno, porque somente quando tudo melhorar é que a empresa vai voltar ao ativo, concerteza com muitas mudanças. O turismo é, sem dúvida, um dos setores mais afetados pelo Covid-19, em todo o mundo. Com que tipo de situações foi confrontado a nível profissional face à Pandemia? Como as tem resolvido? Como disse, no momento estou em “stand by” em relação ao meu trabalho. Assim neste tempo, todos temos que nos reinventar, enquanto espero e como quando era estudante na faculdade, voltei a fazer “catering” na área dos doces e estou entregando para pessoas de um condomínio de alto padrão, aqui em Itatiba. Como foi socializar em tempos de quarentena? A socialização está sendo muito difícil para todos, mas muito especialmente para nós brasileiros, que somos muito de abraços e beijos... Estamos sentindo muito, porque agora só mesmo através das redes sociais... Quando você encontra alguém sua reação é automática, como de costume já vai querendo abraçar e beijar, matar a saudade… Aí lembramos que já não podemos mais… Estar sem data prévia para poder abraçar os ente queridos e os amigos…Acho que vamos ter que nos reinventar, porque vamos estar amendrontados por muito tempo depois que acabar a pandemia.. Face a todos estes novos acontecimentos e experiências vividas o que acha que vai mudar no mundo profissional? E pessoal? Podemos afirmar que o mundo e todos nós estamos mudando, que essa mudança vai ser para sempre. Jamais nos iremos esquecer dos momentos de confinamento, da tristeza de não podermos ver os nossos amigos e familiares.. A dor grande sentida por quem perdeu alguém importante por causa do Covid-19. Espero que voltemos depressa à normalidade. Uma normalidade obrigatoriamente diferente da anterior e que por agora ainda parece estar muito distante. E que as pessoas tenham mais consciência das consequências e consigam ser mais solidárias e transmitir mais amor, carinho e afeto. Setúbal Revista

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ENTREVISTA

“Estamos todos a passar por tempos muito estranhos” DARLENE ARESTA

Darlene Aresta é uma empresária americana, residente em Naugatuck, no estado Connecticut, nos Estados Unidos da América, com uma forte ligação emocional a Portugal. Adora viajar em família, é ativista dos direitos humanos e dos direitos dos animais. Em Waterbury, Connecticut é responsável pela organização de ações que visam a recolha de sangue nesta comunidade. Qual é o panorama geral do país face ao Covid-19? Como tem reagido a população em confinamento? Que medidas foram tomadas pelo governo local? Estamos todos a passar por tempos muito estranhos. Em Naugatuck, onde eu vivo, está tudo muito calmo, mas há outros locais nos USA menos calmos, houve algum pânico inicial e os supermercados ficaram vazios, até o papel higiénico se esgotou. O governador do Connecticut foi rápido a tomar medidas e a fechar escolas, edifícios públicos, locais religiosos, centros comercias e outros... As aulas passaram a ser virtuais. As pessoas que foram colocadas em "lay off" têm estado a receber uma quantia semanal proporcional ao ordenado que pode ir até aos $600 dólares e o Governo Federal acrescentou outros $600, também semanais. Estas medidas irão terminar a 1 de Julho. Na minha opinião, infelizmente, a administração da Casa Branca não atuou tão rápido como deveria… Como viveu a quarentena e quais as situações complexas ou diferentes com que se deparou? Cada Estado estipulou a sua quarentena, no Connecticut iniciou-se a12 de março e começou-se por fechar as escolas e eu passei a trabalhar a partir de casa, uma das minhas atividades profissionais é se-

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lecionar alunos para um liceu industrial local... A minha filha Jessica estava grávida de nove meses e a viver em Houston, comprei de imediato um bilhete de avião para ir ter com ela, pois tive medo de não o poder fazer se por acaso os voos fossem cancelados. A bebé nasceu 10 dias depois da minha chegada. Nem ao hospital pude ir, pois só deixaram entrar o marido, medida que eu achei muito correta para o bem estar de todos. De que forma foi afetada a sua vida profissional? Como a minha atividade principal é auxiliar na gestão da empresa de imobiliária que possuímos, a minha vida profissional

pouco sofreu, tive sempre a vantagem de poder trabalhar a partir de casa. Passo cerca de 4 meses por ano em Setúbal e faço muitas “road trips” com o meu marido de mota, tanto na Europa como nos Estados Unidos... Adoro viajar e conhecer locais novos, os povos e os seus costumes. Aproveito a vantagem de poder trabalhar em qualquer local… Com que tipo de situações foi confrontada a nível profissional face à Pandemia? Como as tem resolvido? Com o meu “laptop” e telefone, continuei a trabalhar sem nenhuma pausa. Como foi socializar em tempos de quarentena?


ENTREVISTA Durante a quarentena não socializamos com ninguém, principalmente por causa da bebé. Continuamos a comunicar através de “FaceTime” com a família e amigos. Ainda ninguém conheceu a minha netinha a não ser por “FaceTime” ou “WhatsApp”. Face a todos estes novos acontecimentos e experiências vividas o que acha que vai mudar no mundo profissional? E pessoal? Nos Estados Unidos penso que em termos profissionais as grandes cidades como Nova York por exemplo, vão ter menos pessoas a funcionar fisicamente nas empresas, as grandes firmas vão-se decidir por ter os seus funcionários a trabalhar a partir de casa porque economicamente essa opção trará benefícios para as mesmas. O trabalho continuará a ser feito, o funcionário estará mais feliz em casa e a empresa terá menos custos. Como consequência, as grandes cidades também irão ter menos habitantes. Pessoalmente gostaria que o mundo se tornasse mais sensível às necessidades dos outros, que as famílias fossem mais unidas, que tenhamos mais tempo uns para os outros. Adoro estar com as minhas filhas, ambas casadas e a residir em Estados diferentes, a Jessica e a minha netinha no Texas e a Stephanie em Boston, Massachusetts. Durante a quarentena foi possível reconhecer que por vezes, as coisas mais simples são as mais importantes.

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ENTREVISTA

“As desvantagens, desta situação, vão-se fazer sentir nos próximos meses” LUIS RATINHO

Luís Ratinho nasceu em Setúbal, formouse na Escola Náutica Infante D Henrique e exerceu funções de oficial da Marinha Mercante até ter enveredado pela área da “Segurança Proteção de Incêndios” e “Facility Management”, na VW AutoEuropa. Depois de ter passado pelo Brasil e Espanha, atualmente é “Security Country Manager” do Grupo VW em França, Paris. Qual é o panorama geral do país face ao Covid-19? Como tem reagido a população em confinamento? Que medidas foram tomadas pelo governo local? Os franceses de uma maneira geral aceitaram bem e respeitaram o confinamento. Mas é de referir que a imposição efetiva de multas aos prevaricadores e os controles constantes da Polícia, também contribuíram em muito para o sucesso da medida. Felizmente neste momento a situação melhorou bastante, o confinamento e as restrições têm sido levantadas a pouco e pouco, com um regresso cada vez mais rápido à normalidade, as únicas ainda em vigor são o distanciamento social e a utilização obrigatória de máscaras em algumas situações, nos transportes públicos, nas lojas, salas de espetáculos.. Como viveu a quarentena e quais as situações complexas ou diferentes com que se deparou? A França foi um dos países mais afetados pela pandemia e durante dias os números de mortos e infetados contavam-se aos milhares, o que fez com que todos nós compreendêssemos que a situação era bastante grave. Em casa, a minha família aceitou bem a quarentena. Estivemos quase sempre entretidos, com o trabalho, os filhos com aulas online, com a lida da casa... Por outro lado saíamos todos os dias, nos períodos permiti-

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dos, para fazermos um pouco de atividade física e desanuviar no exterior, o que nos manteve sãos. De que forma foi afetada a sua vida profissional? Como sou obrigado a utilizar carro para me deslocar, a grande vantagem do confinamento foi o desaparecimento dos constantes engarrafamentos de trânsito em Paris. Era uma maravilha percorrer os 85 Kms que disto do meu local de trabalho em cerca de 50 minutos, quando normalmente o faço em 1h 20m, nos dias bons!!! O confinamento fez parar quase toda a atividade económica, em geral. A adaptação rápida feita pelas organizações a esta nova realidade deu muitas dores de cabeça, por ser uma situação para a qual as empresas e entidades não estavam preparadas. E confesso que houve muita decisão que foi tomada “em

cima do joelho”, porque não havia nenhum planeamento para esta situação... Penso que aqui, nós portugueses, estivemos em vantagem, pois capacidade de improviso é connosco. E refiro isto porque estou numa empresa alemã onde o planeamento é uma regra básica. As desvantagens desta situação vão-se fazer sentir nos próximos meses, as empresas vão ter obrigatoriamente de reduzir custos, a retoma das actividades está-se a fazer muito timidamente e o impacto social vai ser tremendo, com consequências para todos nós. Com que tipo de situações foi confrontado a nível profissional face à Pandemia? Como as tem resolvido? Adoptamos de imediato o teletrabalho e passei a ter dias em que tinha várias reuniões por “Skype”, o que, de início, se estranha um pouco, pois o trabalho e a vida


ENTREVISTA profissional interferem no nosso espaço pessoal, em casa. A empresa manteve sempre uma equipa, embora muito reduzida, assim como alguns serviços essenciais em funcionamento, nomeadamente o fornecimento de peças para veículos dos serviços de emergência nacional como bombeiros, polícia e ambulâncias e como as minhas funções assim o exigiam, deslocava-me no mínimo duas a três vezes por semana, às nossas instalações. Uma situação complexa foi a da casa-mãe na Alemanha, devido à escassez de máscaras na Europa, ter ido buscar diretamente máscaras à China e nos ter pedido para fazer a coordenação e distribuição destas por todas as empresas do Grupo VW em França. São mais de 20 entidades espalhadas por todo país, enviámos e distribuimos mais de 300.000 máscaras, em cerca de 6 semanas, em pleno confinamento. Já na fase de desconfinamento sugiu outra novidade que foi preparar as instalações da empresa para o regresso das pessoas, foi muito trabalhoso. Foram precisos vários dias para colocar os muitos metros de fitas, barreiras, sinalização, dispensadores de gel, alterar procedimentos e regras, etc. Mas conseguimos assegurar todas as condições para que as pessoas retornassem e se sentissem seguras. Como foi socializar em tempos de quarentena? Felizmente hoje em dia a internet permite socializar com som e imagem, o que atenuou em muito o efeito do confinamento. Poder falar e ver amigos ou a família em Portugal, mesmo através do telemóvel, ajuda. Por outro lado, estando nós a viver no estrangeiro, com vidas sempre ocupadas, passar mais tempo com a família foi uma vantagem. Curioso, foi que em Paris, onde só estávamos autorizados a sair de casa a partir das 19h e num raio de 1km em redor da mesma, passassemos a encontrar sempre as mesmas pessoas quando saíamos para fazer desporto, vizinhos que vivem no mesmo bairro e que antes nunca os haviamos notado... Face a todos estes novos acontecimentos e experiências vividas o que acha que vai mudar no mundo profissional? E pessoal? Não acho que vá mudar tanto assim... Tenho-me estado a aperceber durante o desconfinamento que as pessoas rapidamente estão a voltar aos hábitos antigos. Mesmo com todas possibilidades de vendas online e entregas, as lojas e res-

taurantes estão a encher-se. No mundo profissional, talvez o teletrabalho ganhe mais alguns adeptos, mas o ser humano precisa do contacto pessoal e uma reunião cara a cara é completamente diferente de uma reunião por “Skype” ou “Zoom”. Quando se querem vender ideias ou convencer pessoas, numa teleconferência não se conseguem distinguir as

reações dos participantes, ou perdem-se informações. Por isso, acho que muito breve, voltaremos a viajar para estarmos num determinado local, com determinadas pessoas. Foi interessante ter participado num fórum de empresas em França, onde se discutiu o teletrabalho e os problemas que o mesmo tem trazido. Por exemplo, falta de um espaço em casa apropriado e trabalhar-se na mesa da cozinha ou na sala, em cadeiras não adequadas, que trazem consequências em termos de postura e cansaço, as constantes interrupções para atender pedidos dos filhos ou cônjuges, o que quebra a concentração.. O estar com o computador constantemente ligado e que faz com que as pessoas, mesmo após o horário laboral normal, continuem a olhar para o ecrã, para verificar mais um email ou para acrescentarem qualquer coisa numa apresentação ou trabalho e, que têm conduzindo a alguns casos de “burnout”, agravados talvez pelo o confinamento. Na nossa empresa muitas pessoas sentiram-se agradecidas por terem voltado ao contacto com colegas nas instalações e a um ritmo mais normal. Setúbal Revista

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ENTREVISTA

“Que saudades da sensação de Liberdade” SÓNIA MORDIDO

Sónia Mordido é uma lisboeta que transporta no ADN o “bichinho” das aventuras em português... Adjunta entre 2011 e 2015 na Escola Portuguesa de Timor em Díli, é atualmente Subdiretora da Escola Portuguesa de Cabo Verde. Embora paladina convicta da língua de Camões nas Ilhas, não deixou de se encantar pelo charme das mornas e coladeiras cantadas com doce sotaque crioulo.. Qual é o panorama geral do país face ao Covid-19? Como tem reagido a população em confinamento? Que medidas foram tomadas pelo governo local? Em Cabo Verde, em Santiago, de momento já nos encontramos em fase desconfinamento, ainda que com algumas restrições, como bares e praias fechados e muitos dos serviços a necessitar de agendamento prévio. A 18 de março o Ministério das Finanças, Ministério da Administração Interna e Ministério da Saúde e Segurança Social – Gabinete dos Ministros, publicaram um Despacho Conjunto declarando a situação de Contingência em todo o território nacional. A 28 de Março um Decreto Presidencial determinou o Estado de Emergência em todo o país, estado esse que foi prorrogado mais duas vezes de acordo com os casos diagnosticados nas ilhas. Terminado o estado de emergência no dia 29 de maio, a primeira coisa que fiz, no dia 30, foi ir a uma esplanada, ver o mar e sentir aquele ar….Que saudades da sensação de liberdade. É este o local de onde vos estou a escrever... Como viveu a quarentena e quais as situações complexas ou diferentes com que se deparou? Na Escola Portuguesa respeitámos as orientações do Governo de Cabo Verde e terminámos as aulas a 20 de março. Du-

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rante uma semana ainda fomos, pontualmente, à escola para reuniões e avaliações, mas sem alunos. Após 29 de março ficámos todos em casa. Desde esse dia passei a sair de diariamente pelas 6h30h, para fazer algum exercício físico…Acho que o exercício era desculpa para sair de casa….E uma vez por semana para ir comprar comida, mas perto, porque não se podia circular de carro. A polícia estava nas estradas a controlar. O meu carro esteve estacionado à porta durante dois meses, parecia abandonado, já com teias de aranha…Inclusive, nas minhas saídas matinais, em que não me cruzava com ninguém, tive elemen-

tos do Instituto Nacional de Saúde Pública a abordar-me e a solicitar o meu regresso a casa. Em Cabo Verde, estiveram sempre muito atentos e foram rigorosos com as infrações. Como foi afetada a sua vida profissional, possíveis vantagens e desvantagens? Em termos de trabalho consegui continuar a fazer tudo de casa. Na escola, as aulas decorreram com ensino à distância, tendo sido implementado um plano E@D com recurso à plataforma TEAMS da Microsoft. Toda a gestão do processo de implementação foi feito a partir das nossas casas e todas as reuniões e “encon-


ENTREVISTA tros” através da referida plataforma. Vantagens, posso dizer que o facto de ter o escritório ali “à mão”, facilitava em muito a comunicação e a resolução de assuntos. As grandes desvantagens do escritório em casa, era estar onde eu era a empregada da limpeza, a cozinheira, sem um horário de trabalho e sempre a resolver problemas em frente a um pc ou ao telefone..Chega a uma altura que já estamos saturados e já ninguém tem vontade de atender, sequer, o telefone à família ou aos amigos. Com que tipo de situações foi confrontado a nível profissional face à Pandemia? Como as tem resolvido? Atualmente, consegue-se resolver quase tudo à distância de um “click”…Quando as condições das comunicações ajudam, claro. Muitas vezes o serviço de internet em Cabo Verde falha…No primeiro dia de aulas, nas sessões síncronas, estava com o coração nas mãos. Iam estar a funcionar seis sessões ao mesmo tempo, e eu pensei: ”se isto falha, temos cerca de 150 alunos à espera do nosso apoio e os pais”…Tive mesmo receio, mas correu lindamente e conseguimos funcionar como muitas das escolas em Portugal estão a funcionar. À parte desta situação particular da pandemia, o facto de trabalharmos no estrangeiro e para o Governo de Portugal, faz-nos recorrer muito a este tipo de comunicações. Como foi socializar em tempos de quarentena? Efetivamente, esta foi a parte de que senti mais falta. Estando a trabalhar longe do país, habituamo-nos a viver com os amigos. Como costumo dizer, os meus amigos aqui em Cabo Verde são a minha família. Passei os dias sozinha em casa. Na tentativa de matar as saudades ia falando com a família de Portugal e a de Cabo Verde. Cozinhei muito mais, de forma mais saudável, fiz mais exercício, contra todas as minhas expetativas! Assisti a espetáculos, concertos, “lives”… Mas estive sempre bem e o trabalho ajudou, e bastante, a passar o tempo. Olhando para trás, estes dois meses passaram a correr. Agora, com o retomar das relações pessoais vivemos uma situação muito estranha, todos de máscara, cruzarmo-nos com as pessoas e não termos contacto físico….Principalmente quando nos encontramos com os alunos, em que era habitual um abracinho e não podemos…Parece que nos tornámos desconhecidos e distantes… Tenho mesmo muitas saudades de um

abraço forte aos meus amigos…. Face a todos estes novos acontecimentos e experiências vividas o que acha que vai mudar no mundo profissional? E pessoal? Sinceramente, em termos de tecnologias e de novas ferramentas, toda esta situação foi uma mais valia. O ser humano naturalmente resiste à mudança e muitas das ferramentas agora utilizadas estavam à nossa disposição e prontas para

serem usadas, mas arranjávamos sempre uma desculpa para adiar….Estávamos bem assim, para quê mudar…Com todas as contingências resultantes da pandemia e do estado de emergência, fomos obrigados a utilizá-las e acabamos por ter formação em tempo real, o que se tornou muito mais eficaz… E neste momento adquirimos todos um conhecimento e prática em ferramentas que estavam a ser subaproveitadas.

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LIVROS E LEITURAS

SARA LOUREIRO Mestre em Ciências da Educação Mediadora de Leitura Produtora Cultural Co-fundadora da PLUS Academy

“(...) não posso adiar para outro século a minha vida nem o meu amor nem o meu grito de libertação (...)” António Ramos Rosa

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necessidade de escrever não se satisfaz. Sabem-no todos os que escrevem, todos os que conhecem a urgência e o vício da palavra e, mais especificamente, a vertigem da escrita de poesia. O exercício da escrita é algo íntimo, acontece diferentemente com uns e com outros. Foram vários os escritores que deram a conhecer as suas rotinas de trabalho, o modo como se embrenhavam e desenvolviam o processo criativo, como se (des)organizavam, como faziam jus à matéria prima, onde e quando partiam pedra e a cinzelavam. De Fernando Pessoa, por exemplo, em carta dirigida ao amigo e crítico literário Adolfo Casais Monteiro, temos todo um relato, ficcionado ou não, sobre o seu fazer poético, sobre o seu universo criativo, sobre a sua própria condição psiquiátrica, sobre a ori-

Joana Lopes Fotografia, 2018 ©Joana Lopes

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Não se pode adiar o poema para outro século


LIVROS E LEITURAS gem orgânica do seu heteronimismo, sobre a génese dos seus heterónimos, sobre a volúpia da escrita que o assaltou para dar à luz «O Guardador de Rebanhos», seu mestre e demais prole . Na referida carta, datada de 13 de Janeiro de 1935, Pessoa refere detalhadamente: “Num dia em que finalmente desistira — foi em 8 de Março de 1914 — acerqueime de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim.” De Mário Cesariny, o poeta-pintor, sabese que nunca terá escrito um poema em casa. Disse-o repetidamente. Sabia-o bem quem o conhecia e com ele privava. “Foi em cafés que escreveu os poemas. (...) Era nos cafés, e no que eles tinham

de rua, que se sentia verdadeiramente em casa. Cafés cheios de fumo e de fadiga e de fuga e de fúria. (...) Cafés que resumiam o seu entendimento da vida: café-manicómio, café-convés, café-asilo, café-escritório, café-quase-salão e, pois claro! café-de-engate.”, di-lo José Manuel dos Santos, seu amigo, no prefácio da obra «UMA GRANDE RAZÃO os poemas maiores» (CESARINY, 2007:7). Para além do descortinar dos trilhos de cada um na edificação poética, os poetas deixam plasmado, naquilo que escrevem, nas reflexões que tecem, nos versos dos seus poemas (metapoemas), o seu pensamento sobre o acto criador, sobre a escrita em si, sobre a palavra alada, sobre a urgência, a emergência e a vertigem da escrita. A este propósito, proferiu António Ramos Rosa, numa entrevista ao jornal Público, em 1994, republicada em 24 de Setembro, 2013: “(...) a necessidade

de escrever não se satisfaz, é a necessidade de tentar dizer o que nunca se disse, de procurar dizer algo que é, digamos, informulado... Eu tenho um poema que diz que o poeta procura escrever sempre o primeiro poema e nunca o escreve. Mas esse primeiro poema persegue-o sempre em cada poema que ele escreve e ele persegue esse primeiro poema que nunca chega a escrever. É por isso que ele escreve sempre.”

Esta vertigem da escrita e da poesia marcam a obra «A VIDA DE UM HOMEM QUE PERSEGUIA POEMAS», romance de Joana Lopes Fotografia, 2018 ©Joana Lopes

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LIVROS E LEITURAS estreia de Joana Lopes, autora de vários livros infanto-juvenis. Publicado em 2018, o livro trata do (des)encontro de um homem consigo próprio, com a sua essência, debatendo-se, enquanto isso, com uma obsessão debilitante e patológica pela escrita, pela poesia e uma incapacidade que o tolhia, impedindo-o de escrever o almejado poema, de “(...)provar o corpo interdito da poesia” (LOPES, 2018:65). Na abertura do livro é-nos apresentado um homem que retorna à aldeia, depois de uma longa ausência, sabendo que só a “morte” o poderia curar da opacidade em que vivia, desvelando o seu ser, recuperando-o para a vida, para o amor, quiçá para a vertigem da escrita libertadora. O homem de quarenta anos, que perseguia poemas, é o narrador protagonista e é, portanto, na primeira pessoa e num registo intimista, que a história é narrada, estabelecendo empatia entre a personagem e o leitor. O começo da narrativa faz-se “in ultimas res” (técnica literária em que a narrativa começa pelo fim), com as primeiras páginas dando conta de um homem sem nome, de uma aldeia também não identificada, à qual retorna, determinado, cerca de vinte anos depois de a ter deixado para trás: “Quase vinte anos depois, regresso à aldeia, regresso a esta casa, regresso a mim. Estremeço, sou um homem que vem para morrer, sou um homem que vem para nascer dessa morte, agora que estou finalmente lúcido, venho curar-me.” (LOPES, 2018:5). Com esta estratégia narrativa, fazendo lembrar os romances policiais, onde este tipo de abertura é comum, a autora consegue prender a atenção do leitor. Um início desta natureza irá reivindicar a posterior narração das situações que antecederam o episódio inicial, como forma de apresentar a trama em que o protagonista se vê envolvido. A narrativa, dividida em seis partes, sendo que a última é uma espécie de epílogo, decorrerá com sucessivas e recorrentes viagens entre o presente e o passado (analepses ou “flashbacks”), de modo a informar e esclarecer sobre factos passados determinantes para a construção da personagem, para a apresentação do conflito e para o desenvolvimento da diegese. As incursões na infância e na adolescência do protagonista, ditadas pelas memórias que a casa e os objectos suscitam, vão sendo encaixadas na narrativa, fazendo com que o leitor viaje entre pas-

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Joana Lopes Fotografia, 2018 ©Joana Lopes

sado e presente, conheça as sensações que o percorrem, conheça a casa, enquanto espaço e tempo de encontros e desencontros, muitos deles profundamente traumáticos e envoltos em grande sofrimento, como o abandono pelo pai, a morte da mãe e as várias situações de violência a que fora sujeito e que constituem momentos de grande tensão na

narrativa. Numa noite, percorrerá os seus quase quarenta anos de vida, numa espécie de monólogo interior, um discurso não pronunciado, sem ouvintes ou interlocutores, que se desenvolve na sua interioridade, no que em si existe de mais íntimo e profundo. Assim vamos adentrando na sua história de vida, na trama que sustenta e fundamenta a acção narrativa. A avó, mulher de semear coisas boas, é a primeira figura a ser evocada, por ser a figura de referência. O peito da avó, o consolo e a


LIVROS E LEITURAS

fragrância boa que toda ela exalava são uma constante ao longo deste desfiar de memórias, contrastando com as suas mãos rudes, sulcadas e gretadas, mas ainda assim gentis e de aroma floral. As mãos que o acariciavam e amparavam eram também as mãos doloridas que a ligavam ao mundo da ruralidade e às suas agruras, a uma pequena aldeia do interior amarrada a um passado-presente sombrio, preconceituoso e violento. Não é possível determinar objectivamente a época em que a narrativa se desenrola,

porque não identificada pela autora, mas percebe-se que não é remota (nota 1). Os momentos em que a autora se refere à mãe e à avó do protagonista são sempre de alumbramento, de grande beleza poética, de uma imagética rica e inspiradora, despertando o mundo dos sentidos e das emoções, usando palavras associadas ao universo das flores e a uma natureza diáfana. Ao longo da narrativa, a autora vai desenvolvendo um vocabulário próprio, sugestivo e vivido, com contornos da ruralidade, criando e recriando

palavras para narrar os acontecimentos ou usando-as de forma inusitada para nos apresentar as pessoas, sobretudo as figuras femininas, determinantes em toda a sua vida, os lugares, as situações, inventando novos verbos, novos adjectivos, reinventando significantes e significados, acrescentando-lhes polissemias, surpreendendo o leitor com a sua capacidade discursiva, criativa e poética. Joana Lopes surge, assim, a par de outros, como uma das autoras da nova geração a apostar na invenção e na Setúbal Revista

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LIVROS E LEITURAS reinvenção lexicais. Ao mesmo tempo, pondo estas palavras na boca do narrador protagonista, através de uma corrente de memórias e reflexões que este vai tecendo, a autora vai edificando a sua personagem, desvelando a sua singularidade, a sua alma poética, a sua sensibilidade e fineza, em contraste com a aspereza e a inclemência do universo em que se movimenta. O trabalho com a linguagem, realizado por Joana Lopes, evoca, em alguns momentos, a escrita “invencionática” (Nota 2) de Manoel de Barros. Neste universo de um dos mais prestigiados poetas brasileiros (Carlos Drummond de Andrade aclamava-o como o maior poeta brasileiro) assiste-se à reinvenção do código linguístico e da sintaxe, num trabalho de desconstrução das normas da língua, conferindo-lhe uma dimensão estética assinalável e com elevado grau de literariedade. A força imagética das suas palavras, das suas estórias, dos seus poemas, cumpre, para além do propósito literário, uma função questionadora do mundo e dos homens, como é próprio da literatura. Mia Couto e Ondjaki são outros dos autores tocados pelo “estilo manoelístico”, presente e recorrente nas suas obras. Em «A VIDA DE UM HOMEM QUE PERSEGUIA POEMAS» faz-se esse questionamento da sociedade, do preconceito, da intolerância, da estreiteza de pensamento, da violência de um mundo rural fechado sobre si próprio, sem haver lugar para falsas ideias bucólicas; ao mesmo tempo, é-nos proporcionado um vislumbre da grande cidade, onde se esconde e se desvela um mundo de sentidos e sentires, e para onde o homem que perseguia poemas vai viver na adultícia, após a morte da avó. A cidade, simultaneamente cheia e vazia, feita de multidões anónimas, pouco lhe proporcionará para além da solidão das paredes de uma casa nas alturas de um sexto andar, onde exerce o sonho adiado de escrever, e a agitação das estações de transportes, onde se torna varredor de tudo e da própria vida. Um varredor de lixo que ninguém vê: “Apesar de ninguém me ver, eu via toda a gente (...) Existia um movimento constante ao meu redor, toda a vida passava à frente da minha vassoura e, por conta disso, a minha cabeça enchia-se de poesia. (...) Tudo isto me enchia por dentro e me acrescentava vontade de escrever, enquanto varria, vinham-me à boca fluidos de regurgita-

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Joana Lopes Fotografia, 2018 ©Joana Lopes


LIVROS E LEITURAS ções poéticas. Como se eu fosse um tipo ruminante, que engolia as imagens e depois as tentava digerir, trazendo-as aos lábios inúmeras vezes.” (LOPES, 2018:78-79). Aquilo que entendia como uma doença e que fora ganhando contornos de uma espécie de perturbação obsessivo-compulsiva, cada vez mais debilitante, recrudescera com a vida na cidade, perseguindo palavras, numa espécie de coleccionismo cada vez mais solitário, almejando o poema que teimava em não nascer, exercitando-o em segredo, faminto, escondendo-o e escondendo-se, isolando-se até à loucura para tentar exercer e saciar o vício. Ao mesmo tempo, percebia cada vez mais e melhor de onde provinha esta sua insânia, esta incapacidade, como havia chegado àquele quadro de loucura e solidão, acontecendo o mesmo com o leitor, à medida que a diegese avança: “ Naquele momento em que tudo ardia, o meu espírito ganhava uma lucidez que me permitia perceber como a minha obsessão de escrever poemas cavalgara (...). Então entendi, olhando os livros em chamas, que um poeta tinha de ser translúcido, para que quando olhasse para si mesmo e decidisse escrever, a verdade emergisse sem espaço para se esconder.” (LOPES, 2018:88-89). Restava-lhe regressar à aldeia. Viver o luto para não viver em luto. Encontrar e encontrar-se, para descobrir, finalmente, que ele seria, porventura, o próprio poema. E é disto que trata o epílogo do livro: “(...) parti numa viagem de reminiscência e cura (...) e escrevi aquela que foi a minha história (...). Dos meus olhos desagua a ventura, um fragmento de mar, o mar funde-se com o rio, o rio é um poema, o poema está em mim (...)”, (LOPES, 2018:93-95). Evocando T. S. Eliot “O que chamamos o começo é muitas vezes o fim/E fazer um fim é fazer um começo./O fim é de onde nós partimos.” (ELIOT, 2004:91). Joana Lopes, estreante no romance, mas já com créditos firmados no âmbito da literatura infanto-juvenil, a merecer uma reedição/revisão aprimorada desta sua obra, que não deixa ninguém indiferente. Das suas páginas ressuma um talento jovem promissor no panorama literário português, habitado por outros nomes de jovens autores que vieram para ficar. Notas: (1)Não existem, na obra, informantes

temporais concretos que permitam situar a acção numa determinada época; contudo, numa das viagens ao passado, o protagonista recupera o tempo em que teria os seus dezasseis anos e aí faz referência a um “walkman” (pág. 55), como sendo algo que gostaria de ter tido na altura. Estes primeiros leitores de áudio surgiram em Abril de 1979, no Japão, e pertenciam à Sony, tendo conseguido enorme sucesso entre 1979 e 1981. Há um outro elemento significativo: aquando da sua ida para a cidade, teria o protagonista os seus dezassete anos, ele refere a existência de “(...) palavras de luta pintadas nos edifícios” (pág. 74), deixando perceber que as paredes espelhavam épocas de agitação social e de reivindicação explícita por parte do povo. Estes serão, porventura, os poucos informantes que poderão ajudar a encontrar balizas temporais para situar a narrativa no tempo, mais especificamente a adolescência do protagonista, levando a crer que tal decorre nos anos oitenta do século XX. Há, ainda, uma referência a uma máquina de escrever Olivetti Studio 42 ( pág. 90; ter uma máquina de escrever fazia parte do seu imaginário de adolescente...), que lhe terá sido oferecida quando sai do hospital, homem de quarenta anos, já perto do fecho da narrativa e que, se não se configura como um anacronismo (numa época em que os computadores se haviam instalado), terá, aqui, porventura, um sentido figurado, tratando-se de uma metonímia, remetendo para o processo da escrita, mediando-o. A escrita, algo sempre tão distante e interdito, estaria, então, perto de se efectivar. Realizava-se, desse modo, o sonho de possuir a máquina e o sonho de ser capaz de escrever. (2) “Invencionática” integra o “ideoleto manoelês archaico”, como o próprio Manoel de Barros lhe chama, e surge num dos versos do poema “O Apanhador de Desperdícios”. Referências Bibliográficas CESARINY, Mário. UMA GRANDE RAZÃO os poemas maiores. ASSÍRIO & ALVIM. Lisboa. 2007 ELIOT, T. S. QUATRO QUARTETOS. RELÓGIO D’ÁGUA. Lisboa. 2004 LOPES, Joana. A VIDA DE UM HOMEM QUE PERSEGUIA POEMAS. ALÊTHEIA. Lisboa. 2018 PESSOA, Fernando. «Carta a Adolfo Casais Monteiro - 13 Jan. 1935». http://arquivopessoa.net/textos/300. n Setúbal Revista

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CULTURA

ISABEL OLIVEIRA MARQUES Poema Sobre Imagens Fotografia: Cristo de Maria Amália Marrafa

Dois olhares sobre...

“O lugar onde a fotografia e as palavras se encontram”.

“A Preto e Branco” MANDELA Um CRISTO NEGRO visitou a terra braços abertos alma lavada e a CRUZ guardada à sua espera Roubaram-lhe quase tudo vida lar o pôr do sol austral (ninguém lhe roubou a liberdade) chegou a tempo sobrou-lhe idade para acender na escuridão o seu sinal viver amores e deixar com bandeira branca o seu olhar justo e sereno num terno abraço à humanidade quem dera tenha adormecido a sonhar com anjos de todas as cores...

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CULTURA

Ninguém é uma raça. As raças são fardas que vestimos (...) Mas eu aprendi, tarde demais, que essa farda se cola, às vezes, à alma dos homens...

Mia Couto

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CENAS DA VIDA FAMILIAR

JORGE SANTOS FORRETA Médico

Bidonville: o Caso da Velha Morta, Atrelada ao Renault Dezasseis

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Monsieur Ferreirá e aos que sobreviveram na bidonville., Aos que partiram, Todos eles vencedores. Porque a História é feita destes heróis: gente (in)vulgar, de carne e osso. I Quem conta um conto, acrescenta-lhe sete ou oito: - Sete mil e quinhentos escudos, já vê, doutor, naquela época... Sete contos e o "passaporte do coelho", traduzido por graúdos: a salto. Fugiam do Estado Novo e do velho, autoridade, austeridade, ruralidade, miséria; engajadores, aliciadores de taberna, prometiam o trabalho bem remunerado que aqui escasseava, um e outro. Mundos e fundos, Paris, a cidade-luz, a luz ao fundo do túnel. O salto, quase dois milhões, - Gnus e zebras a lançar-se à água, doutor, a Guardia Civil e a Pide... Crocodilos, sorrateiros, sempre dispostos à dentada. E os pica-chouriços, para a malta escondida na palha. Um bom negócio: a Europa destruída do pós-guerra e a precisar mais do que uma mão, os gendarmes que fechavam os olhos e a França a vender armas ao ditador, para a guerra ultramarina. Percebe-se a dureza do salto: só eles partiam, elas ficavam, assegurava-se as remessas. Salazar escondia os olhos sob as fendas palpebrais, entreabertas. Madame Ferreirá, ficou, Monsieur José fez-se à lua, boa nova, chegou a Paris e engrossou a bidonville: chegou para a construção, foi chauffeur e coiffeur, sempre um champigny. Um avec.

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II À altura, morávamos três num barraco, duas portas, uma para entrar outra para sair sem identificação, uma janela; perto, sobrevivia uma família de lusos quaisquer coisas, três gerações num cubículo menos pequeno que o nosso. Um dia, a velha morreu, os documentos para lá, cá, em Bragança e, sem estes, enterrar... Maneira, havia, o dinheiro tudo compra e tudo arranja, mas... Mas: o dinheiro mais a Pátria, junto aos "seus". Rumaram a Portugal, a velha enrolada nos cobertores que não sobra-

vam, a passear-se no atrelado ao Renault dezasseis. Uma bomba! Uns minutos para descansar, acordaram já o sol ia alto, para os meios de Espanha. Sem atrelado, roubado durante a noite, lua nova, como quando cabriolaram a fronteira. Não se queixaram. - E quem levou o presente, doutor, também nunca o fez!... Tudo está bem quando acaba mal. Talvez por isso a Madame Ferreirá prefira o chouriço espanhol, que continua mais barato... cenasdavidafamiliar.blogspot.com n


CULINÁRIA


CULINÁRIA

Semifrio de morango

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esta vez trago-vos um semifrio perfeito para um dia ensolarado. Trata-se de um sorvete repleto de morangos, chocolate branco e suspiros crocantes.

Ingredientes: 200 g de chocolate branco 200 ml de natas para bater 1 lata de leite condensado 1 iogurte grego natural açucarado Sumo de limão 1 colher (sobremesa) de extrato de baunilha 5-6 suspiros médios (cerca de 80 g), mais alguns para a decoração 400 g de morangos frescos partidos em pedaços

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CULINÁRIA Modo de preparação Forre uma forma, do tipo “bolo inglês”, com película aderente deixando um rebordo para o lado de fora. Leve cerca de 150 g do chocolate branco a derreter em banho maria ou ao micro-ondas, mexendo de 30 em 30 segundos para não queimar e até ficar cremoso. Depois de derretido deixe arrefecer um pouco. Pique a o restante chocolate e reserve. Bata as natas em chantilly juntamente com 1 colher de sopa de sumo de limão, adicione a baunilha e o leite condensado e misture até formar picos macios. Com a ajuda de uma colher de pau, junte o iogurte, o chocolate derretido e envolva com muito cuidado para não quebrar o creme. Por fim, envolva delicadamente os morangos partidos em pedaços, o chocolate branco picado e os suspiros esmagados. Verta o creme na forma, alise a superfície, tape com película aderente e leve ao congelador de preferência de um dia para o outro (no mínimo deverá ficar 8-10 horas no congelador). Entretanto prepare um molho de morango. Num tacho, coloque cerca de 5-6 morangos e 2 colheres de sopa de açúcar. Leve ao lume, mexendo frequentemente, até a mistura levantar fervura. Baixe o lume e deixe cozinhar por cerca de 8 a 10 minutos, ou até a fruta começar a desfazer-se. Passe a mistura pela varinha mágica e coe por forma a descartar as sementes. Retirar do congelador o semifrio, cerca de 10-15 minutos antes de servir, verta o molho de morango por cima e decore ao seu gosto. Sirva fresco. n

Com o apoio de Merengue & Chocolate email: merengueechocolate@gmail.com Setúbal Revista

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CULINÁRIA

O Desafio Verde

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tema sustentabilidade é do teu interesse? Alimentação e estilo de vida consciente dizem-te alguma coisa? Então sê bem-vindo a este novo espaço. O desafio Verde é um espaço, aqui na Setúbal Revista, onde irei abordar estes temas de acordo com a minha perspetiva e experiência de vida. Sou a Joana, autora de uma página recente no intragram- Cookie Food Project- onde partilho as minhas receitas que seguem o meu estilo de vida. Apaixonada pela cozinha e pelo ambiente, aos 16 anos tornei-me vegana. Esta página surgiu devido ao despertar da curiosidade de muitos dos meus colegas, quando trazia a minha marmita para a escola e as perguntas surgiam: O que estás a comer? Como fizeste? És mesmo tu que cozinhas?.... Senti então a necessidade de criar uma conta para tentar responder a todas essas questões. O meu percurso de transição para o veganismo foi lento, primeiro deixando apenas a carne, mais tarde os laticínios, e por fim, o peixe. Talvez até rápido para muitos, mas no que toca a este tema cada um tem o seu ritmo, o essencial é que nos sintamos bem e acima de tudo fazermos as escolhas certas, nunca pondo a nossa saúde em risco. Bom, em relação a este projeto aqui na revista, tenho como objetivos: partilhar algumas receitas, claro; abordar o tema da sustentabilidade ao nível da alimentação, moda e estilo de vida. Pretendo quebrar alguns mitos relacionados com o tema, assim como transmitir toda a

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Setúbal Revista

minha experiência neste longo percurso que estou a fazer. Penso que, para a maioria de vós, não serei a típica adolescente de 17 anos. Em vez de sair à noite, prefiro ficar em casa a testar receitas e a cozinhar. Adoro ir ao mercado comprar os meus legumes frescos e outras iguarias. Adoro experimentar novos restaurantes. Adoro visitar quintas e produtores de agricultura biológica e a esse propósito, também falarei num outro artigo de algumas pessoas que me são especiais, residentes de setúbal, que trabalham e vivem de uma forma sustentável. Deixo-vos, neste primeiro artigo, algumas curiosidades: - Sabem quantos litros de água são necessários para produzir um quilo de carne? São cerca de 15 mil litros! Pensem neste valor vezes a quantidade de pessoas que consomem estes alimentos…. Hoje em dia a OMS (Organização Mundial de Saúde), já recomenda a diminuição do consumo de carne assim,

segundo esta, devemos de consumir apenas entre 300 a 500g de carne por semana, já pesaram os vossos bifes? - Sabem quanto tempo demora uma galinha a crescer naturalmente até atingir o seu peso mínimo para consumo? São cerca de 80 dias, no entanto, devido ao aumento da população e da procura, uma galinha em cativeiro demora apenas 40 dias. Não fiquem assustados! Outras dicas, informações e curiosidades vos deixarei nos meus próximos artigos da Setúbal Revista. Cá vos aguardo e espero que gostem. A primeira receita da Joana…. Então aqui vos deixo, na página ao lado, a primeira receita de forma a vos inspirar. Gostava de estreitar o contato com o leitor e assim sendo qualquer dúvida, ou até mesmo se quiserem sugerir algum tema em especial, deixemme uma mensagem na minha página do instagram. n


CULINÁRIA

Muffins de Banana e Mirtilos Ingredientes para 7-8 muffins: - 4 banas bem maduras; - 2 c.s de adoçante líquido natural (xarope de tâmaras, agave, geleia de arroz…); - 3 c.s de bebida vegetal (usei de amêndoa); - 3 c.s de óleo de côco derretido; - 1 c.c de estrato de baunilha; - 200g de farinha de espelta integral; - 1 c.c de fermento em pó; - 1 c.c de bicarbonato de sódio; - 150g de mirtilos frescos ou congelados.

Modo de preparação Pré-aqueça o forno a 180º C e unte formas para muffins/queques. Numa processadora de alimentos junte as bananas e todos os ingredientes líquidos, triture. De seguida, adicione os sólidos exceto os mirtilos e misture até obter uma massa cremosa. Passe a massa para uma taça, acrescente os mirtilos e envolva bem. Com a ajuda de duas colheres de sopa coloque a massa nas formas e leve ao forno cerca de 25-30 min. Ou até estarem cozidos. Bom apepite. n Setúbal Revista

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CONSULTÓRIO JURÍDICO

George Floyd NUNO CASTRO LUIS Advogado

Para uma criança, ainda sem preconceitos, uma pessoa é uma pessoa

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a sequência das horríveis e cruas imagens do homicídio de George Floyd, por um polícia em exercício de funções, criouse um movimento de contestação social, não só por repugnância ao ato em si, mas por se considerar que teria acontecido por se tratar de um afro-americano. Ninguém terá dúvidas que se trata de um homicídio qualificado, seja por empregar um ato de crueldade, seja por ser funcionário policial e praticar os factos com abuso de autoridade, onde a total desproporcionalidade de meios não deixará margem para a não admissão de um dolo (pelo menos necessário, se não mesmo direto), seja por alegadamente traduzir ódio racial, subsumível, em Portugal, em várias alíneas do artigo 132º, nº2, do Código Penal, onde está tipificado esse crime. Nos Estados Unidos da América, apesar do regime jurídico totalmente diferenciado, não haverá grandes dúvidas da existência de um crime similar. Não consegui ver a totalidade das imagens, ficando-me pelos relatos dos comentadores e pelos pequenos flashes que foram sendo transmitidos nos serviços noticiosos. É claro que o princípio da igualdade, consagrado constitucionalmente em Portugal, mas também nos Estados Unidos da América, não pode admitir, no século XXI, quaisquer interpretações que não sejam as de literalmente ninguém ser discriminado em razão da sua cor de pele. Não há discussão possível quanto a isso, nem aqui, nem no outro lado do Atlântico. É claro que o abuso de autoridade, ainda mais quando leva à morte de alguém, só pode ser reprovado. Quanto a isto não poderá haver, julgo eu, nenhuma posição sensata que não o defenda, seja de forma mais comedida,

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seja em manifestações públicas, como as que aconteceram um pouco por todo o mundo, até mesmo em Portugal. O que já traz inquietação, pelo menos deveria trazer, é a generalização abusiva que é feita a partir de uma causa incontestada, no caso traduzindo-se numa quase diabolização da polícia, de todos os polícias, esquecendo que o polícia assassino é a exceção, que não retrata a instituição, nem os seus elementos. Se é fundamental que toda a sociedade assimile que ninguém pode ser discriminado pela sua cor, é igualmente fundamental que toda a sociedade assimile que um mau polícia não é a Polícia, um

mau professor não é a Escola, um mau médico não é o Sistema Nacional de Saúde, um mau padre não é a Igreja, um mau juiz ou advogado não é a Justiça. Por razões profissionais, dei aulas no Instituto Superior de Ciências Policiais, em Lisboa, onde convivi com policias, presentes e futuros, de grande qualidade técnica, pessoal, cultural, com um comportamento ético e um compromisso com a sociedade ao nível da excelência. Grandes e verdadeiros humanistas que, de um modo geral, seriam bons em qualquer profissão e que são, na verdade, excelentes policias. Atentar contra toda uma função essen-


CONSULTÓRIO JURÍDICO cial da sociedade, com base em casos, para além de desrazoável e injusto é perigoso, muito perigoso, para uma sociedade que se quer de “direito” e livre de abusos. O que traz, igualmente, inquietação é a forma como o património, representativo ou não de eventuais ideais ou épocas culturais, sociais ou políticas, foi vandalizado e até destruído. Pode discutir-se o papel de uma figura histórica e a sua relevância para a Humanidade, pode incorrer-se na grande tentação de julgar os factos de ontem à luz dos olhos de hoje (método totalmente inconcebível e até intelectualmente muito limitado, por considerar que apenas os nossos valores podem ser referência para todas as épocas históricas, em vez de aproveitar os símbolos de erros do passado para explicar por que não se devem repetir no presente). O que já não é admissível, e é crime, é a destruição de património público, seja qual for, gostemos ou não do que é e do que simboliza. Relembro, se outra não puder ser a desmotivação para a prática dos atos que foram sendo praticados contra estátuas e monumentos, que destruir, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável um monumento público, coisa pertencente ao património cultural e coisa com valor artístico ou histórico é crime de dano qualificado, com pena de prisão até oito anos. Não se pode admitir que, seja quem for, atente, por convicções pessoais ou sociais, contra o património histórico, por poder conduzir a situações de verdadeiro abuso individual e desrespeito por todos, mesmo aqueles que sofreram no passado às mãos de quem é representado. D. Manuel, no século XVI, juntou vários judeus no Terreiro do Paço e obrigou-os a um baptismo forçado, tornando-os, contra vontade, em cristãos-novos. Ninguém, aos olhos de hoje, poderia aceitar tal ato. Legitimará um ataque contra o Terreiro do Paço, ou contra o Mosteiro dos Jerónimos? Para terminar não poderei deixar de me referir às dificuldades que, por educação, ética ou respeito, muitas vezes nos confrontamos quando temos de falar de alguém com cor diferente. Não será essa escolha criteriosa das palavras (que não critico por que também a faço) um sinal de que há algum receio de tratamento desigual? Um dos meus filhos, ao ouvir as imensas

notícias sobre a morte de George Floyd, e no meio da sua ingenuidade, perguntou-me por que razão algumas pessoas diziam afro-americano, outras negro e outras, ainda, preto. Dei-lhe a resposta mais educativa que, à primeira vista, encontrei: que afro-americano era uma forma mais socialmente correta de descrever a característica daquele senhor hediondamente assassinado, pela sua ascendência e não diretamente pela cor da pele, ainda que, na verdade, todos pensassem nas palavras “negro” ou “preto” quando o diziam. Expliquei-lhe que o mais importante era que uma pessoa perdera a vida, mas que a utilização de “negro” era pejorativa, principalmente em culturas onde houve escravatura. Na verdade, também a palavra “preto” passou a ter uma carga por vezes criticada, nomeadamente em países ex-colonizadores, pelo que se procurou formas de enquadrar a pessoa pelos locais da sua eventual proveniência. Não lhe fez sentido. Para uma criança, ainda sem preconceitos, uma pessoa é uma pessoa. Se é louro, se é ruivo, se é branco, se é preto, é uma pessoa. O resto deveria ser totalmente secundário, devendo a escolha da palavra para definir uma característica (e não a pessoa) ser meramente irrelevante.

Infelizmente não é. Lembrei-me de um livro que li há pouco, de um autor espanhol, Manuel Vilas*, que ao referir-se à mãe que apanhava muito sol e ficava muito bronzeada, escreve: “Passava o Verão inteiro a apanhar sol. Depois ficava preta, como se mudasse de raça. E gostava que as pessoas lhe dissessem isso: «estás preta». Não diziam «estás bronzeada; na altura, em Espanha, dizia-se «estás tão preta» […]. A chegada do medo faz com que as pessoas falem com outro sotaque, com outra pronúncia. A minha nostalgia é a nostalgia de uma maneira de falar espanhol. A minha nostalgia é de um mundo sem medo”. Que bom seria viver numa sociedade onde dizer “branco”, “preto” ou “negro” fosse irrelevante, por ser apenas uma das características do que verdadeiramente interessa, a pessoa. Que bom seria viver numa sociedade onde o património não fosse vandalizado e as ofensas a toda uma classe por causa de um mau profissional não existisse. Que bom seria viver numa sociedade onde não houvesse mais casos “George Floyd”. Gostaria que essa fosse a nossa nostalgia. * Manuel Vilas, Em tudo havia beleza [Ordesa], Alfaguara, 2019, p.269. n Setúbal Revista

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VIAGENS

Não foi fácil chegar… ou melhor, não foi fácil aterrar na Ilha da Madeira!

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izem que é comum mas, tendo a maior parte dos voos anteriores sido cancelados devido aos ventos que se faziam sentir, não ficámos muito tranquilos quando o avião começou a balançar. O Miguel devia ter uns 8 anos, vinha com a mãe ao meu lado, portou-se como um homenzinho e quando aterrámos, disse: – Acho que não quero voltar a andar de avião… com este piloto!! Um mimo de criança!!! Felizmente, tudo correu bem e lá chegámos ao Aeroporto Cristiano Ronaldo. Não vimos o busto do Melhor do Mundo. Imperdoável mas, sinceramente, não me lembrei!! A origem vulcânica da Ilha da Madeira, que a torna montanhosa e de ruas bastante inclinadas, faz com que não seja o

Sofia em Viagem Após um acidente de viação, no qual ficou paraplégica, Sofia passou a deslocar-se em cadeira de rodas. O facto de fazer algumas viagens e as dificuldades que encontra, desde o planear até à viagem em si mesma, levaram-na a partilhar as suas experiências com o objectivo de inspirar ou facilitar essa tarefa a outras pessoas. É no blog JustGo by Sofia que o faz, sendo, também, um espaço de divulgação e promoção de boas práticas de turismo, em termos de acessibilidades, para pessoas com mobilidade reduzida. http://justgo.com.pt

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local mais acessível onde já estive! Não é que não existam acessibilidades, elas existem. Os passeios estão rebaixados, existem lugares de estacionamento para mobilidade reduzida e rampas, muitas rampas!! O maior problema é a inclinação muito acentuada das ruas. Alugar carro para explorar a Ilha Para passar uns dias na Ilha e poder explorá-la, o melhor é alugar um carro. Claro que existem tours para todas as atracções da ilha mas torna-se muito mais simples, principalmente para quem tem mobilidade reduzida, alugar um carro e não estar dependente de horários e transportes adaptados. Passear pela ilha, de carro, é uma verdadeira aventura, por vezes radical … Apanhámos alguns sustos. Passámos por ruas tão inclinadas que pensámos que o


VIAGENS

carro não teria força para as subir, aliás é melhor não alugar o carro mais barato e, consequentemente, com menos potência! A pior situação que tivemos foi quando, numa dessas subidas, nos aparece um autocarro pela frente no qual, por pouco, não batemos. Situações em que a última coisa que queremos é abrandar e, muito menos, parar porque, depois, é uma carga de trabalhos e uma quantidade enorme de palavrões que temos de ouvir de quem vai a conduzir!! Porto Moniz Rumo a Porto Moniz, foram várias as vezes que nos cruzámos com as nuvens. Passámos por paisagens lindíssimas no caminho montanhoso que fizemos até lá. Já no regresso, não podíamos deixar de escolher a antiga estrada que percorre a encosta daquela zona da Ilha pelo menos nos troços permitidos já que muitos se encontram encerrados por questões de segurança. É de cortar a respiração só de pensar que alguém passava por alguns desses caminhos, no entanto, a beleza é tal que vale a pena parar nalguns pontos para observar de longe, ou então, fazer alguns metros a pé, onde é possível. Não sei quantos túneis existem na Ilha mas passámos por umas boas dezenas. É impressionante a obra feita e difícil de imaginar como seria antes, pois as estradas estreitas e o risco de queda de pedras das encostas não nos deixam assim tão descontraídos nalguns pontos. Uma das principais atracções de Porto Moniz são os dois complexos de piscinas Setúbal Revista

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VIAGENS

naturais para onde apetece mesmo “saltar”. Têm acesso para pessoas com mobilidade reduzida e segundo o site do município a entrada é gratuita para cidadãos portadores de cartão de deficiente com grau igual ou superior a 60 %.

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Pico do Areeiro Outro ponto a não perder é o Pico do Areeiro. Mais uma vez, paisagens fantásticas e, mais uma vez, estradas em que não se percebe como passam os

grandes autocarros que aí fazem excursões. Não é o local mais alto da Ilha mas é o de melhor acesso ficando a 1818 metros. À medida que subimos vamos cortando as nuvens que dão um efeito maravilhoso quando se entrelaçam com


VIAGENS

os picos das montanhas. Ao chegar ao Pico, reparo logo numa plataforma eléctrica para ultrapassar a escadaria e subir ao miradouro. Muito bem!!! O pior foi saber que estava avariado e, segundo algumas pessoas que aí trabalham, nunca funcionou…. Meus senhores? Pensaram bem, fizeram bem, gastaram o dinheiro e .. nunca funcionou??? Não consigo entender!!! Do Pico do Areeiro sai um dos percursos pedestres mais bonitos da ilha, segundo dizem, difícil para muitos, impossível para outros. Não fiz nenhum por falta de tempo, mas fiquei com muita vontade de fazer “Um Caminho Para Todos”, acessível a pessoas com mobilidade reduzida. Seguimos em direcção a Paúl da Serra mas o caminho estava fechado devido a obras e optámos por outro. O Paúl da Serra é o local mais plano da Ilha ficando a 1500 metros de altitude. Daqui, partem muitos dos caminhos pedestres em várias direcções atravessando, alguns deles, a Floresta Laurissilva, considerada Património Natural da Humanidade pela UNESCO em 1999.

Machico revelou-se um cantinho muito agradável onde almoçámos muito bem, mais uma vez! Gastronomia A gastronomia da Madeira, só por si, justifica uma visita à Ilha, pelo menos para quem gosta de petiscos, como eu. Lapas e Bolo do Caco, teve que ser todos os dias! As famosas espetadas em pau de louro acompanhadas com os cubos de milho frito são maravilhosas, os filetes de peixe espada são uma delícia, o atum marinado, um belo petisco que, neste momento, já ia!!! Bem, o melhor é passar já à Poncha e terminar em beleza.

A Ilha da Madeira é uma autêntica maravilha da natureza! Tem muito para explorar, as pessoas são uma simpatia e sempre disponíveis. A gastronomia é irresistível e de arrasar com qualquer dieta. O clima ameno convida a uma visita em qualquer altura do ano e é impossível não nos rendermos a tantos encantos. Há muito que queria conhecer o Funchal, uma cidade muito agradável. Apesar das dificuldades encontradas, como diz Miguel Torga, em qualquer Viagem, “O que importa é partir, não é chegar”. JustGo!! Ano da viagem: 2018. n

Machico Na costa leste, fomos até Machico, uma cidade rica em cultura, história e natureza. Foi aqui que tudo começou em 1419 quando navegadores portugueses descobriram a Madeira. Se fizer uma pesquisa, vai encontrar uma série de actividades que pode fazer mas o melhor, mesmo, foi encontrar uma praia acessível. Setúbal Revista

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