Catálogo Mostra de Cinema Sombras que Assombram — O Expressionismo no Cinema Alemão

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Mostra de cinema

Sesc | Serviço Social do ComÊrcio






Sesc | Serviço Social do Comércio Presidência do Conselho Nacional

Antonio Oliveira Santos Departamento Nacional Direção-Geral

Maron Emile Abi-Abib Coordenadoria de Educação e Cultura

Nivaldo da Costa Pereira CONTEÚDO Gerência de Cultura Gerente

Marcia Costa Rodrigues Assessoria de Cinema

Marco Aurélio Lopes Fialho Nadia Moreno Texto

Marco Aurélio Lopes Fialho PRODUÇãO EDITORIAL Assessoria de Comunicação Direção

Christiane Caetano Supervisão editorial e edição

Fernanda Silveira Projeto gráfico

Ana Cristina Pereira (Hannah23) Revisão de texto

Clarisse Cintra Produção gráfica

Celso Mendonça As imagens inseridas nesta publicação foram retiradas dos filmes relacionados neste catálogo.

Sombras que assombram : o expressionismo no cinema alemão : mostra de cinema. -- Rio de Janeiro : Sesc, Departamento Nacional, 2013. 92 p. : Il. ; 27 cm.

©Sesc Departamento Nacional Av. Ayrton Senna, 5.555 — Jacarepaguá Rio de Janeiro — RJ CEP 22775-004 Tel.: (21) 2136-5555 www.sesc.com.br

ISBN 978-85-8254-032-9. 1. Cinema alemão – Catálogo. I. Sesc. Departamento Nacional. CDD 791.43

Impresso em maio de 2014. Distribuição gratuita. Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/2/1998. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida sem autorização prévia por escrito do Departamento Nacional do Sesc, sejam quais forem os meios e mídias empregados: eletrônicos, impressos, mecânicos, fotográficos, gravação ou quaisquer outros.


Mostra de cinema

Sesc | Serviço Social do ComÊrcio Departamento Nacional Rio de Janeiro Maio de 2014



“Em torno de nós vê-se o monstruoso, fruto da insanidade, imprudência, inépcia e completa degeneração. O que essa exposição oferece inspira horror e aversão em todos nós.” Adolf Ziegler. Discurso de abertura da exposição expressionista Arte Degenerada, 1937.


Criado e administrado há mais de 60 anos por representantes do empresariado do comércio de bens e serviços e destinado à clientela comerciária e a seus dependentes, o Sesc vem cumprindo com êxito seu papel como articulador do desenvolvimento e bem-estar social ao oferecer uma gama de atividades a um público amplo, em um esforço que conjuga empresários e trabalhadores em prol do progresso nacional. Dentre suas diversificadas áreas de atuação, a cultura se caracteriza como um democrático disseminador de conhecimento, uma importante ferramenta para a educação e transformação da sociedade, levada ao público de grandes e pequenas cidades por meio da itinerância de espetáculos, exposições e mostras de cinema. Ao possibilitar o livre acesso aos movimentos culturais, seja no cinema, como também nas artes plásticas, no teatro, na literatura ou na música, o Sesc incentiva a produção artística, investindo em espaço e estrutura para apresentações e exposições, mas, acima de tudo, promovendo a formação e qualificação de um público que habita os quatro cantos do Brasil. A credibilidade alcançada pelo Sesc nesse âmbito faz da entidade uma referência nacional, o que revela a reciprocidade entre suas ações e políticas e as atuais necessidades de sua clientela.

Antonio Oliveira Santos Presidente do Conselho Nacional do Sesc


O Sesc é uma entidade de prestação de serviços de caráter socioeducativo que promove o bem-estar dentro das áreas de Saúde, Cultura, Educação e Lazer, com o objetivo de contribuir para a melhoria das condições de vida da sua clientela e facilitar seu aprimoramento cultural e profissional. No campo da cultura, a atuação do Sesc acontece no estímulo à produção cultural, na amplitude do conhecimento e no fortalecimento de sua identidade nacional, condições essenciais ao desenvolvimento de um país. Nesse cenário, a mostra de cinema Sombras que Assombram — O Expressionismo no Cinema Alemão oferece a oportunidade de se conhecer o movimento expressionista, que teve seu auge em uma Alemanha arruinada pela Primeira Guerra Mundial e se caracterizou pelo uso de imagens fantásticas e assustadoras e ao mesmo tempo pela exposição de uma sociedade imersa em um cenário desolador e extremamente mecanicista. O caráter histórico e documental deste projeto viabiliza a proposta do Sesc dentro da ação programática de cultura ao se constituir como uma ferramenta de enriquecimento intelectual dos indivíduos, propiciando-lhes uma consciência mais abrangente e aberta a meios mais estimulantes e educativos de aquisição da cultura universal.

Maron Emile Abi-Abib Diretor-Geral do Departamento Nacional do Sesc


Impulsos irracionais de uma época, 10

Contexto histórico para o expressionismo, 12 O cinema nos conturbados anos 1920, 13 A relação do fantástico com o expressionismo, 15 Estética do expressionismo no cinema alemão, 18

Robert Wiene, 22 O gabinete do Dr. Caligari, 27 As mãos de Orlac, 33

Paul Wegener, 36 O golem, 40

Paul Leni, 44 O gabinete das figuras de cera, 48 O homem que ri, 52

F.W. Murnau, 56 Fausto, 60 Nosferatu, 64 A última gargalhada, 68

Fritz Lang, 74 Metropolis, 78 Notas, 82 Referências, 83


Sumรกrio


Impulsos irracionais de uma ĂŠpoca


Roger Cardinal, um dos mais conceituados estudiosos do expressionismo nas artes, descreve sinteticamente o expressionismo como um encontro da criatividade do artista com seus impulsos emocionais e instintivos mais profundos. A expressão da obra adquire então um caráter subjetivo, pois a forma artística resulta das angústias humanas do indivíduo criador.1 No início do século 20, o mundo assombra-se com as obras de Freud, seus estudos complexos sobre a libidinosa psique humana e, mais adiante, com Franz Kafka, já em 1915, que investe nos processos de aprisionamento humano, com seu sinistro e metafórico homem-inseto em A metamorfose. Essa atmosfera cultural permeia e cria o estofo necessário para o desenvolvimento do expressionismo na Alemanha. No plano político, a República de Weimar rapidamente frustra a esperança de transformação social mais profunda, após massacrar o movimento revolucionário liderado por Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, e se tornará um estorvo às mentes mais críticas desse conturbado momento histórico.

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Contexto histórico para o expressionismo Segundo o historiador Eric Hobsbawn (1997), o século 20 foi marcado por posições políticas extremadas e, em síntese, foi breve e intolerante. Diz ainda que o principal acontecimento desse período foi a Primeira Guerra Mundial, “que assinalou o colapso da civilização (ocidental) do século 19”.2 A década de 1920 marcou, antes de tudo, o ápice do modelo liberal e da ilusão de prosperidade econômica; o auge da produção se deu graças às novas tecnologias desenvolvidas. Os países vencedores da Primeira Guerra Mundial impuseram acordos humilhantes às potências derrotadas, como a Alemanha e a Itália. A decrepitude moral tornou-se parte da vida cultural desses países e um sentimento de inferioridade contaminou a sociedade. O expressionismo no cinema manifestou maciçamente o horror psicológico desse momento que antecedeu a escalada nazista na Alemanha, no entanto, não pode ser reduzido a apenas isso. Em momentos de crise e abalo social é comum vermos as artes se apresentarem de modo mais contundente, interpondo como elemento crítico e participativo. Mesmo não sendo o expressionismo cinematográfico explicitamente contra o sistema político vigente, esse movimento conseguiu criar uma atmosfera em seus filmes que hoje muito nos diz sobre a vida na Alemanha dos anos 1920. A segunda metade do século 19 foi marcada por uma forte industrialização dos países europeus – sobretudo Inglaterra – e Estados Unidos, no período conhecido como Segunda Revolução Industrial, sendo também a era do aço, do telégrafo, do trem e do motor à explosão, transformações que alavancariam a criação de equipamentos utilizados nas artes, como o próprio cinematógrafo. Iniciou-se então

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uma busca por matéria-prima e mercados entre as maiores potências mundiais. Alemanha e Itália se uniram tardiamente, mas também se lançaram nessa briga. O resultado desse acirramento foi a eclosão da Primeira Guerra Mundial (1914-1919), que abalou a vida dos habitantes do planeta, e o cinema, assim como as artes em geral, também sofreu profundamente.

O cinema nos conturbados anos 1920 Em 1919, O gabinete do Dr. Caligari demonstrou que o cinema atingira a maturidade artística. Trata-se de um filme inaugural, que demarca um momento de clivagem. Existe o cinema antes e o cinema depois de Caligari. O cinema alemão dá um passo estético irrevogável ao adentrar nos meandros da psicologia humana, ao mostrar que as histórias poderiam ir além da narração; abriam janelas para se perscrutar a interioridade dos pensamentos e do agir humanos. O expressionismo alemão contribuiu, de uma só vez, tanto como fenômeno estético quanto como revelador da alma. Daí a necessidade de tratarmos rapidamente sobre o cinema da década de 1910. Na década de 1910, o norte-americano David W. Griffith mostrou ao mundo as possibilidades de sistematização do aparato cinematográfico: por meio de aproximações da câmera em objetos e pessoas em determinado momento, poderia ser acentuado, por exemplo, o caráter dramático de uma cena, contando ainda com os recursos da montagem que o aparato

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então oferecia. No entanto, o experimento de Griffith representa um pouco mais do que isso, pois se consolida no cinema nascente a noção de significado (ao reafirmar a sua capacidade de narratividade), e vai mais além ao imbuí-lo de uma faceta significante, isto é, deixando clara a importância também de como narrar uma história. Assim, Griffith demonstra de uma só vez que o cinema podia não só contar uma história, mas também se constituir como uma linguagem específica. O expressionismo no cinema situa-se em um contexto da história da linguagem cinematográfica em uma encruzilhada: caminhos artísticos os mais diversos estavam sendo experimentados, e talvez ele representasse, devido à própria situação da Alemanha nos anos 1920, não exatamente uma síntese estética, mas uma síntese da indefinição de rumos, da dúvida que pairava nesse momento acerca de qual seria a serventia do cinema para a humanidade. Seria o cinema uma linguagem específica, munido de códigos próprios, interesses estéticos definidos, voltado sobremaneira para despertar sensações profundas e inovadoras nos seres humanos? Ou uma mera extensão da narrativa literária e/ou teatral? Uma arma ideológica usada pelo governo? Uma ferramenta de entretenimento? Um bem cultural a serviço da educação? A consolidação da indústria de Hollywood e a interferência moral do estado nos enredos dos filmes, o uso do cinema pelo Terceiro Reich, o papel educativo dado pelo governo inglês e político-partidário dado pelo governo soviético serão respostas para algumas dessas perguntas.

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A relação do fantástico com o expressionismo


De acordo com o crítico literário Tzvetan Todorov, o fantástico pode ser entendido como tal quando se põe em dúvida a noção de real de determinado fenômeno, isto é, quando não se consegue explicá-lo pela lógica, mas somente sob a regência de outras leis que desconhecemos. Para Todorov, normalmente um fenômeno “se pode explicar de duas maneiras, por meio de causas de tipo natural e sobrenatural. A possibilidade de se hesitar entre os dois criou o efeito fantástico”.3 O fantástico nasce na literatura e tem o cultuado escritor Edgar Allan Poe como ícone, mas a sua concepção é muito bem assimilada pelo cinema ainda em seus primórdios. O ilusionista e cineasta francês Georges Méliès é considerado um dos precursores do cinema fantástico, com o seu célebre filme Viagem à lua (1902), momento em que o cinematógrafo ainda era mais uma curiosidade do que um aparelho apto a criar uma linguagem autônoma. Mas é no cinema alemão que o fantástico surge com maior vigor, antes mesmo da eclosão do expressionismo alemão, já nos anos 1910, com a incorporação de escritores do gênero fantástico como roteiristas de filmes. Somente no final da década de 1910 e início dos anos 1920 que o fantástico alcança uma força incontestável no cinema, com o sucesso de O gabinete do Dr. Caligari, filme de Robert Wiene. Nesse filme, vem à tona todo o potencial expressionista ao revelar uma Alemanha gótica, demoníaca, com seus pesadelos mais obscuros. O mais incrível na película de Wiene é a sua capacidade de tornar o gênero fantástico, até então essencialmente literário, totalmente palpável para o gênero cinematográfico. O viés fantástico em Caligari se impõe por meio da criação de uma temática típica dos enredos de terror, em especial o tema da manipulação de mentes e do sonambulismo. Desde os primórdios do cinema há registro de filmes de terror. No primeiro ano do cinematógrafo, em 1896, Georges Méliès realizou um pequeno curta-metragem com a temática. As histórias de terror foram sendo filmadas nas décadas 16 Sesc | Serviço Social do Comércio


posteriores, mas somente no expressionismo alemão o terror adquiriu uma maior presença e vigor. O golem, O gabinete do Dr. Caligari, Nosferatu, Fantasma e outros serviram de fonte para diversos filmes a partir dos anos 1930. Contudo, se analisarmos a incorporação do terror ao gênero cinematográfico veremos que seu ponto de partida, de maneira mais sistematizada, é o próprio expressionismo alemão. No expressionismo encontramos uma exacerbação dos elementos imagéticos, eles representavam uma exteriorização de um estado interior, uma materialização espiritual, e a sua potência estética vinha dessa confrontação do externo com o interno. O que caracterizaria então o terror expressionista seria a assimilação expressiva de um elemento psicológico. O período histórico do nascimento do expressionismo o localiza imediatamente após a derrota da Alemanha na Primeira Guerra Mundial (1914-1919). O gabinete do Dr. Caligari, por exemplo, foi produzido em 1919-1920. Muitos críticos relacionam o expressionismo como uma resposta da vanguarda alemã à atmosfera de decadência e crise moral do período compreendido como República de Weimar (1919-1933), o prenunciador do nazismo. Hoje essa ideia não deve ser tomada de modo absoluto, outras questões são também apontadas como influentes, tais como o gosto pelo medievalismo (gótico) e a tradição romântica alemã. Segundo a professora e pesquisadora Laura Cánepa, um grande êxodo de artistas, atores e técnicos alemães dessa época, causado pela ascensão do nazismo, difundiu uma considerável influência da “estética expressionista” pelo mundo, mais precisamente nos Estados Unidos, onde a indústria hollywoodiana avançava a passos largos. Basta assistir aos filmes de terror dos anos 1930 e os chamados filme noir para saber que isso não é exagero.4

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A estĂŠtica do expressionismo no cinema alemĂŁo


Acreditamos que sem essa contextualização bastante abrangente, uma análise sobre o cinema na década de 1920 seria estéril e inócua. Isso se deve à grande efervescência das artes desde o final do século 19, e em especial a partir dos anos 1910, com as interferências modernas. Sem dúvida a Primeira Guerra Mundial tem um peso incomensurável nesse contexto. Ela fez renascer elementos adormecidos na alma alemã. No início de seu magnífico livro sobre o expressionismo alemão, Lotte H. Eisner afirma: Misticismo e magia — forças obscuras às quais, desde sempre, os alemães se abandonaram com satisfação — tinham florescido em face da morte nos campos de batalha. As hecatombes de jovens precocemente ceifados pareciam alimentar a nostalgia feroz dos sobreviventes. E os fantasmas, que antes tinham povoado o romantismo alemão, reanimavam-se tal como as sombras do Hades ao beberem sangue.5

Misticismo, fantasmas, sobrevivência, sangue, morte, hecatombes de jovens e sombras são palavras utilizadas nessa pequena citação, a qual corporifica o sentimento expressionista. Os filmes trazem inequivocamente esse peso, como um carma que recai sobre seu destino artístico. Na definição de Roger Cardinal o expressionismo representa uma versão peculiarmente urgente da necessidade perene do artista de se expressar sem restrições. Seus antecedentes imediatos são as declarações irracionalistas e instintuais de um Nietzsche, as transcrições poderosas da vida íntima agitada nas últimas pinturas de Van Gogh, os gestos altamente cênicos de Strindberg. Quando Nietzsche afirma orgulhosamente que “eu sempre escrevi meus trabalhos com todo o meu corpo e minha vida, não sei o que querem dizer com problemas intelectuais”, está oferecendo, na sua maneira mais simples, um princípio exemplar do expressionismo: a confiança irrestrita na expressão direta dos sentimentos que se originam na própria vida do criador, sem a mediação e a interferência provável da racionalidade.6

Quando o mundo objetivo não inspira confiança, o artista se utiliza da subjetividade, de sua expressão mais soturna, avisa ao mundo que o tempo está nublado, que as sombras e os personagens sinistros estão em profusão e que algo precisa ser feito para transformar a sociedade, antes que precisemos lhe extrair um membro. Os filmes do período comumente chamado de expressionistas (1919-1927) espelham demais a nebulosidade de seu tempo. Há um cruzamento considerável, em especial na Alemanha derrotada no pós-guerra, entre reali-

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dade sinistra e visão sinistra do artista. A distorção aflorada no olhar do artista não deve ser descartada e, mais do que isso, deve ser sublinhada, enfatizada, pois é difícil viver uma hecatombe social e não expressá-la. Pensemos então em um ponto crucial para o expressionismo: a distorção. Como falar de temas sublimes quando o que vemos ao redor não é tão inspirador assim? A guerra distorceu os corpos. Os artistas viram isso, não podiam passar incólumes. Há a degradação moral, quando a morte e a mutilação dos corpos passam a existir em profusão, os jovens são abatidos e com eles o futuro de um país. Ainda há a alteração da paisagem, a destruição de aldeias, cidades, a improdutividade do campo. Os cenários dos filmes expressionistas, em especial das primeiras obras, tal como O gabinete do Dr. Caligari, O gabinete das figuras de cera, O golem e Nosferatu, tendem à claustrofobia, faltam-lhes profundidade, são acachapantes e tortuosos, apresentam uma estilização artificial que beira ao grotesco. A maquiagem dos atores foi concebida de maneira exagerada, sinistra, que os fazem parecer mortos-vivos, como se vagassem à deriva pelo mundo. Seus corpos são pesados, com movimentos bruscos, não naturalizados, como se fossem impedidos de se locomover com desenvoltura por uma força maior. Os figurinos também lhes pesam, dificultam o movimento e dando a eles uma aparência soturna. Nosferatu e Orlac, por exemplo, são quase personagens de outro mundo, cindidos e alheios à vida social, imersos no seu mundo, pouco dialogam com o exterior, vivem as suas tragédias interiores, são seres alienados, um tanto inumanos. Não à toa os temas mórbidos perpassam os filmes expressionistas, pois são comumente seres que habitam um terreno sombrio da existência. Há uma concepção labiríntica dos cenários, que muito expressam uma vertigem, inerente também aos conflitos emocionais dos personagens. A imagem expressionista também dialoga com os personagens e com os cenários predominantemente em contraste entre partes muito escuras (mais nas bordas) e muito claras (no centro da imagem). Há ainda o resgate do medievalismo, uma aproximação com a estética gótica, assim como uma recuperação dos valores românticos nítidos na exacerbação dos sentimentos dos personagens.

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Um dos alicerces que colaborou para escorar o cinema alemão dos anos 1920 foi o teatro de Max Reinhardt, escola para diversos profissionais que depois migraram para o cinema, entre eles cenógrafos, atores, diretores, figurinistas, fotógrafos. Se o teatro formou profissionais, a UFA (Universum Film Aktiengesellschaft) — produtora privada fortemente assentada economicamente, composta por uma fusão de diversas produtoras — solidificou o cinema alemão como produto fora do país, mercado que antes estava em crise. A adesão da Decla Biocosp, empresa de Erich Pommer, principal produtor alemão, foi decisiva para a UFA alçar voos extraordinários. Em consequência, o cinema expressionista espirraria diretores para fora da Alemanha. Atualmente todos são nomes cultuados. Qual amante do cinema nunca ouviu falar de Fritz Lang, Murnau, Paul Leni, Ernst Lubitsch, Pabst e Robert Wiene? Ressalta-se ainda a qualidade técnica dos profissionais de cinema existente na Alemanha dos anos 1920. Do roteiro ao acabamento das imagens, o expressionismo foi pródigo de artistas. Destacam-se como roteiristas Carl Mayer (A última gargalhada e O gabinete do Dr. Caligari), Henrik Galeen (O gabinete das figuras de cera, O golem e Nosferatu) e Thea von Harbou (Metropolis). Entre os diretores de arte há nomes como Robert Herlth e Walter Rohrig (Fausto e A última gargalhada), Walter Reiman e Hermann Warm (O gabinete do Dr. Caligari). Fotógrafos e câmeras, Fritz Arno Wagner (Nosferatu), Carl Hoffman (Fausto) e o magistral Karl Freund (A última gargalhada, Metropolis, O gabinete do Dr. Caligari e O golem). Pode-se ainda citar os excepcionais atores Conrad Veidt (O gabinete do Dr. Caligari, O gabinete das figuras de cera, O homem que ri, As mãos de Orlac), Emil Jannings (A última gargalhada, Fausto e O gabinete das figuras de cera), Werner Krauss (O gabinete das figuras de cera e O gabinete do Dr. Caligari) e Wilhelm Dieterle (Fausto e O gabinete das figuras de cera). Soma-se a esses preciosos profissionais um organizador de peso, o já citado produtor Erich Pommer, que comandou os maiores orçamentos da época e trabalhou com os diretores e técnicos mais significativos da indústria cinematográfica alemã à época da República de Weimar, entre eles, Murnau, Wiene, Lang, Freund, Hoffman e Mayer. Vários desses artistas tiveram passagem por Hollywood, em especial no período do nazismo, em que o controle ideológico dos filmes alemães passava pelo crivo do regime totalitário comandado por Hitler e Goebbels.

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Robert


Wiene O gabinete do Dr. Caligari As mĂŁos de Orlac


BIOgrafia Nasceu na antiga Breslau (na época, parte da Alemanha, sendo hoje Wrocław, na Polônia), filho do famoso ator de teatro Carl Wiene. Seu irmão mais novo, Conrad, também se tornou ator. Robert inicialmente estudou Direito na Universidade de Berlim, mas desde 1908, já estava envolvido em atividades artísticas como ator em pequenas participações no teatro. Sua primeira investida no cinema foi em 1912, com seu roteiro para Die Waffen der Jugend. Sua memorável participação no cinema acontece como diretor de O gabinete do Dr. Caligari (1919), que veio a se tornar um marco do expressionismo no cinema. Depois que Hitler tomou o poder na Alemanha, Robert Wiene deixou Berlim, primeiramente por Budapeste, onde dirigiu One Night In Venice (1934), posteriormente para Londres, e finalmente para Paris, onde tentou produzir com Jean Cocteau uma reprodução sonora de O gabinete... Wiene morreu em Paris dez dias antes do fim da produção de um filme de espiões, Ultimatum, vítima de câncer. O filme foi terminado por seu amigo Robert Siodmak.

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Filmografia 1938 | Ultimatum

1920 | Genuine (curta)

1934 | Eine Nacht in Venedig

1920 | Die drei Tänze der Mary Wilford

1933 | Polizeiakte 909

1920 | O gabinete do Dr. Caligari

1933 | Le procureur Hallers

1919 | Ein gefährliches Spiel (curta)

1931 | Panik in Chicago

1919 | Der Umweg zur Ehe

1931 | Der Liebesexpreß

1919 | Der verführte Heilige

1930 | Der Andere

1918 | Gräfin Küchenfee

1928 | Unfug der Liebe

1917 | Veilchen Nr. 4 (curta)

1928 | Leontines Ehemänner

1917 | Der standhafte Benjamin (curta)

1928 | Die Frau auf der Folter

1917 | Der Liebesbrief der Königin (curta)

1928 | Die große Abenteuerin

1917 | Furcht

1927 | Die berühmte Frau

1916 | Lehmanns Brautfahrt

1927 | Der Gardeoffizier

1916 | Der wandernde Blumentopf (curta)

1927 | Die Geliebte

1916 | Die Räuberbraut (curta)

1926 | Die Königin von Moulin Rouge

1916 | Das wandernde Licht

1925 | Cavalheiro das rosas

1916 | Der Sekretär der Königin

1925 | Pension Groonen

1916 | Das Leben ein Traum

1924 | As mãos de Orlac

1916 | Der Mann im Spiegel

1923 | I.N.R.I.

1916 | Frau Eva

1923 | Der Puppenmacher von Kiang-Ning

1915 | Der springende Hirsch oder Die Diebe von Günstersburg

1923 | Raskolnikow

1915 | Die Konservenbraut

1922 | Die höllische Macht

1915 | Er rechts, sie links (curta)

1921 | Das Spiel mit dem Feuer

1914 | Arme Eva

1921 | Die Rache einer Frau 1920 | Die Nacht der Königin Isabeau

1913 | Die Waffen der Jugend (curta)

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O gabinete do Dr. Caligari Das Kabinet des Dr. Caligari 1919 62 min P&B Elenco: Werner Krauss, Conrad Veidt, Friedrich Feher, Lil Dagover


Analisado em uma perspectiva histórica, o filme é um dos mais significativos, não só no campo do cinema como no da cultura. Hoje, sem dúvida, trata-se de uma referência estética para vários artistas das mais variadas linguagens. Antes de tudo, Caligari é desbravador, considerado um marco do expressionismo no cinema, criador de um estilo calcado sobretudo em seu poder imagético, mas não só. Sua força também impregna tematicamente, abre uma janela sem igual para a aventura do fantástico no cinema. Enfim, depois de Caligari, o cinema nunca mais foi o mesmo. De um ponto de vista mais abrangente, Caligari representa o próprio cinema, seja pelo uso da hipnose, seja por assumir sua inevitável artificialidade por meio de cenários falsos que denunciam a “mágica” cinematográfica e seus truques ilusionistas. Em razão dessas concepções, o filme sublima-se, nasce então o caligarismo, o estilo visual que expõe ao mundo distorções advindo de um extravasamento emocional. Como bem define Massaud Moisés, o expressionismo filosoficamente “propõe colocar de novo o homem no centro do mundo, não o indivíduo em particular, mas o Homem como espécie”.7 Essa capacidade de abordar a natureza humana traduz o alcance de Caligari como obra universal para além de sua época. Mesmo passados

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quase cem anos, o filme continua inspirando gerações, e pensar que quando realizado o cinema não tinha sequer 25 anos de existência. Surpreendentemente, apesar da exuberância de Caligari e de sua influência inconteste, que paira para além dos anos 1920, até hoje há dúvidas se Robert Wiene é realmente o criador da obra. Muitos boatos foram criados em torno desse filme, inclusive que a estética expressionista dos cenários não foi pensada por ele. Um dos roteiristas chegou a se pronunciar como o autor responsável pela concepção imagética do filme. Somente quando se pôde ter acesso ao roteiro ficou comprovado que não havia indicações quanto a como seriam os cenários. O filme encaixa-se no contexto histórico conturbado da Alemanha do pós-guerra, o da República de Weimar, mas está imerso também em um passado mais distante ao resgatar a melancolia gótica e o romantismo de outros séculos. Caligari evoca o irracionalismo, uma crítica ao método cientificista e anuncia, como uma sombra, um porvir de pesadelo a entravar o espírito alemão. O enredo de O gabinete do Dr. Caligari fascina por trazer elementos fantásticos. O filme inicia com a narração de um jovem sobre um estranho acontecimento ocorrido em sua pequena cidade natal envolvendo um médico (Caligari) que manipula as ações de um sonâmbulo (Cesare). O jovem conta que Caligari se inspira em uma narrativa sueca, na qual um homem chamado domina a mente de um sonâmbulo.

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expressionismos •

Os cenários artificiais expressionistas só não aparecem quando o jovem está narrando a história. A paisagem que assistimos ao fundo é a de um quintal arborizado do manicômio, um ambiente com predomínio da natureza. Esse detalhe é pouco comentado na historiografia dedicada ao expressionismo, pois o mundo distorcido que vemos em todo o filme é tal e qual o vê o narrador esquizofrênico. Assim, Wiene nos coloca à mercê, durante toda a projeção, dessa subjetividade específica, a do louco, como se estivesse nos condenando a essa visão de mundo.

Será que o jovem está enclausurado no manicômio por saber a verdade sobre o passado escabroso do médico Caligari, que assim controla seus passos enquanto vive incólume apesar dos crimes passados? Essa versão traz elementos sinistros na mensagem do filme por pressupor que o mundo é controlado por loucos algozes enquanto os sãos e honestos estariam presos por saberem a verdade acerca dos criminosos.

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expressionismos •

Deve-se considerar a complexidade narrativa do filme, repleta de minúcias

de uma história dentro de outra e que por sua vez é sustentada por outra história situada na época medieval e em outro país.

e referências literárias, de imbricações,

São tempos diversos que se interpenetram, se confundem e assinalam ao espectador a riqueza que pode conter uma história e que por trás de um mero acontecimento reside, ou pode residir, uma multiplicidade temporal e espacial. Caligari nos desperta para o quão difícil é elaborar uma análise sobre o mundo e seus fenômenos. •

A criação de um mundo fantasmagórico e artificial, com cenários pintados e acachapantes, com predomínio de ambientes repletos de sombras, escadas e pontes, somados com as maquiagens exageradas, atuações insinuantes dos atores, em especial de Conrad Veidt, no papel de Cesare, fazem do filme

Weimar. •

uma angustiante visão da República de

O sucesso do filme se espalhou incontrolavelmente pelo mundo até os nossos dias. A

metáfora de uma sociedade produtora de sonâmbulos permanece viva, a crítica sobre a relação entre autoridade e loucura também. O personagem de Cesare ainda nos cria algum assombro; sua existência, mesmo quando sabemos que se trata de uma figura pertencente ao universo fantástico, é uma sombra a nos lembrar de que algo está deslocado. •

É fascinante e marcante a cena em que Cesare corre esgueirando-se pelas paredes dos cenários como um autêntico sonâmbulo estabanado. E

não poderia Wiene filmá-la de outra maneira, e por uma razão: uma sombra jamais poderia gerar outra. Não é

à toa que os ambientes de sombras anunciam o terror, e terror era o que não faltava na República de Weimar.

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O médico que trabalhava em um manicômio fica transtornado quando surge um sonâmbulo como paciente e resolve dar vazão a seu furor cientificista, testando se um sonâmbulo pode realmente ser manipulado a ponto de cometer atos atrozes, inclusive assassinato, tal como lera na história sueca. O médico e o sonâmbulo se instalam em uma feira de atrações em uma pequena cidade alemã e instauram o pânico entre seus habitantes. Depois de alguns assassinatos, chega-se à conclusão de que Cesare matava e aterrorizava, mas era regido pela mente do médico Caligari. Wiene nos surpreende com a informação de que o jovem narrador sofre de distúrbios mentais e que o Caligari de sua história é seu médico no hospício. Ao final, o filme sugere duas perguntas: será que apenas a mente embaçada de um louco é capaz traduzir nossa existência no mundo terrível em que vivemos? Seremos sistematicamente condenados à manipulação superior, e que pouco seríamos além de sonâmbulos a vagar, longe de sermos indivíduos autônomos?

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As mãos de Orlac Orlac Hände 1924 110 min P&B Elenco: Conrad Veidt, Fritz Kortner, Alexandra Sorina


Ao assistirmos a As mãos de Orlac temos a prova de que Robert Wiene não foi um diretor de apenas uma obra, a icônica O gabinete do Dr. Caligari, como muitos críticos defendem. O filme carrega uma força e uma beleza que não foram apagadas pelo tempo. Inseri-lo em uma mostra sobre o expressionismo alemão dos anos 1920 serve para fazer justiça tanto ao autor quanto à obra em si. As mãos de Orlac marca o reencontro da dupla Wiene/Veidt, diretor e ator de O gabinete do Dr. Caligari. Trata-se de um filme deslumbrante, em vários aspectos impregnado da estética expressionista. Wiene reafirma seu talento para o cinema fantástico, tomado pela inquietação e a assombração humana. Um pianista apaixonado pela esposa perde as mãos em um acidente e aceita participar de uma experiência de transplante de mão, a fim de poder retomar sua bem-sucedida carreira como concertista. Tudo transcorre bem até que ele descobre que as mãos transplantadas eram de um assassino. O pianista fica então transtornado e passa a acreditar que está tendo os mesmos impulsos do antigo dono das mãos. Quanto mais o personagem mergulha em dúvidas, mais o universo expressionista se manifesta, o uso de sombras e elementos obscuros ficam latentes na tessitura do filme. Apesar de resgatar o clima de terror de seu filme mais exemplar e conhecido,

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Wiene se inspira muito mais em Nosferatu, de F.W. Murnau, em especial na atmosfera gótica e na imagética predominantemente tomada pelas sombras. O terror está presente mais no aspecto psicológico do personagem Orlac, portanto ele é de ordem mais subjetiva, centrado no caos em que se transforma sua mente. Desde que estava internado no hospital, ele tem visões do assassino, que surge envolto em nuvens, daí vem o assombro, o tormento psicológico do personagem, que em suas visões nebulosas acredita estar cometendo assassinatos apenas por ter adquirido as mãos de um assassino. A perturbação do personagem transforma-se no maior protagonista do filme, mas, assim como em Caligari, ocorre uma manipulação a ser descoberta no final. As interpretações dos atores ainda sofrem forte influência do estilo expressionista de atuar. O exagero nas reações e nos gestos, como a cena em que a esposa fica sabendo sobre o acidente do marido. O movimento acentuado dos corpos também pode ser lembrado, já que eles verdadeiramente falam nas obras expressionistas, e Conrad Veidt é um dos grandes mestres nessa arte de representar com o corpo. Dentre diversas cenas, como não destacar a que ele acorda no hospital com um bilhete em seu colo denunciando que suas mãos eram de um assassino que fora executado. Veidt interpreta com reações no rosto e no corpo inteiro, em um movimento de separar/isolar suas mãos do restante de seu corpo. Só Veidt daria tamanha significação a essa cena. A partir desse momento, inicia-se a exasperação 34 Sesc | Serviço Social do Comércio


expressionismos •

Quando descobre que as mãos transplantadas são de um assassino, Orlac passa a minguar como sujeito e Wiene acentua seu aspecto inferiorizado contrastando seu corpo frágil com um cenário amplo, com um pé-direito imenso, pouco uso de mobília, iluminação no centro da cena e predomínio de sombras pelos cantos.

do personagem, perdido, enojado com suas mãos. Como tocar no corpo amado de sua esposa e nos teclados do piano com aquelas mãos maculadas pelo crime? O que chama atenção positivamente é o cuidado da produção. Logo no início do filme a sequência do acidente de trem é muito bem construída. Destaca-se o ritmo criado pela montagem, com muitos cortes, cenas rápidas, uma mise-en-scène com muitos figurantes, uma filmagem realizada em um misto de estúdio e locação, algumas inclusive à noite, ângulos surpreendentes, cenários com trens retorcidos muito bem realizados e fotografia impecável. Um desafio, sem dúvida, em 1924. As mãos de Orlac é um típico filme do terror fantástico, sustentado por uma história improvável e irreal, ainda influenciado por uma estética expressionista, assim como o é no desenvolvimento de temas e na construção de personagens atormentados psicologicamente, sujeitos às visões assombrosas. Antes de tudo, uma obra fluente, bem filmada, coerente com seu autor e com uma atuação preciosa de Conrad Veidt.


Paul W


egener O golem


BIOgrafia Paul Weneger nasceu em 11 de dezembro de 1874 e morreu em 13 de setembro de 1948. Após fazer um pequeno papel em um filme despretencioso, Weneger foi convidado a atuar, com apenas vinte anos de idade, na companhia teatral de Max Reinhardt, a mais expressiva da Alemanha na época. Wegener tever importante papel nos primórdios do cinema alemão dos anos 1910. Foi roteirista e ator da primeira versão do filme O estudante de Praga e realizou em 1917 o filme O flautista de Hamelin, em que priorizou os acabamentos exteriores dos cenários em vez da decoração abstrata usual nas artes desse período. No todo, sua obra é considerada irregular, marcada por um início triunfante e arrebatador, de grande promessa artística, mas frustrante, já que não conseguiu confirmar seu talento promissor tão esperado. Acabou sendo mais reconhecido como ator que como diretor de cinema, apesar de ter realizado grandes trabalhos como diretor. Sua derrocada aconteceu nos anos 1930, quando realizou trabalhos para os nazistas, convertendo-se em um dos principais atores oficiais do regime totalitário implantado por Hitler. Morreu desacreditado em Berlim, três anos após a queda do regime nazista. Na tomada de Berlim pelo exército soviético, em 1945, foi poupado por ser reconhecido por um soldado, que pendurou na porta de sua residência uma placa onde se lia: “Aqui vive Paul Weneger, o grande artista, amado e adorado em todo mundo.”

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Filmografia 1913 | The Student of Prague 1915 | O golem 1917 | The Golem and the Dancing Girl 1920 | The Golem: How He Came into the World 1936 | Augustus the Strong

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O golem Der Golem 1920 68 min Legendado P&B Elenco: Paul Wegener, Albert SteinrĂźk, Lyda Salmonova


Antes que qualquer análise é necessária uma breve explicação sobre o título do filme. Golem é um ser mítico, associado à tradição do judaísmo, particularmente à cabala, que pode ser trazido à vida por meio de um processo mágico. O filme de Wegener inicia com um imperador de certo reino, que parece ser da Idade Média, baixando um decreto contra os judeus que perturbavam a ordem pública com seus rituais místicos, ordenando que eles deixassem o reino urgentemente sob pena de serem severamente punidos. Enquanto isso, o líder espiritual judaico prevê, ao ler a cabala e os mapas astrais, que a posição das constelações mostra que se trata de um momento delicado para o seu povo e vê a necessidade de chamar o golem para defendê-lo. O líder espiritual, uma espécie de rabino, concebe rapidamente o ser de barro inanimado, e aguarda o instante favorável do alinhamento das constelações para poder dar vida ao seu monstro de barro, ao mesmo tempo que as negociações com o imperador não avançam. Por meio de um ritual eles conseguem dar vida ao ser monstruoso, um servo do povo judeu. O rabino controla o sono do golem retirando a estrela de Davi de seu peito. O monstro passa então a circular pelas ruas, fazer compras e ajudar nas tarefas domiciliares. Até que o rabino resolve levá-lo a uma audiência com o imperador,

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que decidirá sobre o futuro do povo judeu. Na audiência, o rabino, com seus poderes mágicos, causa um desastre e o castelo começa a ruir. Com a ajuda do golem, o palácio é poupado e o decreto contra os judeus é anulado. O golem percebe que quando a estrela de Davi é retirada de seu peito ele adormece, e passa a protegê-la. O problema acontece quando o monstro de barro perde o controle, não aceitando mais apenas seguir ordens alheias. Apesar de toda perseguição ao monstro de barro, Wegener nos brinda com um final sutil e singelo. O diretor não constrói seu golem com atributos de caráter, ele não é bom ou ruim, apenas irracional. O golem segue a tradição romântica alemã, herdada pelos artistas dos anos 1920. Reafirma o uso do estilo fantástico no cinema alemão, e como seu contemporâneo, O gabinete do Dr. Caligari, ratifica o gosto pela estética expressionista, pela história de terror fantástica, pela interpretação exagerada e pelo uso de cenários artificiais e assustadores, além de contar com a exuberante fotografia contrastada, feita pelo célebre artista expressionista Karl Freund.

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expressionismos •

É o próprio diretor Paul Wegener quem protagoniza o filme, no papel do golem.

No hebraico, a palavra golem significa “tolo”, trata-se de uma derivação da palavra gelem (matéria-prima).

sua aparição pode ser algo bom, mas carregado de problemas. As mesmas características do golem podem ser enconNa literatura, há diversas histórias sobre golens, e

tradas no Frankenstein de Mary Shelley. •

Wegener filmou duas vezes O golem. A primeira versão data de 1914, já a segunda, foi lançada em 1920 e ficou imortalizada como

um dos marcos do cinema expressionista alemão dos anos 1920.


Paul


Leni O gabinete das figuras de cera O homem que ri


BIOgrafia Leni tornou-se um pintor avant-garde aos 15 anos. Estudou na Academia de Belas-Artes de Berlim e depois trabalhou como desenhista de cenários teatrais. Em 1913, começou a trabalhar com a indústria de filmes alemã desenhando cenários e figurinos para diretores como Joe May, Ernst Lubitsch, Richard Oswald e E.A. Dupont. Durante a Primeira Guerra Mundial, começou a dirigir filmes como Der Feldarzt – Das Tagebuch des Dr. Hart (1917), Patience (1920), Die Verschwörung zu Genua (1920-21) e Backstairs (1921). A partir de 1925 desenhou prólogos curtos para estreias de festivais de filmes em cinemas de Berlim. Em 1927, mudou-se para Hollywood, aceitando um convite de Carl Larmmle para se tornar diretor nos estúdios da Universal. Lá, Leni estreou como diretor com The Cat and the Canary (1927), o qual serviu como influência para filmes de terror da Universal e foi refilmado várias vezes. No ano seguinte, dirigiu O homem que ri, um dos filmes mais estilizados do período do cinema mudo, um clássico aclamado pelos fãs do gênero. Paul Leni morreu devido a um envenenamento, em Los Angeles, aos 44 anos.

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Filmografia 1929 | The Last Warning 1928 | O homem que ri 1927 | The Chinese Parrot 1927 | O gato e o canário 1926 | Rebus Film Nr. 4 (curta) 1926 | Rebus Film Nr. 5 (curta) 1926 | Rebus Film Nr. 6 (curta) 1926 | Rebus Film Nr. 7 (curta) 1926 | Rebus Film Nr. 8 (curta) 1925 | Rebus Film Nr. 1 (curta) 1925 | Rebus Film Nr. 2 (curta) 1925 | Rebus Film Nr. 3 (curta) 1924 | O gabinete das figuras de cera 1921 | Hintertreppe 1921 | Die Verschwörung zu Genua 1920 | Patience 1919 | Prinz Kuckuck – Die Höllenfahrt eines Wollüstlings 1919 | Die platonische Ehe 1918 | Das Rätsel von Bangalor 1917 | Dornröschen 1917 | Prima Vera 1916 | Das Tagebuch des Dr. Hart

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O gabinete das figuras de cera Das Wachsfigurenkbinett

1924 83 min P&B Elenco: Conrad Veidt, Wener Krauss, Wilhelm Dieterle, Emil Jannings


O gabinete das figuras de cera, conforme o próprio título sugere, foi realizado ainda sob a égide estética do caligarismo. Seu diretor constrói imensos cenários tridimensionais, tipicamente expressionistas, calcados nos exageros das formas. Tal como em O gabinete do Dr. Caligari, é em uma feira que o museu está instalado como atração; tal feira pode ser entendida como uma metáfora do caos e da desorganização política presentes na República de Weimar. No filme, vemos um jovem sendo contratado por um museu de cera para escrever as histórias de três de seus personagens: o califa Haroun Al-Haschid; Ivan, O Terrível; e Jack, O Estripador. Nesse filme, mais uma vez o fantástico invade o cinema alemão de maneira surpreendente. Paul Leni consegue reunir os três maiores atores alemães da época (Werner Krauss, Conrad Veidt e Emil Jannings), cada um representando uma das figuras de cera. Os cenários tridimensionais causam uma terrível estranheza no espectador, as partes internas do palácio são labirínticas, com escadas tortuosas e irreais que mais parecem um formigueiro do que um interior palaciano. As casas, assim como seus interiores, têm uma aparência disforme e claustrofóbica. Enquanto a atmosfera cômica predominava no episódio do califa, a aparência sombria e aterrorizante dá o tom no episódio dedicado a Ivan, O Terrível, interpretado por Sombras que assombram | Expressionismo no cinema alemão 49


Conrad Veidt, que utiliza o corpo todo em sua construção do personagem. Nenhum detalhe parece fugir de Veidt: cada andar, gesto ou olhar conduz a cena e o espectador para onde bem entender. Demonstra ser um ator que compreende com plenitude a estética idealizada pelos realizadores expressionistas, e por isso foi um de seus ícones. Assim como Veidt, as expressões faciais dos outros atores também são exacerbadas, além de seus gestos nos momentos mais dramáticos da trama. No episódio sobre Ivan, O Terrível, Paul Leni faz uso de uma temática recorrente nas obras expressionistas, e em especial a caligarista: promover uma mistura sinistra de ciência e misticismo, com estranhos rituais envolvendo tubos de ensaio, ampulhetas e práticas de magia. O clima pesado que Leni imprime nesse episódio é salientado por um artificialismo que beira o grotesco, com chapéus maiores do que o normal, vestuários ornamentais, assim como a concepção dos cenários. Tais como o personagem brilhantemente encarnado por Veidt, todos os elementos de cena são falsos, o mal-estar se instaura como inerente a esse episódio sobre Ivan, sua personalidade doentia parece conferir o tom desejado pelo diretor. Jack, O Estripador entra na trama mais como um epílogo do que como um personagem a ter a sua história contada. Talvez Leni tenha se aproveitado de sua reconhecida imagem assassina para realizar uma grande brincadeira com o universo onírico do cinema. Já cansado de escrever as outras duas histórias, o personagem escritor imerge no sono e Leni nos brinda com as imagens mais belas e enigmáticas de todo o filme: as imagens 50 Sesc | Serviço Social do Comércio


expressionismos •

O exagero permeia a estética de O gabinete das figuras de cera, tal e qual na maioria dos filmes expressionistas alemães. A caracterização do personagem do califa é um ótimo exemplo. A natureza obesa de Emil Jannings é aumentada com enchimentos em sua roupa na região do abdome.

são quatro vilões que aparecem como figuras de cera, porém apenas três foram retratados. Reza a lenda que a quarta figuA começar pelo cartaz do filme,

ra, Rinaldo Rinaldini, personagem do romance do escritor alemão Christian August Vulpius, não teve sua história contada por falta de dinheiro para sua produção.

passam a se duplicar e o personagem de Jack adquire vida para atormentá-lo, perseguindo sua pretendente, a filha do dono do gabinete das figuras de cera. As imagens são impressionantes, com cenários repletos de formas geométricas, tais como em Caligari, numa atmosfera onírica, fantástica. Paul Leni cria um curioso paralelo entre as histórias narradas até então no filme e o próprio cinema, ambos manipuladores de emoções, e assim como a feira, uma diversão barata, escapista e ilusória, um sonho que vale a pena ser vivido.

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O homem que ri The Man who Laughs 1928 110 min P&B Elenco: Conrad Veidt, Mary Philbin, Olga Baclanova, Sam De Grasse


Apesar de O homem que ri ter sido produzido nos Estados Unidos pela Universal Studios, em 1928, o filme conserva ainda traços característicos do expressionismo alemão. Seu diretor já havia filmado na Alemanha o clássico O gabinete das figuras de cera, e morreu um ano depois de realizar essa madura obra de arte. O lastro expressionista já acontece na própria escolha da temática: um homem com o rosto deformado. Apesar de não ser um filme de terror, O homem que ri trata em especial da criação de um monstro. O mais impressionante no filme é o fato de a monstruosidade não ser do monstro, mas sim de quem o deformou. Durante o filme, esse personagem luta contra a própria imagem, já que um homem que parece estar rindo o tempo todo é inevitavelmente trágico. O filme baseia-se na obra homônima do escritor romântico francês Victor Hugo. A escolha de Leni por filmar essa história de traços humanistas profundos muito revela sobre sua atração pelos personagens marginalizados, transformados brutalmente em monstros e tratados como se fossem restolhos pelo poder estabelecido. Bem afeito ao estilo expressionista, o personagem deformado pelo riso, vivido por Veidt, é acolhido por um filósofo e torna-se um artista mambembe. Veidt sobressai mais

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uma vez com seu talento para a arte da representação e tal como fez em As mãos de Orlac e O gabinete do Dr. Caligari dá ao personagem um magnetismo surpreendente. Aqui, o espaço da feira continua a seduzir os cineastas alemães dos anos 1920, e mais uma vez o terror transformado tanto em espetáculo quanto em um meio de sobrevivência. O ambiente de feira novamente evoca o caos e simboliza a desorganização social. Leni faz uso de câmeras em movimento, cenas com muitos figurantes e cortadas muito rapidamente para evidenciar uma atmosfera confusa, enfim, um grande circo de horrores. Como grande cenógrafo, Paul Leni, aluno de Max Reinhardt, abusa na construção dos cenários artificiais primorosos, que tinham beleza sim, apesar de não abrir mão de seus aspectos mais sinistros, típicos da concepção expressionista, mas dispensando o exagero estilístico marcadamente caligarista. Há uma visível e bem-resolvida isometria estilística entre o realismo norte-americano e o expressionismo alemão. A cena final, por exemplo, está repleta de cenas típicas do cinema de aventura de Hollywood, mas os cenários e as interpretações dos atores não omitem sua genética expressionista. Além dessa obra, pode ser mencionado como outro exemplo bem-sucedido dessa mistura estilística o filme Aurora (1927), de F.W. Murnau.

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expressionismos •

A atuação de Conrad Veidt no papel do bizarro protagonista é um dos seus trabalhos mais marcantes. Cabe mencionar que sua caracterização em O homem que ri impressionou de tal modo o universo

é impossível não lembrar sua visível influência na construção estética da maquiagem do personagem Coringa, vivido por Jack Nicholson, 70 anos depois, no filme Batman, dirigido por Tim Burton. artístico que

Esta foi uma das primeiras produções da Universal de transição do cinema silencioso para sonoro, trazendo como trilha sonora When Love Comes Stealing, de Walter Hirsch, Pollack Lew e Rapee Erno.

Paul Leni dirige os atores com métodos nitidamente calcados no expressionismo: atuações gestuais exageradas e movimentos bruscos, rostos comunicativos com olhos esbugalhados cheios de angústia permeiam o filme. Uma das características mais evidentes em O homem que ri é a do contraste entre a aparência e a essência. O personagem de Conrad Veidt tem uma essência bondosa, que não coincide com sua aparência monstruosa. Outra dicotomia construída por Paul Leni foi estabelecida entre o clima de agitação da rua e a monotonia da corte. Enquanto na feira imperava a desordem, do outro lado, dentro do palácio da rainha, predominava uma música de câmara sonolenta. Em O homem que ri essas dicotomias são constantes, os animais assumem características mais humanas, enquanto os homens tomam atitudes mais animalescas. O nome do cachorro é Homo, a duquesa mais parece uma vampira à espreita de sangue, o filósofo tem o curioso nome de Ursus. Para o espectador, tudo soa muito estranho, em especial essas inusitadas inversões que ocorrem sistematicamente no filme. Ao final, como na maioria dos filmes expressionistas, o bem supera o mal, como se a ficção tivesse a missão redentora de salvar um mundo que está em frangalhos, e

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F.W.


Murnau Fausto Nosferatu A Ăşltima gargalhada


BIOgrafia Paul Leni não abre mão desse poderoso recurso dramatúrgico de colocar a plateia a seu favor.

Friedrich Wilhelm Murnau, ou simplesmente F.W. Murnau, nascido Friedrich Wilhelm Plumpe, foi um dos mais importantes realizadores do cinema mudo, do cinema expressionista alemão e do estilo Kammerspiel (desenvolvido por Max Reinhardt e seu movimento de câmera). Nosferatu, de 1922, uma adaptação pessoal da novela Drácula, de Bram Stoker, é o filme mais conhecido da sua obra (em boa parte perdida), juntamente com A última gargalhada, de 1924 e Fausto, de 1926. Em 1926, emigrou para Hollywood, onde, antes de morrer prematuramente aos 43 anos, realizaria o aclamado Aurora, de 1927. Vários de seus filmes estão perdidos. O seu último trabalho, Tabu (correalização com Robert Flaherty), foi filmado nos mares do sul, longe dos grandes estúdios e estreado postumamente. Atualmente é um

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Filmografia filme cultuado, e marca uma quebra com a estética dos seus filmes anteriores.

1931 | Tabu 1930 | O pão nosso de cada dia 1928 | 4 Devils 1927 | Aurora 1926 | Fausto 1925 | Tartufo 1924 | A última gargalhada 1924 | Die Finanzen des Großherzogs 1923 | Die Austreibung (curta) 1922 | Phantom 1922 | Der brennende Acker 1922 | Nosferatu 1922 | Marizza, genannt die Schmuggler-Madonna 1921 | Schloß Vogeloed 1921 | Sehnsucht 1921 | Der Gang in die Nacht 1920 | Abend – Nacht – Morgen 1920 | Der Januskopf 1920 | Der Bucklige und die Tänzerin

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Fausto Faust 1926 118 min P&B Elenco: Emil Jannings, Camilla Horn, Wilhelm Dieterle


1920 | Satanas 1919 | Der Knabe in Blau

Se Fausto for comparado a A última gargalhada, Nosferatu e Aurora, três outras obras de Murnau, sua potência estética pode ficar abalada. Definitivamente, Fausto não é a obra-prima desse cineasta fantástico, que morreu prematuramente aos 42 anos, mas configura-se como característica do cinema alemão dos anos 1920 e da sua estética expressionista e situa-se muito acima de tantas obras realizadas em sua época. Fausto é um velho cientista seduzido pelo demônio, Mefistófeles, interpretado por Emil Jannings. Primeiramente, o cientista obtém poderes para curar a peste, mas como esses poderes vinham das forças obscuras, ele não conseguia curar perante a imagem da cruz e logo o povo o vê como encarnação do diabo e o rechaça. Depois, Fausto é seduzido para ter de volta a sua juventude, e o diabo lhe apresenta a imagem de uma linda princesa e lhe promete intervir para fazê-la ficar apaixonada por ele. Depois de experimentar novamente a juventude, Fausto não quer mais voltar a ser um velho e faz um pacto eterno, vendendo sua alma. Entediado, Fausto Sombras que assombram | Expressionismo no cinema alemão 61


pede ao diabo para voltar para sua aldeia, onde se apaixona pela bela Gretchen. Ao se apaixonar por ela, Fausto perde o controle dos seus sentimentos, mata o irmão da amada e é obrigado a fugir deixando-a grávida e desonrada em sua cidade. Toda essa tragédia foi arquitetada pelo diabo. Como em todo filme alemão dos anos 1920, o bem triunfa sobre o mal. Não se trata necessariamente da vitória do mocinho, tal como o personifica o cinema de Hollywood, mas sim um sucesso do ideal sobre as pessoas. Essa distinção é fundamental, porque não existe no cinema alemão a imagem do mocinho redentor que personifica o bem, crucial é que o bem supere o mal. Trata-se da supremacia do bem coletivo sobre o indivíduo. O tema do endemoninhamento é mais uma vez encarnado nos filmes alemães dos anos 1920. A atmosfera fantástica também domina essas histórias, inclusive com a personificação humana do diabo salientando seu aspecto mágico. Se pensarmos no filme O sétimo selo, de Ingmar Bergman, podemos enxergar nítidas marcas da estética de Fausto, em especial, a construção da imagem do inferno na Terra e a opção em situar a história na Idade Medieval. Mas, evidentemente, Bergman, produzindo sua obra trinta anos depois, aprofundou o tema da contradição inerente à ideia de Deus e do diabo. Apesar de não flertar com a estética caligarista, em Fausto observa-se ainda assim uma preservação do artificialismo da imagem. Surpreendentemente, esse filme se desenvolve como uma fantasia, um delírio, e se afasta da narrativa realista de A última gargalhada, mas aproxima-se da tragédia. Essa tragédia, em parte, está explicitada 62 Sesc | Serviço Social do Comércio


expressionismos •

Murnau imprime em seu Fausto algumas imagens impressionantes. Trabalha muito com a superposição de imagens, técnica muita

um clima vertiginoso, como se uma imagem só não bastasse, e outras clamassem por estar ali. Efeitos de ventos e utilizada por ele em outros filmes, que cria no espectador

de seres voadores fantásticos também são gritantes no filme. •

A fotografia de Carl Hoffmann se sustenta pelo excesso de preto,

O desequilíbrio do preto é fundamental nessa obra: ele ajuda

e a atmosfera dos ambientes é sempre sinistra.

a direcionar o olhar do espectador para elementos de cena e personagens com os tons de cinza e branco. Claro que o predomínio do preto muito nos diz sobre o domínio do diabo em nosso mundo terrestre, que impede uma nítida visão do todo. O cenário de Walter Rohrig e Robert Herlth também colabora para formar uma identidade imagética: o quarto do velho cientista Fausto é entulhado de livros, assim não conseguimos distinguir com clareza o espaço, que apenas nos parece soturno e infeliz.

na narrativa, na mise-en-scène e na interpretação dos atores, mais exagerada do que em outras obras de Murnau. Os traços medievalistas, tão típicos das obras expressionistas, encontram eco também nesse filme, no decór, nos figurinos e na temática do diabo influindo na vida humana. Já a ideia do Kammerspiel, implementada em A última gargalhada por Murnau dois anos antes, não foi levada em consideração em Fausto. Há muita utilização de diálogos por meio de intertítulos e a câmera também não se movimenta tanto, apenas em poucas cenas. O realismo também é abandonado, o universo fantasioso e fantástico predomina sobremaneira. Em Fausto, nota-se a influência do romantismo alemão do século 19, a começar pela escolha de Murnau por realizar uma adaptação da obra mais célebre de Goethe, escritor ícone do romantismo alemão. Essa herança do romantismo no expressionismo se faz presente não só fisicamente, na produção das imagens, mas também é de ordem espiritual, incrustada e firme, tal como a marca inconteste de um carimbo. Como um típico filme expressionista, ele explora cenários construídos, artificiais. Até a naSombras que assombram | Expressionismo no cinema alemão 63


Nosferatu 1922 94 min P&B Elenco: Max Schreck, Alexander Granach, Gustav von Wangenheim, Greta Schrรถder


tureza é concebida de maneira ornamental e reforça o artificialismo de Fausto. Tudo, incluindo também o inferno, surge, na tela como um ambiente que nos suscita um estranhamento. A imagem final que fica de Fausto é a de uma experiência sensorial, mítica, irreal e delirante. Em 1922, o mundo se renderia ao talento de F.W. Murnau. Nosferatu tornou-se um dos filmes mais influentes da história do cinema com uma fábula de terror baseada em uma adaptação não autorizada da famosa obra Drácula, de Bram Stoker. O filme narra a vida de um corretor de imóveis jovem e ambicioso que vende uma casa abandonada ao estranho Conde Orlock, um vampiro que tem como objetivo fazer como presa a esposa do corretor. Orlock sairá da Transilvânia para ser vizinho deles e conquistar de vez a mulher pretendida. Mas, no caminho entre a Transilvânia e a grande casa adquirida, o Conde Orlock deixa um rastro de destruição e morte, o que faz todos pensarem que se trata de uma nova peste que assola a região. Murnau é um dos primeiros diretores a se desgarrar dessa obsessão pelos cenários, mas o apego à faceta sinistra e mórbida dos enredos expressionistas ele ainda mantém nesse poderoso filme, que o alça entre os grandes criadores do cinema alemão. Sem dúvida, a atmosfera fantástica de Nosferatu o aproximaria à concepção espiritual do expressionismo, em detalhes expressivos como o apreço decadentista medieval Sombras que assombram | Expressionismo no cinema alemão 65


na figura diabólica do Conde Orlock, no abuso fotográfico das sombras e na interpretação hiperbólica dos atores. O papel da maquiagem é fundamental na construção imagética do filme, já que confere expressividade na atuação dos atores. Max Schreck, o intérprete do Conde Orlock, muito faz valer dessa maquiagem para salientar seu aspecto sinistro. O olhar também se configura como um poderoso recurso cênico: olhos esbugalhados, típicos da estética expressionista, realçam a atmosfera lúgubre da história. Apesar de o elemento mórbido ser muito acentuado, Murnau consegue extrair de sua mise-en-scéne momentos poéticos e belos. Com uma simples, rápida e singela imagem de um galo cantando, ele nos revela o nascer do dia e a impossibilidade da fuga de Orlock, por exemplo. Para Murnau, até as criaturas mais sinistras se perdem por amor. Inebriado por seu sentimento pela bela moça, Orlock esquece o nascer do dia e ao olhar para os raios solares evapora como fumaça no ar. Mesmo trabalhando em locações em vez de cenários, a obra de Murnau ainda guarda algumas características do período caligarista, mas o parentesco pode ser admitido mais no espírito do que na parte visual do filme. Talvez as semelhanças físicas que mais nos saltam aos olhos sejam a atuação de Max Schreck como Nosferatu e o uso de sombras como artifício cênico. Esse impressionante Nosferatu de Murnau serviu de inspiração a diversos filmes de horror, em especial os de vampiros e de outros monstros fantásticos, que se tornaram um filão significativo 66 Sesc | Serviço Social do Comércio na indústria do cinema em todo o mundo, em especial na de


expressionismos •

Apesar de a história do filme ser descaradamente inspirada na obra de Bram Stoker, a produção não tinha os direitos para a filmagem, portanto não o credita. Mas para quem assiste ao filme não resta

adaptação ao pé da letra do famoso Conde Drácula, de Stoker. dúvida, não há referências ou inspiração, mas sim

O trabalho corporal de Max Schreck também funciona na composição do personagem. Gestos lentos, passos curtos e corpo curvado fazem parte do escopo do personagem, além dos braços colados ao corpo, como se ainda estivessem presos ao caixão. Nosferatu tem

o seu poder vem da hipnose, por isso também um enfoque necessário nos olhos, parte do corpo onde se localiza o exercício de seu poder.

uma aparência frágil, esquelética, mas


A Ăşltima gargalhada The Last Laugh 1924 91 min P&B Elenco: Emil Jannings


Hollywood. Mais de 50 anos depois, em 1979, um dos maiores representantes do novo cinema alemão, Werner Werzog, realizou uma pródiga homenagem ao imortal gênio de Murnau, com uma refilmagem desse memorável clássico.

A última gargalhada talvez seja uma das mais sublimes e impecáveis obras de Murnau. Com esse filme, o diretor alemão afasta-se mais substancialmente da estética caligarista e reafirma a tendência do Kammerspiel, com a utilização de mais locações do que de cenários, enredos mais realistas do que fantásticos, poucos intertítulos e movimentos de câmera ousados e bem mais rebuscados, aprofundando o estilo já apontado em Nosferatu, dois anos antes. Com Murnau o expressionismo dilata-se ao libertar o cinema alemão do esteticismo do caligarismo, desviando-se para uma vertente mais realista, mas sem abrir mão do uso da metáfora social e humana, típica da verve expressionista. Foi o que aconteceu com este filme. Do roteiro à montagem, A última gargalhada vai deixando para trás o caligarismo. A começar pelo excepcional roteiro de Carl Mayer, o mais expressivo escritor alemão para cinema dos anos 1920. Logo na primeira sequência, somos tomados por uma profunda admiração pelo velho porteiro, interpretado por Emil Jannings, que apesar da chuva torrencial, dedica-se como um novato a recoSombras que assombram | Expressionismo no cinema alemão 69


lher as bagagens dos clientes que chegam ao hotel, mas após carregar um enorme e pesado baú senta para descansar um pouco. O gerente do hotel vê a cena e resolve que ele não tem mais condições de trabalhar na função, transferindo-o para a função de servente do banheiro masculino. Murnau elege o elegante uniforme do porteiro, em especial o seu pesado casaco, como o objeto a simbolizar sua autoestima. Existe todo um cuidado ao filmar essa peça do vestuário, de modo a relacionar a decadência profissional com o seu uniforme. Lotte H. Eisner, a maior especialista em filmes alemães dos anos 1920, escreveu com seu conhecimento apurado que Mayer e Murnau se empenham nessa tragicomédia que é o destino de um porteiro de hotel, orgulhoso de sua libré engalanada, admirado pela família e pelos vizinhos do pátio interno como se fosse um general. Tendo ficado muito velho para carregar bagagens pesadas, ele é removido e encarregado dos lavatórios dos homens; precisa, pois, trocar sua roupa de gala por um simples avental branco. A família sente-se desonrada, ele se torna motivo de escárnio dos vizinhos, que descontam assim a adulação que prodigalizaram outrora. Trata-se de uma tragédia alemã por excelência, que não se compreende senão na Alemanha, onde o uniforme é rei, é Deus. Um espírito latino tem grande dificuldade em conceber seu alcance trágico.9 A estruturação do roteiro é fundamental no filme. Sem utilizar intertítulos, Carl Mayer constrói sequências bem definidas, com ideias claras. Primeiro, a relação do persona70 Sesc | Serviço Social do Comércio


expressionismos •

Uma das sequências mais criativas e surpreendentes de A última

gargalhada é a do casamento da filha do porteiro, que acontece no mesmo dia de sua mudança de função no hotel. Com um misto de felicidade e tristeza, mas ainda mantendo o uso do uniforme para os vizinhos e familiares após roubá-lo no hotel, o personagem de Emil Jannings bebe demais e dorme sentado. Murnau então penetra nos desejos mais profundos do personagem, reconstruindo em sonho seu trabalho como porteiro, a levantar baús pesadíssimos como se fossem plumas, jogando-os para o alto, fazendo malabarismos impressionantes e sendo aplaudido por uma multidão que reconhece seu incrível talento como porteiro. Murnau nos mostra nessa sequência uma beleza onírica e a intimidade desse personagem que só queria ser reconhecido profissionalmente. Mas

Por um breve momento Murnau deixa que os sonhos do porteiro nos guiem a uma atmosfera surreal, levando-nos aos pensamentos mais recônditos do porteiro. Murnau faz a câmera de Freund realizar um baila-

o mais incrível nessa cena é a sua construção.

do inebriante e nos conduz ao inconsciente desse homem simples e cheio de vida interior.


gem com o trabalho. Depois, com os vizinhos e a família. No dia seguinte, ele volta ao trabalho e recebe o comunicado da perda da função e que exercerá outra. Sequência a sequência, a decadência do porteiro vai se tornando um fato indissolúvel; o roteiro vai esmiuçando a dor e a tristeza desse homem. Um dos pontos mais fascinantes do filme é justamente o trabalho do ator Emil Jannings, preciso da primeira à última cena. A direção de Murnau aposta todas as suas fichas no trabalho de Jannings, que enfrenta a tarefa com muito talento, explorando cada olhar e gesto que lhe cabe. Jannings consegue atuar com todo o seu corpo, cativando e atraindo a atenção do espectador. Quando veste novamente o garboso uniforme de porteiro e tenta demover o gerente de sua decisão, entretanto, ele soma mais uma derrota. Depois, enquanto um funcionário começa a tirar seu uniforme, a face de Jannings nos diz tudo, parece que estão extraindo sua pele, e, de tabela, sua alma e a dignidade. Está tudo ali, representado no corpo de Jannings. No decorrer do filme, o andar do ex-porteiro ralenta e o seu corpo se curva. A fotografia de Karl Freund também acompanha essa degradação do personagem: de início radiosa, fulgurante, depois, há predominância das sombras, a luz fica pro-

72 Sesc | Serviço Social do Comércio


gressivamente mais rarefeita. Uma cena na qual vale mencionar é quando o novo uniforme lhe é dado e ele se dirige lentamente da luz para a escuridão do subterrâneo banheiro masculino. Freund constrói essa cena magnificamente, e Murnau só a corta quando Jannings mergulha em definitivo nas trevas do seu futuro inferno. O espetáculo visual ofertado por Murnau continua na sequência posterior, quando vemos o porteiro indo para o trabalho e o contraste entre a sua visão do mundo distorcida pela bebida com a nossa de espectador, nítida. Essa cena é totalmente inspirada no expressionismo, em que prevalece não só o olhar fantasmagórico do

Sombras que assombram | Expressionismo no cinema alemão 73


Fritz


Lang Metropolis


BIOgrafia personagem, mas o situa como indivíduo em mundo demoníaco e trágico. A última gargalhada se constitui em uma obra máxima do cinema, de um diretor que como poucos conseguiu dignificar o cinema como arte. E o resultado imediato foi o convite recebido por Murnau para filmar em Hollywood. E o resultado foi outra obra-prima, Aurora.

Considerado um dos mais famosos nomes da escola do expressionismo alemão, Fritz Lang nasceu em Viena, na Áustria, filho de um engenheiro civil, que desejava que ele seguisse a mesma carreira. Aos 21 anos mudou-se para Munique (1911), onde estudou pintura e escultura. Participou na Primeira Guerra Mundial e foi gravemente ferido em um dos olhos. No hospital, onde permaneceu por longo tempo, começou a escrever roteiros para Joe May, os quais eram dotados de um forte grafismo, no campo do fantástico e do demoníaco. A efervescência cultural, política e social da Berlim do pós-guerra se reflete nas suas primeiras obras. Em 1919, estreou na direção com um filme chamado Halbblut, que hoje se perdeu e acerca do qual se sabe muito pouco. Alcançou o primeiro sucesso com Os espiões, do mesmo ano. Em 1921, casou-se com a roteirista Thea Von Harbou, que escreveu os argumentos de quase todos os filmes da primeira fase de sua carreira. As películas que Lang dirigiu ainda na fase do cinema mudo ficariam para a história como alguns dos maiores expoentes do expressionismo alemão. A crítica, que unanimemente tinha enaltecido os seus filmes alemães, era agora também quase unânime a subvalorizar as obras que realizava nos Estados Unidos, argumentando que Lang teria se subjugado aos produtores norte-americanos, desperdiçando talento em filmes comerciais. Só na década de 1950 se percebeu a injustiça, quando uma boa parte dessa crítica começou a reconhecer a grande qualidade da maioria dos filmes dirigidos pelo cineasta alemão em Hollywood. 76 Sesc | Serviço Social do Comércio


Filmografia Ele foi um dos primeiros cineas-

1953 | Os corruptos

tas a dirigir Marilyn Monroe no

1952 | Só a mulher peca

filme Só a mulher peca, de 1952.

1952 | O diabo feito mulher

Atuou ainda no filme O despre-

1947 | O segredo da porta fechada

zo (1963), de Jean-Luc Godard. Logo voltaria para os Estados Unidos, onde morreu.

1946 | O grande segredo 1945 | Almas perversas 1944 | Um retrato de mulher 1944 | Quando desceram as trevas

1960 | A jornada para a cidade perdida

1943 | Os carrascos também morrem

1960 | Os mil olhos do Dr. Mabuse

1941 | O homem que quis matar Hitler

1959 | O sepulcro indiano

1941 | Conquistadores

1959 | O tigre da Índia

1940 | A volta de Frank James

1956 | Suplício de uma alma

1938 | Casamento proibido

1956 | No silêncio de uma cidade

1937 | Vive-se uma só vez

1955 | O tesouro de Barba Rubra

1936 | Fúria

1954 | Desejo humano

1933 | O testamento do Dr. Mabuse 1931 | M, o vampiro de Dusseldorf 1928 | Os espiões 1927 | Metropolis 1924 | A vingança de Kriemhilde 1924 | Os Nibelungos – A morte de Siegfried 1922 | Dr. Mabuse, der Spieler – Ein Bild der Zeit 1921 | A morte cansada 1921 | Corações em luta

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Metropolis 1927 124 min Legendado P&B Elenco: Rudolf Klein-Rogge, Brigitte Helm, Gustav Frรถhlich, Alfred Abel


Metropolis é sempre lembrado como um filme conciliador, uma obra que busca um mundo harmônico entre empregados e patrões. Apesar dessa crítica ainda ser coerente, o que mais marcou esse trabalho visionário e ousado de Fritz Lang foi o seu apuro visual, traço típico da estética expressionista. A magnitude visual de Metropolis, produzido em 1927, é assustadora, até para os olhos do século 21. Fritz Lang havia visitado Nova York e ficara impressionado com o cosmopolitismo e os prédios modernos e altos. A maquiagem também merece destaque, as faces dos ricos destacam-se pela limpidez e retidão, as dos operários salienta a dureza de suas vidas. Por sua vez, o cientista, com seu cabelo desgrenhado, explicita sua personalidade volúvel, pronto a ser seduzido pelo poderoso dono da cidade. A fotografia do mestre Karl Freund colabora na concepção de Lang desse mundo belo na superfície, mas triste em suas profundezas. Freund lança mão de tomadas de cenas realizadas em mosaico, com a projeção de vários olhos, rostos e elementos da modernidade que tão bem espelham a sensação vertiginosa impressa na narração de Lang, efeito que também utilizou em A última gargalhada, de Murnau. Em alguns momentos do filme, a alucinação das imagens parece dar a imprecisão necessária para a sequência continuar. Sombras que assombram | Expressionismo no cinema alemão 79


A história se passa no século 21, numa grande cidade governada com mão de ferro por um poderoso empresário. Seus colaboradores são de classe alta e vivem em um lindo jardim, tal como Freder, único herdeiro do líder de Metropolis. Já os trabalhadores são escravizados pelas máquinas, e condenados a trabalhar e viver em galerias no subsolo da cidade. Entre os operários, destaca-se a jovem Maria, que conclama os trabalhadores a reivindicar seus direitos. Metropolis demonstra uma preocupação crítica com a mecanização da vida industrial nos grandes centros urbanos, questionando a importância do sentimento humano, perdido no processo. Como pano de fundo, a valorização da cultura, expressa no filme pela tecnologia e, principalmente, pela arquitetura. Em Metropolis há uma opção clara de Lang pelo espetáculo, antes de tudo, um espetáculo visual, incontestavelmente imagético. O filme não se sustenta propriamente no desenvolvimento dos personagens. Mas, o que está realmente em jogo é o desequilíbrio entre as classes. Lang prefere assumir um discurso social, coletivo. O diretor vê o mundo como um lugar de extremos inconciliáveis: patrão contra operários; a humanização contrastada à robotização; o patrão humano e o desumano; solo e subsolo; o pai e o filho; Maria humana e Maria robô. Apesar desses deslizes ideológicos, Metropolis se afirma ainda hoje como uma obra visualmente muito bem-acabada, uma produção ousada e que ratificou o nome de Fritz Lang como um cineasta importante para os estudiosos do cinema. Poucos anos depois, Lang viria a realizar M, o vampiro de Dusseldorf, uma obra magnífica, que muitos apontam como premonitória do nazismo, que já estava batendo à porta da Alemanha.

Notas

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expressionismos •

Metropolis carrega consigo uma marca registrada do expressionismo, em especial do caligarismo, que pode ser visto no arti-

em Metropolis não acontece a distorção dos cenários, mas sim o predomínio das linhas retas e um exagerado artificialismo modernista. Tudo nele é construído. Há uma ficialismo dos cenários. Apesar disso,

ambiência característica do fantástico, uma preocupação em incorporar intervenções e criações científicas no enredo, tais como o robô construído à imagem e semelhança da líder operária Maria. •

os gestos bruscos e a encenação, quando o corpo todo do ator é colocado à disposição do diretor em busca do sentido almejado. Os movimentos corA interpretação dos atores é típica da estética expressionista,

porais do dono da cidade expressam a dureza e a frieza de sua inflexibilidade, já os movimentos rápidos de seu filho espelham sua angústia em direção a uma maior harmonia entre os homens, assim como o seu urgente senso de justiça. •

Ao conceber sua história no futuro, Fritz Lang e Thea Von Harbou instauram uma profecia sombria de uma mecanização social exacerbada, de um mundo dividido, rachado, onde poucos se divertem, fazem esportes, enquanto a maioria trabalha insone, como máquina, para sustentar os poucos privilegiados. No final do fil-

Lang promove a necessária união entre as classes antagônicas e aceita a possibilidade da confraternização, sendo chamado pejorativamente de “con-

me,

ciliador” por vários críticos e artistas. •

Hitler admirava tanto Lang que o convidou para ser o cineasta oficial do nazismo. De imediato, o cineasta arrumou suas malas e partiu para Hollywood, onde faria uma bela carreira. Sua esposa, a roteirista Thea Von Harbou, preferiu ficar e aderir ao projeto megalômano de Hitler.

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Notas 1

Cardinal (1988).

2

Hobsbawn (1997, p. 16).

3

Todorov (2008. p. 31).

4

Canepa (2008).

5

Eisner (2002, p. 17).

6

Cardinal (1988, p. 25).

7

Moises (2004, p. 181).

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