Os Novos Maias na Costa Nova

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Senos da Fonseca

E Ega mais expansivo comentou: – Afinal o nosso criador, o Eça, não achincalhou mais, nem verberou mais, senão pelo que viu. Soube a «estória do Dâmaso», e glosou-a. E a Joana da «Tragédia da Rua das Flores», escrevinhado, no entre «Maias» e outros, estás a vê-la? Ele inventou-a? Não!... viu-a e transportou-a, retirando-lhe um pouco a dignidade. Bem dizia o Camilo: para ser «realista», basta escrever conforme o novo gosto flaubertiano. É só distribuir uns adjectivos, pontuar de um modo mais acessível, e terminar no nada. Eça sabia que o País não era o retrato do espaço entre o Grémio e a Havaneza. Criticou-nos, ou melhor expôs-nos. E Ele? Que salões frequentou? Diplomata lá fora; bastardo, vencido da vida, cá dentro. Ora bolas!!! Os enganados fomos nós… Ele sabia que havia outro País, e mandou essa parte às malvas.

na

Costa Nova

Senos da Fonseca Livros editados: Nas Rotas dos Bacalhaus Ílhavo – Ensaio Monográfico do Séc. X ao Séc. XX

Os Novos Maias na Costa Nova

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Os Novos Maias

O Labareda Costa- Nova – 200 Anos de História e Tradição Guilhermino Ramalheira – O Discurso da Paixão Ângelo Ramalheira – O rigor científico numa personalidade de eleição Alexandre da Conceição – Poeta da Terra Absurda Embarcações que Tiveram Berço na Laguna (Prémio Academia da Marinha) João Sousa Ribeiro – «O Pai da Pátria» Maresias www.senosfonseca.com senosfonseca@gmail.com



Ficha técnica Título

Os novos Maias na Costa Nova

Autor

Senos da Fonseca

Edição

Autor Capa

Sara Bandarra

Ilustração de Postais

Senos da Fonseca

Revisão

Maria Helena Malaquias

Execução gráfica

Officina Digital – Impressão e Artes Gráficas Telefone 234 308 697 • Taboeira • Aveiro

Data de edição

Abril de 2014

Depósito Legal 374766/14


Dedicatória

… e nas albitanas doiradas do seu tresmalho, me enredei; e no bragal macio do seu corpo de menina, me amaciei. … e assim enredados até ao fim, vivemos como nenhuns outros, dois, esta Costa-Nova dos mil encantos, e recantos…

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Justificação

Há pouco tempo achei graça a uma notícia vinda no jornal «Expresso»: a propósito da comemoração dos 125 anos da publicação da versão original de «Os Maias». O jornal lançou um desafio, a autores portugueses de nomeada, para a escrita de um «novo» capítulo do livro de Eça de Queiroz, que se intitularia «Os novos Maias», sendo livre e à escolha do autor, o assunto, o estilo, e a época, em que o mesmo se desenrola. Nessa noite dormi mal. O desafio começou a atormentar-me. Claro que não tenho a categoria para me ombrear com os autores convidados. Je sais… Mas o que me desafiava era o de, posteriormente, testar o meu mal-amanhado e enxuto trabalho, com o esplendor dos textos saídos dos imaginativos e consagrados autores. Aceite o auto-desafio, cessaram todos os trabalhos em curso. E toca de meter mãos à obra. O trabalho que ofereço (hoje) aos amigos – e só a eles – tem uma explicação: Primeiro resolvi situar os personagens centrais de «Os novos Maias», em 1907, na Costa-Nova. As personagens que passam no capítulo, só por pura coincidência, têm nomes historicamente conhecidos. Mas não houve qualquer preocupação de fixação cronológica, contemporânea à referida data. Segundo: o meu «capítulo» pretende fazer uma leitura, ao espelho, 5


do trabalho cáustico de Eça. E nessa leitura os personagens centrais de «Os Maias», vão sentir-se «traídos» pelo criador. Ou melhor usados. E é sua pretensão afirmar que havia outra maneira de se ser irónico. Afinal – sentem Ega e Carlos da Maia – Eça «viu» na Costa-Nova, in loco, outras gentes, ainda sãs. E ao pé dessas pessoas, até os «cabotinos» lisboetas, ainda poderiam ter salvação. E porque não aceitar que os personagens se gostassem de ver tratados em uma outra perspectiva? As pessoas (e personagens) têm de ser obrigatoriamente à imagem e semelhança, do que pretendem os seus criadores? E pronto… Desafiei-me, e agora deixo-vos com este petit essai, que me farão favor de perdoar a ousadia. Senos Fonseca

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Capítulo 1

A «Gazeta Lisbonense» de 4 de Agosto de 1904, inseria com destaque na sua primeira página, a notícia, assim titulada e escrita João da EGA a banhos, na praia da Costa-Nova A convite da família Pinto Basto, recém-chegado directamente de Lisboa, aportou à jovem mas bonita praia do centro do País, a Costa-Nova do Prado, jóia rara da natureza, concha idílica onde se espreguiça a Ria prodigiosa antes de ir morrer ao mar portentoso, português, o intelectual JOÃO da EGA. Figura mítica da vida cosmopolita lisbonense, farol alexandrino que guia os passos da mais distinta e requintada high society da capital do reino, Ega, figura de fino recorte intelectual, personagem talentosa no humor amargo com que vive o presente, sempre à espera do momento em que concretizará a obra literária que decerto o imortalizará, fará a season naquela estância balneária. Antecipando esse momento glorioso, JOÃO da EGA foi dado a conhecer naquela que f icará como uma das mais célebres partituras da literatura romanesca, realista portuguesa, «OS MAIAS», brotado da pena mágica do talentoso escritor Eça de Queirós. 7


Este ano, e por via de tão ilustre presença, a vida social daquele recanto, que vem sendo referenciada, como já intensa no período estival balneatório, será porventura, ainda muito mais recheada de interesse.

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Capítulo 2

A 6 do mesmo mês, ia o sol bem lá bem perto do pino, Carlos da Maia resolvera, enfim (!), levantar-se, depois de um sono reparador da noitada desbragada que havia tido na véspera. Estava numa fase da vida em que tudo quanto desagradável lhe acontecia já bem pouco lhe importava. Chegara a um ponto em que a vida era o «estômago» e os seus prazeres. Uma boa jantarada, regada, profusa e adequadamente por um bom sauvignon fruiteux, chegava para repor o espírito, levando-o à inevitável constatação de que a vida perfeita não existe; o que está no domínio humano é por natureza imperfeito. Naqueles momentos de ressaca, era quando sentia mais intensamente a falta do seu amigo e confidente, Ega. Ora, sem que Carlos percebesse a razoabilidade e o inopinado da decisão, Ega comunicara-lhe em um tempo próximo, passado, a pretensão de fugir de Lisboa, cansado, disse, do ambiente pesado e rotineiro de pândegas, e dos sensaborões entretenimentos: corridas, jantares de cardápio afrancesado, blagues ridículas, com o último e único fito do destaque a qualquer preço. O mais estranho da não expectável fuga, residia, porém, ao contrário do que sempre o seu amigo e companheiro de vida apregoara desejar, não ser o seu destino, desta vez Paris, que segundo Ega, era o lugar mais apropriado ao cimo da Terra para um rico viver bem: poesia, teatro, boulevard, clubs. Mulheres, muitas. Bonitas e cocotes. E livres. 9


Em Paris – garantia Ega – les journaux, eram respeitáveis, cultos, esbulhados de falsos jornalistas de preço baixo, dos que só sabem chafurdar na pulhice humana. Não!… desta vez, seria tudo au contraire – garantira Ega ao amigo. Comicamente – parecera a Carlos – Ega, qual eremita, pensara desterrar-se num recanto sossegado. Num local higiénico, pródigo nos favores da natureza. Num charco mas de ar limpo e perfumado, onde o melhor era, à noitinha, saborear com deleite a acidez perfumada da maresia. Algo que fosse revigorante para o corpo, que no dizer de Ega, começava a pesar em resultado de uma vida desregrada, excessiva, no far niente. Vida de saltimbanco entre viscondessas de pele engelhada como duna do Sarah batida por violenta da ventania, tapada dos olhares piedosos por fortes camadas de caiação. De lanches e opíparas soirées, estapafurdiando entre a certeza ou a improbabilidade deste País, um dia, acordar a aprender a ler. E a trabalhar. Ega pareceu querer dizer: – Lisboa está irremediavelmente desactualizada. Et voilà: anacrónica sem pitoresco. Vieille, mon chéri… vieille. Je m’en vais. Aceitando uma sugestão dos Pinto Basto, gente de fartos e entrouxados cabedais, provindos de um sólido e já longo historial de empreendedorismo nos campos do comércio e da indústria, Ega resolvera aceitar o seu convite, e ir «a banhos». Eslavaçar corpo, a alma, e o espírito, em local paradisíaco, ainda para muitos desconhecido, pequeno rincão nascido entre a ria e mar, que se mostrara de uma prodigalidade estonteante de beleza natural. Onde as ideias se podiam recuperar, salgando-as, para as prolongar até ao dia de seu uso. Ega decidira com radicalismo parar de escrever a sua obra, certamente por uma temporada, por fins higiénicos, mentais. A Costa-Nova, uma estreita faixa arenosa osculada pelo Atlântico, e lambida amorosamente pela ria, tornou-se prodígio da natureza, local acertado para veraneio estival. E era aqui que a família Pinto Basto tinha por costume passar a época estival. A Costa-Nova, nascida há menos de um século, só a meio de oitocentos tinham nela alapado os primeiros casebres da gente 10


piscatória. Dada a procura, logo os foram cedendo aos veraneantes arribados ao local, a troco de uns escassos réis. Com eles, aquelas gentes cuja vida estava sujeita ao capricho do mar, recompunham o tísico orçamento familiar; os chegados «arribavam» à praia com o intuito de dar descanso à alma, e bem-fazer ao corpo, depois de ano de trabalho intenso. A novel praia, reduto do litoral de extensas areias brancas, espraiadas, tem uma atmosfera fresca, salgada q.b., luminosa em excesso. De um lado o mar. Onde desde o levantar do sol até às onze se pode tomar banho sob o atento olhar do banheiro que comanda as hostes dos banhistas, e que no final oferece uma bebidinha retemperadora. Do outro, a ria. De onde emana um agradável cheiro de algas, bem mais serena e acolhedora, e onde os mais timoratos tomam o seu banho em águas muito mais aquietadas. O local desde cedo despertou a curiosidade de uma nova burguesia atraída pela publicidade da presença dos mais curiosos e destacados espíritos da geração de setenta, convivas habituais no palheiro da «amizade», do grande tribuno José Estevão. Palheiro que foi dos primeiros a instalar-se no descampado dunar para guarida de um famoso mercantil serrano, e depois adquirido pelo político. Fácil de identificar pela sua dimensão apreciável, e pela vestimenta exterior, já que preguiçosamente brochado pelo vento com uma cor que não é de morte nem de vida. Por dentro, verdadeiro mostruário de bricabraque para regalo do espirito convivial. Curioso o facto de no período estival, em tão pouco espaço geográfico, numa inacabada nesga de terreno brotada das águas, se acomodarem gentes de diferentes classes sociais: pequena, média e alta burguesia. O esgalmido moiro de trabalho, o pescador, com a família, eram «empurrados» lá para sul, acampados em barracos toscos de madeira encostados uns aos outros para melhor se aguentarem da ventania. Certo é que todos se aconchegam, em feliz e mais do que tal, pacífica vivência. Aos pescadores, a presença destas gentes traz-lhes algum lucro. As tendas de negócio têm o seu período de negócio mais lucrativo. Para os veraneantes, a praia é como uma 11


botica onde se buscam remédios para maleitas do corpo e do espírito. De resto não há formalismos de sociedade: os gestos, o fácies afivelado para cada expressão de alma, júbilo, modéstia, consternação, afabilidade, desprezo, pífias mascarilhas afiveladas apropriadas para cada momento de fingimento, parecem estar ausentes. Subjugadas pela poesia doce e penetrante, do ambiente natural encharcado de luz onde se movem as figuras humanas, parecendo indiferentes a quem chega para divertimento, ou cura. A nova pequena burguesia, essa, acorre au cirque, copiando os tiques dos senhores, só que com mais balbúrdia e exuberância, numa existência mais natural e desprendida. Os Pinto Basto que chegaram a ser os donos da maior extensão de terras soalheiras, lagunares, eram ainda, os senhores proprietários de uma espantosa quinta, onde sobressai o palacete bispal com capela, para elegia e repouso dos restos do seu Bispo fundador, D. Manuel de Moura-Manuel. Depositado em túmulo de mármore de Carrara, copiosa e prodigamente entalhado, alinhado ao lado do de sua amásia, D. Maximiana de Castro… Nos terrenos da quinta, no séc. XVIII, o patriarca José Ferreira Pinto Basto, ancestral da família, edificara uma grandiosa fábrica para produzir vidros e louça de porcelana de aprimorada luxúria artística, na forma e decoração, capazes de fazer frente às inigualáveis porcelanas de Sèvres ou de Rouen. Nos períodos estivais, um grupo distinto de onde sobressaíam os Pinto Basto (descendentes do patriarca), os Mourões, os Viscondes de Salreu e Taboeira, o Arcebispo Bilhano, os conselheiros Cunha e Magalhães, e muitos outros, tinham por hábito fixarem-se na Costa-Nova. Gozando os favores iodados com a proximidade do mar e da ria, tendo por hábito seroar em grupo, em animada e interessante tertúlia. Dois dias de ambiência excelentemente activa, de dia em passeio sobre o extenso areal, à noite sob lustres e candelabros em muito chic convívio de conversa muito variada, alegre e descomprometida, em que as pessoas pareciam ser exactamente o que eram: – a riqueza 12


não era para exibições fúteis, mas para ser útil à sociedade em que se integravam. Era o caso paradigmático do Visconde de Salreu e da sua enorme obra de bem-fazer. Aqui, apercebeu-se João da Ega, o comportamento social era muito menos formal, muito mais natural e cativante. Os gestos muito mais comedidos. Fossem de alegria, modéstia, exaltação ou melancolia, o gesto sublinhava a frase mas acabava com ela. Sem ser fastidioso, excessivo ou antinatural. As pessoas quando em grupo, raramente deixavam fugir expressões que não denotassem normalidade e equilíbrio. As praias de banhos, são, para lá de um divertimento, uma real cura para as moléstias induzidas pela vida doentia nas grandes cidades; os abusos de toda a espécie provocados pelos excessos citadinos, a hipervalorização das teias amorosas proibidas, as noitadas, as insónias, o ar fumarento dos salões fechados, a escassez do vil metal para dar suporte a vida tão espaventosa, a ambição de destaque na vida a qualquer preço, a conquista amorosa consumada em lençóis impuros, nota João Ega, fazem das cidades um antro propiciador em que se consome o equilíbrio somático do individuo. Ora bem – pensava então Ega – nada melhor do que receitar ao seu grande amigo, Carlos da Maia, uns banhos retemperadores para o caótico estado de espírito em que se deixara afundar, não conhecendo nem reencontrando paz, depois das razões dolorosas e perturbantes que puseram fim ao turbulento episódio do seu amor com Eduarda. O banho frio matinal seria uma terapia excelente para Carlos, cogitava Ega. Feito em grupo onde aparecia sempre um farsante brincalhão, espaventoso e hilariante banhista, tanto no fingimento de que se afoga, como no traje riscado que enverga. Como se tratasse de um recluso à solta, disfarçado por distinto coco, boina biscaina, ou circunspecto e pesadão boné irlandês, tudo serve para risota dos banhistas e do grupo de meninas acompanhantes que em gritinhos e pequenas correrias vão fugindo às vagas ou aos salpicos atirados por brincalhão mais activo. E nessas voltas e corridas atrapalhadas, em gritinhos safados, vão subindo os vestidos vaporosos de 13


ir a ver «o Senhor». Ou mais estilo de passeio, na avenida. Descidos e rodados até aos alvos e delicados pés, vão-nos levantando a fugir da onda, mostrando o alvo artelho. E às vezes, propositadamente ou mais nervosas, o começo de umas torneadas e bem arredondadas pernas. Que rapidamente desaparecem, deixando de se poderem degustar no que está para lá dos joelhos, já que à altura destes, os folhos de uns compridos calções dão por finda a atrevida mostra, provocando nos voyeurs um oh!!!!… dommage… de desalento, de pena e desencanto. Os calções funcionavam como o «pano de boca» que punha fim ao espectáculo, quando a cena do descuidado (?) alevanto parecia poder tornar-se escaldante. Ficava à imaginação do espectador sonhar com o desenlace.

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Capítulo 3

Ega, mal chegara, fora instalado num acolhedor quarto debruçado sobre o lençol de águas profundamente azuis que se estendia até à outra margem. A casa apalaçada da família Basto, tinha uma longa e bem lançada escadaria que dava acesso a uma interessante varanda de telheiro, suportada por colunas, abrindo directamente para a ria, de onde vinha sol, muito sol, directo e reflectido no azul, muito azul, das suas águas. Um jorro de luz tão intenso, só por si capaz de revigorar um fulano ao encharcar-se nele até ao tutano, e fazê-lo emergir das brumas carregadas no seu interior. Logo muito cedo – Ega – que na primeira manhã não apreciara a hora madrugadora, era acordado pelo movimento do local, pois a «mota» contígua à casa, entrando ria dentro, era local preferido pelas peixeiras para aí lavarem o peixe, e o encanastrar. Também ali era local de grande bulício, com os variados mercantéis a carregar o peixe salgado em barricas, encanteirando-as em barcas que o iriam levar para os diversos entrepostos postados ao longo da laguna, ou rio acima, lá para as faldas das serranias beirãs. Descobriu assim Ega, o trabalho esgalmido destas gentes, rostos mortificados pelo esforço no ganho de uns parcos rendimentos que lhes permitem, pouco mais, que a sobrevivência no dia-a-dia. E à janela, em situação privilegiada para observar a lufa-lufa, Ega deita o 15


olhar para a ria aquietada nestas primeiras horas do dia. E o que vê deslumbrou-o. A magia dos azuis que se postavam e prolongavam à sua frente, vindos da natureza preguiçosa, larga e extensa, prologava-se no esverdeado das terras serranas. A tela que tinha defronte deixou-o perplexo. Finalmente!: ali à sua frente estava a inspiração suprema para o poema da sua vida. Sentia-o a florir, a pedir horizontes para se concretizar. Bastar-lhe-ia reproduzir a tela que tinha defronte dos olhos: – os azuis desmaiados pela neblina húmida, coada, que os desbotavam; os tufos esfarrapados de umas nuvens matinais colados na borda, no outro lado; o «moliceiro» ronceiro, vela solta, gadanhando o fundo lagunar, enchendo-se de fitas de um castanho dourado macio; os tripulantes equilibristas, correndo lestos sobre a borda da embarcação, com a vara ombreada, ferrada ao fundo lodoso; gaivinas que mal acordadas, pigarreiam nos ares à procura de um ou outro peixito que distraído, tinha vindo espreitar à superfície sem medir saber o perigo que tal atrevimento lhe custaria. Carlos, assim o esperava, chegaria amanhã. Ega cerrou os vitrais e cantarolando Verdi, Chi e mai, chi e qui in sua vece?, seguiu a enfarpelar-se, aperaltando-se a rigor no seu abotoado paletó de verão, encimado por palhinha parisien. Ajeitou o cabelo alourado e cofiou a bigodaça majestática, espetando-lhe as pontas, revirando-as para cima. E de imediato desceu à sala onde eram servidos os breakfast para se recompor da ressaca da noite da véspera. Que em casa dos Mourões fora copiosamente regada de um excelente douro sobejamente frutado, vindo lá das suas quintas do Douro. Uma verdadeira iguaria para regalo do beiço. Lastrado por petit couchon rôti, exórdio à contenção possível, necessária para saber parar a tempo de uma «empaturradela» letal. E para sobremesa fora servido um arroz doce a nadar nuns dourados ovos, manjar conventual elaborado pacientemente entre «pai nossos e avé marias», que, acompanhado por um vintage alourado de estalar na boca, para assim melhor penetrar e reter no palato., fazendo cantar hossanas às alturas. O cardápio 16


era de um português vernáculo. Nele não havia francesismos para identificar as iguarias. Ega não resistiu, contudo, a introduzir-lhe a bastardia franciù. Ega pretendia ocupar parte da tarde a fazer visita de cumprimentos, «à gente fina» com o fim de anunciar a chegada de Carlos, fazendo a cada uma, uma introdução-apologia do seu amigo, que estava certo, provocaria só por si mesma, um ah!!!!!!. Já à noite, ao serão, numa súcia de amigos, senhoras e cavalheiros presentes pareciam verdadeiramente interessados, ávidos, em conhecer esse exemplar flamejante, distinto da high society lisbonense. No dizer de Ega garantidamente muito chic. Homem prático, compreensivo, bom e inteligente, para quem a instrução de uma criança não era só recitar Tityre, tu patulae recubans, mas levá-la a saber factos, coisas úteis, coisas práticas. Carlos – explicava Ega com ênfase –recebera instrução apurada e aprimorada. Tirara em Coimbra o seu curso de medicina. Que só não exercera em absoluta dedicação, por uma não necessidade de ganho material. Já que eram bastantes os largos cabedais de seu avô. Após o desaparecimento de seu filho, Pedro Maia (pai de Carlos), tudo pusera ao dispor do neto. As expressivas, pródigas e entusiasmadas referências feitas a Carlos, no redor daquele novo e interessante círculo de amizade, foram suficientemente capazes de levantar a curiosidade, e o expresso desejo de saber quão demorada seria (ainda!) a sua chegada. – À saúde do «amigo» Carlos da Maia, o gentleman lisboeta que importa conhecer – dissera o sempre bem-disposto «Manelinho» da Graça – erguendo o seu copo onde espumava a frescura de um champanhe bairradino. – Hip!… hip!… urrah!… responderam os presentes, bombardeando o pobre João da Ega com as perguntas: saber como, quando, e a que horas, chegaria o «amigo» Carlos, de quem pareciam já íntimos. Ia ser de arromba a estadia na Costa-Nova destes dois espécimes lisboetas. 17


– Vamo-nos divertir: diria Pinto Basto, figura robusta, cara alegre, jovial, olhar claro e bem aberto, cabelo revolto com uma trunfa à direita, sempre impecavelmente «atoiletado». O que certamente concorria para nele se perceber, logo ao primeiro olhar, um homem a quem o triunfo era próximo. Afável, bom ouvinte, bom conversador, muito convivial, Pinto Basto era de uma alegria contagiante. – Divertir é ousar divertir os outros, divertirmo-nos a nós próprios, e a deixarmo-nos ser divertidos pelos outros. Deixemos as agruras em casa, trancadas a sete chaves. Aqui, há só que pensar que a vida é bela, e vale a pena ser, vivida. Preparemo-nos para divertir o amigo, Dr. Carlos da Maia…, atirou o anfitrião Pinto Basto, erguendo a sua taça, escolhendo João da Ega, para o primeiro toque. – Touchée… remata Ega. Francisco – «Chico Fininho» de Barbosa e Tancredo –, exultava: – Oh! vamos ter notícias daquela sociedade onde bóiam mais viscondessas que tainhas aqui, na ria, ih!… ih!… ih!.. au lá là… catita. Vai ser de estalo. Ao tempo um criado de suíças estendidas, longas e eriçadas, arruivadas, de jaquetão abotoado, sapato de lustro, aparecera na porta de acesso principal, empalmando com elegância uma travessa onde, num «sauce au lémon, nadavam umas bem nutridas… e frescas ostras. O Baptista, servente galego, experiente e bom equilibrista, não conseguiu evitar o gesto largo do Fininho a acompanhar e a dar crédito à exultação. Muito embora defendesse, rápida e diligentemente a travessa, do «ataque», pondo-lhe de imediato a outra mão, facto é que o Baptista (assim se chamava o galego) não conseguiu evitar que da manobra de recurso, fosse parar ao chão uma copiosa dose do molho: – Dommage… dommage, j’e m’ excuse – lamentava-se o «Fininho». De imediato acorreram empregadas de balde e panos em punho: – Non, non, eleva a voz, o Fininho: sejamos amigos dos animais, e deixemos para o gato, o que sobra para o gato. Risada geral dos presentes, e atrapalhação na criadagem. Um 18


gesto quase desapercebido da madame Pinto Basto às solícitas serventes, terminou com a hesitação. Limpa a carpete, compreendendo que não haveria tempo para demoras escusadas, e sendo evidente que o conteúdo da travessa esperava, pondo em causa a frescura, todos se atiraram tumultuosamente à pescaria, mais parecendo uma carga da brigada ligeira sobre o inimigo. Num ápice, «nenhum inimigo» ficou na travessa para contar a história daquela batalha heróica. – Amigo! – diz «Manelinho» Graça na sua excitabilidade, abrindo os braços inquietos e convidativos para colher entre eles a figura redonda de Ega: – seria uma subida honra, para lá do devoto prazer, acompanhar o amigo à estação de Aveiro, para aí dar as boas vindas ao «nosso» Carlos. E até, muito interessante – olá se o será – desde logo levar o «pobrezinho» – que deve vir esgalmido de tão longa e incómoda jorna – a uma das catedrais gastronómicas da cidade, a fim de e aí se recompor, e aquietar os humores. – Ora essa (?!) por quem é. Eu, João da Ega, é que terei todo gosto, e me sentirei desvanecido, se o amigo Graça – de nome mas e também da jovialidade de que constantemente dá mostras – me acompanhar na jorna, a servir de cicerone, a mim e ao meu amigo Carlos da Maia, nesse primeiro contacto com Aveiro.

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Capítulo 4

Mal o sol despontara, Ega aperaltara-se rapidamente, não esquecendo como lhe fora recomendado de atar um garrido lenço tabaqueiro, ao pescoço, para assim se proteger do pó da estrada. Descera de um salto à sala de almoçar para recompor o estômago, ao tempo em que lhe era dada notícia de que a caleche disponibilizada por Pinto Basto, já o esperava. Subiu lesto, dando indicações que o Sr. Graça os esperava lá no norte, à saída da praia. O cocheiro fez estalar o chicote; o veículo, abanado por um esticão forte, arranca, seguido pelo «rapazio» que àquela hora matinal já por ali andava, com as suas mães, a tratar da escorcha do peixe. Eram cerca das dez horas da manhã quando a caleche faz alto em frente à estação de caminho-de-ferro, de Aveiro, inaugurada em 1864, fruto da teimosia e iniciativa do grande tribuno, José Estevão. Pai do Conselheiro Magalhães, outro verdadeiro anfitrião na Costa-Nova, acolhendo as grandes figuras politicas e intelectuais, no palheiro remodelado, que fora de seu Pai. Eça de Queirós, amigo íntimo do Conselheiro, teria sido um dos frequentadores assíduo da Costa-Nova, para onde vinha corrigir, ou escrever, algumas das suas obras. Chegados, foi uma longa espera que o telégrafo anunciaria com antecedência. Nos arredores da estação que ficava um bom quarto de légua afastada do centro da cidade (e cuja alforria citadina tinha 21


sido concedida por esse grande Pombal), havia várias tendas, estrategicamente postadas para restaurar a sede ou a fome dos viandantes. Manuel Graça parecia conhecê-las em pormenor. Isto é, conhecia as especialidades que cada uma podia fornecer ao passante. O que em Ega mais despertou a atenção, foi percepcionar a liberalidade com que uma mistura interessante de gentes convivia. Umas, simples mas educadas pessoas: gente da ralé, mesteirais, tendeiros, ferreiros e ferradores. Outros, pequenos grupos de uma fradalhada de beiço sôfrego e bochechas tintas, todos sentados, à uma, em redor das mesas de banco corrido. Falando alto e em bom som, em tons de cantata bufa, cheia de gestos expressivos, em perfeita algaraviada. Fazendo tratos de mudança de voto, mais vulgares que a muda de camisa ou sapatos, saltando do barco regenerador para a lancha progressista. Ao tempo em que a cada emborcadela, acertada a muda, batiam sonoramente o «copo de três» na mesa de pinho extreme. Deixando marcas avinhadas, roxas, esparramadas no tampo nu em jeito de decoração modernista, resistentes ao contínuo eslavaçar com sabão de potassa, amarelo. Fradalhada, servidores (?!) da Santa Madre Igreja: uma raça que bebe, joga, frequenta tascos logo de manhã após a hóstia, fuma cigarros, ao tempo que protesta vigorosamente contra o diminuto contributo deixado nas caixas de esmolas para a despensa do mosteiro. E acima de tudo contra o jesuitismo, uma casta à parte no mundo da fé. Falar de jesuítas, em Aveiro, era falar de uma corja de salteadores pátrios. Felizmente pelas terras liberais da cidade, poucas ou nenhumas «santas» fogueiras, tinham, no passado, sido ateadas, para nelas «grelhar» pobres e difamados heréticos, vitimas do furor inquisitório. Ega logo intuiu que para estes homens sem grande vocação para o exercício do mistério, e muito menos para a oração e penitência, gente sem cerimónia no vestuário, nem com elegância bastante para o púlpito, falar da imortalidade da alma seria tarefa de enfastiante e pouco convincente dissertação. Esta fradalhada só se comprometia com hossanas, ladainhas monocórdicas, bênçãos apressadas, e solenidades de procissões evocativas. 22


Finalmente o comboio apitou quatro vezes. A última, mais soluçada, mas mais forte e mais prolongada, avisou os passageiros de próxima paragem. Não seria de todo necessário o aviso, pois mal o comboio apitara, um bando de mulherio sobraçando umas entrançadas canastras, anunciava num curioso escarcéu: À…veiro! À… veiro!… mexilhões ou enguias de escabeche, e barricas de ovos moles. De uma carruagem reservada, atrelada lá no fundo, quase na cauda da composição, saiu Carlos da Maia, saltando atleticamente para o cais (nada mau, cogitou em voz baixa, só para si, o Manuel Graça: temos homem!) Dois bagageiros contratados por Ega retiraram as malas, conduzindo-as de imediato para o porta-bagagens da caleche, onde o condutor as laçou, estivando-as com fortes correias, preparando-as, assim, para o que desse e viesse, dos solavancos da jorna. – Oh! Carlos a tua chegada é a estrela da aurora a despertar a nossa vontade para a vida. – Ega, não me digas que, finalmente, nasceu em ti o poeta… das «Memórias de um Átomo»? – Bem o dizes, Carlos, bem o dizes… e para ti o primeiro do meu estro renascido. Cegonha da natividade Que estendes as brancas asas Por cima dos lagunares lodos Envolve nelas teus filhos, Todos! Cobre-os de uma fraterna amizade. Bravo,… bravoo… exprimiram-se em uníssono, Carlos e o Manuel Graça, que entretanto Ega já tinha apresentado, como un bon vivant, toujours gai. Entraram na caleche e partiram, seguindo o trajecto que conduzia à cidade nova, indicado pelo Graça. – Sabes, Carlos, colhi aqui a informação que o nosso criador, Eça de Queiroz, fez este mesmo percurso, e do mesmo modo, em 1880. E sabes que o descreveu com um rigor que hoje comprovamos. 23


Repara no que escreveu, quando veio à Costa-Nova, a convite do Conselheiro Magalhães: Saído da estação tomaria lugar numa velha carruagem “rangendo miseravelmente, arrastada por umas pilecas deploráveis, que por mercê dos chicotes mágicos têm asas nunca depenadas por caridosas mãos policiais”. “Aveiro era então uma cidade de ruas estreitas e tortuosas, de calçadas inclementes, favoráveis ao solavanco e com o desf ilar resignado das suas casas geralmente baixas, toscas e humildes” (…) “o grande encanto da cidade leva à Ria, onde os barcos compridos e negros, grosseiras gôndolas, com as formas originais, de crescentes repuxados, aglomeravam-se confusamente encostados aos paredões baixos”. – Tinha plena razão, aquele Eça; estas ruelas só são próprias para as mulas desasadas, acrescenta Carlos. – Et voilà… meus amigos, diz o Manel Graça abrindo a porta e saltando para a ruela, estendendo um braço de apoio aos companheiros de jorna. Chers Messieurs: chegámos ao petit auberge do velho Palhuças, catedral onde cada iguaria tem direito ao repicar do sino da vizinha igreja de S. Gonçalinho, orago que cuida destas gentes da beira-mar. Apeai-vos e entrai. Empurradas as portadas de bandeira, atravessaram uma sala. Em uma das suas enormes paredes podia ser apreciado um bonito trabalho de azulejaria local, num azul forte, representando uma cena da vida lagunar, tendo como tema central a produção de sal. Nas paredes, pendurados, viam-se alguns apetrechos para o exercício daquela actividade, em que o homem enegrecia, tisnado pela canícula do suão, enquanto o sal se acumulava, alvo, nos cones do malhadal. Lá estavam a rasoila, o galho, o rapão, o pajão, e muitos outros. Sobre um outro painel de azulejo, o tema servia para exibir o ex-libris lagunar. O barco moliceiro com os ancinhos presos na tamanca, à 24


borda, a pentear a Laguna. Na sala, provindas da cozinha, pairava no ar um turbilhão de fragâncias aromáticas, lembrando vitualhas que convidavam a degustação suculenta. No pátio, à sombra de uma frondosa parreira, numa mesa onde se esticava alva toalha, esparralhavam-se apetitosos e muitos variados pitéus. Aos quais os nossos amigos logo se atiraram, dispostos a acalmar a fome que neles corria. Os variados petiscos, se não eram novidade para o Graça que os solicitara ao anfitrião, «Palhuças», eram, muitos deles, inteiramente desconhecidos para os «fidalgotes» da capital. Uns carapaus nadando num escabeche «vinagrette; postas de raia «au pitau», saturados em um fortíssimo molho de pimenta ao alho, contendo os fígados moídos do peixe, a ferver; amêijoas, abertas num simples mas aromático molho de coentrada e alho; mais tranquilos, mas não menos vistosos, exibiam-se uns mexilhões ao natural. Tão macios quanto carnudos, fazendo jus ao título de «os melhores mexilhões do mundo». Do poço de água límpida, de uma frescura extreme, tirava o «velho Palhuça» de uma sacola de rede, garrafas de um «maria gomes» frescal, com que enchia continuadamente os copos a tão distinta clientela. Terminada a degustação da petisqueira, levantados e substituídos pratos e alfaias por moçoila trigueira, limpa e escofenada, bem nutrida, de cores sadias, braçolas ao léu, e peito generosamente mostrado na camisete de cotada de baeta, a obrigar o pobre cliente a desviar os olhos da travessa que transporta, veio pendurado num varapau de ombrear os canastros de pescado, um caldeiro fumegante. Transporta um ensopado de uma pródiga variedade de peixes, a que chamam «caldeirada», de onde brotavam, sabores e odores, de regalar o mais fino pimpão, apreciador. Carlos, mais comedido, apreciava mais com os olhos e com o olfacto. Ega, esse, batia-se de par em par, galhardamente, com o Graça, noa taque àquele opíparo regalo. – Então diga-me, Ega, se uma merenda destas não é bem melhor do que os «apilantrados» menus importados lá de Paris – seringava o Graça, o Ega, conhecedor da predilecção deste pela cidade luz. 25


– Bem: aceito! – acedia a contra gosto, ainda não totalmente convencido, o Ega. Não há duvida que o produto do cardápio francês é mais para os olhos, este aqui, é, em boa verdade, para degustação de todos os sentidos. – Ora… ora, João da Ega, confesse lá: – esse afrancesamento das virtudes nacionais (menus incluídos), já vem de muito longe. E sempre deu bota. «Raia», dizemos nós por cá. Não é por ser bom. Treta nenhuma: é por ser chiquérrimo, consentido pelo livre cambismo aplicado à culinária, no caso. Carlos gozava a cena. Estes remoques do jovial Graça, dirigidos ao Ega, Ega que considerava Paris e tudo quanto de lá vinha genial, supremo, incomparável, deviam ser um sapo vivo, difícil de engolir por Ega. Talvez por isso, o seu amigo se mostrasse hoje tão bebericão. – E digo-lhe mais, Ega – continuava Graça: cá os de Aveiro, não temos monumentos como os Vossos lá por Lisboa. Os nossos «Jerónimos» são estas tascas como a do velho «Palhuça». E digolhe, meu caro: prepare-se… que ainda só vai dans les entrées. Prepare a vasilha, intercalando uma canja. Oh! uma canja; uma «chora» de cabeças de peixe, um verdadeiro monumento bíblico da arquitectura gastronómica. Verá… Em grande algazarra, entrara um pequeno grupo de moços e moças. Grupo folgazão, falando alto num linguajar de troca de consoantes e terminações fechadas. Linguajar sonoro, estridente, cheio de uma entoação cantarolada. Vozearias da beira-mar. Reconhecendo o Graça, logo foram apresentados aos lisboetas, como estudantes coimbrões com largos anos de tarimba estudantil. Em despreocupadas férias. E como de amigos brotam mais amigos, e o melhor sítio para os criar (e sustentar) é uma boa e bem recheada mesa, aceitaram o convite que lhes foi dirigido por Graça. Descontraidamente, pediram pratos e forquilhas, e dá de se atirarem ao conteúdo do caldeiro. Uma engraçada moça, de nome Etelvina, tez fina e ar azougado capaz de prender e até cativar o olhar, mostra-se mandona e imperativa, clamando para um dos empregados de serviço: 26


– Ó Dâmaso, traz-me lá para a mesa um «champorrion» bem aviado… Se o saber o que era tal beberragem levantou curiosidade, certo é que Ega e Carlos cruzaram um interrogativo olhar, onde perpassava a ideia, que nem longe, a figura do petulante Dâmaso parecia querer se afastar. De quem se julgavam por uns tempos afastados, em corpo e pensamento. E c’um raio (!): tal parecia erzipela contagiante; logo ali, iria aparecer um Dâmaso qualquer, encarnado num outro tipo da beira mar. O pior foi, que passado o momento da evocação, que pareceu logo afastar-se – apenas uma mera coincidência – ficaram patéticos quando, célere após o pedido, aparece na porta uma figura que dava inegáveis parecenças físicas com o famigerado Dâmaso, a figura pastosa dos salões lisboetas. Ali estava um criado de estalagem, com figura flácida, bochechudo, untuoso nos gestos, e no andar de passo curto. – Oh amigo, diga-me cá, que estou suficientemente intrigado: Você tem algum aparentado lá por Lisboa? – pergunta o Ega intrigado, curioso e perplexo. – Pois saiba vossa Senhoria, que parece, não tenho a certeza, que lá estará a trabalhar, não sei onde, um irmão que mal conheço: o Manuel Dâmaso «Sal-seda»? – Oh… oh… valha-me o diabo encornado: explique-me lá o imbróglio da história? – titubeia o Ega, com ar ridiculamente espantado. Oh! Carlos, mon dieu, estás a ver o mesmo que os meus olhos vêm? – inquire virando-se para Carlos da Maia. Este boquiaberto, como que assombrado por deparar com um lobishomem (lá que os hay… hay… estava ali a prova, provada), nem ousa abrir a boca. – Pois a minha história será como tantas outras, diz o criado da estalagem. A minha mãe era a Maria «Sal-seda». A alcunha vinha da pele branca, rara por estas bandas, a lembrar o alvo do sal. De uma macieza de seda. Ora lá pela beira-mar, iam e vinham os almocreves, com os burricos a carregar o peixe. Volta que volta, enleio que enrodilha, o burriqueiro faz um filho à Ti Maria. Botam-lhe o nome de 27


Manel Dâmaso «Salseda». O burriqueiro ia e vinha, promessa atrás de promessa, cama sempre pronta a acolher a fome das desertas serranias, e, passados três anos, vê o dia este seu criado, que se chama João Dâmaso «Salseda». Pelo areal, no rapinanço das redes, e pelo abrigo dos palheiros, cumprimos a meninice de pobretanas. A minha Mãe a acudir-nos para, pelo menos, nos livrar da fome. Mas quis o destino, que uma doença rara no sangue, a levasse de um dia para o outro. O burriqueiro ainda apareceu mais tarde. Fez tratos com os meus tios, e levou com ele o meu irmão, Manel. Viram-no Vossas… Senhorias ?!; pois eu nunca mais lhe pus a vista em cima. Soubemos por um outro safardana serrano, que tinha dado o miúdo a uma velhota, lá para perto do Douro, velhota de quinta herdada, amoedada, piedosa, bem-quista do Senhor. Disseram que teria mandado o Manel «a estudar», para Lisboa. Estudar é uma maneira chic de dizer. Talvez a arranjar mulher que o pusesse de casa e mesa. – Esta agora… esta agora… balbuciava Carlos… ai Dâmaso, meu Damasosinho, volta a contar-me a história do Comendador de Cristo, do «chiquérrimo a valer», das torrentes de fêmeas balzaquianas que te lambem a bochecha, e com quem borregas a matar paixões extasiantes, que eu conto-te a tua história, filho de burriqueiro serrano. Percebia agora Carlos, que um homem é como uma moeda: de um lado a esfinge, a figura. Do outro o cifrão a mostrar quanto vale. Há ricas figuras que afinal vistas do outro lado não valem um pataco. Era bem verdade. Tudo na Terra é na verdade: aparência e engano. A animosidade latente, o asco sentido por Dâmaso Cândido desde a primeira hora, explicava-se, agora, naturalmente. Ele há sempre uma razão a explicar uma razão latente, indefinida. Ora razão tinha afinal o tio, que sem papas na língua, considerava o Dâmaso um refinado mentiroso. E a conversa prosseguiu, pois o acontecimento era para ser falado com Ega, apreciando-o e glosando-o aprimoradamente, paulatinamente, entre um bom charuto, beberricando suave vintage. 28


– Então ó Graça, amanhã vais à Assembleia (?)… inquiria a azougada Etelvina. Não faltes! olha que a festa vai ser de arromba. A banda do João Pretinho promete um frenesim de se lhe tirar o chapéu. E chapéus, bonitos e singulares sombreros, vão aparecer sublinhando as carinhas mais «larocas» da região. – Claro: então a festa não se fazia sem mim, minha rica menina. E fica desde já combinado: prometes-me um passo de dança, diz o Graça. – Oh! meu amigo: uma ou duas. O carnet ainda não está cheio, e uma rapariga «abusacada», a apanhar um banho de assento, a ver os outros bailar, definha, tortura-se, amofina. Olha: leva aqui os Teus amigos, que há por lá boa pescaria. – Quem sabe, quem sabe (?), adianta Ega, cofiando o farto bigode; porque bom peixe, pela amostra aqui presente, não faltará. Resta saber se vai ao anzol. – Pois Sr. João da Ega: aqui não é o peixe que vai morder o anzol; é o anzol que que tem de se chegar ao peixe, carregado de engodo – responde sarcástica e insinuante, olhar atrevido, a azougada e bela Etelvina.

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Capítulo 5

Findo o repasto embarcaram na caleche. Por ordens do Manel da Graça, rumaram à barca da passagem, na «Senhora da Maluca». Chegaram, já a tarde ia longa.E o sol, vermelho como um tição soprado, parecia desabar sobre a Costa-Nova, ao descer para se ir refrescar no mar. Lenço supremo na paisagem lagunar: estonteante bodo sensório, o cambiante de luzes e sombras, tão magnético para o olhar como complexo de registo por um Turner, mestre supremo paisagista. O casario listado em cores que não são de morte nem de vida, destacava-se recortado no contraluz, que lhe realçava a singularidade das formas, sobrepostos uns sobre outros, espetados e parecendo semeados, nos altos e baixos da duna. O dia morria numa amena e prolongada despedida. – Antes de embarcarmos visitemos a velha «Ti Norta» que nos servirá uma beberragem para a travessia – sugere o Graça, conduzindo-os por entre gente apressada: peixeiros ajeitando canastros no varapau, almocreves carregando os gigos dos burricos, mercantis dando as ordens, apressando a partida para a noitada dos seus enviados, para, por veredas e carreiros serranos, levar a sardinha ainda vivinha lá para o interior beirão. Foi chegar ao altar da estalagem e logo a boa velhinha atendeu aqueles «fidalgotes» bem vestidos e melhor aperaltados. – Ó gentes: a barca vai largar. Vá maneiem-se c’ó senão ficais em 31


terra – gritava o arrais «Labareda», com voz roufenha, mas imperativa. Um toque de búzio prolongado ecoou. Era o aviso para as mais atrasadas. Que deveriam estugar o passo, se queriam apanhar a barca. Rapidamente carregados os canastros vazios, numa algazarra confusa e nem sempre própria para os ouvidos, o arrais larga. Vela içada, cheia no vento, rumando para a outra banda. Acomodaram-se os passantes entre aquele mulherio, que com fortes razões do cansaço de um dia de trotear pelas ruelas da vila, a vender o peixe. Mesmo assim, naquela hora descontraída, mostram viço no maneio de gestos e corpos. E cara sorridente. O Zé da «Gaita», homem de barbas ruças, artista feirante da sanfona que nas suas mãos parecia que até falava, logo foi desafiado pela Rosa «Galante»: – Ah homem «bô», dê-me lá uma gaitada. E logo o Arrais Labareda, malandro, jocoso, irónico, atira: – Ah raios, andas sempre a pedir gaitadas. Não t’a cansas demónio? Depois começas aí aos saltos, encabritas-te, e ainda me partes um paneiro. Era tarde para o aviso. Ao som da sanfona, logo uma molhada daquelas mulheres cuja vida era feita de suado e frenético trabalho, mas por natureza mulheres alegres e louçãs, com o pé no chinelo a pedir travessura, saltaram para o centro da embarcação, sacudindo-se e rodopiando, para lá e para cá, ao ritmo de um vira virado. Ega parecia subitamente interessado naqueles corpos bamboleantes, cofiando a loira bigodaça e sorrindo com prazer. Carlos parecia profundamente surpreendido com o ritmo do mexido e rodopiante do bailado, bem marcado pela sincronia do sapateado. Finda a primeira roda, logo o Ti Labareda intrinca com a Rosa, puxando-lhe pela língua: – Ah rapariga, vais chegar a casa toda derreada. Coitado do Toino. – Q ue é lá isso, Labareda: pois assoa-te que estás bem enganado… olha que o mê Toino, hoje, bem tem de pôr o reçoero de molho… Atrapalhado vai ele haver-se… 32


E para limpar o suor, vai à bolsa e retira um «trapo» branco para fazer de lenço. Foi uma risada geral, pois o pano a que a Ti Rosa limpava a cara, era tão só, umas «cuecas» brancas, femininas. – Ó cachopa: foi engano ou é p’rá arejo? – atira o Labareda sentado no «cagarete», rindo a bom rir. – Mas atão, diz a Eugénia «Pardaleira», o teu Toino não ficou lá por Lisboa, na safra de verão? – Não filha; começou com saudades cá da Rosa, pois aquelas fufas lá de Lisboa não prestam para aviar um home daqueles. Elas bem se apegam, mareiam à volta dos nossos, mas não prestam pró lanço. É tudo aguadilha. – Pois é; pior só os lá de Lisboa. Aquilo, lá (!), está tudo podre. Bem falta faz o Marquês, que havia de vir cá baixo outra vez, e embarcar aqueles simpras. Mandá-los trabalhar p’ró Brasil, diz a Génia. Ega parecia ter perdido o sorriso; Carlos exibia um olhar de espanto, revelando um certo interesse na conversa, doidinho por saber o que pensaria o seu amigo Ega, desta pobre gentiaga. Manteria a sua proverbial antipatia, e até desprezo? – Quem fala assim não é gaga, atalha a Rosa. Se viesse outro terramoto limpava a podridão que por lá vai. Aquilo fede pior que pilado de escasso. Eu andei lá a vender peixe pelas ruelas do Bairro-Alto, e nem podia anunciar o peixe fresco, pois as pindéricas e os penduralhos, só se alevantavam lá para o meio-dia, a bufarem álcool destilado na noite. Se lhe achegam um fosfro, ai vai o peralvilho. E depois aquelas fúfias botam perfume para tirarem o cheiro da devassa. Mudam de home como eu mudo de camiseta. As ruas parecem todos os dias em festa de S. Pedro: a cornadura dos «Viscondes» cobre a rua de um lado ao outro. Porta sim para lá, e porta não para cá. Arcos retorcidos, maiores que a cornadura do boi marrão do abegoeiro Alcibíades, da Companha dos Luíses. – Oh! filha mas não se vêem ; e, se se virem, eles não se importam. E se, se importarem, serram-nos…, acrescenta a Génia. 33


E não só; fazem figuras de ricos, falam grosso e emproados, mas a gente entrega o peixe, e lá mandam para o livro. E o pior é que mal a gente se precata, levam um fumo que nunca mais se lhe põe os olhos em cima. Calhamaços de um raio, ajunta a Génia. Houve um simpras bem abotoado que começou a charir-me as saias, a prometer cama e mesa, e eu sem lhe dar cúnfia. Vai daí o pato bravo de bigode – aqui como este nosso amigo (apontando o Ega) – adiantou-se mais do q’o devia, c’a tive de lhe gritar ao ouvido: p’rá cama vai uma mulher séria com um homem bem aviado; e vossemecê se dá mais uma remada, capo-o com a minha navalhinha de amanhar as enguias, explica a Génia, puxando da naifinha bem afiada… O que valeu foi que a sanfona deu de gaitar, e logo a conversa se arrumou ali. O Manel Graça, morria de riso por dentro, ao ver os amigalhaços tão severamente colocados na praça pública, ficando a saber o que na província se pensava da vida perdulária e malandra, vivida na capital do reino. Políticos corruptos,comprados a pataco, e toda uma teia de sustentados pelas famílias aboletadas provincianas, que mandavam as mesadas aos filhos e netos, para estrunfar nos salões e botequins na boa-vai-ela. Chegados à Costa-Nova, logo foi indicado a Carlos o quarto contíguo ao de Ega, também este debruçado sobre a Ria. Marcado o jantar para as nove e meia, houve tempo suficiente para os dois amigos trocarem impressões. – Então caro Ega (?), com esta tua descoberta, o que te vai na alma, sempre insatisfeita, sempre a pensares que a vida é uma degeneração continuada. Meu amigo: hoje não te pressinto afinal tão pessimista. Algo me parece mudado em ti… – atira Carlos. – Pois olha que sim. É verdade. Tenho descoberto coisas interessantes com estas pessoas. E começo a ter sérias dúvidas do sentido exacto da vida que levamos lá por Lisboa. Estes pobres são gente. Gente que leva uma vida de sofrimento, mas digna e valente. E não olham para trás, se necessário for, a arriscar a vida por um simples conhecido. Tudo neles é verdadeiro: o sofrimento. Mas e também a 34


repentina alegria de viver a vida no pouco que esta lhes oferece. Esta gente sonha. E só com isso já é feliz. Aqui dar os bons dias ao desconhecido, tem mesmo um sentido verdadeiro: parecem empenhados que tal aconteça… – Oh! Ega, je suis enchanté mon ami… estou cheio de curiosidade. Olha (!), depois do episódio da Eduarda, de que ainda não estou totalmente são, tudo quanto tenho feito, ou tudo quanto tenho sido, parece-me falho de sentido. E a vida que temos levado soa-me a uma peça de teatro pouco realista. A vida é como uma garrafa de bom cognac: não se pode beber sem que acabe e fique vazia. Bem… vamos lá jantar, e ouvir os nossos anfitriões. Perceber que género de pessoas alberga esta nova classe burguesa, activa, empreendedora, de quem se espera mudanças radicais.

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Capítulo 6

Quando desceram ao salão, nove e meia em ponto, já os anfitriões acompanhados de um pequeno grupo de convidados, sorridentes e ansiosos, educada e cerimoniosamente, estavam prontos a dar-lhes as boas vindas. Convidados a sentarem-se, a Carlos da Maia foi dada a direita de Pinto Basto; a Ega, precisamente o canto oposto, ao lado de D. Ana Pinto Basto, muito english, muito fina e cortês, nos gestos e nas palavras. À mesa também o Visconde de Salreu e Taboeira, e respectivas esposas, e o habitué Conselheiro Ferreira da Cunha. Do grupo fazia ainda parte o bom Arcebispo Bilhano, varão notável pela sua santidade, homem bondoso e sábio, personagem de grande cultura e instrução, raridade da sua casta. Muito longe do ultra montanismo de uma igreja notoriamente reaccionária miguelista, corrente pouco expressiva em Aveiro, combatida ferozmente num passado ainda próximo, presente na memória de todos, pelo Conselheiro Queiroz. Precisamente o avô do criador de «Os Maias». Uma sopa onde o peixe, era senhor e rei, foi servida aos circunstantes. Pairava no ar, com este gesto simples, sem falsos espaventos, um afastamento de demonstração de novo-riquismo. A conversa iniciou-se e estendeu-se, fluida, a toda a mesa, cruzando-se em motivações. Sem especulações, ou afirmações, casuais ou inúteis. 37


Nenhuma alma estava ali para se desnudar em filosofias ocas, mas antes para alimentar a sensação de estar a participar alegremente num repasto familiar. A determinada altura, a anfitriã interroga Carlos: – Então Sr. Maia? como vai a vida pela nossa encantadora Lisboa? Estou curiosa – bem curiosa – de conhecer as suas primeiras impressões com a gente de cá, com quem, julgo, ter já tido a possibilidade de uns primeiros contactos. – Pois bem, minha distinta amiga, estas primeiras horas de vivência foram para mim muito curiosas. E até, potencialmente, regeneradoras. Parece-me convalescer. Sinto-me estranhamente a entrar em alegre primavera, em franca recuperação da entediante vida de Lisboa. Pressinto a emoção de ter acedido, de novo, à varanda da vida. E… e… titubeou Carlos de olhar repentinamente fixo numa forma feminina que tinha silenciosamente entrado na sala, a cochichar algo ao ouvido da Senhora de Pinto Basto. Visão assombrosa a daquela mulher que acabara de entrar discretamente: uns olhos de um verde de água transparente, incrustados num doce rosto tisnado pelo sol, a que uns sedosos cabelos, caindo mansamente sobre os ombros, pareciam realçar um escultural corpo, que se pressentia ágil, voluptuosamente modelado. – Bem… ia eu a dizer . ó Ega, onde ia eu? – Pois Carlos, explicavas à nossa anfitriã, a memória das coisas fúteis de Lisboa… – Ah… sim, claro: há qualquer coisa que me faz sentir desarrumado. Pressinto que a constatação de um erro qualquer, se apodera do meu espírito. – Meu caro Carlos da Maia – interrompe o Arcebispo – na vida sucede, que nem sempre nos jardins maiores se encontram as mais bonitas flores. Às vezes, num árido descampado, surge-nos algo que num olhar se destaca: a estranha e notada flor. Alegre na sua tristeza de estar ali, só. O tédio muitas vezes é a incapacidade de crença. Quem tem Deus não tem tédio. 38


– Sr. Arcebispo – diz Ega entrando na conversa, ajustando o monóculo – os últimos anos da minha vida tenho-me afastado das veredas do Senhor, perdido no decurso de uma vida onde por vezes me magoo propositadamente para me sentir vivo. Sonho uma vida erudita, mas ela não chega; sonho com viagens inimagináveis, mas quando compareço ao cais de embarque, recuo. Fujo… fujo… e acabo sempre por voltar à vida quotidiana. O tédio é esta falta de satisfação interior: pensar que penso, sem pensar. Pensar que existo, sem me dar conta que, de facto, o outro eu não existe. Já me mascarei de demónio e quando me vi ao espelho, a julgar que ficava bem no papel de Mefistófeles, o Senhor Deus encarnado no perverso judeu Cohen, correu-me a pontapé. E acabou assim a minha tentativa de fuga endemoniada. Em mim, digo-o com tristeza, a moral não me exige que eu faça bem a alguém; e também não exijo que mo façam a mim. A moral da sociedade actual está no louvor, na exaltação, do lodaçal do vício. – Meus amigos: peço-vos encarecidamente que não acreditem no meu bom Ega. É um ser exagerado (provocante), mas dócil. Quer ele queira quer não, tem a sua moral. Revolucionária (?),quer ele crer.Um pouco de demagogia à mistura. Mas que seria do mundo sem estes arrufos revolucionários anti tradicionalistas e inovadores? Na prática quotidiana um regaço para o amigo, tanto nas boas, como nas más horas. Eu que o diga. Ao exagero, a sua falta de crendice, resume-se a não fazer bem, nem mal, a ninguém – acorre Carlos em defesa do amigo. Atalha o Arcebispo, expressando-se num modo confessional: – Bom João da Ega – atalha o Arcebispo – deixe-me apesar do pouco tempo de convívio, assim o considerar: longas, difíceis, e por vezes tortuosas, são as veredas do Senhor. Este assinalou que umas ovelhas são as suas; há outras que não são. E terão de ser trazidas ao redil. Olhe é como a arte de Xávega: a rede é lançada, diariamente. Muitos peixes entram nela, e vêm à praia. Mas são mais os que ficam de fora… 39


– E ainda bem… ainda bem… meu caro Bispo, senão amanhã não haveria já sardinha para nos deliciar – acode o Marquês da Taboeira, sorridente, jocoso, um alegre personagem, cuja fisionomia sanguínea não permitia enganos quanto à devota predilecção pelos prazeres da mesa. – Parece-me acertada – assume a senhora de Pinto Basto com suprema elegância – a opinião do nosso bom Bispo: não aceleremos os tempos. A prédica ainda deixa muitos de fora. Mas os que ficam de fora, por vezes, são como a sardinha. As que ficam de fora até ao próximo lanço, são as melhores. Os «olhos do sábio são a cabeça». Só se deixa ver por dentro, quem nisso está interessado. O sr. Ega talvez não queira ainda que tal aconteça. Respeitemos a sua pretensão. Ega ajusta o monóculo, afia o farto bigode loiro, enfia o indicador pelo colarinho gomado da camisa, ajusta o colete de veludo verde, forte, retorce-se na cadeira para melhor se acomodar, e atalha: – Ilustríssima Senhora e Sr. Arcebispo: eu gostaria de nunca ser apanhado na rede. Eu quero ficar de fora para ver como será depois. O mundo só avança quando os mais fracos forem enredados. Sua Alteza, o nosso Rei dá o exemplo: gasta à tripa forra, sempre a meter vales à Nação. Os cofres do País estão mais exangues que o meu mealheiro Então ficarão os que hão-de acabar com esta pouca vergonha. Tudo me parece uma fraude. Até Lisboa é uma fraude como capital de um País, que o foi, mas já nada é. Só voltaremos a ser gente se vier alguém de fora meter isto na ordem. – Mas quem?… quem? inquire o Conselheiro Cunha… – Olhe Sr. Conselheiro: uma troika de espanhóis, franceses e ingleses. Cortam a ração a tenças escandalosas que os ouros dos brasis faziam crer, nunca mais acabar. E pronto. Isto endireita-se. Haja quem mande, que obedecer é coisa que temos por hábito. O dito, com contornos de idealismo revolucionário, saído da boca do anafado Ega, era claramente uma provocação diletante. – E então depois, pergunta o Conde da Taboeira? – Corríamos com a corja estrangeira, depois, a cacete. Como 40


fizemos ao Junot. Recuperando a nossa glória de caceteiros-mor da Europa. Se Deus veio a Ourique, será de esperar que venha, então, agora de novo, a Trancoso. O nosso povo é obediente para os da casa. Mas forte para os intrusos. Os nossos políticos é que são o flato pátrio. Uma cambada corrupta de asnos. Um lodaçal pútrido. Porque devem então trabalhar os portugueses? Para os manter em exibição, esmifrando-nos com os impostos? Comigo não: antes que o país entre na bancarrota, vou é gastar a herança a Paris. – Ai… o Senhor Ega parece que augura a chegada para breve dos republicanos. Mas não duvide – atalha o Conselheiro Cunha… – não duvide… Mudam os burros… mas a manjedoura será a mesma. A «loba» será a pátria. Os rómulos e os remos, serão sempre os políticos: os monárquicos e os novéis republicanos. Os que vão gastar para Paris, certos de que têm bom gosto e são gente civilizada… E como não podem lá ir amiúde, ficam por Lisboa. A fingir que, ali, é Alexandria do farol. Ah!… para eles a Província é uma morada de tísicos e leprosos. Fica por Lisboa esse pequeno grupelho de mamões ineptos, à espera que da Província lhes seja mandado o sustento ganho pelos servos. São vazios da cabeça, sem olhos nela – como refere a D. Ana – para ver que é bem bonita, a nossa capital. Vermelho, um pouco atingido nesta apreciação do Conselheiro, Ega pigarreia: – Pois: o senhor Conselheiro deu-me farta matéria para o meu livro, cujo título será «Interpretação objectiva de um País». Será uma obra sem artifícios nem escusas, clarificador, contundente, despido de frases bonitas, janotas, vazias de realismo. Onde demonstrarei que o mal, veio de considerarmos e interpretarmos o nosso passado pátrio, sob um ponto de vista exclusivamente materialista. – Fico na grande expectativa de o ler. Mas porque não escreve mais, meu caro Ega? – Olhe D. Ana, um escritor que se preze – e eu, João da Ega, prezo-me de o ser – tem um grande problema actualmente; é que cada livro tem de ser escorrido de uma caldeirada de pseudo lite41


ratura, onde há de tudo. Há que deixar repousar a boa, para a separar da horrenda literatura possidónia. Que tudo critica e tudo põe abaixo. Por isso tenho esperado just the moment. Só se vier outro terramoto, ou uma pestilência silenciosa que arrasem esta terra de embófia, levando as cabeças mirradas destes diletantes pseudo intelectuais, é que, então… sim (!), nascerá uma nova literatura. Aí terei o meu tempo para ascender à imortalidade… Findo o jantar passaram ao salão, constituindo grupos que se foram acantonando nos sofás e fauteils dispostos estrategicamente. Pinto Basto, o Arcebispo e outros dois, fixaram-se à mesa do jogo para a «suecada». Jogo de cartas muito habitual por estas bandas. Entretenimento dos pescadores entre lanços, ou na espera de maré. Pinto Basto sentia especial prazer no contabilizar, numa tira de papel, as vitórias das parelhas, dando especial relevo às figuras com que ilustrava o assento. Se havia lugar a uma xita (quando uma das parelhas não fazia, sequer, uma vasa) havia lugar a apontar o «diabito». Que conforme a dificuldade da mão, poderia ter enfeite de cavanhaque & rabo. Dizia o Arcebispo: – Só Deus e Pinto Basto, sabem desenhar o diabo… Carlos por delicadeza para com a anfitriã, ficou a um canto, participando na conversa rodeado por aquelas simpáticas senhoras, falando do tempo, ou comentando as últimas peças saídas das mãos dos artistas da fábrica da Vista-Alegre. Mas o que mais aproximou Carlos deste grupo, foi o facto de o café ser servido por aquela gentil e graciosa figura de que Carlos estava ansioso por conhecer com mais pormenorização. E para isso, nada como delicadamente inquirir da Srª Pinto Basto, quem era, afinal, a jovem que se mostrava muito próxima, movendo-se num total à vontade no seio da família. – Pois senhor Carlos, eu percebi o seu olhar perturbado quando viu entrar a Joana. Deixe que lhe diga, que é habitual a gentil e graciosa figura, de Joana, chamar muito a atenção ao elemento 42


masculino. A Joana Eduarda (e quando pronunciou o nome, a Pinto Basto deu conta, sem perceber a razão, de um esgar de espanto de Carlos, e até de uma súbita palidez que o pronunciamento do nome lhe provocou) é filha de uma antiga criada, de nossa casa. Morreu no parto de Joana. E nós, eu e meu marido, juntámos a pequena aos nossos filhos. E ela por aqui se foi criando. É uma rapariga de excepção. Sabe ocupar o seu lugar, trata os meus filhos como irmã mais nova, e nós, eu e o meu marido, já nem sabemos viver sem a sua presença. – Pois minha senhora – pronuncia Carlos, reverente – queira receber as minhas sinceras felicitações, por ter dentro de sua casa a mais bonita mulher que meus olhos alguma vez viram. E permita minha Senhora: sem falsa modéstias devo confessar-lhe que na matéria, senão sou sábio, não andarei longe de tal. – Pois: a Joana é uma bonita rapariga. Interessante é que as belíssimas estatuetas que se esculpem, em porcelana, na VistaAlegre, terem sido inspiradas no seu perfil sóbrio, mas elegante. Curiosamente, na estatueta vidrada, usa o corpete que hoje traz, que lhe sublinha a cintura. A longa saia preta confere-lhe uma silhueta, simultaneamente fina e alongada, de uma elegância primorosa. É verdade. Mas ora, Sr. Carlos da Maia: lá por Lisboa não faltarão para regalo do seu olhar de apreciador, nato e exigente, muitos espécimes deste tipo. – Perdão; V.Exª está equivocada pela modéstia, minha prezada Senhora. Em Lisboa, mulheres há muitas. Algumas bonitas. Outras cocotes, que se fazem passar por bonitas. Mas a sua «menina» é a materialização humana de uma deusa do olimpo – exulta Carlos. – Oh! nada de exageros – responde madame Pinto Basto – inclinando um pouco a cabeça, esboçando uma sorriso de satisfação pelo elogio a Joana. Mas de qualquer modo o Sr. Carlos está a ser muito gentil… Muito obrigada. Desejando estar a sós para se refazer da torrente de emoções que 43


inesperadamente sobre ele desabaram – primeiro a beleza doce e tranquila da Joana, e logo depois a estranha coincidência do nome «Joana Eduarda», que reabriu a chaga ainda mal sarada do seu patético romance anterior, evocando um certo cansaço da viagem, Carlos e Ega despediram-se com cortesia, e subiram aos aposentos. Repentinamente Ega sentiu um puxão no braço; estacou, e o monóculo saltou-lhe com a brusquidão devido ao puxanço do amigo. Por isso, quando Carlos lhe murmurou imperativamente – olha Ega! – teve dificuldade em distinguir, com fidelidade, o vulto feminino que descia as escadas. E só quando se afastaram para dar passagem a quem parecia vir ao seu encontro, foi então, e só aí, que Ega distinguiu o vulto senhoril que extasiara Carlos, ao jantar. Ele bem o tinha notado e registado. – Espero que tenham uma boa noite, povoada de bonitos sonhos. E que acordem com a maresia madrugadora a entrar pelas Vossas janelas, meus Senhores – despede-se Joana no degrau sobrelevado àquele onde estavam, especados, os dois amigos – parando por momentos a descida. Palavras que mais pareciam água cristalina brotando da uma boca desenhada em gomo sensual, sombreado de rubro, a ressair do rosto doce daquela jovem. Vista debaixo, naquele ambiente de ténue iluminação, mais parecia, a Carlos, uma deusa pousada sobre peanha. Tão perfeita parecia, a sua imagem. – Merci… merci… responde o Ega, curvando-se em ligeiro cumprimento, ao lado de um Carlos especado, atónito, que parecia carecer de amparo do corrimão da escadaria para se ter de pé e não ajoelhar aos pés da Joana. E subiram… Já no quarto, Carlos interrogava João da Ega: – Viste?… tu viste Ega?… que esplêndida sensualidade. Naquele corpo há música, há uma beleza sã, há um convite para toda a vida. Eu que já não esperava outro encontro com a vida, desejo só que amanheça, para ver como me sinto. Ega!… I see the light… Finalmente apago o escuro em que tenho vivido. 44


– Oh! Carlos, não me digas que queres lançar âncora, aqui, na praia (?). – Ega… não brinques; abana-me para eu saber que não estou a ter um sonho. Não, não o é, pois mais do que nunca sinto a necessidade de viver, bem acordado. A minha alma estava cansada de viver… por coisa nenhuma; por viver. Ega abriu a janela por onde entrava um suave acre perfumado da maresia, puxou de um havano que o anfitrião não se esquecera de providenciar, e, aprontando duas taças de cristal que estavam na mesa de serviço, abriu uma garrafa de um bom champanhe bairradino. – Ce n’est un veuve Clicquot – comenta Ega, dando uma taça ao amigo – mas bebe-se divinalmente. Vá Carlos: sossega desse desassossego em que estás. Bem te dizia que a vida estava a tornar-se uma grande insónia. Carlos (?!): quem diria que a vida seria assim. Enorme futilidade trágica. Afinal deixámo-nos, nós também, apodrecer por dentro. Brindemos a este despertar… Quando voltarmos a Lisboa vou partir a cara àquela besta do Dâmaso. A amostra mais perfeita da inutilidade humanóide. Com que então Comendador de Cristo? Pífio… vigarista e cobarde. Um bandalho… um pato-bravo. E chegando-se à janela olha a ria que o luar prateado tornara brilhante. Uma miríade de estrelas polvilhava o mar azul celeste. – Vá chega-te aqui para a janela – diz Ega puxando o amigo – . Daqui vemos mais céu e mais estrelas. Olha como brilham… Ao ver este brilho, a vida parece doer menos. Viva a vida!… viva a Pátria. – Bem Ega, vamos descansar, pois para tu estares a dar vivas à Pátria, ou é porque estás bêbado, ou assombrado. Mas hoje, também a mim, me apetece deixar ser outro. Ou até de me pertencer. Estou apaixonado. Fatalmente atingido. Hoje o prazer de entrega vai superar o cansaço de sonhar. Et voilà… après la pluie il fait beau – remata Carlos.

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Capítulo 7

Para o que era costume no Ramalhete, Carlos levantara-se de madrugada. A ansiedade de ver Joana, o convite feito pelo Albertinho Pinto Basto, para, em grupo, (em que iria Joana) renderem visita ao mar, visitando as artes piscatórias, não o deixara sossegar, ansioso que as horas rolem. Arranjara-se, vestira-se todo de branco imaculado, camiseta de linho que trouxera de Londres, e um boné tipo irlandês que lhe dava um ar muito british, muito desportivo, mais parecendo um player pronto para uma partida desportiva. No corredor, logo aparecera Ega, à hora combinada: calças a meia perna, tipo «caddie» do golf, bota de meio cano atilhada em cruz, camisa sem colarinho sobre a qual vestira pullover aos losangos de cores combinadas. Na cabeça o palhinhas a três quartos, inclinado a bombordo, deixava à mostra o desalinhado e entrelaçado cabelo aloirado. O bigode, superiormente penteado, mais parecia um daqueles barcos de pontas retorcidas que navegam na ria de Aveiro. Na sala estavam já os companheiros de jorna. Especial destaque para Joana que prendera os cabelos com um lenço leve, de tons esverdeados, a dizer com os olhos safira. Envergava um vestido leve, cintado, que fazia destacar com exactidão a perfeição daquele belíssimo corpo. Nos pés, uns despretensiosos sapatinhos de lona, muito próprios para a caminhada no areal. 47


Carlos não se conteve. E num momento de maior proximidade segredou-lhe: – Joana! você, de tão bonita, irá afastar as sereias da borda, despeitadas e ciumentas… Os olhos de Joana acusaram o elogio mas, fugindo à pressão da intencionada comparação, articulou: – Oh Sr. Carlos, as sereias vêm à praia, é pelos homens bonitos. Acautele-se, não vá ao chamamento. – Se for, levo-a comigo… – Oh!… Oh!… Sr. Carlos, sempre tão lisonjeador. E, saindo em grupo, subiram logo ali a ladeira que conduzia, em directo, às Companhas que já se viam, quando chegados ao cimo da lomba, distantes uns bons quinhentos metros. Ao grupo veio juntar-se o Manuel Graça, sempre bem-disposto, torrencial contador de «estórias», que foi avisando: – Logo quero toda a gente na Assembleia. A «nata» distinta da Costa-Nova, lá estará. A noite promete… Oh se promete! Cumpra-se. Carlos chegou-se perto de Joana para marcar posição: – E Você Joana, promete-me desde já um pé de dança, logo à noite? – Ó Carlos (este notou o surripianço da palavra «senhor», significativo) lá terá muito por onde escolher. Vai ver. E muito melhores dançarinas do que eu, que não sou muito expansiva nestas novas modas do shummy’s – adianta sorridente Joana. Mas será com muito gosto que acederei ao seu pedido. Combinado! – Carlos! – atira o Albertinho Pinto Basto, não acredite… não creia. A Joana é uma bailarina de encher «o olho». Só que muito selectiva na escolha de par. Só acede dançar com amigos ou conhecidos. – Eh… eh… eu que o diga. Sou amigo da Joana, e ela, a mim, dá-me sempre nega – diz o Graça, meio a sério, meio a brincar. – E é verdade: tu, Graça, és muito leve do ser, um brincalhão exibicionista, e às vezes passas-te. És muito balreiro. Gosto de ti como amigo, mas não gosto de espectáculo gratuito – assevera Joana. 48


– Truz… truz… ainda um dia vais bater à minha porta… minha rica ! – Hás-de xarilo… tomarolha!!! pediqueiro convencido. Não me estejas a tesicar. E em conversa animada, chegam ao local onde se fazem os preparativos para lançar ao mar a arte de xávega. Estranho e disforme, patético, o bulício de gentes e animais: homens em procissão, carregando rolos de corda em vez de andores de santos; mulherio que faz uma algazarra medonha, preparando canastros e xalavares, ou dando mão ao embarque da rede num estranho barco em forma de meia-lua. Saindo dos armazéns vêm-se umas parelhas de bois em louca correria, fustigados pela vara que o abegão lhes descarrega, brutalmente, sobre os costados. A pachorrenta lavra rural de onde pareciam terem vindo aqueles animais, vira aqui, na borda, tumultuosa, confusa e desordenada, corrida tresloucada no areal. Um barco estranho pousa na areia. De formas atiradas ao céu, lindo, desafiador, parece estar a citar o mar. Eh! mar… Eh! mar… Ega parece especado no areal, – talvez apostado a comparar esta correria desenfreada com as corridas cavalares do hipódromo da capital. Nestas, a assistência exibia o chic, mostrando-se, enquanto comodamente instalada no camarote, apostava ou fazia olhinhos, agendando marcações amorosas, proibidas. Aqui, no areal, a assistência fugia desordenadamente. Não da polícia, mas dos animais, gritando, instigando, aguilhando o pobre bicho, como se todos fossem o jockey que puxava pelo animal. – Bem dizia o Sr. Afonso da Maia: «em vez de fazer corridas, …fazer uma boa tourada». Com os bois, o espectáculo é bem mais português. Não há dúvida! – sentencia Ega, que não percebe que é preciso fugir da linha dos animais. E não fora o puxão que o Albertinho lhe deu, enquanto gritava, Sai… sai… senão vais na frente, pendurado nos córneos apêndices…, e Ega seria pegado pelo boi desencabrestado. É então que uma quase meia centena de homens saltam para dentro da embarcação que, rebocada pelas armelas, chega à beira-mar. 49


Os bois, para lhe dar um último puxão, entram mar adentro, com água a tocar-lhes a barriga. Sobe o rumor; ouvem-se gritos de: – vai… vai… – Vá… vá seus calões… rema… rema… é agora, cia… cia… trilha, óguenta aí… agora, agora: vamos lá com Deus, grita o arrais apoitado na ré da embarcação. O barco encabrita-se na vaga que rasga com a sua prôa. Ega chega a gritar, julgando que uma tragédia está eminente. Aqueles homens pareciam-lhe dementes no arrojo com que se atiravam ao mar. Mas, o meia-lua mergulha de queixos na cava da vaga que, desfeita, se esparralha sobre os remadores de proa. E de novo se ouve a voz de trovão do arrais, largando o reçoeiro que liga a embarcação a terra: – Vá, maneiem-se, rema… rema raios. Ou querem ir tomar banho, seus enxutos (?!). E lá vai o barco mar fora, agora embalado mais suavemente pelo mar aquietado. Ega emudecera (?) perante aquele desaforado espectáculo. Como é que há homens tão loucos que desafiam o mar com tamanho desprezo pela vida? Que dimensão humana estava ali patente, em que uns tantos, de costas para o mar, obedeciam cegamente ao arrais. Que esse sim, tinha o mar pela frente. A quem pedia meças. Oh! – pensava Ega – se o País tivesse um «homem» destes à frente do seu destino que dissesse como fazer, responsabilizando-se pela consequência das suas ordens, então sim, o País voltaria a ser um) País de corpo inteiro. Mandar e obedecer, era, para Ega, a chave da questão. – Estes homens não são loucos? – pergunta Carlos com o espanto estampado no rosto. Oh my god… incroyable. – Olhe Carlos – diz a Joana – não são loucos, não. Longe disso. O arrais que ali vai é o meu Pai. Um homem bom, generoso e meigo. Doce mesmo. Um paz de alma. Mas só em terra! Chegado ao barco, ao seu posto de comando, sabe que tem nas mãos quarenta e cinco vidas. Transforma-se. Endurece. Quase embrutece. Tudo para meter 50


medo ao mar. E olhe que é verdade! (:) pelo menos o mar tem-lhe respeito. E nunca lhe roubou uma vida. – Então agora explica-se a cor desses seus olhos: o seu Pai roubou-os ao mar, e deu-lhos. Esses olhos são, para o coração, «aterradoramente» bonitos – sussurra Carlos, profundamente tocado pela revelação de Joana. – Ora… ora… o que o faz dizer isso é a emoção deste momento. Manuel Graça entretinha-se a explicar a Ega como correria o lanço. Sentaram-se no areal. Joana ficou de pé, recebendo beijos de muitas daquelas pescadeiras, antigas companheiras de sua mãe, que a tratavam caridosamente por «Joaninha, minha menina, cada vez mais linda». Ai rica filha, tens os olhinhos da tua santa mãe. Que nosso Senhor os alumie e os guie, Joana. Dá cá um beijinho à Ti Rosa… – Dois ou três Ti Rosa, grande amiga. E voltando-se para Isabel Pinto Basto: – Vá menina, vamos ao banho. Isabel levantou-se, e as duas afastaram-se uns metros. Deslaçaram as vestes e logo (delas) se libertaram (das mesmas) para aparecerem num fato de banho que lhes expunha com todo rigor as formas. E, se Isabel chamava sobre si atenção pelos seus louros e alongados cabelos, e por uma silhueta que sem ser excessiva, era atraente, já Joana mostrava, agora, para lá do rosto bonito que olhos alguns podiam esquecer, um corpo divinal, materializado num colo próprio para ser fronha acolhedora e nele repousar, a cabeça de um homem. Na cinta que o fato de banho de sainha aos folhos fazia realçar iniciavam-se umas pernas torneadas a rigor, tão esplendorosas no cimo, como docemente acabadas nos pés. – Ali está – exultava Ega, assestando o monóculo – um verdadeiro poema de amor: esbelta como Siracusa, alta como um cipreste negro da Grécia. Reparai naqueles braços e não me digam que não estão ali, as doces e voluptuosas curvas das ondas deste mar sereno. E olhai aqueles olhos ardentes, molhados pelo mar, ainda mais verdes, ardentes, em plena efervescência. Mon Dieu… Carlos não resistiu ao chamamento da sereia. Levantando-se 51


como que impulsionado por uma mola, descalçou-se, desabotoou a camisa, e de calças enfiadas foi juntar-se às «sereias», mergulhando resolutamente nas vagas, a acompanhar a Joana que mostra ser uma excelente nadadora. Esbracejando para se manterem à tona, foram conversando: – Gosta então muito do mar, Joana? – Sim… sim, dedico-lhe inteiramente o meu amor. Enche o meu olhar, percorro-o na ilusão de que não tem fim; conto à noite as estrelas que o povoam, inebrio-me nos mil feitiços que, acredito, ele guarda. – É uma poetisa Joana. Olhe quem me dera ser uma dessas estrelas, a juntar-me a tantas que há no mar, a deixar-me colar no verde do seu olhar. Meus olhos, outros olhos, olhar não querem ver. – Oh… Carlos, muito galante com efeito; que só não me faz corar por estar dentro de água… Bem, voltemos à terra… Logo vou contar as estrelas a ver se está lá uma, a mais… Juntaram-se ao grupo que foi conversando até que o barco voltou. Por um instante parou a balançar na vaga. Parecia uma tartaruga a boiar, mansamente, com as patas esticadas. O arrais dá ordem: – Cia a bombordo, rema… rema forte a estibordo. Agora a direito. Lá vem uma, duas… três… deixa passar. Agora… força… vá!, tudo agora. E o barco vem aterrar de ré na praia. As parelhas estão a postos. Passam cabos, o rapazio entra água dentro, estende os rolos, e o barco vem pelo areal acima, indo colocar-se nas dunas, a fazer o preparo para outro lanço. A tripulação logo que o barco sai fora da vaga, de um salto, tinha pulado para o areal. – Deixem descair lá para sul – grita o arrais. E, limpando as mãos ao tabaqueiro, dirige-se ao grupo onde está a filha Joana que corre a abraçá-lo. É uma figura poderosa de homem: carão moreno tisnado pelo sol, cabelos brancos revoltos que lhe escapam do barrete negro, dobrado, a descair para BB, com a borla a tocar-lhe a orelha. A tapar-lhe o peito, largo como o de um touro, mais forte que as cavernas do meia-lua, uma camisa de flanela aos 52


quadrados, onde tem o inseparável cachimbo e a pederneira com que lhe ateia fogo. Joana fez as apresentações: – Meu pai, o arrais Carlos «Maaia». Senhor meu Pai, estes são os meus novos amigos, o senhor Carlos da Maia e o Sr. Ega. Os restantes, já vossemecê conhece. Sorridente, Joana olha para Carlos em cujo rosto se descortina uma visível perturbação com a estranha parecença de nomes, do seu e o do Pai de Joana, Sr. «Maaia». Ega ao apertar aquela mão que mais parecia uma tenaz, não conteve o esgar de dor, ao sentir os ossos receberem um amplexo daquela monta. Mas não se conteve: – Sr. Carlos «Maaia», o senhor não tem medo? – Ai tenho … olá se tenho… ! medo que o S. Pedro, qualquer dia, caia do púlpito abaixo, e deixe de velar por todos nós. – Bem, arrais, o que eu perguntava, é se não tem medo do seu barco ir ao fundo. – Ah! isso não… isso não. Atão um home havia de mostrar medo ao cão do mar? O barco é feito de tábuas, as tábuas não vão ao fundo, logo o meu barco nunca poderá ir ao fundo. Bem, desculpai mas tenho de ir à rede. Olha lá «ó Manel Gracinha», toma-me conta da rainha, não vá aparecer por aí um marjabante a baralhar a cachopa. Traz-mo cá que eu amarro-o ao reçoeiro, e levo-o para o fundão para os peixes se banquetearem. Passem muito bem. E já agora, Albertinho, diga à senhora sua Mãe que lhe vou mandar uns robalos de encher o olho. E abraçando ternamente Joana foi observar o alar do redame. – Arrais «Maaia», despede-se Carlos, tive um enorme gosto em apertar a mão a um homem que ajuda a manter vivo o coração da Pátria. – Saiba o Senhor que é a plebe que faz o pouco que ainda é o lameiro à beira-mar plantado. Eu aqui a moer-me por dez reis de mel coado… Tenho três medalhas de salvamento de gentes, ali, no mar. E o que me dão? Alfinetadas quando as coloco em dia de procissão. E os outros a imitarem os ingleses, a gastarem à tripa forra. 53


Neste país só vivem os que imitam os ingleses! Mais uma hora com os bois laçados nos cabos do redame e eis que chega o pipo à praia. Logo o Ega interroga: – Não me digam que o pipo leva vinho para endrominar o peixe, e levá-lo a entrar na sacada!. – Não … não – explica o Graça – o pipo – as calimas – são o anúncio de que a sacada está à borda. A balbúrdia cresce de tom, as pessoas andam em correria de um lado para outro, até que lá aparece o «ventre» de uma enorme baleia agitada por convulso estertor do peixe que traz no ventre. Puxada até local onde o mar já não lhe toca, o pessoal e veraneantes rodeiam o saco. Logo o arrais se encavalita. E, rapando do navalhão, esventra o saco ao cortar o porfírio. O peixe salta, estrebucha, batuqueia, gerando uma miríade de reflexos estrelados provocados pelo sol a reflectir-se nas suas escamas, enquanto espadanam, em todas as direcções, procurando o regresso ao seu habitat. Que nunca mais será. – Pathétique… – solta Ega, descrevendo com um braço toda cena que tem defronte dos olhos. De um lado, os bois fazem acudir a ideia de que estamos numa gleba do interior, em trabalho de lavra; do outro lado, assiste-se a este diálogo, de igual para igual, do homem com o mar. Este cenário tem uma dimensão humana que nenhuma fantasia pode ousar descrever com rigor.

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Capítulo 8

Regressaram a casa já o mar se dourava, afogueado com a chegada do sol que nele se vinha banhar. Uma ou outra esfarrapada nuvem colara-se no que antes fora azul encharcado, e tornara-se, ela também, pintalgada de um vermelho dourado. O peixe, depois de loteado, começara a ser levado para uns «enxalavares», carroças de rodas muito largueironas, próprias para o areal, que o mulherio enchia com os canastros para serem levados para os armazéns de salga, situados na borda da ria. Muito dele ia ser, ainda nessa noite, despachado para o interior das beiras, levado por atalhos ignorados, só conhecidos dos «malhadinhas» serranos que nos seus burricos, ajoujados pelos gigos cheios como odres, toque que toque, seguiam apressados para a venda da manhã seguinte, onde a sardinha mostraria o sangue na guelra, a provar a sua frescura. Chegados a casa, subiram de imediato aos quartos. Era necessário pôr ordem nos assombros do dia. E Ega mais expansivo comentou: – Afinal o nosso criador, o Eça, não achincalhou mais, nem verberou mais, senão pelo que viu. Soube a «estória do Dâmaso», e glosou-a. E a Joana da «Tragédia da Rua das Flores», livro escrevinhado no entre «Maias» e outros, estás a vê-la? Ele inventou-a? Não!… viu-a e transportou-a, retirando-lhe um pouco a dignidade. Bem dizia o Camilo: para ser «realista», basta escrever conforme o 55


novo gosto flaubertiano: é só distribuir uns adjectivos, pontuar de um modo mais acessível, e terminar no nada. Eça sabia que o País não era o retrato do espaço entre o Grémio e a Havaneza. Criticou-nos, ou melhor expôs-nos. E Ele? Que salões frequentou? Diplomata lá fora; bastardo, vencido da vida, cá dentro. Ora bolas!!! Os enganados fomos nós… Ele sabia que havia outro País, e mandou essa parte às malvas,obcecado em zurzir forte, numa ironia virulente, cáustica aos hábitos, aos feitos e aos vícios dos condutores da «caleche» Pátria. – Em parte tens razão, Ega. O nosso fazedor – lembra-te – queixava-se do vento da Costa-Nova que lhe impedia a revisão do livro, «A Relíquia». E nesse emaranhado de confusões pareceu não ter visto uma realidade que nós vimos. Ele não descalçou as botinas para ir ao mar. Por isso, acredita, um dia vai nascer, uma nova expressão (corrente) literária. Olha(!)… poderá chamar-se «neo-realista». Então sim! Essa vai retratar os explorados que sustentam o coroado de rosas. Vai dar importância a esta gente que nos tem impressionado. E até, educado. Eça, o nosso autor, criou uma estética de ironia? Talvez! mas não a aprofundou. E que tal, se desses ao teu novo livro o título «Há uma estética neo-realista?». Ega!… a revolução vai ser muito mais intensa do que o sonhado. – Claro… vivemos neste charco apodrecido. A revolução tem de chegar… porque… – Porque o rei faz anos todos os anos. E é preciso festejar a data. Temos de bater palmas: o rei vai nu, a pátria esgalmida. E o povo curva-se e dá cambalhota. E ri. Ri de quê? Da sua imbecilidade – remata Carlos em jeito de pantomímica… – Ih… ih… ih… pois se fomos usados pelo criador, vinguemo-nos… Oh! a minha vingança será terrível. Eça tem de vir cá desfazer o equívoco. É preciso pôr a inutilidade e a galhofa ao serviço da pátria. Achas imprudente? Inútil?… avancemos… Álvares Pereira tinha mais façanhudos pela frente, e atirou-se. E olha o velho arrais «Maaia»! Medo?… só que os Oragos desertem. Acabava-se a crença. A mercearia pátria para os esfomeados. 56


– Vá… vá… vai preparar o «cheviote» e vamos ao baile – termina Carlos. Há sempre, nesta época – the season –, corações despedaçados, mulheres sensíveis esfriadas pelo engano, melancólicas e desocupadas para o amor, requisitando cura no homem misterioso que se abeira, termina Carlos, sorridente, crente que esta noite será o princípio de nova vida. – Plim!!! plim… – atira Ega, lendo o que vai no interior do seu amigo – «o rei, hoje, vai à caça». Acautelai-vos corações inocentes.…

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Capítulo 9

Às dez em ponto o grupo fez a sua entrada no Salão da Assembleia. Este não tinha a elegância de um salão do Grémio Lisboeta, nem nele continha uma gente tão acetinada e antinatural. Por detrás das mesas atoalhadas de veludo, vermelhusco, uns candelabros bruxuleantes realçavam as figuras que se dispunham à sua volta. Não, aqui, o salão era sóbrio, à excepção da iluminação que não conseguia clarificar rostos e gestos. Dificuldades de tempo. E se era certo ser o lugar mais informal para estar, havia, contudo, que acomodar os bailantes desejos, de um modo acolhedor e simpático. Ali, o ambiente era, em parte, o cumprimento de bem parecer nas conversas ligeiras e galantes, um jogo de sedução em público, no achar réplicas e ter originalidade nos ditos. Surpreender pela espiritualidade do rasgo. Enfim: saber estar com elegância! Cadeiras de mogno com estofo de seda, vasos com flores coloridas, magistralmente «tecidas» em papel, mesas escondidas sob panos de um vermelho suave para aquietação de instintos. De igual, reposteiros e cortinas a fazer de pano de cena, trajam da mesma quieta influência. Ninguém ali parece importar-se com o décor, simples, mas afável para o fim em vista. O importante era o convívio galhofeiro. As jovens mostravam fatinhos cingidos na cinta, leves e vaporosos, travessos na sua garridice, declarando mais intenções no que se adivinhava por baixo, do que aquilo que se mostrava. As pernas 59


bem torneadinhas, parecendo balaústre de escadaria aprimorado, apareciam já um pouco ao léu, entroncando no sapatinho delicado de meio salto, a cingir bem o pé, ferramenta indispensável para o salteio nos mexidos charleston’s, ou para cirandar, leves e escorregadias, nos corridos one-steps; antes de derraparem nos macios e palpitantes maxixes. Assim são as bailações na Assembleia, em tempo descontraído de férias, em namoros a que só por irrisão se poderiam chamar flirts, se ignorado o que há de espiritual e gracioso no jogo do amor platónico. Entre danças, conversas e namoros, olhares dirigidos como setas ao alvo, fugidios ou penetrantes, entrecortados por suspiros ou sussurros provenientes de almas apaixonadas, alinhavam-se concursos poéticos, de traje, récitas, jogos de prendas e navalhinhas. E até fadunchos, magoados, tristes, de alma mortificada pela saudade. Tudo servindo, no entretém, a uma juventude a despertar, maravilhada, para a vida. Pairava no ar um desejo resguardado de afagar o corpo. Sentia-se, via-se, cheirava-se!… Matar a sede? Beber a fresquidão de água jorrada de novel «fonte descoberta»? Sim! mas sem ir além das regras do que é definido como socialmente correcto. O que não quer dizer, na verdade, não se estar muito longe da vontade de ir mais além. Para atenuar esses desejos, nada melhor que limonada ou chá, – este potencialmente mais «desaforante» – para as damas. Admitindo que a vontade de transgredir no elemento masculino é muito maior e mais incontrolável, a bebida até meio da noite é uma mistura de cerveja, vinho branco e um pouco de açúcar de beterraba. Só lá para diante, corpos aquecidos, virá o champanhe. No palco actua a jazz-band em que prevalecem instrumentos metálicos de sopro. Era seu maestrino, João Pretinho, músico de eleição, soprador capaz de tirar notas agudas e prolongadas do seu clarinete, a marcar o compasso geral. Os outros iam atrás. Quando não tocava, o João Pretinho limpava a beiçola ao lenço branco trilhado nos dedos. E em voz rouquenha, em convulsão funambu60


lesca, enchia o ambiente de sons rechinantes. Logo a rapaziada se dirigia às moças com quem tinham aprazada a dança, e o par atirava-se para o meio do salão, a tentar acertar o passo com a tungada. Estas danças introdutórias, para o que Carlos desde logo marcou aprazamento com Joana, outra coisa não permitiam que um desanuviar do formalismo do trato, e assim, preparar o espírito para novas investidas que chegavam com os one-steps. – Carlos, você açambarca-me, e daqui a bocado todos notarão o facto. – Mas é isso, Joana. Eu quero mesmo ter o monopólio. – Mas para isso teria que haver uma ligação que o justificasse, não acha? – Acho. Acho mesmo. E chegou o momento de a assumir. Estou loucamente apaixonado por si, Joana, e gostaria – se da sua parte há no mínimo simpatia – que assuma um compromisso comigo. – Oh! Carlos… devagar… devagar ! não nego simpatia, ou até vou mais longe… Gosto de si. Mas acho que tudo se tem descontrolado de um modo vertiginoso. E o meu compromisso com um homem, se a isso houver lugar, é para toda a vida. Quem quiser chave do meu cofre, tem de me mostrar pretender guardá-la para sempre. E isso, parece-me, meu bom amigo, você não pode assumir esse compromisso. Chegado a Lisboa, a Joana voará do seu pensamento. Certamente ao Carlos não lhe faltarão mulheres interessantes, dispostas a facilitar as coisas. A distância se encarregará de matar os compromissos assumidos com a cabeça quente. Vai ver! – Não Joana… nestes dias, profundas alterações se produziram no meu ser. Compreendi o engano e o vazio de uma vida desprovida de sentido. Uma vida que se alimenta mais com o estômago, do que com o sentimento de valer a pena. Uma vida sem objectivos. Ora, subitamente, você, os seus amigos, os nossos anfitriões, a grandeza da gente da beira-mar, e também a sua simplicidade, produziram o milagre, exercendo uma súbita compreensão de que há sempre tempo para apanhar o eléctrico da vida. Ou ele vem ao nosso encontro, ou 61


deixamo-lo afastar-se em definitivo. Não é preciso correr. O esforço talvez seja inútil. O que é preciso é estar atento aos sinais. E olhe que o choque não me atingiu só a mim. Até o Ega, sempre no contra, impiedoso e ácido, parece irremediavelmente convencido a dar, finalmente, o passo para a glória. Amanhã Ega seguirá para Lisboa. Vai tratar com o Vilaça da venda do Ramalhete e da quinta de Olivais. Com esse dinheiro, creio, não será difícil encontrar perto daqui uma boa propriedade. Montarei consultório em Aveiro e virei semanalmente atender as gentes das Companhas. Fá-lo-ei gratuitamente. Conto com a sua ajuda. E sentindo o jogo ganho, remata: – E vamos convidar o bom Arcebispo para nos casar. Aqui, na capelinha branca da Senhora da Saúde. Aceitas Joana? Os olhos de Joana estavam marralhados de lágrimas, maravilhosos, a darem testemunho da felicidade que lhe ia na alma. E sentindo-se puxada, deixou-se ternamente cingir ao corpo de Carlos. Definitivamente os dois entraram na valsa da vida, rodopio enleante, ardente, a que só resiste uma parelha que tenha absoluto conhecimento dos passos a dar. Ia alta a lua quando voltaram a casa. Carlos e Joana de mãos dadas, o Graça tentando obter de Isabel um pouco mais de atenção. Chegados, cada um subiu aos seus aposentos, não sem que Carlos puxasse Joana para trás de um reposteiro, e os dois abraçados, trocassem um profundo, intenso, e apaixonado primeiro beijo. – Para toda a vida me comprometo, Joana – assume Carlos da Maia apaixonadamente.

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Capítulo 10

Carlos e Ega reuniram-se no quarto antes de deitar. Carlos pôs Ega ao corrente das suas pretensões: – Pois caro Ega, vais para Lisboa, falas com o Vilaça, vendes o Ramalhete a quinta de Olivais e todo o «bric-à-brac», tiras os quadros e os documentos oficiais do avô Maia, acertas o envio mensal das rendas e juros das promissórias com o banco, e depositas o valor na Companhia de Pinto Basto. Desde já, era um prazer para nós, para mim e Joana, que te viesses hospedar connosco. Quando te apetecesse, no intervalo das tuas escritas, vais mundo fora, em procura de inspiração. Há contudo um dia em que a tua comparência é exigida: no baptizado do meu primeiro filho que se chamará de Afonso Ega «MAAIA», e de quem tu serás padrinho. Assim nascerá a nova prole dos «Maaias» na Costa-Nova. – Tu dixit… Parto amanhã. E não quererás que eu convide o Dâmaso para vir conhecer os seus, à Costa-Nova? Era um bom ferro. Uma malha de arromba… Quanto ao meu livro, agora sim, tem titulo. E sumo: «Os Novos «Maaias» na Costa-Nova- do-Prado». Bem apressemo-nos que o comboio parte de manhãzinha. Agora sim, temos de correr, todos os minutos são poucos, e todos terão de ser aproveitados. – Oh Carlos, tu não achas que traímos o José Maria, e cons63


truímos personagens românticas? Um dramalhão … Ih!… ih!… ih… Vingámo-nos. Quem o mandou dar-nos a liberdade de vir à Costa-Nova? – Oh Ega, e quem te diz, que Eça, irónico e mordaz, não nos quisesse mesmo pregar a partida. O que o José Maria pretendeu ver era como o Ega, uma das suas carapuças literárias, reagiria, perante uma nova realidade. Et voilà.! Que boa pilhéria. Afinal, em boa verdade te digo, reagiste precisamente como o teu criador reagiu quando por aqui andou, sentindo reais ganas de atirar bengaladas, a torto e direito. – Na mouche Carlos… na mouche. Brindemos ao nosso criador, ao fino José Maria… à sua elegância e cortesia, à sua macieza contundente, à sua ironia destrutiva, ingredientes com que ousou dar lustro à sociedade portuguesa. PUM!!!… – remata Ega, desrolhando um «clicquot» bairradino.

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Postal 1 Amansar a fera…

Manhã cedo, que a cama nunca fez bem a ninguém senão para morrer mais comodamente instalado, já que para o resto, para os actos mais lúdicos, a palha e areia, são bem melhore aconchegos, saí para o passeio habitual. Jogging, como agora sói dizer-se, né? A ria esplendorosa. Estanhada, nem uma tainha nela bulia. Sol brilhante, já bem alcandorado, depois de trepada a serra do Caramulinho, onde aqui e ali ainda se avistavam, uns farrapos sem contornos definidos… O sol invadia tudo, escorraçando a neblina matinal. Com espírito (já) bem desperto, deixei-me contagiar pela frescura 65


da manhã, reforçando a alegria de sobreviver a mais uma noite, Apetecia-me ficar ali suspenso das horas, imutável na paisagem. Foi pois, um prazer, ir por aí abaixo de um modo tão leve, alegre, quase que num sentimento de imponderabilidade. Oh!!! Se alguém com o espírito criativo tivesse reposto na beirada da ria, frente ao palmeiral, a antiga esplanada, e tivesse criado um ponto de passeio e lazer, que requalificação se teria feito a esta linda, intrigante, irrequieta e volúvel Costa Nova!… Coisa bonita só de ser imaginada. Mas adiante. Eis que lá do sul, vinham duas pescadeiras ainda desempachadas, em passo mexido, firme e decidido, em conversa galhofeira. Chegadas à minha beira, abrandaram. E uma delas (ambas sessentonas), uma trajada de luto elucidativo dirigiu-se-me, sorridente: – Oh meu senhor, acha que somos velhos? – Quem? – perguntei… Todos nós?… – Sim… sim… respondeu a rir-se… – Não; acho que somos já… é um bocado usados, atalhei. – Oh estupor, diz a outra, eu que pouco ou nem usada fui. Mas tu que de tanto uso até criaste ferida nas costas, de tanto as esfregares na areia… – Ora, ora… se mais usara, mais gozo me dera, filha… Quanto mais uso mais òstificação… raios. – Tem razão, mulher; o que é preciso, é amansar a fera… adiantei eu. – Pois tem razão, amigo – disse a desbocada já com intimidade ganha num minuto. Mas é que o «bichano» aqui da Josefa só bebia e ronronava. Pouco ligava à «bichana», ògadinha por uma festinha. – C’alte aí, sua esculhambrada, atira a Josefa ofendida. Olha que o Toino (Deus o tenha no céu e lhe dê o que lhe tirou nesta vida: – dizia a Josefa, enquanto se benzia), inté era danado prà brincadeira. Só que depois com o espinhaço e as rezas daquela marafona, a Cláudia do Zé Linguiça foi-se abaixo do espinhaço. E do resto, rapariga. O pobre bem queria, queria… eu que o diga… mas fio torcido não passa por buraco d’agulha. 66


– Ensebasses o fio, rapariga… Há dias que nascem bem. Dias bons para se nascer. Também. Mas, absurdamente desgraçados para se morrer, se for esse o caso. Porreiros, para um recém-nascido se interrogar: valerá a pena? Mas, absurdos para ponto final à dúvida.

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Postal 2 O que valeu ao «Cantigas» é que o raio do canário… era canária…

Intriguei-me nestes últimos dias, de nunca mais ter posto a vista em cima à Tibéria e à Josefa, que, como por encanto, desapareceram do mapa. Afinal, nesta última segunda-feira, novo encontro. E fiquei a saber porque se eclipsaram: peixeiras na praça, esta fecha às segundas. E é só neste dia que elas vêm desenferrujar as pernas. – Ó Senhor: dantes era uma fona. Daqui p´ra Ibalho, fazer a venda e voltar pela noitinha, derreadas, esgalfas, mais tesas que o carapau ressequido que não tivera freguesa… Aí sim (!) é que estas perninhas que agora parecem mijadas (com sua licença) eram roliças, duras e torneadinhas. Ai do zamparilho que se astrevesse a meter-se no meio delas. 69


– Era assim, era… ajunta a Zefa. Às vezes era já noitinha e o que valia era que aquele caniné do Labareda nos esperava. Até que todo o pessoal arribasse à Maluca, feita a venda na Vila. – Atão hoje não têm nenhuma estória para me contar? interroguei eu… a meter cunfia. – Credo, você parece q’ué bruxo. Olhe!… vinha agora a lembrar com a Tibéria da história da Pauseira «Canária», que era uma savelha de se lhe tirar o chapéu. Mulher danada, de sim ò sopas. Mulher de ou fora ou adentro … a meio é que se não podia ficar. – Conte lá Ti Zefa… conte raios que sou todo interessado. E a Zefa não se fez rogada. – A Pauseira tinha na sua casinha, ali nas dunas, um canário que estimava muito. O raio do pássaro, um dia apareceu esmorecido. Parecia que tinha lançado um grapelim ao trapiche e de lá não saía, nem para molhar o bico. E pior, nem piava. O estupor do canário, dizia o Luís «Cantigas», o serrazina do home da Pauseira: – dá-lhe uma «passarinha» a ver se o bicho desperta. Olha que o que o bicho tem, é falta da «passarinha». T’asseguro. – Pois, quem não tem falta da «passarinha» és tu, «Cantigas». Há benícias que nem lhe pões a vista em cima. A vista e o resto, raios, diz inquisilenta a Pauseira ao seu homem. P’ra ti esconjurado, «passarinha» é o garrafão do tinto. Ora vai-te, que eu tenho mais que fazer c’abanar o traseiro. «O Cantigas» lá foi a resmungar para a vida. A «Pauseira» ficou a fazer horas para ir p’rà escorcha, aproveitando para fazer um caldo de conduto para a ceia. A meio da manhã batem ao «portaló». – Quem bate? E o que quer, diz ao tempo que abre a portinhola. Cá fora, especado, o Arnaldo «Mijinhas», uma espécie de botadinho à parte, atrapalhado e nervoso, diz à Ti Pauseira: – O Ti Luís mandou-me aqui, dizendo para Vossemecê me dar «passarinha» que ele não teve tempo de lhe pôr a boca em cima. – O Luís mandou-te mesmo, para eu te dar a «passarinha»? Ai ele quer mesmo enfeite? Anda cá filho, que eu dou-te a dita. E agar70


rando o «Fininho» puxou-o a si com força, atirando-o para o catre disposta a cumprir ordens, que Capitão manda imediato obedece. Só que o Arnaldo pouco dado a empostas do género, incapaz de ciar em mar tão encapelado, fixou com pavor à trabuzana que para ele representava a Pauseira, e espavorido, dá de se libertar do corpo da fera desembolada, escapulindo-se ao lancão d ’alentada mulheraça. À noitinha, quando o Luís «Cantigas» voltou da faina, a Pauseira não esteve com meias palavras: – Olha lá ó seu zamparilho, atão tu agora já não te satisfazes com a «passarinha», e mandas substitutos p’rà aconchegar? – C’a estás tu pra aí a xanar, raios? Eu mandei o «Fininho» buscar o garrafão de vinho. A que tu chamas «passarinha», homessa (?!). – Homessa (!) digo eu; o que te vale é que o raio do canário é canária. Senão a estas horas estavas mais enfeitado que o manso do boi amarelo do abegoeiro Ti Aparício. – Á ganda Ti Zefa. Vamos lá acabar a voltinha, que para a semana vossemecê conta-me outra. Combinado, remato eu bardaleiro? – Pois atão. Se lhe der volta, apareça lá pela praça. Há lá bom peixe. O que está a dar, agora, é «a chaputa». De entupir uma jaja.

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Postal 3 S. Bartolomeu: dia do diabo à solta

Nem o despertador precisou de me chamar, nem o galo de cantar; parti no horário em que sabia apanharia as «faladeiras». E a meio do percurso, lá vinham as duas simpáticas pescadeiras, lestas e ainda desempenadas das pernas. Notei que vinham a gesticular fortemente, parando de vez em quando, especadas na marginal. Máquina a meia força, fui-me aproximando. Pára a máquina!…, devo ter pensado. E fiquei a pairar, à espera que as duas, a Zefa e a Tibéria se aproximassem. E leme a bombordo, atraquei ao de labaró, e dei os louvados: – Louvadas Vossorias, gente fina desta praia velhinha; mas ainda bonita e asseada como o são as as suas cachopas. 73


– Ah seu endrominador, você não perde tempo para, ainda não ter passado a mão da barca e já está na mangação, seu camanduleiro. – Eh Ti Josefa, essa de camanduleiro é que eu nunca ouvi. Astão o que é lá isso? Perguntei interessado no léxico vernáculo. – Ai não sabe?!… pois… pois… eram os rapazotes enganadores. Ou as beatas na camandula: de terço de contas grossas à vista, as banguinas a fingir que iam a rezar, aquelas calamantronas. O que elas estavam era a fazer horas para irem ao confesso, onde o Padre Horácio lhes despertava a cocegueira na cricalhada. Que eu diga, era um grande rascoeiro. Que diga-se, dava abêgo a todas, astisfazendo-lhes as necessidades. De boa boca… tudo o que vinha à rede era peixe, desde que tivesse guelra avermelhada. Não havia beta, saltarina ou cantadeira de missa, que lhe escapasse. Trambolhão por trambolhão, ia-se o paraíso. Que a Eva também era danada p’rà cambalhota. E p’ra home e mulher mais saborosa brincadeira, Deus não inventou. Disques. – Ah mulher, vê lá como falas aqui com o senhor. És mesmo uma desausserbada. Língua ruim e envenenada. Emboitas qualquer um com a tua língua de vinagreira. – Olhe aqui, amigo. Olhe c’a vida na companha não era só um enxogalho de má língua. Havia momentos de inquisilar a alma. Ó!… Zefa, alembras-te daquele dia do S. Bartolomeu? Já ouviu falar nesse santo? – Olhe que sim, respondi. Quando era rapazinho, nesse dia, as mães nem nos deixavam sair de casa. Diziam que andava o diabo à solta… Ainda me lembro que, num deles, andava um tenente muito emproado, muito esturto, no cavalo, ali perto da antiga esplanada, a mostrar-se às garotas (que olhavam mais para o cavalo que para o pelingrino). O animal espantou-se, tomou o freio nos dentes, e foi como trovoada por ali até casa dos Taveiras. Estacou. E vai o pavante «tenentezeco» avoou e aterrou no Bico, no meio do lodaçal, emboitando a farda toda. – Mas olhe c’até andava o raio malino à solta, desembolado. Eu conto-lhe: 74


(…) no dia desse santo, era costume não se ir ao mar, pois diziam, acontecia sempre que o pecadito fazia das dele. Mas, naquele ano, as semanas tinham sido tão más que já havia fome entre as gentes. O arrais Ti Cruz reuniu a companha e botou faladura: – Eh… gente: eu ando desaquietado, esta vida está de morte. E morrer por morrer, mais vale morrer no meio daquele estupor, que por aqui, à fome. Por isso eu quero ver se tenho homens da minha ógalha. Ou meninas virgoleiras, com medo de serem espetadas com a padela. Maneiem-se os que querem embarcar. Fiquem os inxuns a rezar ao belzebu. – Aqui me tem, Senhor, avançou o Bernardo rompendo a fila dos brejoeiros hesitantes. Cabeça alevantada, peito firme, alto como uma torre, forçudo capaz de erguer um mansarrão, pelos gorgomilhos, olhos verdes da cor do mar, quando manso, mas, de onde saíam chispas quando irado. Ao verem o Bernardo, o Carlos, o «Negrote», o «Ranhoso» e outro e outro… deram passo em frente. – Ti Joana, encaneire o pessoal, e vamos lá com Deus, que ele nos cubra com o seu divino capote, vamos dar lanço nem que seja para o escabeche: – disse o Ti Cruz para a «arraisa» Joana, a chefa da companha em terra. Foi ordem que provocou uma restolhada. Redes p’ra dentro, sacada à borda desenvencilhada, mangas enroladas, a que se juntou o calão e a mão da barca. Chama-se o abegoeiro. Que trouxesse quatro juntas de hercúleos bois, pois há pancada rija; e meter o meia-lua a vogar obriga a que a muleta vá até à borda, e que os bois, enfeixados nas armelas, metam barriga mar dentro para dar impulso. E assim ajudar a embarcação a boiar. A entrar mar adentro. E foi então, quando as duas juntas estavam com água pelos ruços, borregando em ir mais dentro, aguentando a vergastada e o aguilhão da vara inclemente que lhe zurrava nos costados, que uma vaga atravessa o meia-lua. O Arrais grita num vozeirão: 75


– Rema! Riba… Ó… Ó riba… Eh! raios… diabos riba para a vaga… Seus langões. Dai força aí no mieiro, ou ides hoje todos para o inferno das profundezas. Numa arrancada, mistura de vontade com medo, o barco dá um esticão para aproar à vagalhoça. Mas presa à embarcação, a junta de bois de estibordo é arrastada com a ré da embarcação. E eis que os bois perdem pé. Cabeça e cornadura de fora, tentam ferozmente desenvencilhar-se do cordame que os prende à embarcação. Num repente, vê-se o Bernardo astirar-se à auga e, com a navalha, libertar, do barco e do cabeçalho, os animais. E, nadando para terra, resoluto, entrega a ponta da corda ao pessoal, que água até ao pescoço, alam o pobre animal para terra. – E o outro? Você sabe lá, diz a Zefa, inquirindo-me… – Pois e o outro Ti Zefa… adianto, pronto a ouvir o resto deste quadro vivo, expressivo, luta de gigantes com o mar. – Pois: a Ti Joana mulher d ’um carago, nadadora exímia, tinha-se atirado e saltara para os costados do boi que resfolegava. E atirando-lhe o saiote preto para os olhos, filada ao cornígero animal, forçara-o a virar-se para terra. O animal, sentindo areia por baixo das patas, pareceu ganhar alento. E zás que ala tarde. Recuperando «pé», ajudado pela vaga, e pegado pelos cornos pela Joana, o animal desenvencilha-se do mar e parte em corrida resfolegante pelo areal adentro. Vai por ali fora e… de repente escafedeu. Estaca e a boa arraisa Joana voa e aterra de barriga no areal. Só que o saiote e fralda ficam espetados nos cornos do boi. E a Joana, esparralhada no areal, mostra o alvo traseiro. Bonito e redondinho. Firme, parecia montanha amaciada por mão divina. – E quereis saber Senhor: entra a Tibéria de quarto. Pois todos aqueles zamparinas, gadagem que cobiçava tudo que fosse mulher, virara a cara (e os olhos!) libertando a Joana de corar de vergonha, ao ver-se exposta como a sardinha na sacada. – Todos? Todos, não, diz a Zefa, com um riso malino na cara. Não!… o Bentinho «Cagaréu», que diariamente mirava guloso aquela 76


mulher tão liró, parecia hipnotizado ao ver a meia-lua da Joana tão ajeitadinha e torneadinha. E ògadinho não tirava os olhos daquele quadro que parecia um retábulo real. Até que a voz da Joana trovejou: – Que estás a olhar, pelintra? Gálico(!), nunca viste o traseiro da balcória da tua mulher? Queres chari-lo? Anda, esculhambrado, astreve-te que eu filo-te pelo gasganete e amanho-te a tripa que tens entre pernas para escassso. – Ah, chopa, morrendas se não falendas. Que tinhas tu de comentar que Bentinho viu o «rabinho» de anjo da Ti Joana? Òspodias ter terminado sem teres emboitado a estória. Assim: quando a arraisa Joana se pôs de pé, já o meia-lua atravessara o mar quebrado e fazia emposta à procura do cardume…

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Postal 4 A Tragédia de Juncal Ancho

E, de repente, o tempo chuvoso, como por encanto, suspendeu o incómodo do molha- tolos. Molha-tolos, porque na Costa Nova, mesmo com este tempo, noutros lugares, desabrido, aqui, numa sota, salta-se logo para a rua. E claro, de vez em quando, somos surpreendidos por uma garroa. Saí para o esticar de pernas, diário, sabendo que, mais ali ou mais abaixo encontraria a Zefa e a Tibéria. Ná, elas não eram mulheres de hibernar com um simples ameaço. E lá vinham: – Esta melhoria de tempo veio para ficar ou não, minhas gentes? inquisilei eu. 79


– O tempo é como o marinheiro. Nunca se sabe se veio para ficar se para saltar amanhã Para nova emposta, reflecte a Tibéria. Pois, isso mesmo. Muito arrazoável. Era por isso que quando o meu Toino achegava, eu não fazia esperar, não fosse o mar chamá-lo à pressa. E ainda ele não tinha apoisado o saco, e já eu o beliscava, espenicando-o todo, pronta para lhe tirar o «sarro» dos dias de lide, e achapar-nos ao folhelho: á home que ando com uma fome de ti; anda cá meu bardau, que te estrafego. E nem o deixava respirar tal era a força do abraço. Até parecia, mesmo, uma bárrega esgalmida. – Delambida de um raio q’inté pracias uma santinha… – Olhe, Ti Zefa, comecei eu, tenho andado a pensar: – Vossemecês alembram-se da tragédia de Juncal Ancho? – Ah… olhe que não. Isso foi, sei lá; há que benícias. Eu só ouvi contar, era ainda muito novita. O Ti Gaivotinha, esse sim. Esse até p’rece que era um dos embarcados numa das «ílhavas» que levaram o pessoal à festa. Você conhece a história? – acrescenta… – Olhe que por acaso conheço, li-a, e também ouvi nos Sete Carris, à Ti Tuna, referi-la várias vezes. E como a pretendo contar com mais pormenores, pensei que Vossemecês me ajudassem. – Atão hoje é você que fia fino e faz a despesa da conversa. Maneie-se que nós atracamos aqui ao murete. Então aqui vai: Os «ílhavos» eram gente de grande fervor religioso, como sempre aconteceu com comunidades piscatórias. Mais tementes aos santos que à aspereza da natureza que defrontavam. Não havia orago celebrado pela borda da ria que não motivasse dia de folga das lides, e não impusesse uma ida de bateira, com a família e vizinhos, para cumprimento das promessas que amiúde se faziam – que aquela vida era um «cão». Ao mesmo tempo aproveitava-se o folguedo para convívio, ou para pôr em dia atrasado conversalhar com conhecidos de fora, em trautos feitos, vulgarmente, por entre o escorropichar de uns copos de vinho, batidos de balcão em balcão, por entre as vendas do sítio. 80


De entre os oragos de reconhecido mérito – que festa de arromba elegia e glorificava – o S. Inácio, do Boco assumia carácter de invulgar dimensão. A justificar reiterada devoção e consequente visita. O seu altar encontrava-se erecto em Igreja, lá em cima debruçada sobre a ria, sita na colina que alberga no cocuruto o burgo. Logo ali ao dobrar da carreira da barca da «Forja» – Fareja – onde, em tempos idos, fundearam as barcas e pinaças de alto bordo que vinham mercadejar às Gândaras. Era visita obrigatória. Num dos esconsos becos da chousa de Alqueidão, por onde se alinhavam tugúrios de abrigo a pescadores, marnotos e saveiros, os dias que antecederam a festa foram de intenso parlatório, destinado a assumir presença, mas e também, perlengando sobre as vitualhas a incluir no farnel, que se queria, coisa de regalo. Chegado o dia, o «Zé da Preta» mai-lo «Thomé da Fidalgota», embarcaram amigos e familiares nas «chinchas» desocupadas e escorreitas de tralhas e estrafegos, onde se aconchegaram vinte e duas almas devotas. Ainda o sol não despontava, desgarraram do cais da malhada aproveitando para isso a maré que já montava. Partiram alegres, folgazões e prazenteiros, para uma grande jorna que, parecia, ser capaz de pôr ameno no estupor de uma vida danada. O aquilão dava boa mareação, e quando o dia amanheceu, tinham já na amura de bombordo o palácio dos Botelhos. A manhã acordava com os maçaricos alvoroçados em matinas em procura do primeiro alimento. O sol a levantar-se em hóstia de vermelhão suave prometia jorna acalorada, deixando ver a serra desempachada de névoa, limpa lá para cima, onde os montes luziam com o farfalho da manhã lá para as serras. Para outras bandas, onde um outro santinho de especial devoção destas gentes, o S. Geraldo, tem o seu pousio, na serra erma. Vogavam enfarpelados a rigor, os romeiros. De calção branco largueirão, que se estendia até ao joelho encobrindo perna tisnada pelo sol e maresia; barrete descaído sobre o dorso, e camisão de linho, aberto, que deixava entrever o torso de gigantes da laguna. Elas de 81


cara rija, onde fulguravam dois olhos em brasa, ardentes e brejeiros, engalanada por chapelinho de veludo preso à nuca por lenço de merino, garrido; chambre branco cingido ao colo, que pedinte de afago sensual repontava nas pregas da camisa floreada. Saiote de baeta, descendo rente até aos artelhos, escondendo de olhos gulosos a visão deslumbrante de duas prendadas pernocas que vinham desafogar nas chinelinhas pretas, cingidas aos pés de «gaivina andeira», por cordão de abotoadura. O calor a meio da viagem, fortalecido pelo reflexo na água espelhada da laguna, fazia com que o busto do mulherio se esquivasse por entre o esconder das roupas de aconchego. E de entre rendas, brotassem como pombas brancas aconchegadas em linho, peitos que assomavam e tentavam o olhar de quem, guloseimando, sonhava vê-los, tocar-lhe. Ou até só aspirar o seu perfume e aconchego. A aragem do norte cedo lhes permitiu a demanda e o desembarque no cais do moliço; sem delongas – que santos não esperam! – foi (logo) tempo de desembarque e de monta. Por caminho directo se alcandoraram até à Igreja, que naqueles dias treluzia com o seu chão lavado, ensaboado a amarelo, e depois brunido. Junto ao altar, dois tocheiros ardiam ajudando a quebrar a penumbra do templo a que só a porta dava entrada à luz do dia; castiçais de latão do tipo mourisco substituíam em lindeza que não em valor, a prata afiançada. Só de pousio em outros templos de mais ricas alfaias. Nas paredes em quadros de talha doce viam-se imagens penduradas de Stª Rosa e Stª Eulália, e outras estampas catitas ou figuras de feições celestes. Prometendo bem-aventuranças por entre copioso efeito de lírios, jarros, mimosas, madalenas e alecrim. Ajoujados em vasos de faiança local, que conferiam ao templo um doce e suave e lânguido perfume celestial. Hora de ouvir a santa missa. Desbravar o terço benzido, deixar uma esmola e cumprir o prometido. Satisfeita a obrigação da fé, era tempo de lograr a sombra de uma oliveira – que o sol mordia a terra –, e desempalmar o escabeche mai-las solhas bem emparadas na molhenga. E os bolinhos de bacalhau, que iam assim cumprindo 82


«o antes». Até ao momento de desenfardar o capão esplêndido: – cumpridos que estavam com a dignidade de quem se sente talhado para o fim último do sacrifício, seis meses de cuidada engorda. E que, como «feito» da bem acerejada assadura, exibia um jalme a escodear sem demora, de cuja prática se soltava fragrância divinal. O vinho, em reponta de maré, corria caudaloso pelas gargantas ressequidas que dias de sóis estivais ou de noites de suão tórrido, exsudavam estas gentes da laguna. O Boco, situado nas faldas das bairradas, era sítio privilegiado de boa produção avinhada – fragrante e saborosa. E nesses dias, aproveitava-se a visita para da mesma se fazer adequada publicitação. Assim, não raro, excedia-se o que seria adequada emborcadura, para cedo se atingirem limites de comportamento pouco adequados que, por norma, descambavam em confrontos violentos – verbais e ou físicos – pelos mais fúteis motivos. Vista a procissão, feitos os últimos escorropichos nos descansos dos tascos do sítio, por entre risos musicais saídos das rebecas dos tocadores de ajuntamentos e anunciado lá para as bandas do mar o lusco-fusco da noite estival que embora preguiçosa vinha chegando, e com ela aragem frescota, era hora de partir. Levantaram-se as velas que era hora de voltar à vila. Pois que ao outro dia, madrugada ainda não acordada, ao primeiro trilo de maçarico cantador, era hora de botar o botirão a coar. Chegados lá para as bandas do pinhal da água fria, o vento tornou-se instável, prenunciando doido corrupio que impedia a boa singradura a norte; as mentes estavam toldadas demais para lhe encontrar o jeito bom para nele navegar. É então que numa golfada rija emborcada pelo través, que a «Preta» vai direito à «Fidalgota» e lhe entra pelo cavername adentro, levando tudo à sua frente, bico da proa embatendo com violência na cabeça da Zefa, embarcada na «Fidalgota», matando-a de imediato. Foi o fim; gerou-se uma encarniçada luta mais parecendo uma verdadeira abordagem de corso, com o mulherio em vozearia espa83


vorida ao ver as naifas logo desembainhadas pelos seus homens, que ébrios do tinto e da odiosa vingança, procuravam sítio e carne por onde se espetarem. Uns, ainda dentro da embarcação, outros já na água aonde tinham vindo parar após embate. Todos pareciam esquecidos do semelhante «amigo e vizinho», que se tinha, instantaneamente, transformado em figadal inimigo de que só a morte permitiria livração. Foi uma tarde ensombrada de sangue. Vinte e uma vidas ficaram esventradas; umas, dobradas sobre a amurada escorrendo para a laguna enquanto esbracejavam nos estertores da morte; outras, boiando sobre as águas da ria que desciam para o mar, acompanhadas pelas águas tintas de tanto sangue esvaído. Apenas um, de entre os romeiros do Stº Inácio, lograria escapar com vida. À noite, temendo vingança de vizinho ou familiar, tomou lugar numa enviada que estava de partida para Setúbal, e desse modo lá escapou a destino mais do que certo. O desembargador ao outro dia logo mandou uma patrulha para averiguação do desacato. No simples relatório que lhe chegou às mãos, apenas constava: «Das vinte e uma pessoas do foral de ílhavo (sic) desaparecidas, nada se sabe, senão o terem-se ausentado para parte incerta». E assim se deu como (legalmente) encerrado, e sem identificação de culpados, um dos piores acontecimentos de sangue fratricida vertido por «ílhavos». Quando acabei, li emoção nas minhas companheiras de conversa. – Linda mas desalmada história. Pois. Íamos a todas as festas da ria – Maluca, S. Paio, S. Jacinto. A todas onde houvesse santinho milagreiro. Para lá ia-se a cantar. Alegres, anchas e vivas. Para cá, vínhamos moídas com o quebranto de tanta folia. – Pois, diz a Zefa. Parecíamos uma pégorra: para onde vais, Maria (?): – p’rà festa!!!!!! De onde vens, Maria (?): ó tiazinha, venho de onde havia festa. 84


Postal 5 José Estêvão e a «Joana Maluca»

Ria de um azul amansado pela brisa que lhe encarquilhava a pele. Hoje, a Ria não tinha levado o fato que Deus lhe deu, a «passar a ferro». Dias!… O ar estava poeirento e as serranias deixaram de avistar, retirando dimensão ao vale de água que de Ovar até ao Porto de Mira se aninha a seus pés. Botadas as pernas ao caminho, que se fazia já tarde, fui tocado pelo vento até às portas da Costa-Nova, depressa me encontrando com aquele Palheiro a que muitos, por engano, pensam mesmo ser o original, do celebérrimo José Estêvão. E parando, relendo as palavras de Eça que estão gravadas à sua portagem dei comigo a imaginar o que teriam sido esses belos tempos 85


da descoberta e feitura do local baptizado por Luís «da Bernarda» de Costa-Nova. Para que se não confundisse esta (a nova), com a Costa Velha de S. Jacinto, pousio dos primeiros meias-luas que achaparam as Artes Grandes ao mar. Aquele «Palheiro», na verdade, foi o que serviu de habitação ao filho do grande tribuno, Conselheiro Luís Magalhães. Erguido sobre o anterior que seu pai tinha comprado em 1840, ao mercantil de Viseu, Marinho de seu nome. Que teria sido uma das primeiras simplórias edificações erguidas na Companha dos «Barretos», aquando da sua aterragem na praia, após a escapadela de S. Jacinto. José Estevão descortinara desde logo grande potencial no lugar estratégico que os Barretos «descobriram». Se fosse feita estrada para Aveiro, ou ligação a Ílhavo, digna desse nome, o escoamento do peixe e o acesso das Companhas estava muito facilitado. José Estêvão afirmaria ter comprado o Palheiro para repouso de sua Esposa D. Rita Moura Miranda.(1) Mas o certo é que sempre que a vida atribulada do incansável tribuno o permitia, José Estêvão refugiava-se no seu tosco palheirinho, a que foi fazendo alindamentos e melhorias, à procura de merecido repouso. E como nos diz o seu filho, Conselheiro Magalhães, era no «quarto voltado ao mar por onde entrava a maresia» que José Estêvão trabalhava as suas ideias para aquelas que foram, as maiores peças oratórias de que há memória na história parlamentar portuguesa. Isso não o impedia de visitar, diariamente, as Companhas, para se informar do andamento das capturas e, assistir, deslumbrado, à heroicidade e destemor daqueles homens a entrar ou saírem, batendo na rija vaga. Eram um exemplo vivo de que também na Terra havia deuses menores, dignos de um Olimpo. Sempre que uma daquelas almas era atingida pelo desfavor da vida e levada perante o Tribunal, José Estêvão vestia a toga, chegava-se à tribuna Consultar em www.senosfonseca.com (Factos & História) «A história do Palheiro de José Estevão».

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para erguer o seu vozeirão em defesa do infortunado pescador. Era ainda, a José Estêvão que os pescadores solicitavam intercedência para contratualizar, com os financiadores da Companha, os magros rendimentos do «quinhão» sempre avaramente concedido pelos senhores do capital. Muitas figuras da política, e das letras, eram assídua presença do seu Palheiro. José Estêvão fazia gala em ali receber muitos dos seus amigos, entre os quais Mendes Leite, companheiro de Coimbra e do exílio, fiel e inseparável companheiro; Sebastião de Carvalho e Lima, um espírito de rara energia e grande honestidade; Agostinho Pinheiro, seu companheiro de imprensa; a família Pinto Basto que lhe era muito chegada, e muitos outros: os Regala, os Viscondes de Almeidinha, os Mourões, o Arcebispo Bilhano, os Alcoforados e tantos outros. José Estêvão apressava-se então a enviar à sua grande amiga Joana «a Maluca», senhora dos terrenos que ficavam à distância de um atravessar directo da ria. A Joana Rosa era uma mulher de luta. Mãe de nove filhos, avó de sessenta e seis netos, a Joana era uma mulher irrequieta, mexida e brava, cuja estatura estava bem de acordo com o seu feitio. De compleição algo máscula, senhora de boa e desenvolta faladura, sabia bem receber. Com fidalguia, com lauta e bem recheada mesa, onde requintadamente espalhava vitualhas de requintado regalo para o paladar e para o olho. Vinham em primeiro os escabeches numa molhanca de vinho onde os ditos tinham curado a adquirir sabores divinais. Para tentear apresentava uma casta de avinhados salpicões a que o fumeiro tinha dado cor de um rosa terra aveludado que tentava o mais enfastiado. Seguiam-se as caldeiradas do melhor peixe que o mar criava, a nadarem num azeitado açafrão temperado com um pouco – q.b. – de um branco bairradino. Ainda o repasto ia a meio. Vinham as fumegantes caçoilas «negras» de aradas, com a chanfana, que previamente escaldada na hortelã era, depois 87


de forte marinadela, cozida em vinho de boa cepa. Eram no mínimo três, as fervuras necessárias para obter o apurado sabor. Vitualha que aquelas gentes gandaresas tinham trazido consigo e se viria a mostrar emblema local. Tudo regado no melhor bairradino, a escorrega, fresco e macio, aveludado, pelas gargantas dos comensais. Terminado o opíparo repasto, o grupo vinha para o alpendre sentar-se em cómodas espreguiçadeiras, onde se gastavam horas na moedeira, enquanto se reconfortava o espírito com puros havanos, que a dona de casa distribuía, servindo-se e degustando ela própria, um excelente puro. Lá para a meia tarde os convivas levantavam ferro, agradecendo o excelente repasto, e numa curta atravessadela das terras da «Maluca», arribavam à tasca da «Norta», espécie de estalagem de fim de curso, posto para recolha e tratamento dos burricos, enquanto no altar da venda se bebericavam uns copos para retemperar a alma e vivificar o corpo. Ali se reuniam almocreves recuperando forças para o tropear nocturno das serranias traiçoeiras. Ali, pescadores beberricavam o último copo antes de botar pés à vila. O dia nas Companhas tivera duas idas à maré, e os corpos estavam doridos a pedir enxergão. Mas só à noitinha chegavam a Juncal Ancho, e era, pois isso necessário, meter combustível para a viage… Havia, ainda, uma ou outra pescadeira, que depois de desorçar a canastra ao portal, não enjeitava encostar a barriga ao balcão e pedir à Ti« Norta»: – Vá tiazinha; dê-me aí um traçadinho para me tratar as fraquezas deste corpo arrebentadinho, moidinho, quase a deitar os bofes pela boca. Ai vida! Ora num desses belos fins de tarde, no tasco estava o valentão, bazófio e inquisilador, o Bisnaga «Tovão», almocreve de mau génio, beberrão, homem de má fama, com contas largas nos costumes que o conheciam da vermelhinha das feiras assinaladas. Era lá das bandas de Viseu. Já encilhara o burrico. E pronto, entrou tasca adentro, para escorropichar mais uns tintos. Bate forte no «altar» da loja a pedir com os seus habituais maus modos e de um modo enfatuado: 88


– vá maneie-se, velha de um raio. Que é tarde e tenho de trepar a serra. Verta-me aí dois de três; que um é para a cova de um dente danado. Só que no momento a «Norta» tinha distinguido no arco da porta o Sr. José Estêvão que surgira prazenteiro e respeitador, dando as boas tardes à gente de bem, que ali parava. José Estêvão procurava o arrais Thomé Ronca, para que este o levasse, a si e aos convidados, ao outro lado. E a «Norta», grande amiga do político, logo virou as costas ao «Bisnaga», leda para cumprimentar «os Senhores» importantes que vinham com José Estêvão. Logo o «Bisnaga» estrebuchou de danação, mostrando ganas de semear alarido, a meijengrar alguma nada boa: – Que é lá isso, desatender-me a mim, homem da cidade dos Bispos, para atender este fidalgote apressado… Para eles tenho uma folhinha de matar bácoros, que abre num ápice a barriga a fidalgos bem aviados. Daqueles que ficam à porta e não entram, para não sujarem as botinas mulherengas. José Estêvão manteve-se hirto, impassível, levantou o peito, cofiou o farto bigode, e preparado para responder ao malino: – Olhe lá ó andarilho lá da serra? Você não é o mata burricos lá de Mangualde? Pois olhe que eu não o conheço senão pela má fama, e não estou nada interessado, em conhecê-lo. Vá à sua vida que eu vou à minha. – Ora! ora…, atira o «Bisnaga»: ora aqui os homens – já o sabia – são tipo ovos-moles. Ouvem o ronco do mar e mijam-se pelas pernas abaixo… De uma mesa lá do canto esconso ergue-se uma figura, alta como uma torre, homenzarrão tão cheio de força que os seus olhos mesmo que meigos infundiam silencioso respeito. Postado em frente ao «Bisnaga», o Thomé Ronca, mete-lhe uma manápula ao ombro, enquanto troveja: – Que é isto? Pariu aqui a galega, ou foi a mãe deste burriqueiro que o veio deitar fora? Olha lá ó chibante – se voltas a dizer o que quer que seja dos homens da minha terra, acabam-se aqui as fanfar89


ronices, já hoje e aqui. Com desprezo voltou as costas ao almocreve, e dirigindo-se ao altar, pedindo traçado à «Norta». O «Bisnaga», julgando-o distraído, deu de fazer rapola e em grande restolhada, rapa da vara que sempre o acompanhava, e dá de despejar o lódão. Uma varada mesmo ao endireito do ombro do Thomé. Só que este desconfiara do mafarrico, habituado a atacar pela noite, às escondidas. E num ápice, lesto, voltou-se. E com a manápula habituada a enlaçar o reçoeiro, enganchou a vara. De imediato puxou por ela o marau, e com uma punhada, aplicou tamanho bofetão ao burriqueiro, que este foi lançado por cima do altar da tasca, indo aterrar, de borco, entre as pipas bairradinas. O Thomé foi lá buscá-lo. O asno abria a boca como rã à procura de ar fresco. Agarrando o fraldoco pela cilha que lhe atava as calças, arrastou-o de borco, lançando-o borda fora, à ria. – Aqui d’el rei quem m’ acode. Eu sou da serra não sei nadar. Acudam à d’el rei! Salvai-me que eu dou-vos azeite, dizia o «Bisnaga» esbracejando na água. – Atão mijas-te ou não, fraldoco? E aproveitando o sopro do Norte, os convivas de José Estêvão rindo-se da restolhada, lá embarcaram para a Costa Nova, abicando ao palheiro à porta do qual a D. Rita esperava o grupo dizendo: – Que lauto banquete. Vindes bem refastelados, vejo eu. Agora para a noite ireis ter uma canjinha da tainha de pinta amarela, com um grãozinho de arroz em fio de azeite. ❦

Quem me contou esta estória que verto em rabiscos lavrados pelo meu punho? Adivinhais, estou certo. Pois, a Zefa. Estória que ouviu a seu pai nos invernos inteiriços, a charriscar lume, a catar um ou outro feijão que boiava à tona do caldo, à espera de apuro. A Tibéria, essa, ficara em casa, que os artelhos chiavam de mal sadios. Excessos; excessos da boca, porque, nesta altura, já não há bródios ou funções que espaireçam.

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Postal 6 O Senhor Zé e o «Visconde»

Raios: tempo desalmado, esgalmido. Inquisilento e mal sadio. Por mor do dito cujo, deixei de encontrar a Zefa e a Bernarda, e de, com elas, ter prazer de charlar e rir. Rir, sim!… Porque na minha idade, rir é o melhor «xanax» para a alma retorcida. E eu, confesso, já estava farto de estar aqui encanteirado, confinado (e desafinado) neste «estar à janela». Parado, especado a olhar as serranias, dorido de tanto «sobe e desce» que as curvas serranas mostram. Neste pousio, enquanto chove e eu aqui especado, pareço estar só: eu e o mundo. Sonhar é bom. Mas sonhar, intervaladamente. Poema que me saia, fala invariavelmente da mulher amada. Começo a ficar tão farto de fingir, que até me apetece dizer: quero-te só para sonhar contigo. 91


Mais uma sota, nesta segunda-feira, permitiu-me o reencontro. Eu, a Zefa e a Bernarda, falámos de muita coisa. De entre elas catei uma bonita «estória». Vo-la conto… – Olhe – diz a Bernarda: este tempo desembestado faz-me recordar a nossa vida em pequenas. O palheiro onde nos abrigávamos do tempo, feito de um tabuado mal encostado, deixava passar o vento frio por entre as frinchas, que até zunia. Então, nas noites de surriada tiravam-se os cobertores serranos da enxerga e punham-se a fazer de anteparo. E para não ir para a enxerga e ter frio, abusacávamo-nos em volta do borralho. À luz de um candeeiro trémulo, por vias da fisga ventosa que escapulia entre frinchas, íamos ouvindo os maiorais, enquanto uns cavaquitos apanhados do outro lado, no matagal da Maluca, ardiam, mitigando o frio. E entre conversa lá íamos assalgalhando, quebrando o jejum. Numa lengalenga familiar, ouvíamos «histórias» do antigamente. Lembro uma, que fez o encanto da minha meninice. Sabe?!: sempre pensei, porque fui testemunha viva da heroicidade demente daqueles «arraises», que, às vezes, até parecia não regularem bem, quando no meio do areal, frente ao desalmado mar, gritavam: – «bota prómar, que este mar enxogalhado não mete medo a homes». E nós, que ficávamos especadas na praia, arrepiadas a ver o meia-lua encabritar-se na primeira vaga, e logo atrás dela vir a segunda ainda mais danada, arrepanhávamos os cabelos e só sabíamos gritar: – ai o meu Pai, coitadinho, que lá fica! Ora um dia, contou o meu avô, o Chico «Cuteta», o Sr. José ( José Estêvão) tinha vindo, como habitualmente, à borda a conversar com as «nossas» gentes. A saber da nossa vida. Trazia com ele uns «fidalgotes» da cidade, que se vestiam astrapalhados, dizia o Ti Cuteta, com a areia a entrar-lhes para as polainas. «Que inté» pareciam um barco alquebrado «a meter auga»… E parando, apresentou-os ao arrais Thomé. Um dos fidalgos, homem de larga bigodeira engomada e retesada que mais parecia imitar o «meia-lua», dirifiu-se sorridente ao Thomé dizendo-lhe: 92


– Atão vossemecê é que é um dos tais «ílhavos» que o Visconde diz pedirem meças ao campino, a saber qual mais valente (?): se o que defronta o touro, se o que investe o mar!!!!… Sim senhora, finalmente vejo um dessa espécime. E Vossemecê que pensa do que diz «Visconde» (?), pergunta o fidalgo letrado, ao Thomé. – Ora saiba òspois que eu penso que esse tal Visconde – òsculpe mas não o conheço – é zamparilha. Ora essa: – olhe … E zás!!! A um boi que vinha dar o chicote ao «calão», fila-o pelos cornos, torce… torce… torce… até que o boi ajoelha e cai de borco na areia, resfolegando e espumando, preso pelas manápulas do Thomé. Este levanta-se, sacode as mãos, põe o boné, e diz para o amigalhaço do Sr. José: – Ora diga agora ao tal «Visconde» que faça isto com o mar. E veja quantos homes eram precisos para o abraçar. Todos os que há no mundo. O «manso», esses (!), como-o eu em bifes. Sem sal parecem feitos de palha. O mar, esse (!), – e ao dizê-lo tira respeitosamente o boné – bebe-se aos golinhos, senão afogamos no seu sal. Essas gentes de que fala o dito, enfarpelam-se de vermelho e são bailarinos. Morres-lhe pouca gente, por certo. Olhe em volta Vossa Senhoria, e repare na nossas gentes: vê-os quase todos de preto. Vestem-se assim pelos que ali (apontando o mar) ficaram. Mas isso não os quita de «zangalharem» com ele, as vezes que forem precisas. Enquanto a conversa decorria, o Sr. José ria a bom rir. – Pois… Ó Pinheiro!!!, meteste-te com boa rês. Logo este gladiador do mar.

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Postal 7 Estórias da companha

Pois, um dia teria de acontecer. O inverno ceder à sua bastarda violência. A Costa Nova, descubro agora, é louçã mesmo com a invernia; com a lareira acesa, ver o fustigo da chuva varrer a vaga, ler um bom livro e estender a mão para um whisky suave (mesmo um Four Roses adocicado), e até um casmurro descrente, como eu, acredita que não havendo «deuses» mandantes, um homem pode-se revirginar, eu sei lá (?!) eternamente. E em cada dia que amanhece querer ter a lua na palma da mão. Mas hoje acabou-se. Salto para fora e logo deparo com uma cena de antologia: cinco bateiras «amarradas» aqui aos pedregulhos, 95


atiram-se ao «ameijoal» que este ano parece semeado, mesmo à borda. De «cabrita» ao ombro, num trabalho danado, cuspindo nas mãos de pele dura, vão lavrando o fundo da ria. «Puxa», «cede», «puxa» … e aos saltinhos a «cabrita» varre o fundo. Chegada à borda, virado o saco no tabuleiro, o labutante atira o mexoalho fora para proceder, logo ali, à primeira escolha. Paro deliciado, embora interiorizando o esforço danado do camarada, que feita a apanha, ir receber escassos três/cinco «euritos» por quilo de amêijoa «macha» que, à falta de compradores espanhóis este ano, se vende ao preço de «uva mijona». Bem … era tempo de ir ao encontro da Zefa e da Bernarda. Com a minha paragem para apreciar a pescaria, elas já ali vinham. E o encontro deu-se a «meia-água». – Atão (?!) gentes: – dias destes, nem de encomenda. Hoje é só azul, de azul. Ficamos encharcados de tanta macieza, fui adiantando… – Pois. Este tempinho do Senhor até nos brune por dentro. Vá, axixe-se aqui que hoje trago-lhe uma estória e das boas – ó larilas. – Avance mulher. Desembuche que eu sou todo fiel de ouvidos. Que os olhos perco-os na ria. Vá que eu dou-lhe todo o meu crèto. – Vá… então. – Olhe nos meus tempos de garota, na companha do Arrais Magano, havia um abegoeiro, murtoseiro rijo entroncado, já homem de idade meã, muito sério e conspícuo de palavras e actos, que vivia num recanto da abegoaria onde recolhia o gado, finda a faina, e aí, dele tratava. Nas mãos dele as juntas andavam num folgo vivo, duna abaixo, duna acima, numa guita do caraças. De seu nome, de bautismo ou por crisma, conhecido por ti Brígido. Ora na companha, andava uma rapariga, ou melhor uma raparigaça, bonita, mançanzeira de face, esguia de corpo e abocada de ancas que balouçavam pecadoras no andarilho da lideira da escolha do pilado. De seu nome e alcunha, Fernanda «a Fininha». Havia um zamparilha, um tal Albino «o Escuro», rapazote 96


mal encarado de vida ao rossaló, sem rumo nem tino, tipo azedo e brigão, que por umas naifadas dadas numa briga, a um paciente, fora deportado para uma prisia lá do Porto. E muito embora a Fernanda não permitisse nenhum avanço, certo é que o Escuro desinquietava a rapariga, acoimando-a, impedindo-a, por ameaços, que desse cúnfia fosse a quem fosse. Como se ela fosse propriedade sua. Num fim de tarde, a horas de recolho para dar descanso ao corpo por umas escassas horas, na palha da abegoaria, o Ti Brígido dera com «a Fininha» encolhida no areal, deitada de borco, chorando compulsivamente. – Que é lá isso, raios; porque estás para aí arrolada? inquiriu o Brígido. – Ai deixe-me, tio, que a minha desgraça está escrita. O «Escuro» irá cumprir a ameaça… – Que me dizes? Atão esse xabuqueiro já voltou? – Já. E disposto a tirar-me a vida se eu não lhe entregar o meu corpo. Que a minha alma, essa!, nunca será dele. Mais valia dá-la ao diabo, Ti Brígido. Afaste-se de mim, santo homem!…, desta desgraçada que parece que tem peçonha. Olhe que ele pode vir aí cumprir a promessa, e atira-se a si. – Isso é que era bom!!! Vá anda daí. E baixando-se agarrou-a pelos ombros levantando-a facilmente, levando-a para o palheirão. Depois de a acomodar, foi ao borralho de onde tirou uns peixitos que aloiravam no brasido ateado. A Fernanda recuperara o ânimo, e contara ao Brígido, em pormenor, a tragédia do seu viver. De repente ouvem-se socadas violentas no portão do palheirão. – Quem é lá, a besta que escoiceia assim? – atira o abegoeiro. – Vêem!… já me reconheceu – diz o alarve d’o Escuro para a camarilha. Abra a porta que eu sei que está aí com a Fernanda; ou ponho-a abaixo. Vou aí e espeto os dois. O Ti Brígido abre o portal, e do alto da sua figura larga e emproada, olhos mansos mas a despedir chispa com a zanga, marme97


leiro erguido, olha o «Escuro» que se fazia acompanhar por dois gálicos mal-encarados. Ao verem a cara de poucos «amigos» do homenzarrão – só agora repararam que o Brígido não é um homem correntão –, instintiva e medrosamente arrecuam. – Olhai, bigorrilhos: ides entrar e ver se está a Fernanda (que entretanto mandara esconder-se no rolo do cordame do reçoeiro). E se não estiver, vamos tratar do assunto e acabar com a fanfarronice de vez. Ides zangalhar ao som do marmeleiro, que tenho o fole cheio de tanta avaria. O «Escuro» e acólitos entram, olham, olham … e nada. – Bem: astão, vamos lá fora. O «Escuro nem espera. E rapando da naifa, gritou: – Vou-lhe escachar a alma desgraçado… O Brígido, rápido, tira do marmeleiro com ponta a luzir, e aponta à orelha do berrega, escarchando-o de alto abaixo. «O Escuro» cai redondo como perdiz atingida por tiro certeiro. Sem hesitar, marmeleiro zune e bate certeiro, ora num, ora nos outros bardais. Agarrando o «Escuro» pela piolheira ergue-o e dispara: – Se voltas a pôr os pezunhos na companha esgalho-te de alto abaixo. Agora foi só a amostra. Da próxima, rapo da foice de dar palha aos bois, corto-te por onde mijas, e penduro-te nos cornos do «Asdrúbal» (que era o cobridor da abegoaria, manso de farta e recurvada cornadura, bem afiada de pontas). Sim, quando me decidir, limpo-te. Com uns valentes pontapés e pauladas corre com o grupelho. E o certo é que o «Escuro» bem aconselhado sobre, afinal, quem era aquele homem solitário, vindo lá da Murtosa: que bom por bom,… era bom como mar manso. Mas por mau, Deus nos livre: era um toiro desembolado. O «Escuro» bem avisado, desapareceu de vez do acampamento dos Xávegas. A vida continuou, a «a Fininha» foi-se afeiçoando em silêncio àquele «santo homem», até que um dia o Brígido lhe atira: – Olha Fernanda; eu estou para aqui sozinho. E se viesses viver 98


comigo sempre nos amparávamos, um ao outro. Mas se vieres, só depois de juntos por Deus. Queres?… – À ti Brígido: eu, pouco a pouco, fui-me aquietando e afeiçoando a si, bom home. Há benícias que gosto de si. Eu querer, queria. E já!… mas sabe que o Padre Jerónimo é muito esquisito. É um inxum, que não casa murtoseiros com gente de cá. Diz que não quer misturas de vinhos. – Ah não? Então vamos lá… E lá foram. Na capela onde a «Senhora da Saúde» substituíra o S. Pedro, como orago local, estava o sacrista d’ «o Bexigoso». E na sacristia o Frei Jerónimo. O Brígido, com «a Fininha» pela mão, entra. E resoluto diz ao pobre sacrista: – Salta lá para fora e dá cá a chave da casa. Não foi preciso repetir. «O Bexigoso»: ala que se faz tarde. Fechando o «portaló» da Senhora, o Brígido chama o Frei Jerónimo, que comparece, lépido, ao ouvir a voz de trovão no templo: – Olhe, Abade Jerónimo, à face da lei do Senhor que nos vê, despache-se e case-nos. Depressa. A porta está fechada. E vossemecê, ou escolhe a bênção, ou vai depressa é direitinho para os anjinhos. Ou de muletas para o inferno, se não me fizer a vontade. Basta uma cruz sobre a gente, dois pai-nossos, e umas lengalengas de faladura. E pronto. Chega. E olhe: acabada a cerimónia vá mudar de batina que a «maré» chegou-lhe aos ditos. Inté’ prece que nem acredita no que prega, e, afinal, o céu nem boa coisa é para morar. E ainda que trémulo e gago, o fradoco consuma o enlace cristão. E assim, diz a Zefa, chegámos ao fim da «estória» que afinal teve um fim feliz. O que é raro, digo-lhe eu… – Pois o Brígido que ainda tinha nele muito de homem – não sei se me entende? – (entendo, entendo, disse-lho eu… ) – ainda fez dois filhos à «Fininha». Mulher respeitada, que depois da morte do Ti Brígido, pôs mãos à empresa e foi a primeira «abegoeira» cá do sítio. Não havia mulher mais governadeira e despachada. E sempre pronta a tirar do mealheiro, para acudir aos que mais precisavam. Quanto ao «Escuro» 99


foi um ar que lhe deu. Parece que se meteu noutra desgraça, e foi degredado para África. O «Escuro» que devia ser filho de marroquino aqui naufragado, dada a sua tez, pouco se distinguia dos de lá.

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Postal 8 O parto na «labrega»

E lá voltou o tempo tristonho, de uma paz podre, belicoso, que mais do que incomoda, envelhece (-nos). Há que reagir à maldade dos deuses. E saltar fora do afecto modorroso dos lençóis quentinhos, e «navegar». A ria está quieta como um gato enrolado, esquecido de si e do que se passa à sua volta. No nosso tempo, meses que tinham R, eram meses de «cricalhada». Esta semana, apesar do dito R estar no mês, agora, as autoridades vieram decretar proibição do «crico», fora de casa. Parece que aquela alga que pinta de vermelho, adiantou o período de proibição. Por isso a ria está vazia, como mulher visitada pelo dito. E logo posta 101


de lado pelos amantes. Raio desta cambada. Bem podiam afagá-la, acarinhá-la, e renderem-lhe visita. Ao menos de cortesia. Ingratos. Mas hoje era dia de charla. E muito me admirei quando ao meu encontro, além da Zefa e da Bernarda, vinha uma outra vistosa faininha. Logo apresentada como a Joana «Labrega». – Olhe cá: – para mudar de conversa, trouxemos a Joana «Labrega». Para ouvir uma história, linda. Mesmo linda. Vai ver. Aqui, a Joana, foi filha do arrais Agostinho «O Capa Cavalos». Home daqueles que dizia: – Ah! mar estás a roncar (?)… espera que já te mijo em cima… O Agostinho era casado com a Deolinda «Patacão». Ora às tantas esta emprenhou, e o certo é que passou muito mal, a rapariga. E vai um dia a coisa complicou-se. Chamada a manobradeira do sítio, a ti Tuna «a Parideira», esta logo percebeu que a criança estava atravessada na «vaga», aos baldões e não havia maneira de a trazer cá para fora. Nem com «reboque». Chamando o Agostinho de parte, segredou-lhe: – Temos aqui um estupor de lanço que ficou no peguilho. Se não levamos a Deolinda a Aveiro, já, ao hospital, vossemecê fica sem rede e sem peixe. – Mas como (?) balbucia o arrais que nunca se vira num momento daqueles. Sem estrada, sem transporte só lá para a noite dentro… se lá chega. – É tarde, interrompe a Tuna. Muito tarde. Temos uma, duas escassas horas. C’a Deolinda não óguenta mais. Vá pedir ao Ti Rigueira «o Murtoseiro» que ele leva a pobre, a Aveiro, na sua bateira «Labrega». Não há outro como ele, a voar sobre a ria, Ti Agostinho. Vá (!) meneie-se raio de homem, parece um xana, aí especado. O Agostinho deu da perna e passado um pouco voltou com o Rigueira «Murtoseiro» que logo ordenou: – Vá, peguem na cachopa e levem-na ali à borda, que eu vou preparar o «camarote». A «Labrega» era uma daquelas bateiras que os murtoseiros traziam com eles, para os lanços do «saltadouro». 102


Elegante na sua bica, toda «embreada», servia de «casa» ao pescador, que lhe armava, no castelo de proa, o toldo espalmado (pata de rã) com que se protegia do vento frio da noite. O Rigueira aconchegou a manta, armou o toldo, e quando trouxeram a Deolinda, foi só poisá-la ao de mansinho na «Voadora». Assim se chamava a «Labrega». Toda pretinha, só com o raminho a enfeitar a cruz erguida na bica da sua elegante proa. A «Labrega» do Rigueira era a única que tinha uma vela bastarda, calcada à proa, na sarreta, e verga atirada bem lá para o alto. Vela enfunada, bem calcada no punho a esticar a testa da vela, escota na mão a comandar a «enchidela», toste bem ferrada, e a «Voadora», era, nas mãos do experimentado Rigueira, uma galgadora da ria. O Agostinho sentado no «traste» olhava pela Deolinda deitada a seus pés. E os três embarcados atiraram-se à emposta. Punho da escota bem ferrado, cabo do xarolo de sotavento laçado na sarreta barlavento, trilhado nos dedos de pé para comandar a orça, num ápice chegaram ao canalete do «Oudinot». Mas aqui a Deolinda, fosse pelas batidelas da bateira a adoçar a vaga, fosse pelo respingos da ria que entravam, bateira adentro, diz sentir que: – Ai meu Deus e nossa Senhora do Bom Momento, «ela» já deu volta e vem aí… … O Rigueira acosta a «Labrega», fundeia numa revessa e pede ao Agostinho (que lívido, hirto, ficara, para ali especado): – Vá, que a «rede está à borda» e é preciso separar o «mexoalho» do peixe branco. Salta lá para trás homem, estipor que só tens chaniço para o mar. De resto és um empecilho cheio de trízia. E lavando as mãos na auga, que aquecida pelo vento suão, estava morna, abeirou-se da Deolinda e ordenou: – Vá lá cachopa: ferra aqui as mãos nos escalamões, retesa-me esses pés no paral, e acospe-me cá para fora o regordido que trazes aí dentro. E tu Agostinho (!): forra a macola com este camisote de linho, com que fui ao altar, e prepara-te para aparar o rebento. 103


Passa-me aí a naifa de rasgar o porfio para cortar a mão da barca ao redame, e «a» libertar. E se melhor dito, melhor feito. Eis que de entre as pernas da Deolinda se escapa uma pimpolha a berrar como uma esgalmida. Logo o Rigueira mete o vertedouro na ria, e eslavaça a paxoneira (pois de facto era uma bonita pimpolha que acabara de nascer na «Labrega»). – Ora, diz a Zefa, virando-se para a Joana que sorridente ouvira toda a história do enredo do seu nascimento, diz toda delambida: – agora veja, aqui tem o pimpolho nascido às mãos do parteiro Rigueira: – a Joana «Labrega». Eu olhei a para a Joana, embeiçado. Os seus olhos d’água eslavaçados pelas águas da ria, amêndoas doces a boiarem, inquietos, num rosto muito moreno, melaço, vivo e brilhante, eram sublinhados por um cabelo revolto. Negro… negro como o embreado da «labrega» do Ti Agostinho. Na «labrega» do Rigueira Nasceu a Joana sem dor Foi na barca toda de negro Que nasceu o meu amor.

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Postal 9 Maio chega e com ele a época do tresmalho

Maio chega e com ele a época do tresmalho. Abro a porta, respiro o ar da alva, fresco e poderoso, e assisto ao despertar da ria. Atiro os olhos para a água, enquanto o corpo não ganha coragem para os acompanhar. Os meus olhos sempre foram uns felizardos: têm sempre tudo o que por vezes nego ao corpo. Na paisagem que desde logo se encharca de sol, reparo (ou imagino) como deveria ser bonito outrora o avistamento do prado da Joana «Maluca». Sem nada que colhesse a linha do horizonte, nessa atapetada planura onde teimosamente despertavam umas vergônteas enfezadas, que demoraram gerações até se transformarem nos verdejantes milheirais lagunares, o olhar só esmorecia nas faldas serranas 105


do Caramulo, que hoje ainda daqui avisto por cima do casario da Srª da Maluca. A maresia invade-me os poros limpando-me do cheiro «a raposinhos» de uma noite entre vale de lençóis, curando-me dos achaques das viradelas (que travessuras já as não há!… ) nocturnas. Manhãzinha cedo e já lá vai uma azáfama no estender dos tresmalhos do «choco» no lençol azul das águas lagunares. Mesmo aqui, à minha porta, a um braço de distância. Colho a máquina de imagens paradas, e disparo. Maré enche, e é tempo de metodicamente desenrolar a meada e estendê-la numa lonjura que ultrapassa os 300 m. Atravessada a bateira, esta vai descaindo; e o arrais, agora que já usa o motor, e é o único tripulante a bordo, deixa correr entre a concha da mão, o cabo e bóias superiores. E o cabo e lastros inferiores, que depois na água, com a ajuda da corrente ficarão na vertical, fundeados pelos ferros e poitas intermédios, levantados pelas bóias sinalizadoras. Aboiadas a cada pano mergulhado. O «choco» que nestes meses invade a laguna (num prodígio de vida que as mutações lagunares não matou, e renova a cada época) virá paulatinamente em procura do «manjar dos céus» que sabe posto na mesa, com pompa e circunstância, nesta borda poente lagunar, onde desovará. E eis que, de repente, o pobre que se julgava convidado «vip», se enfia pela malha larga das albitanas; numa aflição com o traiçoeiro convite, procura recuar, libertar-se, e fugir. Quanto mais gesticula com os «braços» mais se enreda na malha miúda entralhada nos cabos superiores e inferiores. Estendida a «arte» – aqui a palavra ajusta-se perfeitamente ao ofício – o arrais mergulha o ferro e fundeia. Momento para descanso a enredar-se nos pensamentos da vida. Fumando cigarro após cigarro, ficava à espera que a maré vire, para recolher o redame. E vai pensando no estupor da vida… Na véspera, tinha ouvido um pissofoque na TV a pregar aos «peixes». E o Zé «Lavanco» – assim se chama este «camarada» da manhã, começa a pensar nestes «pissalhos» que lhe atormentam as 106


noites, perdidas em frente da sua prosápia, com que atiram a «tinta de choco» aos olhos do zé-povinho, para lhes encaldeirar a vista. E o que é certo é que os peixes – pensa o «Lavanco» –, andam muito eslabaçados. Esfraldilhados de todo, parecendo como o «choco» deixarem-se enrodilhar no redame do palavreado chinca. Estes codres só olham para cima, e nunca – mas é que nunca, porra! – os fraldocos olham para baixo. Ná – pensa o «Lavanco», este cardume não é como o de peixes. Que olham para cima para baixo, e p’ró lado. Isto é cardume de «chaputas»… Nesta cambada há mesmo uma peixaria, matuta o «Lavanco»: os ditos «roncadores» que só têm prosápia, arrogância e chança: – pissalhos!!!!. Mas também há dos «pegadores». É o que há mais. Parasitas, labajões; cambada de inchuns. E os «voadores» que só têm ambição no sentar do cu … Mas há também – oh! se há! – muitos «polvos»: traiçoeiros badalhocos. Monte de boseiros. E com isto a maré vira. Um dia a maré também há-de virar… sacanas!… foi pensando o «Lavanco», alevantando-se, cuspindo nas mãos, disposto a ir à rede. E de volta, trazido com a maré, bateira atravessada à corrente, deixa-se descair enquanto mete os panos dentro. Emalhados lá vêm os «chocos» que ainda darão um trabalhão do «caraças» a libertar para a caixa. De interior enegrecido pela tinta que as presas vão largando no estertor final… (como o povo, atirado para o caixote… para ser vendido a «Merkel & companhia»). ❦

E estava eu pronto a recolher a penates, como um xana, e eis que chega a Zefa. Hoje, sem companhia da amiga, é quando a língua mais se lhe destrava… – Ah rico!!!! Vossemecê está esgalfo dos olhos. – Pois Ti Zefa. Aqui a ver o «tresmalhar» dos «chocos»… – Olhe que o tresmalho é como mulher na cama, diz a Zefa, maldosa no olhar ainda malandreco. E continua: «alinha-se» com 107


a enchente (e só nesta), encosta-se e dá as albitanas a charir. O home augadinho marra. A gente, auguenta e faz que foge. O calhandras bardaleiro atiça-se, e depois é um badanal. A vagalhoça invade-nos a cama, espincha que espincha, e só desemalhamos quando estamos derreados. Às vezes arrecuava. E eu logo lhe dizia: – Ah! Nem adregues… livra-te! Atão não dizas tu que peixe que passa a borda… já não sai. Vá, maneia-te, antes c’a maré vire. – Ah! Ti Zefa que você deve ter sido chaleira de bom lume, atirei eu… – Olhe amigo: se não há bom lume assoprasse-lhe. A carne não é como o peixe: é pecadora. E só um santo de pau carunchoso é capaz de resistir ósdepois dos louvados (lambiscos está Vossemecê a entender?) – Ora… ora se entendo. O pecado foi a melhor coisa que o homem inventou depois que Deus (um bom sarrazina), dele se fez desentendido.

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Postal 10 A Joana Maluca

Aqui sentado no meu canto à beira rio plantado por mim, com um sonhado e não escondido propósito de um dia poder gozar a velhice, desgastado do corpo que não dos sentidos, inebriado por esta ria, tão inquieta quanto eu, mas muito mais prodigiosa na oferta de sensações que dela podemos extrair e guardar. Hoje, «Iemanjá», das águas vivas, reluzentes, cheias de vida… E agora que já pouca beleza extraio da vida, é ela que (me) consola nestes momentos – eu sei lá?! – se os poderei chamar de criativos. Pelo menos, aqui, criar, significa sonhar, querer, desejar. Sonhar com as palavras que gostaria de dizer, e que, se afinal não digo, é porque me falta o estro. 109


Mesmo defronte aos meus olhos – ali mesmo! –, ficam as terras da Joana «Maluca», figura histórica por quem sempre tive largo apreço. Como tive – ao menos – «talento» para cimentar amizades que duraram uma vida, essa qualidade historicamente registada na figura da Joana, atrai-me. E há muito, depois que contei a «estória» das visitas do José Estêvão à grande senhora (vide www.senosfonseca.com, clicando na janela Factos & História, em Palheiro de José Estêvão), apetece-me dar um retrato mais preciso da Joana. ❦

Às vezes não chega, a um indígena, ser maluco. Para sê-lo é preciso parecê-lo. Ora a Joana Rosa de Jesus «a Maluca» não só o não era, como nem o parecia. A alcunha, coitada, ter-lhe ia vindo de ter casado com um dos primeiros foreiros do Senhor de Vagos, o pastor José Domingos da Graça «o Maluco». A Rosa de Jesus era uma «Gramata». Nascida em Ílhavo, em 1788, era originária da família dos Gramatas, lá do Arnal, cujo avô, o Tomé Francisco, fora um dos primeiros foreiros que nos fins do século XVII se teria vindo estabelecer para aqueles terrenos arenosos que bordejavam o canal que ia lá para os lados de Mira. Ora o certo é que o Tomé Francisco tomou o nome de «Gramata», que era o nome por que eram conhecidos aqueles terrenos lodacentos que tinham vindo lá das entranhas da ria, e onde apenas parecia capaz de nascer e se desenvolver, uma erva marinha, conhecida por gramata: «diz-se a qual mó do meio produz junco e hoje pela continuação da maré salgada já o não produz, mas sim erva que chamam de «gramata», apetitoso manjar para o gado». Em 1883, a Joana «Gramata» e o marido «o Maluco», que teria vindo lá do sul de Vagos, fazem o aforamento da «Quinta do Feijão», local preciso onde hoje se encontra situada a Capela 110


da Sr.ª da Encarnação (aqui mesmo exactamente no «azimute» da minha proa). A Joana, já então conhecida por Joana «Maluca», cedo ficará viúva. Não sem ter botado à vida nove rebentos, que lhe darão a bonita prole de 66 netos. Viúva aos 48 anos, irá casar com António Sousa Pata. Não teria sido fácil ao José da Graça convencer a sogra a dar-lhe a filha. «A Gramata», já gente de sinal, olhava para o rapaz, pastor das castras enfezadas e raquíticas, e tentava inquirir o que «ele» teria de «seu» ou dos seus, tanto fazia. Ora numa noite estrelada enquanto fixava as luzinhas lá no alto acudiu ao José – rapaz esperto – uma ideia que logo ao outro dia botou em prática. E enquanto na eira da «gramata» ia respondendo aos «quesitos» da mãe de Joana, não esteve com meias medidas: – colhendo na mão umas espigas de trigo, atirou à «Gramata»: – Olhe Sr.ª amiga: eu pareço um pelintra a vadiar aqui com o gado por estes areais. Mas não colha o gato pela cor do pêlo. Que a casa de meu pai é tão abastada e tão rica, que à noite há tantas luzes a iluminá-la, como grãos que tenho aqui entre mãos». E logo ali, a convencida e crédula sogra, aprazou casório. A Joana, embora de perfil varonil em que uma teimosa barba lhe cobria o queixo realçando-lhe o tipo, era, contudo, uma aprazível e simpática mulheraça. Mulher ridente, faladeira e sempre bem disposta, fumava viciosa e deleitadamente charutos, que amigos e comensais, da sua lauta e farta mesa, lhe faziam oferta, mantendo o stock sempre abastado. Abria com regozijo a porta aos políticos, recebendo amiúde José Estêvão que se fazia acompanhar pelos ilustres que o vinham visitar ao seu palheiro da Costa Nova. Indo de barca, passava a ria, atracando na mota da passagem, em terrenos que confinavam com as terras da Joana. Mulher activa, empreendedora, boa na arte de negociar, rapida111


mente a sua casa emerge como das mais poderosas e ricas da região. Benfeitora, é ela que cede os terrenos da sua quinta onde se virá a instalar a capela da Sr.ª da Maluca, dotando-a com algumas imagens de oráculos, devotos, que amigos de Aveiro lhe teriam oferecido. A Joana «Maluca» virá a falecer em 28 de Janeiro de 1878.

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(…)

Senos da Fonseca

E Ega mais expansivo comentou: – Afinal o nosso criador, o Eça, não achincalhou mais, nem verberou mais, senão pelo que viu. Soube a «estória do Dâmaso», e glosou-a. E a Joana da «Tragédia da Rua das Flores», escrevinhado, no entre «Maias» e outros, estás a vê-la? Ele inventou-a? Não!... viu-a e transportou-a, retirando-lhe um pouco a dignidade. Bem dizia o Camilo: para ser «realista», basta escrever conforme o novo gosto flaubertiano. É só distribuir uns adjectivos, pontuar de um modo mais acessível, e terminar no nada. Eça sabia que o País não era o retrato do espaço entre o Grémio e a Havaneza. Criticou-nos, ou melhor expôs-nos. E Ele? Que salões frequentou? Diplomata lá fora; bastardo, vencido da vida, cá dentro. Ora bolas!!! Os enganados fomos nós… Ele sabia que havia outro País, e mandou essa parte às malvas.

na

Costa Nova

Senos da Fonseca Livros editados: Nas Rotas dos Bacalhaus Ílhavo – Ensaio Monográfico do Séc. X ao Séc. XX

Os Novos Maias na Costa Nova

(...)

Os Novos Maias

O Labareda Costa- Nova – 200 Anos de História e Tradição Guilhermino Ramalheira – O Discurso da Paixão Ângelo Ramalheira – O rigor científico numa personalidade de eleição Alexandre da Conceição – Poeta da Terra Absurda Embarcações que Tiveram Berço na Laguna (Prémio Academia da Marinha) João Sousa Ribeiro – «O Pai da Pátria» Maresias www.senosfonseca.com senosfonseca@gmail.com


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