Catálogo Mostra de Cinema Um Lobo À Espreita: Uma Homenagem ao Centenário de Ingmar Bergman

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SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO DEPARTAMENTO NACIONAL

O lobo

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Uma homenagem ao centenário de Ingmar Bergman CATÁLOGO

RIO DE JANEIRO SESC | SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO DEPARTAMENTO NACIONAL 2018

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Sesc | Serviço Social do Comércio Presidência do Conselho Nacional Antonio Oliveira Santos Departamento Nacional Direção-Geral

Carlos Artexes Simões Diretoria de Cultura

Marcos Henrique da Silva Rego CONTEÚDO Gerência de Cultura

Marcia Costa Rodrigues Texto

Marco Aurélio Lopes Fialho PRODUÇÃO EDITORIAL Diretoria de Comunicação

Pedro Hammerschmidt Capeto Supervisão editorial, edição e preparação

Fernanda Silveira Projeto gráfico

Ana Cristina Pereira (Hannah23) Revisão de texto

Clarisse Cintra Arte-finalização e Produção Gráfica

Celso Mendonça Estagiária de design

Paloma Mattos As fotos de Ingmar Bergman (capa e páginas 86 a 93) foram gentilmente cedidas pela Fundação Ingmar Bergman (www.ingmarbergman.se). As demais imagens são frames dos filmes utilizados com permissão das distribuidoras Versátil Home Vídeo e Zeta Filmes. ©Sesc Departamento Nacional, 2018 Av. Ayrton Senna, 5.555 — Jacarepaguá Rio de Janeiro — RJ CEP 22775-004 Tel.: (21) 2136-5555 www.sesc.com.br Distribuição gratuita. Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610/1998.

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Sesc. Departamento Nacional. O lobo à espreita : uma homenagem ao centenário de Ingmar Bergman : catálogo / Sesc, Departamento Nacional. – Rio de Janeiro : Sesc, Departamento Nacional, 2018. 106 p. : il. ; 28 cm. ISBN 978-85-8254-064-0. 1. Ingmar Bergman. 2. Cinema - Catálogos. I. Título. CDD 791.4

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O Serviço Social do Comércio (Sesc) é uma instituição de prestação de serviços de caráter socioeducativo que promove o bem-estar dentro das áreas de Educação, Saúde, Cultura, Lazer e Assistência com o objetivo de contribuir para a melhoria de vida de seu público e facilitar seu aprimoramento cultural e profissional. Dentre as diversificadas áreas de atuação do Sesc, a cultura se caracteriza como democrático disseminador de conhecimento, importante ferramenta para a educação e transformação da sociedade, levada ao público de grandes e pequenas cidades por meio da itinerância de espetáculos, exposições e mostras de cinema. Nesse cenário, a mostra de cinema O Lobo à Espreita – Uma Homenagem ao Centenário de Ingmar Bergman exibe nove filmes realizados pelo diretor de cinema sueco: O sétimo selo (1956), Morangos silvestres (1957), Persona (1966), A hora do lobo (1968), Vergonha (1968), Face a face (1976), Sonata de outono (1978), Fanny e Alexander (1982) e Na presença de um palhaço (1997) são os títulos que compõem a mostra, os quais representam um panorama da obra de Ingmar Bergman. Ao possibilitar o livre acesso aos movimentos culturais no cinema e também nas artes plásticas, no teatro, na literatura ou na música, o Sesc incentiva a produção artística, investindo em espaço e estrutura para apresentações e exposições, mas, acima de tudo, promovendo a formação e qualificação de um público que habita os quatro cantos do Brasil.

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Apresentação

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A premissa da neutralidade da desconhecida Suécia

13 Os artistas bergmanianos e a relação com o diretor

17 Filmes da mostra Sesc

Bergman, um furacão silencioso na cidade fria

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SUMÁRIO

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Através do espelho: Bergman por Bergman

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Além do espelho: a inspiração do diretor

Filmografia de Ingmar Bergman

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Cinematografia sueca além Bergman 1920-1970

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Referências

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APRESENTAÇÃO

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Ingmar Bergman foi definitivamente um diretor de cinema sueco; suas maiores in-fluências artísticas vieram do teatro e do cinema de seu país natal: Ibsen, Strindberg e Victor Sjöström. No panorama do cinema mundial, Bergman influenciou mais do que foi influenciado. Seu estilo é inconfundível, marcante: diálogos densos, câmera que penetra rostos e os revelam, em especial os das mulheres. As atrizes foram suas grandes estrelas, e para elas dedicou personagens extremamente sensíveis e eloquentes, tendo se envolvido intimamente com algumas delas. Das grandes musas, foram marcantes o silêncio enigmático e feroz de Liv Ullmann em Persona e da sua angustiante Jenny em Face a face; o sofrimento da personagem de Harriet Andersson em Gritos e sussurros, e sua intempestiva Monika em Monika e o desejo; o carisma inebriante de Bibi Andersson em O sétimo selo e Persona; o olhar penetrante de Ingrid Thulin em Morangos Silvestres e sua desenvergonhada Vogler em A hora do lobo; a vaidosa e egocêntrica mãe vividamente interpretada por Ingrid Bergman em Sonata de Outono. Dentre vários, esses são alguns exemplos de femininos expressivos na obra bergmaniana. Com o intuito de homenagear a maior influência artística de Bergman, cada um dos nove filmes da mostra terá uma epígrafe retirada de pensamentos do dramaturgo August Strindberg. Essas pequenas pílulas serão evidências latentes do quanto a obra de Bergman foi impregnada por esse grande nome do teatro sueco. Elas funcionam não como uma reflexão, mas também como uma chave de acesso à obra bergmaniana. Como em 2018 Bergman faria cem anos, o Sesc não poderia deixar de contribuir e comemorar o centenário de nascimento deste que foi um dos grandes ícones não só do cinema como da cultura mundial do século 20.

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A PREMISSA DA NEUTRALIDADE DA DESCONHECIDA SUÉCIA

"O pensamento do suicídio é um forte consolo: como ele atravessamos mais de uma noite ruim." Nietzsche, p. 81

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Apesar de estar na Europa, epicentro de importantes transformações históricas da humanidade, a Suécia manteve-se em uma posição de neutralidade perante os grandes acontecimentos políticos e sociais do século 20, o que fez com que o país desenvolvesse características muito singulares e ficasse alheio do imaginário mundial. Pouco se conhece sobre sua história e sua cultura. E para tratar do igualmente enigmático Ingmar Bergman, é preciso tirar o véu por sobre esse país situado em uma região muito fria do planeta. Em quase toda a primeira metade do século 20, a Suécia foi governada por uma monarquia parlamentar, sob a égide do reinado de Gustavo V (1907-1950). Esse modelo de gestão política foi responsável pelo fortalecimento dos partidos políticos, organizados em um amplo espectro que ia da esquerda (partido social democrata), passando pelo centro (partido de concentração liberal) até a direita (partido progressista conservador). Em pelo menos dois importantes eventos a Suécia pôde afirmar sua posição de neutralidade perante o continente e o mundo. Primeiro, durante a Primeira Guerra Mundial, quando os Estados Unidos convidaram a Suécia a engrossar as fileiras da Entente, tendo como resposta uma categórica recusa; e um segundo momento, quando a Finlândia chamou a Suécia para juntar-se aos exércitos brancos na luta contra os bolcheviques russos, e a resposta também foi não. Essa característica será fundamental para entender o cinema bergmaniano, considerando que os impactos da postura isenta e introspectiva que o país assume no seu fazer político, no âmbito interno e externo, também se reflete em seu cotidiano e na forma como os nativos encaram a própria vida. Com a predominância do partido social democrata (de esquerda) a partir de 1920, a Suécia inicia uma trajetória cuja grande protagonista serão as reformas sociais, que a partir de 1936 serão aprofundadas com o desenvolvimento das instituições de assistência e seguridade social e propiciando, em paralelo, um progresso industrial intenso, fundamentais para que a Suécia consiga vencer a grande crise econômica mundial desencadeada a partir da quebra da bolsa de Nova York, em 1929. Ainda surpreende a permanência do não alinhamento bélico da Suécia durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), que lhe garantiu a posição de modelo e pioneira na implantação de um Estado do bem-estar no mundo pós-1945. A partir do fim da Segunda Guerra desenhou-se um novo mapa político mundial com a formação de dois blocos políticos polarizados: de um lado o socialista (URSS), e de outro, o capitalista (EUA). Nesse momento histórico, o acirramento ideológico foi um elemento norteador e causador de conflitos, não mais na Europa, mas agora em países fora do eixo de polarização. Inaugurou-se então a chamada Guerra Fria, com Estados Unidos e União Soviética como financiadores, e às vezes participantes diretos de “pequenas” guerras pelo mundo afora. Apesar de a Suécia continuar mantendo seu posicionamento nesse período pós-guerra, os ecos da guerra fria soam também na aparente frieza sueca, mesmo que não seja

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totalmente vislumbrada. Em 1952, Bergman filmou Monika e o desejo, em que o conflito patrão/trabalhador é latente até mesmo em uma análise superficial do filme. Em geral esses conflitos continuam muito escamoteados. Vale lembrar a observação da historiadora Kristina Orfali de que a Suécia da social democracia, do final dos anos 1940, é “poupada da Segunda Guerra Mundial, mantém intacto seu aparato produtivo e surge aos olhos da Europa devastada como um país da utopia materializada, ‘os americanos da Europa’”, ainda acrescentando, “a imprensa, com suas manchetes contribuiu para criar a imagem de uma Suécia ideal: ‘A Suécia, Estado social moderno’; ‘Aqui não existe fome nem miséria’; ‘Gênese da harmonia social’, enfim, modelo material que fascina os franceses do pós-guerra” (ORFALI, 1992, p. 609). Bergman não comungava com essa propensão à neutralidade política adotada pelo seu país. Deixou isso claro em uma entrevista à época do lançamento do filme Vergonha (1968): “Este filme está ligado ao sentimento de culpa que envergonhava a Suécia inteira, neutra durante a Segunda Guerra Mundial e testemunha do terror” (ARMANDO, 1988, p. 59). Mas o modelo de neutralidade sociopolítica adotado pela monarquia parlamentar não pode dar conta de explicar tudo. Do ponto de vista cultural há um isolamento ocasionado também por outros fatores, sendo um deles o clima. O clima sueco influencia muito na mentalidade do país. O inverno é rigoroso, e esse frio excessivo agrega uma atmosfera sombria. O grau de pobreza é ínfimo, mas o suicídio é um fato recorrente no país, causado pela chamada “angústia da floresta”, um sentimento comum que persegue os suecos, uma solidão mergulhada na natureza hostil. A religiosidade ascética dos luteranos somada a um racionalismo exacerbado não supre a ausência do calor humano. E Bergman, apesar de ter sido educado nesse contexto cultural, tentou em sua obra estabelecer um visível lastro crítico em relação a essa herança. Impossível não recordar aqui suas palavras mordazes: “Fiquei à mercê de uma educação literalmente medieval, feita de maus-tratos físicos e psicológicos que visavam destruir toda e qualquer manifestação natural de vitalidade (BJÖKMAN, 1977, p. 12). Nessa citação, Bergman expõe um dado fundamental e que alicerça a história da Suécia. Desde o século 12, a questão religiosa apresenta um fator primordial de unidade do reino sueco, e desde então demarcou Uppsala, cidade onde Bergman nasceu, como a capital religiosa da Suécia.

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BERGMAN, UM FURACÃO SILENCIOSO NA CIDADE FRIA

“As pessoas graves e sombrias tornam-se mais leves precisamente através daquilo que torna outras pessoas graves, através do ódio e do amor, e chegam assim por um momento à própria superfície.” Nietzsche, p. 71

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Ingmar Bergman nasceu em 14 de julho de 1918, na cidade sueca de Uppsala. Filho de um pastor luterano, teve uma educação rigorosa e autoritária, fundamentada em valores e costumes como os da confissão, do castigo, do pecado, do perdão e da indulgência, que marcaram significativamente sua trajetória como homem e artista. Na autobiografia Lanterna mágica, Bergman descreve inusitadas punições que sofreu na infância: sempre que contava uma mentira recebia castigos constrangedores, como desfilar vestido de menina ou ser trancafiado em um armário. Nesse período, vivenciou sentimentos como vergonha ou humilhação, temas explorados sistematicamente em suas obras (BERGMAN, 1988, p. 13). No filme Crianças de domingo, dirigido pelo filho Daniel Bergman, a partir de um roteiro de Bergman pai, há vários momentos de humilhação, algumas impingidas pelo pai e outras por crianças mais velhas. Nesse filme, há uma sequência que vale ser mencionada: já no auge dos seus 60 anos, Ingmar vai visitar o pai idoso, entrevado e quase à morte. Em uma conversa entre os dois, Ingmar Bergman dirige a ele, friamente, duras palavras. Ele diz ao pai que não o perdoava pelas depreciações, devolvendo a humilhação que tanto sofreu na infância sem levar em consideração que o homem dava seus últimos suspiros (CRIANÇAS..., 1992). A primeira ligação de Bergman com o cinema ocorreu aos nove anos, no Natal de 1927, quando “não resistiu à tentação de ver o irmão presenteado com um projetor e sugeriu uma barganha que terminou sendo definitiva para o futuro de sua vida: trocou um exército de soldadinhos de chumbo pelo cinematógrafo” (BERGMAN, 1988, p. 21). Com doze anos, Bergman adquiriu toda a obra de August Strindberg (1849-1912) contra a vontade de seu pai, que ameaçou jogá-la fora. Bergman astutamente escondeu em seu armário e devorou implacavelmente aquele que se tornaria um grande mestre para sua obra. Passou a admirar as críticas cruéis à família burguesa sueca. Mais à frente, dirigiu diversas de suas peças para o teatro. Ainda adolescente deixou a família e foi viver em Ganula Stam, bairro de Estocolmo, tradicional reduto de artistas. Lá, Bergman envolveu-se com teatro e literatura, sendo influenciado principalmente pelo já mencionado dramaturgo August Strindberg, do qual herdou as personagens femininas destruidoras/masculinas destruídas. Desse ambiente também assimilou o tema da dúvida sobre a existência de Deus, resultado do contato com as ideias pessimistas do filósofo Søren Kierkegaard. Conheceu um dos patriarcas do cinema sueco, o diretor Victor Sjostrom, autor do clássico O vento, estrelado por Lilian Gish, absorvendo dele a compreensão da natureza como elemento de sustentação dramática. Aos vinte anos, estreou no teatro como diretor, função que nunca mais abandonou e que exerceu paralelamente ao cinema, primeiro como roteirista depois como diretor, em 1945, quando dirigiu Crise, seu primeiro filme. Mas a influência do teatro se fez marcante em toda a sua obra cinematográfica. A década de 1940 foi um divisor de águas para sua carreira artística: Bergman assumiu a função de diretor-assistente no Teatro

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Dramaten, em Estocolmo, lugar que ocupou até 1942. Ainda em 1940, Bergman assinou um contrato de quatro anos como roteirista na Svensk Filmindustri, empresa que cinco anos depois apoiaria sua estreia como diretor de cinema. Em 1944, assumiu o cargo de diretor do Teatro Municipal de Helsingborg, onde permaneceu até 1946. Nesse ano, tornou-se o primeiro diretor do Teatro Municipal de Göteborg, ficando lá até 1949. Em 1954, já usufruindo de sua fama no cinema, assumiu a função de Diretor no Teatro Municipal de Malmö até 1960. Devido ao trabalho intenso no teatro, os primeiros filmes de Bergman sofreram uma significativa influência dessa formação teatral. Ele próprio reconhece que seus primeiros filmes eram teatrais em demasia pelo fato de ainda não se sentir familiarizado com a técnica cinematográfica. Essa intimidade só começou com o filme Juventude (1951). pela primeira vez, eu tinha a impressão de trabalhar de uma maneira pessoal, com um estilo pessoal, era o meu filme, do começo ao fim. Subitamente, percebi que tinha colocado a câmera no lugar certo, que tinha conseguido o resultado procurado, que tudo funcionava muito bem. (BJÖRKMAN, 1977, p. 31) Desde então, em mais de 58 anos como diretor, Bergman realizou 53 trabalhos, incluindo os filmes para tevê. Em 1982, aos 64 anos, ele anunciou sua aposentadoria, depois de Fanny e Alexander, mas retornou após dois anos com Depois do ensaio. Contrariando seu merecido descanso, fez ainda mais alguns filmes para tevê, até enfim filmar seu derradeiro trabalho, Saraband (2003). Quatro anos depois, em 2007, Ingmar Bergman morreu, aos 89 anos. Analisar a obra de Bergman considerando o aspecto quantitativo é surpreendente, no entanto mais surpreendente é analisá-lo em uma perspectiva qualitativa, considerando a densidade e a profundidade de seus trabalhos, tanto no cinema quanto no teatro. Essa constância produtiva e criativa foi possível devido a sua relação à profissão. Sempre gostei da minha profissão, e nossas relações são totalmente despojadas de neuroses. O processo de criação propriamente dito, o fato de trabalhar, de fazer coisas, de fazer coisas novas e apagar as precedentes. A profissão que exerço corresponde à minha natureza, ao meu lugar no mundo. (COTA, 1999) Ao longo de sua extensa carreira, Bergman foi adquirindo maturidade técnica e individual. Sua obra veio refletindo questões vitais para o ser humano, visitando nosso íntimo, revirando tabus, indagando acerca do sentido da existência e da morte,

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investigando as relações humanas em toda a sua complexidade, desde a social até os conflitos interiores. É no indivíduo que a obra bergmaniana se realiza e encontra o seu habitat. Certa vez, no lançamento do filme Da vida das marionetes, em 1980, Bergman falou da sua concepção estética e humana: Instintivamente as pessoas têm sempre medo das emoções. Na minha geração, no meu meio, educar não era formar um ser humano, mas criar uma pequena marionete, destinada a existir e a andar numa sociedade autoritária. Para que um menino não se comporte como uma menina é preciso ser duro com ele e assim, muito cedo, aprendemos a interpretar nossos papéis. Por isso, seriamente, creio que é, que seria maravilhoso ensinar o ABC das emoções. Com esse ABC eu tento trabalhar e atingir o D do abecedário, mas nós somos todos analfabetos nesse campo. (TRUFFAUT, 1989, p. 278) O compromisso de Bergman, então, está no estudo desses mecanismos que corrompem o ser humano desde o nascimento até a morte, e que aprisionam a existência. Ao abordar temas difíceis, Bergman afasta-se radicalmente do chamado cinema de entretenimento, divertido e espetacularizado. Com seu cinema ao mesmo tempo humano e metafísico, Bergman abre um profundo fosso entre sua obra e o cinema de massas. Em sua obra, o público não encontrará facilidades, nem na abordagem temática nem na forma cinematográfica. Mas quem encarar corajosamente o desafio não se arrependerá, as recompensas serão imensas, pois descobrirá a capacidade que a obra bergmaniana tem de penetrar na alma humana, de desvendar seus aspectos mais sombrios e inóspitos. É bom lembrar que existe na obra bergmaniana uma variedade estilística bem mais complexa do que se supõe habitualmente. Segundo Cota, (1999) embora Bergman seja quase sempre lembrado por suas obsessões mais frequentes, como o passar do tempo, a morte, a impossibilidade de comunicação, presentes em filmes como Luz de inverno, O sétimo selo, O silêncio, Persona e tantos outros, o conhecimento mais aprofundado de sua obra revela um autor de talentos múltiplos. O olho do diabo, Sorrisos de uma noite de amor e Para não falar de todas as mulheres são filmes de um bom-humor surpreendente, sobretudo quando se sabe que são filmes do mesmo autor de Vergonha, Face a face e Da vida das marionetes.

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OS ARTISTAS BERGMANIANOS E A RELAÇÃO COM O DIRETOR

“O que fazemos em sonhos, fazemos acordados: inventamos e construímos a pessoa com quem lidamos – para em seguida esquecer que assim fizemos.”

Nietzsche, p. 78

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Bergman construiu sua carreira de diretor de cinema em paralelo a de diretor teatral. Essa combinação é importante para uma compreensão de sua arte nesse intercâmbio entre teatro e cinema. A relação com os atores foi bastante proveitosa, basta assistir aos seus filmes para confirmar isso. Bergman tinha um profundo respeito e admiração pelos artistas com quem trabalhava. Não foi à toa que os projetou constantemente, valorizando a atuação em suas obras. Alguns deles ficaram conhecidos como atores bergmanianos, tal a constância dessa parceria e fidelidade entre Bergman e seu elenco. Pouco a pouco, consegui estabelecer uma técnica pessoal de trabalho com os atores. Preparo a filmagem nos mínimos detalhes em casa. É lá que concebo as cenas, os cenários, a interpretação em geral. Quando chego ao local de filmagem com os atores, pode acontecer que, apesar de tudo preparado, o tom, uma nova inflexão de frase, um gesto, uma expressão, a reflexão de um ator me incitem a mudar totalmente a cena. Eu sinto interiormente que o resultado será melhor, mas isso nunca tem a necessidade de ser dito entre nós. Acontece um montão de coisas entre mim e os atores, e sobre um plano que é impossível de analisar. Ingrid Thulin me disse uma coisa interessante a esse respeito: “Quando você me fala, eu não compreendo nada do que você quer dizer, mas quando você não me fala nada, compreendo tudo perfeitamente”. (ARMANDO, 1988, p. 336) A câmera de Bergman parecia estar à mercê de seus personagens, seu posicionamento sugeria isso. O humanismo bergmaniano se consubstancia na primazia do personagem sobre o cenário, mas a face sempre foi a porta de entrada para os mistérios da psiquê humana e o close o seu instrumento mais precioso e revelador na busca invasiva por recantos inimagináveis. O rosto é o último reduto do ser humano; e o olhar, a nossa masmorra. Ali nos revelamos ou nos escondemos. O close em Bergman difere do close em outros diretores. Bergman vai muito além de mostrar mais de perto determinada expressão ou reação. Ele não é descritivo, mas analítico. O close em sua obra o define, por isso é pleno. Tem como função fazer com que o espectador entre na intimidade de um personagem, sinta a verdade dele como sua. Não por acaso Bergman foi o diretor que melhor aproximou Freud do cinema. Ele não se contentou em apenas mostrar a angústia de um personagem, foi além, fez dela a de todos nós, e por um motivo simples: os sentimentos de seus personagens vinham da mesma sociedade que nos gestou. Seus filmes tinham a capacidade de despertar

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no espectador essas verdades. Perguntamo-nos se não há um resquício altamente religioso nessas premissas bergmanianas. A ausência de Deus, aspecto tão presente em algumas de suas obras, provocou um humanismo extremado, um predomínio do corpóreo e um antiascetismo. Mas subliminarmente, seu close resgata a confissão. A rígida educação religiosa recebida na infância foi renegada, como é sabido, na fase adulta, mas um passado vivido é difícil de apagar por inteiro. Essa “religiosidade”, conforme descrita, trouxe um vigor original e irrepreensível para a obra bergmaniana. Alguns desses artistas foram: Liv Ullmann (1938- ), é norueguesa, nascida em Tóquio. Estudou artes dramáticas na Noruega e na Inglaterra. Foi apresentada a Bergman em 1966 pela amiga em comum Bibi Andersson. Com Persona se transformou em musa e esposa do diretor por quase dez anos, juntos tiveram uma filha, Linn. No cinema trabalhou em sete filmes de Bergman: Persona, Vergonha, A hora do lobo, A paixão de Ana, Gritos e sussurros, Cenas de um casamento, Face a face, Ovo da serpente e Sonata de outono. Trabalhou com outros diretores, mas sem o mesmo desempenho com que fazia com Bergman. No teatro, atuou em Pigmaleão e Seis personagens em busca de um autor, ambas peças de Bergman. Em 1976, escreveu sua autobiografia, Mutações, muito bem recebida pela crítica e pelos leitores. O sueco Max Von Sydow (1929- ) estudou artes dramáticas em Estocolmo e estreou no cinema em 1949, sob a direção de Alf Sjoberg, em Apenas uma mãe. Sua consagração veio em 1956, pelas mãos de Bergman, com o antológico O sétimo selo, onde interpretou o cavaleiro Antonius Block. Fez mais outros dez filmes com Bergman: Morangos silvestres, No limiar da vida, O rosto, A fonte da donzela, Através do espelho, Luz de inverno, A hora do lobo, Vergonha, A paixão de Ana e A hora do amor. Em sua carreira internacional, Sydow atuou em filmes famosos como O exorcista, de William Friedkin; Os três dias de condor, de Sidney Pollack; O deserto dos tártaros, de Valerio Zurlini; Duna, de David Lynch; Hannah e suas irmãs, de Woody Allen; Minority Report, de Steven Spielberg; Ilha do medo, de Martin Scorsese; Star Wars — O despertar da força, de J. J. Abrams; e a série televisiva de grande sucesso Game of Thrones (Temporada 6). Aos 88 anos, ainda está em atividade e não pensa em se aposentar. Bibi Andersson (1935- ) é uma atriz sueca que estudou na Academia de Artes Dramáticas de Estocolmo e no Conservatório Nacional. Conheceu Bergman no Teatro de Malmöe, e então teve sua carreira impulsionada por ele. Em 1955, estreou em um filme de Bergman fazendo uma ponta em Sorrisos de um noite de amor, e no ano seguinte interpretou Mia, uma personagem cativante, em O sétimo selo, depois dois personagens em Morangos silvestres. Ao todo foram 11 filmes com Bergman, sendo a atriz que mais filmou com o diretor. Em Persona, aos 31 anos de idade, com a interpretação de Alma, demonstrou todo o seu talento como atriz. No limiar da vida, O rosto, O olho do diabo, A paixão de Ana, A hora do amor, Cenas de um casamento

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e Para não falar de todas as mulheres foram outros filmes de Bergman em que atuou. Em sua extensa carreira internacional podemos destacar A festa de Babette (1987). O ator sueco Erland Josephson (1923-2012) estreou no cinema pelas mãos de Bergman, em 1946, em Chove sobre nosso amor. Depois passou mais de dez anos fazendo teatro, retornando ao cinema em 1957, em O rosto, de Bergman, e continuou por 13 filmes, além dos já citados, Rumo à felicidade, A hora do lobo, A paixão de Ana, Gritos e sussurros, Flauta mágica, Face a face, Sonata de outono, Fanny e Alexander, Saraband, Na presença de um palhaço e Cenas de um casamento, considerado seu melhor papel em um filme de Bergman. Sua devoção artística a Bergman foi tão profunda que quando realizou seu primeiro filme como diretor, Um e um (1978), contou com a fotografia de Sven Nkyvist e com a atriz bergmaniana Ingrid Thulin. Sua segunda e última experiência como diretor, A revolução das dores, tinha uma influência muito clara do seu mestre. Trabalhou pouco fora do contexto bergmaniano, mas o pouco que fez tem muito valor. Filmou com um dos maiores cineastas do século 20, Andrei Tarkovski, Nostalgia (1983) e O sacrifício (1986). Outro importante diretor com que atuou foi Istvan Szabo, em Encontro com Vênus (1991). No mesmo ano fez A última tempestade, do diretor inglês Peter Greenaway. Vale mencionar ainda a atuação no filme Infiel (2000), dirigido pela também bergmaniana Liv Ullmann. Ingrid Thulin (1929-2004) nasceu na Suécia e se formou em arte dramática e dança pela Lalla Cassell, em 1946. Estreou no cinema em 1948 e em 1957 fez seu primeiro filme com Bergman, Morangos silvestres, como a nora de Dr. Isak Borg (Victor Sjostrom). Ainda com Bergman atuou em mais sete filmes: No limiar da vida, O rosto, Luz de inverno, A hora do lobo, O rito e Gritos e sussurros, além de O silêncio, seu papel mais expressivo com Bergman. Ingrid Thulin trabalhou com diretores importantes como Luchino Visconti, no clássico Deuses malditos; Alain Resnais, em A guerra acabou; e Mauro Bolognini, em Agostino. Trabalhou como atriz no filme Um a um, do bergmaniano Erland Josephson, em 1978. Gunnar Bjornstrand (1909-1986) é sueco e começou no cinema em 1931. Foi o profissional mais constante do staff bergmaniano: trabalhou em 19 filmes do diretor. Em O sétimo selo interpretou o escudeiro do cavaleiro, cético e irônico. Também participou de Chove sobre o nosso amor, Música na noite, Quando as mulheres esperam, Noites de circo, Uma lição de amor, Sonhos de mulheres, Sorrisos de uma noite de amor, Morangos silvestres, O rosto, O olho do diabo, Através do espelho, Luz de inverno, Persona, Vergonha, O rito, Face a face, Sonata de outono e Fanny e Alexander. A sueca Harriet Andersson (1932- ) começou como dançarina no teatro de revista, em 1949, virando estrela rapidamente no Music Hall Scala, em 1950. Estreou no cinema em 1950, mas chamou a atenção de Bergman em 1952, quando atuou em O espírito da contradição, de Gustaf Molander, como uma operária. Entusiasmado com sua atuação, Bergman escreveu o roteiro do

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sensual Monika e o desejo pensando nela. Fez mais oito filmes com o diretor, entre eles: Noites de circo, Uma lição de amor, Sonhos de mulheres, Sorrisos de uma noite de amor, Através do espelho, Para não falar de todas essas mulheres, Gritos e sussurros e Fanny e Alexander. Sua forma sensual de atuar chamou a atenção da crítica especializada fora da Suécia, em especial a francesa. O crítico de cinema da revista Positif, Roger Tailleur, ficou tão fascinado que chegou a escrever um poema para ela. Mas Harriet surpreendeu a todos quando em Gritos e sussurros fez a personagem Agnès, mulher com um câncer em estágio terminal. Aos 40 anos, ela mostrou a todos o seu impressionante recurso dramático como atriz. Em 1964, ganhou o prêmio de melhor atriz no Festival de Veneza, com sua atuação em Para não falar de todas essas mulheres. Seu último trabalho como atriz foi em 2003, com o filme Dogville, do polêmico diretor dinamarquês Lars Von Trier. Bengt Eklund (1925-1998) ficou famoso pelo seu personagem icônico da Morte, em O sétimo selo, cuja caracterização cômica chamou muita atenção, apesar de ser um dos papéis coadjuvantes do filme. Fez outros trabalhos com Bergman como coadjuvante, caso de O rosto, Música na noite, Sede de paixões e Monika e o desejo. Seu único papel como protagonista com Bergman foi em Porto. Ingrid Bergman (1915-1982) e Victor Sjoström (1879-1960) eram profissionais consolidados na carreira quando trabalharam com Ingmar Bergman. Sjoström era um diretor e ator muito respeitado na Suécia, um dos precursores do cinema sueco, e uma das grandes influências de Bergman como diretor. Trabalhou com Bergman em duas oportunidades, a primeira em Rumo à felicidade e a segunda em Morangos silvestres, onde interpretou Isak Borg, o idoso professor que vai receber um prêmio pela sua dedicação profissional, mas está em crise existencial. Ingrid Bergman, aclamada atriz norte-americana de origem sueca, era um sonho antigo de Bergman e que só se concretizou em 1978, com Sonata de outono, em que ela interpretou uma famosa pianista que não consegue estabelecer um relacionamento saudável com a filha (interpretada por Liv Ullmann).

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“Uma alma que se sabe amada, mas não ama, revela seu sedimento: o que está no fundo vem à tona.” Nietzsche, p.69

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FILMES DA MOSTRA SESC

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O SÉTIMO SELO, 1956 | 96min | Direção e roteiro: Ingmar Bergman | Elenco: Anders Ek, Bengt Ekerot, Berto Anderberg, Bibi Anderson, Gunnal Lindblom, Gunnar Björnstrand, Inga Gill, Inga Landgre, Maud Hansson, Max Von Sydow, Nils Pope | Produção: Allan Ekelund | Fotografia: Gunnar Fischer | Trilha sonora: Eric Nordgren | No século 14, depois de dez anos de luta nas cruzadas, o cavaleiro sueco Antonius Block (Max Von Sydow) volta a seu país e o encontra assolado pela peste negra. A Morte (Bengt Ekerot) surge diante do cavaleiro e quer levá-lo consigo. Antonius pede um adiantamento da pena, durante o qual jogará uma partida de xadrez com a morte. O cavaleiro, acompanhado sempre pelo seu escudeiro Jons (Gunnar Björnstrand), vê à sua volta a morte pela fome e pela peste, fiéis que se flagelam em rituais sinistros, bruxas queimadas pela igreja. Somente quando conhece Jof (Nils Poppe) e Mia (Bibi Andersson), um ingênuo casal de saltimbancos, é que suas dúvidas e tormentos são aliviados.

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O SÉTIMO SELO

“Somos inocentes, mas responsáveis. Inocentes perante aquele que já não existe, responsáveis perante nós próprios e os nossos semelhantes.” Strindberg, [19--?]

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O sétimo selo é sem dúvida um filme icônico, ultrapassa as fronteiras de seu país de origem para sobressair como um ícone do cinema mundial, merecidamente reconhecido como um dos mais importantes da história. Mas é icônico ainda em outro aspecto: algumas de suas imagens são símbolos expressivos do cinema e são muito divulgadas, como o cavaleiro jogando xadrez com a morte; a morte com a capa aberta lateralmente; e o plano geral da montanha onde os personagens aparecem apenas em silhuetas dançando com a morte. Tal como a imagem de Carlitos nas engrenagens da fábrica em Tempos modernos, a da dança com as botas no filme Em busca do ouro, essas imagens de Bergman também permeiam o imaginário cinematográfico contemporâneo, mesmo depois de mais de 60 anos de sua estreia. Evidentemente, o filme está também para além de suas imagens icônicas. Seu lastro filosófico permeia toda a experiência do espectador. Bergman tinha enorme facilidade de incorporar discussões filosóficas profundas em seus trabalhos. A ideia mais brilhante do filme é a da personificação da morte (interpretação marcante de Bengt Ekerot), a de fazê-la adentrar na trama e torná-la grande, como um personagem de carne e osso. Em seu livro de 1990, Imagens, Bergman confessa que o filme nasceu de uma peça que havia escrito para poder avaliar seus alunos de teatro e que por isso a criou com muitos personagens. O nome da Seu lastro filosófico peça era O retábulo da peste. Não havia então permeia toda a experiência grandes pretensões quando a criou, só foi aceita do espectador. Bergman como projeto de um filme pelo produtor devido tinha enorme facilidade ao sucesso em Cannes do filme Sorrisos de uma de incorporar discussões noite de amor. Na arte isto é muito comum: uma filosóficas profundas obra de sucesso respaldar e facilitar um futuro em seus trabalhos. trabalho de um artista. Apesar de o filme ser uma parábola sobre a relação do ser humano com a morte, O sétimo selo não é um filme pesado e de difícil entendimento, tem inclusive cenas cômicas, e não chega a ser um filme contemplativo e hermético, como outros do diretor. Logo na primeira cena o tema já é exposto, assim como o tom cômico do filme. O personagem Morte logo aparece para o cavaleiro que, de súbito, o desafia a uma partida de xadrez. É feito um sorteio e as peças pretas ficam com a Morte. «Bem apropriado», afirma a Morte, ou, se quisermos, o próprio Bergman. É uma cena leve, em que Bergman faz uma apresentação explícita, simples e brilhante do seu tema ao espectador. Daí inicia-se um road movie, como o próprio Bergman gostava de se referir ao filme, um road movie medieval, com cavalos e carroças, com cavaleiros, palhaços, atrizes, artistas plásticos, padres e diversos personagens que bem expressam esse cativante período histórico. Mas não podemos nos enganar, esse período medieval dialoga perfeita e assombradamente com os anos 1950. No

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pós-guerra, a bomba atômica e sua possibilidade real de extermínio humano era um correspondente poderoso ao desastre que representou a peste medieval, essa correlação não é difícil de reconhecer e o próprio Bergman chegou a mencioná-la. A morte perambula por todo o filme; a morte real da peste, mas também a morte como possibilidade latente e inesperada. Cercada pela morte por todos os lados o homem fica em uma situação existencial delicada. Ao viver com ela espreitando o mundo, ela se torna tão concreta como uma árvore em uma floresta e o sol no verão. No teatro ela também aparece com máscaras de caveira e sua abundância se impõe como tema, inclusive na arte. Curioso como em O sétimo selo Bergman relaciona tragicamente morte e arte. Tal como a morte, a arte também é mal vista por todos, pois ela nem sempre agrada ao gosto comum. Assim, Bergman discute com o público como é difícil se defrontar com o discurso e a forma artística, esse eterno duelo entre público e artista, o primeiro esperando do segundo a distração, o entretenimento; já o segundo, e Bergman é um bom exemplo disso, com tendências a incomodar o primeiro. Mas em O sétimo selo a arte simboliza a esperança, não à toa é o artista que afirma ver a imagem viva e cheia de luz da Virgem Maria e faz uma descrição mítica dela. Há, por parte de Bergman, um reconhecimento de como a arte precisa mentir para alcançar a verdade, um universo de fantasia que mantém a humanidade viva. Bergman usa e abusa da iconografia medieval. A cultura e a moral católicas são exploradas largamente pelo diretor por meio da crise existencial do cavaleiro Antonius Block, interpretado por Max Von Sydow, justamente o personagem que questiona a fé no ser supremo, após ver tanta morte nos campos de batalha e também quando retorna a sua aldeia devastada pela peste negra. O filme se desenvolve em duas frentes, que na metade do filme se encontram. Uma com o cavaleiro e seu escudeiro fiel (uma espécie de versão sisuda de Dom Quixote e Sancho Pança) voltando das Cruzadas; outra com a trupe teatral. Ambas as frentes se intercalam em uma montagem paralela, todos os personagens tendo de lidar com a morte, conviver com ela, tentando estabelecer estratégias de sobrevivência e de fuga desse fim que se avizinha de forma tão iminente. Enquanto os artistas cantam e dançam para o público, a morte interrompe com seu espetáculo, sua procissão com as vítimas da peste. A banalidade da morte torna a vida cruel e os artistas são os que melhor lidam com essa áspera realidade. Enquanto estamos vivos tudo é possível, tudo está em aberto, mas a morte traz algo definitivo e imutável. Quando os artistas encontram os cavaleiros se estabelece um tom nostálgico, a guerra entra como um elemento de afastamento dos homens de suas vidas pacíficas e felizes. Há certo culto à trivialidade da vida, o leite e os morangos são os bálsamos de um mundo possível de confraternização e solidariedade. Durante uma fração de tempo a morte é esquecida e a vida floresce em um lampejo de harmonia entre o homem e a natureza, e também dos homens

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entre em si. No entanto, imediatamente a Morte reaparece para continuar com seu jogo mórbido de xadrez e lembrá-lo seu destino fatal. “Para que pintar a morte?”, pergunta o escudeiro a um artista plástico. “Para que todos saibam que morrerão”, diz o artista. Bergman coloca a morte sempre no caminho de seus personagens e lembra que a arte precisa encarar seu tempo, trazer à baila os temas que mais abalam o homem contemporâneo. O artista pinta a morte, mas também sublinha a culpa dos homens que se julgam amaldiçoados porque pecaram. A educação religiosa e rígida recebida na infância por Bergman aflora sempre em sua obra, ele precisa enfrentar esse elemento que o incomoda tanto, que lhe impingiu e introjetou a autocensura. Para o diretor, o ambiente religioso não alivia, apenas acentua a angústia e a presença da morte. O encontro com a morte é inevitável e isso torna tudo muito angustiante, essa certeza tortura a alma de todos os seres humanos. Mas Bergman, mesmo sabendo também ser um perdedor, mostra que o artista é o único que em geral ainda pode zombar desse personagem que todos querem de alguma forma fugir, e essa é a grandeza dessa obra. E por mais que a morte seja o fim dos indivíduos, a vida resiste a cada nova criança que vem ao mundo. No filme, Mikael simboliza esse porvir. Por isso, o cômico e o trágico caminham sempre lado a lado em O sétimo selo, Bergman põe os mortos, e a própria morte, literalmente, para dançar.

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MORANGOS SILVESTRES, 1957 | 93min | Direção e roteiro: Ingmar Bergman | Elenco: Bibi Andersson, Folke Sundquist, Gunnar Björnstrand, Ingrid Thulin, Victor Sjöström | Produção: Allan Ekelund | Fotografia: Gunnar Fischer | Montagem: Oscar Rosander | Trilha sonora: Eric Nordgren | Isak Borg (Victor Sjöström), um velho professor de medicina, reavalia sua vida enquanto viaja até a cidade da universidade em que se formou para receber um título de doutor honoris causa. Borg vai com sua estranha nora, Marianne (Ingrid Thulin) e revisita muitos marcos de seu passado, em especial as memórias de sua família e de Sara (Bibi Andersson), sua paixão de juventude. Morangos silvestres é considerado um dos melhores filmes de Bergman.

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MORANGOS SILVESTRES

“Nunca devemos regozijarnos com o nosso dia antes de havermos posto a touca de dormir.” Strindberg, [19--?]

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Morangos silvestres é mais um road movie fascinante, existencialista e com um sutil toque surrealista. Sem dúvida é um Bergman típico, clássico, no auge da forma artística e criativa. Segundo o próprio diretor, o filme dialoga com uma fase de sua vida em que ele necessitava enfrentar seus dilemas familiares, seus rancores e sua repugnância em relação à educação rigorosa que recebeu. O primeiro grande trunfo do filme é a presença de um dos diretores precursores do cinema sueco, Victor Sjöström, como o angustiado velho médico Isak Borg. Ele é convidado a receber um título honorário da Universidade de Lund, onde lecionou toda a sua vida profissional, e resolve ir de carro de Estocolmo até o seu destino. O caminho será repleto de lembranças antigas e personagens novos, à exceção de sua nora, que o acompanhará neste tour automobilístico, quando passará a limpo sua vida, em especial se depois de uma vida longa realmente fez jus a ela. Passado, presente, sonhos e lembranças são intercalados no enredo. Recordações e sonhos são parte fundamental do filme, e não é casual a escolha de Bergman de colocar logo no início um sonho mórbido, tipicamente surrealista, com relógios sem ponteiros e desenhos de olhos, um deles sangrando. Assim como em O sétimo selo, em Morangos silvestres a morte ronda o protagonista e o atormenta. Nesse mesmo soPassado, presente, nho um homem deformado se dissolve na frente sonhos e lembranças são do médico e um sino fúnebre toma a cena. Uma intercalados no enredo. carruagem traz um caixão que, ao cair no chão, Recordações e sonhos revela o rosto do nosso personagem, o qual segusão parte fundamental ra sua mão tentando puxá-lo para dentro. Sem dúdo filme, e não é casual vida é uma das cenas mais impactantes de sonho a escolha de Bergman e das mais bem pensadas e elaboradas da história de colocar logo no do cinema. Essa é apenas a segunda sequência do filme, a primeira é bem simples. Em off, o próprio início um sonho mórbido, tipicamente surrealista. médico faz uma curta apresentação de seu personagem e da história que virá a seguir, enquanto vemos seu esmero e cuidado com seu escritório. A primeira sequência é extremamente descritiva, já a segunda inteiramente simbólica, e bastante sintética acerca da concepção bergmaniana do cinema. Os temas existenciais e do fim da vida são centrais nesse filme, considerado pelos críticos um dos grandes da história do cinema. O que impressiona nessa obra é a estrutura ousada na construção dos personagens. Há uma relação em espiral entre eles e não à toa Bergman explora também a questão das diferentes gerações como se fossem camadas. O formato road movie facilita a execução dessa estrutura, já que ela torna mais fácil a entrada de personagens simbólicos na trama. A primeira camada é a familiar. Isak (nosso protagonista) tem 78 anos e é viúvo, sua mãe tem 96 anos, seu filho tem 48 anos. Existe um traço de

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frieza explícito nas relações, caracterizado não só pelas ações e falas do filme, mas também como expressão de uma cultura educacional puritana. Bergman aponta com firmeza a incomunicabilidade, resultado dessa educação pragmática, que produz profissionais competentes, mas seres humanos que não conseguem estabelecer relações afetuosas entre si. Uma das tensões do filme acontece quando seu filho assume não querer dar-lhe um neto, decretando o desejo de não dar continuidade desse modelo de família. Sua esposa, interpretada por Ingrid Thulin, personagem fundamental e que acompanha o professor em sua viagem de carro até Lund, é aberta ao amor e às relações, e luta para ter o direito à maternidade rejeitada pelo marido. A segunda camada se apresenta pelo casal de meia-idade que entra na história em um acidente de carro, no qual brigavam entre si. O destino deles é serem caronas no carro do professor. Eles simbolizam o casamento fracassado, no qual reina o caos e as brigas intermináveis. Segundo o professor Isak, a relação deles o fez lembrar a sua com a esposa. São personagens que vagueiam perifericamente na história, mas que muito significam e ajudam a ilustrar a espiral bergmaniana. A terceira camada é composta pelos três jovens caroneiros que embarcam logo no princípio da trama e vão até a última sequência. Eles representam o que está a construir, o porvir, os que podem quebrar a estrutura dominante de relacionamento e família. Dois dos jovens são homens e a outra uma mulher, encarnada aqui por uma das preferidas de Bergman, Bibi Andersson. O nome dela é Sara, o mesmo nome do grande amor da vida de Isak, e isso logicamente também não é casual, tanto que Bibi faz as duas Saras do filme. A Sara do presente vive o mesmo conflito da Sara do passado, estar inserida em um triângulo amoroso no qual terá de, em algum momento, decidir por um deles. Outra camada que estrutura o filme é a do tempo. O que importa é a relação do professor Isak Borg com o tempo, dependemos dele para descortiná-lo, para viajarmos para diversos momentos de sua vida. Dessa relação nasce o próprio título do filme, do pomar onde na infância Isak e sua família colhiam os tais morangos silvestres do título. O próprio Bergman, no livro de memórias Imagens, faz uma afirmação a respeito desse tema da memória e da infância quando trata de Morangos silvestres: A verdade pura e nua é que vivo continuamente na minha infância, deambulo por apartamentos em penumbra, passeio pelas silenciosas ruas de Uppsala, vejo-me diante da casa de veraneio e escuto o murmúrio da folhagem da bétula gigantesca que ali havia. Desloco-me a uma velocidade incrível, pois no fundo vivo permanentemente em meu sonho e faço visitas à realidade. (BERGMAN, 2001, p. 22)

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Indispensável para a análise do filme são os sonhos e as lembranças de Isak. Os sonhos demarcam a atmosfera simbólica do filme e as lembranças pontuam momentos marcantes de sua formação como indivíduo. Bergman trabalha a memória no filme de forma fantástica ao inserir o velho Isak como espectador do próprio passado, trabalha o passado como aquele momento impotente para o presente: você pode lembrar-se dele, mas jamais modificá-lo. E essa é uma das joias do filme. Já com os sonhos é diferente. O sonho mais expressivo acontece quando o velho Isak se vê novamente no teste de admissão na faculdade, só que tudo dá errado. Isak não consegue sequer ler uma lâmina de microscópio, faz um diagnóstico equivocado de morte e, de quebra, ainda revê no mesmo sonho a traição de sua esposa. O professor inquisidor do sonho ainda lhe diz que seu castigo está no futuro e será a solidão. De Morangos silvestres podem-se extrair muitas conclusões, pois Bergman não impõe uma visão fechada sobre a vida e as cenas parecem estar abertas para a intervenção do espectador. O importante é refletir acerca do viver, afinal essa é a questão do filme; o que podemos tirar de nossa passagem por esse mundo. Mas não há tantas respostas explícitas assim, há sim a certeza da busca da afetividade. Até o último instante, enquanto há vida, Isak pode experimentar e estabelecer vivências até então desconhecida para ele. A forma com que Bergman Bergman trabalha a constrói a sequência final deixa isso evidente. Os jovens se despedem dele com afetividade, música e belas palavras, memória no filme de forma fantástica ao e sua nora diz que sente afeto por ele, no que é imediatamente correspondida. Parece então que Bergman quer nos inserir o velho Isak fazer acreditar que Isak está apaziguado, pode fechar os como espectador do olhos e dormir em paz ou, se preferirem, morrer em paz. próprio passado.

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PERSONA, 1966 | 81min | Direção e roteiro: Ingmar Bergman | Elenco: Bibi Andersson, Gunnar Björnstrand, Jörgen Lindström, Liv Ullmann, Margareta Krook | Produção: Ingmar Bergman, Lars-Owe Carlberg | Fotografia: Sven Nykvist | Trilha sonora: Lars Johan Werle | Elisabet Vogler (Liv Ullmann) é uma atriz que ficou muda de repente, e seu tratamento acontece em uma pequena vila à beira-mar, sob os cuidados da enfermeira Alma (Bibi Andersson). As duas passam tempo juntas, com Alma sempre falando sem ter respostas e confiando cada vez mais em Elisabet, contando-lhe seus segredos mais íntimos. Mas, lendo uma carta escrita pela atriz, Alma descobre que é vista como um objeto de estudo. A relação entre as duas mulheres se torna tensa, mas ajudará a ambas a lidarem com suas identidades e seus problemas psicológicos.

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“É indispensável estudar a natureza dos outros antes de darmos livre curso à NOSSA.” Strindberg, [19--?]

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Persona é o filme de Bergman mais reverenciado entre a crítica cinematográfica. Ousado pela estética e pela linguagem, mas também pelas ideias que transbordam dele. E essa exaltação é justa, aliás, muito justa. A qualidade de Persona salta aos olhos de qualquer pessoa apaixonada por cinema e chama atenção acerca dos limites existenciais e de reflexão que essa arte pode proporcionar à humanidade. Apesar de não ser um filme fácil, é a obra em que Bergman leva ao máximo a abordagem psicológica em seus personagens, por isso é sua obra fundamental e uma das mais seminais. O filme marca ainda o primeiro encontro artístico de Bergman com Liv Ullmann, um casamento tão exitoso que extrapolou as telas para a realidade. Antes do filme, Bergman não tinha conhecimento sobre as qualidades artísticas de Liv, e reconhece que atirou no escuro, era um risco pensando na complexidade da personagem Elisabet Vogler. Confiou em sua intuição e obteve sucesso. Ullmann se tornou importantíssima para Bergman, agregou muito às suas personagens femininas. Suas expressões em Persona são marcantes, tamanha a sua densidade. A interação dela com Bibi Andersson é impressionante e fundamental, porque se não encaixasse uma química entre as duas o projeto ficaria inviabilizado. Inicialmente, gostaríamos de abordar Persona em seu aspecto superficial, o mais notório. Elisabet Vogler se fecha para o mundo, não aceita a violência que emana dele e como resposta se cala. Alma é a enfermeira destacada pelo hospital para cuidar dela. Vogler é uma atriz reconhecida que no meio de um espetáculo se decide pelo silêncio. A chefe do hospital oferece sua casa de verão para as duas passarem uma temporada, já que não há nenhuma questão médica para justificar a permanência de Vogler como paciente. Persona é um drama profundamente intimista, mas o mundo não está ali totalmente ausente, muito pelo contrário. Bergman nos mostra Vogler assistindo a um corpo se queimando vivo, ao vivo na tevê, em movimento de claro protesto contra a violência. A reação de Vogler a esse ato é de completa perplexidade. São dois movimentos então: um o de ser agredido por essa violência descabida e descarada do mundo em que todos vivemos e outro, a de reagir a tudo isso por meio de um mutismo para além de simbólico, pois ele é físico, efetivo, uma atitude extrema contra o mundo, onde a palavra não anda acrescentando nada, tampouco unindo as pessoas. No filme temos então aparentemente duas protagonistas e a questão da representação é exposta como tema para reflexão. Sobre isso, o crítico Armando (1988, p. 336) escreveu: [...] a personagem central — personagem catalisadora, mas não propriamente personagem principal — é uma atriz, não é evidentemente por acaso. O título do filme (Persona, palavra grega: máscara) o confirma bem. Bergman estabelece a oposição rosto-máscara, realidade-aparência, própria da

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condição humana, mas particularmente evidente no caso de quem representa. E, a partir dessa oposição termo a termo, o filme desenvolve-se: eu-outro, real-imaginário, silêncio-palavra, vida-morte, criança-adulto, interior-exterior, mar-terra, chuvasol, dia-noite; e ao nível estético mesmo da direção observa-se essa preocupação: luz-sombra, claro-escuro, preto-branco (é impossível imaginar Persona como um filme em cores). Persona é um dos filmes mais misteriosos de Bergman e ele se apoia nessas oposições para reforçar algumas imprecisões. Em certo momento do filme Alma pergunta se Vogler havia falado com ela na noite anterior e se ela havia visitado seu quarto. Como espectadores, ficamos sem saber se Alma está confundindo sonho e realidade ou se ela vive problemas psíquicos. Ou, ainda, serão devaneios ou Alma e Vogler são uma única pessoa com problema de dupla personalidade? Bergman deixa tudo isso aberto, o que é altamente estimulante, pois aos poucos a identidade das duas vai se imiscuindo de tal forma que as separações físicas tornam-se desnecessárias. Corpo, roupa, atitudes vão dissolvendo a esfera corpórea. O falar excessivo de uma e o silêncio absoluto da outra se completam, parece que a fala de Alma diz mais sobre Vogler que seu silêncio, ou seria então a expressão de outra personalidade que emerge durante sua crise psíquica? O filme explora as máscaras (persona) que utilizamos no cotidiano para sobrevivermos emocionalmente, mas que não nos faz indivíduos felizes. Bergman trabalha muito bem os movimentos de câmera, em especial os movimentos de aproximação nos rostos, para sinalizar os momentos de tensão emocional, para flagrar o instante em que algo será cingido, pela fala ou em pensamento. Bergman talvez seja o diretor de cinema que mais aplicou as teorias freudianas, os níveis de consciência, subconsciente e inconsciente. Em Persona talvez seja o momento de sua carreira em que essas questões são trabalhadas de maneira mais coerente e orgânica. Há uma sequência que merece uma análise especial pela forma como Bergman a constrói, entre outros fatores. E a tomaremos aqui em sua face aparente, literal. A sequência inicia quando Alma e Vogler estão bebendo vinho e a conversa está fluindo com muita intimidade. A câmera enquadra as duas em um plano médio, e quanto mais a conversa (sim, conversa, pois enquanto Alma fala, Vogler a massageia nas costas e nos ombros, e elas trocam olhares amáveis) vai se estreitando, também cresce a intimidade entre elas, e o vinho pode servir como um facilitador dessa aproximação. A câmera de Sven Nkyvist se aproxima enquanto Alma diz que teve vários irmãos e sempre sonhou ter uma irmã. Alma engata então uma fala acerca do amor pelo seu marido e termina falando que foi fiel a

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ele. Nesse momento há um corte brusco, e as personagens estão posicionadas de outra forma. Fica a impressão de que agora não é mais seu consciente que está se expondo, mas sim seu inconsciente. Será um transe? Ou apenas o inconsciente cometendo uma traição? A câmera inicia novamente em um plano geral. Alma agora no sofá, em um tom confessional, razoavelmente distante de Vogler, que está deitada na cama. Ela narra um dia em que o marido foi trabalhar fora da ilha em que moravam, enquanto ela, sozinha, foi à praia. Como o local estava vazio, ela trava contato com uma garota, que estava também desacompanhada, e como as duas aparentemente eram as únicas na praia elas resolvem tomar banho de sol nuas. De repente elas reparam que dois garotos as observavam de longe. Nesse momento a câmera enquadra Alma em plano médio no sofá e alterna com o plano também médio de Vogler. Alma descreve a aproximação de um dos meninos, e a câmera agora, já está em um plano próximo dela, em profunda intimidade. Ela conta que a outra garota convida o menino a se aproximar e eles começam a fazer sexo. Alma então diz que também o convida e eles fazem o mesmo. A câmera ainda continua sem cortes no plano próximo. Ao contar sobre o orgasmo, a câmera volta-se para Vogler, no mesmo enquadramento de antes. Vogler a observa com um olhar de total interesse e curiosidade. A câmera volta para Alma, que levanta do sofá e vai fumar na janela enquanto a câmera se distancia, o plano agora é o geral novamente. Ela Fica a impressão de começa então a narrar a entrada do segundo menino no que agora não é mais ato. O menino começa com a outra garota e a câmera volseu consciente que ta-se para o plano próximo de Vogler novamente, e Alma está se expondo, mas diz que o sexo é de novo com o mesmo garoto de antes. sim seu inconsciente. Com a câmera em plano geral em Alma, ela diz que eles nadaram juntos depois do ato, mas a seguir todos foram embora, se separando para sempre. Na janela, de costas para a câmera em plano próximo, Alma discorre sobre sua volta para casa e o reencontro com o marido, quando eles jantam e bebem vinho. Alma se vira e anda em direção à câmera e já em close diz que ela e o marido, nessa noite, fizeram sexo, e foi o melhor que fizeram no casamento. Há um corte na cena, e elas aparecem deitadas na cama. Alma está de perfil no primeiro plano, enquanto Vogler está em segundo plano, de frente para a câmera. Alma declara, chorando, que engravidou, mas optou por fazer um aborto. Ainda no mesmo enquadramento, Alma se pergunta por que em determinadas situações agimos como se fôssemos duas pessoas diferentes no mesmo corpo. Vogler a abraça ternamente. Na última cena da sequência, já no fim de noite e chovendo, ambas tomam café e Alma diz para Vogler, em plano próximo, que poderia ser como ela, caso ela se esforçasse, e que Vogler poderia ser ela. Alma parece que cochila e sonha com Vogler falando com ela. Essa sequência é longa, mas sintetiza cinemato-

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graficamente muito bem o filme e as concepções artísticas de Bergman. Tal mudança brusca, mencionada anteriormente, marca uma transformação no estado psíquico da personagem Alma e expressa o despencar de sua máscara. É por meio da montagem que Bergman revela a fissura de Alma. Os planos escolhidos nas cenas demarcam o grau de profundidade e de envolvimento que ele quer atingir no processo narrativo. Uma cena marcante nessa sequência é a imagem se fixar tão somente nas personagens. Em nenhum momento assistimos a qualquer imagem do que está sendo narrado por Alma. Tal como em um livro temos que imaginar os personagens, e a intensidade dessa história é tal que somos desejosos de assim fazê-lo. Bergman nos transforma então em criadores dessas imagens. É quebrada a lógica de que o cinema é a arte na qual um diretor constrói uma história por meio de imagem e som. Mas mesmo assim tudo ali continua sendo cinema, e o que Bergman faz é ampliar suas possibilidades narrativas e temporais. A opção por narrar oralmente a história amplia nossa visão da história, que transcorre internamente na narrativa de Alma e exteriormente nas ações e reações dela e de como em um livro

Tal temos que imaginar os personagens, e a intensidade dessa história é tal que somos desejosos de assim fazê-lo. Bergman nos transforma então em criadores dessas imagens. É quebrada a lógica de que o cinema é a arte na qual um diretor constrói uma história por meio de imagem e som.

Vogler. Conseguimos então acompanhar passado e presente, confluindo duas temporalidades em uma única sequência, e o mais fascinante é que Bergman consegue manter intacta a complexidade dessas duas dimensões temporais. A camada erótica dessa sequência é extrema e ela nos faz refletir sobre a própria natureza do erotismo, lembrando que tudo ali é tão somente verbalizado, mas que isso, antes de retirar o impacto sexual da sequência, apenas o intensifica e a transforma em uma das cenas mais fortes do cinema. Mas Bergman propõe para Persona um prólogo, que volta a ser referenciado no meio da película e também retorna parcialmente no final. O prólogo dura seis minutos e quarenta segundos. Ele ainda não é a história, mas dialoga pungentemente com ela. Nele, Bergman mostra diversas imagens aparentemente soltas, como se fosse uma espécie de quebra-cabeça. Vemos imagens internas de um projetor e sua frenética engrenagem mecânica, assim como seu conturbado som e a película exposta à luz do refletor. Bergman nos revela o cinema por dentro, em um ângulo pouco mostrado e conhecido. Pode-se dizer que há também uma dose de erotismo nessas imagens. Mas outras imagens aparecem: a de uma aranha, de um animal sendo sacrificado, de um dedo que insinua furar o olho do animal (seria uma referência ao olho de Buñuel em Um cão andaluz?), um pênis ereto, uma carne estri-

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pada, vísceras expostas, um prego entrando na carne de uma mão e imagens de externas: uma floresta com neve, uma grade... As imagens se voltam para o interior, quando vemos um rosto idoso morto, uma criança morta, alguns corpos mortos. De repente os olhos de alguns deles se abrem, inclusive os do menino, que levanta, abre um livro e, mal começa a lê-lo, olha para a câmera e toca na lente. O ângulo então é invertido e o menino continua a tocar, só que agora ele já toca a própria tela de projeção e a imagem é de uma mulher (é o rosto de Vogler, ou estaria ele sendo intercalado com o de Alma, não dá para saber, os rostos estão quase sempre desfocados, o foco está nas costas do menino). Não importa mesmo, afinal, Alma e Vogler são a mesma pessoa. Entram então os créditos. Mas nos créditos alguns frames são colocados, quase que imperceptíveis, entre os nomes do elenco e da equipe do filme. Mas no meio do filme Bergman também interfere na narrativa, a interrompe violentamente para inserir uma imagem de Alma se decompondo cinematograficamente, como se a película estivesse se incendiando, e esse é um momento crucial em que ela, que representa a segunda personalidade de Vogler, entra em um processo profundo de crise e começa a esboçar atitudes violentas em relação ao mutismo de Vogler. Primeiro Alma quebra um copo, mas deixa no chão um caco para Vogler pisar. Depois, sozinha na sala, ela retira o véu, e é nessa hora que a imagem de Alma se decompõe. A partir de então Bergman nos propõe uma fratura dessa personalidade Alma-Vogler e uma visível e deliberada interrupção no espetáculo “cinema” para introduzir sons de bastidores, imagens de mãos crucificadas e do cinema silencioso. Para Bergman, o cinema pode tudo, pode até representar uma pessoa dividida em dois personagens, e isso, é a própria magia do cinema. Quando Bergman volta ao filme, vemos Vogler desfocada à procura de Alma. Começam então várias agressões físicas entre as duas, até que chegamos a um longo monólogo sobre maternidade, que Bergman repete duas vezes, uma com a câmera em Alma e outra com a câmera em Vogler. Ao final, os rostos das duas se fundem, meio a meio, e vem a revelação que Alma e Vogler são uma só pessoa. Nessa altura, a câmera de Bergman é invasiva e nos mostra expressivos closes, cada vez mais próximos. A crise psíquica de Vogler chega ao seu ápice e suas ambas personalidades, tal como a imagem, também se decompõem. Feita a exposição em si das imagens, podemos pensar então um pouco mais sobre elas. De imediato, essas imagens, montadas dessa forma nos faz pensar em Eisenstein e na sua teoria de montagem. Elas teriam de forjar sentido a partir de seu conjunto, ou mais, em um diálogo entre elas. Inclui-se aqui a própria obra de Bergman, seu conjunto de filmes, ou melhor, os temas que tanto o angustiavam. Primeiro a preocupação de Bergman em interromper o espetáculo, nos mostrar que acima de tudo assistimos a um filme, que não é a vida em si, mas sim uma representação dela, e que esse é o caráter falso e fascinante dessa arte. Apesar dessa

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natureza intrínseca, o cinema é capaz de expressar suas preocupações com o mundo, por isso a necessidade de expor as vísceras, a morte, o repugnante, o erotismo, a natureza em sua plenitude (inclusive a natureza humana), a loucura, a cultura, a arte, a religião, o sofrimento e a culpa. Todo esse conjunto faz de Persona um filme síntese do universo bergmaniano, uma obra extrema, tanto no seu método quanto nos temas que propõe discutir. Tem ainda os frames dos créditos iniciais, que lembram o quanto da imagem não conseguimos capturar racionalmente, mas sim apenas emocionalmente, pois vemos a imagem de forma perceptiva, em especial porque ela surge em um frame, mas junto com outros 23 frames por segundo. Cinema para Bergman é isto, vertigem, expressa a própria fratura do homem moderno. Persona é o filme em que ele traduziu melhor essa sua ideia. Não por acaso, a primeira imagem de Persona é a do filme nascendo para o mundo, isto é, o instante em que o projetor é ligado para que a película possa entrar em contato com a luz e ser projetada na tela. Dessa forma, Bergman erotiza seminalmente o cinema, erotismo também presente em todo o filme. No final, ele volta para a imagem do projetor com os últimos metros de rolo de filme na bobina e o apagar do aparelho. Assim como na vida, o filme nasce e a morre, e foi Bergman, com seu ateísmo, quem melhor nos mostrou o inevitável ciclo do cinema e da vida. Em Persona ele discute psicologia, narrativa, cinema, linguagem e teatro. É um filme metalinguístico na essência, o que também não deixa de ser mais um indício de que esta é uma obra de arte extremamente bergmaniana.

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A HORA DO LOBO, 1968 | 89min | Direção e roteiro: Ingmar Bergman | Elenco: Max Von Sydow, Erland Josephson, Liv Ullmann, Ingrid Thulin | Produção: Lars-Owe Carlberg | Fotografia: Sven Nykvist | Trilha sonora: Lars Johan Werle | O pintor Johan e sua esposa grávida, Alma, se retiram para uma ilha isolada. Johan é consumido por demônios do passado e por constantes alucinações. Alma tenta ajudá-lo a manter a sanidade e controlar sua obra. Mas durante a escuridão entre a noite e o amanhecer, a chamada “hora do lobo”, os medos de Johan podem se concretizar... Tudo funciona à perfeição: a direção magistral de Bergman, a fotografia expressionista de Sven Nykvist e as atuações viscerais de Max Von Sydow e Liv Ullmann.

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“No fundo, é isso, a solidão: envolvermo-nos no casulo da nossa alma, fazermo-nos crisálida e aguardarmos a metamorfose, porque ela acaba sempre por chegar.” Strindberg, [19--?]

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A hora do lobo é um dos filmes mais enigmáticos da carreira de Bergman, uma tentativa de superação artística, estética e estilística do diretor dentro de sua filmografia, mas é igualmente uma experiência desafiadora para o espectador, por ser um filme em que sonho, delírio e desejo se fundem e se confundem drasticamente em uma viagem sensorial poucas vezes vista no cinema. Trata-se de um Bergman vigoroso, ousado, poderosamente imagético, esteticamente desafiador, descontínuo, em plena forma artística e de encher os olhos. O filme começa com uma tela preta e uns sons de um set de filmagem, barulhos de martelos, de madeira sendo cortada e vozes de trabalhadores. Esse início já nos deixa bem intrigados. Será que já é o som do filme e assim o filme se passa em um set de filmagem ou é só uma brincadeira de Bergman nos mostrando sons que denunciam que veremos um filme? É curioso Bergman fazer isso logo nessa obra, a mais enigmaticamente cinema, a que mergulha descaradamente na linguagem dos sonhos e na loucura do inconsciente. Filme que revela o inconsciente do seu personagem, mas também do próprio diretor Ingmar Bergman. O resultado é que A hora do lobo se desenha como sua obra mais formalmente inacabada (o que não é em si um problema), que exige do espectador uma participação em sua montagem e compreensão. Mas o registro de que estamos vendo um filme continua na primeira imagem em que a personagem Trata-se de um Bergman Alma, interpretada por Liv Ullmann, olhando para a vigoroso, ousado, câmera diz ao diretor que nada mais tinha a dizer e poderosamente imagético, que já lhe havia entregue o diário de seu marido, o esteticamente desafiador, artista plástico Johan Berg, que então desaparedescontínuo, em plena ceu misteriosamente. O tom de Alma é o confessioforma artística e de nal, quase o de uma recusa. A instabilidade dela encher os olhos. está expressa na sua voz, marcada por profundas tristeza e decepção, mas também está no movimento de suas mãos, no mexer impaciente com a aliança de casada enquanto fala, como se não soubesse se a tira dos dedos ou se ainda nutre esperanças da volta de seu marido. Mas A hora do lobo termina também com o depoimento de Alma, que fecha o ciclo proposto por Bergman. Esse fato nos incita questionamentos, pois nos créditos iniciais somos informados que o diário é o ponto de partida para a história, mas com Alma fazendo às vezes de narradora do filme (início e fechamento), deixa no ar uma dúvida sobre qual a perspectiva que realmente assistimos em todo o filme. Talvez o mais sensato seria optar por um hibridismo, pois há fatos que a própria Alma conheceu por causa do diário do marido. Um dos pontos altos do filme é a sua construção imagética. A fotografia expressionista de Sven Nykvist privilegia o uso das sombras e dos contrastes, o que é compreensível pela predominância do tom soturno da história. Há também as pitadas surrealistas, como o da velha que retira o olho

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e o coloca em um copo em plena mesa de um jantar formal com vários convidados. Pode-se ainda descrever um clima felliniano nesse mesmo jantar, em especial o movimento vertiginoso de câmera visivelmente inspirado em 8 e 1/2. A construção dos personagens chamados de “canibais” (inclusive esse foi o primeiro nome que Bergman pensou para o filme) também são muito fellinianos, filmados em closes, todos com semblantes, gestos e falas artificiais, forçadas, como se fossem decoradas. Mas esses personagens nada mais são que os fantasmas de Johann Berg, que em uma tentativa de ir para uma ilha deserta para fugir desses sanguessugas, a contragosto, depara com todos lá. Bergman nos mostra que a questão dos nossos fantasmas é muito mais profunda, pois movimenta nosso inconsciente, que nos faz carregá-los conosco, não importando muito aonde vamos. Não se trata aqui de fugir geograficamente dos nossos fantasmas quando eles ainda habitam nosso inconsciente. Esse é o caso de Berg, que foge para uma ilha com a esposa, mas leva junto seus fantasmas, seus canibais que tanto queria defenestrar. Como em outros filmes de Bergman, A hora do lobo explora muito bem a questão dos fantasmas, um elemento central no enredo do filme, e eles nos são mostrados de forma viva, tal como se afronta no inconsciente de Berg. Apesar de os fantasmas serem frequentes em Bergman, eles são trabalhados de formas diferentes nas suas obras, mas o mecanismo de colocá-los no mesmo patamar da realidade é crucial na obra bergmaniana. Tanto que não há diferenciação na imagem do ser humano e do fantasma, já que os fantasmas são profundamente verdadeiros para os personagens, eles são o elo entre o passado e o presente dos personagens. Nota-se que há um amadurecimento na obra de Bergman no uso desses fantasmas como personagens. Por exemplo, em Morangos silvestres eles são anunciados, não só com imagens, mas também com sons, já em A hora do lobo e Face a face, eles estão situados temporalmente no mesmo plano da realidade, como temporalidades que coabitam no âmbito do sujeito, que unifica essas realidades e cria as hierarquizações. Claro que a entrega de Max Von Sydow e Liv Ullmann também foi fundamental para a construção do ambiente fantasmagórico do filme. Impressiona a forma como eles mergulham nas dores de seus personagens. Os fantasmas são, a princípio, todos de Berg, mas aos poucos vão sendo também de Alma. Alma faz um discurso na hora do lobo de como cada vez mais eles ficam parecidos, fato que naturalmente acontece entre casais. Na manhã seguinte ela vê misteriosamente o fantasma de uma senhora, que lhe pede para olhar o diário que Berg esconde no baú, e ainda reclama dos desenhos que ele fazia dos “canibais”. A partir desse momento os fantasmas não param de assombrá-lo, o que faz parecer que ambos entram nessa viagem alucinatória. Mas indubitavelmente os fantasmas vêm de Berg, e ele os vê claramente. Em geral, eles se personificam em poderosos, com seus vinhos caros, suas refeições abastadas, amantes belas e

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interesseiras, que transitam e povoam comumente o universo das artes. Mas A hora do lobo nos vislumbra como uma poderosa metáfora do artista e de sua relação na sociedade, em especial a do consumo: curadores, burocratas, merchands e outros patrocinadores que visam lucrar com o trabalho e a criação artística alheia. Para Bergman, esses são os fantasmas que atormentam os artistas. E é na chamada hora do lobo — a hora da madrugada, quando mais nascem pessoas, mas que também mais se morre — que o tormento do artista aflora, os pesadelos são mais tenebrosos e os fantasmas do inconsciente vêm à tona. E o filme trabalha nesse meandro dos pesadelos, dos tormentos, das angústias dos personagens. Mais do que qualquer outro filme de Bergman, A hora do lobo nos faz imergir em uma atmosfera alucinatória, em que sonho e realidade efetivamente se misturam, o que faz dele um filme de horror, pois não suportamos viver nas sombras, sobretudo nas sombras de nós mesmos. Tem um momento no filme em que o diabo ataca Berg nos rochedos perto do mar. Berg luta com esse diabo, personificado em um menino, uma criança aparentemente inofensiva. Esse ataque se dá logo após um relato que ele faz na Mais do que qualquer hora do lobo sobre um castigo recebido na infância em que ficava preso dentro de um armário. O ataque outro filme de Bergman, deve ser relacionado com esse castigo, com a ne- A hora do lobo nos faz cessidade de matar essa infância marcada por castiimergir em uma gos corporais e encarceramentos. A sequência do atmosfera alucinatória, diabo, então, é simbólica, baseada em um recalque em que sonho e realidada sua educação quando criança. E a morte é brutal: de efetivamente se Berg joga violentamente a criança contra o rochedo misturam, o que faz dele e depois a arremessa ao mar. Os tormentos são mais um filme de horror, pois profundos do que pensamos e Bergman primava por não suportamos viver trabalhar essas perspectivas. Mas a derrota de Berg nas sombras, sobretudo é eminente. Há uma cena em que uma arma de fogo nas sombras de surge e essa hora é decisiva para o casal. Segundo nós mesmos. Bergman (2001, p. 35), nesse momento Johan Berg “opta pelos sonhos dos demônios, em vez da realidade que Alma representa”. Mas Bergman parece jogar também com os nossos demônios. Não é tão incomum assim o assombro de amores passados na vida das pessoas, assim como a dificuldade de se relacionar socialmente com pessoas interesseiras. Mas o ápice da crise emocional de Johan Berg só poderia aflorar no castelo dos demônios, localizado em seu inconsciente. Na verdade, Berg visita duas vezes o castelo dos “canibais” ou dos demônios: a primeira é primordialmente sufocante e ele fica deslocado, visivelmente incomodado, mas está em companhia de Alma; já na segunda visita, seu comportamento revela-se mais caótico, pois sua antiga amante,

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Veronika Vogler, está presente e isso o deixa mais agitado e perturbado. O castelo dessa vez mostra-se labiríntico e mais tenebroso, com corvos, pombos, vampiros e ambientação acentuadamente expressionista, repleta de sombras, seres humanos assustadores e um pé-direito alto que apequena nosso Berg. O clima onírico se faz presente o tempo todo e a câmera se movimenta muito, mas sempre mantendo a proximidade dos rostos, em especial as fisionomias do atormentado Berg. Os fantasmas se divertem e tiram sarro de seu semblante assombrado. Tudo parece muito irreal e deformado, um verdadeiro castelo de horrores. Quando Berg, enfim, vê Veronika Vogler, ela está coberta como estivesse em um necrotério. Ele alisa saudosista seu corpo morto, mas de repente ela começa a rir, assim como todos os outros fantasmas, e o rosto de Berg se mostra transfigurado e deformado. Ou assim estaria seu estado mental? O fundo do poço foi atingido. Só resta a Berg autodeclarar sua sentença final: “O limite foi enfim transgredido. O espelho foi estilhaçado. Mas o que os estilhaços refletem? Você pode me dizer?”. Berg o diz olhando para a câmera, isto é, para nós, espectadores. Mas devemos atentar para a próxima cena, a do menino-diabo afogado no mar. Essa imagem, repetida nesse momento, merece uma reflexão, pois deixa seu futuro suspenso e incerto. Seria uma vitória simbólica de Berg sobre seu passado, a superação de um recalque? Parece que Bergman quer nos dizer que somente levando nossos recalques ao extremo podemos superá-los. Talvez a própria ilha possa ser vista como um elemento concreto desse aprisionamento. Sair desse ambiente seria então voltar para o mundo com novas ressignificações. Bergman mais uma vez nos lança em um abismo e nos desafia a decifrá-lo, e a tentar sair dele. As angústias dos personagens tornam-se também nossas. Parece que, para Bergman, o perigo de viver é iminente e sempre irremediável.

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VERGONHA, 1968 | 103min | Direção e roteiro: Ingmar Bergman | Elenco: Max Von Sydow, Liv Ullmann, Gunnar Björnstrand | Produção: Lars-Owe Carlberg | Fotografia: Sven Nykvist | Trilha sonora: Lars Johan Werle | Em meio a uma guerra civil na região báltica, um casal de violinistas que se diz apolítico vive isolado em uma ilha, onde se sustenta com o cultivo e a venda de produtos da terra. Essa vida alienada acaba quando um grupo de soldados invade a ilha. A partir desse momento, eles não poderão mais ficar alheios a tudo que acontece e terão de lidar com as misérias, a destruição e os horrores da guerra.

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VERGONHA

“Sim, eu sou um homem e choro. Um homem não tem olhos? Não tem também mãos, sentidos, inclinações, paixões? Por que é que um homem não devia chorar?” Strindberg, [19--?]

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Vergonha é o filme de violência explícita de Bergman. É um filme direto, claro em suas propostas. Isso, em se tratando de Bergman, pode ser um dado inusitado, pois a mensagem explícita nunca foi o território onde sua arte aflorou; já a interiorização dos personagens, esta sim, sempre foi o locus do universo bergmaniano. Conforme bem analisou o crítico Marc Gervais, Vergonha se enquadra na obra de Bergman “no que podemos chamar de estudos cruéis e implacáveis sobre a desintegração da personalidade”. Essa fala está no making of do DVD do filme. A desintegração de personalidade perpassa diversas obras de Bergman. Persona, A hora do lobo, A paixão de Ana e Face a face são exemplos. Bergman via Vergonha como um filme irregular, com uma primeira parte inferior à segunda. A primeira trata da guerra, e a segunda das suas consequências. Ele dizia preferir a segunda. Isso acontece porque a primeira é mais descritiva e factual. A segunda é onde Bergman consegue ser analítico e nos mostrar o que a guerra pode fazer com os indivíduos, inclusive os aparentemente pacíficos. Bergman diz em seus livros de memórias que devia ter desenvolvido mais a segunda parte, detalhado mesmo, e transformado a parte inicial da guerra em 10 minutos. Na hierarquia bergmaniana, o que importava então era o efeito da guerra nos seres humanos e não a descrição, que ocupa uma boa parte do filme. Uma ideia que permeia Vergonha é vergonha se enquadra o sentimento, a ilusão ou a crença — tanto faz no caso na obra de Bergman — de que o isolamento, mesmo que seja em uma ilha, “no que podemos seria um caminho viável para se fugir da violência ou de chamar de estudos um estado de guerra. Essa era a ideia do casal de violicruéis e implacáveis nistas, Eva e Jan, interpretados por Liv Ullmann e Max Von Sydow, que após o fim da orquestra filarmônica vão sobre a desintegração da personalidade”. viver em uma ilha aparentemente afastada do caos do mundo. Essa questão de não se envolver em conflitos é uma velha metáfora sueca, que optou pela neutralidade durante a Segunda Guerra Mundial. Mas as guerras não acabam, depois de uma vem muitas outras, como a da Coreia e a do Vietnã. O que Bergman nos mostra é que não existe essa tão sonhada neutralidade. Outra questão fundamental é que a cada nova guerra populações em vários países também são envolvidas e dizimadas no conflito. Não há possibilidade de os civis ficarem imunes à violência, ao contrário, eles se tornam alvos fáceis nesse contexto. O jovem casal tinha planos e sonhos de constituir uma família e ter uma vida tranquila, que subitamente lhes escapa. O terror se instala, os soldados entram à revelia em seus cotidianos e impõem a atrocidade da guerra. Como já mencionado, Vergonha é um filme em que Bergman mais se afasta da interiorização dos seus personagens. No início até imaginamos que será mais um filme típico de Bergman, em que as crises desabrocham nos personagens e vemos e sentimos suas angústias.

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Mas não, o caminho dessa vez é o da exterioridade dos personagens, eles agem e o fazem compulsiva e reativamente. O casal não tem opção, só lhe resta agir. Isso cria um desenho diferente do habitual. O filme se reduz à ação desse casal, não há elucubrações tão comuns na obra do diretor. Há uma urgência de se colocar frente ao horror da guerra. O século 20 foi um período histórico em que violentos conflitos aconteceram; milhões morreram em situação de guerra. A primeira e a segunda guerra já bastariam como grandes catástrofes mundiais, com o desenvolvimento de armas modernas voltadas para o extermínio em massa. São metralhadoras giratórias, tanques de guerra, granadas, aviões, helicópteros, venenos, bombas e, mais precisamente, uma bomba assustadora, a bomba atômica. Jamais na história a violência foi tão facilitada, tão ao alcance das mãos dos donos do poder. E há também uma nova característica, a da impessoalidade. Não era mais preciso matar no corpo a corpo, podia-se matar a distância. Isso trazia elementos absurdamente novos, que sofisticaram o ato de matar. Agora a guerra não escolhe endereço, não está restrita às trincheiras e aos campos de batalha: está Agora a guerra não presente em qualquer lugar. Não há como evitar escolhe endereço, não está restrita às trincheiras a violência da guerra e isso traz uma brutalização inimaginável ao processo. O filme de Bergman e aos campos de batalha: funciona como se fosse um documentário dessa está presente em qualquer crueldade. Trata-se de um dos mais descritivos lugar. Não há como evitar filmes do diretor e a proposta de câmera ajuda a violência da guerra e bem na tradução dessa postura. A câmera se moisso traz uma brutalização vimenta mais do que o de costume em um filme inimaginável ao processo. de Bergman, mas sua função é a de documentar o filme de Bergman a desorientação do casal. A câmera os persegue, funciona como se fosse ela os aprisiona nesse conflito indesejável com um documentário dessa o mundo exterior. E o preto e branco desse filme lhe cai muito bem, traduz sua crueza. O colorido crueldade. tiraria muito de seu impacto, daria uma nuance de cor que atrapalharia seu resultado: o da inevitável e irredutível destruição. Quando a destruição realmente chega e suas casas não existem mais, Eva e Jan partem sem saber para qual direção ir, estão abandonados no mundo. Nesse momento, Jan sai de sua posição pacífica e parte para agressão, chegando até a cometer assassinatos. Como um animal acuado, Jan se transforma e embrutece. Eva, que era a princípio mais determinada, se encolhe e não suporta a violência de Jan. Mas a sequência final é uma das mais bem pensadas do filme. Depois de perderem tudo, inclusive a casa, Jan e Eva descobrem uma fuga pelo mar e se juntam a um grupo de

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refugiados. Se em terra o que predominava era o caos da destruição e desolação, em alto-mar não encontram nada novo, somente mais do mesmo; o racionamento da pouca comida e corpos mortos boiando. Parece que estão cercados. Não importa para onde vão, todos os caminhos os levam para o mesmo lugar: o da destruição da guerra. Náufragos, sem perspectiva de sobrevivência e futuro, resta-lhes apenas sonhar com outra realidade bem distante e diferente desse mundo decadente.

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FACE A FACE, 1976 | 114min | Direção e roteiro: Ingmar Bergman | Produção: Lars-Owe Carlberg | Fotografia: Sven Nykvist | Doutora Jenny Isaksson (Liv Ullmann) é uma psiquiatra casada. Ela e o marido são bem-sucedidos em seus empregos, mas, lenta e dolorosamente, ela passa a ser assombrada por imagens e emoções de seu passado, que a leva a uma depressão profunda.

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FACE A FACE

“A verdade é sempre desaforada.”

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Na filmografia bergmaniana Face a face está entre os filmes de maior densidade emocional, tal como Gritos e sussurros e Sonata de outono. Mas o que diferencia Face a face desses outros dois é a personagem Dra. Jenny Isaksson, interpretado por Liv Ullmann. Jenny é uma psiquiatra razoavelmente bem-sucedida, mas que vive também sérios problemas psiquiátricos, vítima de uma depressão profunda. Mais uma vez Bergman constrói uma personagem perturbada pelo passado e assombrada por fantasmas que teimam em rondar seus pensamentos e seu inconsciente. Liv Ullmann consegue tornar verossímil essa personagem, transferindo vigorosamente essa energia para o espectador, tal o sufocamento vivido por Jenny. É sabido o quanto Bergman filma rostos humanos como poucos, em especial os femininos, e extrai deles expressões significativas, olhares profundos que muito nos comunicam. Mas a potência interpretativa atingida no close que a câmera de Bergman dá na personagem Jenny só é possível devido ao empenho e trabalho que Liv Ullmann faz na sua construção e muito pelo seu entendimento acerca de quem é Jenny, quais as suas contradições como ser humano. Nota-se que a leitura de Ullmann da personagem é integral, e que mesmo que a câmera esteja fechada em um close, dá para sentir que ela está ali atuando com o corpo inteiro. A primeira imagem do filme pode parecer banal, mas vale ressaltá-la e resgatá-la, pois a singeleza pode passar despercebida. O filme começa mostrando o rosto de Jenny e ela olha para a câmera, que se afasta. O olhar de Jenny se desvia da câmera em um ato de visível insegurança e fragilidade. Logo em seguida, ainda sem ter um corte no plano, ela coloca seus óculos escuros, mas o local é um apartamento vazio, isto é, um espaço interno, que em nada justificava a colocação de óculos escuros. Chamamos atenção para esse detalhe por ele revelar um pouco sobre essa personagem. Ao contrário de A hora do lobo, que a mesma Liv Ullmann também olha para a câmera na primeira sequência e inicia a narração sobre a história que será contada no filme, em Face a face há essa sutil mostra de uma personalidade frágil, que não demonstra segurança sobre seus atos. A segunda sequência do filme mostra Jenny tratando de Maria, sua paciente mais problemática, que está fechada para o mundo. Jenny esforça-se para abrir uma comunicação, mesmo que incipiente, com Maria. Surge então uma inesperada revelação. Durante uma sessão de tratamento Maria olha para Jenny de forma diferente, como se a relação paciente/médico fosse momentaneamente invertida. Não obstante, ela pronuncia “Pobre Jenny… Pobre Jenny”, acariciando ternamente o rosto da médica. E essas demonstrações de fraquezas emocionais de Jenny parecem ficar evidentes a cada nova cena do filme. Mas o filme não fica apenas nas evidências. A loucura é tratada de frente, e de forma incisiva. Bergman trabalha arduamente as imagens do filme. O marido de Jenny é um alto executivo que mais viaja a trabalho que fica em casa. Jenny decide passar uma temporada na casa dos

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avós. Sinistramente, o prédio onde moram seus avós parece uma catedral, com seus vitrais renascentistas. Jenny depara com uma assustadora senhora com o olho esquerdo todo preto, que depois saberemos que era a representação da morte. Essa chegada na casa dos avós é muito significativa no filme. Jenny encontra seu quarto como era em sua infância, preparado assim pela sua avó. Esses são os elementos básicos e detonadores da crise emocional que se avizinha. Esse encontro surpreendente com o passado reaviva lembranças intensas, a maioria delas catastróficas para a saúde mental de Jenny. Algo sombrio parece espreitar o ambiente da personagem. Um dos pontos mais interessantes de se observar em Face a face é o olhar de Jenny, como estão impressas ali as sutilezas da personagem. Parece que esse foi um trabalho sugerido pela direção de Bergman, porque ele não é pontual, mas sim marcado em diversos momentos do filme. O pensamento sobre o tempo está muito presente nos filmes de Bergman. E em Face a face não é diferente. Tal como em Gritos e sussurros, o som do relógio é frequente, sinalizando esse tempo que não para nunca, que sempre caminha para frente, de forma a nos oprimir. Há uma sequência noturna em que o avô vai dar corda no relógio da sala e Jenny observa tudo a distância. O avô diz: “A velhice é um inferno”. O fato é que o pensamento sobre o o avô está perto da morte, seu tempo está se esgotando e tempo está muito presente esse gancho sobre a finitude desse personagem tangennos filmes de Bergman. cia todo o filme. Esse acompanhamento que Bergman faz E em Face a face não é do personagem do avô é tão importante no todo que lá no diferente. Tal como em Gritos e sussurros, o som fim do filme ele também está presente. Há uma diacronia em relação ao casamento. Os avós vivem de forma fraterdo relógio é frequente, sinalizando esse tempo nal, compreensível e unida; mas Jenny e o marido mal se que não para nunca, que veem, são distantes e nem lembram um casal. Parece que sempre caminha para Bergman estabelece uma diferença entre os casais: os de frente, de forma a nos hoje, que priorizam o mundo do trabalho e do bem-estar oprimir. financeiro; e os mais idosos, vivendo sob uma ótica mais humanista, familiar e gregária. O que Jenny procura em Tomas, um suposto amante, personagem interpretado por Erland Josephson, é simplesmente afeto, não é sexo, mas sim algo que ela não tem em sua relação familiar. Em seus sonhos sua mãe sempre aparece como se estivesse julgando-a com os olhos. A origem da depressão de Jenny está relacionada a um recalque na infância, e durante o filme essa ideia vai se materializando, vão surgindo os penosos castigos impetrados por seus pais quando ela era criança. A sequência da tentativa de suicídio de Jenny é muito bem elaborada. Após tomar uma overdose de remédios ela começa a passar os dedos no papel de parede. A câmera acompanha esse movimento, mas continua seguindo os desenhos da parede até um fade-out e então

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entramos no inconsciente de Jenny. Com a ajuda dos remédios conhecemos as partes mais sombrias de Jenny. A fotografia na penumbra reforça a imagem soturna e o figurino vermelho de Jenny contrasta com o cenário lúgubre. A câmera a acompanha, mas ela é mera espectadora em seu sonho, ou no seu limbo, visto que ela está em uma espécie de coma devido ao excesso de remédios ingeridos. Mas nesse ambiente ela pode abrir a porta do desconhecido (a morte) ou voltar e enfrentar os medos já conhecidos. As duas opções são desagradáveis, mas o que há depois da finitude do corpo é o maior mistério de todos. O clima de horror prevalece nessa sequência, com cenas fortes e aterrorizantes, a exemplo da cena em que ela chega à clínica com todos os seus pacientes aglomerados nesse pequeno espaço, inclusive seu avô, temeroso com a ideia da proximidade da morte. Não há em Face a face nenhum momento de respiro. Durante mais de duas horas Bergman mantém um clima pesado e sufocante no filme, o que o torna uma obra difícil de ser assimilada. Essencialmente, Jenny é uma mulher desamparada. Seu marido a abandona descaradamente em prol do dinheiro e da carreira. Ela é massacrada pela sociedade machista que não aceita a mulher emancipada. O peso de ser mulher na contemporaneidade é forte e ela sente isso na pele. Jenny se cobra como mãe e como filha, e leva um susto grande quando escuta da filha que ela se ressente de seu amor e que tem certeza de que não é amada por ela. Mas apesar de toda carga negativa existente no filme, por fim temos um lampejo de esperança com a possibilidade de um entendimento entre as pessoas. A sequência final é dedicada aos momentos finais da vida do avô, mas Jenny, observando o carinho, o cuidado e a paciência da avó, pensa alto para que todos possamos ouvir: “Tudo está envolto no amor... Até a morte.” Esse é o pensamento que carregamos ao fim do filme. Face a face foi muito criticado em seu lançamento. Bergman foi acusado de ser repetitivo, de repisar velhos temas. O próprio Bergman já declarou que só gosta do filme até a tentativa de suicídio de Jenny, mas que depois ele perde a mão. Talvez ele tenha até alguma razão em sua observação e autocrítica, porque há mesmo um desnível entre essas duas partes, mas a obra possui uma inegável densidade. A acusação de repetição é infundada, pois a maioria dos diretores reconhecidos pelas suas obras é assim, elege seus temas e os trabalham sob vários ângulos. Afinal é isso que Bergman faz nesse filme ao abordar a crise psiquiátrica de Jenny de uma forma totalmente verticalizada, sem rodeios. E esse é o valor intrínseco a Face a face, o da coragem de mergulhar em um tema árido como o da depressão humana e ainda conseguir nos lançar um sopro de esperança na humanidade.

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SONATA DE OUTONO, 1978 | 93min | Direção e roteiro: Ingmar Bergman | Elenco: Arne Bang-Hansen, Halvar Björk, Ingrid Bergman, Lena Nyman, Liv Ullmann, Marianne Aminoff | Fotografia: Sven Nykvist | Depois de oito anos sem se ver, mãe (Ingrid Bergman) e filha (Liv Ullmann) se reencontram. A mãe é uma famosa concertista que, após a morte do empresário (e namorado), vai passar uma temporada na casa da filha casada com um pastor. Tudo parecia bem até que uma simples sonata detona alguns rancores do passado, em uma espécie de acerto de contas. Oscar de Melhor Atriz para Ingrid Bergman e de Melhor Roteiro para Ingmar Bergman.

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SONATA DE OUTONO

“Os filhos são educados como se fossem ficar toda a vida filhos, sem nunca se pensar que eles se tornarão PAIS.” Strindberg, [19--?]

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Sonata de outono é um filme sem grandes arroubos de produção, sendo, nesse aspecto, pequeno, um filme de câmara, com uma mise-en-scéne sustentada basicamente pelos atores em cena, praticamente sem externas e quase todo filmado em estúdio. Tem ecos visíveis de uma peça teatral, tanto no texto quanto na mise-en-scéne. Isso não quer dizer em absoluto que o filme seja um teatro filmado ou uma peça de teatro disfarçada, seria injusto com essa obra de Bergman. Cinematograficamente, sua construção é precisa, manipulada por quem domina muito bem os recursos de linguagem para alcançar o máximo de expressão. A escolha dos planos para cada cena filmada sublinha a mensagem a ser transmitida. Bergman usa muitos planos próximos, inclusive muitos closes. Os planos gerais são utilizados apenas para cenas que ajudam a contextualizar a história. A história se resume na relação entre mãe e filha (Ingrid Bergman e Liv Ullmann, respectivamente), a primeira uma grande artista e a segunda uma jornalista. A filha chama-se Eva, tímida e insegura; e a mãe, Charlotte, tem uma personalidade altiva, dominadora, segura de si. Elas estão alguns anos sem se encontrar, a mãe viajando em seus compromissos musicais pelo mundo, a filha vivendo na Noruega. O filme narra o reencontro dessas duas personalidades tão distintas. A princípio tudo parece que vai funcionar até as velhas feridas serem reabertas. O filme tem Cinematograficamente, basicamente dois atos. No primeiro, reina sua construção é precisa, uma reconciliação esperada, depois de tanmanipulada por quem domina to tempo marcado pelas ausências físicas, muito bem os recursos de mas esse ato termina melancolicamente linguagem para alcançar quando a filha tenta tocar uma sonata e a o máximo de expressão. A mãe faz uma análise demolidora de seu deescolha dos planos para sempenho musical. O segundo ato inicia-se cada cena filmada sublinha a com uma crise explosiva e violenta entre mensagem a ser transmitida. mãe e filha. A primeira sequência de Sonata de outono foi muito bem pensada por Bergman, e de certo modo impressiona. Ela começa com uma imagem da personagem de Liv Ullmann trabalhando solitariamente em sua escrivaninha enquanto ouvimos over do narrador, que se apresenta como seu marido. Logo a seguir sua imagem entra no quadro, e ele continua falando, mas agora olhando diretamente para a câmera, isto é, para nós, espectadores. Ele pega um livro escrito pela esposa na estante e começa a ler trechos em que ela diz que busca incessantemente saber quem ela é, mesmo que de forma trôpega. A imagem o tempo todo está focada no primeiro plano do marido, mas no segundo plano, bem ao fundo, vemos a personagem de Liv Ullmann desfocada, de vestido vermelho. Essa imagem singela, exposta assim logo na primeira sequência, sintetiza bem o filme. Uma mulher em busca de construir sua

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identidade. Sonata de outono é uma obra bem representativa do universo bergmaniano. A relação do indivíduo com as amarras morais forjadas durante seu processo de formação como ser humano até chegar à idade adulta, tendo no caso a família, a escola e a religião como pilares e responsáveis pela construção desses arcabouços da existência. Muitos desses valores são injetados violentamente, são culturais, mas tratados sempre como naturais, dos quais são difíceis de se livrar; são levados com os indivíduos e depois repassados adiante na idade adulta como verdades inquestionáveis e absolutas. Nada mais Bergman do que a fartura de closes e planos próximos como recursos narrativos predominantes. Mas a câmera movimenta-se bastante, ela se coloca no mesmo patamar de instabilidade dos personagens e traduz seus conflitos emocionais. Há uma alternância proposital da câmera fixa e do movimento, muitas vezes há um contraste na mesma cena em que a câmera começa parada até que realiza um movimento brusco, que nos chama a atenção para uma mudança psicológica das personagens. Muitos desses movimentos são realizados com a câmera na mão, evitando o clássico uso do plano-contraplano. Outra personagem importante para o filme é Helena, irmã de Eva, que vive em uma cadeira de rodas. Ela perdeu a coordenação motora e da fala, mas é construída como uma personagem-chave para a compreensão do filme, por simbolizar a própria incomunicabilidade da família, sintetizar a difícil relação da mãe com as filhas. Não à toa, a mãe, egocêntrica e egoísta, a internou em uma clínica de repouso para não precisar vê-la. Mas Eva tira Helena da clínica e a leva para sua casa, para o desespero da mãe, que desconfortavelmente é obrigada a conviver novamente com um ser com o qual ela não consegue estabelecer uma relação de afeto. A questão do afeto em família é um tema bem presente nas obras de Bergman e em Sonata de outono ele está gritando. Eva cita para mãe alguns exemplos de sua ausência devido às longas viagens, mas também ausências quando ficava em casa ensaiando e dando pouca atenção às filhas. A infância representa uma área de grande interesse para Bergman por ser decisiva na formação emocional dos seres humanos e interferir em suas capacidades de amar. A cada cena do filme Eva vai expondo seus recalques e despejando suas dores de filha à mãe, como se aquele fosse o único momento possível para extravasar todas as suas mágoas e rancores. Charlotte aparentemente suporta toda a pressão da filha, mas aos poucos, em detalhes, nos mínimos gestos, Bergman vai dando indícios de que a altivez da mãe está prestes a desabar, e claro, desaba. A mãe fala de sua infância, o quanto seus pais a desprezavam, não lhe davam amor, e dos momentos de insucessos na carreira. Há também uma revelação: quando Eva expõe à mãe um fato do passado — a paixão de Helena pelo segundo marido de Charlotte, revelando que a impossibilidade desse amor foi a causadora a doença da irmã. Abalada com tantas revelações inesperadas, Charlotte vai embora

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e volta para a sua rotina. Curiosamente, Bergman subtrai a música do filme, a não ser quando algum personagem toca piano diegesicamente. Mas isso não quer dizer que a parte sonora está ausente da obra. Muito pelo contrário, o que Bergman nos propõe é um arranjo sonoro calcado em vozes, murmúrios, gritos, gemidos e especialmente silêncios. Os silêncios são perturbadores, são notas expressivas no filme, e a falta da música salienta os preciosos silêncios entre as falas das personagens. Há ainda abundantes monólogos reflexivos, com as personagens da mãe e da filha conversando em voz alta, ou apenas expondo seus pensamentos em off sobre seus problemas e suas angústias. Sonata de outono é uma obra dura, densa, psicológica, essencialmente bergmaniana, mas marcada por um final surpreendentemente esperançoso, que acena para uma possibilidade de reconciliação aparentemente improvável entre mãe e filha. O último olhar da mãe lendo a carta de Eva é enigmático, mas talvez deixe escapar um quase sorriso, ou será esse discreto sorriso uma ilusão, apenas um desejo do espectador?

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FANNY E ALEXANDER, 1982 | 188min | Direção e roteiro: Ingmar Bergman | Elenco: Allan Edwall, Bertil Guve, Erland Josephson, Ewa Froeling, Gunn Walgren, Jan Malmsjoe, Pernilla Allwin | Produção: Jörn Donner | Fotografia: Sven Nykvist | Trilha sonora: Benjamin Britten, Daniel Bell, Frans Helmerson, Marianne Jacobs, Robert Schumson | O garoto Alexander (Bertil Guve) e sua irmã Fanny (Pernilla Allwin) são membros de uma poderosa família de artistas liberais do início do século 20. Depois da morte do pai, os irmãos vão morar com o padrasto e são criados em meio ao rígido puritanismo luterano do bispo Vergerus (Jan Malmsjö). Primeiro filme autobiográfico do diretor Ingmar Bergman. Vencedor de quatro Oscar, incluindo Melhor Filme Estrangeiro e Melhor Fotografia, em 1984.

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FANNY E ALEXANDER

“Família, tu és a morada de todos os vícios da sociedade; tu és a casa de repouso das mulheres que amam as suas asas, a prisão do pai de família e o inferno das crianças.” Strindberg, [19--?]

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Fanny e Alexander é um filme de Bergman em que ele aborda mais a superfície do que os recônditos humanos, já que a interioridade das personagens sempre foi tônica de boa parte de sua obra cinematográfica. Mas isso não é um aspecto que diminui o filme, antes apenas o situa em outra abordagem. O que fica de Fanny e Alexander são as relações familiares, enquanto o aprofundamento das personagens está em segundo plano. Deve-se registrar que o grande número de personagens também torna-se um empecilho à profundidade. Mesmo partindo da premissa de que Fanny e Alexander não se conforma como uma das obras mais impactantes de Bergman, o filme tem seus momentos impressionantes, mesmo que no todo ele esteja longe de outras obras-primas do diretor. Fanny e Alexander é a obra plasticamente mais bem acabada de Bergman, a produção mais requintada visualmente, não à toa ganhou quatro Oscar, um de Filme Estrangeiro e mais três técnicos (direção de arte, figurino e fotografia). Outro aspecto interessante da obra é a introdução do teatro, da lanterna mágica, do cinema e das marionetes na trama, todos muito caros a Bergman e com presença em sua longa e exitosa traFanny e Alexander, na época, foi jetória artística. O teatro físico está presente, anunciado como sua despedida mas não só, devemos lembrar que Bergman do cinema, o que criou no set encerra o filme com uma citação de um dos um envolvimento extraordinário: seus dramaturgos preferidos, o também suetodos queriam que a derradeira co August Strindberg. Fanny e Alexander, na obra fosse especial. E não deixou época, foi anunciado como sua despedida do de ser, foi seu maior sucesso de cinema, o que criou no set um envolvimento público, e artisticamente funciona extraordinário: todos queriam que a derradeicomo uma síntese de toda a sua ra obra fosse especial. E não deixou de ser, obra, por incorporar elementos foi seu maior sucesso de público, e artistica- de humor, de conflitos familiares e religiosos, questionamentos mente funciona como uma síntese de toda a filosóficos sobre a morte e sua obra, por incorporar elementos de humor, a vida, mulheres complexas, de conflitos familiares e religiosos, questioenfim, seus principais temas. namentos filosóficos sobre a morte e a vida, mulheres complexas, enfim, seus principais temas. Se isso acabou por enfraquecer seu resultado, aproximou mais o público de sua obra, sempre considerada hermética e de difícil compreensão. A bela locação escolhida para a casa da família de artistas colabora com os figurinos (de cores sóbrias) e os realça, e a direção de arte (abusando do vermelho) permite que o célebre fotógrafo Sven Nykvist construa imagens quentes para esse ambiente. Já na casa austera do bispo, nota-se a ausência de cores fortes e acentua-se os tons mais neutros. Um dos cenários mais incríveis aparece na entulhada e labiríntica casa do personagem de Erland Josephson, em especial as lindas marionetes que

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Bergman conseguiu no Museu Teatro do Palácio de Drottningholm. Talvez esse esmero nos detalhes cênicos, não tão comuns nas produções bergmanianas, fortaleçam os aspectos de superfície, já que a ambiência acaba por abafar a interiorização dramática das personagens. Devido a esse enfoque no visual, acreditamos que Fanny e Alexander seja um filme para ser fundamentalmente apreciado sensorialmente, por se impor como uma obra para ser deleitada esteticamente. Existem claramente dois blocos no filme. O primeiro, quando conhecemos a família festeira de artistas, cheia de personagens pitorescos e engraçados, que fazem Fanny e Alexander conviverem em um ambiente familiar no qual há sim uma rigidez em relação à infância, mas ela se torna constantemente mais fluida. Entretanto, com a morte do pai se instaura um divisor de águas no enredo do filme. O segundo bloco inicia com o segundo casamento de sua bela mãe com um bispo da cidade. Então constata-se a rigidez vinda de uma moral religiosa mais austera e dogmática. O filme tem pouquíssimas cenas em que o cenário não é a casa, e isso diz muito sobre o todo. Esta era uma intenção deliberada de Bergman: trabalhar a organização familiar. É impossível não relacionar o filme com alguns relatos expostos por Bergman em sua autobiografia Lanterna mágica. Os duros castigos impostos às crianças são um exemplo, mas a presença da própria lanterna mágica também. Como não relacionar Alexander com Bergman, que também em sua infância ficou igualmente fascinado pelo mesmo objeto? Mas Fanny e Alexander não é um filme autobiográfico, apenas incorpora elementos da infância de Bergman sob outro contexto familiar. Curioso o ardil de Bergman ao situar a história na época de sua infância, os anos 1920. Há declarações dele de que pensou muito na casa de sua avó para construir o enredo do filme. Não casualmente, a avó é importantíssima para a história, segundo o próprio Bergman, se eu tenho um porta-voz nesse filme é a avó, papel de Gun Wallgren. Ela é a peça central, elemento de união. O filme é estruturado de tal maneira que ela retorna em certas ocasiões e ela carrega o final do filme: ela diz sobre o que é tudo. Ela é o ponto fixo. Ela é experiente. Ela sabe o que está acontecendo. (BERGMAN..., 1982) No documentário Diário de uma filmagem, um making of do filme, ele assume que em algumas cenas tentou recriar momentos exatos de sua infância. Bergman se divertia durante as filmagens: no auge de sua experiência e fama, seu comportamento quase sempre era de um menino que acabara de ganhar um presente muito desejado dos pais. Essa leveza que se sustenta na primeira parte do filme é bem rara na carreira de Bergman, normalmente recheada de dramas carregados de carga emocional e

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de reflexões filosóficas sobre a morte e existência. Mas na segunda parte do filme esse tom muda e se aproxima muito mais do universo tradicionalmente explorado em suas obras. A presença do bispo e de sua família afeita a uma educação rigorosa, com requintes mesmo de crueldade, ratificam a opção de Bergman em registrar os percalços de certas ordens familiares quando essas são calcadas na repressão. Outro fato que distingue uma maior frouxidão moral da família de artistas é a conduta de certos personagens, como um dos filhos que tem um caso praticamente declarado com uma empregada da casa, chegando inclusive a ter um filho com ela, que é incorporado à cena familiar sem grandes transtornos. Fanny é uma personagem muito enigmática na trama, ela quase não tem fala durante as mais de três horas de projeção. Funciona mais como uma companheira fiel, um contraponto a Alexander. Ela não apoia as torturas e punições abusivas impostas pelo padrasto ao irmão. Em relação a essa questão, o crítico Carlos Armando situa não só Fanny, mas também todas as mulheres e homens do filme da seguinte forma: mais uma vez, e agora no nível tenro da infância, Bergman exalta o caráter feminino e sua força, enquanto o homem se revela mais vulnerável. De Fanny à matriarca Helena, as mulheres no filme são todas colocadas num plano superior, ao passo que os homens, de Alexander ao velho Isaak Jacobi, demonstram de novo fraqueza e insegurança (ARMANDO, 1988, p. 277-278). Indiscutivelmente quase todos os temas bergmanianos estão presentes em Fanny e Alexander, como um filme-testamento. Morte, abandono, crise existencial, relações familiares, opressão religiosa, cinema, teatro, amor, sexo, entre outros. Dá a impressão que Bergman fala de tudo e que se diverte muito fazendo o filme, mas falta o aprofundamento de todos esses temas levantados.

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NA PRESENÇA DE UM PALHAÇO, 1997 | 118min | Direção: Ingmar Bergman | Elenco: Börje Ahlstedt, Marie Richardson, Erland Josephson, Pernilla August, Anita Björk, Peter Stormare | Outubro de 1925. O engenheiro Carl Åkerblom, fervoroso admirador de Schubert, é internado em um hospital psiquiátrico em Uppsala. De seu quarto, ele alimenta o revolucionário projeto de inventar o cinema falado. Com a ajuda do professor “louco” Osvald Vogler, o diretor Åkerblom improvisa uma história de amor contando os últimos dias de Schubert.

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NA PRESENÇA DE UM PALHAÇO

“Eu não desejava a vitória, mas a luta.” Strindberg, [19--?]

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Quando Bergman lançou Fanny e Alexander, em 1982, ele anunciou que era seu filme de despedida, que estaria se aposentando do cinema. Mas isso de fato não ocorreu, pois ele ainda faria outros tantos filmes para cinema e televisão. Dez anos antes de morrer, em 1997, Bergman dirigiu Na presença de um palhaço, filme feito para a tevê sueca e exibido com sucesso no Festival de Cannes, na mostra Un Certain Regard. O filme é uma homenagem ao cinema, ao teatro e à música. Trata-se de uma obra muito desconhecida, mas que transpira poesia e beleza. Uma pequena pérola do mestre Ingmar Bergman que vale a pena ser descoberta pelo público. Várias características e temas do cinema de Bergman estão presentes no filme, como sequências de sonho, personagens angustiados, hospitais (em especial os psiquiátricos), a presença da morte, fantasmas, a preocupação com o papel da arte no mundo, a influência da forma teatral no escopo da obra etc. Na presença de um palhaço é um filme cheio de vida que narra um sonho obstinado em encenar os últimos dias do compositor Franz Schubert e seu amor por uma bela e jovem prostituta, que pertence a um barão, ao qual Schubert também depende financeiramente. Seus idealizadores, os pacientes Carl Åkerblom (Börje Ahlstedt), apaixonado pela obra de Schubert, e o professor de exegese Osvald Vogler (Erland Josephson), saem várias características e direto do hospital psiquiátrico para fazer o primeiro temas do cinema de Bergman filme falado ao vivo, em 1925, em uma aventura inusiestão presentes no filme, tada desses dois “loucos”. No início do filme, quancomo sequências de sonho, do deparamos com um hospital, parece que vamos personagens angustiados, assistir a mais um drama tipicamente bergmaniano, hospitais (em especial os psiquiátricos), a presença da pesado e difícil de digerir, mas não, aos poucos a vimorte, fantasmas, vacidade prevalece e a loucura se encaminha para a preocupação com o papel liberar a energia criativa dos personagens. Há um da arte no mundo, a lado pitoresco na história, pois ela se passa um ano influência da forma teatral antes do primeiro filme sonoro do cinema mundial, O no escopo da obra. cantor de jazz, com o cantor Al Jolson. Lembra muito a época da invenção do cinematógrafo, quando, simultaneamente, vários inventores buscavam a descoberta desse aparelho, em especial Thomas Edison e os irmãos Lumière. Há uma visível analogia entre as duas histórias. Como se fossem revelações de histórias, de tentativas “fracassadas” que foram esquecidas pelo tempo. Com muito sacrifício eles conseguem fazer e exibir o filme com a narração ao vivo, tal como eles queriam e almejavam desde o início do projeto. Mas nem tudo sai exatamente como planejado. Na plateia, poucos aparecem para prestigiar, mas esses são, certamente, valiosos e atentos espectadores. Devido à precariedade do espaço de apresentação, o sistema elétrico do cinema improvisado não aguenta a sobrecarga, um incêndio inesperado acontece e no meio

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da exibição eles ficam impossibilitados de finalizar o filme conforme previsto. Então Osvald Vogler tem a ideia de continuar a história no formato teatro. O filme tem explicitamente essa ironia, pois sempre foi questionado se afinal Bergman era um homem do teatro ou do cinema. Parece que no final da carreira Bergman já tinha convicção de que toda essa questão é irrelevante. O mais importante era o amor e a dedicação à arte, independentemente do formato escolhido para expressar sua visão estética e humana. Esse amor está muito explícito no making of do filme. Por trás dos bastidores, nos ensaios e na preparação como um todo, Bergman vibra como um menino. Sua imagem não é a de um artista velho e cansado que fica sentado em uma cadeira apenas apontando o que todos deveriam fazer. Ao contrário, vemos o diretor correndo pelo set, se ajoelhando, deitando no chão, como se fosse um diretor estreante, ávido por não errar e dando um duro danado para demonstrar à equipe e aos atores como queria que o plano e a cena fossem feitos. Quando no filme acaba o primeiro ato e todos mudam o cenário para poder começar o segundo ato, uma das espectadoras pede para ler um texto que ela julga oportuno de ser lido. Como estamos dentro do espetáculo, Bergman utiliza a voz de um espectador da peça para expressar uma ideia muito sua sobre a vida e que muito explica suas motivações como artista: você se queixa de tanto gritar e do silêncio de Deus. Você diz que vive trancado e que tem medo de ser para sempre, mas ninguém lhe disse isso. Pense então no fato de que você é o seu próprio juiz e seu próprio carcereiro. Prisioneiro, saia de sua prisão. Para sua grande surpresa, você verá que ninguém o impedirá. A realidade fora da prisão é assustadora, muito assustadora, decerto, mas muito menos do que a angústia que você sente lá, fechado em seu quarto. Faça um primeiro passo para a liberdade. Não é difícil. O segundo passo será mais difícil, mas não se deixe reter por seus carcereiros e seu próprio orgulho. Claro que no contexto do filme essa fala cresce, se potencializa. Não importam as amarras impostas, nós, seres humanos, temos responsabilidade por nós mesmos. Os protagonistas do filme são todos considerados fracassados e vitimizados; são essencialmente loucos; estão fora da curva estabelecida pela sociedade, mas são apaixonados, determinados pelos seus valores e amam a arte como uma expressão humana sagrada. Lutam por ela e vivem por ela. Na peça, fica evidente o quanto os poderosos submetem artistas, como Schubert, à humilhação e à degradação, controlando comercialmente sua produção musical. A igreja, por meio do seu organista, questiona

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o compositor por ele fazer uma música muito alegre, ao que ele retruca que a música era uma resposta às humilhações sofridas nos últimos tempos. A autonomia do artista é abalada e colocada em xeque pelos donos do poder. Durante todo o filme há uma intenção em confundir realidade e ficção, e a peça-filme cumpre essa missão. A cenografia de Göran Wassberg reforça essa ideia, pois há uma preocupação constante de que tudo se pareça com um cenário de uma peça teatral, nota-se certo artificialismo na construção dessa imagem. Assim como em O sétimo selo, Bergman também personifica a morte em Na presença de um palhaço. Durante todo o filme ela está ali à espreita, rondando a alma perturbada de Carl Åkerblom. Apesar da tragédia final, o filme é uma ode à arte, mas à moda de Bergman, mesmo considerando os traços de um Bergman já amadurecido, ciente do papel simbólico e limitado da arte. Como autor ele se mostra consciente de que o artista não mudará o mundo, mas pode sim transformar indivíduos sensíveis à sua causa. A trajetória de Bergman no teatro está presente no filme de forma convicta e positiva. A prova maior disso está no final do espetáculo do grupo, quando um espectador se vira para Carl e diz que tudo estava lindo, mas a parte do teatro lhe agradou mais. Bergman nunca omitiu de ninguém que a sua projeção mundial foi pelo cinema, mas ele sempre se considerou muito mais um homem do teatro do que do cinema. Na presença de um palhaço é mais um testemunho a favor dessa sua curiosa visão.

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ATRAVÉS DO ESPELHO: BERGMAN POR BERGMAN

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1. Cf. ARMANDO (1988, p. 196-201).

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“Dizem hoje que toda arte é ação política, mas eu diria também que toda arte tem afinidade com a ética. Na realidade, é a mesma coisa […] É o que Eugene O’Neill queria exprimir, dizendo: ‘Toda obra dramática que não trata de relações humanas com Deus é sem valor.’ Fico sempre surpreendido quando dizem que sou arredio a tudo, que me sinto à margem da sociedade, que me isolo […] Declarei muito claramente que não sou um artista engajado politicamente, mas, naturalmente, sou a expressão da sociedade na qual vivo. Pretender o contrário seria grotesco. Mas não faço propaganda por uma tendência ou por outra […].”

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“É um dos sentimentos que marcaram a minha infância: a humilhação. Ser humilhado fisicamente, em palavras ou em uma situação. Eu me pergunto se as crianças não experimentam a todo instante e de forma intensa esse sentimento de humilhação nos contatos com os adultos e com as outras crianças. Todo o nosso sistema de educação é, em realidade, uma humilhação, e, quando eu era criança, isso era ainda mais evidente que hoje. O pranto da humilhação e o sentimento de ser humilhado causaram muitos problemas em minha vida de adulto […] A pessoa humilhada se pergunta constantemente como ela poderá humilhar outra pessoa, como ela poderá devolver a bala, esmagar o adversário, paralisá-lo até eliminar dele a ideia de uma reação.”

“A minha atitude em relação à minha prática da arte é que eu fabrico objetos mais belos que a média. Faço artigos de consumo. Se, em seguida, um deles adquire uma dimensão suplementar, isso dá sempre muito prazer. Mas não trabalho para obter a imortalidade.”

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“Depois da estreia de Persona, algumas jovens mulheres da esquerda dinâmica me declararam guerra e queriam a todo preço demonstrar que as personagens femininas do filme eram a imagem de uma concepção reacionária da mulher […] Mas a moral puritana que me persegue como um cão — eu convivi com ela durante toda a minha infância — me ensinou que, para ser educado, eu não devia falar nunca de duas coisas: sexo e dinheiro. Meus filmes, entretanto, são de preferência físicos, e eles vão além não somente da sexualidade, mas de todo o problema moral. Minha fascinação permanente pela raça feminina é uma das minhas principais forças motrizes. É evidente também que um tal vínculo implica uma ambivalência, encerra uma contradição. Mas tenho para o bem e para o mal que aceitar a etiqueta antissexual. Tenho muito medo dos moralistas porque eu mesmo o sou. É verdadeiramente difícil descobrir um moralista mais moralista do que eu.”

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“Não censuro certos críticos pelo fato de fazerem filmes nem certos cineastas por se dedicarem à crítica. Simplesmente, alguém que, como eu, está há quase trinta anos em contato com o teatro e com o cinema conduz-se automaticamente como uma velha raposa muitas vezes mordida no rabo, nas patas ou no focinho. É um reflexo bastante natural. Quando encontro um crítico, mostrome muito cortês, mas algo em mim fica alerta. Nada posso contra isso. No entanto, no momento em que a crítica renunciar à sua função de crítica e em que eu próprio deixar de fazer cinema, então poderemos verdadeiramente nos encontrar.”

“Os artistas não são praticamente mais os visionários sociais. E eles não devem imaginar que ainda são. A realidade anda sempre mais depressa que o artista e suas visões políticas.”

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“Fazer filmes é também mergulhar até as mais profundas raízes, até o mundo da infância [...]. Tomo consciência disso quando entro no local de filmagens ou quando estou com uma câmera entre as mãos e os técnicos em torno de mim. Então digo para mim mesmo: ‘venham, nós vamos começar uma brincadeira.’ Lembro exatamente quando eu era pequeno, tirava, um por um, meus brinquedos do armário antes de brincar. Tenho a mesma impressão num local de filmagens. Há certa analogia.”

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“Quando exibo um filme, sou culpado de fraude. Uso um aparelho construído para se aproveitar de certa fraqueza humana, um aparelho com o qual eu posso sacudir a plateia de uma maneira altamente emocional — fazê-la rir, gritar de medo, sorrir, acreditar em histórias de fadas, tornar-se indignada, sentir-se chocada, encantada, profundamente tocada ou, talvez, bocejar de tédio. Em qualquer dos casos eu sou um impostor ou, se a plateia está desejosa de ser guiada, um feiticeiro. Apresento truques de feitiçarias com aparelhos tão caros e maravilhosos que qualquer artista do passado daria tudo no mundo para possuí-los.”

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“Os personagens de meus filmes são exatamente como eu, são animais conduzidos pelos instintos e que, no melhor dos casos, refletem quando eles falam. A capacidade intelectual dos meus personagens é relativamente reduzida. Os corpos constituem a parte principal com um pequeno buraco para a alma. A matéria de meus filmes são experiências da vida, cujo suporte intelectual e lógico é frequentemente desagradável.”

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ALÉM DO ESPELHO: A INSPIRAÇÃO DO DIRETOR

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AUGUST STRINDBERG (22/1/1849-14/5/1912) foi um dramaturgo, romancista, ensaísta e contista sueco. Autor, entre outras obras, das peças dramáticas Senhorita Júlia e o Sonho, dos romances O salão vermelho e Gente de Hemsö e da novela Casados. Figura ao lado de Henrik Ibsen, Søren Kierkegaard e Hans Christian Andersen entre os maiores escritores escandinavos de todos os tempos. Um dos ícones do teatro moderno, seus trabalhos são classificados como pertencentes aos movimentos literários naturalista e expressionista. Strindberg é considerado um renovador da literatura e da língua sueca. No romance O salão vermelho, ele ultrapassa o estilo declamatório da época, introduzindo a linguagem falada real. O mesmo romance é considerado igualmente o marco temporal do início do sueco contemporâneo. | SØREN KIERKEGAARD (1813-1855) foi um filósofo dinamarquês e pai do Existencialismo, uma vertente da filosofia que discute propósitos, causas e consequências das ações humanas no âmbito da realidade individual. Kierkegaard foi o primeiro que, de maneira explícita, colocou questões existencialistas como principal foco do exame filosófico da vida humana. Para ele, a filosofia resumia-se em tomar consciência e questionar as exigências absolutas feitas a qualquer pessoa que deseje viver uma existência verdadeiramente autêntica. O Existencialismo é uma linha de pensamento que retira o homem como mero pertencente a uma espécie e o coloca como definidor de sua existência. Os existencialistas (Kierkegaard e todos os posteriores) exploram as várias perspectivas nas quais podemos viver em um universo sem Deus, ou quaisquer autoridades superiores. Assim, os existencialistas rejeitam a ideia de alma imutável, desde o nascimento até a morte, dando ao indivíduo o papel de construtor da própria realidade. A filosofia do Existencialismo pode ser vista como fundadora da liberdade e responsabilidade do homem, uma vez que ele existe antes de sua essência ser caracterizada. Em sua obra O desespero humano, ele afirma que a origem do desespero está na imaginação humana, quando o homem pode criar uma relação fantasiosa consigo mesmo. O desespero, segundo Kierkegaard, vem do afastamento da existência, e constitui a pior das doenças; o único mal para o qual não há cura. A morte, encarada pelo senso comum como o pior dos males, não é, para Kierkegaard, um mal superior ao desespero.

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FILMOGRAFIA DE INGMAR BERGMAN

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1945 – Crise • 1946 – Chove sobre nosso amor • 1947 – Um barco para a Índia • 1947 – Música na noite • 1948 – Porto • 1948 – Prisão • 1949 – Sede de paixões • 1949 – Rumo à alegria • 1950 – Isto não aconteceria aqui • 1951 – Juventude • 1952 – Quando as mulheres esperam • 1952 – Mônica e o desejo • 1953 – Noite de circo • 1954 – Uma lição de amor • 1955 – Sonhos de mulheres • 1955 – Sorrisos de uma noite de amor • 1956 – O sétimo selo • 1957 – Morangos silvestres • 1957 – O sr. Sleeman está chegando (TV) • 1958 – O veneziano (TV) • 1958 – No limiar da vida • 1958 – O rosto • 1958 – Rabino (TV) • 1959 – A fonte da donzela • 1960 – O olho do diabo • 1960 – A tempestade (TV) • 1961 – Através de um espelho • 1962 – Luz de inverno • 1963 – O silêncio • 1963 – Uma comédia do sonho (TV) • 1964 – Para não falar de todas essas mulheres • 1965 – Don Juan • 1966 – Persona ou quando duas mulheres pecam • 1968 – A hora do lobo • 1968 – Vergonha • 1968 – “Daniel” (episódio do longa Stimulantia) • 1969 – O rito (TV) • 1969 – Paixão de Ana • 1969 – Farö - Documentário 1969 (TV) • 1971 – A hora do amor • 1972 – Gritos e sussurros • 1973 – Cenas de um casamento • 1974 – A flauta mágica (TV) • 1974 – O misantropo (TV) • 1975 – Face a face • 1977 – O ovo da serpente • 1978 – Sonata de outono • 1979 – Farö - Documentário 1979 (TV) • 1980 – Da vida das marionetes • 1982 – Fanny e Alexander • 1983 – Hustruskolan (TV) • 1984 – Depois do ensaio • 1984 – O rosto de Karin • 1986 – A filmagem de Fanny e Alexander (TV) • 1986 – A dupla feliz (TV) • 1992 – O marquês de Sade (TV) • 1993 – Backanterna (TV) • 1995 – O último soluço (TV) • 1997 – Na presença de um palhaço (TV) • 2000 – Bildmakarna (TV) • 2003 – Saraband •

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CINEMATOGRAFIA SUECA ALÉM BERGMAN 1920-1970

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A carroça fantasma (1920), Victor Sjoström • A quarta aliança da sra. Margarida (1920), Carl Theodor Dreyer • Häxan – a feitiçaria através dos tempos (1921), Benjamin Christensen • Uma noite (1931), Gustaf Molander • Intermezzo (1936), Gustaf Molander • O velho chega (1938), Per Lindberg • Alegre-se com sua juventude (1939), Per Lindberg • Tortura de um desejo (1944), Alf Sjoberg • Cavalgo esta noite (1942), Gustaf Molander • A chama eterna (1943), Gustaf Molander • Ordet (1944), Gustaf Molander • Um lobo solitário (1948), Erik Hampe Faustman • Porto estrangeiro (1949), Erik Hampe Faustman • A mulher sem rosto (1947), Gustaf Molander • A mulher e a tentação (1948), Gustaf Molander • Senhorita Júlia (1951), Alf Sjoberg • Ela vem como um sopro de vento (1951), Erik Hampe Faustman • Deus e a cigana (1953), Erik Hampe Faustman • A grande aventura (1953), Arne Sucksdorff • Violência (1955), Lars-Eric Kjellgren • O jogo selvagem (1956), Lars-Eric Kjellgren • O pecado sueco (1962), Bo Widerberg • Amor 65 (1965), Bo Widerberg • Elvira Madigan (1967), Bo Widerberg • A amante sueca (1962), Vilgot Sjoman • 491 (1963), Vilgot Sjoman • Amar (1964), Jorn Donner • Casais amorosos (1964), May Zetterling • Jogos da noite (1965), May Zetterling • O telhado (1966), Jorn Donner • Minha irmã, meu amor (1966), Vilgot Sjoman • Quem o viu morrer? (1967), Jan Troell • Beijos e abraços (1967), Jonas Cornell • Sou curiosa – amarelo (1967), Vilgot Sjoman • Sou curiosa – azul (1968), Vilgot Sjoman • Os emigrantes (1971), Jan Troell • Até que o sexo nos separe (1971), Vilgot Sjoman • As aventuras de um produtor de filmes rosas (1971), Jorn Donner • O preço do triunfo (1972), Jan Troell • A esposa comprada (1974), Jan Troell • Giliap (1975), Roy Andersson • A garagem (1975), Vilgot Sjoman • Paraíso de verão (1976), Gunnel Lindblon • O estranho amor de Mannia Becker (1976), Marianne Ahrne • As loucas aventuras de Picasso (1978), Tage Danielsson • Linus (1979), Vilgot Sjoman • A revolução dos doces (1979), Erland Josephson

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REFERÊNCIAS

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ARMANDO, C. O planeta Bergman. São Paulo: Oficina de Livros, 1988. BERGMAN dá adeus ao cinema. In: FANNY e Alexander. Direção de Ingmar Bergman. São Paulo: Versátil Home Vídeo, 1982. [Extraído do documentário extra do filme]. 1 DVD BERGMAN, I. Imagens. São Paulo: Martins Fontes, 2001. BERGMAN, I. Lanterna mágica. 2. ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1988. BILHARINHO, G. O cinema de Bergman, Fellini e Hitchcock. Uberaba: Instituto Triangulino de Cultura, 1999. BJÖRKMAN, S. O cinema segundo Bergman. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1977. COTA, R. Ingmar Bergman: o cinema transcendental. 1999. Disponível em: <http:// www.terra.com.br/cinema/favoritos/bergman.htm>. Acesso em: 15 maio 2017. CRIANÇAS de domingo. Dirigido por Daniel Bergman. Roteiro de Ingmar Bergman. Rio de Janeiro: Top Tape, 1992. 1 DVD. EBERT, R. A magia do cinema. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004. NIETZSCHE, F. W. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. 2. ed. São Paulo: Cia. das Letras, 1997. 271 p. ORFALI, K. Um modelo de transparência: a Suécia. In: ARIÈS, P.; DUBY, G. (Org.). História da vida privada. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. v. 5. PENSADOR. August Strindberg. [20--?]. Disponível em:<pensador.uol.com.br/autor/ august_strindberg/>. Acesso em: 14 maio 2017. RUANO, E. Søren Kierkegaard e o existencialismo. 2015. Disponível em: < http://www.laparola.com.br/soren-kierkegaard-e-o-existencialismo>. Acesso em: 20 maio 2017. SILVEIRA, W. da. Fronteiras do cinema. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1966. STRINDBERG, A. Frases de August Strindberg. [19--?]. Disponível em: <https:// citacoes.in/autores/august-strindberg/>. Acesso em: 15 maio 2017. TRUFFAUT, F. Os filmes da minha vida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.

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O lobo

à espreita

Uma homenagem ao centenário de Ingmar Bergman

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