Revista Sinais Sociais

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Sesc | Serviço Social do Comércio Departamento Nacional

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ISSN 1809-9815 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p.1-152 | maio-ago. 2013

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Sesc | Serviço Social do Comércio PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL

Antonio Oliveira Santos DIRETOR-GERAL DO DEPARTAMENTO NACIONAL

Maron Emile Abi-Abib COORDENAÇÃO EDITORIAL Gerência de Estudos e Pesquisas Gerente

Mauro Lopez Rego CONSELHO EDITORIAL

Álvaro de Melo Salmito Eduardo R. Gomes Mauricio Blanco Nivaldo da Costa Pereira SECRETÁRIO EXECUTIVO

Mauro Lopez Rego ASSESSORIA EDITORIAL

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Ana Cristina Pereira (Hannah23) SUPERVISÃO EDITORIAL

Jane Muniz PREPARAÇÃO E PRODUÇÃO EDITORIAL

Cláudia Sampaio| Ieda Magri REVISÃO

Elaine Bayma REVISÃO DO INGLÊS

Primacy Idiomas Ltda DIAGRAMAÇÃO

Livros

Livros | Susan Johnson

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Celso Clapp

©Sesc Departamento Nacional Av. Ayrton Senna, 5.555 — Jacarepaguá Rio de Janeiro — RJ CEP 22775-004 Tel.: (21) 2136-5555 Impresso em agosto de 2013 - Distribuição gratuita. Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/2/1998. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida sem autorização prévia por escrito do Departamento Nacional do Sesc, sejam quais forem os meios empregados: eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação ou quaisquer outros. Dados Internacionais de Catalogação na publicação.

As opiniões expressas nesta revista são de inteira responsabilidade dos autores. As edições podem ser acessadas eletronicamente em www.sesc.com.br. Caso tenha interesse em receber a revista Sinais Sociais, entre em contato conosco: Assessoria de Divulgação e Promoção Departamento Nacional do Sesc

Sinais Sociais / Sesc, Departamento Nacional - Vol. 1, n. 1 (maio/ ago. 2006)-  . – Rio de Janeiro : Sesc, Departamento Nacional, 2006 -  . v.; 30 cm. Quadrimestral. ISSN 1809-9815 1. Pensamento social. 2. Contemporaneidade. 3. Brasil. I. Sesc. Departamento Nacional.

publicacoes@sesc.com.br tel.: (21) 2136-5149 / fax: (21) 2136-5470

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SUMÁRIO

Apresentação

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Editorial

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Dossiê: Velhice, família, Estado e propostas políticas Organização Myriam Moraes Lins de Barros

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Feminismo e velhice Guita Grin Debert

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Entre o Estado, as famílias e o mercado Carlos Eugênio Soares de Lemos

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Violências específicas aos idosos Alda Britto da Motta

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Vazios culturais versus alternativas da cultura e as estratégias da poesia de Cacaso Carlos Augusto Lima 87 Violência e maus-tratos contra as pessoas idosas Edson Alexandre da Silva Lucia Helena de Freitas Pinho França

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APRESENTAÇÃO

A origem do Sesc vincula-se à intenção de contribuir para o desenvolvimento do Brasil a partir de uma profunda compreensão de seu potencial e dos obstáculos ao seu progresso. Uma tarefa desafia aqueles que receberam como legado a missão de realizar no presente os ideais vislumbrados pelos líderes do passado: a revisão e a ampliação permanente dessa compreensão. Assim como ao Sesc cabe atuar sobre a realidade social, cabe valorizar e difundir o entendimento acerca dessa realidade, dos conceitos e questões fundamentais para o país e das políticas públicas e formas diversas de promover o bem-estar coletivo. antonio oliveira santos Presidente do Conselho Nacional

Ler, estudar, pesquisar. Divergir, argumentar, contrapor. Comparar, debater, discutir. Criticar, questionar, propor. Fundamentar, elaborar, testar. Organizar, encadear, remeter. Rever, revisar, publicar. Apresentar, expressar, transmitir. Com a revista Sinais Sociais, colaboramos para que esses verbos sejam conjugados em favor de uma sociedade que traduza de forma mais fidedigna a expressiva riqueza cultural e o potencial realizador de seus cidadãos. Conhecer para compreender, difundir para mobilizar, agir para transformar: eis as vertentes que definem a linha editorial da Sinais Sociais no ambiente do pensamento e da ação social. maron emile abi-abib Diretor-Geral do Departamento Nacional

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EDITORIAL

Entre sístoles e diástoles contamos o tempo e traçamos caminhos. Tic-tac, tic-tac, tic-tac: no tic contrair, refletir, preparar; no tac estender, agir, publicar. Alcançada uma etapa, retornamos à anterior; que é a mesma, porém diferente. O paradoxo temporal se reitera no formato circular dos relógios e no caráter cíclico dos processos vitais. A presente edição da Sinais Sociais dá especial enfoque ao envelhe­ci­ mento, nos remetendo ao transcorrer do tempo e às responsabilidades que temos sobre os que vieram antes, os que nos acompanham na idade e os jovens que virão receber nosso legado quando a engrenagem do tempo assim o quiser. É fundamental conectar concepção e atitudes frente ao envelhecimento ao projeto de sociedade que se quer e à sua sustentabilidade, contrariando a tendência de conceber este projeto isolado do futuro e do passado. Iniciamos neste número a inclusão de dossiês temáticos, que apresentarão diferentes visões acerca de determinado assunto, permitindo ao leitor montar de forma mais abrangente um painel conceitual

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a respeito desses temas. Velhice, família, Estado e propostas políticas, organizado por Myriam Moraes Lins de Barros, inaugura esta formulação, complementada em sua abordagem pelo artigo de Edson Alexandre da Silva e Lucia Helena de Freitas Pinho França. O tema do envelhecimento no Brasil está imbricado à ação do Sesc, via Trabalho Social com Idosos, que em 2013 completa meio século desde sua origem no Sesc em São Paulo. Sua escolha para o dossiê e a inclusão de artigo a ele relacionado, no entanto, não contrariam a pluralidade que é marca da Sinais Sociais, mantida neste e em números futuros. Expressão desta pluralidade é a presença do artigo de Carlos Augusto Lima, que aborda a obra do poeta Cacaso e de outros autores de sua época frente à concepção de vazio cultural, relacionando-os ao momento histórico do período militar posterior à edição do Ato Institucional nº 5. O tempo presente nos reserva outros “vazios” distintos daqueles do início da década de 1970. Resta enfrentá-los com criatividade e sensibilidade.

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DOSSIÊ

Velhice, família, Estado e propostas políticas Organização: Myriam Moraes Lins de Barros

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Myriam Moraes Lins de Barros Doutora em Antropologia Social e professora titular da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Velhice, relações intergeracionais, juventude e família são os temas centrais de suas pesquisas e publicações. Além de artigos em revistas e capítulos de livros, publicou Autoridade e afeto e as coletâneas Velhice ou terceira idade? e Família e gerações. Participa da comissão editorial da revista Praia Vermelha: Estudos de Política e Teoria Social e coordena, com Clarice Peixoto e Maria Luiza Heilborn, as séries Família, geração e cultura e Análises sociais contemporâneas.

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Myriam Moraes Lins de Barros

As ciências sociais no Brasil têm trabalhado as questões relativas à velhice de forma sistemática desde a década de 1970. Os primeiros trabalhos traziam indagações sobre os significados da velhice na sociedade brasileira e a identidade social do/a velho/a com ênfase nas distinções de gênero e nas diferenças de classe. As pesquisas sobre o envelhecimento nas décadas de 1970 e início de 1980 apresentavam questões que pareciam não fazer parte de uma sociedade que construiu uma imagem de si como um país de crianças e jovens, sintetizada na frase “Brasil, o país do futuro”. Outra versão dessa imagem positiva da juventude está no sentido revolucionário atribuído a essa faixa etária. Dessa forma, não há espaço para a velhice, nem no presente, nem no futuro. O país mudou sua configuração demográfica e aquela projeção de um futuro que saudava a juventude precisou ser pensada simbólica e sociologicamente. Hoje, uma diversidade de aspectos relativos à velhice é explorada nos estudos sociológicos, antropológicos e históricos. As relações sociais cotidianas na família e nos espaços públicos, os direitos dos mais velhos, o trabalho na velhice, a sexualidade, as diferenças de classe, a violência, os movimentos sociais e, mais recentemente, a velhice na área rural compõem um leque de caminhos de pesquisa que tem essa etapa da vida como objeto de atenção. Esses aspectos da vida social não são necessariamente próprios do envelhecimento, mas as especificidades e particularidades da velhice nos dias atuais oferecem um campo fértil para se pensar a sociedade, as mudanças sociais, o Estado e os símbolos e significados das idades e do curso da vida construídos pelos indivíduos na vida social. Este dossiê apresenta três artigos que trazem aspectos fundamentais sobre a velhice na atualidade. O primeiro, “Feminismo e velhice”, de Guita Grin Debert, trabalha na interseção dos temas da velhice e do feminismo. Dialogando com autores nacionais e internacionais, Guita Grin Debert retoma as grandes questões presentes em seus trabalhos sobre velhice e Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 9-86 | maio-ago. 2013

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Dossiê: Velhice, família, Estado e propostas políticas

questiona a ausência das discussões acadêmicas e políticas sobre velhice na literatura e nos movimentos feministas. Essas indagações são identificadas pela autora na proposta de quebra do silêncio sobre a velhice já presente na obra clássica de Simone de Beauvoir e, mais recentemente, na posição assumida por Kathleen Woodward para reverter a marginalização de velhos por uma “uma moratória para a sabedoria”. Como pensar a velhice em uma sociedade que instituiu a velhice saudável e ativa como padrão para as políticas sociais? Onde está a velhice doente que exige cuidados? Estará só a cargo da família e das mulheres, personagens centrais nos cuidados com dependentes? A autora voltase para a categoria de análise que elaborou para dar resposta a essas questões de ordem social e individual: a reprivatização da velhice. O ideal de um envelhecimento ativo e, consequentemente, saudável, construído pela gerontologia social passa a marcar as políticas sociais para a população idosa. Segundo Guita Grin Debert, pretende-se, por essa lógica, eclipsar a velhice que necessita cuidados e realçar, por sua vez, seus ganhos: a sabedoria própria de um longo curso de vida. No Brasil, país que só recentemente tomou a velhice como uma questão social, percebe-se que o projeto de melhoria da qualidade de vida presente nos programas para a terceira idade está sintonizado com interesses de redução com gastos públicos com a saúde, responsabilizando os velhos e velhas pelo seu próprio cuidado. O subtexto é que negligência corporal e psíquica consigo é nefasta para o próprio indivíduo idoso, para a família, para a sociedade e para o Estado. Guita Grin Debert aponta a relação entre o poder disciplinador e a vigilância sobre si mesmo, que tal ideologia da terceira idade propõe. Mas no projeto de cuidado de si na velhice há uma clara distinção de gênero. Mulheres nos centros de convivência e homens aposentados na luta pelos direitos civis. Nessa divisão por gênero para as melhorias de vida na velhice, as diferenças de classe não aparecem como importantes. Apoiada nas interpretações e propostas da feminista Kathleen Woodward, a autora mostra que o projeto de velhice, sobretudo dirigido às mulheres, calcado apenas na gratificação de si e na valorização da sabedoria do controle das emoções, impede a visibilidade dos dramas do envelhecimento e da discriminação de velhos e velhas. Para romper com essa lógica da ideologia da terceira idade ativa, apresenta-se a proposta de tornar

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Myriam Moraes Lins de Barros

visíveis as histórias de vida de indivíduos e de grupos sociais envelhecidos, aproximando essa luta de outras lutas contra diferentes formas de opressão, como os movimentos feministas. Nessa luta, as emoções são fundamentais e vão se colocar contra uma forma de “sabedoria” que impede a explosão da indignação. “Entre o Estado, as famílias e o mercado”, de Carlos Eugênio Soares de Lemos, traz uma contribuição importante para o debate sobre as práticas de justiça nos casos em que está em questão a dependência de velhos e velhas. O autor parte das representações e práticas de família na sociedade moderna definidas por valores e regras com base no princípio da obrigatoriedade da reciprocidade presente na lógica da oposição gratidão/ingratidão. Para o autor há o consenso sobre essas regras não apenas na experiência familiar, mas nas relações entre o Estado e a família, o que acaba definindo o andamento e a conclusão dos processos jurídicos por ele estudados. O artigo apresenta alguns resultados da pesquisa realizada com o material dos processos jurídicos do Ministério Público Estadual que tratam da velhice dependente. São relatos sociais de inquéritos civis que apresentam acusações de abandono e negligência de membros da família dos idosos que seriam, em princípio, responsáveis por eles. O autor elencou alguns casos para uma análise mais detalhada, tendo como um dos critérios de seleção a situação e condição de classe mais precária dos indivíduos envolvidos. No desenrolar do drama sobre os cuidados e a obrigatoriedade de gratidão, presentes nos textos dos processos, são apresentados os atores envolvidos e suas respectivas falas, permitindo ao leitor visualizar as interações familiares, a relação entre a família e o Estado por meio de depoimentos de alguns profissionais como o promotor, assistentes sociais e psicólogos. As legislações atuais, como o Estatuto do Idoso, marcam uma nova diretriz nas formas de resolução de conflitos familiares quando o personagem central é o/a idoso/a. A legislação e os termos jurídicos são apropriados e interpretados pelos indivíduos em disputa pela responsabilização dos cuidados com os idosos e surgem, nesse contexto, as acusações de quebra das regras de reciprocidade entre familiares. No episódio final, vislumbra-se Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 9-86 | maio-ago. 2013

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Dossiê: Velhice, família, Estado e propostas políticas

a criminalização da negligência da família que, efetivamente, não tem condições de arcar sozinha com os cuidados com seus dependentes. O resultado indica também a reafirmação de relações hierárquicas e de desigualdade na sociedade brasileira. O texto de Alda Britto da Motta “Violências específicas aos idosos” trata da invisibilidade das diversas formas de violências praticadas contra os idosos. Família e Estado aparecem nesse cenário, além do mercado. Violências intergeracionais no espaço privado, violências das instituições de acolhimento aos idosos, não cumprimento de direitos básicos pelo Estado. Não há, entretanto, especializações entre as instituições, mas um reforço mútuo nas práticas de violência, como uma violência consentida pela sociedade porque invisibilizada pelo não valor da velhice. A autora traz um novo cenário de violência praticada contra os idosos: os empréstimos consignados fraudulentos. Considerado crime, os idosos e, sobretudo, as idosas são o alvo preferencial desse tipo de ação. A partir da apresentação de casos que têm como personagens centrais mulheres idosas e instituições financeiras, a autora chama atenção também para o pano de fundo no qual familiares e o Estado têm sua função. Alda Britto da Motta dialoga com uma bibliografia sobre velhice reafirmando a concepção da construção sociocultural das idades e, como Guita Grin Debert, discute a falta de atenção política e acadêmica sobre violência de gênero quando quem está em questão são as mulheres idosas. Os três artigos têm uma proposta comum: reforçar, redimensionar e rea­ tualizar a velhice como questão social, especialmente identificar a particularidade da violência praticada contra idosos. Dessa forma, constitui projeto político e acadêmico dos autores e dos que têm a velhice como interesse de estudo e investimento profissional reconhecer social, pública e efetivamente as especificidades da condição dos velhos em nossa sociedade, dando ênfase às desigualdades de classe, assimetrias de gênero e outras formas de desigualdades sociais que se fazem presentes nos diferentes contextos sociais.

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Feminismo e velhice Guita Grin Debert

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Guita Grin Debert Professora titular do Departamento de Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), membro do Conselho Científico do Núcleo de Estudos de Gênero da Unicamp (Pagu) e pesquisadora do CNPq. É autora do livro A reinvenção da velhice (Editora da USP) e de vários artigos sobre discurso político, velhice e envelhecimento e violência contra a mulher.

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Feminismo e velhice

Resumo O argumento central deste artigo é que não se pode explicar o desinteresse das feministas pela velhice apenas como uma consequência do medo de envelhecer, pela repulsa ao corpo envelhecido, própria do sexismo, ou pela glorificação da juventude que caracteriza a sociedade de consumo. O interesse aqui é mostrar que as imagens do envelhecimento bem-sucedido presentes no senso comum e na gerontologia, assim como a associação convencionalmente feita entre o avanço da idade e a sabedoria, criam barreiras difíceis de serem transpostas para que a velhice possa entrar no rol das questões centrais do pensamento feminista. Palavras-chave: Velhice. Feminismo. Feministas. Mulheres. Gerontologia.

Abstract The central argument of this article is that the lack of interest given to ageing and old age by feminists cannot be explained only as a consequence of fear of aging, aversion to the ageing body, sexism, or as a result of the glorification of youth that characterizes consumer society. The interest here is to show that the images of successful aging present in common sense and in gerontology, as well as the association conventionally made between ageing and wisdom, create a gap that excludes old age from the range of main issues of feminist thought. Keywords: Old Age. Feminism. Feminist. Women. Gerontology.

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Dossiê: Velhice, família, Estado e propostas políticas

Introdução Em um artigo sobre sexualidade e velhice, Lagrave (2011) expõe um conjunto de questões elaboradas por ocasião de um seminário que tinha como objetivo celebrar os 40 anos do movimento francês de liberação da mulher, Mouvement de Libération de la Femme (MLF). Nesse seminário, feministas históricas foram convidadas a participar do evento de modo a transmitir a memória das lutas então empreendidas para um público de jovens estudantes. As exposições feitas na ocasião emocionaram a plateia, mas os sinais do envelhecimento, impressos na aparência dessas mulheres, levaram Lagrave a se perguntar como essa etapa está sendo por elas vivida. Por que a velhice não é um tema das lutas feministas? Essa geração foi ativa em denunciar formas de discriminação, proclamar “meu corpo me pertence”, separar a sexualidade da reprodução, colocar em questão a hegemonia da heterossexualidade. Seria o feminismo um antídoto à velhice? Como então explicar o seu silêncio em relação a esse período da vida? Por que as enormes barreiras criadas para as mulheres mais velhas no mundo do trabalho, nos padrões de beleza, na vida sexual, entre tantas outras formas de discriminação, não são objeto de reflexão pública e das militâncias dessas mulheres que foram tão ativas na crítica feminista? Lawrence Cohen (1994), em um artigo sobre antropologia e o estudo do envelhecimento, é mais incisivo na exploração dessa falta de reconhecimento da velhice pelo feminismo. Ele lembra uma coletânea de artigos feita por feministas, em que as autoras agradecem a paciência da editora com a demora das mesmas na entrega dos textos e justificam o atraso com a alegação de que elas são uma espécie de geração sanduíche, que têm que lidar com o peso somado do cuidado dos filhos adolescentes e dos pais idosos. Feministas preocupadas com um olhar cuidadoso sobre as diferenças e sobre as formas de objetivação e sujeição de seres humanos, de maneira totalmente negligente, acabaram por transformar os velhos em um peso para as mulheres na meia-idade. De modo a tratar dessas imagens, começamos por apresentar a forma pela qual a relação entre mulher e velhice tem sido trabalhada nas pesquisas sobre o tema. Em seguida, abordamos o modo pelo qual a gerontologia cria o envelhecimento bem-sucedido, para depois explorarmos a 18

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Feminismo e velhice

maneira como os programas para a terceira idade operam uma feminização das etapas mais avançadas da vida. Por fim, seguindo Kathleen Woodward (2003), propomos, como uma das condições necessárias para quebrar a conspiração do silêncio do feminismo em relação à velhice, uma moratória contra a sabedoria. O dever de um envelhecimento bem-sucedido que tem sido imposto aos velhos impede que a retórica da indignação ganhe o conteúdo emocional próprio das críticas às formas de opressão.

1 Homens, mulheres, androginia e inversão de papéis sociais Mulher e velhice não é um tema ausente da reflexão nas ciências sociais. Contudo, a questão que organiza boa parte dos estudos é a de saber quem está melhor nessa etapa da vida, os homens ou as mulheres, e é importante realçar que não há uma unanimidade nas respostas apresentadas.1 Para alguns autores, as mulheres na velhice experimentariam uma situa­ ção de dupla vulnerabilidade, com o peso somado de dois tipos de discriminação, como mulher e como idosa. Sendo a mulher, em quase todas as sociedades, valorizada exclusivamente por seu papel reprodutivo e pelo cuidado com as crianças, desprezo e desdém marcariam sua passagem prematura à velhice. Essa passagem, antes de ser contada pela referência cronológica, seria marcada por uma série de eventos associados a perdas, como o abandono dos filhos adultos, a viuvez ou o conjunto de transformações físicas trazidas pelo avanço da idade. Nas sociedades ocidentais contemporâneas, a esse conjunto de perdas deve-se somar o subemprego, os baixos salários, o isolamento e a dependência que caracterizariam a condição das mulheres de mais idade. Outros autores, no entanto, tendem a olhar com mais otimismo o envelhecimento feminino. A velhice feminina seria mais suave do que a masculina, na medida em que a mulher não experimentaria uma ruptura em relação ao trabalho tão violenta como a dos homens na aposentadoria. Os vínculos afetivos entre filhos e mães seriam mais intensos e por isso os filhos estariam mais dispostos a cuidar delas do que de seus pais idosos. Os controles sobre a mulher seriam afrouxados, posto que ela já não deteria a função de procriação e, mesmo nas sociedades em Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 9-86 | maio-ago. 2013

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que são elas as transmissoras de herança, o controle sobre a mulher seria sempre maior ao longo de sua vida jovem e adulta do que na velhice (GOODY, 1976; BROWN, 1982). Habituadas a mudanças drásticas em seu organismo e capacidade física por causa da procriação, da gravidez, da lactância e da menstruação, as mulheres teriam mecanismos que lhe permitiriam enfrentar melhor as transformações que ocorrem com o avanço da idade. A hipótese de que a velhice é uma experiência homogênea funda a gerontologia, que é a ciência que estuda os velhos. A perspectiva que orientou os primeiros estudos na área considerava que os problemas enfrentados pelos idosos eram tão prementes e semelhantes que minimizavam as diferenças em termos de etnicidade, classe, gênero e religião. Em oposição à noção de que essa etapa corresponderia a um acúmulo de sabedoria, a velhice era então pensada pela ideia de ausência de papéis sociais – a sociedade moderna não prevê uma posição específica ou uma atividade para os velhos, abandonando-os a uma existência sem significado (BURGUESS, 1960). Os velhos seriam uma minoria desprivilegiada (BARRON, 1961), ou ainda, para Rose (1962), eles comporiam uma subcultura com um estilo próprio de vida que se sobreporia às outras diferenças como ocupação, sexo, religião ou identidade étnica. Os anos 1970 assistiram a uma revisão desse pressuposto. As diferenças de classe social, de etnicidade e de gênero dariam à experiência de envelhecimento, em uma mesma sociedade, conteúdos distintos que mereceriam investigação. A hipótese da diversidade é um convite a uma série de pesquisas preocupadas com a elaboração de medidores sofisticados e com a definição de instrumentos capazes de avaliar a qualidade de vida na velhice. Entretanto, a perspectiva que tem orientado a maioria desses trabalhos é a de que grupos sociais distintos se adaptam diferencialmente à experiência comum de envelhecimento e a tarefa então passa a ser a de propor explicações para as diferenças constatadas. No que diz respeito a gênero e envelhecimento, a tendência das pesquisas que enfatizam os fatores psicológicos na velhice é a de considerar que a androginia caracterizaria as etapas mais avançadas da vida. Papéis sociais, valores e atitudes considerados tipicamente masculinos ou femininos tenderiam a se misturar na velhice. Ou ainda, o envelhecimento envolveria uma masculinização das mulheres e uma feminização 20

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Feminismo e velhice

dos homens, de forma que as diferenças de gênero se dissolveriam na “normalidade unissex da idade avançada”. Homens idosos desenvolveriam atitudes mais afetivas do que os jovens e as mulheres desenvolveriam atitudes mais assertivas. A divisão tradicional do trabalho doméstico em tarefas masculinas e femininas tenderia a diminuir com a idade e alguns autores explicam essa convergência como produto das mudanças hormonais. A inversão de papéis sociais tem chamado a atenção, sobretudo, de autores interessados no tema da sexualidade na velhice.2 É parte dos estudos sobre a sexualidade, como mostra Luiz Fernando Dias Duarte (2004), a dificuldade envolvida na tensão entre, por um lado, “uma incitação a falar sobre o sexo” (FOUCAULT, 1977) e, por outro lado, um movimento que retrai essa fala ou mesmo a reflexão sobre o tema dada a correlação entre sexualidade, intimidade e privacidade. Essa tensão acaba por levar a uma separação entre dois níveis da experiên­cia: o sensual e o sentimental. Um prazer sensorial do sexo (dito sensual) e um prazer afetivo sentimental (correspondente em nossa cultura à ideologia do amor). É próprio desses estudos estabelecer uma correlação entre o sensual e o masculino e entre o afetivo e o feminino. Essa correlação tende a ser revista quando se pensa em sexualidade e velhice. A inversão dos atributos de gênero ganha a seguinte expressão em um artigo do psicanalista Kernberg (2001): Pode-se observar um desenvolvimento curioso da relação entre o desejo erótico e o amor apaixonado ao se estudar as relações amorosas que se dão mais tarde na vida. Propus, em um trabalho anterior [...], que o desenvolvimento masculino e feminino da integração entre excitação sexual e ternura diferem. [...] Para os homens, [...] a liberdade sexual precede a capacidade de estabelecer uma relação de objeto profundo com uma mulher e de integrar liberdade sexual no contexto desse relacionamento amoroso. No caso das mulheres, ao contrário, [...] a patologia mais frequente, nesse sentido, é um certo grau de inibição sexual no contexto do estabelecimento de uma relação amorosa satisfatória. Concluí, em trabalho anterior, que no final, vindos de caminhos de desenvolvimento contrastantes, homens e mulheres alcançam a mesma capacidade de síntese entre liberação sexual e uma relação de objeto profunda; na rea­ lidade, o amor apaixonado é precisamente o selo dessa síntese entre o desejo erótico e o amor terno. Agora, sob a luz da observação das relações amorosas de casais mais velhos, sugiro que esse desenvolvimento

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Dossiê: Velhice, família, Estado e propostas políticas

prossegue na idade mais avançada, com uma surpreendente reversão de papéis. Homens apaixonando-se e estabelecendo uma relação amorosa apaixonada nas etapas mais avançadas de suas vidas frequentemente têm uma estimulante experiência de que seu intenso amor sexual por uma mulher transcende, em novas formas, seu desejo erótico [...]. O desejo erótico, em termos simples, pareceria um meio de alcançar o amor, copiando, poderíamos dizer, as primeiras características de desenvolvimento das mulheres mais jovens. Ao contrário, as mulheres que se apaixonam nas etapas mais avançadas de suas vidas podem experimentar uma liberdade de desejo sexual que torna o amor pelo homem que encontraram agora uma ponte na qual o desejo erótico pode ser plenamente satisfeito, e torna-se a maior expressão do amor deles. Um paciente disse, brincando, para sua nova namorada, “às vezes fico com medo de que você esteja me tratando como um objeto sexual e que meus sentimentos e minha personalidade não tenham importância para você” (KERNBERG, 2001, p. 183-184).

Pensar a velhice como uma condição em que a mulher é vítima de uma dupla discriminação, ou como uma ocasião em que ela se encontra em uma situação privilegiada em relação aos homens, ou ainda, como um período em que as diferenças de gênero perdem significados ou os papéis sociais são invertidos, é pressupor que haveria um substrato comum à velhice que estaria presente em todas as sociedades e em todos os períodos históricos. Contra esse pressuposto, a contribuição mais importante da pesquisa histórica e da antropologia é a de mostrar que o avanço da idade pode ser vivido e compreendido de maneiras muito distintas. As pesquisas apontam a importância de perceber as mudanças ocorridas no curso da vida e no envelhecimento ao longo da história, apresentam a diversidade nas formas de periodizar a vida em diferentes sociedades, bem como revelam os significados distintos que as etapas da vida têm para diferentes grupos sociais em uma mesma sociedade. A invenção da terceira idade e os movimentos dos aposentados são bons exemplos de mudanças recentes ocorridas na nossa sociedade na reflexão sobre a velhice e na experiência de envelhecimento de homens e mulheres, como se pode ver a seguir.

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2 As novas imagens da velhice Discorrer sobre a velhice é abordar um assunto que até muito recentemente era visto como uma questão própria da esfera privada e familiar, uma questão de previdência individual ou de associações filantrópicas. Com a transformação do envelhecimento em uma questão social, um conjunto de orientações e intervenções, muitas vezes contraditório, é definido e implementado pelo aparelho de Estado e outras organizações privadas. Um campo de saber específico – a gerontologia – é criado com profissionais encarregados de compreender e definir os problemas que afetam os velhos e promover a formação de outros especialistas nessa área de estudos. Como consequência desse movimento próprio da forma como os Estados modernos classificam e hierarquizam suas populações, e que Foucault (1977) denomina “biopoder”, tentativas de homogeneização das representações sobre esse segmento populacional são acionadas e uma nova categoria cultural é produzida: os idosos, como um conjunto autônomo e coerente que impõe outro recorte à geo­ grafia social, autorizando a colocação em prática de modos específicos de gestão do envelhecimento. A representação do avanço da idade como um processo contínuo de perdas acompanha o processo de constituição da velhice em uma preocupação social e política. Essa visão de uma experiência homogênea de perdas é um elemento de legitimação de direitos sociais que levaram à universalização da aposentadoria, ao conjunto de leis protetivas dos idosos e às conferências e aos planos de ação internacionais para o envelhecimento. Contudo, uma nova face dessa etapa da vida emerge a partir dos estudos mais recentes sobre o tema. Contra a visão de uma situação de perdas, e de modo a combater os estereótipos negativos, os gerontólogos procuram realçar os ganhos que o envelhecimento traz. As novas pesquisas realizadas com populações idosas em diferentes paí­ ses indicavam que os velhos projetavam uma imagem muito mais positiva da sua situação do que aquela que servia de pressuposto à teoria gerontológica; revelavam não apenas que o conhecimento dos pesquisadores sobre essa realidade era muito vago e carregado de pessimismo, mas também que a gerontologia alimentava uma série de mitos relacionados com essas imagens negativas. Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 9-86 | maio-ago. 2013

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Os estereótipos do abandono e da solidão, que caracterizariam a experiência de envelhecimento, são substituídos pela imagem dos idosos como seres ativos, capazes de oferecer respostas criativas ao conjunto de mudanças sociais que redefinem a experiência do envelhecimento. Novas formas de sociabilidade e de lazer marcariam essa etapa da vida, reciclando identidades anteriores e redefinindo as relações com a família e parentes. No Brasil, uma série de pesquisas de cunho qualitativo também apresenta a tendência de mostrar que os mais jovens estariam superestimando a perspectiva da miséria na velhice. Trabalhos com indivíduos de mais idade de diferentes camadas sociais, como os de Myriam Moraes Lins de Barros (1998), Clarice Peixoto (1995), Flávia de Mattos Motta (1998), Alda Britto da Motta (1997) e os meus (DEBERT, 1998), sugeriam que a representação que os idosos faziam de sua situação não era tão trágica como aquela apresentada pelo discurso gerontológico. Importa, no entanto, ressaltar que a ideia de um envelhecimento ativo passa a marcar as políticas sociais voltadas para a população idosa. Dessa nova perspectiva, trata-se de estimular um conjunto de práticas dirigidas a garantir a continuidade da participação do idoso na vida social com independência e dignidade. Mais do que o direito ao cuidado, o que se enfatiza é o direito à igualdade de oportunidades e de tratamento, como é possível ver no Portal do Envelhecimento do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Envelhecimento (Nepe) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). O envelhecimento ativo pode ser abordado como uma política de Direitos Humanos voltada para os idosos, e envolve independência, participação, dignidade, acesso a cuidados. Muda a visão estratégica baseada nas necessidades de cuidados para uma baseada nos direitos de igualdade de oportunidades e de tratamento. Considera a responsabilidade dos idosos de exercerem suas participações no processo político, social, comunitário à medida que há manutenção da autonomia (capacidade de tomar decisões pessoais) e independência (realizar funções relativas à vida diária) (PORTAL DO ENVELHECIMENTO, 2010).

Políticas voltadas para o envelhecimento ativo devem reconhecer a importância do encorajamento e da delegação de responsabilidade ao indivíduo pelos seus cuidados, criar ambientes amigáveis e estimular a solidariedade entre diversas gerações. Isso significa que cada indivíduo 24

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e sua família devem se planejar e se preparar para a velhice e dirigir esforços para adotar uma postura pessoal positiva voltada para a saúde em todas as fases da vida. Ao mesmo tempo, a criação de ambientes adequados é necessária para transformar as escolhas saudáveis em escolhas fáceis. É essa visão que orienta as práticas desenvolvidas nos programas da terceira idade, como são os grupos de convivência e as universidades voltadas para o segmento mais velho da população.

3 Os programas da terceira idade e o movimento dos aposentados Os programas para a terceira idade e o movimento dos aposentados indicam que a preocupação recente com a melhoria da qualidade de vida na sociedade brasileira muda não apenas a sensibilidade investida na velhice, mas tende a transformar o envelhecimento em uma experiência radicalmente distinta para homens e mulheres. As diferenças de classe, que dão conteúdos específicos a essa etapa da vida, parecem ser minimizadas ante as diferenças de gênero. A terceira idade é uma expressão que recentemente, e com muita rapidez, se popularizou e é uma forma de tratamento das pessoas de mais idade que ainda não adquiriu uma conotação depreciativa. Essa expressão não indica uma idade claramente delimitada em anos vividos, mas sinaliza mudanças na percepção da velhice, que passa a ser um momento privilegiado para o lazer e para as atividades livres dos constrangimentos da vida profissional e familiar. Os programas para a terceira idade – como são os centros de convivência de idosos, as universidades para a terceira idade, os grupos da melhor idade – foram criados nos anos 1960, mas proliferaram na última década, marcando presença mesmo em municípios em que a população idosa é relativamente pequena. Abertos para pessoas com 50 anos ou mais, as pesquisas têm mostrado que neles o público mobilizado é, sobretudo, feminino.3 A participação masculina dificilmente ultrapassa os 10% e o entusiasmo manifestado pelas mulheres na realização das atividades propostas contrasta com a atitude de reserva e indiferença dos homens que, em número muito diminuto, raramente perdem uma oportunidade de olhar com desconfiança o entusiasmo das mulheres. Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 9-86 | maio-ago. 2013

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Apesar da diversidade de atividades desenvolvidas em cada um desses programas, das diferenças em termos de recursos disponíveis e das diferenças socioeconômicas do público feminino mobilizado, o tom geral é o de rever os estereótipos com que a velhice é tratada. Inspirados nas recomendações do Plano de Ação Mundial para a Velhice, todos eles reiteram a ideia de que o velho é um ser integrado que necessita uma assistência especializada e que deve reencontrar seu lugar na sociedade, recuperando a sua autoestima. Centrar a análise nesses programas é se perguntar o que acontece com os homens mais velhos. Será que eles não participam de atividades associativas? Olhar para as associações de aposentados é colocar em outros termos essa questão, porque aí se verifica a presença de grupos ou redes em que os homens ganham destaque. O movimento dos aposentados, organizado por meio de associações, federações e confederações em diferentes momentos, ocupou o centro da cena política brasileira nas últimas décadas, galvanizando a opinião pública em manifestações como a luta pelos 147%. Mais tarde, manifestações foram feitas contra declarações do presidente Fernando Henrique Cardoso, consideradas ofensivas aos aposentados. O trabalho de Júlio Assis Simões (2000), Entre o lobby e as ruas: movimento de aposentados e politização da aposentadoria, traz um retrato muito interessante dessas associações e dos movimentos de que as associações participaram. Aqui é importante chamar a atenção para o fato de que esse movimento mobilizou basicamente um público masculino. É difícil ter dados sobre a participação de mulheres no movimento, mas elas raramente têm cargo de direção nas associações ou são chamadas para falar em nome dos aposentados nas manifestações e na imprensa. Nos discursos políticos proferidos pelas lideranças, é praxe que as interpelações sejam feitas em termos de “os” aposentados e “as” pensionistas. A comparação entre essas duas formas associativas – a dos grupos de convivência de terceira idade e a das associações dos aposentados e pensionistas – permite mostrar o caráter distinto das experiências coletivas nelas vividas. Nos dois casos está envolvida uma luta contra os preconceitos e os estereótipos pelos quais se supõe que a velhice seja tratada no contexto brasileiro. São, entretanto, formas distintas de empreender essa 26

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luta. O movimento dos aposentados pretende estabelecer uma aliança com outros setores desprivilegiados da sociedade na luta contra o Estado pela redistribuição da renda e pelos direitos civis. Nos programas para a terceira idade, a luta é por mudanças culturais, é uma luta contra os preconceitos e estereótipos que leva a uma celebração da terceira idade e do processo de envelhecimento como um momento privilegiado na vida, em que a realização pessoal, a satisfação e o prazer encontram o seu auge e são vividos entusiasticamente. Daí a expressão “melhor idade” usada para denominar grupos de convivência de idosos ou programas para o segmento mais velho da população. As diferenças nas formas como homens e mulheres, nas associações e nos programas, representam o que é a velhice e percebem as mudanças ocorridas no envelhecimento são elementos fundamentais para entender as diferenças no público mobilizado em cada uma dessas manifestações. As pesquisas feitas com mulheres que participam desses programas mostram o entusiasmo com que elas avaliam as mudanças em relação à situação da mulher ocorridas na sociedade brasileira, particularmente no que diz respeito às mulheres mais velhas. Diferentemente de suas mães e suas avós, elas já não têm que se vestir de preto e ficar em casa à espera da visita de filhos e netos. Gozam atualmente de uma liberdade inusitada para as velhas de antigamente e também para as mulheres mais jovens. A participação nas atividades dos programas para a terceira idade é uma oportunidade de envolvimento em atividades motivadoras, ampliar seu grupo de amigos e seu repertório de conhecimentos, explorar novas identidades e novos estilos de vida. Nas associações de aposentados, os homens são menos otimistas em relação às mudanças sociais. Os jovens já não respeitam mais os velhos como faziam antigamente. Combater os preconceitos em relação a essa etapa da vida é mostrar que seus participantes mantêm lucidez e sabem criticar os governos, os políticos e as interpretações errôneas que a mídia fazia de todos os diferentes aspectos da vida social brasileira. Muitos dos participantes das associações e movimentos criticam os programas da terceira idade, que alguns chamavam de “playground de velhos”, que desviavam aposentados e pensionistas de seus reais inteSinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 9-86 | maio-ago. 2013

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resses. Outros – principalmente os que tinham interesse em fazer uma carreira política – eram mais respeitosos em relação aos programas para a terceira idade e propunham planos para juntar atividades como passeios, bailes e outras atividades físicas ao trabalho reivindicativo e político das associações. A exploração de novas identidades e a vivência intensa do lazer, própria da terceira idade, era para eles uma forma de infantilização dos cidadãos, uma espécie de negação da masculinidade. Como disse um colega que estuda masculinidade e velhice: “Para os homens, reprimir as emoções é a condição para poder exercer o papel que deles é esperado na nossa sociedade: provedor, protetor, criador.” É esse ethos masculino que os programas da terceira idade parecem negar, na medida em que consideram que a terceira idade é um momento de repensar a vida, refazer projetos e desenvolver novos relacionamentos. É, no entanto, importante levar em conta o tipo de controle emocional envolvido nas propostas para a terceira idade e o investimento que a celebração do envelhecimento requer. Da mesma forma, vale a pena lembrar que é relativamente pequena a participação do segmento mais velho da população tanto nos programas como nas associações.

4 As jovens idosas e as idosas muito idosas Comparar a experiência das mulheres nos programas da terceira idade com a experiência dos homens no movimento de aposentados permite rever a ideia de que os homens não participam de formas associativas ou a visão de que o aposentado é um homem que vestiu o pijama e só quer ficar em casa, ou ainda explicar a participação diminuta dos homens porque, em média, eles vivem menos do que as mulheres. Contudo, é preciso reconhecer que a participação nos dois casos é feita por jovens idosos e idosas, ou seja, por indivíduos que têm a capacidade funcional para se locomover pela cidade, fazer excursões, ir a bailes ou a passeatas. Os programas para a terceira idade, como já dissemos, estão afinados com a produção mais recente dos gerontólogos que, inspirados na gerontologia internacional, procuram rever a visão da velhice como uma

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situação de decadência física e perdas de papéis sociais e realçar os ganhos que o envelhecimento potencialmente possibilita. Neles os participantes são estimulados a reconhecer que o envelhecimento não pode ser entendido como uma etapa de retraimento e abandono da vida social. Pelo contrário, esse é um momento de novas descobertas e de novos aprendizados por meio de conferências, grupos de estudos, teatro, coral, artesanato, passeios turísticos, bailes e outras atividades. Essas novas imagens que acompanham a construção da categoria terceira idade estão empenhadas em transformar a velhice em uma experiência mais gratificante. São ainda elementos constitutivos do tratamento dado às etapas mais avançadas da vida as reportagens produzidas pela mídia impressa e eletrônica em que o tema ganha um espaço cada vez maior, além de também ocuparem espaço central na venda de produtos e serviços voltados para esse segmento.4 Uma nova linguagem pública empenhada em alocar o tempo dos mais velhos faz-se presente na desconstrução das idades cronológicas como marcadores pertinentes de comportamentos e estilos de vida. Uma parafernália de receitas envolvendo técnicas de manutenção corporal, comidas saudáveis, medicamentos e outras formas de lazer são propostas, desestabilizando expectativas e imagens tradicionais associadas a homens e mulheres em estágios mais avançados da vida. Pode-se dizer que no Brasil existe um know-how na criação desses espaços recreativos para a terceira idade que, com muito sucesso, têm mobilizado o público feminino de jovens idosas e, certamente, transformado a experiência desse segmento da população em uma experiência mais gratificante. Assim como é evidente a habilidade das mídias em compor um novo retrato celebratório do envelhecimento, até mesmo quando se trata de vender produtos que combatem as rugas ou outros sinais relacionados à passagem do tempo. Contudo, esse compromisso com o envelhecimento positivo encobre os problemas próprios da idade mais avançada. A perda de habilidades cognitivas e controles físicos e emocionais – habilidades essas que, nas sociedades democráticas, são fundamentais para que um indivíduo seja reconhecido como um ser autônomo capaz de um exercício pleno

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dos direitos da cidadania – é percebida como resultado de transgressões cometidas pelos indivíduos contra seus corpos e sua saúde.5 Esse processo que chamei de reprivatização de uma questão social, em um país como o Brasil – que combina hierarquias sociais acirradas com práticas próprias da sociedade de consumo –, transforma a velhice em um problema de consumidores falhos porque foram incapazes de adotar estilos de vida e disposições psicológicas que poderiam evitar o envelhecimento. O idoso como um consumidor que falhou ganha concretude em um contexto em que vigoram as concepções autopreservacionistas do corpo, as quais encorajam os indivíduos a adotarem estratégias instrumentais para combater a deterioração e a decadência. Essas concepções são aplaudidas pela burocracia estatal, que procura reduzir os custos com a saúde, educando o público para evitar a negligência corporal. A percepção do corpo como um veículo do prazer e da autoexpressão impõe uma combinação de disciplina e hedonismo, na medida em que suas qualidades são tidas como plásticas e os indivíduos são convencidos a assumir a responsabilidade pela sua própria aparência. A publicidade, os manuais de autoajuda e as receitas dos especialistas em saúde estão empenhados em mostrar que as imperfeições do corpo não são naturais nem imutáveis, e que, com esforço e trabalho disciplinado, pode-se conquistar a aparência desejada; as rugas ou a flacidez se transformam em indícios de lassitude moral e devem ser tratadas com a ajuda dos cosméticos, da ginástica, das vitaminas, da indústria do lazer. Os indivíduos são não apenas monitorados para exercer uma vigilância constante de si, mas são responsabilizados pela sua própria saúde, pela ideia de que muitas doenças são resultados de abusos como o excesso de bebida, do fumo e da falta de exercícios. A suposição de que a boa aparência seja igual ao bem-estar, de que aqueles que conservam seus corpos por meio de dietas, exercício e outros cuidados viverão mais, demanda de cada indivíduo uma boa quantidade de “hedonismo calculado”, exigindo a autovigilância da saúde corporal. Nesses termos, a velhice, reprivatizada, pode desaparecer do leque das preocupações sociais e as fases mais avançadas da vida passam a ser um

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problema das famílias ou dos próprios velhos que não souberam cultivar o carinho e a solidariedade familiar. Em outras palavras, a gerontologia brasileira e, em particular, as políticas públicas voltadas para esse segmento da população contemplam os jovens idosos com programas para a terceira idade e tendem a tornar invisíveis os dramas que caracterizam os estágios mais avançados do envelhecimento. O entusiasmo com as imagens gratificantes da terceira idade – das jovens idosas autônomas empenhadas em redefinir essa etapa da vida e usufruir dos novos equipamentos voltados para o lazer, para o aprendizado e para o desenvolvimento de novas habilidades, projetos de vida e identidades – levantou uma verdadeira cortina de fumaça para as situações de dependência e perda de autonomia funcional que caracterizam as etapas mais avançadas do envelhecimento. São essas as situações em que as políticas públicas adequadas são mais custosas tanto em termos financeiros como em relação à necessidade de pessoal especializado. A velhice avançada passa então a ser um problema das famílias e sabemos que colocar a responsabilidade na família é interpelar mais uma vez as mulheres para a tarefa de cuidado. É para essas novas formas de invisibilidade dessa etapa da vida que é importante atentar.

5 A conspiração do silêncio, a moratória contra a sabedoria e o feminismo Com a expressão “conspiração do silêncio”, Simone de Beauvoir (1970), em A velhice, realidade incômoda, chamou a atenção para o fato de que a velhice era uma espécie de segredo vergonhoso do qual era indecente falar. Obviamente a condição dos velhos mudou muito depois dos anos 1970, e hoje o idoso é um ator que não está mais ausente da vida política e social brasileira. Hoje, dificilmente poder-se-ia considerar que os velhos estão entre os estratos mais desfavorecidos da população. Especialmente nos momentos em que o desemprego ou o subemprego atingem proporções alarmantes, a universalização das aposentadorias e da pensão na velhice garantiria Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 9-86 | maio-ago. 2013

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aos idosos direitos sociais dos quais é excluída a população em outras faixas etárias, sobretudo os jovens. Nos programas dos partidos políticos, nas campanhas eleitorais, nas políticas públicas e nas ofertas de bens de consumo e serviços, a presença do idoso é cada vez mais marcante. Contudo, as imagens do envelhecimento ativo – das mulheres felizes e entusiasmadas com os programas para a terceira idade – dão novos conteúdos e atualidade à conspiração do silêncio, tornando invisíveis os dramas da velhice avançada. O compromisso social é com um tipo determinado de envelhecimento positivo. A etapa mais sombria da velhice permanece um segredo e é responsabilidade das famílias cuidar de seus parentes idosos.6 Apostar que o bem-estar em idades mais avançadas está na família, em um contexto em que ela tende a assumir formatos tão inesperados, é adiar inconsequentemente a reflexão e as propostas de práticas para uma experiência de envelhecimento bem-sucedida para homens e para mulheres. Às imagens gratificantes da terceira idade e à conspiração do silêncio em relação às etapas mais avançadas da vida é preciso agregar a ideia de sabedoria como mais um dos ingredientes que ajudam a compreender a barreira levantada entre os feminismos e a luta contra a discriminação dos velhos e que faz da velhice um “impensado” do feminismo, na expressão de Lagrave (2011), ao falar sobre o seminário em comemoração aos 40 anos do Mouvement de Libération de la Femme (MLF), mencionado no início deste texto. No artigo “Contra a sabedoria: a política da raiva e a velhice”, Woodward (2003) sugere que a visão da sabedoria como um ganho que a passagem dos anos traz torna difícil, se não impossível, a luta contra a discriminação dos velhos. Ela propõe o que chamará de “uma moratória para a sabedoria” (WOODWARD, 2003, p. 55), de modo a vitalizar a fúria e a raiva de ser marginalizado em função da idade. A ideia de sabedoria articula vários significados como o acúmulo de conhecimentos, a capacidade de fazer julgamentos corretos e de emitir reflexões e ponderações balanceadas, mas, em todos os casos, comenta a autora, a referência é ao pensamento e às virtudes associadas ao domínio dos sentimentos e emoções. A autora argumenta, com razão, que as 32

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emoções são elementos importantes na produção de significados e valores e na definição e na implantação de políticas sociais. Como pensar nos movimentos de protesto sem levar em conta o sentimento de raiva contra as formas de opressão e injustiças? A indignação necessária às lutas políticas certamente requer a dose de raiva que marca e que marcou cada uma das diferentes expressões do movimento feminista e de outros movimentos libertários. A energia política e o engajamento envolvem fervor, é o oposto aos significados convencionalmente associados à sabedoria. Ou, como diria Woodward, envolvem uma “raiva sábia” (2003, p. 55) capaz de criar uma retórica promotora do convencimento. Em outras palavras, a raiva e a fúria necessárias à luta política ficam barradas quando o distanciamento, a neutralidade, a imparcialidade próprias da sabedoria passam a ser uma característica da boa velhice, porque se impede aos velhos galvanizarem essas emoções e sentimentos na luta por mudanças sociais. São vários os autores que consideram que a intensidade dos sentimentos e das emoções diminui ao longo do curso da vida e, como mostra Woodward, é essa diminuição que cria condições para a sabedoria. Certamente, um dos autores mais citados nessa direção é Erik Erikson (1998), que considera que o crescimento psicológico ocorre por meio de estágios e depende da interação da pessoa com o meio que a rodeia. Cada um dos estágios é atravessado por uma crise entre uma vertente positiva e outra negativa e, se as duas vertentes são necessárias, o importante é que a vertente positiva se sobreponha. Os dois estágios mais avançados da vida são tratados pela oposição “generatividade/estagnação” e “integridade/desespero”. O primeiro deles é caracterizado pela necessidade de orientar a geração mais jovem e investir na sociedade. É uma fase marcada pela afirmação pessoal no mundo do trabalho e da família. Há a possibilidade de o sujeito ser criativo e produtivo em várias áreas: produção de ideais, obras de arte, participação política e cultural, educação e criação dos filhos. A vertente negativa leva o indivíduo à estagnação, à falta de relações exteriores, à preocupação exclusiva com o seu bem-estar e com a posse de bens materiais e ao egoísmo. Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 9-86 | maio-ago. 2013

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O segundo – de fato o oitavo estágio –, ocorre depois dos 60 anos e envolve a compreensão do passado vivido. É a hora do balanço, da avaliação e do que se fez na vida. Quando se renega o passado, o indivíduo se sente fracassado pela falta de poderes físicos, sociais e cognitivos, isso significa que esse estágio é mal-ultrapassado. A integridade é o balanço positivo do curso da vida e esta satisfação prepara o indivíduo para aceitar a idade e as suas consequências. O desespero, pelo contrário, é o sentimento nutrido por aqueles que consideram a sua vida malsucedida, pouco produtiva e realizadora, que lamentam as oportunidades perdidas e sentem que é tarde para se reconciliarem consigo mesmo e corrigir os erros anteriores. A indignação com os preconceitos e com as formas de discriminação vocalizada pelos velhos nem sempre é percebida como indicador de desespero. Muitas vezes é vista como uma manifestação da irritabilidade tida como uma característica do avanço da idade. Outras vezes, a indignação é tida como uma consequência de uma vida mal-administrada. Em meio às tão apregoadas vantagens que o envelhecimento traz, a raiva é tratada como um sintoma do consumidor que falhou porque não soube se envolver em atividades motivadoras, não soube adotar formas de consumo e estilos de vida adequados e que lamenta então as oportunidades perdidas. O mais frequente, no entanto, é desmerecer a crítica social como um sinal da depressão e que, portanto, precisa ser combatido com remédios adequados capazes de restabelecer o equilíbrio que se imagina próprio da velhice esperada e que pode ser facilmente reconquistado com a medicalização. O desinteresse das feministas pela velhice tem sido explicado pelo medo de envelhecer e pela repulsa ao corpo envelhecido, próprio do sexismo que marca as sociedades de consumo na sua glorificação da juventude e na destituição que se opera do poder dos velhos. É, no entanto, preciso reconhecer que as imagens descritas nesse artigo, em seu empenho de transformar, sobretudo a velhice feminina, em uma experiência gratificante e prestigiosa, engrossam a distância entre a luta contra a discriminação por idade e outros movimentos empenhados no

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combate às formas de opressão, emperrando o que poderia ser uma raiva sábia, capaz de promover articulações políticas, em particular quando imbuída da autoridade moral de homens e mulheres mais velhos.

Notas 1 Desenvolvo essas questões no dossiê “Gênero e gerações” publicado nos

Cadernos Pagu (DEBERT, 1999a). 2 Sobre o tratamento dado pela gerontologia e pela sexologia à sexualidade na

velhice, ver Debert e Brigeiro (2012). 3 É uma convenção internacional que nos países em desenvolvimento a velhice

teria início a partir dos 60 anos. 4 Sobre os velhos na propaganda, ver Debert (2003). 5 Desenvolvo esse tema de maneira mais demorada em Debert (1999). 6 Para uma discussão da hipocrisia que tem caracterizado o modo como a

família passa a ser responsabilizada pelos cuidados da velhice e a maneira com que um consenso entre os gerontólogos é criado, ver Debert e Simões (2006, 2011). Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 9-86 | maio-ago. 2013

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Carlos Eugênio Soares de Lemos Doutor em Ciências Humanas (Sociologia) pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS/UFRJ), professor adjunto da Universidade Federal Fluminense (UFF) e coordenador do Programa Universidade para Terceira Idade (Uniti), do Polo Universitário de Campos dos Goytacazes (PUCG), desenvolve trabalhos que relacionam temas como família, gerações, memória, discurso e envelhecimento. Os artigos “A sociologia da vida cotidiana e a universidade para a terceira idade: uma experiência de campo de estágio para o ensino de Ciências Sociais”, publicado no livro Dilemas e perspectivas da sociologia na educação básica, e “Oficina de educação, memória, esquecimento e jogos lúdicos para a terceira idade”, na Revista Ciência em Extensão, são suas publicações recentes.

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Resumo Este artigo problematiza as relações entre a solidariedade pública e privada, de modo a evidenciar que a precariedade das políticas de assistência ao idoso dependente é minimizada pela centralidade da ideia de ingratidão familiar, promovida pela criminalização do abandono e da negligência presente no Estatuto do Idoso. A relação entre as formas da lei e as práticas sociais está colocada em questão, pois, partindo de um modelo idealizado de família, a legislação desconsidera a pluralidade das configurações existentes. Nesses termos, no âmbito do Ministério Público Estadual, foram analisados doze processos que tratavam de situações de abandono e negligência envolvendo os idosos e os seus familiares. Dos casos pesquisados, foram escolhidos quatro para uma análise qualitativa das soluções encontradas, respondendo às demandas das famílias em situação de precariedade. Palavras-chave: Velhice. Negligência. Abandono. Criminalização. Família.

Abstract This article discusses the relationship between public and private solidarity, in order to highlight the precariousness of assistance policies to the dependent elderly, which is minimized by the central idea of ingratitude from family, caused by the criminalization of abandonment and negligence contained in the Statute of the Elderly. On the other hand, the relationship between the law and social practices is also questioned, since, from an idealized model of family, the legislation ignores the plurality of current configurations. Under these terms, in the framework of the Public Prosecutor’s Office, twelve cases that dealt with situations of neglect involving the elderly and their families were analyzed. Among the cases studied, four were chosen for a qualitative analysis of the solutions given to answer the demands of families in a precarious situation. Keywords: Aging, Neglect. Abandonment. Criminalization. Family.

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Introdução A filha abandonou a mãe no hospital. Nós fomos avisados e a mãe foi abrigada no asilo, que é a última opção. A gente não fica colocando em asilo como primeira opção. Ela não tinha pra onde ir, com uma fratura no fêmur. O que nós fizemos? Intimamos a filha. A filha não veio. Fomos atrás da filha. A idosa começou a entrar num processo de depressão: “O Ministério Público me prendeu no asilo.” Apesar de a assistente social do asilo ter explicado. Todo mundo ligando pra cá: “Dona fulana quer ir para casa, doutor. Faz o quê?”. “Ela não tem casa pra ir, ela não está presa” – respondo. “Mas ela está falando que o senhor prendeu ela aqui.” O asilo pode levá-la embora, mas pra onde você vai levar ela? Ela não tem casa. Aí achamos a filha, convencemos ela a nos acompanhar. Eu mandei o carro pra isso, levamos a filha no asilo pra conversar com a mãe, pra falar com a mãe que ela ia buscá-la, que a mãe não estava presa. Falamos com ela, pedimos apenas uma verificação de onde ela estava morando, se tinha condições da mãe ir morar com ela e deferir lá a reinserção familiar. Na hora de ir para casa... Cadê a filha? Sumiu de novo, não estava mais aonde a gente achou. A mãe está lá definhando, achando... A filha que sumiu, ela acha que a gente a prendeu. Ela não tem pra onde voltar. Como falar uma realidade dessas para aquela senhora? Aí você fica naquela, você chega pra ela e diz “sua filha largou a senhora aqui”. Como você fala isso? Primeiro, ela pode não acreditar no que você está falando. Segundo, ela pode entrar numa depressão maior ainda. E ela está definhando, essa senhora. O que a gente vai fazer? Eu peço à assistente social pra conversar com ela. O que ela quer não posso dar, porque não tem pra onde levála. Ela ainda não percebeu que a filha a abandonou e sumiu.1

Na Constituição Federal de 1988, a família é apresentada como a base fundamental da sociedade e a promotora da dignidade humana de todos os seus membros. O Estatuto do Idoso de 1992, embora reconheça de forma genérica o compromisso da sociedade e do poder público, também indica a família como a primeira grande responsável na transferência de apoio aos idosos dependentes (BOAS, 2005). Por sua vez, o Código Civil de 2002 possibilita a inferência de que a função da família seja a proteção dos seus membros, principalmente daqueles socialmente mais frágeis (ZARIAS, 2010). Enfim, nota-se que, nesses registros jurídicos citados, a ideia da família como segurança parece estar de acordo com certo consenso moral que norteia as representações das pessoas sobre o papel desta instituição, avaliada como mais eficaz do que qualquer outra na transferência de apoio aos seus membros (SARTI, 2004; ALMEIDA, 2007). 42

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Neste artigo, a família é abordada como uma relação que busca o fundamento de sua existência na lógica da reciprocidade e na narrativa que produz sobre o seu próprio curso de vida (SARTI, 2004). Assim, a ideia de “dar, receber e retribuir” está no horizonte “moral” que serve de referência para as falas dos entrevistados e para a análise dos relatos presentes nos processos do Ministério Público Estadual (CAILLÉ, 2002). Porém, é bom destacar que a perspectiva da reciprocidade não traz em si apenas a ideia de equilíbrio, mas também comporta a dimensão conflituosa das diferenças de poder relacionadas aos mais diversos papeis que o indivíduo assume na realidade social e, como não poderia deixar de ser, no interior da família. Isso significa dizer que as relações entre pais, filhos, irmãos podem ser muito tumultuadas ao longo do curso de vida. Não há, neste artigo, a intenção de uma abordagem das matrizes explicativas da construção desse “consenso” sobre a ideia de segurança da família e de condenação da ingratidão. Esse termo é definido aqui como a falta de reconhecimento por uma graça, um bem recebido ou um esforço feito por alguém em favor de outros. A gratidão, por sua vez, pode ser considerada um sentimento de singular importância para a estabilidade da vida social, tendo em vista que: O amor ou a cobiça, a obediência ou o ódio, a sociabilidade ou a ambição podem surgir a partir de um ato de uma pessoa para outra: o espírito criativo geralmente não se esgota no ato, mas, de alguma maneira segue adiante, na situação sociológica criada por eles. A gratidão possui uma persistência firme no sentido de sobrevivência de um ideal de relação, mesmo depois de tê-la deixado parada há muito tempo, e o ato de dar e receber há muito tempo concluído (SIMMEL, 1907, p. 789).

Portanto, tendo como referência a ideia de ingratidão, é importante perceber as tensões por trás dos silêncios que a criminalização da negligência e do abandono produz. Estas duas categorias foram definidas conforme a Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências. Desse modo, o abandono é designado como “a ausência ou deserção, por parte do responsável, dos cuidados necessários às vítimas, ao qual caberia prover custódia física ou cuidado”. E a negligência, por sua vez, como “a recusa, omissão ou fracasso por parte do responsável no cuidado com a vítima” (BRASIL, 2001a). Em tese, a legislação busca assegurar ao idoso o fim da situação de desamparo, o resgate da dignidade e, certamente, a melhoria de suas conSinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 9-86 | maio-ago. 2013

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dições de existência. Entretanto, no ato de criminalizar a família, o poder público desconsidera que uma configuração social deva ser pensada em sua interdependência com outras instâncias e condicionada pelo seu próprio curso de vida. Em geral, o que tem acontecido é o seguinte: A lógica de atendimento dos serviços, geralmente, está orientada para as famílias que por falimento ou pobreza falharam na responsabilidade de cuidado e proteção de seus membros. Nesta perspectiva, os interesses, tanto de natureza política como sociocultural, recaem sobre as formas diagnosticadas como marginais ou patológicas, o que justifica a concentração dos esforços em procedimentos terapêuticos de intervenção (MIOTO, 2004, p. 7).

O que se pretende neste artigo é problematizar a transferência de apoio por parte do poder público2 às famílias pobres e a seus idosos, de modo a perceber em que medida a precariedade dessa solidariedade é silenciada pela sobreposição da ideia de ingratidão que acompanha as denúncias de negligência e abandono nos processos do Ministério Público Estadual. Ao mesmo tempo em que garante juridicamente os direitos básicos do idoso, a legislação aponta para uma concepção privatista do processo de envelhecimento quando, em termos práticos, se aproveita do consenso sobre a ideia de gratidão como “horizonte moral da humanidade” (SIMMEL, 1907, p. 788) para colocar sobre a família a responsabilidade de resolver os problemas que estão além de suas condições de administrá-los sozinha.

1 Os caminhos percorridos O município de Campos dos Goytacazes, centro produtor de açúcar e petróleo, situado no norte do Estado do Rio de Janeiro, possui aproximadamente 463 mil habitantes e dentre esses cerca de 60 mil são idosos (IBGE, 2010). Trata-se de uma configuração singular, mas por mais que sejam assinaladas suas particularidades, não há como negar que nesse território estão impressas as marcas das contradições dos conjuntos maiores dos quais ele faz parte e dos quais também constitui um exemplo. Ele atrai as demais cidades do entorno devido aos recursos dos royalties do petróleo,3 a importância política, a oferta de serviços e pelas tradições históricas que sustenta. Das instituições que compõem a rede de assistência à terceira idade que existe nesse município, o Ministério Público Estadual tem se mostrado

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uma das mais abertas para parcerias e uma das mais interessadas na análise de sua relação com os usuários em uma perspectiva temporal. Afinal, cabe a ele adotar as medidas administrativas e judiciais na tentativa de protegê-los, conforme prescreve a legislação, a exemplo do que propõe o Estatuto do Idoso. Para tanto, empreende sindicâncias e faz uso do inquérito civil e da requisição de inquérito policial (BOAS, 2005). Assim, várias outras instâncias, como asilos e hospitais, recorrem ao Ministério Público Estadual quando se encontram diante de uma situação de violência contra o idoso. Para o desenvolvimento deste artigo, foram selecionados doze processos do Ministério Público Estadual, entre os anos 2006 e 2008. A partir deles, realizou-se a análise de conteúdo dos relatos sociais de inquéritos civis envolvendo acusações de abandono e negligência nos quais membros da família dos idosos figuravam como responsáveis. Ao utilizar categorias predefinidas (denunciante, denunciado, descrição do fato etc.) de acordo com os objetivos estabelecidos, procurou-se designar um quadro comparativo em que se pudesse ter uma visão geral das configurações familiares em questão e do desdobramento do processo no que diz respeito à solução do litígio. Para tanto, escolhemos quatro casos a título de ilustração. Cabe destacar que os nomes dos envolvidos não são citados para a proteção jurídica dos mesmos. Dos processos analisados, foram escolhidos aqueles em que os idosos recebem apenas um salário mínimo e a família é caracterizada como pobre. A definição de pobreza adotada tem como referência as dimensões de caracterização do Índice de Desenvolvimento da Família (IDF), com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Assim, foram levados em consideração três critérios passíveis de serem observados ou inferidos no decorrer da análise: a vulnerabilidade, destacada a presença de sujeitos que concorrem para ampliação das necessidades da família, como nos exemplos de idosos dependentes e crianças; a disponibilidade de recursos, relacionada à renda per capita de cada grupo doméstico; e condições habitacionais, destacando o vínculo estreito dessas com as condições de saúde.4 A maior parte dos indivíduos envolvidos no processo enquadra-se nas faixas D e E, segundo a Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio de 2008, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

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Depois da análise documental foram realizadas entrevistas informais e formais semiestruturadas com os funcionários do Ministério Público Estadual, ou seja, assistentes sociais, psicólogos e o promotor. Nas entrevistas, os cuidados tiveram que ser redobrados, pois, no primeiro momento, por ocuparem cargos de confiança ou por segredo de justiça, certos entrevistados não puderam pormenorizar alguns dos casos relatados. Assim, as dificuldades encontradas não estiveram restritas às questões subjetivas de como cada profissional encarava a situação vivenciada, mas também às limitações impostas pelos códigos de ética das profissões. Enfim, a investigação que deu origem a esse artigo contou com a autorização do Ministério Público Estadual, o aceite de participação dos entrevistados e teve a aprovação do Colegiado de Pesquisa do Polo Universitário de Campos dos Goytacazes e pelo Colegiado da Universidade para a Terceira Idade, da Universidade Federal Fluminense, sendo autorizada pelo protocolo 001-2011.5

2 Os casos relatados nos processos A violência praticada contra o idoso nos centros urbanos é um tema que vem sendo investigado nos últimos anos (SARAIVA; COUTINHO, 2012; DESLANDES; SOUZA, 2010; PAIXÃO JUNIOR; REICHENHEIM, 2006; MINAYO, 2003) e tem apresentado certas regularidades em sua tipologia, como nas que são apontadas pelo Gráfico 1, sobre o número de denúncias ocorridas nos primeiros meses do ano 2010 para a cidade aqui retratada. Deve-se considerar que as situações discriminadas se apresentam combinadas e nem sempre é possível distinguir quando começa uma e quando termina a outra. De qualquer forma, é um indicativo do que chega ao conhecimento do poder público local, tendo em vista que os profissionais são unânimes em afirmar que a maior parte das agressões não chega ao conhecimento das autoridades. Essa situação ocorre em função de várias razões, sendo a mais importante o fato de o agressor ser integrante da família da vítima e, em diversos casos, ambos morarem na mesma casa ou se visitarem com frequência.

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Gráfico 1: Número de registro de casos de violência praticada contra idosos, jan./

março de 2010, em Campos dos Goytacazes 30 25 20 15 10 5 0

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Fonte: Núcleo de Violência Contra os Idosos. Centro Dia/2010. Conselho Municipal do Idoso (LEMOS, 2008)

De modo geral, os casos denunciados de negligência e abandono são resolvidos sob a alçada do Ministério Público Estadual. Muito raramente os processos passam do inquérito administrativo, pois, na audiência em que os denunciados são reunidos para discutir a situação de desamparo do idoso, quase sempre se chega a um acordo de como reverter o quadro em questão. Embora os casos não sejam encaminhados para a justiça criminal, a ideia de que a negligência e o abandono sejam considerados um ato criminoso paira sobre o horizonte das representações dos envolvidos no litígio. Nos relatos sociais dos processos analisados, a ideia da reciprocidade como fundamento da vida familiar servindo de amparo para o idoso nessa fase da vida é um ponto de acordo entre os litigantes, promotor, psicólogos e assistentes sociais. Não obstante, na perspectiva dos denunciantes, os inquiridos se encontram ali justamente por não corresponderem à expectativa de tal transferência de apoio aos seus pais, tios ou familiares. Tanto é que a negligência figura como uma das práticas mais denunciadas nas instituições que prestam algum tipo de assistência ao idoso semidependente ou dependente.6 Dos quatro inquéritos analisados, pode-se observar que em três deles as vítimas têm idade acima de setenta anos, os denunciantes e denunciados são os próprios filhos, o fato denunciado segue certo padrão em que os idosos se encontram doentes e apresentam dificuldades para a realização das atividades da vida diária e reclamam pela ausência de alguns dos seus filhos, de acordo com o apontado a seguir:

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Quadro 1: Descrição dos quatro casos analisados Caso

Denunciante

Denunciado (s)

Vítima (s)

Descrição do fato

1

Mulher de 50 anos, filha da “vítima”.

Sete dos 11 irmãos (duas mulheres e nove homens, idades não fornecidas); filhos naturais.

Idosa de 81 anos, viúva, acamada e cega, pensionista de um salário mínimo.

Idosa não recebia apoio, vivendo em abandono afetivo e material.

Idosos não recebiam apoio material e afetivo, ficando sozinhos a maior parte do tempo.

2

Homem de 46 anos, filho e sobrinho das vítimas.

Três irmãos (duas mulheres e um homem), filhos naturais.

Idoso de 64 anos, viúvo, hipertenso e com sequelas de AVC, sem proventos. Idosa de 67 anos (irmã do idoso), solteira, sem filhos, diabética e com problemas psiquiátricos, pensionista de um salário mínimo.

3

Homem de 56 anos, filho da vítima.

Três irmãos (todos homens).

Idosa de 84 anos, viúva e solitária, pensionista de um salário mínimo.

Idosa é negligenciada e abandonada afetivamente pelos filhos.

4

Anônima.

Sete dos oito filhos (três mulheres e quatro homens).

Idosa de 92 anos, saúde precária e pensionista de um salário mínimo.

Idosa não recebia apoio material e afetivo, ficando sozinha a maior parte do tempo.

Fonte: Inquéritos do Ministério Público Estadual.7

Os denunciantes partem de um consenso sobre a segurança da família e por isso acionam a justiça. É uma denúncia que se origina no interior da rede de convivência, decorrente de um embate entre aqueles que se conhecem e fazem exigências morais entre si. Assim, um irmão acusa o outro quando acredita que este tem “condições” de transferir apoio e simplesmente não o faz. Em três dos casos analisados, os filhos denunciantes justificam o teor de sua acusação e os denunciados se defendem conforme o esquema seguinte: Quadro 2: Justificativas dos denunciantes e dos denunciados Caso

Justificativa do denunciante

Justificativa do (s) denunciado (s)

1

Sobrecarga financeira e de cuidado da idosa para quatro dos 11 irmãos.

Não tinham como ajudar por terem a sua própria família, falta de tempo e dinheiro.

2

Ele, divorciado, pai de dois filhos, cumprindo dupla jornada de trabalho, arcava com todas as despesas da casa.

Desmentiram o irmão denunciante. Aceitavam cuidar do pai, mas não da tia com a qual não se davam bem.

3

Os irmãos não apareciam para visitar a mãe e não ajudavam financeiramente.

Não tinham como ajudar por terem a sua própria família, falta de tempo e dinheiro.

4

A idosa tinha oito filhos e uma pensão. Apesar disso vivia uma vida de abandono e privação.

Acusações mútuas e o argumento de que tinham a sua própria família.

Fonte: Inquéritos do Ministério Público Estadual

Como é possível inferir das justificativas dos envolvidos, a discussão se dá em torno da situação de abandono do idoso e de quem deve se responsabilizar pe-

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los cuidados com ele. Em três dos quatro processos, o encargo fica sob a responsabilidade de uma pessoa apenas. Nota-se que é do conhecimento de todos os outros que um irmão estava cuidando sozinho do pai/mãe/ tia. Antes da denúncia dos declarantes e da notificação da promotoria, conforme os autos dos processos, os irmãos acusados mostravam-se “despreocupados” em relação às condições vivenciadas pelos pais, visto que, há tempos, por razões diversas (trabalho, doença, viagem, entre outras) não faziam visitas aos mesmos. Na visita social realizada ao domicílio dos idosos pelos assistentes sociais do Ministério Público, verificou-se que em todos os casos analisados a denúncia correspondia à realidade encontrada. Contudo, temos a seguinte análise da profissional que fez a visita: Acredito que a família seja responsável pelo cuidado de seus membros, devendo assisti-los, porém, é preciso que tenha condições básicas de inserção social e de cidadania para que possa cumprir o papel que lhe é atribuído social e legalmente. Essa é a parcela da esfera pública. É necessário o investimento em projetos como o Centro Dia,8 hospitais, centros de convivência, treinamento intensivo de cuidadores de idosos.9

Estar em companhia dos familiares não garante a eles, necessariamente, o conforto e o apoio para a realização de suas atividades básicas da vida diária. Em um dos processos, a idosa se encontrava em boas condições de moradia, em outro em condições razoáveis e em dois dos casos os idosos estavam em condições impróprias, com fome, em meio à sujeira, com falta de medicação e sem assistência, conforme o resumo do Quadro 3: Quadro 3: Resumo das condições dos idosos Caso

Visita social do Ministério Público Estadual

1

A idosa se encontrava lúcida e as condições em que vivia eram razoáveis. Contudo, dormia na sala em um colchonete e no telhado tinha casas de marimbondo. Por ter problemas de locomoção e cegueira, fazia suas necessidades em um balde colocado ao lado da cama. Reclamava muito, pois queria voltar para casa e não queria ouvir reclamações dos filhos sobre o trabalho que ela dava. A filha denunciante administrava a pensão.

2

A casa estava em péssimas condições de higiene, havia comida destampada, restos pela mesa e pelo chão, as paredes sem reboco e um forte cheiro de urina que exalava por todo o recinto. O idoso, apesar de não poder se locomover, não era senil, pelo contrário, mostrava-se bastante lúcido. A idosa aparentava ter comprometimento psiquiátrico, falava de maneira compulsiva e incoerente. O filho denunciante administrava a pensão dos dois.

3

A casa foi encontrada em boas condições de higiene, a idosa bem cuidada e lúcida. O filho denunciante administrava a pensão dela.

4

A idosa foi encontrada sozinha, em péssimas condições de higiene e sem alimentos em casa. Estava doente e com fome, tendo apenas uma garrafa de água na geladeira. Havia poucos móveis na casa e a suspeita de que a nora vinha vendendo-os para benefício próprio. O imóvel era antigo, de cinco cômodos, telha de amianto, sem iluminação adequada e com parca ventilação. A idosa dormia em uma cama de solteiro localizada na sala. Uma das filhas administrava a pensão da idosa.

Fonte: Inquéritos do Ministério Público Estadual.

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Nos depoimentos e discussões dos envolvidos é possível inferir o reconhecimento de uma dívida moral com os pais. Tanto é assim que em nenhum dos processos é sugerido publicamente a possibilidade de colocá-los em um asilo. Em três dos casos, a solução foi o revezamento dos cuidados entre os filhos. Em um deles a contratação de uma cuidadora e em outro a frequência ao Centro Dia. Em todos os casos, os filhos se colocam contrários ao asilamento e em um deles o denunciante sequer aceita a ideia de uma cuidadora, pois, em sua opinião, os vários filhos poderiam cumprir essa função. Donde se pode inferir a pressuposição da existência de uma rede que, de algum modo, deveria estar funcionando e no entanto até aquele momento não estava, como apontam os dados a seguir: Quadro 4: Soluções encontradas e andamento dos processos Caso

Apoio do poder público

Solução encontrada

Desdobramentos

Fornecimento de fraldas.

Três irmãs se revezariam no cuidado da mãe ao longo da semana. No final da semana teriam uma cuidadora. Todos contribuem com uma quantia mensal.

Retorno do denunciante ao Ministério Público Estadual, pois dois dos irmãos deixaram de fazer a visita e de contribuírem com dinheiro.

Oferta de uma vaga no Centro- Dia.

Ficou estabelecido que durante o dia o pai frequentaria o Centro Dia e as irmãs se revezariam para cuidarem dele no restante do tempo. Observação: a tia faleceu no decorrer do processo.

Retorno do denunciante ao Ministério Público Estadual para reclamar da forma negligente com que duas das irmãs vinham fazendo as tarefas que lhes foram designadas.

3

Nenhum foi registrado.

Acordo informal malsucedido. Por isso foi preciso a mediação do Ministério Público Estadual. Decidiu-se que os irmãos prestariam auxílio financeiro à mãe. No dia em que o denunciante não pudesse cuidar da mãe, os outros irmãos se encarregariam de fazê-lo.

Em um primeiro momento, o denunciante tentou um acordo informal. Como os irmãos não se comprometeram, ele retornou ao Ministério Público Estadual para formalizar a denúncia.

4

Nenhum foi registrado.

Contratação de uma cuidadora com despesas a serem divididas entre os irmãos. Esquema de revezamento de cuidado da mãe entre todos nos fins de semana, principalmente as irmãs.

Não foi registrado retorno.

1

2

Fonte: Inquéritos do Ministério Público Estadual.

Nota-se que em nenhum momento os envolvidos fazem alusão ao papel que caberia ao poder público em lhes fornecer alguma ajuda nos cuidados com os seus idosos dependentes. Nesses termos, é possível perceber que, tanto antes quanto depois da resolução dos casos, a participação do poder público só foi significante em um dos casos. Nos outros, a solução encontrada pelos envolvidos foi a transferência de apoio dos familiares e o uso dos parcos recursos existentes para contratar o serviço de um cuidador formal no mercado. No que se refere aos desdobramentos, os 50

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denunciantes ficaram encarregados de entrar em contato com o Ministério Público Estadual para informar sobre o cumprimento do acordo. No único caso em que o poder público atua diretamente, oferece-se uma vaga no Centro Dia. Trata-se de um centro geriátrico público que, de acordo com o proposto pelo Estatuto do Idoso, busca resgatar os vínculos dos usuários com os seus familiares, de forma que a situação de abandono não chegue a ocorrer. Nesse sentido, oferece uma rede de serviços profissionais para recuperar a saúde do idoso e diminuir o seu nível de dependência. Esses serviços são oferecidos em horários diferenciados e cada idoso tem o tratamento personalizado de acordo com o seu quadro. O atendimento é temporário, pois assim que o idoso se recupera deve dar lugar a outros que também precisam. Mesmo assim, o ambulatório geriátrico continua a atender a todos, tanto aos usuários do projeto quanto aos não usuários. Diante do apelido de “creche dos idosos”, os profissionais entrevistados percebem a instituição mais como um centro de reabilitação e resgate da autonomia do que uma mera instituição de cuidado formal do usuário. A preocupação que parece evidente é a de não ser identificada com uma espécie de asilo diurno. O Centro Dia funciona das 7h às 19h, de segunda a sexta-feira. Não há funcionamento nos finais de semana e nos feriados, o que casa com a ideia de que nesses dias os idosos estarão em casa, acompanhados dos seus familiares. Os usuários do programa têm direito a três refeições, o café da manhã às 8h, o almoço às 12h e o lanche às 15h30. Os horários podem ser modificados de acordo com as recomendações médicas. Um veículo da prefeitura vai buscá-los em casa pela manhã e, quando chega à noite, leva-os de volta. Contudo, dentro de uma cidade em que a população de idosos soma mais de 40 mil pessoas (IBGE, 2010), o Programa tem espaço para atender a apenas 26 pessoas. O que torna pertinente perguntar se em uma perspectiva de política social o efeito é tão abrangente quanto é propagado pelo poder público municipal.

3 Discussão A importância da família na transferência de apoio aos idosos dependentes é fato incontestável no atual estágio civilizatório. Essa perspectiva Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 9-86 | maio-ago. 2013

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está em sintonia com os trabalhos que partem da teoria do intercâmbio social, abordagem que considera que o indivíduo, no decorrer da vida, assume tanto o papel de provedor quanto o de receptor de apoio, ou seja, é o fundamento da interação social (SAAD, 1999). Porém, é bom ressaltar que nem todos os idosos dependentes possuem família e, no caso de possuírem, nem todas as famílias, ainda que extensas, têm como arcar sozinhas com eles. Ainda assim, [...] temos observado que, à medida que o Estado restringe sua participação na “solução” de questões de determinados segmentos – como, por exemplo, crianças, adolescentes, idosos, portadores de deficiências e pessoas com problemas crônicos de saúde – a família tem sido chamada a preencher esta lacuna, sem receber dos poderes públicos a devida assistência para tanto (GUEIROS, 2002, p. 102).

As carências dos familiares vão das questões afetivas às materiais, da falta de tempo por causa das jornadas de trabalho ao desconhecimento acerca das especificidades que envolvem o envelhecimento de um ser humano. Nos casos analisados, os irmãos dividiram entre si as responsabilidades. No entanto, em um futuro próximo, com as transformações ocorridas no número de filhos do núcleo familiar, há de se perguntar se essa rede de proteção poderá funcionar com o mínimo de eficácia. Nos moldes como se apresenta no Estatuto do Idoso, a criminalização do abandono soa como um encobrimento que desvia a atenção do aspecto que deveria ser considerado crucial para a resolução do problema: uma política consistente e concreta de apoio ao idoso em situação de dependência, marcada pela ação combinada da família e do poder público. Essa criminalização, quando desvinculada de uma política social sistemática, mascara a falta de comprometimento efetivo do poder público com a velhice fragilizada. O que não é uma novidade se for levada em consideração a forma subsidiária com a qual o Estado vem tratando esse assunto ao longo do século XX (MESTRINER, 2001). Em boa parte dos inquéritos, verificou-se que vários são os problemas colocados pelos acusados para justificar a não transferência de apoio aos idosos. O primeiro deles é o de terem constituído a própria família e esta já demandar muita dedicação. O segundo é de serem assalariados, desempregados ou com empregos informais (“bicos”), não dispondo de recursos extras que possam ser transferidos. O terceiro é de estarem com 52

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problemas de saúde, não possuírem condições físicas e psicológicas de cuidarem de outra pessoa ou de realizarem visitas. E, por fim, em quase todos os casos, há o argumento de não terem uma boa relação com os irmãos, principalmente com aqueles que “apanharam” para si a responsabilidade de cuidarem dos pais. Semana passada, tinha dez filhos, situação de abandono com dez filhos. Alguma coisa está errada aí. Nós fizemos essa audiência. Normalmente, eles argumentam uma dificuldade própria, outras vezes que não têm dinheiro. Às vezes são as dificuldades de trabalho, ou estão sem tempo. Só que a gente percebe que quando chegam a minha frente, não têm muito o que dizer... Na verdade pedem desculpa. Então, esse mês já fizemos umas três ou quatro audiências, em todas saíram acordos. Ninguém partiu para brigar. Eu procuro conduzir de uma maneira pra não deixar espaço pra bate-boca. Entre os irmãos, se você der margem, não sai acordo nenhum.10

De modo geral, o filho que mora com o idoso ou próximo a ele, solteiro ou separado, e principalmente mulher, se encarrega de cuidar dos pais. Em todos os casos, ainda que haja a participação masculina, são as filhas e noras que se desdobram nos cuidados dos idosos dependentes. Nesses termos, há uma sobrecarga para as mulheres, tendo em vista que a dedicação aos estudos, ao trabalho e à busca da realização profissional levou a mulher para o espaço público, restando-lhe pouco tempo para uma obrigação que antes era considerada atribuição exclusivamente sua. Se, por um lado, o idoso dependente funciona como uma dificuldade a mais colocada para a realização do projeto pessoal do filho, por outro lado, nos casos em que os idosos gozam de autonomia, eles são um importante apoio para a rotina da família. Há análises que demonstram o aumento da situação de codependência (BERTUZZI; PASKULIN; MORAIS, 2012; SAAD, 1999), pois a aposentadoria dos pais é uma renda importante para o orçamento familiar. Eles também exercem o papel de babá dos netos para que os filhos possam trabalhar, assim como também oferecem apoio emocional nos momentos de fragilidade de outros membros da família. Destacam-se os casos daqueles idosos que mesmo doentes representam uma fonte de renda para os seus familiares, como foi possível perceber no acompanhamento de um dos casos analisados no Ministério Público Estadual, não apresentado no quadro comparativo. Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 9-86 | maio-ago. 2013

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O que se pode concluir da análise feita é que o idoso não é tão dependente. Pelo contrário, com a crise econômica e o desemprego que têm afetado sobremaneira a população adulta jovem, o seu papel tem sido fundamental para o sustento das famílias, sem falar do apoio emocional que os dados aqui utilizados não permitem mensurar (CAMARANO; GHAOURI, 1999, p. 304).

O problema do abandono e da negligência encontra-se inscrito justamente na discussão das “obrigações” de reciprocidade que a intimidade construída no curso de vida acarreta, dentro de um contexto marcado pela predominância do que Velho (1999) chama de “individualismo agonístico” ou que Singly (2007) aponta como “processo de individualização”. Somada a isso, ainda há a dificuldade dos mais jovens entenderem o envelhecimento por não terem uma base de experiência própria e, também, pelo fato de que, de maneira geral, “o processo de envelhecimento produz uma mudança fundamental na posição de uma pessoa na sociedade e, portanto, em todas as suas relações com os outros” (ELIAS, 2001, p. 83). Contudo, no que tange às relações de poder no interior da família, deve-se levar em consideração o curso de vida das configurações analisadas. A estrutura familiar não é um determinante da forma como se dá a solicitude, ou do modo das pessoas cuidarem de sua relação numa família. Duas famílias com a mesma composição podem apresentar modos de relacionamento completamente diferentes. O que conta, nesse caso, são suas histórias, a classe social de pertencimento, a cultura familiar e sua organização significativa do mundo (SZYMANSKI, 2002, p. 17).

Nos casos vistos nos inquéritos, alguns filhos se ressentiam de que suas relações com a família tinham sido tumultuadas ao longo da vida, sendo que, de acordo com suas opiniões, os pais manifestavam claramente a preferência por certos filhos. E aqui reside um ângulo aparentemente contraditório da questão. Se, por um lado, a desavença entre os irmãos atrapalhava o funcionamento da rede, por outro lado, também possibilitava a denúncia e o controle das ações entre eles, o que acabava revertendo em busca de proteção para o idoso, já que a situação ganhava visibilidade. A solidariedade intergeracional geralmente é pensada pelos envolvidos a partir do curso de vida do idoso e da qualidade da rede que ele ajudou a construir. Nesse sentido, entende-se o termo rede como “o conjunto

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das pessoas com quem o ato de manter relações de pessoa a pessoa, de amizade ou de camaradagem, permite conservar e esperar confiança e fidelidade” (CAILLÉ, 2002, p. 65). Porém, essa esperança de confiança e fidelidade não funciona de acordo com as expectativas alimentadas pelos idosos que se descobrem em situação de desamparo. Ainda que as suas falas não sejam o material prioritário deste artigo, nas oportunidades em que foram registradas, deixaram transparecer uma mistura de profunda tristeza e de sentimento de culpa pela ausência dos familiares. Na perspectiva do poder público, quando ocorre o desamparo, independente desse curso de vida, os elementos da rede devem ser chamados à responsabilidade sob a ameaça de serem acusados de um crime. Levando ao extremo o que propõe o Estatuto do Idoso, se a solidariedade à velhice fragilizada não ocorre pelos caminhos da reciprocidade de suas interações, ela ocorrerá sob a batuta do dispositivo legal. Assim, o indivíduo que se encontra em situação de abandono deve buscar nessa mesma rede que lhe nega, ou que não pode lhe oferecer solidariedade, o amparo que o poder público não disponibiliza de forma integral, muito embora alguns serviços existam e se mostrem eficientes apesar da capacidade limitada de atendimento, como é o caso do serviço social. Diante da ausência de políticas de proteção social que deveriam ser implantadas pela esfera pública, deparamos, no nosso cotidiano profissional, com a pressão para que encontremos junto à família respostas para graves situações vividas pelos indivíduos que delas fazem parte. [...] Logo entenderemos que esse núcleo familiar, por si só, não dispõe do básico para promover a integração social e o desenvolvimento pessoal de seus membros (GUEIROS, 2002, p. 119).

Existe na cidade aqui estudada um conjunto de instituições que prestam algum tipo de assistência aos idosos semidependentes ou dependentes. Em todas elas, a demanda pelos serviços supera a capacidade de atendimento, como no exemplo do Centro Dia. Existem dois “asilos” que não têm condições de atender a mais de 120 pessoas. E esse é um sério problema que vem crescendo com o envelhecimento da população e as mudanças nas configurações familiares. A maioria dos casos que chegam ao Ministério Público Estadual referese a situações vividas por famílias pobres ou remediadas. A ausência de uma estrutura pública de apoio torna ainda mais difícil o desafio da Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 9-86 | maio-ago. 2013

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velhice dependente. Nota-se que os idosos são portadores de doenças crônicas ou vivenciam algum tipo de situação em que as atividades funcionais do dia a dia ficam parcialmente comprometidas. De acordo com a doença, demandam tratamentos sistemáticos, remédios caros, acompanhamento médico, terapias físicas e cognitivas, entre outros. Esse desafio pode ter um alto custo físico e emocional para a família. E o que mais salta aos olhos é que não há quem cuide do cuidador informal de idosos. A demanda dos idosos não é só de natureza material, a reclamação também é por atenção e afeto. Assim, emergem algumas questões. Devem ser processados os filhos que abandonam afetivamente os seus pais idosos dependentes? Caso a resposta seja sim, outro problema pode ser levantado: em que medida um processo dessa natureza reverterá a situa­ ção de desafeto? Não tenderia a piorá-la? Olha só que coisa esquisita. Como é que você resolve no Direito o que a gente chama de “a obrigação de fazer”? A gente entra com uma ação contra o filho, fixa uma multa se ele não aparecer. O cara vai e diz “eu prefiro pagar a multa.” Isso só enfatiza o drama. A pessoa vai lá obrigada, já pensou? Fica lá e... “Acabou? Então vou embora.” Ou então vai e fica quieta. É um negócio que, sinceramente, é difícil, uma situação que o Direito não resolve. Amor e afeto, o Direito não resolve.11

A legislação estabelece que, dentro de suas condições, o filho é obrigado a transferir apoio para os pais fragilizados. No entanto, como indica o promotor, obrigá-lo a estar presente de boa vontade, cuidar do outro, dar afeto, é algo que foge do controle do campo do Direito. Desse modo, conforme sugere Simmel (1907), nas relações que fogem à regulamentação somente a gratidão pode responder com eficácia. Mas existem numerosas relações para as quais o estatuto jurídico não ocorre, e o equivalente da dedicação não pode ser imputado. Aqui se encontra a gratidão para a representação do direito e do circuito, se não de outras forças, de um grupo de interação: o equilíbrio entre o dar e o receber entre as pessoas (SIMMEL, 1907, p. 786).

Nos casos analisados, as famílias são relativamente grandes, compostas de quatro a onze irmãos. As configurações e modelos de família no Brasil vêm passando por significativa transformação nas últimas décadas. Entretanto, a legislação ainda opera com uma concepção de família natural e universal do passado, principalmente no que diz respeito a sua con-

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figuração e extensão (DEBERT; SIMÕES, 2006). Nesse sentido, para uma avaliação mais próxima da dinâmica das práticas sociais dos envolvidos seria necessário que a ordem legal partisse de uma concepção mais plural de família. Pensar a família como uma realidade que se constitui pelo discurso sobre si própria, internalizado pelos sujeitos, é uma forma de buscar uma definição que não se antecipe à realidade da família, mas que nos permita pensar como a família constrói, ela mesma, sua noção de si, supondo evidentemente que isso se faz em cultura, dentro, portanto, dos parâmetros coletivos do tempo e do espaço em que vivemos, que ordenam as relações de parentesco (entre irmãos, entre pais e filhos e entre marido e mulher (SARTI, 2004, p. 14).

Muito embora, as orientações da Constituição Federal de 1988 e do Estatuto do Idoso permitam forçar a aproximação dos filhos, sempre ficam as questões: concorreria para a dignidade do idoso a presença de um filho que deixa transparecer a sua insatisfação por estar sendo obrigado a visitá-lo? Esse fato não aumentaria ainda mais o drama da rejeição? Deveria o idoso decidir? O que demonstra que a positividade da lei esbarra na dinâmica das interações sociais. Assim, existem esferas das interações que o Direito, por mais que se proponha, não poderá abarcar jamais.

Considerações finais Os significados da negligência e do abandono de idosos são resultados das experiências de interação vivenciadas pelos indivíduos e das respectivas interpretações que estes fazem dos fatos em função dos seus interesses e dos seus valores. No entanto, tais significados também estão circunscritos pelas dimensões materiais e práticas normativas da vida social, que procuram definir previamente quais são os limites e os sentidos do que cada um deve entender quando se pronunciam as palavras negligência e abandono. Tanto é que, quando confrontadas as interpretações dos agentes sociais envolvidos e as práticas normativas legais do poder público, percebe-se a dificuldade de se chegar a um acordo sobre a natureza sociológica e jurídica do abandono e também da forma de se proceder em relação à situação para resolvê-la. A Constituição Federal de 1988 estabelece a família como a pedra fundamental da sociedade e coloca, como função do poder público, a tarefa de

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protegê-la e de promover o seu bem-estar. Essa proteção e promoção são asseguradas a cada um dos seus membros individualmente, de forma a coibir a violência nas interações estabelecidas e contribuir para o desenvolvimento equilibrado da instituição. Se, por um lado, ao criminalizar a negligência e o abandono, o objetivo primeiro é o de proteger a dignidade de um de seus membros, no caso o idoso, por outro lado, quando não se oferece uma estrutura de apoio para que se possa enfrentar o desafio da velhice dependente, o próprio poder público promove um abandono ainda maior: o da família que realmente não tem como lidar com tal dependência. A criminalização do abandono é um processo paradoxal para o idoso dependente, quando os dois níveis de garantias estão desvinculados: os aspectos jurídicos que defendem a dignidade e as políticas sociais efetivas que viabilizam o exercício da mesma. Tendo em vista que, nos casos das famílias de baixa renda, o cuidado com o idoso dependente não tem como acontecer eficazmente sem a transferência do apoio público, já que os custos financeiros, físicos e emocionais são altos demais para os cuidadores informais. Assim, aqueles que, teoricamente, seriam os principais contemplados com a lei, podem vir a ser os mais penalizados, ou seja, os próprios idosos. E, ainda por cima, tal situação contribui para que as famílias, que realmente não disponham de condições para manter os seus idosos juntos a si, sejam vistas como criminosas.

Notas 1 Entrevista concedida pelo promotor de justiça do Ministério Público Estadual

de Campos dos Goytacazes, Rio de Janeiro, em maio de 2006. O anonimato foi mantido em todas as entrevistas citadas por medida de segurança dos entrevistados. Agradecemos o apoio do Ministério Público Estadual e da Universidade para a Terceira Idade do Polo Campo dos Goytacazes na elaboração desta pesquisa. 2 Embora o poder público seja constituído pelas três esferas, aqui o foco será o

executivo, seja em nível municipal, estadual ou federal. 3 Os royalties são um pagamento de direito, uma compensação financeira

que as empresas e produtoras de petróleo devem aos estados e municípios

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em cujos territórios o recurso é explorado. O pagamento é feito mensalmente. Dentre as cidades do estado do Rio de Janeiro que recebem royalties, Campos dos Goytacazes é a principal beneficiada. Para maiores informações, consultar: www.royaltiesdopetroleo.ucam-campos.br/. 4 O Índice de Desenvolvimento da Família (IDF) é um indicador produzido

pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e é composto a partir de seis aspectos: vulnerabilidade; acesso ao conhecimento; acesso ao trabalho; disponibilidade de recursos; desenvolvimento infantil e condições habitacionais. Ele permite o acompanhamento detalhado das famílias pobres no cadastro único do governo federal. Ainda que as famílias retratadas no relatório do Ministério Público Estadual não se enquadrem no padrão do Programa Bolsa Família de renda per capita inferior a meio salário mínimo, elas apresentam dificuldades similares de sobrevivência 5 Após a investigação preliminar dos processos de 2006-2008, a partir de um

acordo de cooperação realizado pela Universidade Federal Fluminense com o Ministério Público Estadual, a Universidade para a Terceira Idade, do Polo Universitário de Campos dos Goytacazes, estabeleceu com o Ministério Público Estadual local uma parceria para uma análise e classificação dos processos existentes até o ano 2012. 6 Do ponto de vista geriátrico, o conceito de dependência está associado à

ideia de vulnerabilidade aos condicionantes do meio externo. Assim, pode ser entendida como uma ajuda indispensável para a realização das tarefas fundamentais da vida (CALDAS, 2003). Contudo, conforme propõem Baltes e Silverberg (1995), deve-se considerar a dinâmica da dependência-autonomia no desenvolvimento do curso de vida. 7 Os dados apresentados neste e nos quadros a seguir são resultados de uma

pesquisa realizada por mim no Núcleo de Atendimento ao Idoso em Situação de Violência, da Secretaria de Saúde e Assistência do município de Campos dos Goytacazes, Rio de Janeiro, 2010. 8 É um programa de atenção integral às pessoas idosas que por suas carências

familiares e funcionais não podem ser atendidas em seus próprios domicílios ou por serviços comunitários. Caracteriza-se por ser um espaço para atender idosos que possuem limitações para a realização das Atividades de Vida Diária (AVD), que convivem com suas famílias, porém não dispõem de atendimento de tempo integral no domicílio (BRASIL, 2001b). 9 Entrevista concedida pela assistente social do Ministério Público Estadual de

Campos dos Goytacazes, Rio de Janeiro, em 2006. 10 Entrevista concedida pelo promotor de justiça do Ministério Público Estadual

de Campos dos Goytacazes, em 2006. 11 Entrevista concedida pelo promotor de justiça do Ministério Público Estadual

de Campos dos Goytacazes, em 2006.

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Entre o Estado, as famílias e o mercado

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Alda Britto da Motta Bacharel e mestre em Ciências Sociais. Doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professora e pesquisadora dos programas de pósgraduação em Ciências Sociais e em Mulher, Gênero e Feminismo, da UFBA, e pesquisadora do CNPq. Seus trabalhos tratam das relações de gênero e intergeracionais, com ênfase no processo de envelhecimento. Os artigos “Mulheres velhas. Elas começam a aparecer”, publicado no livro História das mulheres no Brasil e “Mulheres: entre o cuidado dos velhos e a reprodução dos jovens”, publicado na revista ex aequo, estão entre suas publicações mais recentes.

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Resumo A violência pode ocorrer em todas as idades, com diferentes expressões ou intensidades, conforme a condição geracional e o gênero de quem é objeto e os espaços sociais em que repercute. Pode se iniciar na infância, continuar na vida adulta e assumir formas específicas na velhice, quando mostra uma expressão chocante das relações intergeracionais, já que nesse momento da vida a violência apresenta-se exercida majo­ ritariamente por filhos, filhas e netos, como demonstram pesquisas recentes. Além dos casos de violência doméstica, multiplicam-se outras formas específicas de violência pública contra o idoso e a idosa, inclusive as definidas na Política Nacional de Redução de Acidentes e Violência (2001), como o abuso econômico e o uso não consentido de seus recursos financeiros e patrimoniais. Embora essas modalidades de abuso ocorram sobretudo no âmbito familiar, estão crescendo também em outras instâncias. Um exemplo são os assédios constantes e as transações fraudulentas praticadas contra idosos como consequência da expansão do crédito consignado estimulado pelo governo federal. É necessária, portanto, a discussão dessa questão que afeta principal e dolorosamente as idosas, sempre vistas em sua real ou suposta fragilidade. Palavras-chave: Violência. Velhice. Gênero. Política. Crédito consignado.

Abstract Interpersonal violence occurs at all ages and stages of life, in different forms and degrees, according to gender and the generational conditions of those affected and the social spheres in which it may have repercussions. It begins at childhood and continues throughout adulthood, assuming specific forms at old age, when it expresses shocking intergenerational relations, since it is usually exercised by children and grandchildren, as shown by recent studies. In addition to domestic violence, other forms of specific public violence against the elderly, including those defined by the National Policy for the Reduction of Accidents and Violence (2001), such as financial and economic abuse and the non-consented use of financial and patrimonial resources. Although these modalities of abuse take place primarily in a family context, they are growing as well in other instances, particularly as a result of consigned credit procedures, receiving Federal Government incentives, which have caused constant harassment and fraudulent transactions against the aged. Therefore, it is necessary to discuss this issue that affects especially and painfully elder women, always regarded in their supposed or real frailty. Keywords: Violence. Old age. Gender. Politics. Consigned credit.

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Introdução Há problemas que você só tem porque é velho. E não se trata de problemas de saúde “típicos da idade”, nem da difícil ou parca aposentadoria. São violências específicas que a sociedade impinge aos idosos porque são idosos, entre as quais, além das imediatistas e mais personalizadas (negligência, maus-tratos e agressão física), destacam-se as de ordem econômica, entre elas, as fraudes de origem institucional. Uma dessas fraudes, e com caprichosos desdobramentos, se refere às falsificações da assinatura e de documentos pessoais do idoso para vários fins ilícitos, inclusive, e crescentemente, empréstimos consignados. Os sofrimentos que disso resultam não têm diretamente a ver com o estado físico ou mental do idoso, trata-se de algo unicamente social, algo que é parte das marcas agressivas do tratamento que uma sociedade dá a sua população de idosos. E que na atual sociedade de consumo se configura de forma aparentemente regular e contratual, mas é ao mesmo tempo um típico e falso contrato financeiro, cujas bases são fincadas em uma parceria, estímulo e/ou aparente benesse do Estado: o crédito consignado. De repente, a partir do nada, um dinheiro não solicitado e de origem frequentemente não identificada aparece na sua conta bancária. Surpresa, dúvidas, fantasias, até. Depois, susto. Surpresa especialmente desagradável se você não é vítima do golpe do empréstimo consignado pela primeira vez e já sabe o trajeto kafkiano que vai ter que empreender para livrar-se dele. Primeiro, a busca investigativa para descobrir de onde esse dinheiro partiu e com que alegação. Em seguida, a organização da defesa: denúncias (ao Procon, a delegacias especiais). A espera das audiências... O tempo passando... Por que tudo isso acontece com você, velho ou velha, e quase nada com jovens? A sua longevidade, quase independentemente das suas características de sexo/gênero, classe social ou raça, produz ou faz ressoar no meio social representações de fragilidade, inadequação social ou escassa capacidade de autonomia que amedrontam (porque lembram a figura futura da dissolução e da morte) mas também, ou sobretudo, estimulam ou pro66

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duzem respostas de caráter autoritário, exercício de poder e dominação sobre você – geração que “já deu o que tinha que dar” – em uma escala de atitudes violentas que vão da evitação e indiferença à crueldade, e do desrespeito até a criminalidade. É a atitude “clássica”, ainda vigente. Mais recentemente, acrescenta-se a exploração econômica/financeira. Apesar disso, mas também o que em parte explica essa situação, é que muitos dos velhos de hoje, depois de toda uma trajetória de vida e trabalho, já talvez tenham acumulado alguns bens, ou pelo menos têm uma casa para morar e dispõem de rendimentos regulares de pensões e aposentadorias que, ainda que modestos, são “o nosso certo”, como costumam dizer. Vivem agora em uma sociedade cujo desenvolvimento lhes propiciou ser mais saudáveis e socialmente dinâmicos que no passado, embora ao mesmo tempo ainda suportando o peso de expectativas e ações sociais preconceituosas, também delituosas. Ou simplesmente criminosas. Ter “o nosso certo” é um ponto fulcral da questão. O que já é evidente pela observação de ações ou comentários em vários âmbitos do cotidiano. Recentemente, em uma entrevista ao jornal A Tarde, o superintendente do Procon, Ricardo Maurício Freire Soares, se manifestou a propósito da entrega, por empresas, de produtos ou serviços sem pedido prévio do suposto cliente: O alvo é a melhor idade. O idoso tem uma estabilidade financeira que chama a atenção das instituições, o que favorece a disponibilização frequente de crédito e o estímulo aos gastos. Algumas vezes é o idoso quem sustenta a família por conta desse poder econômico mais seguro (SOARES, 2013).

Entretanto, é também parte do quadro atual a relutância das gerações mais novas em cuidar dos seus idosos em idade mais avançada, como veremos adiante.

1 A violência como “solução” Qual o problema de estar na velhice? Historicamente, as sociedades sempre tenderam a marginalizar seus velhos, real ou simbolicamente, como se eles, diminuída sua capacidade produtiva, tivessem perdido também a utilidade social, fossem demasiados para participar de uma economia de bens limitados.

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Procedimentos reais e simbólicos que são magnificamente ilustrados pelo conhecido filme de Nagisa Oshima, A balada de Narayama, em que é demonstrado que a eliminação social pode preceder à perda real da capacidade de cooperação e trabalho. O que também ilustra a análise antropológica de Theophilos Riffiotis (1998) sobre a dinâmica dos grupos etários em sociedades negro-africanas e a pressão que há nelas sobre os velhos, cuja reincorporação se realizaria apenas individualizadamente. Uma possível solução intermediária é representada pelos novos papéis sociais engendrados pelos Suyá, conforme a observação de Seeger (1980): os velhos são os bufões, os que fazem a comunidade rir e sobrevivem bem, consumindo alimentos que, pelas suas atribuições simbólicas, não seriam aproveitados pelos mais jovens. Na sociedade capitalista contemporânea, os velhos submetem-se (queiram ou não) ao ritual da aposentadoria, que também lhes demarca um claro lugar social, que também é marginal, mas por outro lado lhes assegura (ou programaticamente asseguraria) as condições de sobrevivência material. Apesar dessa “garantia”, a subsistência não é fácil. Vive-se um tempo em que o direito à aposentadoria é questionado, os modos de atuação da previdência pública mais ainda, os proventos estão significativamente menores, enquanto a longevidade cresce. Ao mesmo tempo, a reestruturação produtiva cerceia ou torna precários os empregos e as oportunidades dos mais jovens. E vai caber aos velhos, como já está acontecendo, a difícil responsabilidade de apoiar, decisivamente, ou até mesmo de sustentar a família. Para conseguir isso, muitos retornam ao mercado de trabalho, em uma situação cada vez mais frequente. Ainda assim, direitos humanos e de cidadania à parte, apesar do fator positivo que deveria representar essa nova responsabilidade familiar e geracional, mantém-se, contraditoriamente, a postura de se considerar os velhos um peso para a família e a velhice um problema social. Essa posição financeira dos velhos na família, mesmo nos muitos casos em que são totalmente provedores, não lhes restitui, contudo, a centralidade do poder no grupo, que se constitui sempre em determinada ordem geracional, pela qual os jovens vão gradativamente assumindo, ou tentando assumir, as posições de comando. O problema se acentua com as diferen68

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ças geracionais em torno dos padrões mais recentes e crescentes de consumo. As relações são, não raro, carregadas de ambiguidade ou tensões. Embora a definição de velhice seja tão arbitrária quanto a de qualquer outra idade – ao mesmo tempo em que diferencial, segundo as condições históricas –, ela contém o agravante particular de que tornar-se velho tem significado, como bem acentuou Lenoir, estar, “[...] velho demais para exercer determinadas atividades ou ter acesso, de forma legítima, a certas categorias de bens ou posições sociais” (LENOIR, 1998, p. 68). E muito da violência contra os idosos deve-se à recusa destes a ocupar o (não) lugar social ou vital que os mais jovens lhes designam: de abdicar da posse dos bens – da casa, da pensão, dos proventos de aposentadoria (MOTTA, 2010) –, mas também dos pequenos prazeres cotidianos que ter aquele “nosso certo” propicia. Uma das respostas sociais a estas questões é a violência. Minayo (2003) a define com adequada amplitude: [...] um conceito referente aos processos, às relações sociais interpessoais, de grupos, de classes, de gênero, ou objetivadas em instituições, quando empregam diferentes formas, métodos e meios de aniquilamento de outrem, ou de sua coação direta ou indireta, causando-lhe danos físicos, mentais e morais (MINAYO, 2003, p. 785).

No caso dos idosos, a violência se desdobra em várias modalidades e formas, às vezes disfarçadas, ou deliberadamente ocultadas e nada raro realizadas com alguma concomitância. As principais expressões dessa violência são: negligência, violência psicológica, (que inclui as “inocentes” pirraças) tratamento preconceituoso, abuso financeiro, maus-tratos físicos, abandono, espancamento e morte. Ocorrem tanto no espaço doméstico, como no âmbito institucional e na gestão do Estado. Quem as comete são principalmente os membros da família, filhos, filhas e netos; também noras e genros; mas também cuidadores e instituições da sociedade, principalmente asilos e casas de saúde. Mais recentemente, instituições financeiras: bancos mancomunados com seguradoras multiplicam os empréstimos consignados fraudulentos. Primando pela ausência, inclusive de fiscalização e coibição de tudo isso, e omissão de proteção social, está o Estado. Ora, estando fora do centro de interesse social, não chega a surpreender que para idosos não se prevejam ou conservem políticas públicas de Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 9-86 | maio-ago. 2013

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proteção social, de saúde e qualidade de vida eficazes; inclusive de prevenção e coibição da violência. O Estatuto do Idoso é apenas o começo e foi fruto direto da ação política dos próprios idosos, do movimento dos aposentados. A sociedade reage a essas violências com “naturalidade” ou cegueira ética. Ao mesmo tempo, a família tenta “abafar” os casos que depõem contra a sua imagem e os asilos tentam se eximir de negligências e maus-tratos. As instituições financeiras, quando denunciadas por propaganda enganosa ou por fraudes, tentam, malevolamente, jogar a culpa da falsificação sobre uma suposta deficiência cognitiva do idoso. Justificam-se dizendo que os aposentados pedem o empréstimo, ou o seguro, assinam e depois se esquecem, assim argumentam os corretores. E o Estado, mesmo instado pelos movimentos de aposentados, adia processos e intervenções, não articula os raros e pontuais serviços disponíveis e não tem visão ampla para um segmento populacional que cresce e tem novas participações sociais; principalmente essa da manutenção de suas famílias e do consumo continuado dos mais variados serviços. Em verdade, quando as instituições se voltam para os cidadãos idosos, nem sempre é para lhes dar a devida proteção social. Um exemplo recente, conforme veremos adiante, foi exatamente o estímulo direto, a propaganda por parte do governo federal do acesso para os idosos a várias formas de crédito, principalmente o consignado. Lucro seguro para os bancos. Mas como identificar esses mencionados tipos de violência? A negligência, forma das mais comuns e fácil de passar despercebida, principalmente quando se dá em âmbito doméstico, é exposta por Minayo (2003) como “[...] a recusa, omissão ou fracasso por parte do responsável pelo idoso, em aportar-lhe os cuidados de que necessita” (MINAYO, 2003, p. 785). É também daquelas omissões que projetam más consequências para o futuro: alimentação descuidada, tratamentos médicos interrompidos, quedas ignoradas, resultante sensação de desamparo ou abandono para o idoso. O tratamento preconceituoso é, ainda assim, talvez a forma mais sutil e cotidiana de violência psicológica contra idosos e idosas, tendo o agravante de ser continuado e bastante generalizado, pois se trata, como já registrei, de: “Uma relação social entre sujeitos diferentes, no qual um 70

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desvaloriza ou nega a identidade do outro, a partir do que se institui a discriminação” (MOTTA, 2007, p. 131). Isso significa, ao mesmo tempo, a negação do direito à diferença e, nas palavras de Bandeira e Batista (2002), “desqualificação identitária e sofrimento existencial” (BANDEIRA; BATISTA, 2002, p. 120). Tratar o idoso como criança, como ignorante ou demente, ignorar a sua presença ou evitar a interlocução com ele são expressões de preconceito que desautorizam, existencial e socialmente, o idoso e que se realizam de forma absurdamente ampla – ainda que por vezes pontual ou pouco consciente – nos vários espaços sociais: na família, no atendimento em saúde, até em encontros sociais mais formais. O abuso ou espoliação financeira ocorre em todas as instâncias da vida social, tanto na família como nas instituições antes referidas. São filhos e netos que se apossam de documentos e cartões bancários dos seus velhos e lhes roubam proventos e pensões. Ou os pressionam a ceder ou vender a casa de morada, a tomar empréstimos bancários difíceis de pagar. Os empréstimos consignados em folha de pagamento são uma arma de dois gumes. Programaticamente expostos para socorrer os idosos em ocasiões especiais, geralmente resultam em um desfavor, pois além de os idosos estarem cedendo frequentemente à mencionada pressão familiar para que os assumam em proveito dela, há problemas mesmo para os idosos que espontaneamente os procuram, porque há escasso acesso à informação fidedigna sobre as condições de sua realização, tais como o percentual real, o total dos juros a serem pagos, a percepção prévia do que os descontos significarão no orçamento doméstico, e até sobre os prazos possíveis para esse pagamento. É o que veremos nos depoimentos de pessoas entrevistadas durante as pesquisas de Rigo (2007) e de Azevedo (2010). A violência com intenção financeira, que redunda em subtração ao idoso de parte expressiva ou substancial da sua renda, significa privação traumática de seus meios de subsistência, com prejuízos à saúde, inclusive emocional. E compromete a própria subsistência da família. Mas essa violência não é divulgada. Maus-tratos diretamente físicos, espancamentos e tentativas de morte ou assassinato, são os que chegam mais claramente ao conhecimento Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 9-86 | maio-ago. 2013

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público, para serem combatidos e punidos, ou venderem notícias em proveito da mídia. Ainda assim, é de conhecimento geral que a violência contra idosos, majoritariamente contra as mulheres, é estatisticamente subnotificada. E como reage a tudo isso o movimento social? Em realidade, poucos parecem perceber ou se manifestar em relação à violência contra pessoas idosas; tanto na vida cotidiana, quanto na política e na pesquisa acadêmica. O próprio meio científico, em suas ramificações acadêmicas e de atuações políticas, inclusive de caráter feminista (que sabe conciliar muito bem esses dois âmbitos), em maioria, não considera ou não enxerga a longa sucessão de violências que se abatem, impunes, sobre a mulher que já não é mais jovem. Sobre os homens, também. Poucos pesquisadores assumem essa análise, a exemplo de Camarano (2004), Debert (2001), Faleiros (2009) e Minayo (2003). Como já tive ocasião de discutir (MOTTA, 2009), a produção gerontológica expõe mais sistematicamente a questão. Entretanto, apresenta escassa expressão teórica quanto ao contexto e ao tom em que se dão as relações sociais e, portanto, também essas ações violentas. São trabalhos razoavelmente numerosos, confirmadores da existência do fenômeno “violência contra a pessoa idosa”. Às vezes são literalmente assim enunciados, despidos de conteúdo de gênero. Têm o mérito de apontar para a existência do problema e de discuti-lo como questão que é, também, de saúde pública. Mas alguns desses trabalhos nem sempre recorrem à pesquisa, que significaria o indispensável contato e a exposição direta da realidade social. Já a produção sociológica, que segura o fato ainda vivo, quando direcionada à questão da violência, apesar de valiosa produção teórica e numerosas pesquisas empíricas, não se detém na dimensão da violência contra os idosos, e quase nunca diretamente onde ela mais acontece, sobre as mulheres. É exemplo disso a consistente proposta teórica de Tavares dos Santos (1999) sobre “a nova morfologia do social” e suas várias dimensões: “Além das classes sociais, outras transversalidades [...] na organização social, tais como as relações de gênero, as relações raciais, as relações entre grupos culturais e entre regimes disciplinares” (SANTOS, 1999, p. 18). Ausentes de tão ampla proposta estão as relações entre as gerações e as violências contra idosos. 72

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A própria proposta feminista, apesar da consistência política dos seus estudos a respeito da violência contra a mulher, segue caminho teórico também incompleto. Concentrou-se na violência como efeito da dominação patriarcal dos homens contra as mulheres jovens. Mais uma vez o feminismo ignora as mulheres velhas (MOTTA, 1998; 2002; WOODWARD, 1995). Parece não perceber que elas também são alvos de violência, de diferentes e repetidas formas, e que seus agressores, como vêm demonstrando as pesquisas mais recentes (FALEIROS, 2007, 2009; MENEZES, 1999; MINAYO, 2003) e as próprias estatísticas de delegacias do idoso – a exemplo da Delegacia Especial de Atendimento ao Idoso de Salvador (Deati) – apontam que são principalmente os filhos e filhas, às vezes os netos, os agressores. Pessoas de gerações mais jovens, portanto. Sobretudo homens, mas mulheres também agridem (MOTTA, 2010). Evidentemente, o enfoque analítico da violência contra os idosos também converge para as relações de gênero, centra-se nas mulheres, que são maioria conhecida no caso da violência doméstica, mas perde eficácia explicativa ao fixar-se apenas sobre esta dimensão das relações sociais. Essa violência praticada pelos filhos (que formam a maioria dos agressores, mas também filhas e, não raro, netos) contra suas mães ou avós é consequência ou expressão de vivências – rejeições ou conflitos – que se dão, centralmente, na esfera da convivência e das relações intergeracionais. A violência, principalmente doméstica, contra idosos será mais eficazmente analisada em princípio como uma ocorrência que se dá em âmbito geracional e ganha maior visibilidade por efeito da maior nitidez social e política das relações de gênero, inclusive porque se exerce em maioria sobre as mulheres, devido, primordialmente, a uma esperada “fragilidade” feminina, física, afetiva e social. Mas também porque elas constituem maioria demográfica. Por essa dupla entrada, a situação pode ser também analisada ao reverso, como uma violência de gênero que se realiza majoritariamente no âmbito geracional. Por mais esta diferenciação circunstancial, mantém-se como fundamental a análise das situações no contexto articulado dessas duas dimensões fundantes das relações sociais: as de gênero e as de gerações. Mas é importante lembrar que existem também as violências institucionais ou públicas e que se as violências domésticas contra idosos e idoSinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 9-86 | maio-ago. 2013

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sas são pouco mencionadas, publicamente subnotificadas, as violências públicas ou institucionais são ainda menos conhecidas e denunciadas.

2 Empréstimos consignados: da legalidade à fraude Além dos casos de violência doméstica, que constituem a maioria em relação aos idosos, e da crueldade social de assaltos como a “saidinha bancária”, crescem, cada vez mais intensamente, formas novas e específicas de violência pública contra o idoso, algumas das quais são partilhadas com a família, a exemplo daquela que, em 2001, o Ministério da Saúde definiu, na Política Nacional de Redução de Acidentes e Violência, como abuso financeiro e econômico: “exploração imprópria ou ilegal dos idosos ou [...] o uso não consentido por eles de seus recursos financeiros e patrimoniais” (PEIXOTO, 2009, p. 410). Embora essa modalidade de violência ou abuso ocorra, reconhecidamente, sobretudo no âmbito familiar, como os casos recorrentes de apropriações de pensões ou aposentadorias e de vendas ou transferências fraudulentas de casas, em âmbito público essa situação também ocorre, e é cada vez mais frequente. Sobretudo a partir da instituição dos programas de crédito consignado e da expansão dos fundos de pensão, nos assédios e nas transações fraudulentas contra idosos. Diante desses casos, lembraria que fatos nunca existem fora de um contexto social e, no caso das violências, essas nunca são puramente individuais, pois, como comenta Jaspard (2000), “estão ligadas às regras de funcionamento das instituições nas quais se apoia a sociedade” (PEIXOTO, 2009). E as redes de comunicações institucionais no Brasil estimulam frequentemente o crédito aos idosos. Enquanto o Estado realiza cada vez mais intensamente uma gestão de caráter privatizante, vai reduzindo a proteção social pública e adjudicando à família e à comunidade a proteção, nem sempre viável, dos seus idosos. Ao mesmo tempo, nesta fase do capitalismo, o mercado parece ter descoberto, afinal, uma função social – e integradora – para os idosos, a de consumidores de serviços e de “produtos próprios para a terceira idade”. Ora, consumidores, possíveis ou não, satisfeitos ou não, com proventos baixos de aposentadoria e ainda com o ônus de sustento da família, acumulam as dificuldades financeiras, e o recurso a empréstimos parece ser

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a solução. Principalmente o crédito consignado, todo o tempo apregoado publicamente como fácil e tranquilo, parece uma solução natural e adequada, um porto seguro. Em um país que vem realizando, seguidamente, insatisfatórios ajustes e reformas da Previdência Social, e que ainda assim ignora verdadeiramente o grau alto de pobreza da população, não surpreende o recurso ou a recomendação de realização de empréstimos, como se fosse garantida àqueles que dispõem de algum pecúlio, a possibilidade de, por esse meio, saldar as dívidas contraídas. Nesse clima, em 2004, o governo federal apresentou o crédito consignado como um grande benefício para os trabalhadores aposentados e continuou, durante bastante tempo, a estimulá-lo. Mas afinal qual é a questão do crédito consignado? Na clara definição de Furlan (2009) é um contrato de crédito pessoal, de prestações sucessivas, em que o devedor (no caso o servidor público) admite que as prestações sejam descontadas diretamente dos seus subsídios (pelo órgão administrativo pagador que esteja vinculado) e remetidas diretamente à instituição financeira credora (bancos, cooperativas ou financeiras) (FURLAN, 2009, p. 65).

Isso significa que os bancos ou instituições financeiras não sofrem receio de inadimplência nessa operação, pois têm a garantia da margem consignável. Essa margem consignável é de 30% do salário ou pensão do aposentado e, embora o pagamento seja feito a juros que são apregoados como os mais baixos do mercado, ele é ainda relativamente alto para as condições financeiras dos idosos (RIGO, 2007). Por isso, no cálculo do orçamento doméstico de cada pessoa, sente-se sempre um desfalque. A análise atenta de Rigo (2007) relembra que esse limite máximo de empréstimo permitido pela Previdência Social é referente não à renda disponível para o aposentado, mas à renda maior do rendimento mensal do aposentado, já comprometida, no entanto, com outros pagamentos. E conclui: “O mais grave, contudo, é que mesmo entre aqueles que não têm dívidas, esse grau de comprometimento pode se provar excesso” (RIGO, 2007, p. 104). Do ponto de vista das instituições financeiras, essas taxas de juros, lembra Furlan: Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 9-86 | maio-ago. 2013

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Apesar de mais baixas, não são irrisórias, pois servem ao mesmo tempo para remunerar o capital investido e assumir o risco, devidamente calculado, de ocorrerem situações imprevistas no contrato, tais como: diminuição da margem consignável, exoneração do servidor, decisões judiciais suspensivas ou impeditivas do desconto em folha etc. (FURLAN, 2009, p. 65, grifo do autor).

O governo incentiva o crédito todo o tempo e a publicidade de instituições públicas e privadas entra nos lares via remessa postal, telefonemas e comerciais na televisão, oferecendo segurança, bem-estar e tranquilidade econômica para os mais velhos. Tornaram-se presentes e insistentes os estímulos a aposentados e pensionistas. Desde 2004, elegantes e conhecidos atores e atrizes na “terceira idade” sucedem-se, na mídia, principalmente a televisiva, em conselhos e recomendações “inspiradoras” sobre as vantagens do crédito. Cartazes e folhetos são distribuídos por bancos, destinados principalmente ao idoso “jovem”, à maneira como fez o Banco do Brasil no exemplo referido por Palácios (2007, p. 6) na sua análise sobre a estruturação e fundamentação do discurso publicitário dirigido ao público idoso: “Aposentados e pensionistas do INSS, aproveitem a melhor idade com o BB Crédito Consignado.” Cito a pertinente definição de Maingueneau (2001, p. 85): “um texto não é um conjunto de signos inertes, mas o rastro deixado por um discurso em que a fala é encenada.” Cartas pessoais eram endereçadas (como continua a acontecer) a servidores públicos por bancos e seguradoras. Em certo momento até o Presi­ dente da República, em conjunto com o então Ministro da Previdência Social, fez circular, ainda que por pouco tempo, uma convocatória desse tipo aos segurados da Previdência; carta publicada e comentada por Thomas Traumann (2006) na revista Época. Esses apelos positivos, direcionados a diversos segmentos de classe de aposentados, contribuem para produzir os resultados esperados, porque o recurso a esse crédito torna-se crescente. São notícias nos jornais e artigos produzidos na área econômico-financeira e reproduzidos na imprensa diária. O nível intenso de informação positiva alcança, ainda hoje, até as camadas populares mais pobres e menos informadas, atendidas pelo Benefício de Prestação Continuada (BPC), atingindo-os em seu sentimento por não terem a condição legal de assalariados para terem 76

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acesso aos empréstimos, conforme revela a pesquisa de Ferreira de Jesus et al (2012). Ainda assim, para muitos daqueles que tiveram acesso a esse recurso, o arrependimento pelas dificuldades e impasses encontrados também é abundante. Depoimentos resultantes de trabalho de campo em pesquisas com idosos, aposentados e pensionistas realizadas por Azevedo (2010) e Rigo (2007) atestam isso; percorrem toda uma trajetória ilustrativa do interesse e esperança iniciais dos idosos, passando pelas injunções familiares para a adesão ao crédito e chegando ao desconforto, à inadimplência e ao arrependimento tardio, além de já tangenciando a percepção de fraude. Os depoimentos são numerosos e repetidos. Começam com o encantamento instalado pela publicidade fantasiosa das propostas, mas depois... [...] foi a maior burrice da minha vida. Tomei empréstimo justamente pra comprar o terreno para tentar fazer uma casa. Foi burrice, não deu certo. O terreno tá lá em Terra Nova. Comprei no interior por R$ 2.000,00 para pagar R$ 10 mil, praticamente. Eu deveria ter pensado antes. Eu via aquelas propagandas e, como todo mundo, fui lá. Vi a propaganda e vi que tudo era maravilhoso na hora de tomar o empréstimo, aí eu disse: “Ah, meu Deus, é agora que eu vou ter a minha casa!” Eu vi um horizonte maravilhoso! Peguei R$ 2 mil, comprei o terreno, não deu para comprar os blocos, eu só adquiri o terreno. Não deu pra fazer a casa. Não deu pra fazer nada. Me atrapalhei toda. Atrapalhou a minha vida inteira. Agora tá muito mais difícil porque todo mês desconta na folha e eu... mas agora eu prometo a mim mesma que eu vou passar longe[...] (ANÁLIA, 2008 apud AZEVEDO, 2010, p. 166).

Alguns idosos não sabem muito o que fazer, mas os filhos sabem... Os corretores, também: Não sei nada, minha filha olha essas coisas... só assinei (C.L.M, 73 anos apud RIGO, 2007, p. 107). Nunca mais, atrapalha em tudo, só em extremo caso de urgência... para ajudar meus netos e tal (J.S.M, 69 anos apud RIGO, 2007, p. 107).

O desapontamento chega depressa, assim como a aguda percepção da extensão do tempo de pagamento: Tomei mil reais, esse empréstimo piorou minha vida. [...] aconselho a qualquer pessoa para não tomar esse dinheiro emprestado [...] a pessoa só toma porque está passando necessidade e acaba se apertando. Não é

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vantagem [...] esse empréstimo não beneficia ninguém... (LEANDRO, 2007 apud AZEVEDO, 2010, p. 165). Gastei o dinheiro em dois dias e vou levar três anos pra pagar [...] não vale a pena (F.S., 64 anos apud RIGO, 2007, p. 107). Demora muito pra passar, aí falta dinheiro pra outras coisas (D.T.S, 71 anos apud RIGO, 2007, p. 111).

Um outro “radicaliza”, com algum humor: A gente pega, né... e depois pede pra morrer logo para não ter que pagar por três anos tudo de novo (RIGO, 2007, p. 119).

Começa então a aparecer a fraude: Queria há muitos anos comprar um fusquinha, tinha um vizinho vendendo baratinho [...] aí resolvi pegar um empréstimo para realizar esse sonho [...] depois de tudo, vi que o crédito foi negado porque no extrato da minha aposentadoria já tinha um empréstimo de R$ 4 mil em uma agência de Brasília para pagar em 36 parcelas R$ 206. [...] Não sabia o que fazer, liguei para a ouvidoria da Previdência, procurei informação no Banco Central, liguei para Brasília [...] não conheço a cidade, deveria ao menos haver uma desconfiança do banco. Por que eu pediria para um empréstimo ser liberado em Brasília se moro aqui? Nem sei como conseguiram meus dados (J.A.M, 67 anos apud RIGO, 2007, p. 113).

Pior que tudo e ocorrendo crescentemente, são as fraudes, que assim explodem: uma quantia “aparece” na conta corrente do idoso e logo é iniciada a cobrança, durante longos e inumeráveis meses, a juros altos, de um “empréstimo” ou “seguro” que não foi solicitado. As tentativas de resolução do problema são difíceis, longas e onerosas. Antes de apresentar dois casos revelados de fraudes dessa natureza, faria um comentário sobre os diferenciais de classe desses segurados idosos: são, evidentemente, os mais pobres que, premidos pelas dificuldades de manter o consumo cotidiano, ou já pelas dívidas, recorrem ao empréstimo. E em grande parte se endividam ainda mais. Mas a classe média tradicional (“média-média”) também está recorrendo a esse crédito; guardadas as proporções, pelas mesmas razões que as classes populares. Entretanto, os segmentos médios parecem os mais atingidos pelas fraudes, pela lógica econômica... São aqueles que, por exemplo, têm cadastro em companhias de seguros (de vida, de carros, de imóveis etc.), fontes privilegiadas de vazamento de dados pessoais.

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Supõe-se ser o caso de Anita (2011) e o de Antônia (2013), que depõem a seguir.1

3 Experiências de velhas Algumas dessas formas sorrateiras e particularmente desestruturantes de violência, ao mesmo tempo pouco conhecidas ou divulgadas, podem ser exemplificadas com casos como o de Anita, 78 anos, narrado em suas próprias palavras: Ao longo desses últimos anos, eu já havia recebido várias investidas telefônicas, em que pessoas demonstrando conhecimento de meus dados e documentos pessoais de identificação, residenciais e de minha história pretérita de trabalho, me informavam sobre o andamento de algum processo jurídico referente a essa última área, processo em que eu, afinal, teria sido vitoriosa e teria vultosa quantia a receber. Porém, antes deveria depositar um percentual devido ao funcionário que teria se encarregado do acompanhamento do processo – e isso deveria ser feito de imediato, porque o prazo para o depósito do “prêmio” esgotava-se naquele dia... Em todas essas investidas – que não sou ingênua para acreditar em “processo encantado”, mas pessoas menos informadas têm caído nesses contos – o que mais me impressionou, para além da crueldade de prejudicar pessoas em idade avançada, foi o nível de informação que tinham sobre a minha vida. Mas o pior ainda viria. Há cerca de três anos, o fim do mês estava chegando e o dinheiro da aposentadoria escasseando. Preocupada, afinal tendo dois filhos desempregados, procurei me situar, conversando com a gerente responsável pela minha conta bancária, que depois de consulta, sorriu: “Por que se preocupa?! Você está ótima, com esse depósito!” Surpresa: Que depósito?! E estranheza. Havia um depósito recente, de R$ 30.200,00 em minha conta, realizado por um banco desconhecido, de outro estado da federação. Esse fato iria inaugurar um dos piores períodos da minha vida, com muitos receios, muito gasto de tempo em tomadas de providências e, sobretudo, intenso desgaste emocional. O banco depositante era o “braço armado” de uma seguradora, que registrara a concessão de empréstimo consignado e seguro de vida em meu nome, como tendo sido requeridos por mim. Depois de uma busca cuidadosa, obtive acesso ao documento original da “solicitação” na instituição representante da seguradora, que registrara a concessão em Salvador. Voltei a surpreender-me com toda a infor-

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mação que estranhos tinham sobre meus dados cadastrais, a ponto de terem apresentado, naquela ocasião, o meu contracheque mais recente e ao qual eu própria ainda não tivera acesso! Ainda por cima, a assinatura dada como minha era uma imitação grosseira, e o endereço a mim atribuído – grande cochilo do corretor! – o da rua, em Porto Alegre, onde se sediava a seguradora. Erros grosseiros que simplesmente não foram levados em conta nessa transação que passou a atazanar a minha vida por um longo tempo. Enquanto investigava e denunciava ao Procon, a uma Delegacia do Consumidor e à própria Polícia, e repetidamente pedia providências, recebi meus proventos de aposentadoria do órgão federal ao qual sou ligada, com o desconto de R$1.771,00 – a primeira de sessenta parcelas que deveria pagar ao banco pelo “empréstimo”. Foi intenso o choque! Naturalmente eu deixara os R$ 30.200,00 intocados na minha conta bancária, e ter quase R$ 2 mil a menos no orçamento doméstico causou-me dificuldades e carências. Tentei sustar os descontos na fonte pagadora da aposentadoria, em vão. A informação do serviço de pessoal da instituição à qual sou ligada era a de que o desconto pelo “empréstimo” era feito, de acordo com lei recente, em comunicação direta entre seguradora e secretaria ministerial em Brasília, e nada havia a fazer-se por aqui. Enquanto me movimentava em denúncias, e já começando a participar de audiências na justiça – a que representantes do banco e da seguradora fraudadores no início faltavam – verifiquei que o segundo desconto do empréstimo fraudulento já se anunciava no contracheque. Foi o golpe maior. Sentia-me indefesa, invadida, sem qualquer privacidade na minha vida. Acordava no meio da noite, angustiada: então, qualquer um inventa uma solicitação, invade sua vida, seus proventos, lhe deixa com dificuldades e nada pode sustar isso! Fiz a conta de quanto iriam me roubar: pagando esses R$ 1.700,00 durante sessenta meses, iria saldar aqueles R$ 31 mil do depósito impingido com R$ 104 mil. Circulando e falando muito em função da indignação e da tentativa de defender-me, soube de muitos outros casos semelhantes ao meu, alguns extremamente dolorosos, envolvendo pessoas menos informadas do que eu e até de condições financeiras mais difíceis. Muitas sem saber o que fazer. Contei com a assessoria de um familiar formado em Direito, rea­ lizei denúncia ao Banco Central, que foi decisiva para a aceleração do processo e do recuo do banco “financiador”, mas ainda assim tive que contratar advogado para atender à exigência legal de me representar nas audiências – tantas! – e esperar bastante.

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Venci essa batalha, me livrei da “dívida”. Mas até hoje não recebi a totalidade da mais que justa indenização por danos morais, pela grande fragilização e sofrimento que vivi, atingida pela desonestidade dos outros. O banco pagou a parte dele da indenização, mas a seguradora, nunca. Minha história, entretanto, ainda não acaba aqui. Depois dessa fraude, outras pessoas, outras instituições, já tentaram outros golpes, alguns deles menores, sempre com desconto em folha de pagamento e falsificação da minha assinatura e de dados pessoais; principalmente seguros de vida e planos de previdência privada. Vigilante, tenho reagido de imediato e conseguido me livrar mais rápido. Até nisso ter experiência ajuda. Mas temos que estar sempre em guarda, como se vivêssemos em guerra? Guerra institucional entre gerações? Na qual os velhos sempre saem perdendo?

Um segundo exemplo, o caso de Antônia, 80 anos, se desenrola há mais de um ano e continua sem resolução. Sua trajetória é bem similar à de muitas outras idosas ouvidas: anos de incômodos, assédios para que faça os mais variados seguros, os mais recentes e intensos para aderir a programas de previdência privada, cartas e telefonemas também. De vez em quando, um telefonema com menções muito fundamentadas aos seus dados, ao mesmo tempo anunciando o ganho de prêmios em sorteio ou, principalmente, referida a antigos processos oriundos da área profissional que teriam corrido na justiça, com significativa quantia a receber agora, dependendo apenas de que: “A senhora deposite ainda hoje – porque perdemos muito tempo tentando contatá-la – dez por cento desse valor na conta do advogado responsável pelo caso, em Brasília...”. É burlesco, mas há quem acredite nessas encenações. Não muito tempo depois da surpresa de ter sido cobrada pelo seguro de vida em favor de um neto que nunca teve, Antônia sofreu dois “ataques” quase simultâneos de dois diferentes bancos privados de grande porte: empréstimos consignados fraudulentos. Um deles bastante alto. O percurso de reação a esses depósitos “aparecidos” em contas correntes já está aqui referido, inclusive na narrativa de Anita: a surpresa, a busca de informação, as denúncias, o recurso à Justiça... Tudo transitando devagar e nesse caso concreto ainda em grande parte sem resolução, principalmente quanto a novas consequências. O registro do caso de Antônia, apesar da semelhança de percurso com o de Anita, vale ser feito para revelar duas situações, talvez menos freSinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 9-86 | maio-ago. 2013

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quentes em casos como esse. Primeiro, a coincidência da simultaneidade de duas fraudes, resultando em dificuldades financeiras redobradas para a aposentada. O que, felizmente, durou pouco, por força da obtenção de uma liminar que sustou as cobranças em folha de pagamento, enquanto os processos correm na justiça. A segunda situação “original”, e para Antônia particularmente chocante, foi revelada quando ela foi convocada pelo banco onde mantém a conta corrente, “para sanar dúvidas quanto ao seu cadastro” e propor, logo em seguida, redução do limite do seu cartão de crédito, ou talvez suspensão dele, porque – pasme-se – um dos bancos fraudadores, impaciente por não ter conseguido receber, por força da liminar, o dinheiro que ela não lhe devia, incluiu seu nome no cadastro de inadimplentes do Serasa. Onde ela ainda permanece. Não é o último episódio dessa história, que apresenta muitos e variados “lances”. Registro, para encerrar o relato, mais um desdobramento desse caso: na sua busca por soluções, conseguindo ter acesso a cópias dos falsos contratos de créditos apresentados pelos dois bancos, Antônia surpreendeu-se – semelhantemente ao relatado aqui também por Anita e pelo depoente J.A.M. (apud RIGO, 2007) – com o evidente desleixo de apresentação e preenchimento dos formulários “de solicitação” dos seus empréstimos, porém não há, realmente, porque surpreenderemse, se o registro da consignação é, em qualquer sorte, a garantia para o banco credor, ainda quando fraudador. Como também argumenta Furlan (2009). Por todas essas histórias inacabadas, finalizaria lembrando Lenoir (1998): um fato social é constituído como questão ou problema quando há atribuição ou reconhecimento social dele em sua importância ou prejuízo para a comunidade, além de vontade social para tratá-lo e ultrapassá-lo, lembraria. Lamentavelmente, parece que, no caso das violências contra os idosos, ainda não se desenvolveu de modo suficiente essa vontade social no país.

Nota 1 Projeto de pesquisa “Tempo geracional: acompanhando centenários e pivôs”

(2011/2013) realizada com apoio do CNPq.

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Carlos Augusto Lima Poeta e professor de literatura. Publicou OBJETOS (Alpharrábio, 2002), vinte e sete de janeiro (Lumme, 2008), Manual de acrobacias n.1 (Editora da Casa, 2009), O Livro da espera (Alpharrábio, 2011) e Três poemas do lugar (La Barca, 2011). É membro fundador da ONG Alpendre (casa de arte, pesquisa e produção, com sede em Fortaleza-CE), excoordenador do núcleo de literatura do setor de capacitação do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura de Fortaleza e mestre em Letras pela Universidade Federal do Ceará (UFC), onde defendeu dissertação sobre o poeta Antônio Carlos de Brito (Cacaso). Atualmente é doutorando em Literatura Comparada pela mesma universidade, onde desenvolve pesquisa sobre as ideias de fracasso, deriva e silêncio nas narrativas de Antônio Lobo Antunes e J. M. Coetzee.

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Resumo A ideia de um “vazio cultural”, de uma perda da potência crítica e criadora da cultura brasileira, seja em face do autoritarismo, seja diante do poderio do mercado, faz parte da pauta da crítica cultural nacional. Nos anos 1970, a denúncia de um vazio cultural representou um desconforto ante ao sufocamento das personalidades e ações críticas da cultura brasileira pelo regime militar. Por outro lado, a discussão sobre o vazio cultural ignorou uma parte significativa da produção cultural dita marginal, que propôs outras formas de politização da cultura. Na linha de frente das práticas de resistência dessa produção estavam os poetas. Um nome importante dessa prática de resistência poética, crítica e política foi Antônio Carlos de Brito, mais conhecido como Cacaso, um dos primeiros a ver uma movimentação bastante particular que se configurava na poesia brasileira da época, que parecia buscar novos processos na produção material do livro e, da mesma forma, na expressão de uma linguagem poética, a seu ver, libertadora em vários sentidos e dimensões. Palavras-chave: Vazio cultural. Censura. Contracultura. Década de 1970. Geração marginal. Poesia marginal. Cacaso.

Abstract The idea of a “cultural void”, a loss of critical power and creativity of Brazilian culture, whether in the face of authoritarianism or before the power of the market, is part of the national agenda of cultural criticism. In the 70’s, the complaint of a cultural void was a discomfort compared to the suffocation of critical actions and personalities of Brazilian culture during the military dictatorship. On the other hand, the discussion about the cultural void ignored a significant part of cultural production, said to be marginal, who proposed other forms of politicization of culture. At the forefront of the resistance practices of that production were the poets. An important name from this poetry resistance practice, criticism and politics was Antônio Carlos de Brito, better known as Cacaso, one of the first poets who saw a very particular movement configuring in Brazilian poetry at that time, which urged for new production processes on physical books and, likewise, in the expression of poetic language that was, in his point of view, liberating in many ways and dimensions. Keywords: Cultural void. Censorship. Counterculture. The 1970’s, marginal generation. Marginal poetry. Cacaso.

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I A chegada do Ato Institucional nº 5, emenda constitucional aprovada na noite de 13 de dezembro de 1968, situa-se como um divisor de águas e um dos eventos mais cruciais e pontuais para se pensar o cenário da cultura durante o regime militar. O novo papel que é dado ao Estado, de vigiar e punir, legislar e direcionar o que é certo ou não, o que poderia ser expresso ou não, colocava toda uma intelectualidade em uma condição que ora se converteria em medo, ora em estratégias para a mínima sobrevivência de uma ideia de cultura livre no país. Da condição da cultura pós-AI-5, aponto uma discussão forte que fora colocada pelo jornalista Zuenir Ventura ainda no início dos anos 1970, e que demonstrou um olhar, uma perspectiva sobre o estado das coisas e da expectativa sobre a arte de então: o “vazio cultural”. Dois artigos de Zuenir (GASPARI; HOLLANDA; VENTURA, 2000), publicados na revista Visão, o primeiro, de julho de 1971, e o segundo, de agosto de 1973, colocaram em discussão uma visão sobre o panorama da arte e da cultura brasileira dentro de uma determinada disposição cronológica que abarca os anos de 1969/1971, como sugere o próprio jornalista. O termo “vazio”, pela extensão da sua dureza, imagem dolorosa, serve de leitura para pensar um tempo. Leitura particularíssima de Zuenir Ventura, que parece querer provocar, mas, na verdade, expõe uma perspectiva pessimista que tem suas origens, o vazio, na ação de dois elementos determinantes e cruciais: o AI-5 e sua cria, a censura. Esses dois componentes inflamaram negativamente a cultura do país, se não a devastando por completo, colocando-a em uma condição de limbo, oco, vazio. Em 1973, no artigo “A falta de ar”, Zuenir Ventura retoma a discussão sobre o vazio cultural, situando-o cronologicamente e apontando o rastro de estragos visíveis no plano cultural, causado pela ausência de espaços críticos-criativos para a elite intelectual do país e, ainda por cima, recoloca um novo elemento que fora também combustível nesse processo: O vazio era mais uma metáfora para descrever com certa exatidão o quadro cultural dos anos 1969/1971, em que correntes críticas, dominantes entre 1964 e 1968, se tornaram marginais, perdendo em grande parte a possibilidade de influir diretamente sobre o público anterior. Essa influência não foi apenas dificultada pela censura direta (particu-

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larmente intensa no teatro e no cinema, mais indireta na literatura e no movimento editorial em geral): atemorizados pela situação vigente, não apenas os autores mas também os produtores e editores começaram a praticar a autocensura (GASPARI; HOLLANDA; VENTURA, 2000, p. 59).

Além do temor da censura oficializada, havia o temor íntimo causando a autocensura. Expurgos, silenciamentos, evasão de mentes, veto à criação livre, a condição de limbo, oco, vazio. Interessante é que, para Zuenir, interessa comparar, apontar analogias sobre o comportamento da cultura brasileira antes e pós-AI-5. Para ele, o lado sério e compromissado da cultura brasileira estava exatamente nas tais “correntes críticas”, que outrora deram pulsão ao movimento político-cultural e que agora se viam sufocadas. Zuenir vê alto grau de valor em projetos como o do Centro Brasileiro de Pesquisa (Cebrap), capitaneado pelo então professor e soció­ logo Fernando Henrique Cardoso, como núcleo de pensamento crítico modelar, lúcido e por demais importante para se refletir sobre o país. No que diz respeito à cultura, à produção musical, Chico Buarque, Paulinho da Viola, Caetano Veloso e Gilberto Gil, para apontar alguns, representam para o jornalista os expoentes-chave das “correntes críticas” de que tratam aqueles que conseguem partilhar uma elaborada sonoridade com a matéria de criticidade que fora tolhida pelo regime. O grande pecado das reflexões do jornalista Zuenir Ventura, no meu entender, está no pensamento depreciatório que dispensou às articulações submersas de uma cultura jovem, alternativa. Ao expor a reflexão sobre o “vazio cultural”, automaticamente Zuenir colocou para escanteio uma série de truques, artimanhas, táticas e estratégias pontuais de sobrevivência cultural que se articulava mesmo sob o jugo do sistema repressor tacanho e violento da época. A contracultura, que já insuflava manifestações artísticas e comportamentais antes mesmo do AI-5, é vista pelo jornalista como uma tendência cultural frágil conceitualmente, que não colocou em discussão uma produção artística consistente aos seus olhos, e realmente crítica. Zuenir acusa as manifestações contraculturais, com seus projetos de paz e amor, vida comunitária, sexo, drogas e rock’n’roll, experimentos artísticos, experimentos comportamentais, de se colocarem em uma posição que, para ele, representava uma aceitação passiva das coisas: Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 87-113 | maio-ago. 2013

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Criando uma atmosfera cultural bastante difundida – talvez mais a atmosfera do que produtos estéticos singulares –, a contracultura foi outro dos meios de preencher o vazio cultural, aceitando implicitamente as restrições que a situação geral impunha ao debate mais diretamente voltado para a realidade concreta (GASPARI; HOLLANDA; VENTURA, 2000, p. 64).

Taxativo, Zuenir Ventura volta-se contra uma suposta passividade das manifestações contraculturais. Aceitação, fuga, alienação são termos que cabem bem à perspectiva que o jornalista faz uso. Zuenir projeta uma expectativa de criticidade que as manifestações contraculturais, ou herdeiras da contracultura, nunca irão lhe dar e que, para ele, só estariam presentes naquelas ditas correntes críticas que, mesmo relegadas a uma condição de marginalidade por conta da força e da lei, tiveram papel fundamental no encontro da cultura com as massas e no pensamento sobre a realidade do país, como ele mesmo sustenta. Mas a criticidade estaria lá, enraizada, entranhada em várias atitudes advindas do explosivo ambiente contracultural, jovem, ou depois, como se dirá, alternativo. Só que essa dimensão crítica estava configurada com outros modelos. Novos, políticos, mas com uma outra cara da ação política. De um lado, o desapontamento com relação à censura e às ações culturais bancadas pelo governo militar; de um outro, a insatisfação com os projetos políticos tradicionais das esquerdas, o engajamento participante, as ideias de tomada de poder pelo proletariado. Nesse quadro, uma terceira via se mostrou muito mais atraente aos segmentos de uma intelectualidade jovem. Um caminho que se encontrava em maior sintonia com os movimentos e questões referentes à chamada contracultura, que eclodiu durante a década de 1960 e gerou frutos nas atitudes pretendidas e seguidas pela chamada produção alternativa nos anos 1970. As preocupações deslocavam-se dos embates político-partidários para uma postura comportamental, muito mais interessada em questionar valores morais (família, tradição, religião), do que preocupada com a superação do modelo político ou a tão anteriormente sonhada tomada de poder. Como afirma Celso Fernando Favaretto: A atividade contracultural inscreve-se como espaço de jogo em que o político não é ordenado por um trabalho segundo os modelos institucionalizados, mas uma prática, ou um conjunto de experiências variadas, ainda não determinadas, e tidas como não sérias – espaço de jogo para intensidades libidinais, afetivas e para as paixões (FAVARETTO, 1983, p. 33).

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A ideia de ação política passou a ser encarada antes e principalmente pela superação de amarras comportamentais e existenciais, em uma extrapolação dos referenciais subjetivos, na retomada da discussão sobre o corpo, a sexualidade, do uso de drogas alucinógenas, da música, principalmente o rock como forma de expressão. No Brasil, a essas discussões serão acrescidos, ainda, o embate contra as formas de censura impostas pela ditadura e a crítica aos padrões culturais oficiais colocados pelo binômio Estado-indústria, por meio de estratégias próprias – depois veremos que tratam-se mais de táticas do que estratégias –, ora subterrâneas, ora explosivas. A jornalista e pesquisadora Sonia Virgínia Moreira comenta que: Ser alternativo no início da década de 1970 significava produzir fora da zona de influência direta do Estado ou à margem do aparato industrial que cercava qualquer produto antes e depois da sua entrada no crescente mercado consumidor. As descobertas de novos caminhos acontecem simultaneamente, mas sem premeditação e envolvem grupos de poetas, músicos, atores, diretores de cinema e artistas plásticos, principalmente (MOREIRA, 1986, p. 30).

Experimentalismo e questionamento sobre o caráter mercantilista das artes. Esses parecem ser os dois temas que dominaram o cenário das artes plásticas na década de 1970. As intervenções críticas com certo viés político e as posturas empregadas pelos produtores de artes visuais nessa década têm suas origens nas experiências anteriores (ainda nos anos 1960) de Hélio Oiticica e Lygia Clark, na arte sensorial, conceitual, na incorporação do corpo como objeto de fruições artísticas e, principalmente, objeto crítico. Frederico Moraes comenta sobre o papel de Hélio e Lygia em potencializar esse corpo crítico: Em Oiticica como em Lygia Clark, o que se vê é a nostalgia do corpo, em retorno aos ritmos vitais do homem, a uma arte muscular. Um retorno àquele “tronco arcaico” (Morin), às “técnicas do corpo”, segundo Marcel Mauss, aos ritmos do corpo no meio natural, como menciona Friedmann. Arte como “cosa corporale”. Nos seus parangolés coletivos Oiticica buscou reviver o ritmo primitivo do tam-tam, fundindo cores, sons, dança e música num único ritual. [...]. Em ambos artistas brasileiros a “obra é frequentemente o corpo” (“a casa é o corpo”), melhor, o corpo é o motor da obra. Ou ainda, é a ele que a obra leva. A descoberta do próprio corpo. O que é de suma importância em uma época em que a máquina e a tec-

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nologia alienam o homem não só de seus sentidos, mas de seu próprio corpo (MORAES, 1983, p. 52).

A geração posterior, que iria passear por outras possibilidades literárias-poéticas, incorporaria (literalmente), muitas das discussões a respeito dessa nova “crítica a partir do corpo”. São novos meios, novas estratégias diante do espaço crítico cerrado pelo ambiente da ditadura. Dessa forma, a politização das formas artísticas vai se reformulando, se moldando às pressões de um tempo amedrontado. A estudiosa e crítica de artes Otília Arantes aponta que com o AI-5 e o recrudescimento da censura, os artistas foram obrigados a encontrar formas de expressão em que a referência ao social fosse menos direta. Indo de encontro à voga internacional do underground, os artistas nacionais que permaneceram no país vão buscar na marginalidade das instituições e pela exacerbação da gestualidade uma desestabilização indireta dos valores impostos (ARANTES, 1983, p. 14).

Já é clássica a apresentação de Antônio Manuel no Salão Nacional de Arte Moderna, no início dos anos 1970, no Rio de Janeiro. Seu trabalho era ele mesmo, o próprio artista, nu, sem retoques, que comparecia para a inauguração do Salão. Outros, como o artista Cildo Meireles, tomaram caminhos também marcados pela individualidade, mas não menos política, quando, de certa feita, se apropriaria de objetos de consumo, como a Coca-Cola, e transformaria seus rótulos, subvertendo informações com o emprego de slogans antiamericanistas, listas de pessoas desaparecidas. Os recipientes eram devolvidos para a fábrica, depois reenchidos e de novo utilizados pelo consumidor. O cinema alternativo, por sua vez, esteve representado por uma produção que se contrapôs não só à cooptação estatal, via produções financiadas pela Embrafilme, mas também em choque com toda uma linguagem dita comercial. A experimentação de linguagens também deu a tônica do chamado cinema “udigrudi”. Produções com baixíssimo custo e carentes de maiores aparatos tecnológicos, mas livres para criar. Angulações imprevistas, cenários improvisados, narrativas não lineares, delirantes, a apropriação do mau gosto, do que é escatológico, são alguns dos elementos trabalhados por cineastas como Rogério Sganzerla, Júlio Bressane, Ivan Cardoso e outros, que estiveram na linha de frente desse chamado cinema marginal. Com produções bara94

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tas e um sistema de distribuição quase inexistente, quando muitas das projeções eram realizadas na sala de estar dos amigos, para um público mínimo, o cinema marginal fez valer o anseio de uma liberdade criadora para uma produção cinematográfica nitidamente marcada pelo domínio ou de uma produção estatal ou das grandes produções cinematográficas da indústria americana. Ainda cabe nesse rol da chamada produção alternativa, marginal, ou mesmo independente, a movimentação em torno de artes como os quadrinhos e a música. Sendo muito próximas as práticas, um mesmo espírito moldava as intenções dos produtores de cultura que procuravam estratégias de sobrevivência diante do sufocamento imposto pelo regime militar. Resumindo, o fato é que a liberdade de expressão de ideias e a discussão sobre o mercado são os dois pontos cruciais pelos quais orbitaram esses insurgentes produtores de cultura. Como se viu, “vazio cultural”, só mesmo se o termo fizer referência a uma produção executada dentro dos moldes Estado-indústria, ou se o vazio apontasse uma determinada expectativa de ação cultural política, nos moldes do que desejava Zuenir Ventura. Pois, de forma mesmo submersa, pelas margens do grande público do rendoso mercado cultural que emergia dentro do projeto político da ditadura, no submundo ora silenciado ora estridente, borbulhava uma produção vasta, rica e importante. Se muitas vezes não muito valiosa esteticamente para analistas como Zuenir Ventura, fundamental para a manutenção de um pensamento, uma resistência, uma condição-vontade de sobreviver.

II No mundo das letras, por debaixo dos panos, nas brechas, assistiríamos à grande explosão da imprensa alternativa, ou, como era chamada na época, imprensa “nanica”. Fugindo do cerco imposto pela censura, muitos jornalistas e intelectuais partiram para a produção de uma “imprensa livre”, marcada pela resistência. Época de atuação de periódicos como O Pasquim, O Bondinho, e os jornais Movimento e Opinião, entre outros. Era a tentativa de livre pensamento e livre informação, associados muitas vezes ao deboche, à informalidade, ao humor. Periódicos de vida curta, muitos deles, de péssima qualidade editorial, mas importantíssimos no sentido de dar vazão às reflexões incontidas e à manutenção Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 87-113 | maio-ago. 2013

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de um pensamento crítico no país, à maneira e desejo daquilo que propunha Zuenir Ventura, talvez. Ao mesmo tempo, vê-se surgir a chamada “geração mimeógrafo” na poesia, ou também “geração marginal”. Os poetas passaram a tomar posse de todas as instâncias da produção de poesia: de sua elaboração até a distribuição. Antes de continuar e abordar a produção mais estritamente literária, gostaria de acionar uma tecla pause nesse nosso trajeto para atentar e já pensar em um termo muito caro aos agentes da cultura da época: resistência. Expressão cara e recorrente, principalmente no trabalho de Heloisa Buarque de Hollanda, mais especificamente em seus artigos publicados na imprensa carioca no começo dos anos 1980, já com algum distanciamento do “calor da hora” da explosão da geração marginal. Heloisa comenta que “é possível se pensar, no caso literário, a poesia marginal dos anos 70 em várias direções” (GASPARI; HOLLANDA; VENTURA, 2000, p. 187), mas enfatiza que escolheu e prefere ver essa produção como “um espaço de resistência cultural, um debate político.” E a palavra resistência se perpetuará em seus artigos de maneira recorrente, sempre que se referir àquela produção. A curiosidade me levou então a pensar a palavra e seus desdobramentos. Vejamos as definições: Do latim: Resistere. V.T.I. 1. Oferecer resistência, não ceder; opor-se, fazer face (a um poder superior) 2. Fazer frente (a um ataque, acusação, etc.), defender-se. 3. Recusar-se, negar-se, opor-se. 4. Durar; conservar-se; subsistir. 5. Oferecer resistência. 6. Oferecer resistência a, opor-se a (FERREIRA, 1986, p. 1.494).

Dois dos termos listados me foram bastante caros: conservar-se e subsistir. Gostaria de pensar, de forma mais específica, aqui já tratando de certa produção literária da época, as ações em torno da poesia e da geração marginal como uma condição em que as coisas se deram, se passaram, como um gesto de sobrevivência diante de forças poderosas e condições existenciais bastante adversas. Um gesto mesmo de conservar-se, manter-se vivo, subsistir. Ou mesmo de re-existir, propondo outras possibilidades. Seja diante de um universo maior, o próprio universo político do país, seja dentro das cadeias de força e dominação da própria cultura. Manter-se vivo diante da condição maior que é o próprio medo. Aqui, tiro da manga um poema de Antônio Carlos de Brito (Cacaso), “Logia e mitologia”, de seu segundo livro, Grupo escolar: 96

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Meu coração de mil novecentos e setenta e dois já não palpita fagueiro sabe que há morcegos de pesadas olheiras que há cabras malignas que há cardumes de hienas infiltradas no vão da unha na alma um porco belicoso de radar e que sangra e ri e que sangra e ri a vida anoitece provisória      centuriões sentinelas do Oiapoque ao Chuí (CACASO, 2002, p. 163)

O coração do poeta perdeu toda a tranquilidade e leveza. Agora ele teme, rodeado por “centuriões sentinelas” e sabe que “cabras malignas” e “cardumes de hienas” tramam e se lambuzam com o poder. Para todos os lados e de todas as formas. Então, como se manter vivo e sóbrio diante de tanto mal, temor, sufoco? Como conservar-se? Que fazer para tentar subsistir? Daí a condição do alternativo, agindo entre brechas, pelos flancos da cultura, da própria poesia, que vão se abrindo a foice e facão, formando também clareiras de respiro nesse ambiente torto e rarefeito. Então, fez-se necessário criar artimanhas de sobrevivência. Mais táticas, que estratégias, se é que é possível pensar assim toda essa movimentação, como veremos a seguir. Desenvolvendo ampla pesquisa que cruzou as décadas de 1960, 70 e parte dos anos 80, o historiador e pensador francês Michel de Certeau dedicou-se a identificar as formas e os modos de fazer de determinados grupos sociais, vivendo sob jugo de forças superiores. As formas de se cozinhar, de se ler, de trafegar na cidade, de consumir, entre outras, foram objeto e motivo de suas observações levando-o a pensar que grupos menos privilegiados, ou oprimidos – subjugados por forças poderosas, estabelecidas seja por condições do momento histórico (guerras, ditaduras, imperialismo das nações etc.) seja pela própria formação cultural das sociedades (o paternalismo, o machismo, o consumo, a leitura, as regras disciplinares etc.) –, criam suas estratégias e táticas de sobrevivência e estabelecem (mesmo que inconscientemente, mesmo sabendo-se domadas pelas esSinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 87-113 | maio-ago. 2013

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truturas de poder) formas peculiares de reação, modos de ser e estar. Na verdade, Certeau acabou propondo que os dominados manipulam e alternam os códigos repassados pelos dominadores. Se Foucault se interessara por uma “microfísica do poder”, analisando a aparelhagem e sutileza de dominação a partir do referencial dos dominadores, Certeau preferiu pontuar suas análises na perspectiva daqueles que consomem, são consumidos, manipulados, cercados, submetidos a essas mesmas formas de poder. Um movimento que revela um gesto de generosidade sobre os mais fracos. Na verdade, os próprios conceitos de fraqueza, submissão, obediência, passam a ser revistos, reavaliados. Nesse movimento de resistir, conservar-se, os sujeitos dominados criam suas táticas. E é isso que interessa a Certeau, como ele mesmo pontua: Meu trabalho [...] consiste em sugerir algumas maneiras de pensar as práticas cotidianas [...] supondo, no ponto de partida, que são do tipo tático. Habitar, circular, falar, ler, ir às compras ou cozinhar, todas essas atividades parecem corresponder às características das astúcias e das surpresas táticas: gestos hábeis do “fraco” na ordem estabelecida pelo “forte”, arte de dar golpes no campo do outro, astúcia de caçadores, mobilidades nas manobras, operações polimórficas, achados alegres, poéticos e bélicos (CERTEAU, 1999, p. 103-104).

As táticas revelam suas formas e modos de fazer, de ser e de estar. Por elas, os sujeitos criam seus desdobramentos e formas de resistências. Mas por que não pensar esses movimentos “astuciosos”, também como estratégias? Certeau trabalha essa dicotomia e elabora uma distinção de nomenclatura a partir das seguintes ideias. Para ele, a estratégia seria o cálculo das relações de forças que se torna possível a partir do momento em que um sujeito de querer e poder é isolável de um ambiente. Ela postula um lugar capaz de ser circunscrito como um próprio e portanto capaz de servir de base a uma gestão de suas relações com sua exterioridade distinta (CERTEAU, 1999, p. 46, grifos do autor).

Ou seja, a estratégia está relacionada com uma tomada de poder, com uma afirmação de um sujeito de querer e poder como uma autonomia, uma ocupação de espaço sobre um outro. Por sua vez, Certeau define a tática como aquela ação calculada que é determinada pela ausência de um próprio. Então nenhuma delimitação de fora lhe fornece a condição de autonomia. E por

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isso deve jogar com o terreno que lhe é imposto tal como o organiza a lei de uma força estranha. Não tem meios para se manter em si mesma, à distância, numa posição recuada, de previsão e de convocação própria: a tática é o movimento “dentro do campo de visão do inimigo”, como dizia Büllow, e no espaço por ele controlado [...]. Ela opera golpe por golpe, lance por lance. Aproveita as “ocasiões” e delas depende, sem base para estocar benefícios, aumentar a propriedade e prever saídas. O que ela ganha não se conserva. Este não lugar lhe permite sem dúvida mobilidade, mas numa docilidade aos azares do tempo, para captar no voo as possibilidade oferecidas por um instante. Tem que utilizar, vigilante, as falhas que as conjunturas particulares vão abrindo na vigilância do poder proprietário. Aí vai caçar. Cria ali surpresas. Consegue estar onde ninguém espera. É astúcia (CERTEAU, 1999, p. 100-101, grifo do autor).

Se a estratégia se organiza pelo postulado de se chegar ao poder, tática é ausência de poder. Mas também é artimanha, jogo de tramas e astúcias, gestos de sobrevivência, subsistir. E é exatamente dessa forma que gostaria de pensar as articulações tramadas pela poesia marginal: como uma tática de sobrevivência. Um gesto político, mas de uma outra dimensão política, como já dissemos, onde se operam táticas de sobrevivência, onde a necessidade de expressão exige determinadas operações por dentro de um ambiente politicamente cerceado e artisticamente polido e ordenado (não menos cerceado) também por instâncias originárias de uma tradição literária, de um mercado excludente, de uma rigidez acadêmica. Ou seja, é dentro daquele próprio, como sugere Certeau, que se operam os movimentos táticos, aproveitando as brechas e abrindo caminhos, flancos, entre as falhas do sistema vigilante e opressor, seja ele político ou literário. Até porque as astúcias da poesia não se colocam mais na perspectiva de tomada de poder. Já comentei que as preocupações político-partidárias haviam se deslocado para os questionamentos morais, para reflexões comportamentais e a ideia da tomada de poder político se esgarçara. Uma época de desilusão, por exemplo, com os acalourados ideais revolucionários de esquerda. Aliás, sobre esses ideais e projetos políticos, Sergius Gonzaga é taxativo ao afirmar suas fragilidades, já que os anos posteriores a 1968 acentuaram o fracasso de um projeto estético/ político articulado mais a partir de fantasias do que sobre um conhecimento das bases concretas da sociedade. Tratava-se de um projeto falso – não por ter sido derrotado – mas por se erigir em torno de uma ideologia

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profundamente ilusória. [...] Sob esse ângulo, a desilusão que se abateria sobre os núcleos pequeno-burgueses, no final da década de sessenta e no início da década seguinte, não seria uma desilusão real, quer dizer, com a grandeza de um fracasso histórico real. Ao contrário, tratava-se de uma desilusão de segunda ordem, infiltrada por sofrimentos e espantos muitas vezes decorrentes da alienação ou da mera impotência para o entendimento da derrocada (GONZAGA, 1981, p. 145).

Se reais ou não as desilusões – não me cabe aqui levar mais adiante essa discussão –, o fato é que os novos poetas se distanciam dessas problemáticas e armam suas táticas com a ideia de criar possibilidades sobre o próprio viver. Ou sobre o que é possível viver. Nesse possível, toda uma sistemática de poder é colocada de lado, no que interessa aos jovens poe­ tas. “Agora, os projetos não se fazem mais no sentido de mudar o sistema, de tomar o poder. Cresce, ao contrário, uma desconfiança básica na linhagem do sistema e do poder” (HOLLANDA, 1980, p. 100). Reafirmo, dessa forma, o movimento tático que a geração marginal empreendeu na época. Não sei afirmar se uma nova utopia, ou uma nova ilusão substituí­ ra outra, mas a verdade é que a literatura, ou a negação dela, como comentaremos depois, funcionou como substituta das armas, das palavras de ordem. O que interessou, nesse jogo tático que assumiram os novos poetas, foi, na verdade, o registro de outras instâncias da vida.

III Nas táticas das letras, sobreviver, subsistir, é vontade tamanha e faz parte do jogo, das artimanhas. E dentro do “campo de visão do inimigo”, saber dizer não, outra hora não entrar no jogo, não querer dançar a dança, é dos movimentos táticos o mais simbólico da geração marginal. Mesmo que nesse negar se observe um movimento de ir e vir, uma mobilidade ao sabor do vento e do momento. Uma negação que se contradiz, se desfaz e, por isso mesmo, é tática. Primeira negativa. Em oposição aos discursos da técnica, da eficiência e da tecnologia, fortemente articulados e difundidos pela elite brasileira e levados à frente pelo regime ditatorial – principalmente entre o final dos anos 1960 e início dos 1970 –, o pensamento contracultural, do qual a geração marginal fora herdeira, projetava a arma afiadíssima da desconfiança. Consumismo e ufanismo são dois elementos centrais colocados 100

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pelo “milagre brasileiro”. Eficiência técnica (inclusive da indústria cultural), avanço tecnológico, alta produtividade, o país caminhando a passos largos, mesmo que o avanço se projete limitado, naquilo que é distribuição democrática desse crescimento. A geração marginal disse não ao aparato tecnológico e ao boom da indústria editorial – principalmente em meados da década de 1970. Sua dimensão do “contra” está na incorporação, por parte do poeta (aquele que produz), de todos os processos na linha de produção do objeto livro. Pensar o poema, colocá-lo no papel, imprimi-lo, divulgá-lo, vendê-lo. A relação de intermediação entre a obra/autor e o público não se daria mais com a dependência de uma editora “formal” e seu aparato de funcionamento, divulgação e distribuição. Esses processos estariam nas mãos do poeta, reduzidos que fossem a uma amplitude mínima de ação. A incorporação da ineficiência em oposição à eficiência da indústria cultural passa a fazer parte e dar sentido à chamada geração marginal. A precariedade é fator positivo, dá força e vida a essa produção. Na era do designer e do planejamento, quando a tecnologia aplicada ao acabamento e à difusão do livro tem na sua retaguarda o amparo firme do cálculo e do interesse econômico, nos deparamos com esses livrinhos de aspecto precário, cheios de resíduos românticos e artesanais. Um entendido em mercadologia e publicidade que desse de cara numa esquina com o livro Muito prazer (Chacal) seria capaz de exclamar surpreso: Mas isso não é uma mercadoria! (CACASO, 1997, p. 18).

Abro de vez o caminho, a partir dessa citação, para o poeta-crítico Antônio Carlos de Brito, o Cacaso,1 um dos articuladores, pensadores das artimanhas táticas e teóricas a respeito dessa geração. Cacaso toma a movimentação em torno da geração marginal para cavar as brechas e transitar pelos flancos do poder intelectual, institucionalizado pelas publicações, ora alternativas, ora oficiais e, principalmente, o poder representado pelo circuito universitário e o próprio cenário literário da época. Ambos (universidade e cenário literário) esboçaram uma crítica reativa e depreciativa para com a poesia jovem que surgia, denominada marginal. Ausência de rigor, descuido, irracionalismo, ingenuidade, egolatria e outro sem-número de adjetivos com a marca do incômodo recaíam sobre a produção marginal. Cacaso (juntamente com Heloisa Buarque de Hollanda) foi a figura que tomou a frente, comprou briga com as forças de reação daquele próprio, de que fala Certeau. Não para eliminá-lo. Essa nunca fora a questão. Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 87-113 | maio-ago. 2013

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Mas para achar um lugar, um modo de ser e estar, dentro desse próprio. Um lugar que foi o da resistência, da artimanha, do jogo tático. E a tática estava em movimentar-se pelos contrários, pelas negativas daquilo que estava institucionalizado: a forma, o conteúdo, o modo de ser e estar da própria literatura. Cacaso foi um ordenador dessas negativas. Então voltemos. Na citação de Cacaso, a respeito do livro Muito prazer, do poeta Chacal, vemos a exaltação do precário. O valor estava ali, taticamente, em afirmar uma não-mercadoria, algo com desconfiado e desacreditado valor de compra e venda. Objeto à margem das negociatas e negociações. O marketing dessa mercadoria é o bate-papo, o “chegar junto”, uma troca de intimidade entre o poeta e o leitor. Cacaso aponta a presença de uma utopia: A distribuição manual do livro, ainda que a troco de algum dinheiro, atenua muito a presença do mercado, modificando funcionalmente a relação entre obra, autor e público e reaproximando e recuperando nexos qualitativos de convívio que a relação com o mercado havia destruído (CACASO, 1997, p. 25).

É certo que a utopia perdurou durante a década de 1970 com força e ajudou a construir uma aura, uma mística da precariedade marginal, uma quase pureza. Mas o jogo de forças, de movimentos táticos, exige idas e vindas, avanços e retrocessos na busca do lugar. A exaltação da precariedade, opondo-se à qualificação técnica, seria tática durante um período mais específico (os anos 1970), no qual o movimento pelos flancos, nos cochilos do poder (e de suas várias faces: estado, universidade, tradição literária, crítica), era o único movimento possível. Com a chegada da década de 1980, e o processo de abertura política, anistia, reordenação de forças, muitos dos poetas da geração marginal passariam a ter seus livros publicados por editoras “formais”, contando com significativas tiragens, eficiente sistema de distribuição e cuidado editorial. Na observação de Heloisa Buarque de Hollanda: A retomada do discurso político na imprensa, a organização das entidades sindicais e estudantis, os movimentos de massa, a novidade das associações de bairro mobilizaram debates e retiram da literatura e da produção cultural em geral o privilégio de ter sido, por um bom tempo, o espaço por excelência da discussão sobre a realidade e o momento brasileiro [...]. A poesia volta à literatura e se torna exigente (HOLLANDA, 2000, p. 188-189).

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Idas e vindas. Táticas da poesia. Segunda negativa. A desconfiança que o olhar contracultural de seus herdeiros diretos (poetas marginais) lança sobre os projetos políticos de esquerda se reproduz ao projeto desenvolvimentista, representado pelo binômio eficiência-produtividade da ditadura militar. Se olharmos bem, essas discussões sobre técnica, progresso, modernidade e a incorporação disso tudo como elemento da literatura já são, há tempos, questões que diziam respeito à tradição da própria literatura e de suas vanguardas. No entanto, tais discussões já não dirão muito para os poetas marginais, que se mostrariam avessos a projetos, planos-piloto, manuais, técnicas, apropriação da tecnologia como, na verdade, um lastro de reacionarismo assumido pela própria literatura. Recorro mais uma vez ao pensamento de Heloisa Buarque: É importante ainda lembrar que o lugar privilegiado que as vanguardas ocupam por mais de uma década na cultura brasileira vai progressivamente perdendo prestígio na medida em que a ideologia desenvolvimentista vai sendo questionada, a partir do entendimento de seu papel e de sua integração ao projeto político-econômico pós-64. Assim sendo, a descrença na significação e na linguagem desenvolvimentista coloca em debate o problema das relações de dependência, acirrado pelo projeto econômico vigente. E é no aprofundamento dessa questão que se empenha a crítica realizada pelo tropicalismo e seus desdobramentos (HOLLANDA, 1980, p. 52).

Onde se lê, “tropicalismo e seus desdobramentos”, leia-se “geração marginal”. Dessa forma, torna-se tático comprar a briga com as vanguardas, especialmente com o concretismo, apontando seu “lugar privilegiado” dentro do cenário literário brasileiro das últimas décadas e, por isso mesmo, tomando essas mesmas vanguardas como estruturas de poder. O movimento é o do afastamento, da tentativa da distância, tomar as possibilidades de experimento (linguagem, estrutura e novos suportes) como “não sendo resultado exclusivo de fidelidade a qualquer programa ou ‘plano-piloto’” (CACASO, 1997, p. 41). Aqui retomo Cacaso, que pensou taticamente esse afastamento. Em alguns de seus artigos, Cacaso é taxativo e aguerrido em expor os preconceitos e lugares de altivez dos representantes da poesia concreta. O papel das vanguardas, dos concretos principalmente, é colocado em xeque em uma fala de dureza, aridez, espicaçando o suposto inimigo. É o que se vê, por exemSinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 87-113 | maio-ago. 2013

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plo, no clássico artigo “Meu verso é de pé quebrado”, publicado em parceria com Heloisa Buarque de Hollanda, na revista Argumento, de janeiro de 1974. Registrando o fato da Expoesia I, mostra realizada pelo departamento de Letras e Artes da PUC-RJ, os autores remetem à ausência dos poetas concretos nas conferências e debates do evento: No entanto, sob a alegação de que na geleia geral brasileira alguém tem que fazer o papel de medula e osso, os irmãos Campos recusaram-se a participar daquilo que julgaram que seria um acontecimento do tipo “eclético-caricativo”, e concluem, dentro de seu velho estilo tautológico, “que a poesia é ou não é” (CACASO, 1997, p. 56).

Mais à frente, surge uma ressalva sobre o “lugar” das vanguardas presentes na exposição de poesia: No terceiro andar, o saguão da biblioteca protegia paradoxalmente as vanguardas processo, práxis, tendência e outras. Esse fato talvez pudesse ser explicado pelo alto custo dos materiais usados, onde se via, por exemplo, o emprego provinciano e abusivo do acrílico, cuja funcionalidade nem sempre pode ser percebida. Se realmente a utilização de materiais nobres, em certas práticas vanguardistas, implica uma necessidade de “seguro” desse material, então algo resulta estranho. O significado prático disso volta-se contra essa própria atividade poética que se revela elitizada, aurificada, defendida do público, quando, contraditoriamente, os objetivos propalados por essas escolas parecem sugerir o contrário. Devemos acreditar no que as vanguardas dizem ou no que fazem? (CACASO, 1997, p. 57)

O ataque é frontal. O “lugar” (físico e político) das vanguardas é colocado sub judice e, principalmente, sob implacável desconfiança. Tempos depois a avalanche da poesia marginal (diga-se de passagem, muito mal vista pelos concretistas) em meio à polêmica travada entre Roberto Schwarz e Augusto de Campos nas páginas do caderno Folhetim, da Folha de S. Paulo, entre março e abril de 1986. Cacaso escreveu artigo, publicado na Revista do Brasil, n. 5, 1986, ainda discutindo o caráter, para ele, autoritário das vanguardas, dentro do cenário literário brasileiro. O que parecia uma rixa particular, ou uma defesa juvenil dos mais fracos ante os mais fortes (quem sabe, era), pode contudo ser lida como um jogo tático. Cacaso se utilizará do “lugar” da poesia concreta (e das vanguardas) para, maliciosamente, afastar a poesia jovem dos anos 1970, a geração marginal, de quaisquer vínculos com aquela. Na verdade, o jogo não 104

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é (era) o de propor uma ruptura com a (já) tradição das vanguardas. Pelo menos no sentido de tomar o lugar dessa tradição. Mais uma vez, a tática não foi a de tomar o lugar do próprio, mas de propor um desvio, uma dobra, e conectar-se a um outro próprio. Tanto em seus textos críticos quanto na sua poesia (como veremos a seguir), Cacaso buscou substituir os vínculos diretos da tradição que antecede a poesia marginal (geração de 45, vanguardas) e substituí-la pela tradição e pelos valores estéticos do modernismo entre 22/30. Ao tratar dos dois antecedentes citados, Cacaso vê, em uma perspectiva crítica, desvios e perda de algumas posturas e avanços levados à frente pelo modernismo. O ar de desconfiança é predominante, tornando-se combustível para detonar as pontes que unem a poesia jovem (marginal) e as tradições da geração de 45 e vanguardas: Vimos que a vocação cognitiva e crítica deflagrada pelo modernismo, seu projeto de inovação participante, começou a desaparecer de nossa poesia com a reação beletrista de 45. Logo essa reação é levada a cabo pelo concretismo, onde a hipertrofia da forma perde a função de conhecimento, e paga tributo à nossa ideologia desenvolvimentista e industrializante dos anos 50 (CACASO, 1997, p. 171).

Antes, e ainda no mesmo artigo publicado em 1978, “Atualidade de Mário de Andrade”, Cacaso aproveita e retoma a discussão sobre a falência crítica da geração de 45 e, mais, trata de uma crítica que lhe é recorrente em relação às vanguardas: a perda de uma referência a um sujeito na poesia e, consequentemente, sua separação da vida e da experiência cotidiana, exercícios tão caros ao também poeta Cacaso: Mas difícil é se estabelecer a autoria, como também a gradação de valor, se estamos diante de poemas concretos, movimento programático e vanguardista, que veio, por assim dizer, depois da reação academicizante iniciada em 45, completar a liquidação do legado artístico-ideológico modernista, mas desta vez com um tipo de reação da era moderna, identificada com os circuitos de comunicação da industrialização de massas. Com 45 o interesse estético especulativo é desconectado do político-social, mas ainda se sustenta na pesquisa interior e psicológica. Com o concretismo, esse último nexo de vida é cortado, e o fazer poético, diante da liquidação do próprio sujeito, degenera em manipulação de materiais (CACASO, 1997, p. 163).

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Em artigo publicado na revista Inimigo Rumor, o poeta, amigo e coetâneo de Cacaso, Eudoro Augusto, reforça minha observação a respeito da “tática de afastamento” (ou seria de descarte?) de que Cacaso se utilizou: [...] Cacaso parece interessado em identificar e descartar as tendências ou movimentos que nos separam do Modernismo. Ou seja, a Geração de 45, o Concretismo e a chamada poesia social. Sempre que toca nesses “assuntos”, deixa clara a sua rejeição e explícitos os seus motivos (AUGUSTO, 2000, p. 105).

Com relação à chamada poesia social, ou aos poetas politicamente engajados – pelo menos, se entendermos dentro dos moldes tradicionais de engajamento de esquerda –, que Eudoro também faz questão de relembrar, Cacaso não é menos taxativo, chegou mesmo a afirmar que alguém já dissera “que o povo é duplamente explorado: economicamente, pelos capitalistas; literariamente, por certos poetas engajados”. Mais à frente, fez questão de apontar que o que tais poetas da esquerda oficial ainda não aprenderam é que não há engajamento possível fora da lição modernista, onde o engajamento prioritário é o da própria forma literária, onde se desenvolve uma ação crítica no domínio mesmo da criação (CACASO, 1997, p. 122).

Cacaso relembra que as formas de engajamento não podem se desprover de um embate dentro da própria linguagem e esta deve ter um compromisso com sua própria liberdade, longe do dogma, da regra, da ortodoxia de partido ou de tendência poética. Aliás, compromisso com o descompromisso. É o que ele observa e propõe quando escreve sobre a poesia do poeta Chacal: [...] a poesia desrespeitou alguma norma? Está precisando se justificar? Necessita dar satisfações a alguém ou algum interesse, além dos seus próprios? E a poesia de Chacal parece querer responder com sua mera presença: vivo brincando mas nem por isso sou inútil, pois é nisso mesmo, em brincar, em ser amadorista, que reside a minha justificativa e mesmo força. É este o fundo de tudo: a poesia de Chacal insinua estar reivindicando a plenitude da gratuidade, e mesmo ancorando nisso sua razão maior de ser. É a busca de um momento que seja de descompromisso com tudo, passando pela ordem dos fatos, a eficiência do raciocínio, a respeitabilidade do veículo e de seus temas, as justificativas louváveis, porém exteriores etc. etc. Descompromisso inclusive com a noção comum de descompromisso, pois pretende ver nisso, no direito à gratuidade e ao jogo desinteressado do espírito, que encarna e que propõe, uma forma

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especial de engajamento, uma participação a um tempo literária e vital num incondicional sentimento de liberdade. Sua utopia é vivida no presente e definida pela via negativa: a liberdade é para ser encarnada agora e não para ser uma meta futura, como na poesia missionária de esquerda, ou simplesmente sufocada e administrada, como nos autointitulados grupos de vanguarda (CACASO, 1997, p. 43).

Mais idas e vindas. Foi tático para Cacaso a recorrente e constante tentativa de desassociar a poesia marginal das vanguardas (concretismo, práxis, processo etc.). No entanto, é preciso deixar claro que essa mesma poesia marginal, frequentemente, por sua vez, fez uso de determinados canais em que é nítido o aproveitamento da visualidade e dos recursos “verbivocovisuais” propostos pelo concretismo e suas crias. Colagens, grafismos, brincadeiras com o espaço em branco da página, novas possibilidades de suporte para a poesia: o cartão-postal, o saco de pão, o outdoor, a pichação em muros, o poema estampado na camiseta etc. Sem contar com as “experiências” de Paulo Bruscky e Daniel Santiago com seus “poemas classificados”, publicados nas páginas de anúncios classificados do jornal Diário de Pernambuco, ou o livro lançado por J. Medeiros editado em formato de rolo de papel higiênico. Como lembra Glauco Mattoso: Não são autores ou grupos bitolados por esta ou aquela escola de vanguarda, e sim gente que, mesmo sem ter tomado parte nos movimentos concreto e processo, assimilou e utilizou livremente todos os recursos disponíveis (MATTOSO, 1981, p. 37).

A ideia é a utilização livre das contribuições das vanguardas, fazendo uso de procedimentos experimentais como possibilidade criativa e desague da própria necessidade de livre expressão dos poetas. Sobre essa ideia de liberdade dos usos da poesia e do próprio poeta, retomo a citação de Cacaso em seu texto sobre Chacal. Retomo o passo na construção das ideias, dos nãos, das táticas da poesia da geração marginal. Cacaso atribui uma força, uma justificativa e uma qualificação na capacidade de brincar que reside na poesia de Chacal. A brincadeira e o amadorismo são vistos como dados de valoração, pois é no descompromisso que emana desse brincar que a poesia se faz; sem estar presa a valores nobres, dogmas sociais e culturais, amarras comportamentais. E é exatamente nessa capacidade de desprendimento – que outra hora fora Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 87-113 | maio-ago. 2013

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visto como alienação, falta de conteúdo moral e cultural –, que Cacaso leu, de fato, uma forma tática de resistência, não só no que diz respeito a um autor específico mas, acredito, a toda a sua geração. O desprendimento da poesia é sua liberdade. Faço uso aqui de um comentário de Cacaso, ainda no artigo de bastante fôlego sobre a poesia de Chacal (“Tudo da minha terra”), no qual pensa essa poética descompromissada, lúdica, brincalhona, malandra e aparentemente irresponsável, como a expressão, na verdade, de uma ação tática – com malícia e jogo de cintura – de sobrevivência. Um movimento para o sujeito conservar-se, subsistir diante da hostilidade do tempo, dos valores, da lógica, da técnica e da própria literatura. O brincar e o lazer são artimanhas do poeta dentro do espaço do próprio: [...] na poesia de Chacal, quem dignifica o homem não é o trabalho mas o lazer; como a vida não está pra brincadeira vai daí que esse lazer exige um esforço permanente de resistência, e num duplo sentido: a luta para não ser absorvido e devorado por uma ordem social da qual desconfia na raiz, autoritária e castradora, e ainda o esforço para sobreviver à margem dela, nas brechas, transando todas. Uma poesia cujo ideal é recortado pela negação dos valores mais diletos do reconhecimento burguês: anel de grau, hipocrisia, paletó e gravata, carreirismo, eficiência, prepotência, dinheiro no banco etc. (CACASO, 1997, p. 35).

Essa passagem reafirma minha intenção de perceber a produção da poe­ sia marginal como um dado de resistência e de como Cacaso é um dos articuladores e leitores desse movimento. Cacaso confirma a condição de embate do poeta contra a devoração de uma ordem social opressora, manifestada não só pela imagem onipresente e castradora do autoritarismo político, mas, e também, pela opressão de uma moral burguesa da qual o poeta pretende se desvencilhar. O poeta move-se pelas brechas, flancos, dentro de sua condição essencial que é a da marginalidade. Ao que parece, Cacaso vê nessa condição de marginalidade outro dado de grande valor: a marginalidade como uma tática de sobrevivência dada pelo espírito do não, exatamente por não se enquadrar em um modelo de mundo (e, consequentemente, de arte) que lhe satisfaz. E sua não satisfação não diz respeito apenas aos padrões modelados pela eficiência financeira mas, e da mesma forma (e força), vai de encontro à eficiência acadêmica, do intelectual com “anel de grau”, “paletó e gravata”, “carreirismo”. Para esse sujeito, o poeta, que vive à

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margem e tem nela seu espaço de sobrevivência, olha com desconfiança. É tático negar o sujeito intelectual, ou o intelectualismo dentro de uma produção da literatura, pois esse intelectualismo, que está ligado ao teó­ rico (ou técnico) também já não diz muita coisa para os jovens poetas. Eles propuseram suas preocupações como que deslocadas do âmbito de uma racionalidade e muito mais aproximadas de uma vivência cotidiana, intuitiva, afetiva, ligada não mais a projetos futuros de transformação social, universalista e revolucionário, mas a uma experiência presentificada no aqui e agora, com todos os surtos e sustos que esse tempo nebuloso pudesse lhes proporcionar. Mais uma negativa? A desconfiança, o afastamento e a aversão ao intelectualismo, ao academicismo é herança dos movimentos de rebelião da juventude que despontaram no final dos anos 1960. Ou seja, uma herança da contracultura, herança de desapontamentos e frustrações, que resultou na busca de outros caminhos, outras vias, opção por negar como possibilidade de sobreviver. Messeder Pereira lembra que para esses grupos, representados por uma parcela da juventude, apostar numa transformação social situada num futuro não muito próximo, e cuja garantia de que seria atingida era teórica, torna-se uma possibilidade cada vez mais remota e pouco significativa. A ênfase recai, portanto, no presente. O “retardamento da ação” implicado pela reflexão teórica mostra-se cada vez mais ineficaz e comprometedor, tendo em vista os objetivos que o grupo se colocava em termos de transformação social. Neste contexto é que surge a possibilidade de um profundo questionamento da ciência, enquanto forma por excelência do “pensamento racional”. Enquadra-se aí tanto a utilização de tóxicos, quanto a volta da atenção para certas formas de pensamento místico, com a consequente exploração de outros estados de consciência e outras formas de percepção. É, portanto, no contexto desse questionamento do pensamento racional (especialmente na sua versão científica) que se situa o anti-intelectualismo, que vai ser uma das marcas do pensamento da contracultura (PEREIRA, 1981, p. 92).

Sintetiza o autor com a seguinte afirmação: Chegamos, assim a três ideias-chave – antiacademicismo, politização do cotidiano e anti-intelectualismo – em termos de compreensão de uma parcela significativa da produção cultural. [...] É, portanto, no quadro formado por estas ideias que têm que ser compreendidos os diversos aspectos que caracterizam a poesia marginal (PEREIRA, 1981, p. 92).

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Cacaso percebeu na poesia jovem que despontara na década de 1970 a disponibilidade para uma escrita despojada de requintes e badulaques formais, na qual a vida e as experiências cotidianas e existenciais dos sujeitos são a pedra de toque, o leitmotiv do fazer poético. A contaminação da vida se opõe violentamente à especialização literária. É a poesia se construindo não com o aparato da leitura, do estudo, do empenho na pesquisa estética, mas pelo encontro, pelas companhias ou pelos repentes, de que fala, quando observa a escrita de um outro poeta de sua geração, Charles Peixoto: O poeta é inconstante, vive de repentes, frequenta lugares e companhias os mais variados, e a própria poesia encarna a forma de registro e expressão desses repentes, menos ligados à morosidade e paciência da elaboração literária do que à captação quase viva do instante, com vocabulário descontraído e tirado diretamente da fala coloquial (CACASO, 1997, p. 210).

Vejo que a literariedade, para Cacaso, está ligada à morosidade, à paciência, elementos que não dão mais conta da poética que desponta, muito mais ligada a uma rapidez, a um instantâneo, a uma urgência de viver. Ou seria sobreviver? E o literário, ao que parece, é uma medida de contenção para esses impulsos vitais que a poesia marginal queria, pois a necessidade de revelar as dimensões variadas do afeto, de certa forma, excluíam ou deixavam frouxas as proporções daquilo que é intelecto. Mas aí é que estava o valor, para Cacaso, dessa nova poesia. Sobre os poemas de Charles, comenta: O verso de Charles revela um sentimento do mundo valorado diferentemente, onde não há lugar para elementos que possam disfarçar ou conter o registro imediato de um impulso afetivo. O resultado é uma poesia desprovida de mediações intelectuais, mas que exatamente por isso manifesta uma complexidade respeitável, inclusive intelectual. Só que agora os problemas dessa natureza estão fundidos na experiência vivida, são partes dela, e o poema pretende ser uma síntese imediatamente captada de ambas as coisas (CACASO, 1997, p. 220, grifo do autor).

Ao que parece, mais uma vez relembrando, Cacaso pensa em uma escrita dotada de grande carga de naturalidade, desperta pelo sensível – que não deixa de excluir o intelecto, de certa forma – e em perfeita sintonia com um registro utópico de liberdade da poesia e do poeta: sem modelos, sem partido ou patrões. Poesia de risco, pois, para Cacaso, põe em xeque a

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racionalização, o estudo e, muitas vezes, sua própria condição de literariedade. É poesia? Não é poesia? É exatamente aqui, nessa questão, que sua forma de pensar a geração é interessante, pois parece querer sempre propor outros registros e formatos para se entender essa escrita que despontava e se colocava taticamente em um lugar de sobra, à margem do próprio literário.

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Nota 1 Antônio Carlos de Brito, conhecido como Cacaso, nasceu em Uberaba,

em 13 de março de 1944 , e morreu no Rio de Janeiro, em 27 de dezembro de 1987. Foi professor universitário, letrista e poeta. Depois de viver no interior de São Paulo, mudou-se aos 11 anos para o Rio de Janeiro, onde estudou Filosofia e, nas décadas de 1960 e 1970, lecionou Teoria da Literatura e Literatura Brasileira na PUC-RJ. Foi um dos principais teóricos da chamada “geração mimeógrafo”. Como poeta publicou Grupo escolar (1974), Segunda classe (em parceria com Luiz Olavo Fontes) e Beijo na boca, ambos em 1975. Depois, Na corda bamba (1978), Mar de mineiro (1982) e Beijo na boca e outros poemas (1985), que reunia uma antologia poética da obra do autor. Como compositor, reuniu parcerias com Edu Lobo, Djavan, Tom Jobim, Toquinho, Olívia Byington, Sueli Costa, Cláudio Nucci, Novelli, Nelson Angelo, Joyce, Toninho Horta, Francis Hime, Sivuca, João Donato, Eduardo Gudin entre outros.

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Edson Alexandre da Silva Advogado criminalista com especialização em Ciências Penais. Mestrando em Psicologia Social (violência e maustratos em idosos) pela Universidade Salgado de Oliveira (Universo).

Lucia Helena de Freitas Pinho França Professora titular do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Salgado de Oliveira (Universo) e consultora em organizações sobre envelhecimento e Programas de Preparação para a Aposentadoria (PPA). Psicóloga com doutorado pela Universidade de Auckland, Nova Zelândia, mestre em Psicologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e especialista em Gerontologia pelo Instituto Sapientiae (SBGG-SP). Trabalhou no Sesc-DN, de 1979 a 1995, onde coordenou o trabalho social com idosos.

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Resumo Este artigo aborda as várias formas de violência contra idosos, bem como os contextos mais propícios à sua deflagração. Dentre as formas de violência mais conhecidas na literatura estão o abuso físico, o abuso psicológico, o abuso financeiro, a negligência, o abuso sexual e o autoabandono. Alguns fatores podem ser considerados como de risco à integridade das vítimas, outros podem causar conflitos no âmbito interpessoal ou social. Considerando a crescente incidência de agressões na família, em que se revela uma subjacência de fatores multifacetários, há uma tendência da vítima em não denunciar os agressores resultando, assim, no fenômeno da subnotificação dos casos. Portanto, é fundamental identificar os prováveis fatores de risco, bem como estabelecer estratégias de prevenção contra os maus-tratos de idosos. Palavras-chave: Violência. Maus-tratos. Idosos. Fatores de risco. Prevenção.

Abstract The article investigates various forms of violence against the elderly, as well as the most favorable contexts in which these episodes can occur. Amongst the most known types of violence in literature, there are the physical, psychological, financial and sexual abuses, negligence, and self-neglect. Some factors can be considered a risk to the physical integrity of the victims; others might cause interpersonal and social conflicts. Considering the increasing number of incidents in the family, which reveals underlying multifaceted factors, there is a trend on the part of the victims not to denounce the aggressors, resulting in an underreporting phenomenon of cases. Therefore, it is crucial to identify the likely risk factors so as to establish prevention strategies against elder abuse. Keywords: Violence. Elder abuse. Elderly. Risk factors. Prevention.

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Introdução A violência é um dos maiores desafios para a sociedade contemporânea. Todos os dias, fatos cada vez mais violentos e aterrorizantes são noticiados na mídia, exortando as autoridades a buscarem incessantes soluções para esse problema, seja de forma repressiva, ou mesmo preventiva. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (2002), esse fenômeno é uma questão de saúde pública e se propaga pelo mundo todo. No entanto, o foco permanente na violência geral traz, diluída, a chamada “cifra oculta da violência contra vulneráveis”. Ou seja, a violência contra mulheres, crianças e idosos; estes que se tornam vítimas invisíveis aos olhos da sociedade, sendo notados apenas quando há grande repercussão de algum evento violento (DUARTE et al, 2011). Considerando o progressivo crescimento da população mundial de idosos, que deverá atingir dois bilhões em 2050 (NAÇÕES UNIDAS, 2003), o assunto vem ganhando relevância acadêmica e social, sendo abordado em pesquisas científicas e alvo de ações governamentais em todo o mundo. A maioria desses idosos deverá viver nos países em desenvolvimento e o Brasil terá a quinta maior população de idosos: 64 milhões. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) demonstrou que dos 195,2 milhões de brasileiros em 2011, 12,1% tinha 60 anos ou mais de idade somando 23,5 milhões de idosos. Ou seja, mais que o dobro do registrado em 1991, que era de 10,7 milhões de idosos (IBGE, 2012). O desafio brasileiro em lidar com o envelhecimento será maior do que o observado pelos habitantes dos países centrais, uma vez que os nossos índices de qualidade de vida precisam ser melhorados não apenas para os idosos, mas para toda a população (FRANÇA, 2012). O que acontecerá num futuro bem próximo – em 2025 – quando os idosos brasileiros irão representar 18% da população? França (2012) ressalta ainda que será a primeira vez na história que teremos mais idosos do que jovens com até 14 anos. Questões relevantes para a qualidade de vida para essa população que envelhece rapidamente demandam ações urgentes pelas instituições governamentais e não governamentais. Soluções precisam ser estudadas pela Psicologia, Medicina, Direito, Engenharia, Serviço Social, Arquitetura

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e Urbanismo, Nutrição, Educação Física, Ergonomia e Economia Doméstica, entre outras disciplinas, para responderem com propostas multidisciplinares a este nosso desafio. Como argumentado por França (2012), a mídia tem um papel fundamental na quebra dos preconceitos frente ao envelhecimento – o ageismo. Os meios de comunicação têm abordado a questão do preconceito contra as mulheres, os negros, os homossexuais, mas ainda são raras as denúncias de preconceito contra idosos. Estas talvez possam intervir como detonadoras no processo de mudança da sociedade com relação ao respeito, à cidadania, à participação social, à aprendizagem e à violência cometida contra os idosos. Maus-tratos, abusos e violência têm sentidos diferentes à luz da literatura, já que cada conceito traz no seu bojo uma ideologia e história próprias. Contudo, abusos e violência são considerados maus-tratos contra idosos (OLIVEIRA et al, 2012) e podem deixar sequelas não apenas físicas, mas também psicológicas e morais. À margem de particularidades literárias, neste artigo abordaremos a questão da violência e dos maus-tratos contra o idoso como conceitos similares, conjugados, mesclados e agregados com outras formas de agressões: comissivas ou omissivas.

1 Tipos de violência Alguns estudiosos buscaram desenvolver um modelo ecológico para analisar a violência na velhice, tendo por base quatro contextos: o individual, o relacional, o comunitário e o social (SANDMOE, 2003). De certo que tal modelo tem alcance bastante abrangente, já que as agressões podem ocorrer no âmbito familiar e institucional. Várias definições são dadas às formas pelas quais os agressores maltratam os idosos, mas quatro tipos de violência são mais condizentes com os maus-tratos contra essas vítimas vulneráveis perante seus algozes. O abuso físico é a forma mais notada de violência, que costuma deixar sequelas e marcas visíveis (hematomas, queimaduras, fraturas e outras), sendo a ação agressiva e brutal apta a ofender a integridade física da vítima. O abuso psicológico se coaduna com formas de privação ambiental, social ou verbal: negação a direitos; humilhações, insultos e ofensas; Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 115-141 | maio-ago. 2013

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preconceitos e exclusão do convívio social; abuso financeiro, exploração econômica, apreensão de rendimentos, uso ilegal ou ilegítimo de fundos, propriedades e outros ativos pertencentes ao idoso (FERNANDES; ASSIS, 1999). Outro tipo é a negligência, que se configura na permissão de que o idoso experimente sofrimentos de maneira ativa – quando há deliberação –, ou passiva – quando é resultado de imperícia no conhecimento das necessidades do idoso, ou provocada pelo estresse do cuidador que se dedica ao idoso por períodos prolongados (PAGELOW, 1984). Minayo (2004) destaca três formas de violência contra os idosos: o abuso sexual – definido como ato ou jogo sexual por meio de aliciamento, violência física ou ameaça; o abandono – definido pela ausência ou deserção no socorro ao idoso dependente de proteção; e o autoabandono ou autonegligência – definido como a autoameaça à própria saúde e segurança, em razão de recusa ou insucesso de prover a si próprio. No mundo do trabalho, uma forma menos divulgada, mas não incomum de violência contra os idosos é o assédio moral que, em muitos casos, acaba por antecipar a saída dos trabalhadores pela aposentadoria forçada, resultando no aparecimento de doenças, depressão e em alguns casos, a morte (FRAIMAN, 2009; FRANÇA, 2008). Henretta, Chan e O’Rand (1992) e Shultz, Morton e Weckerle (1998) apontaram que a aposentadoria compulsória provoca uma redução nos níveis de saúde e de satisfação com a vida. Payne, Robbins e Dougherty (1991) também encontraram um efeito negativo significativo na mortalidade pela aposentadoria antecipada forçada ou pela perda de atividade na aposentadoria. O preconceito contra trabalhadores mais velhos há algum tempo vem chamando a atenção de governos como Estados Unidos, Austrália, Nova Zelândia, Canadá, Holanda e Reino Unido. No Reino Unido, por exemplo, a discriminação no trabalho é crime desde 2006 e apesar do direito à aposentadoria aos 65 anos, os trabalhadores poderão continuar trabalhando, se assim o desejarem. Além disso, há medidas governamentais de proteção contra a discriminação no recrutamento, treinamento e na promoção dos trabalhadores mais velhos e nas demissões injustas após 65 anos (LORETTO; WHITE, 2006). No Brasil, a legislação é clara quanto à proibição da discriminação de idade na contratação de empregados, embora a aposentadoria compulsória estabelecida pelo governo, aos 70 anos, revele uma contradição. Por certo, ainda há muito a fazer para 120

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que a redução do ageismo – preconceito contra idade – possa de fato acontecer (FRANÇA, 2009).

2 Contexto familiar e violência A crença comum de que a felicidade dos idosos estaria em residir com seus familiares nem sempre é compatível com a realidade vivida por eles. Brant (1995) refere-se à família não apenas como o local onde se exercem os laços básicos do indivíduo, mas como um palco de numerosas violências. Debert (2004) aponta que o convívio plurigeracional não é sinônimo de uma velhice bem-sucedida, nem amistosa, entre as gerações. A mesma autora ressalta o fato de a família não ser mais o absoluto refúgio em um mundo sem sentimentos. Ao contrário, o ambiente familiar tornou-se um espaço de opressão, abusos físicos e emocionais, no qual os direitos individuais são cada vez mais alijados de seus detentores. Consequentemente, já existe uma competição entre a primazia da violência familiar e a violência geral das grandes cidades (DEBERT; OLIVEIRA, 2007). Valadares e Souza (2010) corroboram com essa afirmação, ressaltando que a maioria das denúncias de agressões contra idosos são praticadas por parentes das vítimas – 90% dos casos ocorrem nos lares, sendo que dois terços dos agressores são os cônjuges, genros e filhos do sexo masculino. Nos processos criminais, a ênfase é dada às agressões contra crianças pelos parentes adultos, não sendo dada a mesma atenção aos casos contra os idosos da família, tornando-se invisível seu caráter violento. Nesse sentido, a violência contra o idoso tende a ser transformada em violência familiar comum, resultante da incapacidade dos componentes da família em assumir seus papéis sociais nas várias etapas do ciclo familiar (DEBERT; OLIVEIRA, 2007). Ainda assim, novas demandas foram agregadas à vida familiar, na qual os papéis sociais tradicionais e as estruturas que sustentam as formas de convivência na família foram bastante alteradas pela sociedade contemporânea. Um bom exemplo é o papel de cuidadora que a mulher, anos atrás, podia desempenhar sem acumular tarefas que hoje lhe são atribuídas (BOUDREAU, 1993). Oliveira et al (2012) sustentam que há várias razões para explicar essas modificações familiares: separações e divórcios, novos tipos de relacioSinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 115-141 | maio-ago. 2013

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namentos; mercado de trabalho instável que impulsiona o deslocamento de imigrantes nacionais e internacionais em busca de oportunidades de emprego; aumento da expectativa de vida e da população de viúvas; idosos chefiando famílias até a evolução da participação da mulher no mercado de trabalho. Segundo as autoras, todo esse arcabouço de modificações vem gerando conflitos, que podem desencadear atos violentos. Em que pese a família ser o cenário de grande parte das agressões sofridas pelos idosos, é também no seio dela que o idoso, em geral, se sente mais confortável, não apenas materialmente, mas também emocional e psicologicamente. A constatação de tal fato está patente no próprio fenômeno da subnotificação, mormente nos casos em que os idosos preferem sofrer maus-tratos a romperem os laços familiares (CAMMER, 1996). Nesse sentido, a violência doméstica e os maus-tratos contra idosos não podem ser tratados como uma questão meramente privada ou fora do contexto da violência social e estrutural no qual os sujeitos e as comunidades estão inseridos. Portanto, é fundamental considerar a maneira como a violência é percebida nas várias culturas e sociedades. Não faz muito tempo que algumas sociedades consideravam a harmonia no lar como preponderante nas relações parentais, sendo esse pensamento legitimado por tradições filosóficas e políticas públicas, não havendo que se falar em maustratos, nem em denúncias (PASINATO; CAMARANO; MACHADO, 2006). Ainda é possível associar os laços familiares ao bem-estar dos idosos, na medida em que a violência em família não é um fato corriqueiro, mas um problema de todos, inclusive do estado como ente de apoio a esse conjunto de conviventes intergeracionais. Em corroboração a tal entendimento, Brant (1995) assevera que, atualmente, o ordenamento jurídico prescreve que o cuidado deve ser de responsabilidade concomitante entre a sociedade e a família, tendo como auxílio e suporte a ação estatal. De fato, o Estatuto do Idoso (BRASIL, 2003) e a Política do Idoso (BRASIL, 1994) são reflexos da nossa Constituição Federal de 1988, traçando políticas e práticas que tornam o idoso objeto de gestão pública, funcionando como um grande guia das ações estatais e sociais no tratamento com os idosos, bem como indicam o modo como a velhice deve ser vista e significada (JUSTO; ROSENDO, 2010). Assim, o Estatuto do Idoso (BRASIL, 2003) preconiza que:

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É obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do Poder Público assegurar ao idoso, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária (BRASIL, 2003, art. 3º).

Contudo, precisamos não apenas de uma legislação ampla que apoie as necessidades dos idosos, mas da divulgação e promoção dessas leis e sua fiscalização. É preponderante ainda considerar a convivência intergeracional relacionada aos ditames sociais contemporâneos, de modo a proporcionar aos idosos uma qualidade de vida conciliada com o afeto e apoio familiar. Nesse diapasão, Brant (1995) ressalta que é na família que se desenvolvem códigos, sintaxe, normas, ritos e jogos, criando um universo próprio à formação da identidade do sujeito. Coleman e Podolskij (2007), em pesquisa com 50 veteranos de guerra ucranianos e russos acerca da satisfação com a vida, da autoestima e da generatividade, observaram que, apesar das desastrosas consequências sociais e psicológicas da ruptura da União Soviética, esses veteranos demonstraram um alto senso de generatividade, bem-estar e esperança no futuro das suas famílias. Apoiadas pelo estudo acima, França, Silva e Barreto (2010) sugerem que pesquisas e projetos intergeracionais poderiam ser realizados nas comunidades já pacificadas do Rio de Janeiro (UPPs). As autoras argumentam que os projetos intergeracionais nas comunidades representam uma oportunidade para discutir os preconceitos existentes entre as faixas etárias, bem como os problemas nacionais e locais, de forma que as pessoas possam vislumbrar alternativas para o seu bem-estar coletivo.

3 Contexto sociocultural e violência Um estudo com tribos africanas demonstrou que o desejo de extermínio político dos idosos é um verdadeiro rito. Nessas tribos, as funções sociais são bastante definidas, em que a velhice torna o idoso sem função social, logo, um não cidadão. Assim, quando o indivíduo envelhece é levado a cavernas bem distantes para morrer afastado de seu povoado (RIFFIOTIS, 2000; ESPÍNDOLA; BLAY, 2007).

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O resultado desse estudo parece um fato surreal, que não acontece nas sociedades contemporâneas, mas tal conclusão é apenas aparente. O estudo conduzido por Lemos (2010) revela alguns detalhes do relato de uma assistente social em visita a uma casa na qual havia uma senhora de 92 anos abandonada. Uma denúncia anônima relatou que essa senhora encontrava-se em condições desumanas, onde não havia água e nem condições de higiene mínimas. A vítima tinha oito filhos, dos quais apenas uma filha, supostamente doente, lhe dava atenção e a visitava; recebia pensão, mas se ignora quem recebia os valores e como eram utilizados. Esse caso é, indubitavelmente, apenas um entre muitos que ocorrem nos dias atuais, bastando uma consulta aos arquivos de denúncias em órgãos de proteção ao idoso ou nos noticiários da mídia. Nesse contexto, a assistência aos idosos, especialmente aos mais carentes, ganha especial relevância. O chamado desejo social de morte dos idosos se configura de várias formas pela falta de cuidados básicos do cuidador, pelos maus-tratos familiares e institucionais, pelos conflitos de gerações, entre outras mazelas às quais estão expostos (MINAYO, 2003). Outro aspecto que merece destaque é o papel social do idoso na atualidade. Carolino, Cavalcanti e Soares (2010) destacam que o idoso é descartado depois de esgotada sua força de trabalho, dando uma conotação de inutilidade à velhice. Pasinato, Camarano e Machado (2006) observam que no capitalismo o idoso é considerado obsoleto e improdutivo. Dessa forma, há uma exposição do idoso a uma vulnerabilidade social, muitas vezes decorrente de aspectos ligados a questões sociais, culturais e econômicas. Beauvoir (1990) apontou um processo no qual o idoso perde sua qualificação frente à automação e modernização. Esse processo provoca uma profunda perturbação da relação do idoso com suas atividades. Com efeito, se o idoso não acompanha a rapidez dessas mudanças pode ser condenado à obsolescência. Em um contexto em que sua história, seus feitos e suas crenças são colocados em questão, seus sentimentos podem ser de exílio. No mesmo sentido, Faleiros (2007) ressalta que a estrutura adotada no Brasil é de um capitalismo excludente, em que a grande polarização dos recursos cria um contexto de desigualdade social e discriminação. Assim,

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o autor acredita que a imposição de direitos iguais para grupos específicos (como o de idosos), nessa sociedade desigual, é fundamental para a articulação da cidadania com a democracia. Debert (2004) alerta para a “conspiração do silêncio”, forma de tratamento dado aos velhos no nosso país. Tal denúncia se baseia, segundo a antropóloga, em quatro elementos, quais sejam: o aumento de gastos com idosos, já que a população idosa cresce mais do que a de jovens; a exclusão do velho no capitalismo, já que não se trata mais de mão de obra ativa; o desprezo da cultura brasileira pelas suas tradições, valorizando o jovem e desprezando os velhos; e a redução da natalidade em contraposição ao aumento de benefícios assistenciais aos idosos. Esses aspectos arrolados acima contribuem para que a imagem do idoso seja interpretada como um peso para a sociedade, trazendo à tona o que Durkheim (1893) chamou de “consciência coletiva”, que seria o “tipo psíquico da sociedade”. Segundo esse autor, os fatos sociais são absorvidos inconscientemente pelo cidadão, formando o “tipo psíquico da sociedade”. Assim, se a sociedade construiu certo perfil para o idoso, esse é absorvido automaticamente pelos cidadãos. Pasinato, Camarano e Machado (2006) argumentam que a violência decorrente das políticas econômicas e sociais é a grande geradora e multiplicadora de desigualdades, ressaltando que as normas culturais intrínsecas à sociedade são verdadeiras legitimadoras da violência social. Asseveram ainda que, nas sociedades capitalistas, a velhice tem associação com obsolescência e improdutividade, de modo que todo esse cenário insere a violência em um contexto muito mais amplo do que parece, de construção da cidadania em um estado democrático de direito. Assim, quando a Constituição Brasileira (BRASIL, 1988) apresenta no seu artigo primeiro a cidadania como um dos fundamentos da república, está ressaltando que o cidadão interage com a sociedade no sentido de contribuir, mas também de receber apoio para que seja sempre preservada sua dignidade. A violência perpetrada pela sociedade geralmente não é direta, mas estabelecida por meio de atos de negligência que trazem sofrimentos aos idosos. Segundo Machado, Gomes, Xavier (2001), o conceito de negligência seria a recusa ou a falta de cumprimento de obrigações inerentes a

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cuidados. A negligência social é a violência difusa, consentida pelo Estado pela omissão quanto às políticas, aos programas de proteção e abrigo dos idosos. Seguindo essa linha de pensamento, o preconceito é difundido por meio de estereótipos que, conforme Aronson, Wilson e Arket (2002), são observados nas crenças culturais, facilmente reconhecidas pelos membros de determinado grupo. A influência social se reflete no comportamento privado e a imagem do idoso estereotipada pode influenciar o aumento da violência. Em outras palavras, cria-se um caldo de cultura que carrega uma inclinação à violência (FONSECA; GONÇALVES, 2003). Muitas formas de violência social são imperceptíveis, mas algumas são bem comuns e visíveis pela população como, por exemplo, o problema dos transportes públicos, que ainda não estão adaptados à população idosa com problemas de mobilidade. Existe a falta de sensibilidade de usuários que ocupam lugares prioritários nos coletivos e em alguns casos se negam a ceder assentos aos mais velhos; o trânsito urbano não facilita o exercício da liberdade de ir e vir da população idosa nas cidades (MACHADO; GOMES; XAVIER, 2001). Associado à questão dos transportes figura o comportamento dos condutores de coletivos, que nem sempre param para os idosos ou, quando param, deslocam o veículo antes do embarque se completar, gerando vários acidentes por quedas. Esse comportamento desrespeitoso dos usuários e profissionais do transporte reflete a falta de educação de um povo e a pouca articulação entre poder público, empresas de transportes, mídia e demais instituições sociais e educacionais. O governo impôs às empresas de transporte a gratuidade para idosos, mas negligenciou um treinamento mínimo específico para que os condutores e cobradores pudessem lidar melhor com as necessidades e o ritmo diferente dos idosos. Gonçalves (2006) destaca a violência nos hospitais e lares para idosos, nos quais os abusos se configuram como restrições físicas dos pacientes, desconsideração de sua dignidade e de sua livre escolha de opções diárias, além da escassez de cuidados. Segundo a autora, tais abusos ocorrem mais em instituições onde há carência de treinamentos e excesso de carga horária para os funcionários, bem como quando as políticas dessas instituições visam interesse próprio.

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O descaso, a falta de avaliação e de fiscalização das instituições reforçam a violência contra os idosos. Um exemplo disso foi a morte de 156 idosos no período de janeiro a maio de 1996, na Clínica Santa Genoveva, no Rio de Janeiro. O poder público só constatou as condições homicidas em que viviam os internos após ampla divulgação pela imprensa sobre essa tragédia (GUERRA et al, 2000). Aliás, o título do trabalho dos autores, por si só, já dimensiona a questão: “A morte de idosos na Clínica Santa Genoveva, Rio de Janeiro – um excesso de mortalidade que o sistema público de saúde poderia ter evitado.” Alguns estudos buscam investigar e discutir fatores que influenciam as agressões contra os idosos. De fato, a identificação desses fatores poderiam antecipar essas agressões e direcionar medidas para evitá-las nos diversos contextos da sociedade.

4 Fatores de risco Nas ciências da saúde, os fatores de risco são relevantes indicadores que possibilitam a prevenção de várias patologias, já que a identificação de suas características facilita a predição de doenças graves (VERAS, 2003). A identificação dos fatores de risco representa sinais de alerta para possíveis maus-tratos sofridos pelos idosos, cuja importante contribuição técnico-científica e social tornará possível programar medidas de monitoramento da saúde e manutenção de uma relação familiar pacífica entre idosos e seus familiares (SOUZA et al, 2004). Gonçalves (2006) relacionou alguns fatores de risco, como: a dependência e a enfermidade mental ou física de alguns idosos, a cultura da violência, a falta de condições laborais, a falta de recursos financeiros e de apoio comunitário das famílias e as baixas remunerações dos cuidadores. Valadares e Souza (2010) destacaram fatores que podem contribuir para a vulnerabilidade das vítimas. São eles a coabitação entre vítima e agressor; as relações de dependência entre filhos e pais: a carência de comunicação e afeto no ambiente familiar, vínculos familiares frouxos, família e idosos isolados socialmente, existência de violência prévia na família em que o cuidador tenha sido vítima de violência, problemas de doença mental. Para facilitar o melhor entendimento do leitor quanto aos fatores de risco, eles serão apresentados, a seguir, sob a ótica interpessoal e social.

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4.1 Fatores de risco interpessoal Conforme apontado por Souza et al (2004), a dependência pode ser proporcional à vulnerabilidade e à fragilidade do idoso, aumentando os encargos que, em situações adversas, poderão gerar o estresse e a probabilidade de violência. A violência no âmbito familiar decorre em grande parte dos conflitos intergeracionais: o idoso experimenta uma falta de adaptação de convivência com as alterações nas relações familiares, que pode estar associada às várias rupturas, desde as atividades trabalhistas às mutações das relações que mudaram seu estilo de vida, tornando-o dependente de outrem (SOUZA et al, 2004). Os recursos escassos das famílias associados aos cuidados de um idoso fragilizado no contexto doméstico podem criar dependências multifacetadas, difíceis de serem administradas. No mesmo sentido, Meira, Gonçalves e Xavier (2007) argumentam que o pouco conhecimento dos cuidadores sobre o processo de envelhecimento e a técnica de cuidado, bem como a falta de estrutura de amparo integral à família e ao idoso, podem ensejar o risco de violência, já que a relação entre cuidador e assistido é permeada por interferência de sentimentos negativos. Em relevante estudo realizado na Universidade do Sul da Austrália, Sandmoe (2003) destacou outros fatores que podem influenciar a violência e os abusos: estresse inerente ao papel de cuidador, alcoolismo ou consumo de outros estimulantes, episódios de violência pregressa entre as partes, bem como o fato de o cuidador ser dependente do idoso. Carneiro e França (2010) investigaram os conflitos de cem cuidadores no relacionamento com idosos por meio de uma escala que mede conflitos. Os autores concluíram que os idosos que não tinham parceiros apresentaram mais conflitos (aborrecimentos diários e criticismo) com os cuidadores do que os idosos que viviam com parceiros. O nível de escolaridade dos cuidadores não estava relacionado aos conflitos percebidos. A pesquisa reforçou a necessidade de treinamento de habilidades de comunicação e de relacionamento interpessoal entre cuidadores e idosos para reduzir o risco de conflitos entre eles. O gênero é um aspecto relevante nessa discussão por conta da vulnerabilidade das mulheres idosas em situações de violência, mas há contro-

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vérsias em relação à incidência de casos. Pesquisa realizada na delegacia de Polícia de Proteção ao Idoso da cidade de São Paulo, entre 1991 e 1998, mostra que dos 1.559 idosos agredidos naquele período, 57% eram do sexo feminino (SINHORETTO, 2000). Apesar disso, outros estudos demonstram que a proporção de violência é similar tanto com idosos quanto com idosas. No Brasil, Gaioli e Rodrigues (2008) consultaram registros de ocorrências de violência contra idosos em Ribeirão Preto (SP) e constataram maior proporção de violência em idosos do sexo masculino. Em uma amostragem com 87 idosos agredidos, 58,6% das vítimas era do sexo masculino e 41,4% do sexo feminino. O que se percebe é que ainda não há um consenso de que o gênero se afigura fator de risco para a violência contra o idoso. Aliás, Souza, Freitas e Queiróz (2007) asseveram que pesquisas realizadas no Canadá, nos Países Baixos e nos Estados Unidos não revelaram diferenças significativas de prevalência de abusos por idade ou sexo.

4.2 Fatores de risco sociais No que concerne à violência social, seus fatores de risco vêm sendo estudados. Em 1994, Minayo trouxe à tona a ideia de que a violência estrutural seria aquela que oferece um marco do comportamento violento na medida em que as estruturas organizadas e institucionalizadas dos grupos familiares, bem como a cultura, a economia e a política carregam em si a opressão dos indivíduos, grupos, classes e nações que não têm acesso às conquistas da sociedade, sendo estas mais vulneráveis aos sofrimentos e à morte. Beauvoir (1990) aponta o estereótipo do idoso caduco e delirante e vítima das zombarias por parte das crianças. A autora aduz que não importa a virtude ou a objeção do idoso, este não é encarado como parte da humanidade, o que legitima um tratamento sem escrúpulos, de modo a negar-lhe o mínimo necessário à sua existência enquanto homem. Essa situação, contudo, é ambivalente, haja vista o culto à juventude eterna e as imagens da mídia mostrando idosos com mais de 80 anos totalmente independentes e ativos. A imagem do idoso rico e alvo de sedução pelo comércio contrasta com as reportagens que mostram idosos em completo abandono em asilos. Segundo Debert (2004), esse cenário pode trazer à tona o lado perverso e paradoxal da questão, ou seja: considerar problemático e culpado o idoso Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 115-141 | maio-ago. 2013

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que não se enquadra em um perfil de busca por juventude e independência. Tal fato, a toda evidência, pode negativar também a imagem da população idosa, nos direcionando ao que chama atenção Alencar (2005, p. 71): “A violência contra os grupos mais vulneráveis tem seu correlato na repulsa social.”

5 Subdiagnóstico e subnotificação O idoso pode ser vítima de violência sob várias formas e em vários contextos, sendo certo que existem diferentes razões que levam ao problema do subdiagnóstico e da subnotificação (MELO; CUNHA; FALBO NETO, 2006; BRADLEY, 1996). Dentre algumas causas das dificuldades do diagnóstico estão a culpa e a vergonha sentidas pela vítima, bem como o receio de retaliações e represálias do agressor ou de ser internado em asilo. Outro fator que indica a importância do subdiagnóstico e da subnotificação é que os abusos e a violência são perpetrados na maioria dos casos por membros da família, o que poderia explicar o fato de que as vítimas tendem a uma minimização da gravidade das agressões, bem como mantêm a fidelidade ao seu algoz. Muitos se negam a levar os casos às autoridades e a discutir com terceiros, preferindo conviver com maus-tratos a abrir mão de um relacionamento (CAMMER, 1996). Faleiros (2007) alega que os maiores agressores são os filhos e filhas do idoso, havendo uma porcentagem de 54,7% em relação aos demais agressores. O autor acredita que a não denúncia dos agressores ocorra em razão da dependência física e/ou financeira das vítimas, bem como pelo medo que o idoso tem de ser abandonado pelos familiares. Oliveira et al (2012) argumentam que tão logo são agredidos, os idosos podem apresentar reações de medo, vergonha e até culpa pelos conflitos entre ele e o agressor. Isso é um indicador da aceitação da violência como algo natural nas relações entre membros da família. Uma forte justificativa para a subnotificação é o medo, tanto das vítimas quanto das testemunhas, de que a denúncia possa gerar mais violência por parte dos agressores contra os denunciantes. Certamente o subdiagnóstico da violência traz à tona o que Duarte et al (2011) denominaram “invisibilidade social” das vítimas. Segundo as autoras, a cultura ocidental concebe a invisibilidade como inexistência ou 130

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insignificância do ser. De fato, se há uma ausência das estatísticas criminais nos números oficiais, não há um diagnóstico real da violência. Essa invisibilidade se aplica às vítimas, mas também aos agressores, já que a identificação desses últimos se torna impossível pela falta de notificação e apuração dos fatos. Essa problemática mostra a grande discrepância entre a criminalidade que consta nas estatísticas oficiais e a criminalidade subjacente, que é encoberta pela subnotificação de casos. Mesmo quando o idoso resolve romper as barreiras da fidelidade familiar às avessas e denunciar o ato de violência contra ele, é preciso que tenha apoio psicológico para tal, além da punição dos agressores propriamente dita, que nem sempre leva à eliminação da violência, pois sua causa pode não ter sido efetivamente combatida. Jung (1981) toma emprestado o conceito de consciente coletivo de Durkheim para designar os padrões culturais conscientes (valores, moralidade, comportamentos), chamado de mundo social (XAVIER, 2008). É a partir do indivíduo que a comunidade progride moral e espiritualmente e sua adaptação ao mundo social se dá por meio da persona, ou seja, “o papel ou papéis típicos (e coletivos) que servem como função de relacionamento com os outros e com o mundo” (XAVIER, 2008, p. 26). A persona é necessária, mas torna-se negativa quando o indivíduo acredita que é realmente esta máscara, abdicando ou reprimindo violentamente suas peculiaridades e necessidades individuais em função do coletivo e do que a sociedade dele espera. O inconsciente é relativamente autônomo em relação ao ego e tem finalidade (telos), como todo processo psíquico; é criativo e autorregulador e se expressa em uma linguagem simbólica própria. Xavier (2008) destaca que, em função de alguns fatores, inclusive econômicos e sociais, o instinto pode tornar-se violento e primitivo, especialmente quando ocorrer a perda de sentido pela vida. A busca pelo equilíbrio é um impulso, a partir do inconsciente, para a conscientização pelo ego dos elementos de personalidade que são inconscientes. A consciência é um processo que dura toda a vida e cria um sentido a cada vez que atinge o equilíbrio com o inconsciente. Assim, a educação e as intervenções psicoeducativas devem tornar possível a construção da subjetividade singular da pessoa. Compreender o fenômeno é essencial “para o sujeito ser autor Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 115-141 | maio-ago. 2013

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e não apenas ator, e assim ser livre e não violento” (XAVIER, 2008, p. 30). O combate à violência, efetuado por meio do estímulo à dialética, em diversos setores da sociedade, talvez possa trazer uma evolução da redução da sua escalada. De acordo com Jung, é necessário que o indivíduo compreenda o seu valor e a possibilidade de transformação para poder tomar uma decisão, agir eticamente e reconhecer o seu papel dentro da sociedade. O que uma nação faz é o resultado do que muitos indivíduos fizeram e “se não se muda o indivíduo, nada é mudado” (JUNG apud XAVIER, 2008, p. 27).

Considerações finais A Organização Mundial da Saúde (OMS) define a violência contra idosos como as ações ou omissões cometidas uma ou muitas vezes, de forma a prejudicar a integridade física e emocional da pessoa idosa, impedindo o desempenho de seu papel social (VALADARES; SOUZA, 2010). No terreno da saúde pública, esse tipo de violência é reconhecido como maus-tratos, sendo seus resultados representados como “causas externas” da classificação internacional de doenças (CID-10), ou seja, fatos não naturais que provocam lesões, traumas e mortes. A violência contra idosos é um problema que acompanha a história da humanidade e tem ocorrido em todas as sociedades e todos os tempos, sendo um fator preponderante na avaliação do bem-estar dos idosos. Em 2007, no Brasil, 18.946 idosos foram a óbito e 125.000 idosos foram hospitalizados por causas externas (VALADARES; SOUZA, 2010). À margem de conceitos e definições, todos os tipos de agressões têm em comum o sofrimento de suas vítimas. No que tange à vítima idosa, Minayo (2007) a define como despersonalizada e estereotipada negativamente perante a sociedade, se referindo ao agressor como residente nos lares e difuso pelo tecido social, de modo que ora é pessoa ora é o próprio sistema. O estudo da violência com foco nas suas formas, números, sujeitos, sociedades, fatores de risco, bem como em outras vertentes, é de grande relevância para se buscar uma forma de prevenir esse problema. De acordo com Minayo e Souza (1999), a violência é indissociável da sociedade que a produziu, alimentando-se da economia, da política e da cultura,

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construída nas interações entre as pessoas, sendo certo que se trata de um fenômeno histórico-social construído em sociedade e, portanto, pode ser descontruído e reformulado dentro da própria sociedade. De acordo com as autoras, a prevenção da violência é uma medida de promoção da saúde, eis que se trata de problema de saúde pública. É vista ainda de forma multifacetária, exigindo esforços de diversos segmentos sociais. No que toca a legislação, segundo Fonseca e Gonçalves (2003), esta não conseguiu impedir que os idosos continuem presos em casa, com acesso escasso aos recursos institucionais aptos a assegurarem seus direitos. Nesse contexto, eles continuam sob a responsabilidade de seus familiares, que, por sua vez, não dispõem dos recursos mínimos necessários para o cumprimento do que a lei lhes impõe. Acrescentem-se às dificuldades postas à família, a exacerbação de tarefas impostas pela vida urbana e moderna. Isso, segundo os autores, propicia a violência contra o idoso. Assim, se há um caldo de cultura inclinado ao preconceito e à violência contra o idoso (FONSECA; GONÇALVES, 2003), considerados fatos sociais entranhados na consciência coletiva da sociedade, torna-se imperativa a desconstrução da violência (MINAYO, 1999) por meio de uma verdadeira revolução social e de políticas aptas a transformar o tipo psíquico social vigente (DURKHEIM, 1893; CAROLINO et al, 2010). A violência não ocorre apenas entre pessoas de idades diferentes, mas entre os casais idosos ou cuidadores (familiares ou profissionais) da mesma idade. Quando a dependência do idoso em nível psíquico e físico é elevada ou quando os cuidadores se dedicam por um tempo maior de horas o risco de abuso é maior. Assim, medidas preventivas são necessárias para atender às necessidades educativas e de suporte desses cuidadores. Exemplos de medidas psicoeducativas são o proFamílias e o proLongCare, apontadas por Figueiredo et al (2012) como intervenções promissoras na redução do burnout e estresse dos cuidadores em Portugal. De acordo com os autores, as intervenções psicoeducativas são eficazes no apoio aos familiares que cuidam de idosos com demência em seus próprios domicílios, pois aumentam o sentido de competência para lidar com a doença e ajudam a desenvolver estratégias de coping entre esses cuidadores.

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A violência contra os idosos é muitas vezes levada a cabo por outros idosos (como o marido); e muitas vezes não tem a ver com a idade, mas com a fragilidade, a dependência, as crenças culturais. Se quisermos ter menos violência contra idosos temos de começar a ajudar a edificar famílias mais saudáveis e com bons laços afetivos entre seus membros. Para o combate das formas de preconceito e violência contra o idoso, Veras (2010) recomenda os programas de educação gerontológica a serem aplicados às famílias e às comunidades de forma a construir uma sociedade mais justa e capaz de valorizar e respeitar o cidadão de terceira idade. A adoção de programas intergeracionais talvez seja a melhor forma de quebrar os preconceitos contra os idosos (FRANÇA; SILVA; BARRETO, 2010). Tais programas desenvolvem a solidariedade intergeracional e podem ser adotados sistematicamente nas escolas, universidades, empresas e instituições sociais (FRANÇA; SOARES, 1997; FRANÇA et al, 2010). Antonucci (2007) argumenta que as pessoas que vivenciam aspectos positivos nas relações de apoio intergeracional sentem-se mais positivas em relação a si próprias e ao seu mundo, suportando melhor a doença, o estresse e outras dificuldades. De fato, um programa intergeracional pode colaborar para o controle da vida pelos idosos e para a sua aceitação na comunidade, facilitando o seu empoderamento psicológico e comunitário, como conceituado por Wallerstein e Bernstein (1994). Programas intergeracionais podem ser eficazes na prevenção à violência, devendo sua implantação ser estimulada nas escolas, universidade e empresas. Foram sugeridos pelo Plano de Ação Internacional para o Envelhecimento (NAÇOES UNIDAS, 2002), devem estar alinhados com as sete recomendações do item 7 – Solidariedade Intergeracional –, estabelecidas na II Assembleia Mundial do Envelhecimento em 2002, em Madri, e visam fortalecer a solidariedade, mediante a equidade e a reciprocidade entre as gerações. São elas: a) Promover, por meio da educação pública, a compreensão do envelhecimento como questão de interesse de toda a sociedade; b) Considerar a possibilidade de rever as políticas existentes para garantir que promovam a solidariedade entre as gerações e fomentem desta forma, a harmonia social; c) Tomar iniciativas com vistas à promoção de um intercâmbio produtivo entre as gerações, concentrando-as nas pessoas idosas como um recurso da sociedade;

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d) Maximizar as oportunidades de manter e melhorar as relações intergeracionais nas comunidades locais, entre outras coisas, facilitando a realização de reuniões para todas as faixas etárias e evitando a segregação geracional; e) Estudar a necessidade de abordar a situação específica da geração que precisa cuidar ao mesmo tempo de seus pais, de seus próprios filhos e de netos; f) Promover e fortalecer a solidariedade entre as gerações e o apoio mútuo como elemento chave do desenvolvimento social; g) Empreender pesquisas sobre as vantagens e desvantagens dos diversos acordos em relação à moradia de idosos, com inclusão da residência em comum com os familiares e formas de vida independente, em diferentes culturas e contextos (NAÇOES UNIDAS, 2002, p. 44).

Por fim, para que possamos reduzir a violência com idosos é crucial que, além da interlocução entre os diversos atores da sociedade, tenhamos uma visão sustentável por meio da educação, pois só assim poderemos construir uma sociedade verdadeiramente desenvolvida. Como ressaltado por Kalache (2008) devemos nos preocupar com as futuras gerações, já que estas serão responsáveis pela sobrevivência da humanidade. Nesse sentido, é imprescindível uma mudança no “tipo psíquico da sociedade” (DURKHEIM, 1893), de modo que as futuras gerações já nasçam em um contexto de justiça e respeito aos idosos, fazendo com que esses princípios sejam absorvidos naturalmente pela sociedade.

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Violência e maus-tratos contra as pessoas idosas

OLIVEIRA, M. L. C. et al. Características dos idosos vítimas de violência doméstica no Distrito Federal. Revista Brasileira de Geriatria e Gerontologia, Rio de Janeiro, v. 15, n. 3, p. 555-566, 2012. ORGANIZACIÓN MUNDIAL DE LA SALUD. Declaración de Toronto para la prevención global del maltrato de las personas mayores. Revista Española de Geriatría y Gerontologia, Madrid, v. 37, n. 6, p. 332-333, 2002. PAGELOW, M. D. Family violence. New York: Praerger,1984. PASINATO, M. T.; CAMARANO, A. A.; MACHADO, L. Idosas vítimas de maus tratos domésticos: estudo exploratório das informações levantadas nos serviços de denúncia. Rio de Janeiro: IPEA, 2006. PAYNE, E.; ROBBINS, S.; DOUGHERTY, L. Goal directedness and older-adult adjustment. Journal of Counseling Psychology, Washington, v. 38, n. 3, p. 302-308, 1991. RIFFIOTIS, T. O ciclo vital contemplado: a dinâmica dos sistemas etários. In: BARROS, M. L. Sociedades negro-africanas em velhice ou terceira idade?: Estudos antropológicos sobre identidade, memória e política. 2. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2000. p. 27-35. SANDMOE, A. Identifying abuse of older people through the use of checklist: an examination of the evidence. Master Thesis - School of Nursing and Midwifery, University of South Australian, Australia, 2003. SHULTZ, K.; MORTON, K.; WECKERLE, J. The influence of push and pull factors on voluntary and involuntary early retirees: retirement decision and adjustment. Journal of Vocational Behavior, New York, v. 53, p. 45-57, 1998. SINHORETTO, J. Além de mulheres, idosas: um estudo de caso da Delegacia Policial de Proteção ao Idoso de São Paulo. Boletim IBCCRIM, v. 8, p. 1-2, 2000. SOUZA, A. S. et al. Fatores de risco de maus-tratos ao idoso na relação idoso/ cuidador em convivência intrafamiliar. Textos sobre Envelhecimento, Rio de Janeiro, v. 7, n. 2, p. 63-84, jul./dez. 2004. SOUZA, J. A. V.; FREITAS, M. C.; QUEIROZ, T. A. Violência contra os idosos: análise documental. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, v. 60, n. 3, p. 268-272, 2007. VALADARES, F. C.; SOUZA, E. R. Violência contra a pessoa idosa: análise de aspectos da atenção de saúde mental em cinco capitais brasileiras. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 15, n. 6, 2010. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S141381232010000600014>. Acesso em: 18 jan. 2013. VERAS, R. Em busca de uma assistência adequada à saúde do idoso: revisão da literatura e aplicação de um instrumento de detecção precoce e de previsibilidade de agravos. Saúde Pública, v. 19, n. 3, p. 705-715, 2003.

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Edson Alexandre da Silva | Lucia Helena de Freitas Pinho França

VERAS, R. Vida plena sem violência na maturidade: a busca contemporânea. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 15, n. 6, p. 2669-2676, 2010. WALLERSTEIN, N.; BERNSTEIN, E. Introduction to community empowerment, participation, education and health. Health Education Quartely, New York, v. 21, n. 2, p. 141-170, 1994. XAVIER, M. Arendt, Jung e humanismo: um olhar interdisciplinar. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 17 n. 3, p. 19-32, 2008. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ sausoc/v17n3/04.pdf>. Acesso em: 23 mar. 2013.

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NĂšMEROS ANTERIORES Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 1-152 | maio-ago. 2013

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EDIÇÃO 17 Cidade Maravilhosa: encontros e desencontros nos Projetos de Remodelação urbana da capital entre 1902 e 1927 José Cláudio Sooma Silva

A captura do gosto como inclusão social negativa: por uma atualização crítica da ética utilitarista Marco Schneider

Inovação, tecnologias sociais e a política de ciência e tecnologia do Brasil: desafio contemporâneo Marcos Cavalcanti André Pereira Neto

Recentes dilemas da democracia e do desenvolvimento no Brasil: por que precisamos de mais mulheres na política? Marlise Matos

Trabalho infantil no Brasil: rumo à erradicação Ricardo Paes de Barros e Rosane da Silva Pinto de Mendonça

EDIÇÃO 18 O debate parlamentar sobre o Programa Bolsa Família no governo Lula Anete B. L. Ivo José Carlos Exaltação

Educação para a sustentabilidade: estratégia para empresas do século XXI Deborah Munhoz

Fagulhas do autoritarismo no futebol: embates sobre o estilo de jogo brasileiro em tempos de ditadura militar (1966-1970) Euclides de Freitas Couto

Juventudes, violência e políticas públicas no Brasil: tensões entre o instituído e o instituinte Glória Diógenes

A máquina moderna de Joaquim Cardozo Manoel Ricardo de Lima

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EDIÇÃO 19 Um convite à leitura Gabriel Cohn

Caio Prado Jr. como intérprete do Brasil Bernardo Ricupero

As raízes do Brasil e a democracia Brasilio Sallum Jr.

Gilberto Freyre e seu tempo: contexto intelectual e questões de época Elide Rugai Bastos

Entre a economia e a política – os conceitos de periferia e democracia no desenvolvimento de Celso Furtado Vera Alves Cepêda

EDIÇÃO 20 Interpretações do Brasil e Ciências Sociais, um fio de Ariadne André Botelho

Cotas aumentam a diversidade dos estudantes sem comprometer o desempenho? Fábio D. Waltenberg Márcia de Carvalho

Três críticos: Antonio Candido, Paulo Emílio e Mário Pedrosa Francisco Alambert

Gonçalo M. Tavares: o ensaio, a dança, o espírito livre Júlia Studart

Caio Prado Jr. e o intelectual marxista hoje Marco Aurélio Nogueira

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EDIÇÃO 21 Faces do trágico e do cômico na moderna prosa rodriguiana Agnes Rissardo

Saber escolar em perspectiva histórica. O ensino religioso: debates de ontem e

hoje na História da Educação Aline de Morais Limeira

A inocência dos muçulmanos, blasfêmia e liberdade de expressão: problemas de tradução intercultural Daniel Silva

O confronto entre a jurisdição penal global e a soberania estatal: tribunal penal internacional versus razão de estado Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco

Castro Alves: dramaturgo bissexto Walnice Nogueira Galvão

Caso tenha interesse em receber a revista

Sinais Sociais, entre em contato conosco: Assessoria de Divulgação e Promoção Departamento Nacional do Sesc publicacoes@sesc.com.br tel.: (21) 2136-5149 fax: (21) 2136-5470

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NORMAS PARA PUBLICAÇÃO Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n. 22 | p. 1-152 | maio-ago. 2013

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Política editorial A revista Sinais Sociais é editada pelo Departamento Nacional do Ser­viço Social do Comércio (Sesc) e tem por objetivo contribuir para a difusão e o desenvolvimento da produção acadêmica e científica nas áreas das ciências humanas e sociais. A publicação oferece a pesquisadores, universidades, instituições de ensino e pesquisa e organizações sociais um canal plural para a disseminação do conhecimento e o debate sobre grandes questões da realidade social, proporcionando diálogo amplo sobre a agenda pública brasileira. Tem periodicidade quadrimestral e distribuição de 5.000 exemplares entre universidades, institutos de pesquisa, órgãos públicos, principais bibliotecas no Brasil e bibliotecas do Sesc e Senac. A publicação dos artigos, ensaios, entrevistas e dossiês inéditos está condicionada à avaliação do Conselho Editorial, no que diz respeito à adequação à linha editorial da revista, e por pareceristas ad hoc, no que diz respeito à qualidade das contribuições, garantido o duplo anonimato no processo de avaliação. Eventuais sugestões de modificação na estrutura ou conteúdo por parte da Editoria são previamente acordadas com os autores. São vedados acréscimos ou modificações após a entrega dos trabalhos para composição.

Normas editoriais e de apresentação de artigos O trabalho deve ser apresentado por carta ou e-mail pelos(s) autor(es), que devem se responsabilizar pelo seu conteúdo e ineditismo. A carta deve indicar qual ou quais áreas editoriais estão relacionadas ao trabalho, para que este possa ser encaminhado para análise editorial específica. A mensagem deve informar ainda endereço, telefone, e-mail e, em caso de mais de um autor, indicar o responsável pelos contatos. Incluir também o currículo (com até cinco páginas) com a formação acadêmica e a atuação profissional, além dos dados pessoais (nome completo, endereço, telefone para contato) e um minicurrículo (entre 5 e 10 linhas, fonte Times New Roman, tamanho 10), que deverá constar no mesmo documento do artigo, com os principais dados sobre o autor: nome, formação, instituição atual e cargo, áreas de interesse de trabalho, pesquisa, ensino e últimas publicações. Os textos devem ser encaminhados para publicação ao e-mail: sinaissociais@sesc.com.br, ou em CD ao endereço a seguir: 148

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DEPARTAMENTO NACIONAL DO SESC Gerência de Estudos e Pesquisas (DPD) Av. Ayrton Senna 5.555, CEP 27775-004 Rio de Janeiro/RJ O corpo do texto deverá ter no mínimo 35.000 e no máximo 60.000 caracteres, digitado em editor de texto Word for Windows, margens 2,5 cm, fonte Times New Roman, tamanho 12, espaçamento entrelinhas 1,5. As páginas devem ser numeradas no canto direito superior da folha. A estrutura do artigo deve obedecer à seguinte ordem: a) Título (e subtítulo se houver). b) Nome(s) do(s) autor(es). c) Resumo em português (de 100 a 250 palavras, fonte Times New Roman, tamanho 10, não repetido no corpo do texto). d) Palavras-chave (no máximo de cinco e separadas por ponto). e) Resumo em inglês (de 100 a 250 palavras, fonte Times New Roman, tamanho 10). f) Palavras-chave em inglês (no máximo de cinco e separadas por ponto). g) Corpo do texto. h) Nota(s) explicativa(s). i) Referências (elaboração segundo NBR 6023 da ABNT e reunidas em uma única ordem alfabética). j) Glossário (opcional). l) Apêndice(s) (opcional). m) Anexo(s) (opcional). Anexos, tabelas, gráficos, fotos e desenhos, com suas respectivas legendas, devem indicar as unidades em que se expressam seus valores, assim como suas fontes. Gráficos e tabelas devem vir acompanhados das planilhas de origem. Todos esses elementos devem ser apresentados no interior do texto, no local adequado ou em anexos separados do texto com indicação dos locais nos quais devem ser inseridos. Sempre que possível, deverão ser confeccionados para sua reprodução direta. As imagens devem ser enviadas em alta definição (300 dpi, formato TIF ou JPEG). Recomenda-se que se observem ainda as normas da ABNT referentes à apresentação de artigos em publicações periódicas (NBR 6022), apresentação de citações em documentos utilizando sistema autor-data (NBR 10520) e numeração progressiva das seções de um documento (NBR 6024).

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Referências (exemplos): Artigos de periódicos DEMO, Pedro. Aprendizagem por problematização. Sinais Sociais, Rio de Janeiro, v. 5, n. 15, p.112-137, jan. 2011. DIAS, Marco Antonio R. Comercialização no ensino superior: é possível manter a ideia de bem público? Educação & Sociedade, Campinas, v. 24, n. 84, p. 817-838, set. 2003.

Capítulos de livros CANDIDO, Antonio. O significado de Raízes do Brasil. In: HOLANDA Sergio Buarque de. Raízes do Brasil. 25. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1993. p. 39-49. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Tratado de nomadologia: a máquina de guerra. In: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Trad. Aurélia Guerra Neto e Celia Pinto Costa. São Paulo: Ed. 34, 1980. v. 5, p. 14-110.

Documentos eletrônicos IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios: síntese de indicadores: 2002. Rio de Janeiro, 2003. Disponível em: < http://www.ibge.gov. br/home/estatistica/populacao/trabalhoerendimento/pnad2002/ sintesepnad2002.pdf>. Acesso em: 21 jul. 2013. SANTOS, José Alcides Figueiredo. Desigualdade racial de saúde e contexto de classe no Brasil. Dados, Rio de Janeiro, v. 54, n. 1, 2011. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S001152582011000100001&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 20 jul. 2013. SANTOS, Nara Rejane Zamberlan; SENNA, Ana Julia Teixeira. Análise da percepção da sociedade frente à gestão e ao gestor ambiental. IN: CONGRESSO BRASILEIRO DE GESTÃO AMBIENTAL, 2., 2011, Londrina. Anais eletrônicos... Bauru: IBEAS, 2012. Disponível em: < http://www.ibeas. org.br/congresso/Trabalhos2011/I-002.pdf>. Acesso em: 21 jul. 2013.

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Livro HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1936.

Trabalho acadêmico VILLAS BÔAS, G. A vocação das ciências sociais: (1945/1964): um estudo da sua produção em livro. 1992. Tese (Doutorado em Sociologia) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 1992.

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Esta revista foi composta na tipologia Caecilia LT Std e impressa em papel p贸len 90g, na Setprint Gr谩fica e Editora.

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