Setúbal Revista Nr. 14

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Revista Bimensal | N.º 14 - II Série - 3º Ano Dezembro 2018 / Janeiro 2019

CULINÁRIA

Bolo de sementes de papoila e glacé de limão

A NA SSOFIA OFIA M ARTINS ANA MARTINS ““Quero Quero iinspirar nspirar aas s ppessoas essoas ccom om m obilidade mobilidade rreduzida eduzida aa ssaírem aírem ´´ dde e ccasa” asa”

Não existem limites para os nossos sonhos, basta acreditar!



EDITORIAL

O Novo Natal...

`tÜ|t ]ÉûÉ YxÜÜÉ Diretora Editorial

J

á lá vai o tempo, em que o Natal consistia única e exclusivamente na reunião familiar, na celebração do Cristianismo ou na celebração secular de uma religião. Foi assim durante muitas centenas de anos, quando o desenvolvimento das sociedades ainda andava devagar, e mudava a passo lento. O Natal sofreu uma drástica mudança, desde há 50 anos a esta parte. Natal, hoje, séc. XXI, acarreta consumo, troca por troca, voluntariados momentâneos, donativos pontuais, festas e jantares onde ninguém lhe apetece ir e, acima de tudo, para muitos, uma "grande dor de cabeça". Porque já não lhes parece fazer sentido, porque se "gasta muito dinheiro", porque talvez se tenham perdido alguns valores re-

FICHA TÉCNICA

lacionados com a familia, com a própria religião e porque, acima de tudo, as sociedades evoluem, as crenças transformam-se e a economia de consumo é rainha e senhora destas datas. Fará muito sentido certamente para as crianças, existe uma magia natalicia que é cativante e atrai os mais pequenos, os presentes, os cheiros, os aromas, as maravilhosas receitas de Natal. Tudo faz sentido enquanto as crianças não se apercebem de um todo complexo dinamismo relacional, e do intenso consumismo, que deita abaixo a magia natalícia. Talvez as coisas tenham realmente mudado, nos últimos 50 anos. Se analisarmos o mercado do turismo constatamos que, por exemplo, se vendem imensas viagens nesta quadra, os valores atingem scores nunca antes registados, e os restaurantes começam a ter, no dia 24 de Dezembro, reservas como nunca tiveram anteriormente, aliás nem estariam abertos nessa quadra, nesse dia em específico. Este facto seria completamente escandaloso, na sociedade portuguesa, se praticada por Cristãos há 50 anos atrás. Imaginem o que seria? Algo mudou, algo está a mudar todos os anos, e só nos resta ter plasticidade e adaptarmo-nos a este novo

conceito de Natal. Vivemos numa sociedade que se caracteriza por um "estado líquido", pela impermanência de tudo, onde ser plástico é necessário e ajustado do ponto de vista evolutivo. Aceitar a mudança e deixarmo-nos levar por ela, sem resistências, nem juízos de valor. E é esta felicidade natalícia que escolhemos para partilhar convosco neste numero da SER, através dos vários artigos dos nossos colaboradores. Escolhemos um exemplo de resiliência e de coragem: Entrevista com Sofia Martins. Escolhemos ainda a oportunidade de divulgação do seu blogue: JustGo by Sofia, um blogue, de uma Setubalense, reconhecida internacionalmente, onde a resiliência e a plasticidade ocupam espaço, no Natal, no Carnaval, na Páscoa ou em qualquer outra data emblemática. Neste segundo número, em formato digital, falaremos de outras resiliências e noutras transgressões, ir mais além do que seria expetável. Teremos a colaboração de Alex-na-Lutécia, uma nova colaboradora e nossa representante em Paris. E a colaboração de uma equipa de resilientes e "transgressores" que tenho toda a honra em ter comigo. Espero que gostem! Desejos de Boas Festas a todos. Bem Hajam! n

Setúbal Revista – Registo na ERC: 126664; Depósito Legal Nr. 390882/15 Propriedade: João, Pedro & Armindo, Lda; Diretora Editorial: Maria João Ferro; Editores: Maria João Ferro. Colaboram nesta edição: Ana Paula Saraiva; Maria Pereira; Isabel Marques; Maria do Carmo Branco; Nuno Castro Luís; Jorge dos Santos Forreta; Paula Cunha e Silva; Eugenia Canito; Silvia Silva; José Gomes; Alexandra Aleixo; José Nobre; Carolina Bico; Alexandra Mendes; Cristina Pinho. Contactos: redacao@setubalrevista.com - Avenida 5 de Outubro, 111, 2900-312 Setúbal; Publicidade: 967 122 006 - Estatuto Editorial em www.setubalrevista.com

Setúbal Revista respeita a opção dos seus colaboradores quanto ao Acordo Ortográfico Setúbal Revista

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SUMÁRIO ENTREVISTA

P.17 A 28

SOCIEDADE

P.12 E 13

Não existem limites para os nossos sonhos, basta acreditar! "Berlim, a cidade onde me aventurava a ir sozinha, sem problemas nenhuns..."

CULINÁRIA

P.32 E 33

Ana Sofia Martins sempre viajou desde pequena, acompanhada pelos pais e o irmão. Aos 24 anos, um acidente de viação deixou-a numa cadeira de rodas. O seu lema é aproveitar a vida ao máximo, independentemente de todas as barreiras físicas e de todos os preconceitos. Mais conhecida por Kiki Martins, Ana Sofia Martins, de 48 anos, é engenheira informática. Há cerca de um ano criou o blogue JustGo bysofia, onde relata as suas experiências de viagens pelo mundo, e alerta para a questão das acessibilidades.

CENAS DA VIDA FAMILIAR

P. 14 E 15

Bolo de sementes de papoila e glacé de limão OPINIÃO

Setúbal, ao Tempo da Segunda Guerra Portugal, anos quarenta. Reza, assim, o Livro de Leitura da 3ª Classe: - Menino, sabes o que é a Pátria?

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Consumismo e Natal

P.34 E 35


CULTURA

JOSÉ NOBRE Actor

TERRA - MÃE

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etúbal? Desculpa, sim, tu. Sei que talvez não devesses ouvir um vulgo mortal, da forma como te chama, tratando-te quase como a um igual. Sei que nunca te conhecerei como me conheces, que tens recantos que nunca vi, prismas de que nunca te vislumbrei, segredos, mistérios, para lá do encanto que me é permitido e que diariamente partilho. Não és só linda pelos olhos azuis nos quais o Sado se reflecte, nem pelas vestes com que te ornas da cor da serra, nem pelo brilho que emanas e que faz do Sol o espelho com que te encantas — és linda porque te pertenço, e não consigo tratar uma mãe doutro modo. Maltratam-te, ainda, como sempre fazem a qualquer beleza expontânea que não consigam igualar, ou compreender, e os teus filhos sofrem por ti, enquanto os 'outros' te culpam por madrasta. Perdoas, porque não conheces outro modo de agir; sofremos e lutamos, porque é a nossa condição. Nunca te conquistaremos senão com o olhar, nunca permitas que te percamos de vista tal como és: a bela, humilde, hospitaleira, sensual, inspiradora, subtil, maravilhosa Setúbal.n

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TURISMO

ALEX-EM-LUTÉCIA Correspondente em Paris, França

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esci as escadas de madeira em caracol aperaltadas de vermelho vivo e saí para a rua onde as luzes do fim de tarde gelado de um dia bem típico de começo de inverno em Paris, se faziam anunciar. No carro acertei o GPS para o deuxième arrondissement, Rue Réaumure e iniciei a viagem pelo meio do trânsito sempre

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CASA Ô

agitado da Cidade das Luzes, rumo à Maison Hôtel CASA Ô. Dois dias antes havia agendado com Virginie a entrevista e a visita guiada a este lugar especial, um andar guardado num edifício do emblemático engenheiro Eiffel, com grandes janelas bordadas a aço tão em voga então, a debruçarem-se por sobre a rua, num

bairro cuja rotina do dia a dia o obriga a caminhar em direção ao trendy, pontuado por uma movida garrida.. A dois passos da lindíssima Opera, do incontornável Louvre, do colorido Pompidou… Chegada e largado o automóvel, encontrei o 108. Premi os botões e acertei o código de entrada e como não gosto de andar de elevador, voltei a galgar as es-


TURISMO cadas até ao segundo andar, porta de ferro escancarada, Odile elegante e fashion à minha espera…Cabelos pelos ombros, olhos claros e sorridentes por detrás de um par de óculos de massa, uns sapatos pretos abotoados de lado absolutamente divinos e o pormenor mais importante: sorriso aberto!. Gostei dela imediatamente. Sentei-me na pequena sala que antecede os sete quartos deste lugar diferente, a soma certa entre um B&B e um Hotel Design, enquanto Virginie (que à altura da nossa mudança para Paris havia sido a anfitriã escolhida pela empresa de Welcoming), se atarefava em volta do PC e do trabalho de gestão, que um lugar deste tipo, não obstante o número de quartos, exige. Foi Odile a minha interlocutora principal e elegemos ambas o inglês como língua, recorrendo esta ao francês sempre que alguma expressão mais idiomática de recusava à tradução… Um delicioso sotaque que me fez sorrir interiormente e regressar aos tempos da minha serie televisa favorita, o “Allô, allô” com o irresistível galã René, dono do café onde a resistência francesa, os espiões ingleses e a Gestapo alemã se reunia para nos fazer rir… a mais prática Virginie foi acompanhando a conversa com maneios de cabeça concordantes e ou com pequenas interjeições para completar o relato… Iniciamos a conversa pela decoração, quis saber se haviam recorrido a um profissional e não obstante claro, algumas dicas e um já intenso trabalho de investigação sobre o desejável, as opções e os pressupostos da legislação do setor, foi o gosto de Odile a ditar as tendências… Havia iniciado toda conceção do espaço a partir da escolha de um papel de parede de que se havia enamorado, tendo esse pormenor determinante ditado a partir daí as cores circundantes e mais tarde os móveis… Cada espaço pensado para ser moderno, porém intimista, com capacidade para responder às necessidades do viajante, alcova de amor para casais românticos e conforto íntimo para os homens de negócios que por ali pululam, com exceção das crianças e cães que não são permitidos dadas as particulares especificidades desta unidade… O conforto de um hotel de quatro estrelas superior, combinado ao charme de um verdeiro apartamento parisiense… ”Esprit maison, esprit parisien”... CASA, palavra corsa que, muito curiosamente, exatamente como em português signi-

fica lar, Ô de Odile…. Decidimos então fazer o tour pelos vários espaços…. Agradaram-me os quartos com janelas do chão ao teto e cortinas pesadas, as camas escolhidas, de tamanhos generosos e colchões que proporcionam especial conforto e que levam os clientes a indagar a origem, as casas-debanho muito francesas com a sanita à parte permitindo assim contornar o inconveniente dos momentos menos memoráveis no convívio e ou no amor… Toalhas brancas e felpudas, materiais modernos e até o aroma especial concebido para a CASA Ô pelo amigo perfumista. Os pequenos pormenores de decoração e o cuidado para que tudo pareça acabado de estrear…. De volta ao espaço comum quis saber quem tinha tido a intenção e como havia começado esta parceria…. Porque entre Virgínia e a sócia parece existir sintonia e complementaridade não obstante as dife-

renças de estilos e personalidades… Foram, como me apercebi, o resultado de um match orquestrado pelo coach da organização humanitária em que ambas faziam voluntariado, que as achou compatíveis nos projetos e as apresentou. Tinha razão, ao primeiro encontro seguiram-se outros que culminaram no empréstimo da casa de férias de família de Odile na Córsega para a realização do casamento de Virginie….Da mesma forma se concretizou a ideia da CASA Ô, acarinhada desde os tempos de escolha profissional por parte de Odile, a quem o pai havia decidido uma carreira na área financeira ao invés de hotelaria. Mas tudo tem um tempo e no fim, a experiência foi importante, tão importante como o percurso de Virginie: empregada num restaurante em Paris, advogada na Big Aple, empresária…. Au revoir, Bisou Alex-em-Lutécia n Setúbal Revista

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SAÚDE

CRISTINA PINHO Médica Gastroenterologista / Homeopata cristinapinhomedica@gmail.com

PLACEBO

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lacebo é um medicamento, terapia ou procedimento inerte (sem propriedades farmacológicas) que apresenta resultados terapêuticos devido aos efeitos psicológicos da crença do paciente de que está a ser convenientemente tratado. Está amplamente estudada a maneira como uma sugestão associada a uma expectativa, por parte do médico, do paciente ou de ambos, pode induzir mudança no estado de saúde. Um dos conceitos indissociáveis ao placebo é a neuroplasticidade. O outro é a atenção plena, focada na nossa própria mente, vendo e moldando o seu trabalho. Com o mecanismo e a ferramenta atrás referidos criamos novas conexões neuronais mudando, literalmente, o cérebro. Quando este se altera transformamos a mente. Sabemos que o cérebro e a mente chegam ao corpo todo através do eixo psiconeuroendócrinoimunológico (PNEI). O nosso cérebro é a sede de uma empresa farmacêutica formidável (no bom e mau sentido) que, governada pela mente, distribui remédios por todo o organismo. Albert Schweitzer disse certa vez: "O feiticeiro tem êxito pela mesma razão porque todos nós, médicos, temos êxito. Cada paciente carrega o seu próprio médico dentro de si. Ele procura-nos sem saber dessa verdade. O melhor que fazemos é dar ao médico que reside dentro de cada paciente a chance de trabalhar.” A investigação deu-me a conhecer Lissa Rankin, médica norte americana que em 2013 descobriu que faltava aos cuidados de saúde que ela aprendeu uma coisa absolutamente crucial, o reconhecimento de que o corpo possui uma capacidade inata para se auto curar e restaurar, podendo nós aceder e coman-

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dar esse mecanismo com o poder da mente. Os pensamentos, crenças e sentimentos alteram a fisiologia do corpo (PNEI). Solidão, pessimismo, depressão, medo e ansiedade prejudicam e danificam o corpo. Enquanto que relações íntimas, gratidão, meditação e uma autoexpressão autêntica accionam e aumentam o mecanismo de auto cura, promovendo a criatividade e espiritualidade. Pensar de modo diferente leva a novas escolhas, novos comportamentos, novas experiências e novas emoções que, por

sua vez, originam novos pensamentos. É assim que quebramos a continuidade e vício bioquímicos renovando o eixo PNEI. Tal como Lissa Rankin descreve no seu livro, também eu tenho a alegria de conhecer pacientes que fazem o seu próprio diagnóstico, prescrevem a receita e criam um claro plano de acção com o objectivo de ajudar o seu corpo a curar-se. Bernie S. Siegel chama “pacientes excepcionais” àqueles que são inteligentes e criativos, com forte noção da realidade, que têm amor-próprio e apreciam a diversidade sem preconceitos, enca-


SAÚDE

rando a doença como mudança de rumo e não como fracasso. Segundo ele: “Não há doenças incuráveis, há pessoas que não têm cura.” Chegados a 2014 o neurocientista Joe Dispenza convida-nos a acreditar em nós próprios antes de crer no exterior. No seu livro “Cure-se a si próprio - You are the Placebo” refere: “Estamos dentro de uma consciência invisível de poder ilimitado que nos dá vida, nos sustenta, protege e cura constantemente. É uma fonte de realização infinita que o estudo intelectual não alcança.” Aqui vamos ainda mais longe, para além da mente. Neste paradigma é fora da mente que nos curamos. Pensar e intuir está longe de ser tudo o que existe como experiência de consciência. Nesta fase, o cérebro reorganiza-se quando saímos do caminho desistindo de interferir. Continuamos a funcionar com responsabilidade plena como se tudo dependesse de nós e, ao mesmo tempo,

abdicamos do controlo. Largamos a expectativa do resultado e temos a certeza de que somos sinónimos de Deus Luz - Consciência Una – Cosmos - Vida. O modelo quântico da realidade descrito sucintamente: “Sente dentro, vê fora.”, confirma o que disse Rumi no século treze: “Para mudar a paisagem basta mudar o que sentes.”, e está de acordo com Cristo: “Nascemos da luz, lá onde a luz nasce de si mesma; ela ergue-se e revela-se na sua imagem.”. E corrobora o Sutra da Perfeição da Sabedoria ou Sutra do Coração: “Forma é vacuidade, vacuidade é forma.” A física quântica acaba com as ditaduras da matéria, do tempo e do espaço, coisa que para a maior parte de nós é inconcebível, logo impraticável. Outros há que transcendem tudo isso e agem como o feiticeiro durante a dança da chuva. Celebram intensamente, com alegria e gratidão profundas, aquilo que na sua mente e no seu coração já aconteceu! Aqui vos deixo o desafio de criarem e to-

marem o vosso próprio remédio ao mesmo tempo que consultam um profissional de saúde e investigam a situação. O mecanismo de placebo é inerente ao funcionamento do nosso eixo PNEI, sendo activado pela nossa certeza inabalável na cura e moldado por um ritual, seja ele um simples pensamento, um comprimido de açúcar, um copo com água, uma massagem ... Experimentem . n Bibliografia: 1 - http://www.elcorreodelsol.com/articulo/lospensamientos-curan-mas-que-los-medicamentos 2 - http://time.com/5375724/placebo-bill-healthproblems/?utm_source=time.com&utm_medium=e mail&utm_campaign=social-button-sharing 3 - Dispenza, Joe (2015) “CURE-SE A SI PRÓPRIO You are the Placebo”, lua de papel. 4 - Rankin, Lissa (2013) “MIND OVER MEDICINE Scientific Proof That You Can Heal Yourself”, Hay House. 5 – Pinho, Cristina (2017) “MÉDICO UNICISTA – Ensaio sobre a Arte de Cuidar”, Edições Mahatma. 6 - Siegel, Bernie S. (2004) “Amor, Medicina e Milagres”, Sinais de Fogo.

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MÚSICA

IVONE CAMPOS Bióloga; Professora; Musicoterapeuta; Curso de Educação Musical pelo Conservatório Nacional de Música; Curso de Piano pelo Conservatório Nacional de Música

O papel da música em oncologia

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ancro. É (ainda e infelizmente) uma palavra assustadoramente forte. Carregada de medo, ansiedade, dúvidas e insegurança. Por essa razão todos os suportes são necessários e bem vindos. A par com alguns outros a música tem-se vindo a demonstrar uma poderosa bengala nos processos oncológicos. O estado de ansiedade presente na maioria dos doentes oncológicos tanto no momento do diagnóstico como durante o tratamento, pode, a médio prazo, ter como consequência distúrbios psicopatológicos. A musicoterapia atua beneficamente reduzindo os níveis de stress constituindo assim um profícuo coadjuvante terapêutico. Por definição, é objetivo primordial da musicoterapia promover a comunicação, a interação, a mobilidade, a expressão e a organização interna do indivíduo, tentando equilibrar as suas necessidades físicas, emocionais, sociais e cognitivas. Através da ação da musicoterapia podemos fortalecer as potencialidades individuais de modo a conseguir uma melhor qualidade de vida. Vários estudos confirmam a credibilidade científica da intervenção da musicoterapia e é reconhecida internacionalmente a designação “musicoterapia oncológica” para se referir à ação da música dirigida a doentes oncológicos de todas as idades e prognósticos. Esta doença acarreta muitas vezes dor e efeitos secundários como resultado dos tratamentos, tais como náuseas e fadiga, entre outros, bem como uma redução da eficácia do sistema imunitário,

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por deficit leucocitário. A música tem um papel muito importante ao conseguir modular a atenção, desviando o foco de concentração para um estado de maior abstração e imaterialização, tendo como consequências uma redução dos níveis de ansiedade, uma melhoria do estado anímico e algum alívio no controle da dor. Também pela sua ação facilitadora, a música consegue alavancar a interação paciente/musicoterapeuta, resultando numa ablação dos sentimentos negativos, perturbadores e tensos. A musicoterapia aplica diferentes técnicas em função dos objetivos terapêuticos para cada caso desde cantar, tocar,

escutar, improvisar, compor, sentir/reconhecer sensações, entre outras. Todas elas ajudam a diminuir a ansiedade e o mal estar físico, nomeadamente a dor. Perante doenças como o cancro, que constitui uma das causas de morte mais frequente, deparamo-nos com a pequenez do Ser Humano e a verdade absoluta do pouco controle que temos sobre a nossa vida. Também a música nos faz refletir e focar a atenção naquilo que realmente interessa: o Amor. E é com Amor que a todos desejo umas Festas Felizes no abraço de quem amamos. n


Av. Dr. António Rodrigues Manito, 51D, Loja 1A 2900-065 Setúbal Tel.: 928 022 080 De segunda a sexta das 9h às 20h Sábados das 8h às 16h


SOCIEDADE

EUGENIA CANITO Professora

Não existem limites para os nossos sonhos, basta acreditar!

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stamos de novo em plena época natalícia, época que se deseja ser de tranquilidade, de paz e de dar graças por mais um ano de vida nos ter sido generosamente consentido. O relançar dos olhos à nossa volta, contudo, ainda nos deixa ver desesperadas situações dos muito menos afortunados e a paz, que tanto se deseja, vemo-la ameaçada por sangrentas guerras, sem sentido, porque as guerras nunca têm sentido, alimentadas pelo vértice do poder e da violência. O Natal que todos queremos, todos aqueles que são pessoas de paz, é um Natal de solidariedade, de amor, de humanização, ultrapassando barreiras, darmo-nos uns aos outros, para nos fazermos felizes uns aos outros. O Natal para mim é um tempo que me comove e enternece. É uma época que me desperta uma maior sensibilidade quase infantil. Não sei explicar porquê! É um sentimento! Talvez este sentimento de magia tenha a ver com as minhas memórias de infância. Desde que me conheço me lembro de enfeitar a árvore de Natal e fazer o presépio com os meus pais. Desde sempre, e ainda nos dias de hoje, montar a árvore de Natal, é sempre um momento ansiosamente esperado. Presentemente com os meus netos, conto-lhes as histórias de Natal, enquanto eles também ajudam na montagem da árvore mágica, repetindo-se o cenário da minha infância e mais tarde já com os meus filhos. Apesar do Natal de hoje ser mais uma época de consumo para alguns, eu continuo a sentir que tenho paixão por esta

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“Ainda que se percam outras coisas ao longo dos anos, mantenhamos o Natal como algo brilhante... regressemos à nossa fé intantil” (Grace Crowell) quadra de magia. É bom chegar a casa e sentir não o cheiro do pinheiro, como antigamente, mas sentir que há um “sabor” a Natal. Adoro as luzes de Natal nas ruas, as montras enfeitadas, tenho um prazer imenso em escrever e enviar postais de Natal pelo correio tradicional, programar os presentes. É esta mistura de ilusões, de tradições,

de luzes a piscar, de famílias tradicionais, as comidas mais elaboradas, os doces…..,tudo isto me enternece, me comove. Para mim Natal é emoção. Para todos os nossos leitores o desejo de um Bom Natal e de que o espírito de Natal esteja sempre convosco. Feliz 2019.! Bem Hajam! n


SOCIEDADE

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CENAS DA VIDA FAMILIAR

JORGE SANTOS FORRETA Médico cenasdavidafamiliar.blogspot.pt

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ortugal, anos quarenta. Reza, assim, o Livro de Leitura da 3ª Classe: - Menino, sabes o que é a Pátria? Sirenes, apenas as das fábricas do peixe. Escasseiam os bens essenciais, sobram o racionamento e o açambarcamento, a falperra e o mercado negro, miséria e greves, os soit-disants vermelhos e os anarquistas que o ditador teme. Os descarregadores forçam a queda do peixe da canastra, agitam o chapéu de abas largas, as pessoas, ávidas, disputam e agridem-se. A fome mata. Morre-se de

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Setúbal, ao Tempo da Segunda Guerra

disenteria e de tuberculose, fim da viagem no Hospital da Santa Casa, contíguo ao Convento, próximo de Jesus. Os anos da guerra são frios, neva. O ciclone de quarenta e um, complica, santos de casa não fazem milagres, nem mesmo o Cerejeira. Salvam-se os que têm terra, aproveitase o patim e nasce o couval no canteiro, engordam os volframistas, gananciados no ouro nazi. Rareiam os automóveis, o racionamento estende-se aos combustíveis. Voltam as carroças à praça, abalam as camionetas

da Transportadores, cheias dos que partem para lugar nenhum, Os Belos, Viagens na Maravilhosa Região dos Três Castelos... Recorda-se o bólide do Avilez estacionado no Bocage e os tempos da Belle Époque... A miudagem assalta as ruas de terra batida, alheada e divertida, joga o pião e o berlinde, um grupo afortunado recreiase na bola de trapos, vejo lá o Agostinho, esta nem o Idalécio defendia! O Liceu do Bocage é um luxo e poucos o frequentam, uma turma do sexto e sétimo anos e basta. Perto, a Quinta das


CENAS DA VIDA FAMILIAR

Palmeiras esconde os namoros fugazes, tudo é controlado... A vida é feita de coisas simples: os quadradinhos do Diabrete e o xis nove, os soldados de baquelite e os de recortar, os carros de madeira e as bonecas de celuloide, os jogos da Majora e já a Aninhas brinca com o Lego e estuda no Jogo de História e Geografia, o novo método de ensinar por processos luminosos, os folhetins radiofónicos e os discos de setenta e oito e o gramofone dava jeito, a Aninhas tem um, Amália e futebol. Casa-se pela igreja, o éfe é lixado! Saboreia-se o sorvete da feira, engolese o pirolito sem marcas nem iões na composição, há Comboio Fantasma e o Poço da Morte, na Popular! Mata-se o bicho nos tonéis cognominados da tasca do João e este chama-se Já Foste, há bilhares no Central e no Palácio Salema e Vitória no Campo Atlético dos Arcos. O xadrez está na moda, joga-se de costas no Nicola, aos Combatentes. É chique o Violette, o pai da Aninhas, um

próspero industrial conserveiro, senta-se lá e no camarote do Cine-Teatro Luiza Todi. Os bailes da Capricho estão à pinha! O vestuário é simples, semi-calça e semi-casaco, aproveita e reaproveitase, penteados armados para durar e batons para enganar, as fazendas do Mamede e os bonets do Mendes estão lá para os mais abonados. Tarda a mulher em ampulheta Dior e o homem do Terylene e do Pitralon... A Europa divide-se, Salazar, camaleónico e funâmbulo, resiste. Humilhação e vergonha: os bancos e os lugares nicht fur juden, as colaboracionistas francesas exibidas, rapadas e (s)em roupa interior, os campos de Treblinka , o refúgio no metro de Maiakovskaia e o ovo de Churchill, a história repete-se, sempre uns mais porcos que outros. Quarenta e cinco, Bendigamos a Paz e a Vitória!, saúda o ditador, esqueceu o "V" mas não esqueceu o Aristides e a Circular Catorze. Três anos e o mundo não aprendeu,

apartheid e Berlim dividida, as pernas do Zatopek valem menos que as milliondolar legs da Marlene, não há Macaca Velha nem Almeida Bruxo que aguentem! O terramoto de cinquenta e oito arrasou Troino, mas não as gentes. A guerra acabou, escuta-se as violas do Rosa e do Inácio que já morreram . Seis da manhã, jovens vendedores de pé descalço apregoam: "Filhoses quentinhas!", o burro do Izidoro já cruzou o chafariz. Almoça-se o chicharro do alto, levado a assar no forno da padaria, amanhã, talvez, o coelho, com ele no mato . Neva lá fora, as crianças saem para os bonecos. O pai da Aninhas é rico, as conservas vendem-se. A menina espera a professora, tem aulas particulares de francês e piano, o dinheiro compra (quase) tudo. O industrial chegou cedo, a Aninhas estreava-se a quatro mãos, com a professora sentada a seu lado. - A quatro mãos?! Compra-se já outro piano, não quero dessas misérias cá em casa!! n Setúbal Revista

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ENTREVISTA

ANA SOFIA MARTINS Resiliente e Corajosa “Quero inspirar as pessoas com mobilidade reduzida a saírem de casa”

Texto: Carolina Bico

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ENTREVISTA

A

na Sofia Martins sempre viajou desde pequena, acompanhada pelos pais e o irmão. Aos 24 anos, um acidente de viação deixou-a numa cadeira de rodas. O seu lema é aproveitar a vida ao máximo, independentemente de todas as barreiras físicas e de todos os preconceitos. Ana Sofia Martins, mais conhecida por Kiki Martins, 48 anos, é engenheira informática. Há cerca de um ano criou o blogue JustGo bysofia, onde relata as suas experiências de viagens pelo mundo, e alerta para a questão das acessibilidades. Pretende colocar o tema na ordem do dia, tornar os espaços públicos acessíveis a todos, e incentivar as pessoas com limitações físicas a sair de casa. Já passou por mais de 20 países, mas é Setúbal que

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tem no coração desde sempre. Recentemente foi convidada pela Momondo para ser embaixadora da Open World Travelers. Onde nasceu? Nasci em Lisboa, mas vim logo para cá. Setúbal é a minha cidade de sempre. Tem uma localização fantástica, o maravilhoso Rio Sado, a Serra da Arrábida e é muito pacata e gira. Ultimamente, acho que tem tido uma evolução brutal e "está cada vez mais bonita", como se diz no slogan. Sempre viajou desde pequena? Comecei por viajar muito de carro com os meus pais e irmão. Percorríamos a Europa todos os verões, nem que fosse a Espanha para comprar caramelos. Sempre tive o gosto pessoal de viajar,

mas nunca imaginei dedicar-me tanto às viagens como faço agora com o blogue. Foi algo que foi surgindo. Que memórias guarda dessas viagens? Quando viajávamos de carro era sempre um momento muito engraçado. Havia as fronteiras, as filas para passar a alfândega para Espanha. Mudar de país não era tão simples, como hoje. Atualmente passar de um país para outro é uma coisa muito mais natural, se formos de carro até nem damos por isso. Mas antigamente, era muito mais complicado com a existência das fronteiras, as diferentes moedas, era tudo diferente. Pessoalmente, sair do país era uma experiência entusiasmante, uma aventura. Quais os seus hobbies?


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ENTREVISTA

Viajar, mas não só. Nos últimos tempos, tenho-me dedicado muito à questão das acessibilidades, daí ter surgido a ideia de criar o blogue. Que qualidades a definem mais? Não desistir e nunca me acomodar. Às vezes, vou um bocadinho por impulso, sem pensar e não preparo, como devia, as coisas. Sou muito descontraída, se vejo que por aqui não dá, então sigo por outro caminho, acho que sou resiliente. Qual o seu lema de vida? Tentar aproveitar a vida ao máximo. Apesar de defender que o nosso lema vai mudando, ao longo dos tempos.

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Neste momento é esse, vamos e depois logo se vê. Há quanto tempo existe o blog? O JustGo bysofia (apenas vá, não se preocupe muito) existe há um ano e dois meses. O facto de estar em inglês é para chegar a todas as pessoas, não apenas para quem cá está, mas para os que querem cá vir. Não pretendo que seja um blogue de viagens, apesar de estar relacionado com esse tema. Existem, na área do turismo, outros projetos maravilhosos de profissionais, que escrevem muito bem e fazem roteiros muito mais completos, não foi esse o meu objetivo. O meu foco principal cen-

tra-se na questão das acessibilidades, que são aquilo que quero promover. Primeiro, quero inspirar as pessoas com alguma limitação física ou deficiência a saírem de casa, porque é possível. Às vezes é um bocadinho mais difícil, mas não é razão para se estar fechado em casa, e para desistir. E depois outro dos meus objetivos é fomentar as acessibilidades. Além das viagens, partilho os locais que estão acessíveis, sejam restaurantes, cafés, museus ou qualquer espaço. E tento valorizar unicamente o que está bem, vou sempre pela positiva, se está mal não entra no meu blogue. No


ENTREVISTA

“Não pretendo que seja um blogue de viagens, o foco principal são as acessibilidades”.

fundo, dou os parabéns a quem se preocupa com estas causas, e faço com que outras pessoas sigam os bons exemplos dos espaços e comecem a adaptá-los também. Não sou só eu que preciso, qualquer pessoa pode necessitar. Portanto é um blogue para todos. Como é que surgiu a ideia? A ideia inicial não era um blogue, mas uma espécie de consultoria aos hotéis e restaurantes, dizer-lhes o que precisam de adotar para ficarem adaptados. Esse foi o meu primeiro objetivo. Depois em conversa com um amigo ligado ao turismo, percebi que seria mais complicado de implementar a consultoria ou que as pessoas não estariam tão recetivas. E então, ele desafiou-me a fazer um blogue. Sempre viajei, mas comecei a sair mais quando casei. Depois te ter tido um acidente de viação aos 24 anos, que me deixou numa cadeira de rodas, e ao deparar-me com uma série de limitações e dificuldades, pensei que seria importante criar o blogue. É uma ideia com muitos anos, mas só agora é que se concretizou. Para quem se destina o blogue? À partida poderia pensar-se que se destinaria apenas a pessoas com mobilidade reduzida, mas não. Quando partilho as minhas experiências e digo que quero inspirar as pessoas a saírem

de casa, claro que pode ser interpretado nesse sentido. Mas é também para alertar os donos dos espaços para esta situação. O que é curioso é que a mobilidade reduzida não tem só a ver com deficientes ou cadeiras de rodas, porque as pessoas com carrinhos de bebé e os mais idosos também têm esse tipo de problemas. Portanto é um público muito alargado. Tenho tido contactos de imensas pessoas, que estão a pensar desenvolver um projeto e pedem-me opiniões. Outras que querem saber se já fui a certas cidades e como é que se pode ir, o que fazer ou o

que visitar. O feedback tem sido imensamente positivo e é isso que me dá entusiasmo para continuar. E a maioria das pessoas que me enviam as suas opiniões ou pedidos, não são as que possuem mobilidade reduzida, são aquelas que apenas gostam de viajar. Como é que se organiza? O blogue tem as minhas viagens, que é o relato dos meus percursos, em vários países estrangeiros. E aí falo do que foi a minha estadia, como é andar nessa cidade, se tem obstáculos ou não, características do hotel onde fico entre muitas outras questões úteis para Setúbal Revista

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ENTREVISTA quem tem reduzida mobilidade ou não. Depois tem a secção de Portugal e nesse caso, dividi-a em três setores: o que visito, onde como e onde durmo, ou seja, restaurantes, hotéis e cidades/locais. Esses são os pontos fundamentais, e tenho uma componente de fotografia. Depois há uma área, que seria mais voltada para a consultoria, que não tenho explorado muito, onde quero dar dicas de como adaptar os espaços e a legislação acerca das acessibilidades. Acha que as redes sociais podem ajudar a mudar o mundo? Acho que sim e espero que sim, é para isso que as uso. Por exemplo, já fui contactada por pessoas do Brasil a pedir sugestões sobre Portugal, porque querem cá vir, e têm um pai numa cadeira de rodas. Portanto, acho que as redes sociais são fundamentais para chegarmos a qualquer canto do mundo e para divulgar informação. A partir do momento em que colocamos alguma coisa no Facebook ou Instagram, ela facilmente chega a muitas pessoas. E sabemos que as pessoas não vão aos blogues diretamente. Normalmente vão, porque recebem uma chamada de atenção no Facebook ou no Instagram, e se lhes interessar é que vão aprofundar conhecimentos e recolher informações. Por que países já passou? Já passei por mais de 20 países. Nestes últimos dois anos, tenho andado a visitar países da Europa. Fiz uma grande viagem à China, onde passei por Hong Kong, Macau, Xangai, Pequim e Dubai. Foi uma viagem grande. Na lua-de-mel fiz Nova Iorque-Havai, também foi giríssima. O Canadá, que eu adorei, porque superou bastante as minhas expetativas e o Brasil, que já fui há muitos anos. Qual a viagem mais marcante? A China foi marcante, porque foi a mais longa e talvez dos locais mais diferentes de todos, em que fizemos muitos percursos. Mas também estou a pensar no Havai. Foi uma surpresa, não estava nada à espera de encontrar um local tão agradável. Estávamos habituados a ir para as Caraíbas e estar fechados num resort, porque sair naqueles sítios para mim é complicado. E quando cheguei ao Havai era mais ou menos como o clima das Caraíbas, com a água quentinha num sítio moderno e adaptado, onde podia andar sozinha na rua.

“Setúbal é a minha cidade de sempre”

Como é que faz o plano das viagens? Viajo sempre com o meu marido. A preparação é um grande trabalho do Fernando, normalmente é ele que pesquisa e quando chegamos a um sítio ele já sabe tudo. Depois preocupa-

se muito com o facto de eu estar em cadeira de rodas, escolhe os melhores sítios para ficar. A mim cabe-me mais as reservas dos hotéis, comboios e barcos. Quais os conselhos mais práticos para pessoas com mobilidade reduzida a ter em conta na preparação das viagens? Começa logo com a reserva do hotel, porque às vezes é difícil. A semana passada fui jantar a um restaurante, em Lisboa, de um grande chefe português. Antes de ir perguntei se o local estava acessível e responderam que sim. Quando lá cheguei não havia casa de banho. E portanto, muitas vezes não basta dizer se está acessível, é preciso verificar sempre sobretudo quem viaja sozinho. Este ano, fomos para Milão, garantiram-me que o hotel estava acessível e tinha um degrau enorme. Se for preciso, devemos pedir fotografias para confirmar. Normalmente é o acesso, não ter degraus, as casas de banho estarem acessíveis, haver portas largas e um banco para tomar duche. Esses cuidados são fundamentais. Por exemplo, a reserva de comboio não é muito fácil, o voo é melhor. Temos que garantir sempre que a nossa cadeira vai connosco no avião e Setúbal Revista

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que nos dão logo à porta, porque senão eles despacham para o tapete. E depois temos de andar nas cadeiras horrorosas dos aeroportos. Temos que avisar a companhia com alguma antecedência, que estamos em cadeira de rodas e que vamos precisar de auxílio, porque a cadeira não passa no corredor. Podemos fazê-lo por telefone ou no próprio site. Por exemplo, na página da TAP já é possível pedir essa assistência e não nos preocuparmos muito com isso. Já com os comboios é diferente. É mais complicado, porque nor-

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malmente as pessoas compram o bilhete online e nós temos de fazê-lo online, mas especificamente para cadeira de rodas e isso nem sempre está disponível nos sites. Podíamos simplesmente comprar o bilhete e avisar que estamos em cadeira de rodas, mas não pode ser assim. Às vezes temos que reservar o bilhete e ir buscá-lo quando chegamos à estação. Assim que aterramos, temos de ver também como vamos até à cidade, ou seja, se há metro e autocarro adaptados. Convém estudar tudo isso antes de ir. Caso con-

trário, vamos à aventura. O que é que faz durante as viagens? Normalmente, as viagens duram dez a 20 dias, dependendo do destino. Quando queremos visitar os pontos turísticos mais importantes já levamos tudo marcado. Dividimos a cidade por zonas para aproveitar melhor os dias, mas o que adoro mesmo é andar nas ruas e ver como as pessoas se comportam naquele país, os hábitos e costumes. Temos a maioria dos dias programados, mas não muito, porque



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gostamos de ir à aventura. Não ocupamos o tempo todo a visitar monumentos, mas a descobrir a gastronomia e os restaurantes. Qual a sua fonte de inspiração para os artigos? Isso é muito complicado, porque a escrita nunca foi o meu forte. Aliás, eu hesitei logo quando me disseram para fazer o blogue. A escrita é um relato dos dias que passei nesses locais, onde fui, como fiz, se havia obstáculos, o que gostei mais, o que senti, algumas passagens mais caricatas e as fotografias. É um roteiro não muito exaustivo. A inspiração é mesmo o local, tanto que às vezes é mais fácil escrever sobre uns do que outros, quando estamos entusiasmados com o que vimos. Há dois tipos de artigos: uns para as cidades portuguesas e outros para as estrangeiras. Quais as principais diferenças? Eu queria dedicar-me mais às cidades portuguesas e aprofundar as acessibili-

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“Temos de aprender a viver com todas as barreiras sejam físicas ou de mentalidades e ir ultrapassando”.

dades. Dizer mesmo os locais que devemos evitar, esse seria o meu objetivo. As estrangeiras são mais um relato da minha experiência, aquilo que passei naquela semana. Também há uma vertente de opinião. Como é que se processa? Essa parte inclui como se deve reservar um hotel e tenho alguns artigos sobre como comecei a viajar. São opiniões minhas, que não estão ligadas a uma cidade ou país concretos. Ainda não está desenvolvido, mas a ideia é que qualquer pessoa que queira escrever um artigo sobre acessibilidades me envie por mail para eu colocar no blogue. Começou a promover as experiências acessíveis da Airbnb? Sim, porque tenho colaborado com a Portugal 4 All Senses, uma empresa portuguesa de duas jovens setubalenses, que promove o turismo acessível. Vendem tours, em Portugal, no Airbnb, redirecionados para turistas estrangeiros com alguma deficiência, que visi-


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tem o nosso país e precisem de apoio. E basicamente, eu fiz essas experiências para elas poderem promovê-las. Por exemplo, fiz um passeio histórico por Lisboa e Sintra e uma prova de vinhos em Colares. O blog já recebeu prémios/distinções? Eu concorri aos prémios Bloggers’ Open World Awards 2018 da Momondo. A candidatura foi no início do ano, o blogue tinha apenas meio ano de existência e foi nomeado na categoria Open World, a mais importante das distinções através da votação do público. No total, são quatro categorias a concurso:

Open World, Blogue, Fotografia e Vídeo. É um prémio muito importante para os bloggers de viagens, onde são distinguidos os melhores. Há uma série de critérios essenciais para concorrer: o blogue tem de ter um conteúdo consistente e apelativo, ser um projeto de mente aberta sem preconceitos, visitar locais menos conhecidos, promover o contacto das pessoas, entre outros. O facto de ter sido finalista foi um reconhecimento muito bom, que me deu ainda mais vontade de continuar. Não ganhei, foi o blogue profissional Alma de Viajante, com o qual nem tenho intenção de competir e que estava no-

meado para a mesma categoria do JustGo bysofia. Recentemente, fui convidada pela Momondo para ser embaixadora da Open World Travelers. Basicamente, eu e outros bloguers vamos promover a Momondo e com isso temos algumas contrapartidas da parte deles. É um projeto muito embrionário, temos várias tarefas a desempenhar, onde ganhamos pontos, que podemos trocar por produtos deles ou cursos, de forma a recebermos mais ensinamentos sobre toda esta arte. Que mensagem quer deixar às pessoas com mobilidade reduzida que gostam de viajar? Setúbal Revista

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Que viajem, que vão (risos). Eu falo muito nas viagens e as pessoas podem pensar que é preciso ter dinheiro. Mas viajar pode ser na cidade aqui ao lado, basta sair de casa e partir para a aventura. Quem está em cadeira de rodas já está habituado a sair e ter obstáculos. Por isso, aqui ou noutro lado, é fazer como as outras pessoas. Temos de aprender a viver com todas as barreiras sejam físicas ou de mentalidades e ir ultrapassando. O conselho que dou é ir. Pensem naquilo que correu bem nessa viagem e voltem a sair. O que considera que deve melhorar nas políticas de mobilidade, em Portugal? Acho que estamos a fazer muita coisa. Basta olhar para a baixa de Setúbal, tem-se feito muito nos últimos anos. Em termos de espaço público e urbano, as cidades estão a ficar muito melhores. O que falta é este trabalho, que eu também espero contribuir um bocadi-

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“Acho que as redes sociais são fundamentais para chegarmos a qualquer canto do mundo e para divulgar”

nho, que tem a ver com os restaurantes privados. Por exemplo, em Setúbal, os espaços camarários estão praticamente todos adaptados. Quando vamos para os particulares, aí a coisa muda de figura. Apesar de ser obrigatório por lei, há exceções. Por isso, acho que ainda há muito a fazer e é nesse ponto que quero ajudar a fazer com que os proprietários se interessem por adaptar os espaços privados. Que projetos tem para o futuro? Tenho imensas ideias, o tempo é que não ajuda muito. O blogue é uma coisa de fim de dia e fim de semana. Gostava de tentar envolver mais pessoas conhecidas e fazer com que as acessibilidades estejam na ordem do dia. O facto de só destacar o que está bem, por exemplo se falo num restaurante famoso, os outros vão querer imitá-lo. O meu projeto fundamental é a criação das acessibilidades. O resto são ideias para fazer com que isso aconteça. n


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A MARIA Modista Setúbal é uma escola de costura situada em plena Av. Luisa Todi. Uma aventura na Costura!!! Inscrições para as férias de Natal e para os cursos mensais a decorrer todo o ano. Informações: setubal@mariamodista.pt ou 935 660 350 Maria Modista Setúbal Av. Luisa Todi, n. 300, 4.ºD (por cima do Montepio Geral) Setúbal Setúbal Revista

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CULINÁRIA

Bolo de sementes de papoila e glacé de limão

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ais um ano que chega ao fim e outro que começa. Um virar de página que nos oferece a oportunidade para aproveitar a vida de forma positiva, acreditar num amanhã melhor e procurar tirar partido das pequenas coisas que marcam a diferença. Um maravilhoso 2019 para todos os nossos leitores. Para adoçar os dias frios, trazemos-lhe um delicioso bolo de sementes de papoila com glacé de limão. Como não conseguimos resistir aos sabores da estação, o mesmo foi decorado com bagos de romã! Está provado que as coisas simples são sempre as melhores…

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Ingredientes para o Bolo de Sementes de Papoila: 150 g de manteiga amolecida (sem ser derretida) 150 g de farinha sem fermento 150 g de açúcar 3 ovos 1 colher de sobremesa de fermento em pó 1 pitada de sal 3 colheres de sopa de sementes de papoila 120 g de iogurte natural Ingredientes para o Glacé de Limão: 1 caneca de açúcar em pó 2 colheres de sopa de sumo de limão 4-5 colheres de sopa de natas


CULINÁRIA Modo de preparação Pré-aqueça o forno a 170º C. Unte com manteiga e polvilhe com farinha uma forma pequena. O bolo fica mais bonito se for feito numa forma do tipo “bundt”, mas não é obrigatório que seja feito nessas formas. Bata a manteiga com o açúcar, até ficar um creme macio e esbranquiçado, durante aproximadamente 5 minutos. Adicione os ovos um a um, mexendo bem entre cada adição. Peneire a farinha com o fermento e junte-lhes o sal e as sementes de papoila. Aos poucos, adicione a farinha à mistura da manteiga, alternando com o iogurte. Comece e acabe com a farinha, sem envolver demasiado. Transfira a massa para a forma, alisando com uma colher, e leve a cozer durante aproximadamente 40 minutos ou até o palito sair sem vestígios de bolo. Deixe arrefecer dentro da forma durante 10 minutos e com cuidado transfira para uma grelha até arrefecer completamente. Quando o bolo estiver frio, prepare o glacé misturando todos os ingredientes e mexendo até escorrer num fio continuo. Caso o glacé esteja um pouco espesso, acrescente uma colher de natas ou um pouco mais de sumo de limão (fica ao gosto de cada um). Cubra o bolo com o glacé e decore com bagos de romã (ou frutos vermelhos a gosto) e algumas folhas de tomilho ou alecrim! n

Com o apoio de Merengue & Chocolate email: merengueechocolate@gmail.com Setúbal Revista

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OPINIÃO

MARIA DO CARMO BRANCO Vogal do Conselho de Administração da UNISETI (Universidade Sénior)

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endo o Natal, certamente, uma das datas mais importantes para quase todos e um evento religioso muito significativo, tem vindo a verificar-se a substituição da sua essência, que devia ser a cele-

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CONSUMISMO e NATAL

bração da família, pelo consumismo exagerado, fruto de uma sociedade capitalista, tornando-se, na maior parte das pessoas, mais importante “Dar presente” do que “Estar presente”. É certo que a tradição cultural da

prenda criou novos hábitos no que concerne ao que se oferece e não ao que se pode oferecer, numa forma de exibição do Status, muitas vezes à custa de privações, cujas sequelas orçamentais se prolongam por muito


“Tu que dormes à noite na calçada do relento Numa cama de chuva com lençóis feitos de vento Tu que tens o Natal da solidão e do sofrimento És meu irmão, amigo, és meu irmão” “Tu que inventas ternura para dar Tu que inventas bonecas e comboios de luar E que mentes ao teu filho por não os poderes comprar És meu irmão, amigo, és meu irmão. (Ary dos Santos-do poema: Quando um homem quiser)

tempo. Em suma, para a maioria das pessoas, o sentido religioso do Natal perdeu-se, transformando-se numa festa de obrigação, em vez de uma comemoração sadia. Muitas pessoas queixam-se mas correm a comprar presentes, compram à pressa objetos que não servem para nada, para dar a entender que a convenção foi cumprida. Haverá coisa pior do que abrir um presente e encontrar algo que não serve para nada? Mimar as crianças só com brinquedos é apresentar-lhes um mundo sem luz, sem alegria, sem poesia. É apagar nelas a capacidade de se sentirem diferentes. É entregá-las a um mundo que já decidiu por elas. Será que mais tarde vão lembrar-se da “reunião familiar” ou dos “presentes recebidos”? Aqui está a superficialidade do verbo “comprar”. Privilegia-se o Ter em vez do Ser. Porque é que os pais não ensinam os filhos a escreverem cartas ao pai natal pedindo - Paz, Saúde, Alegria, Amor como algumas escolas já o fazem? Há pais muito ocupados que confundem os presentes com a falta de afeto e presença, que os filhos tanto precisam. Tentam, assim, comprar a ausência e preencher faltas que são insubstituíveis. Neste mundo de consumismo, temos de ter em conta que, embora a poupança seja um conceito chave na teoria económica, no Natal põe-se tudo de parte para proporcionar o bem-estar ou para demonstrar poder ao vizinho/amigo, recorrendo, na maior parte das vezes ao crédito, numa euforia consumista, num desejo de que as relações sociais se valorizem perante o presente que se dá, deixando o indivíduo de ser o que realmente é. Dar um presente deve ser um ato de amizade e não de demonstração de poder. Não se deve valorizar o assessório em vez do essencial. A sociedade do consumo monta-se e desmonta-se a cada momento. O cansaço é a gata borralheira da sociedade de consumo. Muita gente pensa uma só coisa; desejo, compro, consumo, porque se não o faço não sou ninguém! E, assim, o dinheiro que paga tudo isto é o cansaço. O Natal tem de ser mais humano e menos materialista, para que o mundo seja melhor. Bom Natal para todos. n Setúbal Revista

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CULTURA

ISABEL OLIVEIRA MARQUES Poema Sobre Imagens De Maria do Céu Brojo, Óleo sobre Tela inspirado no poema.

Outros Natais

HISTÓRIA DE AMOR E DERROCADA

Ainda hoje revejo com pudor a casa esventrada a meio da rua e a bancada da cozinha seminua que também era sala e aconchego onde se comiam tremoços se trocavam afectos se guardavam segredos o vento deixado à solta teima em desvendar a velha toalha de oleado com cerejas de todo o ano Ele construiu prateleiras Ela coseu a renda ao pano e fez as cortinas da janela que depois debruou a sardinheiras Foi num sábado de manhã e no domingo seguinte ouviu o relato colado à telefonia e a canja de aletria cheirou mais forte a hortelã Quando ele lembrava os pequenos amores da juventude ela ciumenta amuava ele, manhoso, fingia não entender horas depois ela corria a cortina da banheira e ensaboava-lhe as costas devagar depois aquele olhar era tão sublime que o seu corpo desarmado se transformava em rochedo em surdina chamava-lhe "magana"

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e nessa noite iam dormir mais cedo… Um dia a sua magana não acordou mais e a toalha de oleado foi guardando as migalhas dos dias num vazio silencioso desmazelado e frio até que velha e solidária aquela casa RUIU

Temeu pela sua vida a vizinhança amiga QUAL VIDA? Indiferente e desajeitado acomodou-se na maca improvisada (nem um último olhar) Ah Deus como sabia de cor e salteado O SOM E A COR DA DERROCADA...


PSICOLOGIA

SILVIA SILVA Psicologa, Psicoterapeuta Torres Vedras psicologa.silviasilva@gmail.com

Psicólogo ou Psiquiatra?

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uitas pessoas, mesmo as que o evitam durante muito tempo, chegam a uma altura da vida em que admitem precisar de ajuda por não estarem a conseguir suportar o que lhes está a acontecer. A grande questão que surge é: “Deverei eu consultar um psicólogo ou psiquiatra? Que diferença faz? Talvez um psiquiatra porque caso seja necessário, passa medicação e o psicólogo não pode.” É verdade, o psicólogo não pode receitar medicação. Da mesma forma que o psiquiatra não pode por exemplo aplicar testes psicológicos, nem pode um sem número de funções que pertencem ao psicólogo. Precisamente porque cada especialidade, psicologia e psiquiatria se destina a propósitos que, sendo complementares, se distinguem. A psicologia é uma ciência, devidamente creditada que estuda e trata o comportamento, através de métodos e técnicas que são aprendidas pelos psicólogos no decorrer da sua especialização/formação. Pode-se dizer que, em caso de dúvida se se deve ou não procurar um profissional desta área, basta questionarmo-nos: “Estou em sofrimento? Faço os que estão à minha volta sofrer por via do meu comportamento?” Se a resposta for afirmativa, é também então afirmativo que se deve procurar acompanhamento especializado em psicologia. Em psicologia importa sobretudo perceber a história da pessoa, o seu sofrimento ou desconforto (manifesto ou latente, psicossomático), o que o causa e quais as formas que habitualmente utiliza para gerir esse sofrimento. O ser humano reage ao que avalia, com o filtro das suas vivências. Assim nem sempre avalia as pessoas ou situações

de forma correcta, porque grande parte das vezes apenas o faz por instinto, esse grande mito, o instinto, ao qual damos demasiado valor. Conseguir analisar e avaliar de outra forma, ou pelo menos colocar outras hipóteses, permite uma flexibilidade mental, que simultaneamente traz uma panóplia de novas e maiores possibilidades de reação e gestão dos acontecimentos. Sumariamente, podemos dizer que a psicologia visa resolver a raíz do sofrimento ou desconforto, para que a pessoa saiba direcioná-lo e vivê-lo sem patologia. A psiquiatria visa erradicar os sintomas

que advém desse sofrimento, sendo que o problema em si, não fica resolvido. Essencial dizer e ressalvar a importância da psiquiatria, bem como da medicação. Quando se atingem patamares severos de sofrimento e/ou patologia, é imprescindível a medicação, não só para o individuo funcionar (por vezes precisa de medicação para actividades básicas como tomar banho, comer ou conseguir dormir), conseguir manter o seu dia-adia e as suas responsabilidades pessoais, familiares e profissionais, mas também para ficar minimamente estável e poder desta forma fazer psicoterapia.n Setúbal Revista

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CONSULTÓRIO JURÍDICO

NUNO CASTRO LUIS Advogado

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empre ouvimos dizer que a nossa liberdade termina onde acaba a liberdade dos outros; contudo, hoje em dia, parece haver uma certa distorção mais egoísta que impõe uma alteração da ordem das coisas, assumindo-se que a liberdade dos outros termina onde começa a minha. A liberdade, nas suas diversas dimensões, aparece consagrada na Constituição da República Portuguesa com um valor reforçado para cada um de nós e para todos os elementos da sociedade. Esta importância, em termos jurídicos, é tal que levou o legislador a inclui-la num título da lei fundamental, designado por “Direitos, liberdades e garantias” (Título II, parteI). É nestas normas da Constituição que encontramos a tutela de diversas aceções da liberdade como: a liberdade de expressão, a liberdade de imprensa, a liberdade pessoal, a liberdade de consciência, religião e culto, a liberdade de aprender e ensinar, a liberdade de criação cultural, a liberdade de escolha de profissão, entre outras. O seu valor é tal que existem mecanismos legais para impedir que a liberdade seja afetada. Assim, e a mero título de exemplo, ninguém pode ser detido ou preso sem que se verifiquem alguns requisitos, previstos na lei, por forma a evitar abusos injustificados da restrição da liberdade. Apesar de ser conhecido o que se disse, existem alguns paradoxos nas sociedades atuais que levam a que se recorra ao conceito de liberdade para tudo e mais alguma coisa. Sempre que alguém quer justificar ou criticar um comportamento diferente dos demais assenta logo a sua fundamentação numa ideia de liberdade. Por exemplo, sempre que se noticia que em algumas culturas é

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Feliz Natal ou riscos da liberdade à primeira vista


CONSULTÓRIO JURÍDICO

possível haver um casamento em que os noivos são escolhidos por terceiros, normalmente pelas suas famílias, surge, quase como causalidade imediata, um conjunto de opiniões com críticas assentes na inaceitável falta de liberdade individual a que tal corresponde (levando os mais ciosos até a pugnar pela ilegalidade de tais uniões, por força do condicionamento da vontade dos nubentes). Simultaneamente, e por outro lado, aparecem logo vários defensores da permissão de tal prática, assente na tradição, na cultura étnica própria, numa visão multiculturalista que fundamenta que ninguém se deve opor a tal forma de casar por inserir-se na liberdade cultural da comunidade onde os noivos se inserem. E casar, em horário nobre da televisão, sem conhecer com quem? Casar à primeira vista, como é apanágio de um recente programa de televisão, pode ser aceite na nossa cultura atual?

Sempre se poderá dizer que se trata de uma clara expressão da liberdade de cada um, que os noivos sabem as condições e que as aceitam, que optam por deixar nas mãos de outros aquilo que outros fazem por si e nem sempre resulta: escolher a pessoa ideal para assumir um conjunto de direitos e deveres pessoais. Mas não estará o respeito por essa esfera de liberdade pessoal, entendida desta forma tão lata, a contribuir de forma ostensiva (e assistida por milhares de pessoas) para pôr em causa o próprio conceito de casamento, enquanto contrato estável, a dois, assente na comunhão de vida, assistência mútua, perspetivada para uma duração afetuosa e futura? E quanto ao casamento em si? Será juridicamente aceitável que um casamento possa ser invalidado, nos termos do Código Civil, por se estar em erro em relação à pessoa com quem se casa

(nomeadamente quanto às suas qualidades essenciais) mas que seja considerado válido quando se desconhece de todo com quem se vai casar, até mesmo no seu elemento identificativo mais básico: o nome? Mesmo que se resuma o casamento, em termos jurídicos, a um contrato, não haverá aqui preterição de todas as formalidades pré-contratuais tendentes à formação da vontade dos noivos? Não será antes uma simulação? Deverá a liberdade ser estendida a pontos tais que se deva parar qualquer discussão “à primeira vista” quando é invocada? Atentemos noutro exemplo paradoxal. Recentemente surgiu uma acesa polémica pelo facto de uma jornalista de televisão se despedir sempre com a fórmula: “Até amanhã, se Deus quiser”! Muitos viram logo nesta forma de despedida uma agressão ao Estado laico, à liberdade cívica de não ter religião… mais uma vez a liberdade. Mas para que exista laicidade no Estado, e ninguém se sinta ofendido, é necessário que todos os indivíduos se abstenham de tornar públicas as suas convicções, mesmo que se vislumbrem em simples expressões de despedida que são mais culturais do que propriamente de invocação divina? Curiosamente, nunca se viu ninguém insurgir-se por se festejar, como feriado incontestado, uma data efetivamente associada a um evento religioso: o Natal! Aliás, até se defende que, hoje em dia, o Natal é mais uma festa civil e da família, ou seja, de cariz cultural, destinada a todos, do que uma festividade para quem tem convicções religiosas. Mas não será essa uma questão idêntica à da jornalista? Não desejamos todos, sem que ninguém se sinta agredido, laicos e religiosos, um “Feliz Natal”? Enfim, a liberdade trará sempre, e ainda bem, visões contraditórias, pois faz parte da sua própria substância. Mas assumir que a liberdade, em qualquer perspetiva, se impõe sempre à primeira vista, sem qualquer tipo de responsabilidade na sua utilização, como seja na realização de um casamento com um desconhecido, poderá ser um risco para si própria, pois levará à crença de que a minha liberdade se impõe sempre a tudo o resto, mesmo que o possa vir a danificar ou destruir. E já agora, neste mês de Dezembro, Feliz Natal, se Deus quiser…n Setúbal Revista

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HISTÓRIA LOCAL NO FEMININO

ANA PAULA SARAIVA Jurista, Investigadora, Autora

Contar Histórias de Mulheres com Livros

Olga de Morais Sarmento

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stamos novamente naquela época do ano, vivida ao sabor dos tempos e lugares, num misto de tradição e inovação, mas que, invariavelmente, inclui a oferta de “presentes”. Na minha infância era hábito deixar, na véspera de Natal, um sapatinho, onde o senhor de barbas haveria de colocar o desejado embrulho. A crónica de hoje tem por protagonista Maria Olga de Moraes Sarmento da Silveira, alguém que provavelmente não conheceríamos, não fora a oferta de um par de sapatos pelo seu tio de Setúbal, não fora a oferta feita por ela a Setúbal do seu magnífico património pessoal. Ao nome de Olga de Morais Sarmento, muito dignamente representada na toponímia local, é comum associar-se uma vida de privilégio, não só porque essa distinção autárquica é apanágio de ilustres — sendo mulher significa, até, ter sido ilustríssima — mas também, pelas ligações conhecidas a vários membros da realeza nacional e europeia, aos maiores vultos intelectuais, políticos e artísticos da sua época e, principalmente, por ter legado à cidade, onde nasceu em 1881, muitos e valiosos bens. É através das suas memórias, escritas já em fim de vida, que dá a saber que a par da fortuna conheceu a pobreza. A família de Olga, a mais nova de cinco filhos, mudou-se de Setúbal para Elvas, quando esta tinha apenas quatro meses de idade, devido à transferência do pai, Francisco de Moraes, então Tenente. A mãe, Júlia de Moraes Sarmento era filha de um General, muito respeitado e acarinhado. Senhora muito formosa, havia herdado várias propriedades em Évora e

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HISTÓRIA LOCAL NO FEMININO

Beja, entre outros bens, que o marido dilapidou paulatinamente. Acumulava a fama de oficial distinto com a de mulherengo inveterado. Publicamente, um “homem de sociedade amável”, dentro de portas, um marido “déspota”, um pai muito disciplinador, “carrancudo, severo”, “fonte permanente de ansiedade” que nunca prodigalizou os filhos com “a migalha de uma carícia ou o afecto de um beijo”. A infância de Olga é também negativamente marcada pela doença e, assim foi crescendo “enfezada, pálida e feia”, até que foram viver para Lisboa, uma mudança celebrada por ela e pelos irmãos. Contudo, esse tempo foi também marcado pelo agudizar de discussões, que

culminaram em separação quando a mãe de Olga se recusou a aceitar em casa uma criança nascida de um caso extraconjugal. O marido revoltado contra esta oposição inesperada, anunciou aos filhos que iria sair de casa e apresentoulhes as alternativas: “Os filhos que quiserem seguir-me, sabem que nada lhes faltará. Os que preferirem ficar, sujeitem-se às consequências”. Foi a única a tomar o partido da mãe. Nesse momento, afirma, “começou o nosso calvário”, tinha doze anos de idade. O cabal significado do termo “consequências” começou a revelar-se quando tiveram de vender joias, móveis e, posteriormente, quaisquer objetos que pudessem trocar por uma refeição. Foi

neste período que sentiu nascer nela “um brio até então desconhecido”, motivado pelo sentido de responsabilidade que a impelia a atenuar o sofrimento da mãe. Esta energia e atividade trouxeram-lhe saúde, começou a estudar, decidiu fazer exames “indo contra as tradições familiares que consideravam isso um insulto ao sexo feminino”. A prestação de provas exigia indumentária apropriada, “um vestidinho decente” ainda se arranjou, mas o único calçado que tinha estava muito roto. Foi então que recorreu ao tio Simão, que depois de saber que a sobrinha passou no exame com distinção se regozijou pelo ato extemporâneo de generosidade. Foi o início de um novo ciclo. Setúbal Revista

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HISTÓRIA LOCAL NO FEMININO

Com a intervenção do Ministro da Guerra, o pai foi obrigado a pagar uma pensão à mãe de Olga, permitindolhes iniciar uma vida mais desafogada, após dois anos de privações. Mudaram de residência e foi na casa de um vizinho que Olga conheceu Manuel João da Silveira, natural dos Açores, então cadete e estudante de medicina, com quem veio a casar, aos dezasseis anos de idade. Olga elogia a inteligência deste homem, 11 anos mais velho, que a capacitou a enfrentar a vida com “equilíbrio e segurança” e que a apoiou quando decidiu escrever e publicar artigos literários, chegando a ser diretora da revista “Sociedade Futura”. Foi um casamento tão feliz quanto efémero, o marido morreu no decurso de uma missão em África, enquanto médico naval. Inconformada com a “ostentação do luto” que as convenções e “preconceitos portugueses” lhe exigiam, após permanecer vários meses sem sair de casa, ruma sozinha a Paris. A partir dessa viagem começou a alimentar o desejo de viver nessa cidade. Com efeito, regressada a Portugal, organizou a sua independência financeira vendendo alguns

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bens e fazendo várias conferências. Voltou para Paris, aí fixou residência, tinha 24 anos de idade. Viveu na capital francesa, mesmo quando sitiada, durante a I Guerra. Mas, na iminência de uma nova guerra decide-se a abandonar Paris de onde traz os móveis, coleções, obras de arte e livros que oferece à sua cidade natal. A cerimónia de doação e a inauguração da exposição nos Paços do Concelho é realizada em 1939. Assistiram altas individualidades locais, nacionais e francesas, tal como registado por Américo Ribeiro. Viaja depois para Nova Iorque, onde permaneceu exilada durante cinco anos. Aí iniciou a escrita das suas memórias que finalizou já doente e que publicou em 1948, ano em que morre. Durante a sua vida, Olga publicou diversas obras, em português e francês, sobre mulheres e homens ilustres, rainhas e poetas, sobre viagens, arte e literatura, tendo inaugurado este vasto rol com um pequeno livrinho “Problema Feminista”, publicado em 1906. Correspondia a uma conferência realizada em Lisboa para assinalar um aniversário da Primeira Conferência de Haia, em que participava na qualidade de presidente

da seção feminista da Liga Portuguesa da Paz. Veio a realizar muitas outras conferências, principalmente sobre autores portugueses, na Bélgica, França, Argentina, Estados Unidos e Brasil, onde era muito acarinhada. Recebeu as mais altas condecorações nacionais e a Legião de Honra Francesa. Através da sua valiosa coleção de autógrafos (que também doou à cidade) podia contar-se a história do mundo, desde a Belle Époque à II Guerra, pois a todos conheceu e era conhecida de todos. Atualmente, é uma figura indistinta na memória coletiva. Existem, no entanto, na cidade, vários registos, muito bem preservados, incluindo obras suas, cartas, retratos e, outros documentos, que permitem a realização de uma investigação de cariz biográfico, ainda por realizar. Este breve ensaio só foi possível devidos a vários contributos generosos de que destaco: António Cunha Bento, António Quaresma Rosa, colecionadores e guardiães de memórias locais; Dra. Maria da Conceição Heleno, do Serviço Municipal de Bibliotecas e Museus de Setúbal; Professora Zília Osório de Castro, investigadora na Universidade Nova de Lisboa.n


HISTÓRIA LOCAL NO FEMININO

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