Eram deuses os astronautas?

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DIREITO E BIOÉTICA

Eram os deuses astronautas ou cirurgia plástica estética – obrigação de meios ou de resultado?

DIVULGAÇÃO

 POR SERGIO AMARAL GURGEL e RENATO MALUF

O médico não pode exigir perfeição do juiz, o cliente não pode exigir perfeição do advogado, o juiz e o advogado não podem exigir perfeição do médico e, até onde saibamos, mesmo a ‘infalibilidade papal’ está adstrita à Hermenêutica da palavra divina, nos campos da moral e da fé. Perfeição não é cousa imanente no homem.

V

amos fazer uma rinoplastia? Que tal uma ninfoplastia? Ou bulir nos seios para aumentá-los, reduzi-los, sustentá-los? Lipoaspiração? Fujamos, então, aos dogmas do Direito e acedamos à realidade! Como proclamar que na cirurgia plástica estética o resultado deve ser atingido? Não é bem assim, com todo o respeito que devemos aos que pensam de outra forma. A atividade médica é obrigação de meios, ou seja, deve-se fazer de tudo para atingir algum bem maior: a vida, a saúde, a recuperação da autoestima, do equilíbrio mental, ou o que seja. 14

revista CONCEITO JURÍDICO - nº 10 - outubro/2017

Hoje, existem aplicativos conectados a máquinas fotográficas que fazem aproximação de resultados de cirurgia estética automaticamente, os quais podem ser usados se o médico deixar bem claro para o paciente que há uma gama imensa de variantes, de particularidades que impedem uma simulação 100% real, e isso já deveria ser excludente da duvidosa “presunção de culpa” acerca de erro. Se o facultativo for fiel no momento de informar, terá cumprido um quesito importantíssimo que se alberga na chamada “boa-fé objetiva”1. É contrato, pelo que a “full disclosure” deve ser atendida2. O mesmo vale para fotografias de cirurgias anteriores. Elas são exemplos, apenas. Não se está a falar de um alfaiate, que fará um terno sob medida; ou do estilista que fará o vestido da noiva. Estamos a tratar do ser-humano, que é todo incógnitas. Desnecessário ir muito longe quanto ao quesito “esconder resultados negativos”. Assista-se a um programa dessas igrejas que ocupam parte considerável dos canais de televisão hoje em dia. O tal pastor, o bispo e quem mais seja mostram para a plateia os mil seres dos quais os “demônios” não se afastaram ou apenas aqueles dois ou três que foram “milagrosamente” curados? E por que não são punidos se estão a obrar de má-fé? O médico mal-intencionado é tão culpado quanto o bispo ou o pastor mal-intencionado. Não por aquele ser médico e por este ser pastor, mas por serem pessoas imbuídas de intenção duvidosa. Pensemos um pouco na esfera do crime. Vê-se de tudo, desde o charlatanismo puro3, passando pelo estelionato4, nada escapa aos que desejam ilaquear o entendimento de outrem. Para a chamada malpractice, também poderá haver lesão corporal, homicídio culposo, enfim, uma gama de hipóteses penais que devem ser perscrutadas em cada situação de fato. Por isso, não vemos como necessária uma espécie de previsão genérica de indenização por antecipação de risco provável contra os cirurgiões plásticos. A honestidade ainda impera no meio médico e, na maioria das vezes, a responsabilidade com relação aos seus atos não ultrapassa o âmbito do Direito Civil. Seja por uma análise de relação de causalidade baseada na tradicional teoria da conditio sine qua non, ou pela utilização de proposições doutrinárias consideradas mais modernas, como se revela a teoria da imputação objetiva5, o resultado das intervenções cirúrgicas não pode ser imputado “sem tir-te nem guar-te” ao agente, já que seria necessária a comprovação da presença dos elementos subjetivos inerentes ao tipo penal incriminador. Para esta última vertente teórica, ainda no campo exclusivamente criminal, mesmo que a conduta do médico criasse ou aumentasse uma situação de risco, tal circunstância deveria ser tolerada pelo ordenamento jurídico dentro de um critério de razoabilidade, no qual são considerados os valores da sociedade. Voltando à órbita do Direito Civil, não nos parece razoável tarjar o cirurgião plástico de escultor e dele exigir uma obra de arte que termine em um êxtase romântico de contemplação imediata e infinita. Ele não está mexendo com argila, com granito, com bronze, ferro, aço. Ele não é Deus, mas astronauta e, como tal, falível. Há uns poucos acórdãos que contemplam a realidade de que médico não é Deus. O que ele não pode é (1) agir com dolo (isto é óbvio), culpa (negligência, imprudência, imperícia) e – embora neste segundo caso seja mais difícil encontrar acórdãos fundamentados apenas em tal premissa – (2) mentir sobre os prováveis resultados. Vejam-se julgados como a Apelação nº 0368827-30.2008.8.26.0577 (6ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, 25/3/2014, Rel. Ana Lúcia

revista CONCEITO JURÍDICO - www.zkeditora.com.br

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