Livro Embarcações Lagunares

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Embarcações que tiveram berço na Laguna

Senos da Fonseca

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E o berço foi a Laguna… Este livro que ora depositamos nas mãos do leitor, visa aprofundar diversas questões ligadas à Arte Naval Lagunar. 1- Através da selecção de cinco embarcações, reconhecidamente como das mais simbólicas saídas das mãos da mestrança naval local, intentámos estudá-las em todas as suas vertentes (histórica, sua utilização, características e técnicas de sua construção). Através de meios documentais que nos permitem fixar uma cronologia do seu aparecimento no panorama lagunar, julgamos ter conseguido associar essas embarcações, instrumentos privilegiados da ofensiva do homem contra a natureza adversa, aos momentos capitais em que se verificaram mudanças profundas na geografia local. 2- Propomo-nos, assim, conduzir o leitor a uma melhor

percepção dos requerimentos que enformaram a sua idealização e concretização. Cada uma dessas embarcações mostra uma forma bem diferenciada, própria, para manejo e labuta em realidades, e para fins, bem específicos. Porque na verdade cada uma delas foi criada em momento próprio, diferente e sucessivo, sempre e quando foi necessário permitir ao Homem readaptar-se às contínuas mutações por que passou a instável e caprichosa laguna que por vezes pareceu apostada em negar os adeveres prometidos. Em verdade houve momentos de sobra para que o bípede errante que se veio alapar na borda em procura de forragear sustento, visse deitados por terra o sonho e a esperança que antevira no volúvel e frágil acidente geográfico. Aqui, neste espaço lagunar, a influência do meio sobre o homem lê-se na acção deste sobre aquele em exercício de permanente 3


humanização da paisagem, ao nela intervir para a reverter em seu favor, aquetando-lhe as feridas abertas. Fê-lo, uma e outra vez – as que foram precisas – desta ou daquela maneira, com maior ou menor intensidade e em cada momento, munido das técnicas colocadas à sua disposição para desse modo melhor a afeiçoar e amenizar, no reassumir da esperança. Nessa saga esgotante, as embarcações foram o instrumento principal de ajuda aos atrevidaços fazedores de nova paisagem em deganha de novas actividades que os ajudassem a se fixar. A utilização das embarcações em desempenhos específicos ajudanos, pois, a compreender (melhor) os diversos tipos humanos – marnotos domesticadores de água, arroteadores de areia, catadores do moliço, pescadores errantes, mareantes da borda – que se foram alapando em volta da laguna. Gentiaga que vinda de várias proveniências – exibindo por isso diferenças profundas – perfazem no seu todo um retrato humano com semelhanças reconhecíveis e iniludíveis, que, se ainda não foi profundamente estudado, merece atenção futura mais rigorosa.

3- Concordo com aqueles «velhos» da minha terra – porque os novos parece já terem nascido sem memória – que afirmavam, possuírem as embarcações, mesmo depois de naufragadas e ou descavernadas pelo teredo lagunar, uma «alma». Se ter alma é criação perfeita, harmonia completa entre corpo, beleza, espírito e forma – substância – então as embarcações que cito têm-na, em absoluto. A alma de uma embarcação reúne as memórias daqueles a que deu pousio, e com elas – e por elas – resiste ao esquecimento. Há que preservar essa alma para memória futura, para usufruto de todos os que, por ora, não têm memória. Ora isso é coisa que não vem sendo feita. Porque preservar a sua alma não é mostrá-las, langabotes lourejos amputados da 4


sua essencialidade, tipo «cadeiras de rodas», às voltinhas, no burriqueio turístico. 4- Neste livro elaboraram-se (e estão disponibilizados no DVD

anexo) os Planos Geométricos e de Construção (os habituais em 2D). De todas elas. Para tal o leitor interessado não tem mais que seleccionar o plano pretendido e imprimir o mesmo na Escala desejada. Mas indo mais longe disponibilizam-se no referido DVD, os Planos Geométricos, sendo que, agora, em 3D. Pode o leitor, usando um vulgar programa (DWG TRUE VIEW 2010) disponível na internet, visionar a embarcação seleccionada em movimento orbital, e, desse modo, melhor lhe apreciar as formas. Os utilizadores mais avançados, usando o auto-cad, podem retirar, elemento a elemento, a sua forma e dimensão, simular a construção, visualizar cortes, etc. etc. Tanto quanto a imaginação sonhe fazer com os planos disponíveis. As virtualidades (inesgotáveis) que este novo processo tecnológico potencia, podem constituir uma sugestão importante para os responsáveis museológicos. Uma achega, um passo enorme para preservação de memória futura destas embarcações históricas, tradicionais.

5- E finalmente, neste livro, procuramos valorizar toda essa plêiade de mestrança naval (empírica, mas engenhosa e genial nas respostas dadas às necessidades), ao desmistificar – e rebater – as atoardas de quem não conhecendo a história lagunar, catou, em paragens e tempos longínquos, semelhanças inspiradoras (de paternidade) para aquilo que aqui nasceu. No pensar desses respeitáveis eruditos (certamente em outras matérias, que não nesta…), teriam tais fontes servido de mote à imensidão das verdadeiras obras de arte talhadas à 5


enxó e medidas a pau de pontos: – único ferramental que era preciso a estes mestres carpinteiros para, de um pinheiro, engenhar as mais belas embarcações de águas interiores (e não só, como é o caso do portentoso «Meia-lua»), que no prodígio de imitar as bailatas das gaivotas parecem dotadas de verdadeira alma esvoaçante.

Senos da Fonseca (Abril 2010)

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Introdução Alguns estudiosos, a que sucessivamente se vieram juntar toda uma série de citadores, procuraram, pressurosa e insistentemente, encontrar inspiração fora de portas para a Ciência Naval que ao longo dos séculos se foi desenvolvendo no espaço lagunar. Ciência que não sendo produto de escola de formação de mestrança para tal desígnio, encontrou na memória e na transmissão oral legadas de geração em geração, o «modus» de se afirmar, e até, de evoluir para outras dimensões mais ousadas. É hoje comummente aceite, sem grandes controvérsias tidas noutros tempos em que se ensaiaram palpites diferentes, que a Laguna de Aveiro teria iniciado a sua formação, cerca do Séc. X. Abordemos pois o fenómeno da formação desta Laguna, cuja criação demorou séculos a se consolidar e ganhar expressão, e outros tantos a se aquietar aos limites impostos pela natureza, passando ao longo de tão extenso período – maior do que os anos pátrios! – por diversas vicissitudes. Perceberemos, então, a complexidade e diversidade dos problemas que foram postos à arte de construção de embarcações para dar adequada e bem ajustada resposta às exigências das populações que, inquietas mas esperançosas, pretendiam fixar-se a todo o custo no novo meio geográfico que parecia conter acalentadoras, ou até, ajoviadas promessas.

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Séc. X

Séc. XIII

Séc. XIX

Fig. 1 – A Formação da Laguna da Ria de Aveiro.

Num breve resumo, rememoremos o que expusemos com mais detalhe em «Ílhavo – Ensaio Monográfico – Séc.X – Séc.XX». A ria, mais ou menos como hoje é, teria começado a formar-se no Séc. X1. Mas não muito mais cedo. Podemos admitir fixar o Séc.X para tal acontecimento, sem com isso andar muito longe da realidade. , sem correr grande probabilidade de errar.Diversos autores de reputado saber que se dedicaram ao estudo deste fenómeno natural, chegaram a esta mesma conclusão2.

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Os testemunhos por datação “C” têm permitido medir a velocidade de sedimentação e com base nos mesmos sabe-se que a Ria de Aveiro terá tomado forma por volta do Séc.X – Martins, V. A. (dissertação de mestrado “As Obras Exteriores do Porto de Aveiro”). Cit. em SAL – 10.09. 2

Para esta matéria consultar, entre outros, Souto, Alberto, in «Origens da Ria de Aveiro», Cunha, Rocha e, in «O Porto de Aveiro»; Matos, Alfredo Fernandes in «A Configuração do Litoral Português».

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A partir dessa data, lentamente, pela acção das marés 3 que neste ponto do litoral correm de Norte para Sul, e principalmente devido aos aluviões despejados pelo Vouga no seu destino final – não esquecer que aquele rio era muito caudaloso, profundo, navegável até Pessegueiro do Vouga, bem diferente do rio que nos é dado conhecer hoje – ter-se-ia iniciado o desenvolvimento de um cordão de areias que viria a progredir de Ovar, avançando sempre para Sul. Incipiente ainda nos primeiros séculos d.C., foi sempre progredindo, alongando-se sem se deter, à medida que os aluviões se iam depositando, opondo-se (ou dificultando) à renovação das águas que restavam aprisionadas no seu interior. O amortecimento da intensidade das correntes traria, como consequência, o levantamento do nível dos altos fundos da laguna em formação. Estava assim iniciado o seu assoreamento que se mostraria ser irreversível. , sem correr grande probabilidade de errar. Entre o Séc.X e o Séc. XIII, o cordão litoral continuou a progredir, até atingir, em 1200 d.C., a zona da Torreira4 (fig. 2).

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Daveau, Suzanne e Ribeiro, Orlando, in «Geografia de Portugal» – I.

Laranjeira, Lamy, in «A Ria de Aveiro», cita documento de doação ao mosteiro de Grijó, de uns casais no Rexico – Fermelã, por Urraca Pires e marido, Afonso Pires, nos anos de 1182 e 1183, que diz sugerirem que o cordão de areias que se estendia das bandas de Ovar ainda não tinha atingido, naquelas datas, a Torreira, p.12 – ed. C.P.C.

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Fig. 2 – Barra em 1200.

A partir desta situação, o galefenho de areias viria a crescer, mas agora do sul para norte (fig. 4), desde Quiaios até ao Cabedelo das Gafanhas,embora pelo efeito conjugado das correntes e do vento. Os fluxos e refluxos dentre o mar e as marés, então já condicionados, iriam provocar o aparecimento de ilhas no interior e na foz, ,provocando o aparecimento de planícies de aluvião. entre o mar e ,No último quartel do Séc. XIV a situação da costa estaria já muito longe do sugerido no portulano de Visconti5, embora ainda longe do estado desenvolvimento actual.

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Este portulano, reproduzido no Atlas do Visconde de Santarém, embora datado do Séc.XIV, é julgado ter sido desenhado no Séc.IX, sendo a primeira representação, conhecida, do litoral português.

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Fig. 3 – Portulano de Petrus Visconti.

Certo contudoé que o delta do Vouga começaria a tomar proporções significativas. Neste século (XIV) a barra estava posicionada junto à Srª das Areias. No Séc.XV todas as ilhas estariam já formadas6 embora ainda submersas no preia-mar. As últimas a se formar teriam sido a do Monte Farinha7 e a dos Ovos, aquelas que ficam mais a oeste8desenvolvimento. 6

MATOS, Alfredo Fernandes, in «A Configuração do Litoral Português», p. 27.

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O duque de Aveiro numa contenda em 1537 sobre a posse das referidas Ilhas do Monte Farinha, afirma que ao tempo de D. Sancho II (1276) aquelas ainda não existiriam. 8

As doações de D. Pedro à Vila de Aveiro, da ilha de Sama, em 1477 e em 1407, a doação de D. João I a Frei Álvaro Camelo (meirinho mor de Aveiro), da Ilha da Testada, provam que à data elas já existiam, (não se dá o que se não tem), e evidentemente, que a sua formação seria anterior às referidas datas.

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desenvolvimentoNo referido século, o cordão de areia manter-se-ia perto da ermida da Srª das Areias, como referido, mas os canais navegáveis eram ainda bem profundos; a barra situar-se-ia entre aquele oratório e as Gafanhas. O porto ganharia, então, um forte incremento, já que para as necessidades da época era magnífico: tinha profundidade e largueza suficientes para permitir manobras fáceis no acesso a todo o tipo de embarcações. Batido por ventos predominantes do NW permitia uma boa entrada e/ou saída, à vela, questão da maior importância para a sua demanda. No Séc. XVI a parte mais significativa do delta situava-se a susudoeste do estuário do Vouga, coincidindo com o período de maior movimentação do porto, que irá verificar-se quando, a Barra, em 1500, se «situa algures», num local que Rocha e Cunha9 define como “muito a norte da actual barra, ligeiramente a sul da capela da Senhora das Areias”. E que “era então, uma barra ampla, profunda limitada a norte pela duna onde os mareantes edificaram a Capela da Senhora das Areias, e a sul pelas dunas da Gafanha”, provocando em toda a região um surto de desenvolvimento. De Aveiro, principalmente, que se irá afirmar como um importante centro de actividade mercantil; e das zonas vizinhas por serem chamadas, elas também, a dar resposta às exigências criadas por este surto de desenvolvimento. Em 1584, a progressão do cordão litoral deslocará de novo a barra que se irá situar, nessa data, em frente à Costa-Nova, posição que marcará o início da decadência10 das condições de acesso marítimo, acarretando uma profunda estagnação ao movimento portuário, e, consequentemente, às actividades produtivas da região.

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Rocha e Cunha, que foi comandante do Porto de Aveiro, autor de «O Porto de Aveiro» (conferência em 5 de Maio de 1923, na AECP, ed. Tip.Lusitânia – 1959). 10

Pinho Leal afirma que a decadência da barra de Aveiro se iniciou no rigoroso Inverno de 1575.

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A progressão do cordão litoral, contudo, não pararia por ali; saltando sempre para sul, atingirá a Vagueira em 1643, e, depois, a Quinta do Inglês, em 1685, para mais tarde se situar em Mira, cerca de 1726. Em 1757 por acção do capitão-mor de Ílhavo, João Sousa Ribeiro11, é tentado fixar a barra na Vagueira para o que é aberto um largo regueirão. Esforço que trouxe momentaneamente a esperança de mudança e o fim das privações, mas que se mostraria, rapidamente, inglório, pois a breve trecho ficou entupido e tudo voltaria à mesma. Numa representação cartográfica, em 1802 a barra continuava representada perto de Mira. Só em 1808, sob um projecto dirigido por Luís Gomes de Carvalho, a barra seria fixada no local onde se encontra actualmente.

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Sousa Ribeiro, alvo de grandes homenagens, apodado de «Pai da Pátria» seria o nobre escolhido por D. José I para trazer, para Aveiro, a carta de elevação a cidade.

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Fig. 4 – Mapa evolutivo da posição da Barra (Rocha e Cunha)12.

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Mapa 1 – cerca de 1500; Mapa 2 – cerca de1695; Mapa 3 – cerca1600; Mapa 4 – cerca de 1643; Mapa 5 – cerca de 1756; Mapa 6 – cerca de 1756 (Cunha, Rocha e, in «O Porto de Aveiro»).

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Hum segundo dia da creação: – foi assim, nestes precisos termos que Luís de Carvalho, relatou ao Rei e à Corte, instalados no Brasil, o feito. Porque era de facto um feito que demorou longos anos a concretizar com custos dolorosos para a população 13. Luis de Carvalho ao compará-lo a desígnios sobrenaturais, disse bem como eram tamanhas as expectativas de mudança que uma nova localização da ligação ao mar (a fazer a norte) prometia como factor dinamizador do desenvolvimento da região. E apesar de situações de permanente instabilidade, uma nova intervenção levada a cabo a partir de 1858, desta vez sob orientação do eng. Silvério Pereira da Silva14, consolidaria a obra, que, muito embora tenha passado por melhores, e outras vezes, piores, momentos, foi fundamental e eficaz no trazer de volta a vida à Laguna, fazendo renascer a esperança e de novo atrair, aliciando as populações a se fixarem à sua volta. Provando à exaustão, e em todas as circunstâncias, o acerto da decisão de Luís Carvalho, ao delinear a ligação ao mar no paralelo da Gafanha, pois só assim no seu entender – depois comprovadamente certo – seria permitido, com intervenções complementares no interior da ria, modificar todo o panorama económico da região, resolvendo um verdadeiro problema de salvação publica de êxito condicionado por circunstâncias severíssimas e de execução urgente, absolutamente indispensável15. E à medida que o Porto de Aveiro ia ganhando projecção, nacional e internacional, a Laguna afirmar-se-ia, de novo, um factor estratégico do desenvolvimento da economia local, e até nacional.

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Para a feitura destas obras foi criado em 1756 um Imposto Real, com recebedor nomeado pela Câmara. Contudo muito desses recebimentos teriam sido canalizados para outros fins e obras (inclusivé para obras do Convento de Jesus, fábricas, e até para obras no Mondego). 14

Do esforço de José Estevão, nasceu o decreto de 9 de Setembro de 1858 que cria a Junta Administrativa e Fiscal das Obras da Barra. Vai dirigir os trabalhos, o engº Silvério P. da Silva. 15

Cunha, Rocha e, ant. cit. p. 10.

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Cap. 1 – A Laguna Para os que desconhecem o fenómeno geográfico natural, singular e único16, expliquemos muito resumidamente as suas principais características. A Laguna da ria de Aveiro é uma extensa superfície de um delta interior que se foi formando à medida que os aluviões dos rios que nela despejavam – como acima referido, principalmente o rio Vouga –, foram dando origem a altos fundos que se deixaram cercar pelos cordões de areia entretanto desenvolvidos na orla costeira, unindo Ovar ao sul de Mira. O deslocamento do cordão de areias nunca encontraria obstáculo natural que se opusesse ao seu contínuo deslocar para sul. No seu interior foi, como já referido, ficando aprisionado um extenso lençol líquido de águas sossegadas, aqui e ali ponteadas por areais enlodaçados que emergiam das águas, à medida que o processo avançava. Para dar uma ideia da extensão das águas interiores poderemos, grosso modo, falar de uma superfície de aproximadamente 45 km2, desenvolvendo-se na extensão máxima de 45 km com uma largura muito variável, de ponto para ponto, mas com a máxima de cerca de 11km na zona do canal da Murtosa. Na sua extensão longitudinal, a 16

Na costa ocidental da Europa só Arcachon (no sudoeste de França) pode evocar algumas similitudes com o fenómeno natural da ria de Aveiro.

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laguna segue uma linha aproximadamente N-S. Na sua parte para norte da barra, flecte, orientando-se N-NE; e para sul orienta-se segundo S-SW. Desde longa data a ria possuiu calles17 navegáveis que permitiram a acessibilidade, a gentes e mercadorias, ligando locais da borda, gerando um tráfego fácil entre eles se comparado com a dificuldade que haveria em fazer o mesmo por terra. O que foi primordial para o desenvolvimento económico de toda a região lagunar. Dessas calles destacam-se, hoje ainda: A «calle Grande» que vai de S. Jacinto para norte (até ao Carregal Ovar)18. Por alturas do Moranzel19 divide-se num outro canal, o da «Ria da Murtosa» que atravessa uma das zonas de maior riqueza agrícola (Pardelhas, Murtosa, Estarreja, Salreu, Canelas e Fermelã)20, designada por «Baixo Vouga». A outra calle continua para norte e segue até à Torreira. E é este braço que na «Varela» se divide de novo, em dois: o que vai para Ovar (Braço do Carregal) e o que vai para Pardilhó (Braço da Ribeira). Da zona central da laguna, na latitude da barra, saem duas calles: uma a da «calle da Vila» que segue por Ílhavo e vai até ao Boco (Canal do rio Boco). Deste canal, chegado à Cale da Vila destacase um novo canal, o de S. João, que vai a Aveiro. Da barra, para sul, existe, ainda, um outro canal, o de Mira, que banha a Costa-

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Calles – canais estreitos, profundos, aptos para navegação interior.

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Este cordão de areias que separava a ria do mar, a norte de S. Jacinto até Ovar foi conhecido por GELFA. Estes terrenos de pastagem eram referidos no foral de Ovar, de 1514, por «montados da gelfa». O primeiro aforamento destes terrenos data de 1283, concedido por El-Rei D.Dinis. 19

A designação inicial de Moranzel, também designado por «Bico do Milho», foi variando: «Mondazel» (1802), «Mundazelle» (1805)», «Mundazel» (1876). Vol.XIII A.D.A., p. 21. 20

Entre os esteiros de Salreu e Estarreja, desagua o rio Antuã.

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Nova e a Vagueira, seguindo até ao Areão e que em tempos recuados (Séc. XVII) chegaria a atingir a barrinha de Mira.

Fig. 5 – Calles da Laguna.

Nem sempre foi este, exactamente, o desenho da paisagem lagunar. A posição das diversas barras – ligações da Laguna ao mar –, fizeram surgir novos altos fundos que caprichosamente obrigavam as águas da ria a os contornar. Assim aconteceu com Canal do Espinheiro, que se desenvolve por leste do Monte Farinha, sendo 18


um de maior profundidade depois da abertura da nova Barra, em 1808. Importa, pois, é referenciar a existência das grandes vias líquidas de comunicação lagunar. Que eram até tempos ainda recentes, mais concretamente até ao Séc. XIX, as vias privilegiadas de interligação entre populações e centros produtivos, porquanto até à referida data foram praticamente inexistentes as vias de comunicação terrestres, na zona, dada a complexidade do solo cortado por inúmeras, e algumas bem profundas, veias líquidas. Cursos de água que dificultando (ou até impossibilitando) a sua transposição, tornavam desinteressantes e penosas, ou até impraticáveis, as deslocações por terra. Basta desde já reter: – a viagem numa embarcação (barca) lagunar, entre o Carregado (o ponto mais a norte), e Aveiro, demorava, no sentido norte-sul, pouco mais que três horas. No Séc. XIX, por terra, esta viagem demorava cerca de dois dias a consumar. Por norma a viagem pela ria fazia-se aproveitando a noite, o que se não podia fazer por terra, tão perigoso se tornava tal intento (!). Na Laguna despejavam vários rios. Desde logo o mais importante, o rio Vouga21, que foi outrora um rio profundo, navegável até uma apreciável distância por embarcações de alto bordo. Especialistas 22 identificam como aproximadamente de 9 m, o assoreamento deste rio num dos seus pontos mais a montante, o Marnel, bem lá no interior, próximo de Águeda.

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O Vouga já conhecido desde Plínio-o-Velho, com o nome de Vagia, ou Ouakoúa (Estrabão) apud GUERRA, Amilcar, «Plínio-o-Velho e a Lusitânia», in Arqueologia e História Antiga I, ed. Colibri, F.L.L., Lisboa, 1995, pp. 32 e 81 (PLIN.4,113). 22

Lopes, Luís Seabra, in «A estrada Eminio – Talábriga – Calle» – (Revista de Conímbriga, Vol.XXXIX, 2000).

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O Vouga23 tem diversos afluentes: as ribeiras de Sul, Troce e Ribamà, na sua margem direita, e ainda, o rio Caima. Na esquerda, o rio Águeda (formado pelo rios Alfusqueiro e Agadão), e o rio Cértima. E ainda outros de menor engrossamento: o Antuã (formado pelo Ul e Ínsua), e, no braço de Ovar, ainda, o Caster. No sul da laguna, destaque para o Rio Boco, em tempos um rio de expressivo caudal e grande profundidade, com porto de acolhimento e resguardo, em Vagos. Era então navegável até às zonas férteis da Gândara, as quais servia, permitindo o acesso àquela região interior a navios de alto bordo que dali saíam carregados com produtos agrícolas em que a região era muito rica. No braço de Mira apenas ainda hoje existem umas pequenas valas de água (ribeiras) como a «Vala Velha» e a «Vala de França».

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O rio Vouga que desaguava mais a norte, na calle do Chegado, alterou-se a partir de 1813/15, deslocando-se e dando origem ao Rio Novo do Principe, em homenagem ao Principe Regente, futuro D. João IV.

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Cap. 2 – A Arte Naval Lagunar 2-1 Embarcações de alto bordo Voltemos à referência do Séc. X como a data provável em que se teriam iniciado os fenómenos naturais que iriam conduzir à formação da Laguna. Interiorize-se esta data para fixar a ideia de que até ali o mar beijaria toda a costa ao longo da reentrância que, começada cerca de Ovar, se estendia até depois de Mira, ao Cabo Mondego. Poderemos assim entender, melhor, a razão para que se tivessem desenvolvido duas expressões (ou categorias) de arte naval na área geográfica lagunar (de dimensão e conceito muito diferentes). Que iriam coexistir até tempos bem recentes com especificidades (estatuto e processos) diferentes, pois que serviram finalidades e objectivos bem diferenciados. Uma dessas finalidades materializou-se na construção de embarcações de alto bordo para navegação continuada no mar. A outra, estruturalmente bem mais comedida, mais artesanal, abordaria as embarcações apropriadas para a labuta em águas interiores: – da laguna e dos rios que nela desaguavam. Interessa-nos neste trabalho fazer a abordagem da segunda destas expressões – ou categorias – da arte naval local. A de menor complexidade estrutural, sem dúvida, mas não menor no engenho e na arte com que foi sucessivamente reinventando formas 22


especificamente dirigidas à satisfação de determinados e precisos fins que lhe foram suscitados ao longo dos tempos. Não deixaremos, contudo, de fazer umas ligeiras referências – muito breves – sobre a arte naval que produziu, primeiro em épocas longínquas as pinaças, barcas (fig.6), naus e caravelas, e que, depois, em período breve e ainda relativamente recente, os iates de cabotagem, os lugres (e muitos outros navios) de dimensão (já) apreciável. Pretendemos com essas notas, ainda que ligeiras, evocar o estritamente suficiente para nos ajudar a perceber como certamente da prática da construção das grandes embarcações, adveio muito do saber e experiência, depois, ou simultaneamente, utilizados na arquitectura de embarcações locais, ligeiras. As primeiras referências à navegação costeira – nenhum navegante se atreve a viajar no seio do mar Atlântico, e a afastar a sua rota da costa24 –, em águas abertas, citam como embarcações que a praticavam junto à foz do Vouga, as já referidas barcas25, baixéis ou pinaças. Tratava-se de embarcações de alto bordo26 empregues na captura das espécies em que o mar era pródigo nesta costa do litoral de Aveiro – yrez, sibas, baleias, chocos, azevias, mugens, solhas e outras – muitas delas reservadas para a dieta nos Mosteiros, ou para satisfazer em vitualhas piscícolas, a Coroa ou os Fidalgos, aquando de visita esporádica à região27. 24

Edrisi geógrafo árabe (1100-1165 d.C.) apud DOZY; R., GOEJE, Description de l'Afrique et de l'Espagne par Edrisi : texte arabe publié pour la première fois d'après les mans, de Paris et d'Oxford avec une traduction, des notes et un glossaire, Leyde, Ed. E. J. Brill, 1866. 25

Esparteiro, António Marques, in «Dicionário Ilustrado de Marinha».

26

Nas Inquirições de D.Dinis refere-se o tributo a pagar pelas barcas e pinaças que viessem descarregar a Ovar. 27

Inquirições de 1251, onde se determina que quando o Rei estivesse em StªMaria da Feira lhe deveria ser reservado um quinhão de cada caravela, Lamy,

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Fig. 6 – Barca28.

Data do reinado de D.Afonso III o aparecimento de documentação referindo já então a caravela de pesca29. Este rei ter-se-ia preocupado em difundir este tipo de embarcação pelo litoral, impulsionando decididamente o fomento da construção naval, o que levou ao aparecimento e fixação de várias póvoas marítimas ao

Alberto de Sousa, in «Monografia de Ovar», p.153. Inquirições de 1284, onde se refere que dão a el-rei de cada pinaça (…) um cambo de pescado (…), Lamy, Alberto, in «Monografia de Ovar», p. 153. 28 Seriam embarcações de pequeno porte, talvez de 20 a 25 tonéis, em geral de boca aberta, ou de uma só coberta que se construíam para viagens largas. A ré e a proa eram aguçadas e arvoravam em geral um só mastro de muita guinda com uma enorme vela de pendão. “Nas navegações orientadas pelo Infante D.Henrique, empregaram-se primitivamente barcas, por certo com velame redondo, e depois utilizaram-se embarcações de maior porte e velame latino, denominadas barinéis e caravelas, sendo estas últimas que em seguida foram adaptadas e melhoradas para o conseguimento dessa dificultosa navegação” (Quirino da Fonseca). 29 No foral de Vila Nova de Gaia, designada por Vila Velha do Porto (1255), há referências a tal embarcação. Admite-se, que por certo, no reinado de D.Sancho I os portugueses já tinham em sua posse a referida embarcação. Fonseca, Quirino da, in «Origens da Caravela Portuguesa» ed. Chaves Ferreira, 2003, p. 69.

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longo da costa atlântica portuguesa. Embora Sampaio deplore não ter encontrado documentos que provem a vida marítima em Aveiro, não deixa de afirmar não haver exagero que isso se tenha verificado na embocadura do Tejo30. Do ano de 136331 reza a determinação de D. Pedro I para que o vintaneiro dos homens do mar isentasse o barqueiro da passage de Cacia, de servir na frota real. No Séc. XIV, podemos colher referências32 de que antigamente, barcos de alto bordo navegariam até ao Rio Boco. Onde em Fareja33 se admite ter estado localizado um dos mais importantes estaleiros navais lagunares da época. O Foral de Lisboa (1377) refere Aveiro como porto de referência com quem se tinham contactos para mercadejar. É sobejamente conhecida a citação34 de gentes de Aveiro terem, conjuntamente com as de Viana e dos Açores (Terceirenses), constituído, nos séculos XV e XVI, uma das primeiras frotas de pesca sedentária35 a instalar-se nas costas da Terra-Nova36. Em 1552 Aveiro armava 150 navios de alto bordo dos quais 60 iam aos

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Sampaio, Alberto, in «Estudos Históricos e Económicos», ed. Documenta Histórica, 2ªed., p.73. 31

Doc. LXX, in «Documentos Históricos – Milenário de Aveiro» ed. Câmara de Aveiro 1959. 32

Carta de D. João I de 30 de Abril de 1394. Madail, in «Col. Doc. Históricos», Tomo I, p. 145, ed. Câmara de Aveiro 1959. Doc. LXXVII. 33

Também designado em tempos anteriores por «Forja», local de execução de apetrechos navais em ferro. 34

A notícia de que barcos de Aveiro já pescavam na Terra-Nova, surge no Tombo da Confraria de Sta.Maria de Sá na p. 80, Doc.1519 (Neves, Ferreira, in «Resumo Histórico da Barra de Aveiro» Vol.XIII do A.D.A. 35

Para maior informação sobre esta colónia, sua localização etc, consultar «Nas Rotas dos Bacalhaus» ant cit.p., 36. 36

Fonseca, Senos da, in «Nas Rotas dos Bacalhaus», p. 20 ant.cit.

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mares da Terra-Nova37, construídos em estaleiros situados na Calle de S. João (fig.7). Há contudo que assinalar ter esse movimento piscatório em direcção ao mar do norte, sido já iniciado muito anteriormente, antes mesmo da assinatura do tratado firmado, em 133538, entre Eduardo III de Inglaterra e D.Afonso IV.

Fig. 7 – Estaleiro na Calle de S. João (El Atlas del Rey Planeta39).

A arqueação dos navios armados neste porto, no referido século, atingindo os 5.060 tonéis só era excedida pela dos portos de Calle (Douro) e Lisboa40. Nos estaleiros referenciados na calle de S. João, 37

Sérgio, António, in «Introdução Geográfico-Sociológica à História de Portugal», p.164. 38

Fonseca, Quirino, ant cit., p.85.

39

«El Atlas del Rey Planeta» por Pedro Teixeira Albernaz (1634), ed. Nerea, 2003, mapa 44. 40

Costa, Pe.Carvalho da, in «Corografia Portuguesa», ed.da Comissão para as comemorações dos Descobrimentos Portugueses (DVD), sd.

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sitos no canal de acesso à Villa de Aveiro, há notícias de, aí, se terem construído41 Naus de elevada capacidade de carga. D.Manuel I, em 1506, fez uma encomenda aos estaleiros de Aveiro de uma nau de 400 tonéis. E posteriormente, em 1512, é-nos referida a concessão feita pelo mesmo monarca de um pagamento de 300.000 reais por conta dos 750.000 reais que haveria de receber um mercador de Aveiro (de nome Lopo Roriz) para a construção de uma Nau42. Deveria ser razoavelmente desenvolvida a capacidade de construção local de tais embarcações43, por aquele tempo (séculos XV/XVI), se atentarmos ter sido Aveiro uma das bases de armamento que se distinguiu com a contribuição de uma esquadra para a expedição de D.Sebastião ao norte de África (157844). E já anteriormente, em 1571, D.Sebastião preocupado com os ataques à grande frota de navios que iam pescar bacalhau à Terra-Nova, teria fixado, em 3 de Novembro do referido ano, as condições em que os navios se deviam agrupar para se defenderem dos mesmos. Feitas estas breves referências, impõe-se equacionar quem teriam sido (?) os inspiradores desta arte que por aqui se foi fixando, e desenvolvendo, tornando-se ela própria um instrumento privilegiado no desenho do espaço económico, ao proporcionar o veículo mais adequado e expedito para estabelecimento de fluxos entre produtores, consumidores e intermediários. Não percamos de

41

Por esta comodidade se fabricavão outro tempo em Aveyro tantas embarcações que sahião (como diremos) sessenta nãos para a pescaria na Terra-Nova: e mais de cem carregadas de sal; Costa, Pe.Carvalho ant.cit. 42

Doc. CXLVI, in «Documentos Históricos – Milenário de Aveiro», Tomo I, ed. CMA, 1959. 43

No rol enviado a D.João III, constata-se que de 1536 a 1552 se teriam construído 70 embarcações de alto bordo no total de 5.100 tonéis. ADA Vol.V, pp. 215 e 222. 44

Esta esquadra saiu de Aveiro em 25 Junho de 1578.

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vista que ainda, em 182945, se atribuía a debilidade do comércio interno português, à falta de comunicações fáceis. Sabemos com alguma certeza que nos anos 800 d.C. os navegadores vindos lá do Norte, os irredutíveis e pouco cordatos povos normandos, num tempo em que a costa do litoral apenas deixava antever um escondido porto de acesso a rudimentares agregados urbanos, sitos muito lá para o interior do Vouga, por aqui saquearam e pilharam, no intuito de se abastecerem do necessário para continuarem as suas viagens para sul, a caminho do Mediterrâneo.

Fig. 8 – Ataques Vikings à Peninsula46.

45

Baptista, Joaquim, in «Reflexões sobre a Navegação no Rio Vouga – 1821».

46

Invasões Vikings: 842 – Chegada à Corunha; 844 – Ataque a Lisboa; 859 – Sevilha; 966 e 971 – Novos ataques ao al-Andalus.

28


Não é de todo crível que as visitas esporádicas, destes povos conhecidos pelos árabes por al-urdumaniyyun (que quer dizer normandos), caracterizadamente violentas, truculentas e sanguinárias, permitissem uma aproximação. E muito menos facilitassem um clima de entendimento bastante para possibilitar a transmissão do conhecimento muito próprio e inimitável dos métodos de construção dos notáveis cascos trincados dos seus drakkars47 e knarrs48. Embarcações com que esses povos deambularam pelo Atlântico Norte e Central, e depois baixaram ao Mar Mediterrâneo 49.

Fig. 9 – Knarr (réplica). 47

Os drakkars (tipo shell built) atingiam os 30 m de comprimento por 6 m de boca. Chegavam a atingir 15 nós de velocidade, e eram tripulados por 40 marinheiros. Os knarrs tinham 12 a 15 metros de comprimento por 3m de boca, sendo tripulados por 10 marinheiros, deslocando 40 ton. Está hoje verificado que os seus conhecimentos náuticos lhe permitiam traçar cartas náuticas com erros de 5% do que é agora conseguido. 48

As embarcações Vikings eram notáveis; a sua característica principal era ter um perfil alongado, casco trincado, com quilha pouco profunda mas longa e arredondada, permitindo navegar em mar aberto ou ter acesso às águas pouco profundas dos rios. 49

Em 1026 há documento de um regaste de três moios de Sal, pago aos piratas normandos em Ovar. Oliveira, Mons. Miguel, in «O Furadouro e a sua História Antiga», 2004, p. 2.

29


Já mais certo, e muito mais provável, foi ter sido esta região visitada regularmente pelos mercadores árabes que desde há muito transaccionavam mercancias na região do Mondego50. O espírito de tolerância destes invasores (?!), aliado à sua reconhecida vocação mercantil, tornariam bem mais fácil e efectivo o contacto com as gentes do norte de África. Ao ponto de permitir, ou até incitar, a absorção dos rudimentos de uma tecnologia naval que naqueles povos era já muito adiantada. Que ia da construção de caribes (càrabos) e derivados,

Fig. 10 – Càrabo árabe.

ao conhecimento de novos equipamentos e de uma nova arte de marear, sendo de todo provável ter acontecido a integração de gentes locais nas frotas daqueles povos mediterrânicos, que com 50

Cortesão, Jaime, in «Os Descobrimentos Portugueses», Vol. I, p.166, refere haver notícia de, em 1193, existirem indícios de povoação na foz do Mondego, tendo sido este um dos primeiros portos a ter relações continuadas com o exterior.

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rapidez, antecipada e surpreendentemente souberam ler com eficácia e discernimento, o Mégistos Ptolomaico, que veio a ser difundido pela Europa como o Almagesto 51. As naus, as pinaças, e depois as caravelas, foram claramente inspiradas nas técnicas de construção naval árabe, ao tempo em que se transmitiam os primeiros conhecimentos de navegação costeira com a utilização de cartas de marear, da navegação pela polar, da orientação pela bússola que aqueles povos de há muito eram já exímios detentores.

Fig. 11 – Caravela pescareza.

51

«Almagesto» – tratado astronómico, de Claudio Ptolomeu de Alexandria, escrito no Séc. II, que descreve o movimento geocêntrico e os movimentos de estrelas e planetas, equinócios e solstícios, entre outros.

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Ao vermos este barco (caravela pescareza) (fig.11) na faina da pesca, sentimos estar na presença do verdadeiro càrabo latino (...) a caravela latina da pesca dos primórdios das Descobertas, diz-nos Quirino da Fonseca52. Mas a Laguna entraria em grave crise a partir dos Sécs.XVII/XVIII, atingindo o seu momento mais crítico a partir de 175053, que levou ao quase total desaparecimento das frotas de alto bordo, quer as utilizadas na pesca do bacalhau, na Terra-Nova, quer as que serviam o intenso movimento comercial de cabotagem no transporte de sal e outras mercadorias (cereais, azeite, vinho, tecidos, madeira, couros, e outros). Tal facto foi consequência da impraticabilidade de demanda do porto de Aveiro por embarcações do mar alto, tendo como causa o assoreamento da barra, sita, então, muito a sul do paralelo das gafanhas. Só no Séc. XIX o porto começaria, de novo, a ser praticável e acessível. E é já nessa nova configuração geográfica, que não só iriam (re)nascer os estaleiros na já então cidade de Aveiro 54, como ainda se instalariam novas unidades de construção naval, em Ílhavo 55 (depois transferidas para a Cale da Vila56), e até na Murtosa57Estarreja58 e Ovar. Estas novas unidades 52

Fonseca, Quirino da, ant. cit. p. 65.

53

Em 1790 o estaleiro da Ribeira de S.João finda a sua actividade.

54

O Orion teria sido em 1921 o último barco construído na cidade, junto à ponte da Dobadoura, por José Maria Lemos. 55

O «Razoilo» um dos primeiros lugres a sair de Aveiro para a pesca do Bacalhau, no início do Séc. XX (juntamente com o «Atlântico»), foi ainda construído em Ílhavo, em 1889, na Malhada. Fonseca, Senos da, in «Ensaio Monográfico de Ílhavo», ant.cit. p. 245. 56

José Maria Mónica mudaria os seus estaleiros para a Gafanha, em finais do Séc. XIX; aí se instalaram outros seus familiares, Benjamim, Arménio, e Manuel Matos. 57

Na Murtosa (no Bico) construíram-se, desde 1922 barcos de apreciáveis dimensões, de onde se destacam os Lugres «Maria da Conceição» e «Maria das Flores» (1946). Um dos Mestres de maior nomeada foi José Maria Lopes.

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industriais eram já capazes de construir embarcações de assinalável envergadura. Primeiro produzindo inúmeros iates de cabotagem, e,

Fig. 12 – Iate de cabotagem fundeado.

mais tarde, os lugres da pesca de bacalhau numa produção continuada até meados do Séc. XX, data em que desapareceram. Neste período foi assim retomada a tradição vinda de antanho, ainda e só, empírica, legada em tradição familiar, que não pelos livros, o que não obstaculizou que tivesse atingido grande notoriedade.

58

No concelho de Estarreja, entre outras, há notícia de entre 1905 e 1924 se terem construído embarcações de deslocamento apreciável. Entre outras o hiate Nazaré 2º, Lugre bacalhoeiro Encarnação, Lugre José Estevão etc. Referem-se entre outros os mestres José Maria Lopes, Joaquim Ministro, Francisco Matos, Júlio Lopes Ramos, António Farinhas, e Luís Câmara. Carvalho, António Victor N., in «A Construção Naval no Norte da Ria de Aveiro», inserido em Terras de Antuã Nº3, Ano 3, Nov. 2009.

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Fig. 13 – Lugres Bacalhoeiros.

2-2 Embarcações de bordo raso Vejamos agora o que se teria passado, com a arte naval lagunar, a menor – se da outra a quisermos distinguir –, centrada na construção das pequenas embarcações para labuta e mareação em águas interiores, ou, quando muito, algumas delas afoitando-se (em perfeita demência heróica) na borda do mar. No já anteriormente referenciado Portulano de Petrus Visconti, era perfeitamente dectetável a reentrância da costa baixa e arenosa, que de Ovar se estendia para Sul, até perto do Cabo Mondego. Nela desaguavam alguns rios59 que antes do processo de formação lagunar teriam dimensão, caudal e extensão apreciáveis, como anteriormente referidos. Por efeito dos aluviões que iam sendo depositados, e à medida que as correntes marítimas provocaram o aparecimento e a extensão para sul de um cordão de areias que os 59

Referidos anteriormente.

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prendeu no seu interior, o nível dos altos fundos foi-se gradualmente enlevando, dando origem ao aparecimento de muitas «ilhas» disseminadas pelo espaço lagunar. Em 1200 d.C., o cordão norte teria já atingido um local onde foi erecto o oratório da Sr.ª das Areias60, sítio onde é hoje S. Jacinto61. À medida que os altos fundos se iam estabilizando, o «homem lagunar» não perdeu tempo apressando-se a murá-los e logo a os dividir, espartilhando a água salgada (salsugem) em tabuleiros para a expor ao vento e à torreira do sol, de modo a que dela brotasse o sal. Emoldorou-se então a laguna de vidraças, parecendo caídas do céu para reflectir e inundar a paisagem de um azul vivo e fresco, encharcado de sol fulvo e impetuoso, estonteante. À noite as avezitas vinham procurar refúgio nos malchadais para cumprimento de esponsais aprazados, ali restando até ao primeiro piar que anunciava o despertar da laguna. Ainda o sol não se aprazava a surgir lá por detrás dos montes, e já o marnoto transformador de paisagem percorria, lesto, as barachas em trabalheira esfalfante 62. E daí nasceria a primeira actividade económica atractiva para gentes vindas de outras partes, seduzidas pela relevância económica de um produto raro e indespensável à vida, para cuja produção a laguna se mostrava tão pródiga e os agentes atmosféricos tão coniventes. Seria esta actividade a que primeiro ajudou à fixação dessas gentes numa zona encharcada, inóspita, pouco prometedora, que se estendia para norte e para o sul

60

Srª da Areias, casa de muita devoção fundada por pescadores de Ovar. No ano de 1744, veio na rede a imagem a que o povo chamou de S.Jacinto que fez esquecer o orago antigo. Oliveira, Mons.Miguel, ant.cit. p. 9. 61

A tradição (ou lenda) atribui este nome de orago S. Jacinto, a uma imagem que teria arribado à praia numa rede de pesca. Aliás, a mesma tradição atribuída para o orago S.Paio da Torreira. 62

Tarefa esfalfante, a correr afadigado sobre traves e barachas com passos levezinhos de gaivota (…) a bulir e rer sob a brasa do sol (…) manaias arregaçadas até à virilha, envernizado pou uma transpiração que (…) brilha como unguento.Moura, Frederico de, in «Ressonâncias», p. 16.

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de um agregado populacional a despontar (Alavário)63, que mais tarde cresceu, ganhando alforria de centro mercantil de excelência, aceitando proclamas de baptismo, como «Aveiro».

Fig. 14 – Salinas.

A paisagem lagunar iniciada a sua transformação no Séc. X e seguintes, passou por mutações rápidas à medida que iam surgindo no seu interior os altos fundos. No Séc. XV todas as ilhas interiores que a povoam actualmente, estariam, já então, completamente formadas. Com a mudança profunda da geografia costeira as embarcações de alto bordo viram impossibilitado o acesso a zonas interiores, o qual até ali teria sido directo. E apenas a calle de S. João permitia a demanda pelas mesmas, sendo por isso necessário criar um 63

Allavarium, Alavário (menos certo Aviarium) teriam sido terminologias de tempos anteriores à nacionalidade, do agregado que tomou o nome definitivo de Aveiro. Para o assunto consultar: Gaspar, Mons. João, in «Aveiro na História», ed. Presença, 2ª ed., 1984.

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entreposto de transbordo de mercadorias, descarregando-as em Aveiro e, daí, fazer a sua distribuição para as zonas interiores. No sentido inverso era preciso carrear do interior as mercadorias ali produzidas, trazendo-as para as embarcações que as esperavam para as levar aos diversos portos do País e até para fora dele. De todas as mercadorias, o sal era das mais procuradas. A laguna tinha-se tornado um centro produtor de excelência deste bem essencial.

Fig. 15 – A Laguna no Séc. XV64.

Mas não era só o sal a necessitar de transporte para o trazer do local da sua feitura para os armazéns de recolha, e de seguida o distribuir pelos portos secos ou pelas embarcações de alto bordo que o esperavam para o embarcar nos seus porões. Exigiam-no, ainda, 64

«El Atlas del Rey Planeta», ant. citado.

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todos os materiais (torrão, areia, lama etc.) necessários para a construção e manutenção das marinhas. O tipo de embarcação capaz de permitir este tráfego teria de ter características adequadas, muito especiais, para o fim em vista. Entre outras, adiante referidas com mais pormenor, deveria ser um meio de transporte capaz de se movimentar nas veias líquidas de acesso aos pontos mais esconsos da paisagem lagunar, por vezes sitos nas beiradas de enfezados canaletes. Durante a época da preparação e aprontamento da marinha, era necessário carrear todos os materiais indispensáveis para a sua reconstrução, na reparação de estragos que a natureza lhe provocara durante o inverno, aprontando-a para, finda a primavera, receber e expor, a salsugem, ao excesso dos elementos naturais (vento e sol) para a produção salícola. Produzido o sal, amontoado em cones alvos distribuídos no malhadal, apajado e cobertos para os defender da invernia até que chegado o momento do seu levantamento, carregando-o para os entrepostos onde se fazia a sua recolha e armazenagem. E depois era, ainda, necessário, transferi-lo para os porões das embarcações de alto bordo que aguardavam no canal principal, prontas a levantar ferro e partirem, carregadas com este precioso elemento, o sal da santa Aliança indispensável à vida naqueles tempos. Levavam-no para uma diversidade de portos nacionais mas desde logo, e também, para portos estrangeiros (Galiza, Norte da Europa, Génova etc.), afadigados em o entregar nos locais onde a sua falta se fazia sentir. Eram tão intensos e importantes os trautos desta exportação que Aveiro acolheu nos seus bairos ribeirinhos (Alboi e da Ribeira) mercadores estrangeiros que aqui assentaram arraiais para assim melhor zelar pelos seus interesses. Aveiro tornou-se centro mercantil de excelência nos Sécs. XV/XVI. Desde tempos longínquos que os homens deram especial atenção ao sal afadigando-se na sua produção e logo depois na sua distribuição. O sal, consagrado pelos gregos aos seus deuses com a finalidade de corrigir o espírito doce ateniense, mereceu de Roma vassalagem. A ponto de lhe ser consagrada a «Via Salário» e ser decretado 38


monopólio do Estado. Foi um bem precioso, vindo dos primórdios da vida humana, de remotíssimas eras onde já era conhecido, tendo sido uma das primeiras mercancias a ser taxada com imposto: - era o «ouro branco», indispensável à vida. A Laguna depressa se tornaria um dos centros de importância significativa no contexto nacional e europeu.E logo que a pesca do bacalhau se tornou intensa, exigindo a salga para conservação do «fiel amigo» por um largo período de tempo, gerou-se uma desusada procura daquele bem que só os países do sul da Europa (e norte de África) eram substanciais produtores. De Aveiro saíram carregamentos brancos para os mais diversos portos vizinhos, nacionais e estrangeiros, para perto (Galiza) mas também para pontos longínquos da Europa (Génova, França, Inglaterra e outros bem lá do Norte). Mas não era só o Sal a exigir meios de transporte. Na realidade os locais da região onde se concentrava a riqueza produtiva65, estavam situados bem lá mais para o interior, para riba dos rios, em locais protegidos da pirataria e colocados bem perto das vias de comunicação existentes à data. Era preciso fazer lá chegar as mercancias produzidas na região lagunar (ou a ela chegadas); e de lá – dos centros de produção do interior – trazer o essencial para alimentar as gentes que por toda a beirada procuravam a todo custo se fixar pelos alódios ribeirinhos. Todo este intenso movimento gerado pela necessidade da troca de mercadorias só foi possível porque a arte naval lagunar respondeu criando embarcações possantes, adaptadas especificamente ao meio onde se deslocavam, e para o fim pretendido. Para conseguir o desiderato de conseguir navegar rio acima 66, era fundamental que 65

Curiosamente estes locais, servidos por veios de água, chamar-se-iam de portos secos. 66

Os grandes centros urbanos apareceram sobre as grandes estradas naturais e ao longo dos rios. Nesse tempo em que as costas, e os estuários dos rios, eram infestados por pirataria, certos lugares dotados de segurança e com condições favoráveis de acesso (…) muito mais quando se situavam em zonas profundas do

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essas embarcações calassem pouca água. E houve que as dotar de meios de locomoção que lhes permitissem aproveitar o que era abundante e gratuito na região: – a força do vento. Tornava-se assim menos árdua a tarefa de quem as tripulava, e obtinham-se excelentes ganhos na rapidez do transporte. Daí resultou um intenso movimento, rápido e seguro, de transporte das mercadorias, determinante para o desenvolvimento económico-social de toda a região. «O Mercantel» foi o instrumento desse arranque, a embarcação que esteve no princípio lagunar.

Fig. 16 – «Mercantéis» do carreto.

Mas certo é que a partir de determinada altura – mas desde logo muito cedo – o homem que tenazmente se procurava adaptar e fixar ao meio geográfico, nele se sedimentando, percebeu que a laguna estuário, tornaram-se fortalezas – mercados. Cortesão, Jaime, in «Os Descobrimentos Portugueses». Vol. I, p. 63.

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lhe permitia, em muito maior segurança que em tempos anterioresquando era apenas mar aberto –, ter acesso a uma riqueza piscícola bastante para o seu sustento.O homem deixou de ser pescador nas horas vagas da actividade de marnoto e passou a tempo inteiro, exclusivamente, a exercer as artes na Laguna. E mais tarde, outras actividades económicas se vieram juntar às anteriores, já que a Laguna foi-se mostrando pródiga na dádiva, um alforge prenhe de riquezas para explorar, que marnotos, pescadores, navegantes, arroteadores do moliço, se não fizeram rogados em aproveitar. Para permitir toda esta diversidade de actividades mas agora no remanso do meio líquido interior, muito diferente do mar aberto que o antecedeu, necessário era criar outros tipos de embarcações das até ali utilizadas (barcas, barinéus e pinaças).

Fig. 17 – Barinéu.

Desde logo a construção naval local teve de recriar embarcações a remo (e esporadicamente à vela), de baixo bordo e fundo chato, para permitir que toda aquela afadigada gentiaga deambulasse pela laguna, para lá e para cá, mareando-a em todos os sentidos. Foi 41


tempo de surgirem as «bateiras» a povoar ria, polvilhando-a de corrupio por todos os canais, canaletes e malhadas, numa actividade próxima, diária, em que o pescador fazia a maré a tempo de levar as espécies em que a ria era fértil, ao mercado mais próximo. Daí evoluiriam os «botirões», os «saveiros», os «chinchorros», e as «ílhavas»67.

Fig. 18 – «chinchorro» na borda do mar.

Sucederia nos finais do Séc. XVII ver-se a Laguna impedida de renovar as suas águas, dadas as condições deficientes da sua ligação ao mar. Em meados do Séc. XVIII a situação tornar-se-ia mesmo catastrófica. De facto, aquela ligação ao mar sempre pouco estável, variando de posicionamento, século após século, dada a sua configuração arenosa, foi-se permanentemente deslocando para sul. 67

Há toda uma imensidão de tipos de bateiras destinadas às mais diversas utilizações. Essas pequenas embarcações que raramente chegavam aos seis metros, adquiriam designação de acordo com o trabalho para que eram utilizadas: «bateira mercantela», «bateira de canelas», «bateira marinhoa», «bateira patacha», «bateira da chincha», «bateira caçadeira», «bateira da mugiganga».

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Ora à medida que tal se verificava as condições de sua acessibilidade foram-se, continuadamente degradando. O seu assoreamento resultou de uma cada vez maior dificuldade colocada, à renovação (entrada e saída) das águas interiores, o que ao longo do tempo acelerou a elevação dos fundos lagunares, provocada pelo continuado depósito dos aluviões dos rios que despejavam nela as suas águas. Esse facto seria o fim para o período áureo de desenvolvimento que se tinha verificado nos séculos anteriores, na região68, trazendo o desespero e o desalento às suas gentes. A estagnação das águas e consequente inquinamento, não só provocaram a destruição da vida na Laguna, como ainda originaram surtos pestilentos que ceifaram milhares de vidas69. O cheiro das águas estagnadas era pútrido, e do seu ventre emergiriam surtos pestilentos, pragas, verdadeiras pandemias que dizimaram uma boa parte da população. Houve, então, zonas populacionais ribeirinhas cuja população foi reduzida a um terço. A Laguna estava ferida de morte. Sem vida de nada servia. Aquela que outrora fora a promessa de tempos fartos, transformara-se em causa de morte e ou de provação. O homem da Laguna não cruzou os braços.

68

Amorim, Pe. Aires, in «Em Memórias sobre a Ria de Aveiro», podia ler-se: as terras lavradas estão fora do estado de cultura; morre o gado (…) adoece muita gente (…) e alguns médicos dizem que o peixe que vai pastando plantas (…) vem a ser nocivo. 69

Só Aveiro pás e 12.000 habitantes para 3.000, quase todos miseráveis e doentes.

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Fig. 19 – Pescador da Laguna.

E arregaçando as mangas do camisote, enrolando as manaias, descorçoado mas não vencido, passou-se – corpo e embarcações – para a beira-mar. Foi então tempo de levar os bateirões para a borda do mar e de se arriscar com eles na faina, ali na borda alterosa. Para isso as pequenas e frágeis embarcações foram estivadas no areal, abicadas ao mar, a olhar para ele, parecendo assim lhe querer tirar as medidas. E desse olhar, aos pescadores vindos da Laguna, lhes tomou a ideia ser o mar, tão só, uma ria em dias desarcados de sulada alterosa, mas nada que metesse medo e os consumisse em demasia. E logo as arrastaram até à borda para, embarcados nelas, afrontar a pancada da rebentação. Cedo se aperceberam que a empreitada nem sempre era suave. Bem ao invés quase sempre perigosa. Desprezando o perigo, afoitos e

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atrevidos, foram lançando as suas reduzidas artes entre-águas70, num exercício de demência impante. Certo é que não havia outra solução para sobrevivência. Não foi preciso muito tempo para constatarem que as bateiras, rijas de bordo na laguna, não tinham, contudo, arcaboiço suficiente e capaz, para resistir à inquietação do mar, que nesta desabrigada zona do litoral bate forte. Logo o engenho da mestrança local se propôs resolver tamanha inadequação: e do seu génio criativo saiu o portentoso e único, o «Meia-Lua» de xávega, o «Barco do Mar», o barco mais afoito, altivo e desafiador que alguma vez varou na costa portuguesa. De tal modo bem adaptado às condições de mar alevantado que logo por essa costa fora, nos locais onde o mar tinha características semelhantes, dele se apropriaram, imitando-lhe as formas. Umas vezes levando tripulações daqui emigradas, outras vezes já em mãos de outros pescadores locais que o adoptaram para a sua faina. Assim nasceu o «Barco de Xávega». Dele diz Dinis Gomes71ser de bicas aguçadas em riste de lanças medievais, lutador infatigável que serve de esquife à companha e de brinquedo ao mar, que sobe ligeiro à crista das ondas e desce, temerário, à profundeza dos abismos em busca do sustento dos pobres. Inigualável nas curvas sensuais dos seus bordos e pela atrevida elegância da sua proa.

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71

Assim designavam a zona do mar, logo que passada a pancada dos baixios. Gomes, Diniz, in «Costumes e Gente de Ílhavo», ed. CMI, 1989, p. 16.

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Fig. 20 – O «Meia-Lua» varado na praia.

Aliviada a crise lagunar houve que dar importância à preciosa recolha das ervagens que nela se desenvolviam.Cedo se percebeu que as mesmas, misturadas com os lodos do fundo serviam de mezinha curativa para os lodaçais arenosos que o homem pretendia transformar em terras de pão. Envoltas com os terrenos encharcados que o assoreamento punha a descoberto, as ervas marinhas serviamlhes de capa impermeável para reter a água doce das chuvas não a deixando esvair rapidamente, adoçando-os, mitigando a sede à semente, que posta à terra, despontava a medo, raquítica e enfezada, mas logo depois, acarinhada, ganhava alento para esverdear o acastanhado dos campos, alegrando-os de vida. E logo por eles se foram alapando uns casebres de meia de roda, a pontilhar a paisagem, por vezes já cobertos de uns canaletes de barro de um ocre vivo, humanizando o que ao princípio parecia nu. À medida que aumentava a fixação de novos colonos, e novos terrenos eram conquistados, maior era a necessidade de recolha de moliços, passando-se da apanha à borda, ao arrolado, para os catar em toda a fundura lagunar. Para isso foi preciso fresá-la com os largos pentes, os ancinhos, calados na borda de uma esquisita e singular, mas não menos chançuda, embarcação, pedida pelo 46


rústico lavrador à mestrança naval local. Houve engenho – e arte! – na resposta adequada que soube produzir uma embarcação totalmente nova, nas formas e nos argumentos, inexcedível na adequação para capaz cumprimento de uma tão singular actividade. E o lavrador virou embarcadiço. Com um pé a calar a forcada e logo o outro atolado nos pouco consistentes areais da borda, foi-se à laguna esvurmar alimento para as terras que teimosamente, com insistente e sempre renovado desvelo, fazia finca-pé em transformar. Desta necessidade de intervir na paisagem nasceu o «Moliceiro». Ferramenta que se mostrou fulcral, indispensável para o ciclópico trabalho de a modificar virando-a em seu favor.

Fig. 21 – Descarregando moliço na borda.

Mas certo, é que esta fama de engendrar respostas adequadas por parte dos mestres construtores locais às diversas solicitações, visando corresponder a demandas específicas de desempenho, com 47


singulares e bem conseguidas, e acertadas soluções, eficazes no trabalho e para lá disso, bonitas nas formas, ultrapassou fronteiras, correu litoral abaixo e chegou aos que se empenhavam no tráfico fluvial intenso no rio Tejo. Constatava-se, ali, ser necessário adequar embarcações medianamente possantes, já existentes, aos baixios dos sapais da beira sul do rio, para destes ter acesso à cidade ou a pontos interiores, lá muito para montante. Desafiaram-se os mestres navais da Laguna para o encargo de criar uma alternativa às embarcações do tráfego local daquele rio que desde tempos remotos, imemoráveis, eram, habitualmente, de casco redondo, exigindo por via disso um tirante de água apreciável. O que se pretendia, então, era criar uma embarcação que tivesse deslocamento muito variável, mas com a novidade de possuír fundo chato, para permitir, desse modo, o acesso a baixios nas beiradas ribeirinhas. Desse caderno de encargos nasceria o «Varino», nado pelas bandas de Aveiro e levado para o Tejo, para ali se tornar um dos ex-libris das embarcações tradicionais daquele rio 72.

Fig. 22 – O «Varino». 72

Chaves, Luís, in «Fragatas e Varinos» – Suplemento nº 10 da Revista Municipal – B.N. SA5402/1ª, chega a referenciar o «Varino» como o «Moliceiro» do Tejo.

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Por este breve resumo cronológico de mera apresentação das embarcações que vamos tratar em pormenor, adiante, estamos em condições de perceber, desde logo, que a história do Homem, aqui, pode ser lida, não nos testemunhos de grandeza e espectacularidade notáveis, deixados (já que a sua intervenção foi sempre epidérmica). Mas desde logo nas embarcações (mais notáveis) já que cada uma delas corresponde, define e identifica o momento (o facto histórico) de profunda transformação verificado no meio envolvente que originou irreversíveis mutações (económicas, de hábitos e costumes) nos grupos sociais que nele se tentavam inserir. Na Laguna trascenderam-se os títulos elegantes (A.Maury): – mais do que a terra e o homem, há que acrescentar as embarcações, para a fazer a historiografia de um modo correcto.

2-3 Recuperação do historial das embarcações lagunares Destas embarcações, hoje, já pouco resta. Umas perderam-se na memória dos tempos. De outras existem ainda ténues sinais de sobrevivência, numa recente consciencialização da necessidade de preservar o património marítimo, tradicional. Se excluirmos o «Moliceiro» de que se têm produzido muitos álbuns (mais com a finalidade de abordar a sua exuberância pictórica do que lhe contar o historial), das restantes só uma referência, aqui ou ali evidenciando uma ou outra singularidade, mas não um estudo sistemático que aprofunde formas e conceitos, e até, historial. Os trabalhos feitos – em nossa modesta opinião – sempre se focaram no descritivo da forma ou em uma ou outra particularidade (objecto), mas sempre desligados dos factores sociais que estiveram na sua origem (sujeito).

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Decidimos, pois, elaborar este trabalho. Nele se abordam cinco embarcações como referências maiores de uma arte inventiva, nascida e desenvolvida ao longo de mais de dez séculos da Laguna. São cinco embarcações que em nosso entender marcam de uma forma notória, momentos particularmente importantes, diremos mesmo decisivos, da história lagunar. Neste trabalho procuraremos condensar e alinhar dados que nos aproximem das datações em que teriam comparecido para ajudar o homem (mercantis, peixeiros, pescadores e ou moliceiros) – o colectivo – na esfalfante tarefa de defrontar a hostilidade do meio, e com elas construir (ou recuperar) um mundo de esperanças. Tal datação permite-nos desvendar muitas questões que restam por esclarecer, de modo a melhor percebermos como é estulto e fora de toda a lógica – e de falta de observação – ir desencantar deslocadas e ilógicas – para não dizer aberrantes! – inspirações, longínquas no tempo e fora de portas, a nosso ver perfeitamente dispensáveis. Para lá do simples enfeite erudito de quem o afirma. E depois, dos que à falta de aprofundamento, citam, insistente e continuadamente, mas de cor, os putativos estudiosos. De muitos deles se pode com evidência afirmar apenas terem «olhado um caso», nunca aprofundando um historial. Entendemos, ainda, ser essencial deixar para a história o registo da recolha dos planos geométricos das embarcações estudadas. Para o efeito foram construídos à escala, modelos, de todos elas, para melhor procedermos ao seu cuidadoso estudo. E só depois, utilizando as novas técnicas da informática, desenvolvemos os planos em 3D (três dimensões), o que concede todo um manancial inesgotável de informação das formas, dimensões e detalhes construtivos, ao permitir uma infinidade de planos de apreciação (visualização), cortes transversais e ou longitudinais, que pensamos úteis para a constituição de um espólio para memória futura. Que de um modo fácil, directo e intuitivo, permitirá um acesso informativo a todos os que se venham interessar por estas embarcações históricas da Laguna. 50


Tivemos a rara felicidade de navegar em todas elas, à excepção da «ílhava», de que não restam vestígios, desaparecida que foi no início do Séc. XX. Tivemos, pois, a possibilidade de as dirigir, observar, estudar e apreciar, no desempenho concreto.

Fig. 23 – Ao leme do «Moliceiro».

E assim melhor perceber a panóplia de respostas encontradas para dar solução a uma diversidade de requisitos que com o andar dos tempos se foram colocando aos mestres carpinteiros navais sedeados na Laguna. Uma coisa é certa: – nada nestas embarcações é negligenciável. Tudo está lá para cumprimento estrito de uma qualquer pretensão de desempenho atinado, concebido na melhor e mais simples, e engenhosa, forma. Só nelas praticando se pode perceber o que era pedido, e como foi, pormenor a pormenor, concretizada e facultada a resposta.

51


Perceberemos assim, melhor, como num simples pau de pontos, são contidas todas as ordens que permitem esventrar um pinheiro, e dele fazer surgir, com exactidão suprema, caverna após caverna, tábua após a tábua, forro após forro, as linhas harmoniosas da embarcação pretendida, sem que um plano, um risco, uma medida (métrica) sejam necessários até à consumação final da embarcação. Entendamos então, um pouco, a suprema questão deste saber vindo no tempo: mostrado um plano geométrico a um desses artífices ele seria totalmente incapaz de o interpretar. O mestre não faz uma embarcação segundo um plano, mas em consequência de formas gerais que retém memorizadas, repetindo gestos segundo uma certa ordem que foi praticando, ano após ano, em atenta aprendizagem com um outro mestre da anterior geração. Até ao dia em que, munido da sua tabela secreta – a sua vara de pontos – ganha alforria e parte, ele também, para o momento em que lançará às águas da ria a embarcação que levará aposta na porta do leme a «sua» marca, que o identificará para o historial da Laguna.

Fig. 24 – Símbolos de identificação73.

73

Quadro existente no MMI.

52


Todas as embarcações que reunimos nesta publicação tiveram um berço comum: nasceram num dos diversos estaleiros (por vezes um simples galpão improvisado, quando não uma simples eira), por um qualquer dos muitos recantos escondidos em um dos muitos canaletes ribeirinhos. O destino da arribada das embarcações aqui construídas, não foi igual para todas elas. Umas não saíriam da Laguna, mareando em permanência nas suas águas calmosas, quase sempre aquietadas. Outras foram descarregados na borda, de frente para o mar espiolhando a melhor altura para nele ousar entrar. Outras vararam o mar e foram levadas para a faina do carreto no Tejo. A região que século após século por acção da natureza foi ganha ao mar, seria no início completamente desinteressante. Cortada por imensas veias (calles) que lhe restringiam continuidade e dificultavam o acesso aos incipientes núcleos populacionais que se fixaram à sua volta, obrigaria as primeiras gentes aqui chegadas a se alaparem nos pontos secos. Aí se foram fixando. E fazendo uso de toda a imaginação e muito querer, intervieram sobre a hostilidade circundante, virando-a a seu favor. Foreiros que lentamente se foram emancipando do senhorio, travariam ao longo dos séculos uma luta férrea, amargurada e esfalfante, num constante esvair e logo recobrar da esperança que nunca morreu de todo. Ainda o pé se não fincara na terra menos alagada, ainda movediça, rôta, e obstinadamente se atiravam a revolvê-la, amansando-a, secando-lhe as entranhas encharcadas, e já o outro mergulhava no salgado lagunar circundando as suas águas com os muros de torrão, a dividilas em quadrículas espelhadas para que o sol nelas se remirasse e as aquecesse, na espera que o sopro do vento aguilão, abafado e convulso, nelas fizesse brotar, como que por magia, a flor do sal. E recolhida esta, logo a amontoavam em alvos cones semeados pela paisagem lagunar, num labor esgotante de exsudação continuada

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sob a torreira escaldante. Teria sido a feitura do sal, a primeira actividade económica interessante74 a justificar a fixação das populações nesta inóspita região 75, mesmo em período anterior à formação da Laguna (ou desde o início). Em simultâneo viriam os lavradores que desciam, eles também, amiúde, à borda, em actividade anfíbia em procura dos agraços para as suas terras. E à medida que a Laguna se espraiava, logo uns incipientes pescadores lhe procuraram nas entranhas alimento, enquanto sazonalmente saltavam às marinhas para dar mão ao rodo ou para as chapear, refazendo na primavera o que o inverno destroçara. Certo porém, é que logo que a Laguna se tornou rica em espécies, o pescador individualizou-se na sua actividade, assumindo-a a tempo inteiro. Tudo pois, gente que encontraria na ria a sua circunstância, vivendo ao compasso das vicissitudes por que aquela passou. Eufóricos, quando as águas da ria foram ricas em espécies, ou temperadas com a salsugem no grau adequado para a produção de sal. Atormentados, desalentados e descrentes com os tempos pestilentos que semearam a morte, quando as águas ficaram aprisionadas, apodrecendo, na tenaz em que os cabedelos se foram transformando à medida que iam crescendo, obstaculizando a ligação do interior ao mar, impedindo a sua renovação, o que as transformaria em salobras e inquinadas, incapazes de gerar vida.

74

No reinado de D.Afonso IV, havia já o registo de 500 salinas a produzir sal.

75

Pelo menos há desde logo, no Séc.X (959) conhecimento da existência de exploração da Sal em Aveiro (doc. de Mumadona Dias, in «Colectânea de Documentos Históricos – Milenário de Aveiro», Vol. I, p. 8 e seg.

54


Quando Plínio “O Velho”76 nos deu conta da existência, no Séc. II (d.C.), de marinhas de sal situadas lá para o interior (Alquerubim), fácil é perceber da importância do rio Vouga como verdadeira via de comunicação por onde, então, circularia aquele precioso bem, indispensável para a vida. O rio era então navegável até Pessegueiro do Vouga, cinco léguas acima da sua foz “a cujo sito chegam muitos barcos de sal”77. Dos tempos da ocupação romana ficaria a via de comunicação, que ligava Coimbra (Eminio78) ao Porto (Calle). Mais tarde estrada nacional, era ainda no princípio do Séc.XIX, a única via de comunicação existente no distrito de Aveiro, como nos refere o Conselheiro Ferreira da Cunha na sua «Memória de Aveiro» 79. Esta via, Eminio-Calle, continuava até Bracara (Braga). No trajecto, aqui, pela região, a via desdobrava-se em dois percursos: um mais pelo interior, e outro mais a ocidente, que iam de novo encontrar-se no Marnel (Águeda). A via constituía uma verdadeira coluna vertebral, uma estrada real por onde circulava todo o movimento de mercadorias e pessoas (incluindo, natural e prioritariamente, os exércitos). Embora muito afastada da região litoral, que lhe tinha acesso extremamente difícil – ou mesmo impossível – por terra.

76

Descrição in «Plínio – o Velho e a Lusitânia» ant.cit.

77

Memória Paroquial – Pessegueiro do Vouga, Vol. 28 cit. por Inês Amorim in «Aveiro e sua Provedoria», p. 101, 1996. 78

Eminio, trad. do latino Aeminium – significando Coimbra.

79

Cunha, Cons. Ferreira da, ADA, Vol.VI.

55


Fig. 25 – Estrada Eminio-Calle.

56


Datam de muito mais tarde, as incipientes ligações de Vagos – Ílhavo – Aveiro – Cacia – Eixo – Óis, à referida estrada romana, a qual estabelecia o contacto entre os centros mais desenvolvidos, locais onde se concentrava a riqueza produtiva em bens de consumo, sitos muito para o interior. E por isso estrategicamente afastados – e até defendidos80 – das intrusões corsárias ou piratas (normandas e árabes), que foram intensas nos tempos iniciais, imediatamente anteriores à formação da Laguna. Esta, à medida que foi sendo rasgada por uma infinidade de canaletes mais ou menos profundos, e por isso navegáveis por embarcações de pequeno calado, provou desde logo ser a via mais rápida (e mais segura) para facilitar o intercâmbio de bens e pessoas entre os diferentes centros populacionais ribeirinhos, por vezes situados em esconsos recantos a que só por barco era possível aceder. Por isso as vias marítimas (primeiro fluviais, e depois lagunares) foram de uma importância transcendente no desenvolvimento sócio económico das villae disseminadas ao longo dos seus percursos. Há referências de, em outros tempos, navegarem (caravelas) defronte de Vagos81 até que no Séc. XIII/XIV essa possibilidade se extinguiu, pelo assoreamento do canal do rio Boco82. Também o rio Vouga, curso de água profundo, foi navegável durante muitos

80

Na carta de doação de Mendo Achia e sua mulher, Maria Pais, ao Mosteiro da Vacariça, vem já referido o Castro de Cacia. Ver «Carta Arqueológica do Concelho de Aveiro», Brochado, Carlos e Fernandes, Francisco, ed. Câmara Municipal de Aveiro, 2001. 81

«Informações Paroquiais do Distrito de Aveiro», ADA nº 9, Aveiro 1937.

82

Ainda em 30.4.1393, D. João I proibia o lançamento de covos no canal do rio Boco, para não se dificultar a navegação de navios. (doc. LXXVII, in «Documentos Históricos», Tomo I, ed. CMA).

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séculos até distâncias muito consideráveis 83, englobando nesse percurso, para montante, um golfão profundo onde confluíam os rios Vouga, Cértima e Águeda. A esse golfão profundo chegariam embarcações de porte assinalável, carregadas de mercadorias na intenção de serem trocadas por outras da produção local. E logo ali embarcadas, eram levadas para os portos do norte e sul, especialmente para Lisboa, sendo também de registar desde os primeiros tempos uma intensa actividade com os povos árabes 84. Tais veias fluviais profundas, à medida que a Laguna se foi fechando85 e se tornou mais problemática a sua ligação com o mar, sofreram intenso e irreversível assoreamento. Por essa razão, a navegação até ali possível por embarcações de quilha (pinaças e barcas) foi sendo cada vez mais difícil. A partir de determinada altura (Séc.XIV-XV), restou apenas possível de demanda e fundeio, o canal de S. João. Foi então necessário trasfegar mercadorias das embarcações visitantes para bordo das “barcas de fundo chato”, que logo as carreavam rio acima. Desta situação de proximidade ao local do fundeadouro, beneficiaria a Vila de Aveiro, que rapidamente se tornaria um centro mercantil por excelência 86.

83

Edrisis ant. cit., referia-se ao Vouga «no qual entram embarcações de comércio e galés, porque a maré sobe muitas milhas por ele acima». 84

Cortesão, Jaime, in «Os Descobrimentos Portugueses», Tomo I, ed. Imprensa Nacional – Casa da Moeda. 85

Cunha, Rocha e, ant. citado.

86

Aveiro tornar-se-ia um centro de grande actividade mercantil a partir dos Sécs. XIV/XV, com a presença de muitos mercadores estrangeiros – principalmente ingleses e genoveses – que se vieram estabelecer na «Vila Nova» e no bairro do «Alboy».

58


59


Cap. 3 – As embarcações, veículos de trabalho O «Mercantel» Houve então que criar, desenvolver, ou fazer evoluir, novas (?!) embarcações que se adaptassem à convivência com a geografia lagunar. Embarcações “calando pouca água, de fundo chato” e com razoável capacidade de carga apropriada para efectivar o transbordo das mercadorias das embarcações de alto bordo para as zonas do interior. Pretendia-se uma embarcação com razoável deslocamento, capaz de albergar no bojo cerca de 15 Ton. Que fosse capaz de aproveitar para a sua movimentação o elemento natural de propulsão, o vento, que no local sopra predominantemente do quadrante norte/noroeste, permitindo com as velas de pendão poupar no esforço humano, e permitir rapidez na deslocação. Desta necessidade nasceu com a Laguna, o «Mercantel». Tendo sido, certamente, o Sal, a primeira das mercancias a ser nele transportada, intensa e repetidamente, esta embarcação (que seria utilizada até ao Séc. XX), quando nessa função específica, ficou também conhecida por «Salineiro» ou «Saleiro»87. 87

Como veremos adiante, quando o «Mercantel» foi usado no transporte de sal, com a finalidade de facilitar a medição da quantidade embarcada, esta embarcação teve medidas aferidas com muita precisão.

60


3-1 O «Mercantel»

Fig. 26 – O «Mercantel»88.

Podemos estabelecer, sem com isso correr muitos riscos de infidelidade histórica, considerar o «Mercantel» como uma das primeiras embarcações de fundo plano, nascida nos tempos modernos89, construída para sulcar a Laguna, servindo em vários propósitos. De facto teria sido o «Mercantel», a embarcação (comummente designada por barca) que por um período mais longo de tempo serviu, de muitos e variados modos, em funções e para

88

Magalhães, Luiz de in «Os barcos da Ria de Aveiro», ed. Portugália, 19051908. 89

Depois dos Sécs.XV/XVI.

61


fins tão diferentes – mas em todos eles com uma eficácia notável - o desenvolvimento da economia da região lagunar. Naturalmente que a sua forma exterior terá evoluído desde o seu aparecimento. Muito embora se efectuarmos a comparação entre tipos desta embarcação, construídos no Séc. XIX e no Séc. XX, de que temos documentos desenhados ou até fotográficos, poucas alterações significativas se notarão entre os mesmos. Na gravura abaixo que com todas as probabilidades data de finais do Séc. XIX90, podemos ver vários «Mercantéis». Apenas no formato da proa se poderão vislumbrar algumas diferenças se comparados com os reproduzidos em documentos fotográficos de data posterior. Na parte estrutural restante, as referidas embarcações são praticamente iguais às actuais, ainda existentes, seguindo as formas vindas de tempos longínquos. Formas que não diferiam de mestre para mestre dos muitos que se dedicavam à construção naval lagunar. São referidos cerca de meia centena de construtores deste tipo de embarcações, na Ria de Aveiro, naquele século (XIX).

Fig. 27 – Gravura de mercantéis no canal central – Aveiro (Séc. XIX).

90

Esta gravura integra a Capela de S. João, no Rocio, que foi demolida em 1911, e é certamente de finais do século anterior.

62


Poderemos mesmo especular, a fazer fé em documentos que referem a utilização de barcas na região do Vouga pelos normandos, no Séc. IX, para com elas subirem o rio até perto de Stª Maria da Feira (Logóbriga), que tal referência nos levaria a concluir que já antes da formação da Laguna, no interior dos rios que ainda desaguavam no mar, já se utilizaria um tipo de embarcação a que se chamava barca. Refere o documento, que as barcas foram usadas num golpe de mão para a libertação de uma alta dignitária do seu clã que ali teria ficado prisioneira aquando de uma incursão anterior, durante um ataque de corso91 daqueles povos do Norte às zonas interiores do rio. Acontecimentos que eram muito frequentes, largamente referidos, terrivelmente desbastadores, muito habituais à época pré-lagunar, obrigando as populações a se refugiarem bem lá no interior dos rios, procurando melhor defesa e protecção contra tais actos de pirataria. Essa seria, aliás, umas das razões apontadas para a quase completa inexistência de populações na zona costeira92, no período que antecedeu a formação do espaço lagunar. Na referência a tal utilização, fala-se de barcas de fundo chato, abicadas nos dois extremos, conferindo, assim, melhor manobrabilidade, no rio, assim se anota no referido documento. Foram estas as precursoras do futuro «Mercantel» (?) É questão a dilucidar. Muito provavelmente, foram. No documento das «Determinações para o apuramento dos mareantes para a vintena do mar» de 144393 fala-se já que 91

Amorim, Pe. Aires de, in «Para a História de Ovar – Marinhas de Sal nos Sécs. XV a XVII» inserido na revista de «Aveiro e seu distrito», 1968, nº5, p.34, onde refere um doc. de 1026 onde se alude a um resgate de três móios de sal para libertação de três prisioneiros normandos. 92

Fonseca, Senos da, in «Ílhavo – Ensaio Monográfico» ant.cit.

93

Ordenações Afonsinas, livro 1º fls. 157.

63


ponhaaes nas dictas todollos homeens do mar e rio incluindo os que andem no carreto e passage, o que é relevante para percepcionar a falta sentida de tripulações para satisfazer o intenso movimento, já existente, então, do Porto de Aveiro no Séc. XV. Era pois necessário, recrutar toda e qualquer gente, desde que andasse sobre a água, que tivesse os conhecimentos básicos, mínimos, para cumprimento da vintena. Poderemos dividir por três grandes áreas, os diversos tipos de utilização (mais frequente) do «Mercantel»: 3-1-1 O «Mercantel» na passage Do referido anteriormente poderemos concluir que a utilização de barcas para atravessar nos inúmeros canais 94 que dificultavam o acesso aos centros urbanos, era, no referido Séc. XV, uma realidade, uma exigência para a vida inter-lagunar.

Fig. 28 – O «Mercantel» na passage.

94

Amorim, Inês, in «Aveiro e sua Provedoria» refere-nos um número extenso de locais onde haveria barca de passagem: Serém, S.João de Loure, Lamas do Vouga, Pessegueiro do Vouga, Almiar, Óis, e Aguada, isto no interior dos rios. No litoral, para lá da carreira Ovar-Aveiro, refere Sôsa e Pedricosa, p. 103.

64


De data mais recente, mas de todo o modo ainda longínqua (Séc. XVIII), temos inúmeras referências a barcas que fariam a carreira entre zonas afastadas da laguna, nos percursos Ovar – Aveiro, Vista-Alegre – Ovar, Gafanha – S. Jacinto, e outros. Estas carreiras foram largamente referidas em diversa documentação da época, em que se salientava a importância deste tráfego que permitia obviar às dificuldades de acesso terrestre, dado que as vias eram, ainda então, praticamente inexistentes. Ou quando existentes, para lá de longas no percurso eram perigosas e difíceis de transpor, em alguns dos seus pontos, como acima referido. A ligação Ovar – Aveiro, pela ria, era uma das mais importantes, e a mais concorrida, já que era o acesso mais rápido, e mais seguro, ao caminho que de Ovar levava ao Porto. Tinha carreiras diárias, feitas durante a noite, permitindo o embarque e transporte de pessoas e animais. Existiria a barca da carreira, mas e ainda, a possibilidade de os passantes poderem, eles próprios, para maior rapidez e seu conforto95, alugarem uma embarcação privativa, pagando naturalmente, um valor bem mais elevado do que o de uma simples passagem no barco colectivo. O Conselheiro Ferreira da Cunha, em «Memória de Aveiro, no Séc. XIX»96, afirmava que naquele tempo não haveria alguma estrada nas vizinhanças da cidade (…). Mesmo no distrito não havia outra estrada além da Lisboa-Porto passando pela Mealhada, Águeda e Albergaria. E indo mais além, dá-nos conta de que para ir ao Porto, haveria que entrar no barco de Ovar: quem podia tomava a proa se já não estava tomada. Quem não conseguisse, ia pela noite, ao frio, ou até no Inverno, à chuva.

95

Refere-se o aluguer das proas, «lugar» de abrigo para agasalho do frio ou chuva, da noite. 96

Cunha, Ferreira da, ant. cit.

65


A largada – diz-nos – verificava-se, o mais pontualmente (?) possível, entre as vinte e uma, e as vinte e duas horas. E, mais adiante, Ferreira da Cunha dá-nos conta que mesmo justando uma embarcação, os barqueiros justificando a falta de isto ou daquilo iam atrasando, até que chegava, finalmente, a hora da carreira. Alberto Sousa Lamy97 dá-nos conta do alemão Félix Lichonowky, que na obra «Portugal Erinnerungen aus dem Jahre 1842» afirma, que a carreira de embarcações entre Ovar e Aveiro lhe fez lembrar os barcos dos canais da Holanda tão movimentada era. O referido nobre, alemão, chega a descrever a viagem feita com o companheiro de jorna, o conde Teleky: – aconchegados na proa da barca alugada, carregada de camponeses, que saiu de Aveiro à noite para chegar a Ovar na manhã seguinte. Para limitar abusos e perante queixas recebidas sobre o comportamento dos barqueiros, em 1843 98foram criadas posturas no sentido de regulamentar os preços, os direitos e os deveres dos barqueiros, que faziam carreira entre os diversos pontos da laguna: Ovar, Torreira, Areias, Costa-Nova, Aveiro e Águeda. O preço da passagem Ovar – Aveiro era, então, de 100 réis. Para fretes de barcos, fixaram-se os seguintes valores:

97

Lamy, Alberto Sousa, in «Monografia de Ovar» Vol. I, p. 316, ed. Ovar, 1977.

98

Pe. Miguel de Oliveira dá-nos conta dos «Privilégios do Barqueiro de Esgueira». ADA Vol. I, p. 135.

66


Quadro I Valor em réis, de frete de Embarcação (1843) Percurso

Inverno

Verão

Ovar – Aveiro

800

1200

Ovar – Torreira

400

800

Ovar – S. Jacinto

800

+1/3

Ovar – Costa Nova

1.200

1.600

Ovar – C. Nova

1.600

+1/3

1.400

1.440

(ida e volta) Ovar – Águeda

Fig. 29 – Barca da Passagem Costa-Nova (Séc. XIX).

O tráfico era tão intenso, as irregularidades tão gritantes, os preços tão elevados, e as embarcações tão desconfortáveis, que obrigaram 67


à intervenção do Governador Civil de Aveiro (1854), chegando a ser admitido mandar o Estado construir uma barco a vapor para substituir as barcas. Mas foi num «Mercantel» que D. Maria II – em 23 de Maio de 1852, aquando da visita daquela Rainha às províncias do norte – fez a viagem Ovar – Aveiro. A Rainha e a Comitiva saíram do Carregado (Ovar) em cinco barcos, um deles vistosamente engalanado onde embarcou o casal real: D. Maria e o Príncipe Fernando de Saxe, seguidos por uma imensidão de gente que quis acompanhar o casal real. O cortejo real aportou a Aveiro, ao cais da Ribeira, nesse mesmo dia. Neste local teriam sido, simbolicamente, entregues à Rainha, as chaves da cidade, conforme é relatado em notícia da época. Teria sido ainda num desses barcos transformado em bergantim real, que em 1908, sentado em cadeirão, a meia-nau, se passeou na ria, em visita à Barra, o nosso último rei, D. Manuel II, durante a sua estadia em Aveiro.99

Fig. 30 – «Mercantel» armado em bergantim Real com D. Manuel II (visita a Aveiro, 1908).

99

Silva, Armando Tavares da, in «D.Manuel II e Aveiro», 2007.

68


Eça de Queiroz, em visita a Aveiro, em 1883, refere que o grande encanto da cidade era a ria, onde os barcos compridos e negros, grosseiras gôndolas, com a forma original de crescentes repuxados (…) confusamente encostados aos paredões baixos.

Fig. 31 – «Mercantéis» no cais do Rossio.

3-1-2 O «Mercantel» – no carreto Nas Memórias Paroquiais, de Pessegueiro do Vouga, pode ler-se que os «Mercantéis» eram, em certas situações e condições, puxados por juntas de bois, dada a dificuldade de navegação por ser tão pouca a água. Quando nas mesmas se refere o rio Cértima, falase (também) da sua navegabilidade por barcos de carreto, utilizados para se fazer chegar, àquelas Zonas, sitas bem lá para montante, 69


bem no «interior», as mais diversas mercadorias – sal, sardinhas e outro peixe – trazendo na volta uma carga de vinho, frutas, cereais ou lenha.

Fig. 32 – Barcas no Mondego

100

.

Era pois uma intensa e permanente actividade permitindo as trocas comerciais, fundamentais ao crescimento e à consolidação económica da região, impossíveis de concretizar de outro modo, por falta de vias de comunicação que os permitisse. Disso mesmo nos dá conta Serafim Soares Graça, na transcrição vertida para o artigo «A ria de Aveiro e os rios Vouga e Águeda»101, onde nos dá a informação que o Vouga era navegável até cinco léguas (Pessegueiro), aonde chegavam os barcos pequenos idos de Aveiro, Ílhavo e Ovar, conduzindo os diversos produtos para as feiras da região.

100

Este tipo de barca não deveria estar muito longe das primeiras utilizadas no Vouga. Note-se a vela de pendão, ainda muito tosca. 101

70

A.D.A. nº1, p. 14.


Já desde 1693 – data em que por alvará régio 102 começou a ter lugar todos os dias 13 de cada mês, a Feira da Vista-Alegre – vinha dos mais variados pontos da ria, mensalmente, uma imensidão de barcos alimentando com produtos transportados no seu bojo a intensa actividade das trocas que se faziam na referida feira, uma das mais importantes da região. Acorriam àquele sítio do canal do rio Boco, não só gentes das regiões vizinhas, mas e também são referidos estrangeiros interessados na fartura e diversidade de produtos oferecidos, de entre os quais se salientava o sal e o peixe, salgado ou seco, produtos dos mais procurados para feitura de bons e rendosos negócios. Mas na «Feira dos Treze» eram oferecidos muitos outros: lenha, animais, tecidos, artigos de artesãos locais, tamancos, gabões, arados, que justificavam grande procura. A grande maioria destes produtos, vinha e saía, pelo canal do rio Boco, a bordo dos «mercantéis».

Fig. 33 – Gravura Séc. XIX (Mercantéis no canal central).

102

Fonseca, Senos da, in «Ilhavo – Ensaio Monográfico» ant. cit., Doc. 38 – Alvará concedido por D. Pedro II, p. 548.

71


Com a implantação da Fábrica da Vista-Alegre103 ali mesmo ao lado do local onde tinha lugar a feira mensal, ela também estrategicamente erecta na beira do já referido canal, o «Mercantel» tornar-se-ia elemento fundamental, diremos mesmo indispensável, à laboração daquela unidade fabril. Já referimos, acima, a importância do «Mercantel» no transporte dos bens transaccionados na Feira. Com a instalação da fábrica, foi o «Mercantel» utilizado para fazer carregos de caulino, praticamente diários, para alimentar a fábrica da matéria-prima requerida para a obtenção da porcelana. O caulino era, assim, embarcado em Ovar (extraído em pedreiras vizinhas), e vinha pela ria directamente, até à fábrica, numa viagem que não demorava mais do que uma maré se o vento estivesse de feição.

Fig. 34 – Plano inclinado que ligava a ria à fábrica104.

De várias citações referidas acima – e muitas outras que se poderiam acrescentar ao rol – poderemos concluir que o 103 104

Em 1824.

Foto recolhida no trabalho universitário «Vista-Alegre – Um Espaço Urbano Industrial» de Sofia Senos.

72


«Mercantel» – ou mais certo a embarcação que esteve na sua origem – vem de tempos remotos, longínquos, certamente desde que os cordões de areia começaram a circundar as águas do mar e as aprisionaram, dando lugar a uma extensa superfície salgada cujos pontos era preciso interligar, fazendo dela plataforma privilegiada da intervenção do Homem que aqui se pretendia fixar, disposto a domar (ou pelo menos) a amenizar a natureza encharcada, numa humanização quase sempre precária e provisória105. Poderemos, pois, com alguma certeza, afirmar que o «Mercantel», ou o seu antecessor (que não seria, assim, tão diferente), remonta ao «logo após» da formação da ria. Será tão antigo como a própria laguna, continuando ao longo do tempo, século após século, com pequenas evoluções e adaptações, a prestar relevantes e insubstituíveis serviços no transporte de mercadorias, num desempenho que iria durar séculos.

Fig. 35 – Mercantéis utilizados para transporte de pedra.

105

73

Moura, Frederico de, in «Ressonâncias», ed. Fedrave – Aveiro 1999, p. 14.


3-1-3 O «Mercantel» no transporte do sal O «Saleiro»

Já o referimos de passagem, acima. De entre todas as serventias prestadas pelo «Mercantel», o transporte de sal entre o local de produção, as marinhas, e os armazéns de recolha e distribuição, ou o seu carrego para os mais diversos portos secos, foi uma das mais singulares e emblemática, e das mais intensas das suas utilizações, a ponto de a designação «Saleiro» ou «Salineiro» se ter confundido, ou sobreposto, à designação «Mercantel», com que fora da mesma, mais genericamente, se identificava a embarcação.

Fig. 36 – O «Saleiro» carregando na marinha.

74


Nesta utilização específica, a embarcação tinha duas marcas nas amuras, a B.B. e a E.B., pelas quais atestava, oficialmente, a carga embarcada. Até 1860 os barcos carregavam 4 moios de rasas106, num total de 720 alqueires de sal. Já em 1873 são referidas cargas de 900 alqueires. No quadro abaixo podemos apreciar a evolução das cargas embarcadas107. Já mais recentemente, em 1960, uma carga correspondia a 10 Ton. Quadro II Carga Média por Embarcação, no Tráfego Fluvial Ano

Nº de «contos»

Nº de Viagens

«Contos» / viagem

«Alqueires» / viagem

1750

1669

722

2.3

345

1771

2549

799

3,2

480

1778

2248

961

2,3

345

1799

895

285

3,1

465

Fonte A.M.A.108

Por esta razão, as dimensões interiores destes barcos utilizados para este fim, foram objecto de fixação e fiscalização de medidas

106

Perto de 720 Alqueires (M. Maia Alcoforado, in «A Indústria do Sal»).

107

«moio» correspondia a 20 rasas, que correspondiam a 60 «alqueires»; o «conto» correspondia a 50 rasas, o que correspondia a 150 «alqueires»; o «milheiro» continha 5 contos, correspondendo a 750 «alqueires». 108

75

Recolha de Inês Amorim in «Aveiro e sua Provedoria».


(aferição), dado ter-se verificado que ligeiras alterações permitiam levar a supor que estaria com a carga prevista, quando se verificava que a medida real de sal embarcado era, de facto, inferior à suposta. Escrevia Maia Alcoforado109 a medida adoptada para a venda de Sal é o moio de rasa de três alqueires (milheiro) e o barco de quatro moios de rasas, mas até 1860 a capacidade destes barcos era aferida no concelho de Aveiro; depois daquela época porém este costume principiou a cair em desuso, de maneira que actualmente os carregadores mandam fazer os seus barcos de lotações diferentes, o que origina confusão nos preços do sal e é causa de incalculáveis prejuízos para os interessados na indústria salineira.

Fig. 37 – Mulher descarregando o «Mercantel».

109

76

Alcoforado, Maia, ant.cit.


David Justino110 regista para o período 1862-1931, que a medida generalizada para o barco de sal correspondia a 4 moios de rasas, ou seja 240 rasas, correspondendo a 720 alqueires, confirmando o atrás afirmado.

Fig. 38 – «Saleiro»

3-2 Evolução do «Mercantel» Não estamos a assegurar que o modelo do «Mercantel» do Séc. XVIII/XIX, praticamente o actual, terá sido sempre exactamente «assim» desde os tempos longínquos de que falámos acima. Provavelmente, não. Mas certo é que evolução das suas formas – tudo o leva a crer – não terá passado de um apuramento e alguns ajustes da forma inicial, sem que se tenham verificado, rupturas ou transformações radicais, no conceito. Que se teria mantido (praticamente) imutável até aos nossos dias.

110

Justino, David, in «Problemas da História dos Preços: o sal e o milho no mercado de Aveiro (1862-1931)», p. 35.

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Trata-se de um barco possante, com excelente desempenho à vela (ao largo é mais rápido, embora menos ágil, que o «Moliceiro»), de fundo chato, muito sólido na construção, sendo muito estável com ventos fortes.

Fig. 39 – Reparação no Mestre Felisberto.

Quando carregado, alguns arrais com quem falámos salientaram que a embarcação se tornava ainda mais doce e manobrável, sendo mais fácil de «marear» carregada. Entre a embarcação dos fins do Séc. XIX e a do início do Séc. XX – de que temos registos fotográficos –, as maiores diferenças notamse na proa: menos lançada, mais «gorda» e menos esguia, menos elegante do que a do modelo generalizado no último dos referidos séculos. O último «Mercantel», ainda para serviço efectivo, foi construído em 1973 por mestre Lavoura, um afamado carpinteiro naval de Pardilhó. Para o Museu Marítimo de Ílhavo, foi, em 2001, construído um outro para exposição, pelo mestre António Esteves,

78


um outro carpinteiro naval de Pardilhó, ainda em actividade, actualmente.

Fig. 40 – «Mercantel» fins Séc. XIX.

Fig. 41 – A actual proa do «Mercantel» (bica recta).

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3-3 Características do «Mercantel» Esta embarcação já no Séc. XIX tinha as seguintes características:

Quadro III Comprimento (médio) ………….…………………….........18m Boca ………………………………………………............... 2,70m Pontal …………………………………………………0,85 - 0,90m Capacidade ……………..………………….………….. 15/18 Ton Altura do mastro .………………….. no Séc. XIX cerca de 8,80m e 10,80m no Séc. XX Área vélica ………........................................... no Séc. XIX 32m2 e 60m2 no Séc. XX Dim. das cavernas centrais ………………..0,18m por 0,07/0,08m Fundo ………………………………………. . Tabuado de 0,02m Costado ………….……………………………. Tabuado de 0,02m Dim.bordo ……………..……………………..….0,22m por 0,11m Dim. draga …0,22m por 0,13m no centro, (termina em 7 por 7cm) Nº cavernas …..….……………… 29 (13 para a proa e 16 para ré)

O «Mercantel» desloca-se por acção do vento sobre a vela quadrangular, envergada no mastro, com calcador ao seu pé. 80


O «Mercantel» poderia em certas ocasiões montar um segundo mastro – o traquete – de menor altura e encostado à antepara do castelo de proa, encaixado em baixo numa coicia, e fixado ao barrote por argolas de ferro.

Fig. 42 – «Mercantel» envergando o traquete.

Na falta de vento, movimenta-se por acção de varas111. Feito singrar, empurrado pelos dois moços que as apoiam no ombro, enterradas no fundo do leito da ria, caminhando sobre a borda e draga. A proa da embarcação, espaçosa, permite nela albergar (dormir) os dois (e até três) homens da tripulação.

111

O trajecto das «Quintas» a Aveiro, à vara e com maré a favor, poderia demorar cerca de sete a oito horas.

81


Fig. 43 – Proa (imponente) do «Mercantel».

No seu interior, lateralmente, existiam duas prateleiras (cheleiras) servindo para aí se disporem as canecas, tigelas e talheres (de ferro), bem como almotolias para azeite, copos e um ou outro acessório para cozinhar. Também por aí se guardavam algumas vestimentas da tripulação no ponto mais alto (pique).

Fig. 44 – Castelo da proa com cheleira.

O traste, peça onde passa o mastro (na enora) que vai encaixar, em baixo, na coicia central, é feito de uma só peça de 0,47m por 0,10m, indo de bordo a bordo, rodando em dobradiças para permitir arriar aquele e assim passar locais com pequenos tirantes de ar. 82


A porta do leme é de linhas grandiosas, não diferindo no funcionamento da do «Moliceiro». Por isso referiremos no capítulo 7, com pormenor, os seus diversos aspectos. Desde já chamamos a atenção para um entalhe existente no dorso da porta, apelidado de chança.

Fig. 45 – A chança

Levantamos a hipótese – nada nos prova – de este entalhe ter sido copiado da forma da porta do «Moliceiro». Explicaremos mais adiante esta ideia, e do significado do referido entalhe.

Fig. 46 – Porta do leme do «Mercantel».

83


3-4 Planos Geométricos e de Construção (2D)112

Fig. 47 – Planos geométricos do «Mercantel» (2D).

112

84

Ver DVD anexo.


3-5 Planos Geométricos (3D)113

Fig. 48 – Planos (3D). 113

85

Ver DVD anexo.


Cap. 4 – A «ílhava» Sob o ponto de vista histórico, a «ílhava» – também apelidada de «ilho» – foi a embarcação que serviu ao pescador de Ílhavo para satisfazer uma irrequietude sôfrega. A de dar resposta a um desassossego permanente, numa ânsia de aventura em procura de locais onde pudesse fainar no mar, já que a laguna – a circunstância destas gentes diferentes – a partir de certa altura já pouco lhe poderia proporcionar. Como já referido, a partir de meados do Séc.XVIII114, a contaminação das águas advinda da deficiente comunicação da laguna com o mar impedindo a sua renovação, trouxe como consequência, não só o desaparecimento da fauna piscícola, como a interrupção da produção salina. Que eram até ali – conjuntamente com o bacalhau – as maiores fontes de onde provinha o sustento das gentes de uma região que teimava em afirmar-se no panorama económico-social do país. Num curto período subverteram-se e ensombraram-se todas as promessas que o período áureo do Séc. XV (e princípio do Séc. XVI) parecia conter em que a prosperidade alcançada excedeu todo o sonho que ao princípio era lícito esperar de um panorama geográfico à partida tão inóspito e desinteressante.

114

Rocha e Cunha, ant.cit. define mesmo a data de 1750 para o início da grande crise.

86


Perante a situação generalizada de penúria que se fez sentir em meados de setecentos, a que acrescia o espectro da morte provindo das pestilências que o inquinamento das águas115 provocava116, e se teria abatido com brutalidade inusitada sobre as populações indefesas, foi tempo de migrar em procura de desafios mais recompensadores ainda que mais arriscados. Num primeiro impulso saltaram da laguna com a «ílhava» abandonando

Fig. 49 – Os «bateirões» na borda do mar.

a pesca interior e ou a apanha do moliço, e trouxeram-na para a borda do mar, varando-a no areal que estava ali (mais) à mão – em S. Jacinto – , perto da Srª das Areias. Nessa primeira investida

115

Luís Cipriano (pai de José Estêvão) escreveria (…) remover a estagnação que entretendo a humidade e fornecendo eflúvios deletérios na origem da insalubridade (…) fez morrer um considerável número de humanos. 116

Nas «Memórias Sobre a Vila de Aveiro», em 1687 já se lia: esta villa padece o achaque das maleitas que na quadra da primavera e o Outono, fazem adoecer muita gente e em alguns anos morrem muitas pessoas, o que é atribuído às águas encharcadas (…) que produzem exalações nocivas.

87


meteram-lhe a bordo a arte do chinchorro117, já então conhecida e praticada nas águas interiores. Tratava-se de uma técnica piscatória de cerco e arrasto que vinha de longe no tempo, e mostrara ser uma das mais aptas para a apanha generalizada das espécies lagunares. Mas cedo se constatou que o chinchorro na borda do mar não tinha dimensão que permitisse fazer o lanço lá mais para fora, nos longes, em águas onde o mar parecia coalhado de uma espécie – a sardinha118 – que se viria a tornar um dos principais elementos da dieta alimentar das camadas economicamente mais débeis do país. São conhecidas desde 1600 notícias119 de que, pelo menos os ovarinos, já pescavam na borda do mar alando o chinchorro atado à cinta, sendo referenciadas companhas rudimentares constituídas por mais de 200 pescadores para esse desígnio. Desde logo esta faina na beira-mar se deparou com um problema que foi, necessário e urgente, resolver. A utilização de bateiras (muito embora de dimensão apreciável) levantava toda uma série de limitações que o incremento deste tipo de pesca, na beira-mar, vinha pôr a nu: – as embarcações usadas não reuniam as condições ideais (segurança e capacidade) para um desempenho eficaz. Com elas, o dar o lanço, só poderia ser praticado quando o mar estivesse sossegado120, aquietado, mansarrão, o que restringia a intensidade 117

Chinchorro – ver Lopes, Ana Maria, in «O vocabulário Marítimo Português», ed.Coimbra, 1975, p. 217. 118

No séc. XIV o clima da Europa sentiu uma mudança radical.Se os terrenos cultiváveis se reduziram a um terço pela impractabilidade de os trabalhar, no mar verificaram-se migrações das espécies em procura de águas mais quentes.Terá sido esse esfriamento das águas dos mares do norte que conduziriam a sardinha até latitudes tão baixas, no caso o litoral atlântico português, séculos depois (XV/XVI). 119

Desde o Séc. XVII que se fala das companhas de chinchorros na zona de S.Jacinto/Espinho – Pe. Aires de Amorim, in «Da Arte de Xávega de Espinho a Ovar», ed. C.M.O. 1999, p.21. 120

Sousa, João Leite, vigário de Ovar, em 30 de Abril de 1758 dá-nos conta dessa dificuldade.

88


da faina. A quantidade de peixe recolhido com estas artes reduzidas estava longe das potencialidades que se anteviam perante os cardumes que povoavam o mar. Na costa de S. Jacinto, datam de 1755121, as referências às primeiras «companhas» ali fixadas122. Tudo leva a supor que teriam utilizado, já então, um outro tipo de embarcação, entretanto criado e aqui desenvolvido – o «Meia-Lua» –, embarcação com uma forma singular que abordaremos adiante (Cap. 6). Perante estas indiciações, e não havendo prova documental que o prove em absoluto, somos levados a concluir que a utilização da «ílhava» com o chinchorro123 – uma arte menor – teria sido certamente anterior à data atrás referida124, em que se teria consumado o aparecimento do, por muitos designado – em nosso entender não rigorosamente – barco da xávega. Depressa teriam os pescadores da borda concluído que o «bateirão de mar» não respondia eficazmente às exigências de uma pesca intensiva. Este tipo de embarcação só se poderia fazer ao mar em condições muito especiais, quando não se verificasse quebra (pancada) da vaga, significativa, de modo a permitir lançar as redes nas águas, entre a rebentação e o mar125. Redes varredouras126 que

121

Ver Cap.6 – O «Barco do Mar».

122

Ver Fonseca, Senos da, in «Ílhavo – Ensaio Monográfico», ant.cit., p. 242.

123

Ver Memórias Paroquiais de Paramos, 1758, citadas por Sá, Pe. Manuel, in «Monografia de Paramos», p. 123. 124

Pinho, D. João Frederico Teixeira de, in «Memórias e Datas para a História da Vila de Ovar», refere que no ano de 1600 já os pescadores andavam constituindo como agora em companhas, com os seus capelães, com a diferença de pescarem com as artes pequenas a que se chamavam chinchorros. 125 126

A palavra mar tinha aqui um significado de águas depois da rebentação.

Artes que percorriam com o saco o fundo arenoso, puxadas para terra, pelos càlões das mangas.

89


seriam de reduzida dimensão para pesca, à borda, num tempo em que só o trabalho braçal era utilizado para sua recolha. Antecipando em muito, o momento em que se passou a usar a tracção animal – o que viria a acontecer na Companha de Manuel Firmino, na Costa de S. Jacinto, em 1887127. Mas se ali, na borda, os atributos das bateiras não eram os ideais, cedo se descortinou que com uma derivação inspirada nas suas linhas, embora reduzindo-lhe as suas dimensões, o Douro128 oferecia, sazonalmente, as safras do sável e da lampreia. E aí, as bateiras lagunares tinham as características certas para cabal desempenho do pretendido. Era apenas «coisa» de mudar para lá as mesmas, levando tralhas e fatico, suficientes, para a safra. Deslocaram-nas desde logo para a Afurada 129 onde se fixavam durante as épocas de pesca, aí constituindo colónias de dimensão assinalável, profusamente referenciadas ao longo dos séculos XVIII e XIX.

127

A companha de Manuel Firmino resultou da fusão das companhas a Enxada e a Canária, que teriam ficado em S. Jacinto (ver Fonseca, Senos da, in «CostaNova-do-Prado – 200 de História e Tradição», 2009). 128 129

Rezende, Pe. João Vieira, in «Monografia da Gafanha», 2ª ed., 1944, p. 195.

Em 1725 e 1759 pescavam sáveis e lampreias, no rio Douro e sua foz, 262 indivíduos. Amorim, Inês, in «Aveiro e Sua Provedoria, no Séc. XVIII».

90


Fig. 50 – «ílhavas» e «chincorros»130 na Afurada.

Teria sido dessa sua fixação na referida zona, e da sua utilização na captura do sável, que adviria a confusão de, muitas vezes, a «ílhava» ter sido identificada com a designação de «Saveiro»131, hábito que mais tarde se estendeu a outras embarcações, como foi o caso do «Saveiro»132 ( «Meia-Lua»), da Caparica, que pescava na borda do mar. Tomando outros rumos, desta vez para sul, para mais longe, os ílhavos da laguna levaram a sua bateira, instrumento precioso de trabalho, para a beira da embocadura do Tejo133 onde assentaram arraiais, muitas das vezes acompanhados pelas famílias que assim 130

«Chinchorro» foi, também, a designação dada a uma das bateiras lagunares, com comprimento que atinge os 9 m, que por utilizarem essa arte, dela tomaram o nome. 131

Saveiro foi designação generalizada dada às embarcações de bicas curvas, e fundo plano. 132

Lopes, Ana Maria, in «Vocabulário Marítimo Português», Coimbra, 1975, p. 148. 133

91

Ver Cap.7 – O «Varino».


Fig. 51 – Gentes da laguna na faina em Peniche (inícios Séc. XX)134.

participaram, elas também, nessa aventura migratória a que já se designou como a diáspora dos «ílhavos», e que nós julgamos mais correcto designar por diáspora das gentes da Laguna. Chegados logo se dispersaram pelas praias ribeirinhas onde vieram a constituir singulares colónias, deixando um referencial no cardápio das actividades piscatória centradas naquele rio, capítulo importante com direito a página própria no historial das actividades Tejo, tamanha foi a sua dimensão identitária e tão significativa se veio a mostrar a sua influência sobre os restantes comparsas. Ali chegados, embarcaram Tratava-se de uma arte de embarcações que varria, à recolhida para uma delas.

134 135

na «ílhava» a rede da tarrafa135. pesca utilizada por uma parelha de superfície, o cardume da sardinha, Com a referida arte conseguiam-se

Fotografia extraída do livro de Rocha Peixoto.

Tarrafa – ver Branco, D. Manuel de Castello, in «Embarcações e Artes de Pesca», Lisboa, 1981.

92


assinaláveis e copiosas capturas, tornando possível o acesso da sardinha a todos os bolsos, mesmo das populações de menores recursos. E dada a boa resposta da espécie ao suporte da salga, suportando períodos longos de conservação, a sardinha viria a tornar-se hábito alimentar por excelência, da dieta alimentar das camadas populares, chegando ao interior do país para onde era conduzida pelos mercantis136, num historial preenchido por uma infindável série de malhadinhas, tep-tep com os seus burricos por caminhos excomungados, roçando os pedregulhos, cruzando riachos atrevidos, em recovagem nocturna para que de manhã, ao canto da cotovia, mesmo antes do sol se alevantar para correr com o negrume da noite, a bela e gorda sardinha da nossa costa se apresentasse às gentes da serrania augadas da iguaria.

Fig. 52 – «ílhavas» na tarrafa137.

Os «ílhavos» chegados a Belém e ou a Paço d’Arcos, cedo se estenderam pelos espraiados que iam até Cascais. E saltando para a outra banda, fixaram-se na Trafaria. Em todos estes locais 136

Mercantis eram negociantes de peixe que o enviavam para o interior do País, utilizando para o efeito o serviço dos almocreves. 137

Branco, D. Manuel de Castello, in «Embarcações e Artes de Pesca», Lisboa, 1981.

93


edificaram agregados piscatórios (colónias) de apreciável dimensão, muito característicos nos usos e costumes, trancados à aculturação com o exterior. Esta singular preservação de usos, trajes, falas e costumes, foi característica e especificidade mantidas pelo longo período de quase dois séculos, em que varinos138 daqui saídos e seus descendentes139, permaneceram por aquelas bandas.

. Fig. 53 – ílhavos no Tejo.

4-1 Chegada ao Tejo Em 1770 os ílhavos já tinham construído uma «capela» na Costa da Caparica, edificada como habitualmente, em tábuas e colmo 140. Sendo referida a chegada dos mestres Joaquim Pedro e José Rapaz,

138

Varino era a identificação pela qual se conheciam as gentes idas da Laguna, de singular vivência mesmo quando deslocadas, perfeitamente distinguíveis, na fala e no trajo.Ver Cap.9 – O «Varino». 139

Uma característica destas gentes era a enorme prole que geravam: um a mamar e outro já no ventre. 140

94

Arcos, Conde dos, in «Caparica Através dos Séculos», 1972.


os demiurgos do povoamento daquela praia. Facto reconhecido pela Câmara de Almada que viria a atribuir a duas ruas da localidade os seus nomes. Em 1870 haveria já 307 famílias ali instaladas, a grande maioria idas da Laguna. No processo movido pela Inquisição, a Filinto Elísio, iniciado em 1778, pode ler-se ser este notável poeta141 filho de um casal de pescadores142, ido de Ílhavo. Daqui se pode concluir, sem margens para qualquer dúvida, que em meados do século XVIII já essas gentes se tinham fixado por aquelas bandas. Esta referência documental, se outras não houvesse, desde logo nos elucida sobre a presença daquelas gentes no Tejo, e do seu inseparável instrumento de trabalho – a «ílhava» – num período longínquo da história, coincidente com o período de penúria lagunar em que se verificou, praticamente, o desaparecimento de toda a vida (piscícola e salífera) em que até ali aquela era pródiga. Mas certo é que existem muitas outras referências. Por exemplo, Baldaque da Silva143 no seu livro «Estado Actual das Pescas em Portugal» escrito em 1891, salientava que no século passado – portanto Séc. XVIII – a emigração de gentes da Laguna de Aveiro para Lisboa, era já consistente. Do terramoto de 1755 são referidos trabalharem nessa data, em Lisboa, 200 pescadores da laguna, sendo certo de que haveria notícias de que nenhum teria morrido no infausto acontecimento. 141

Filinto Elísio (Pe. Francisco Manuel do Nascimento) foi um notável poeta – um dos maiores poetas do Séc. XVII na opinião da Alexandre Sanè, um verdadeiro renovador da língua portuguesa – que teve de se exilar em Paris perseguido pela Inquisição, depois da «Viradeira» – queda do Marquês de Pombal –. 142

Filinto era filho de Manuel Simões, fragateiro real e da pescadeira Maria Manuel, naturais de Ílhavo. 143

Silva, A. Baldaque da, in «Estado Actual das Pescas em Portugal», editado em 1892.

95


Uma «guerra» entre varinos e pescadores de Alverca e Alhandra, em 1819, teria merecido do rei D. João VI a ordenança para apreensão, aos prevaricadores, das suas redes, quando aqueles entrassem na barra do Tejo 144. De 1833 pode consultar-se o registo de, no Tejo, se encontrarem a pescar no saveiro «Rio Tejo», na referida data, os ílhavos Francisco Bichão e Joaquim Fernandes Matias145. Em 1855 escrevia-se146 que muitos ilhavenses, murtoseiros e vareiros, tinham tido uma safra abundante em Lisboa e, por isso, se anunciava que no referido ano vêm para Ílhavo, Murtosa e Ovar, muitos contos de réis. Por estas e outras razões (inseridas com mais prolixidade no Cap. 7 – O «Varino»147), poderemos fixar os meados do referido Séc. XVIII como data provável para a chegada dos ílhavos ao Tejo. A partir daí verificar-se-ia um notável crescimento das colónias então constituídas, que se reforçaram durante o Séc. XIX, por lá se mantendo (em número assinalável) até à primeira/segunda década do Séc. XX. Altura em que o desafio da pesca nos mares do Norte, de novo, os veio inquietar, lançando-lhes irrecusável repto, altieiro. Para uma significativa parte dos migrantes a ida para Lisboa era sazonal. Deslocavam-se na devida altura, no Outono, depois de terminada a safra na beira-mar, chamados pelos contratantes, os mercantis. Eram estes que adiantavam a soldada e lhes facilitavam telhado e sustento. Apresentavam-se em data combinada em Lisboa, para isso seguindo a pé pela beira-mar, que era o caminho mais curto, mas e também, o mais seguro. A temporada terminava depois do Entrudo. Dependendo do resultado da pesca, o que sobrava depois de reembolsado o abonador das despesas, era dividido em 144

Amorim, Pe. Aires, ant. cit., p. 94.

145

Arquivo Geral da Marinha exemplar nº 718 citado por Aires Amorim.

146

Amorim, Pe.Aires, ant.cit.

147

Ver Capítulo 7 – O «Varino».

96


quinhões. O arrais era o responsável, e, por isso, quando a sorte era arredia, por lá ficavam de penhor a embarcação e as artes. Muitos pescadores optavam, então, por restar por aquelas bandas – principalmente se a safra não tivesse sido farta – embarcando noutras companhas. Uns aproveitavam a safra do sável; outros empregavam-se no tráfego marítimo local. E assim foram surgindo as colónias de ílhavos, gente endurenta, de trabalho e sacrifício, afoutada, em que a rudeza dos gestos e palavras contrastava com a agilidade felina dos corpos fluidos. Filhos da onda, gentes de energia sem limites, obstinados no olhar desafiador às profundezas do mar que os parecia endrominar num chamamento patético em batidela continuada à aldraba da porta descaída do seu palheirito de abrigo, sortilégio inquietado.

Fig. 54 – Palheiros típicos da gente da borda.

Em alguns casos levavam consigo a família, entregando às mulheres a escolha e venda do peixe capturado. Uma vez sedimentados na beirada ribeirinha, constituíam grupos muito avessos a influências, 97


misturas, e ou a hábitos, e costumes, estranhos. Estes agregados, verdadeiras colónias de deslocados, faziam alarde de uma cultura específica, peculiar e muito singular, muito diferente da dos grupos circundantes acolhedores, com os quais, verdadeiramente se não integravam, de todo. Muitos dos seus filhos, já nascidos pelas freguesias ribeirinhas lisboetas, foram registados na freguesia de Stª. Maria de Belém. E em outras (Vila Franca, Oeiras, etc.), pela impraticabilidade de virem à terra mãe fazê-lo, pois era tradição, cumprida por muitos daqueles migrantes, virem apenas a Ílhavo, uma vez por ano, precisamente por altura da festa erecta ao orago S. Pedro (no mês de Junho de cada ano), padroeiro do pescador da borda, «olheiro» que os seguiu litoral abaixo. Que era o primeiro símbolo a assinalar a chegada destas gentes, pois mal arribados logo se apressavam a erguer-lhe altar para o colocar aonde compareciam, diariamente, ainda o sol não despertara, para recolhida veneração. Eram «templos» muito toscos e simples, barraquitos escorreitos de tabuado encostado por cujas frinchas entrava e assobiava o vento, quando indisposto, tão só resguardo bastante para acolher o orago – que se queria recolhido mas não alheado dos temporais que se faziam sentir no exterior. A sua dimensão importava pouco já que a fé daquelas gentes manifestavase mais no mar aberto, olhos e preces postos no céu – que entre paredes de desobriga148. Certo é não se ficaram por perto da barra do rio, pois logo nele se embrenharam, subindo-o à procura de novos pousios, locais adequados para a safra do sável, espécie piscícola muito apreciada que por isso justificava empenho no emprego de novas artes. Porque embora pescado também na borda do mar, era de melhor qualidade quando capturado no interior dos rios, na época da desova. Assim, há notícia de colónias fixadas lá para os lados da ribeira da Azambuja, pescando nos baixios postos a descoberto pelas marés. E indo mais a montante atingiriam Vila Franca de Xira 148

98

Fonseca, Senos da, in «Ílhavo – Ensaio Monográfico», p. 295.


em 1825, tendo por ali deixado marcas indisfarçáveis (nos costumes e nos registos) da sua presença. De que é exemplo a Rua dos Varinos. Mas e também no legado de técnicas da construção de embarcações fluviais, facilmente identificáveis nas formas das ainda hoje usadas pelos derradeiros avieiros149, últimos «borda d’água» que ainda espalham as suas artes de pesca pelos canais do Tejo, na região de Vila Franca.

Fig. 55 – Avieiro.

Em 1880 Baldaque da Silva150 afirmava (já) a presença de 30 «ílhavas» a pescar na embocadura do Tejo, embarcando 450 tripulantes, representando colónias de mais 2.000 habitantes. Número significativo, se tivermos em conta a densidade demográfica (activa) da sua região de origem.

149

Gentes da praia de Vieira de Leiria que no início do Séc. XX se fixaram no rio Tejo. 150

Silva, A. Baldaque da, in «Estado Actual das Pescas em Portugal», 1892, p.

132.

99


4-2 A «ílhava», embarcação do Séc. XVII/XVIII ao Séc. XX Não existe nenhum exemplar da «ílhava» que tenha resistido ao tempo. Nem existem registos que permitam, com total segurança, fazer a sua reconstituição. De uma maneira mais ou menos correcta, ultimamente, têm sido feitos esforços, que justificam referência e registo151. No modelo, por nós assumido, baseámo-nos no seguinte material informativo: 1- Documentos fotográficos (fig.53 e fig.56), escolhidos entre vários, como aqueles que melhor mostram a embarcação de perfil.

Fig. 56 – «ílhavas» varadas em Cascais.

151

Existe um modelo «Saveiro» no Museu da Marinha, que visa reproduzir a «ílhava». O Cap. Marques da Silva produziu um modelo para a Diáspora dos «íhavos», de muito interesse e fidedignidade. O autor tinha, também, construído um modelo (fig.63). As diferenças maiores entre estas versões foram comentadas em http://terralampada.blogspot.com/ do dia 12.08.2007.

100


É este, em nossa opinião, o documento de onde melhor se podem retirar os pormenores que ajudam a definir, com algum rigor, as suas formas geométricas. Pelo menos, de um modo muito aproximado. 2- Outras informações – talvez as mais elucidativas 152 – sobre este tipo de barco podem ser recolhidas em Manuel de Castello Branco153 que fala das embarcações que todos os anos vinham daquelas paragens – da região de Aveiro – fazer temporadas de Pesca nas águas de Cascais.

Fig. 57 – Ílhavos no Tejo.

152

De meu pai recebi toda uma quantidade de informação sobre o hábito de meu avô alugar uma «ílhava» para ir com a família ao S. Paio. A sua descrição sobre o tipo de barco foi perfeita, elucidativa. 153

Branco, D. M. de Castello, in «Embarcações e Artes de Pesca», pp. 41 e 42, Lisboa.

101


Verificamos – sem margem para dúvida, se ainda a tivéssemos – que a embarcação é idêntica às das fotografias anteriormente reproduzidas. Esta embarcação era movimentada:

Fig. 58 – Disposição da tripulação na «ílhava».

– Ora por dois remos a que davam braço seis homens, em cada um: três remadores de pé, ao punho, virados para vante a jeito de empurrar; e três, também à proa, virados para ré a alarem pelo cambão (cabo que para o efeito anda amarrado ao punho do remo). – Ora através de uma vela de pendão154, amurada no mastro ou à borda155. Esta vela de pendão teria sido, admitimos, a 154

Este tipo de vela quadrada vinha de tempos remotos e teria sido usada, provavelmente nas embarcações chinesas. Tratava-se de uma vela que veio substituir os remos, envergada por meio de envergues de uma só volta, numa verga cruzada horizontalmente, de bombordo a estibordo, com as escotas presas à amura e a adriça (que a levantava) à bancada. 155

As velas de pendão amuravam ora à proa; ao mastro; ou à borda, de acordo com os ventos dominantes.

102


precursora da vela de amurar à proa com bolinão, utilizada já em fins de oitocentos, pelos «Moliceiros»156.

Fig. 59 – «ílhava» navegando à vela e a remos.

A «ílhava» era tripulada pelos já referidos remeiros (12), embarcando mais três homens (e o arrais) para a rede, num total de quinze/dezasseis, tripulantes.

Fig. 60 – «ílhava» a remos 157.

156

A vela do «Moliceiro» foi desenvolvida tendo por missão permitir excelentes condições de bolina, em ventos fortes. 157

Note-se o remo ao «cambão» e a disposição da tripulação, no total de quinze.

103


Fig. 61 – «ílhava» navegando à vela na Ria de Aveiro158.

Fig. 62 – «ílhava» preparando-se para a faina159.

Em 1890 uma bateira deste tipo custaria 20$000 réis. Em Ílhavo o preço indicado, em 1864, para uma bateira de mar era de 15$000 réis. 158

Nota-se a evolução da vela, que nesta embarcação amura (já) à proa, e calca ao pé do mastro. 159

Notar o aumento do pontal por intermédio de uma falca (fixa).

104


Destas informações, elaborámos a reprodução à escala desta embarcação de largo historial, para uma eventual recuperação museológica. Toda negra embreada a pez negro, ela foi o instrumento dDestas informações tentámos a reprodução à escala ,para uma eventual recuperação museológica desta embarcação histórica certamente a mais históricaa diáspora dos os ílhavoslhavos fora de portas, na grande safra no Tejo.grande faina Tomámos como base as dimensões principais, que Castello Branco nos indica:

Comprimento

---------------

13,75m

Boca

---------------

2,50m

Pontal

---------------

0,60m

Remos

----------------

2

Cor

----------------

Preta

4-3 Sugestões recolhidas do modelo

105


Fig. 63 – Modelo «ílhava» à escala 1/27.

A visualização material do modelo à escala, da bateira, dá-nos um manancial de sugestões. Pensamos ser interessante, sobre as mesmas, exercer algumas reflexões: 1- A embarcação induz desde logo a ideia de ter estado na base de inspiração da criação do «Moliceiro» (Cap. 5). 2- A confirmar esta ideia existem diversas referências de, a «ílhava», ter sido, não só utilizada nas actividades da pesca, mas também, vulgarmente (muito) utilizada, na recolha de moliços na laguna160. Não lhe faltam características fundamentais para o bom desempenho de tal tarefa: cala muito pouca água (cerca de 20/30 cm), tem o bordo baixo, e é dotada de vela auxiliar, fundamental para ajudar no arrasto das ervagens lagunares. 3- A sua borda baixa (pontal 0,60 m) poderia, nessa actividade, ser ainda mais baixa, pois a falca fixa, exibida no modelo, apropriada para a pesca no mar, poderia ser falsa em certas utilizações específicas (por exemplo na apanha de moliço). 160

Ver Cap. 5 – O «Moliceiro».

106


Na «ílhava», a vela era apenas utilizada para as popas (ventos pela ré). Na utilização da apanha do moliço (Séc. XVII/XVIII) feita em locais próximos da margem, ao arrolado, na borda (e não ainda para os grandes transportes, norte-sul, na laguna), era perfeitamente satisfatória a vela de pendão ao mastro ou à borda. Na arte da tarrafa, tal vela era apenas um auxiliar para chegar, ou regressar, ao local de pesca. A «ílhava» usava seis remadores ao remo: três ao punho e três ao cambão. Isso exigiria uma posição de remar muito típica que mais tarde foi utilizada nos «Meia-luas», da xávega. Por isso o seu interior teria que ter uma lógica funcional especial, dada a dimensão da boca, incluindo para isso as estribeiras para posicionamento (fincamento) dos remadores de pé. O velame de pendão, servia, como já referimos, apenas para as popas. Era por isso baixo o seu mastro (2,5 – 3 vezes, a boca); a verga (também conhecida por invergue) era muito longa (3,5 vezes a boca). Prendia à amura de barlavento aquando da popada cheia, oferecendo a maior superfície possível à acção do vento. O encosto da verga ao mastro (pela troça161) era feito a 1/3 do extremo anterior daquele, o que permitiria uma armação (quase) como se tratasse dum pano redondo. Sem valuma, bolinão ou esteira162 – para afinação – mas com rizos163, a vela incipiente da «ílhava» foi – tudo o indica – a clara inspiradora da vela do «Moliceiro». Neste, havendo necessidade de uma performance vélica já evoluída de modo a permitir a adaptação da embarcação às bolinas cerradas, foram sendo introduzidos novos aspectos de ajustes permanentes da vela às amuras de navegação. Necessidade que se veio impor pela intensa procura do moliço na região dos lagos das gafanhas,

161

Ver Cap. 5 – O «Moliceiro».

162

Ver Cap. 5 – O «Moliceiro».

163

Ver Cap. 5 – O «Moliceiro».

107


pródiga nos herbáceos lagunares e cuja apanha obrigaria a longos percursos. A borda da «ílhava» era certamente suficientemente forte para fixar o cabo ao calão da arte, quando utilizada na tarrafa. Teria por isso, certamente, draga interior de reforço à borda, embora não constituindo, ainda, borda de correr. A «ílhava» foi usada como bateira do mar, tendo trabalhado na sua pancada, antecedendo nesse labor o «Barco do Mar» das artes grandes. Para isso, a «ílhava», tinha de ser forte de estrutura, com pontal superior ao actual «Moliceiro». Neste, a especificidade da sua missão obrigou a limitar a altura do bordo tendo em vista reduzir o esforço no acto de levantamento do ancinho carregado, a fim de o meter dentro da embarcação. Na «ílhava» o problema era diferente. Nesta embarcação existiria, pois, uma borda falsa164 fixa, sobreposta sobre o bordo, aumentando-lhe o pontal. Poderia, em alguns casos, ser sobre esta colocada uma falca móvel. A vela da «ílhava» não teria calcadeira. Ou pelo menos um verdadeiro calcador, pois que o ponto de amura, na esteira, a vante, seria móvel. O bolinão, pouco necessário já que não se bolinava no sentido exacto do termo era muito empírico e fixado muito a meio da testa165 da vela, servindo quase que exclusivamente para a puxar para vante. Os remos com cerca de 10 m de comprimento, tinham a particularidade de ser do tipo cágado: – a pá era direita, aposta e pregada sobre a vara (de eucalipto) que terminava no punho.

164

Falca é uma tábua, menos espessa, móvel ou fixa, destinada a permitir uma melhor defesa à vaga. 165

A testa é a face trapezoidal da frente da vela.

108


Podiam ser accionados166 pelo punho, ou pelo cambão. Existia um outro cabo – a soca – ligada (para ré) à estribeira mais próxima, com o fim de evitar que o remo fosse impelido para vante, demasiada e inesperadamente (por efeito de uma vaga) e fosse bater no peito do remador sentado. Como referimos anteriormente, a «ílhava» utilizava já as estribeiras para que os remadores de pé (de frente para a proa) fincarem os pés. Na borda da embarcação existiam uns cabeços, nas amuras a ré, destinados a passar laçada dos cabos de alar a rede da tarrafa. O leme era de xarolo. A sua forma exacta – se acompanhava a curva da popa, ou abria na porta mergulhando mais para atrás – é difícil de conjecturar. Pois que sendo só utilizado nas navegações à popa, a sua acção era muito menos decisiva para o governo da embarcação. E por isso seria muito mais reduzido que o depois utilizado no «Moliceiro». A estrutura resistente da embarcação era constituída por cavernas e braços de cavernas. O castelo de proa era de pequenas dimensões, bem diferente do que iria aparecer no «Moliceiro» que servia para dormitório da tripulação. Na «ílhava», a parte da proa coberta tinha apenas a utilidade para recolha de roupas e outros acessórios, não para pernoita. Claramente, a «ílhava» era uma verdadeira bateira de mar. De dimensão muito apreciável (13,75 m) e bordo relativamente elevado (0,6 m)167, era substancialmente poderosa se comparada com as que mais tarde (Séc. XX) foram referidas como «bateiras interiores». Que não eram mais do que embarcações da laguna, não

166

Nestas bateiras de mar, o tipo de accionamento dos remos, foi um precursor do mais tarde utilizado no «Meia-Lua». 167

Esta questão do pontal relativamente alto foi resolvida com a concepção do «Moliceiro», em que a actividade de levantamento e da recolha dos ancinhos era mais intensa, obrigando a uma diminuição do pontal para 0,45 m.

109


ultrapassando os 8 – 9 m, apenas em alguns pontos da costa deslocadas para a borda do mar (Torreira, Mira, Buarcos e Cova) para aí serem utilizadas como «robaleiras». As designações dos componentes estruturais da «ílhava» não diferem das utilizadas no «Moliceiro», e têm uma forte componente de influência normanda168: mastro, leme, bordo, carlinga, ostague, escota, rise, içar, bolina, etc. Dado o «Moliceiro» ser, em nossa opinião, uma evolução da «ílhava», optámos por no capítulo dedicado àquele (Cap. 5), nele indicar com mais pormenor a funcionalidade dos referidos componentes. A designação de «Saveiro» (do salaveiro, árabe), adveio, como acima dito, da utilização de uma embarcação similar, mas de menor dimensão, na safra daquela espécie piscícola, no Douro, Tejo e Sado. Uma outra embarcação muito semelhante à «ílhava» – usando uma falca alta, postiça – foi a «Esguicha»169.

168

Cortesão, Jaime, in «Descobrimentos Portugueses», Vol. I, p. 182, ed. Imprensa Casa Moeda – Lisboa. 169

A «Esguicha» tem na Barrinha de Mira umas réplicas muito semelhantes, mas de menor dimensão. Variando entre os 4 e os 6,5 m.

110


Fig. 64 – «Esguicha» no areal.

4-4 Planos Geométricos (2D)170 Das considerações anteriores, resultou o plano geométrico de formas, que se pode visualizar, na escala 1/30, do anexo.

170

Ver DVD anexo.

111


4-5 Planos GeomĂŠtricos (3D)171

171

Ver DVD anexo.

112


113


114


Cap. 5 – O «Moliceiro» Fizeram dele o ex-Libris da Laguna. De tal modo a sua silhueta elegante e bela despertou a atenção a estranjas – com o seu colo esguio e as suas linhas tendidas que mal parecem pousar na água – que se apressaram a levá-lo para o Museu de Douarnenez, exibindo-o entre as jóias recolhidas das embarcações históricas tradicionais, francesas, concedendo-lhe honras de peça rara. Deram-lhe lugar de destaque, colocando-o em pose elegante e singular. E com vela enfunada, concederam-lhe chança desmedida, como que apostado em travessia da laguna, numa perspectiva feliz de onde, num só olhar, se pode colher todo a singularidade inimitável das suas linhas. Que sendo harmoniosas não deixam de ser singularmente atrevidas. Fotografias avulso, e ou insertas nos diversos livros e publicações que o glorificaram em merecida homenagem, correm mundo. Fixando-o para memória como se de verdadeira obra de arte se tratasse. O «Moliceiro» é, sem dúvida, uma genial criação da arte naval local ao ver-se confrontada com o desafio de corresponder a um conjunto de necessidades que se fizeram sentir, quando o homem não teve outra solução, que não a de investir contra o meio físico que o circundava com o fim de temperar o areal lamacento que encontrou pela frente. O «Moliceiro» esteve presente nesse desafio desancado, escarpado, acompanhando o desmouchar da terra para a tornar fecunda. De tal modo está identificado com a construção da nova paisagem, instrumento privilegiado da transformação das dunas movediças e das lombas eriçadas pelo vento, em enverdecidos prados, que o «Moliceiro» passou a fazer parte integrante da história lagunar, a par com o rústico lavrador: – espécie humana meia anfíbia, meia terráquea. Quase poderíamos arriscar a afirmação de não existir canto civilizado, onde, em menor ou maior escala de divulgação, a imagem de o «Moliceiro» não tenha sido difundida. Plasmado na 115


paisagem lagunar, numa ria banhada por fogachos doirados, inundada de luz, estendida até aos milheirais que lhe afagam o corpo líquido e lhe dão forma caprichosa, sulcando as suas marolas bailarinas, a sua silhueta enforma e identifica a paisagem.

Fig. 65 – Paisagem lagunar.

O «Moliceiro» é uma obra de arte perfeita, produto do engenho criativo da mestrança naval que fixada de há muito na borda lagunar, teve, em dado momento da sua história, de inventar novo tipo embarcação para desempenho mais eficaz de uma actividade, que não sendo nova, era necessário tornar muito mais produtiva perante novas necessidades. E de enxó em punho, deu forma e jeito ao cavername da embarcação, desenhando-lhe a linha esquisita e petulante, enquanto foi dando resposta, com inusitada criatividade, às especificações requeridas para o fim específico pretendido: – o

116


da recolha e transporte intensivos do moliço para todas as malhadas172, motas173 ou folsas174 dispersas pela ria.

Fig. 66 – Malhada do cais do Areão.

As ervagens lagunares existentes nos fundos lodosos da laguna foram utilizadas para enriquecimento das terras arenosas, «brotadas» das profundezas das águas lagunares que era necessário transformar em terras de pão para sustento das gentes que se acolhiam ao seu chão, ainda húmido. 172

Malhadas: áreas da borda, de preferência com declive para descarga da ervas. Algumas, principais, com razoável acesso por terra, eram servidas por pequenos portos da ria onde o moliço ficava a escorrer. 173

Motas: pequenos parapeitos para descarga. Poderiam ser construídos em estacaria, sendo muito utilizadas, também, para descarga de mercadorias ou passageiros. 174

Folsas: pequenos regos por onde ficavam as embarcações e onde se podia também fazer descargas.

117


Fig. 67 – Apanha do moliço ao arrolado.

Para tal desiderato o lavrador foi-se a «elas». Com o enxadão revolveu-lhes a alma lassa encharcando-a de moliço para que este ajudasse a suster a água que por elas se esvaía, mal lhes caía em cima. E com aquelas verduras envoltas no lodaçal dos fundos, juntando-lhes escaço175 para as temperar, o labrego foi, pouco a pouco aquecendo o ventre arenoso das terras ribeirinhas, para que nele vingassem as sementes, que teimosa e pacientemente, lhe ia depositando. Obstinado a moldar uma nova paisagem que mais se afeiçoasse ao seu destino, foi ano após ano indiferente às negativas que pareciam apostadas em destruir-lhe a esperança, teimando, misturando nelas o suor que lhe ia correndo pelas faces gretadas pelo sol e pelo vento. Insistindo as vezes que preciso fosse até que das lombas desertas, ao princípio, começassem a espevitar magros rebentos que por milagre foram enverdecendo até se transformarem nos prados esfusiantes de viço a debruar a extensão líquida lagunar. E assim nasceria uma verdadeira obra-prima; na tela ao princípio 175

Escaço era uma mistura de tripas de peixe extraídas para a sua salga, pilado (caranguejo do mar) e peixes de pouco interesse comercial.

118


inerte e amorfa, foi surgindo em fortes pinceladas, esparramado, um verde intenso. Aqui e ali, a espaços, pontilhado de um ocre dos tugúrios por onde se acolhia o rústico, circundados pelo azul turquesa do espaço líquido, que, irrequieto, se intrometia, atrevido e tortuoso, num desenho labiríntico a moldar as franjas pouco consistentes e aquietadas dos seus chãos. Instrumento de trabalho, o «Moliceiro» desperta-nos desde logo a atenção pelo insólito da sua decoração, como que pretendendo afirmar-nos nele haver vida, para lá do cumprimento essencial da sua missão.

Fig. 68 – «Moliceiro» na bolina.

119


Fig. 69 – «Moliceiros» a um largo.

Cativa e prende o olhar, a singular e profusa decoração, plena de cor e garridice nas virtuosas e espantosas cercaduras policromas que numa expressão multicolor, esfusiante, põem em destaque quatro iluminuras situadas nas zonas nobres da embarcação (proa e popa, a B.B. e E.B.). Nelas recriando flores e ramalhetes, reinventando-os, ou alinhando motivos geométricos herdados da ancestral estética árabe. Esparrinhados em tons fortes sublinhados com sombreados que melhor lhe avivam os contornos e servem de enquadramento às pinturas naifs, ingénuas mas expressivas, tituladas por rodapés chocarreiros, plenos de acinte e ingénua malícia, nas sugestões, que iluminam a interpretação do painel. Esta singularidade visual identifica-o e distingue-o de todos os seus pares lagunares, elegendo-o como um objecto de espaventosa chança para exibição em dias assinalados, nos momentos de folguedo aprazado, já que, como Luiz de Magalhães sublinhou: – para os moliceiros a semana era da água e o domingo da terra176177.

176

Magalhães, Luiz de, in «Os Barcos da Ria de Aveiro».

120


Os amanhadores da gleba decididos a prover a engorda da mesma para lhe dar a força geradora de vida, tiveram de vestir manaias e descalçar os tamancos para se embrenharem na ria a catar do seu fundo lodoso as fitas esverdeadas. Penteando-o com os ancinhos, trazendo-as apressadamente para a borda para com elas encharcar as areias178, e assim as tornar mais avaras a se deixarem trespassar pela água, que era necessário e fundamental reter. Embarcados no «Moliceiro», com ele deambularam ao deus dará pela ria, a lavrar os seus fundos. Para cá e para lá ziguezagueando desde que tivessem um palmo de água, que fosse, debaixo do fundo da sua embarcação. O «Moliceiro» era (é) um barco rápido e ágil, superiormente adaptado para as viagens entre o norte e o sul lagunar, muitas vezes – ou quase sempre –, feitas a contravento. Se o não era na ida, era-o na volta. Para tamanha exigência, o «Moliceiro» foi concebido com uma linha de flutuação longa para assentar em pouca água, sendo-lhe bastante cerca de um metro de água. A um longilíneo casco, muito rasteiro e por isso capaz de alcançar óptimas velocidades179, juntou-se uma boca possante com o fim de lhe conceder capacidade apreciável de carga (5 Tons). E finalmente, envergaram-lhe uma vela latina de pendão, suspensa num mastro longo, atada na verga (invergue), laçada e encostada ao

177

Havia muitas e diversas festividades lagunares de evocação a oragos queridos de povoados ribeirinhos. As mais afamadas eram o S. Paio (Torreira), Srª da Saúde (Costa-Nova), Srª da Maluca (Gafanha da Encarnação), Srª da Marinha (Marinha), Srª da Boa Viagem (Torrão do Lameiro), Srª das Areias (S. Jacinto), Santo Inácio (Boco), etc. 178

Durante muito tempo louvaram-se as qualidades fertilizantes do moliço. Misturado com o escaço e o pilado, sê-lo-á. Sozinho, investigadores credenciados provaram que nem tanto. Já na sua função como retentor da água, todos estão de acordo. 179

A um largo o «Moliceiro» ultrapassa bem os sete nós.

121


mastro lá no alto, caindo por ali abaixo com os seus 24 m2180 de pano exposto à aragem. Por vezes – no ror das vezes! – bem forte.

181

Fig. 70 – O Labrego e o Moliceiro

.

5-1 Inspiração Numa inspiração singular – única! – talharam-no com uma forma recurvada à proa, parecendo com isso querer distingui-lo das restantes embarcações, que já por então – quando compareceu ao serviço – há muito navegavam na laguna. E que era norma terem as bicas, de proa e popa, atiradas para o céu, afastando-se. Ao contrário, no «Moliceiro», a bica de proa foi propositada, notória – 180

A superfície de pano foi variando com o tempo; as velas foram passando dos 40 m de pano utilizados (cerca de 23 m2), aos 100 m de pano, hoje utilizados para fins de competição (56 – 60 m2). 181

O «Moliceiro» foi, como referido, praticamente concebido para utilização na faina do moliço. Mas serviu ao lavrador da borda para nele transportar animais, produtos, alfaias e outros.

122


e caprichosamente! – recurvada, e elegantemente prolongada, dizendo para trás, num mostrar precioso – e gracioso - de um colo que muitos sugeriram ser inspirado no cisne,

Fig. 71 – Desenho de Teodoro Craveiro.

quando no voltear da cabeça, lança desdenhoso, mas impante e petulante, um olhar insolente para trás. Esta forma de proa no seu terminus, não é resposta a qualquer exigência funcional; parece claramente indiciar que a intenção foi a de exprimir a individualidade inimitável deste barco que é uma espécie de alfaia agrícola. É um carro fluvial dos lavradoresbarqueiros, que cultivam as dunas marginais da ria e os aluviões do Vouga182. Não deixamos porém, de reflectir, que armado por lavradores, certamente não será ousado avançar com uma leitura mais prosaica. A de ser tal forma inspirada nos «cornígeros» apêndices dos bois da lavra. Numa reconhecida homenagem àqueles animais, robustos 182

Lima, J. de Magalhães, ant.cit.

123


e infatigáveis, que peados no seus baraços – estes também entalhados à goiva e profusamente enfeitados – obedeceram ao pedido de esforço titânico que lhes foi exigido pelo homem da beirada da laguna. Acompanhando-o na pertinácia com que se atirou a deviginar a paisagem adversa. Sem tal ajuda seria impossível o surribar daquelas planícies que então pareciam imensas e desumanas, irrequietas, volúveis com a ventania, transformando-as nos prados verdejantes, dos troncos tenros e frescos de milho embandeirados. Então, mais nos inclinamos a ousar admitir se ter pretendido, desse modo, transmitir ao barco – que na parte restante do seu corpo exibe uma clara fragilidade – a força emergente, concentrada, nos poderosos costados hercúleos daqueles animais. E desse modo lhes prestar inequívoca homenagem e apreço, ao tempo em que simbolizavam na frágil proa da embarcação, essa força que a impulsionava na lavra da laguna. A apanha de ervagens arrancadas à ria vem de tempos longínquos. Certamente desde o momento em que o ligeiro aquecimento das águas da ria permitiu a sua gestação, ao retê-las no seu interior. Instintivamente, logo o rústico arroteador vislumbrou que misturadas com o escaço e o lodo, constituírem a melhor mezinha para as terras rotas em que afundavam os pés. Depois de postas a secar, polvilhavam com elas as areias, soltas e rotas, que pretendiam transformar em terras de pão, conferindo-lhes, desse jeito, a força – o húmus – para as levar a produzir. Era um trabalho amargo, feito momento a momento sobre um plano imenso de areal que o vento fustigava e martirizava, desfazendo numa volta o que se tinha construído ontem. Molestando a esperança mas não conseguindo desfazer a temperança daquelas gentes da borda-d’água, que teimosa e esfalfadamente voltavam de novo – as vezes que fosse preciso –, para de novo reavivar o rego ou lamber as feridas deixadas pela intempérie.

124


5-2 Breve história do Moliço A apanha e o trânsito de moliço (moliço verde183), cresceram desmesuradamente no espaço lagunar logo que se teria iniciado a colonização das terras das Gafanhas (1677), e um pouco mais tarde, o povoamento do cordão lagunar a norte da Torreira (Séc. XVIII). Em 1446184 há já, contudo, notícias de embarcações na faina de amanhar o húmus com que se enriqueciam os campos arenosos. Existem, mesmo, registos de contendas travadas no Séc. XIII e que se repetiriam até ao Séc. XIX, acontecidas no norte da laguna, entre Senhores e as populações de Esmoriz e Paramos185, derivadas do entendimento destas últimos de que o uso dos moliços deveria ser comum não devendo por isso ser pago aos Senhores a sua recolha. No Foral concedido por D.Manuel I, em 1514, a Ílhavo, referenciam-se num dos seus pontos as taxas que incidiam sobre a recolha de junco, junça e esparto186. O que nos conduz a perceber, que nesse tempo, a apanha de moliços verdes não seria ainda encarada, nem teria, ainda, expressão. Contudo, em 1779, nas vizinhanças do termo de Eixo teriam acontecido altercações e levantamentos populares derivados das populações não entenderem dever pagar imposto à Câmara, pela

183

Uma barcada correspondia a quatro carradas. E eram precisos quatro barcos de moliço verde para dar um seco. 184 185

Fonseca, Senos da, in «Ílhavo – Ensaio Monográfico», ant.cit., p. 233. Amorim, Inês, in «Aveiro e sua Provedoria», 1996, p. 259.

186

O moliço tomava diversas designações por toda a ria: entre outras a de carqueja, carrapêto, erva, erva de arganel, estrume novo, fita, folha, folhada, corgas, limo, mormassa, mormo, musgo, papeira, pojo, rabos, seba, sirgo, trapa e muitas outras. Laranjeira, Lamy, in «A ria de Aveiro».

125


apanha de ervagens retiradas da ria. Em 1802 foram fixadas taxas em benefício da real fazenda, resultantes, entre outras, da apanha de moliço, fixando-se em 40 réis para barcos grandes, e 20 réis para barcos pequenos. E a Câmara de Aveiro, em 1806, veio a impor coimas a quem andasse a apanhar moliço e não tivesse licença para tal187, o que era vulgar acontecer por toda a área lagunar. Mais: – em Vagos, no início do Séc. XIX (1815), foi vedado às gentes do norte da ria virem apanhar moliço ao canal do rio Boco. Guardavam estas gentes, desse modo e ciosamente, um bem que lhes era indispensável para curar as feridas das suas terras, fecundando-as e engordando-as. A vinda de embarcações apropriadas lá do norte da laguna, para colher moliço no sul, pode servir para levantar a hipótese de que já em meados do Séc. XVIII, provavelmente, «Moliceiros», navegariam, já então, na ria. A pressão sentida com a procura e a necessidade de definir domínios públicos fez com que as Cortes, em 1822, declarassem os leitos dos rios pertença do domínio público, sendo por isso proibido a qualquer administração local cobrar rendas sobre o que dos referidos leitos fosse extraído. Em 1903, a Câmara de Ílhavo viria a contestar a decisão do Supremo Tribunal Administrativo, sobre a resolução de um recurso que já vinha de há 27 anos, em que se retirava àquela Câmara o poder de estabelecer posturas no referente à apanha de moliços nos lagos das gafanhas e na ria, na Costa-Nova. O que vinha a colocar em causa um dos mais notórios rendimentos da referida Câmara. Na última postura (1899), a Câmara tinha fixado que os de fora não poderiam apanhar moliço sem obtenção de uma licença de 3.500 réis. Aos locais, a licença cobrada era de 1.500 réis. Em frente da

187

Arquivo Municipal Aveiro, livro 9.

126


ria, o metro de terreno para secagem era de 50 réis; e atingia o valor de 3.500 réis por cada barco ou bateira, carregada do mesmo, sendo decretado que os locais não poderiam vender para fora.

Fig. 72 – A frota.

A partir da referida data, a cobrança reverteria (até ao fim daquela actividade no Séc. XX) para a Administração Central, não obstante a forte contestação das Câmaras locais. Pensamos poder equacionar que a apanha de moliço, sacado da ria, arrastado pelos ancinhos amordaçados entre a forcada e a tamanca188, aparece na segunda metade/finais do Séc. XVIII. Presos pelos dentes e dobrados sobre os costados do ancinho, ao baldear-se para o barco, vêem-se pendentes as lustrosas fitas da seba, os fios verdes do sirrabo, a pastosa lombada da folha. A 188

Chamado de mariscar.

127


operação repete-se dez, cem vezes. Assim nos descreve o Pe.Vieira Rezende189 a azáfama, dura e intensa, do mariscar.

Fig. 73 – O ancinho entre a forcada e a tamanca.

Fig. 74 – Carga de moliço.

189

Rezende, Pe. J. Vieira, in «Monografia da Gafanha», ant.cit., p. 202, 2ª ed.

128


Fig. 75 – Descarregando o moliço no Bico da Murtosa.

Fig. 76 – Descarregando moliço na Costa-Nova.

Que se teria verificado quando a recolha à borda – ao aboiado190 – não era já suficiente para as necessidades que ano a ano se teriam 190

Também dito arrolado. Podia ser provocado pelo arrasto. Era moliço desprendido do fundo e que depois boiava (lavado) à superfície.

129


feito sentir na última metade do Séc. XVIII, alcançando a máxima procura em meados do Séc. XIX. Para prova final da nossa conclusão servimo-nos das Informações Paroquiais do Séc. XVIII, referentes a Stª Marinha de Avanca, onde se pode ler a referência à imensidade de embarcações existentes na Ria usadas a procurar a extracção dos seus argaços, que nomeiam moliços referindo que somente desta freguesia são mais de trezentos191.

Fig. 77 – «Moliceiros» na faina.

A utilização referenciada da «ílhava»192 em tal função – que se deveria ter verificado por fins Séc. XVII, ou com mais certeza por todo o Séc. XVIII –, antecedendo ou sendo contemporânea da utilização daquela embarcação na pesca, na borda do mar, leva-nos a colocar a hipótese de, com fortes probabilidades, ter o «Moliceiro», na forma que hoje lhe conhecemos, surgido na laguna por finais do Séc. XVIII – (de certeza no final do mesmo) – 191 192

A.D.A., Vol. 35, p. 276. Ver Cap. 4 – A «ílhava»

130


tendo aumentado o seu número por todo o Séc. XIX. A «ílhava» terá sido uma embarcação de pesca casualmente utilizada para a apanha de moliço. Ao invés, o «Moliceiro», foi desde logo e só, uma embarcação criada exclusivamente para uso do labrego, para recolha intensiva das referidas ervas lagunares. Esta viragem terá tido origem na constatação de ser o moliço, na altura, o melhor e o único tratamento disponível para cura das terras arenosas. E que para dar corpo e dimensão a esta indispensável actividade, se concluiu da necessidade de construir um barco específico para lhe dar expressão. Procurava-se, assim, responder com eficácia à pressão sentida, advinda da necessidade de colher tais ervagens das águas lagunares em quantidades significativas193, à medida que iam chegando novos foreiros e a área de cultivo aumentava a olhos vistos. No início do Séc. XIX indica-se a existência de 1220 arrais, e ou moços, embarcados nas 600 embarcações que se dedicavam à recolha do moliço. Em 1858 refere-se194 serem já 2.542 os tripulantes embarcados em 1.342 embarcações.

193

Sousa, Tomás Taveira, in «Moliços», 1934, calcula em cerca de 300.000 400.000 ton /ano a quantidade de moliço a ser embarcada na época de maior intensidade de recolha – ADA, II vol. p. 57 e seg. Francisco Regala em 1889 calculara 505.000 ton. 194

Corografia Industrial do Concelho de Ílhavo, 1864.

131


Fig. 78 – «Moliceiros» na Ribeira.

Fig. 79 – «Moliceiros» em viagem.

A partir do Séc. XX registamos a existência das seguintes licenças195. 195

Arquivo Geral da Marinha.

132


Quadro IV Registo de embarcações e custo das licenças de moliçoo

133


o

134


Por sua vez, Lamy Laranjeira em «A ria de Aveiro»196 refere a evolução do número de barcos registados na Capitania de Aveiro desde 1883, como abaixo se reproduz (não diferindo dos nossos números). Quadro V Mapa evolutivo de registos de «Moliceiros». Ano

196

Nº Embarcados

1883

1342

1889

1749

1911

1054

1931

1004

1935

1008

1949

794

1959

542

1969

164

1975

30

1980

27

1983

22

1985

2

1987

3

Laranjeira, Lamy, in «A Ria de Aveiro», ed. Portucel.

135


1988

2

O Pe. Vieira Rezende regista 866 «Moliceiros» na Laguna, em 1942.

5-3 Características do «Moliceiro» Equacionada a hipótese da datação (aprox.) do seu aparecimento no mundo lagunar, passemos então a definir as principais características desta embarcação. Podemos certamente assumir que houve dois tipos de embarcações com muitas afinidades entre si, e que comumente são designadas por «Moliceiro»: um, o construído para as bandas do norte da Laguna (Murtosa, Pardilhó , Estarreja, Ovar, etc.)197,que pouco diferia do construído em Ilhavo e Aveiro (Esgueira); e o outro, o construído no canal de Mira (Gafanhas e Mira).

197

Lopes, Ana Maria, in «Moliceiros – A Memória da Ria» – ed. Quetzal, p. 41.

136


Fig. 80 – «Moliceiro» no carreto198.

O primeiro era, sem dúvida, o mais elegante nas formas e o mais impressionista pelo cromático da sua decoração. Era, ainda, mais longo. O segundo, completamente negro – na linha de tradição das embarcações lagunares –, era mais curto e menos apurado (mais rústico), muito menos ágil nas condições de manobra.

Fig. 81 – O «Matola».

Menos ágil, especialmente em bolinas, em que era mais arrastado.

198

Embora excepcionalmente o «Moliceiro» foi utilizado no carreto de animais, vinhos e tralhas.

137


Fig. 82 – «Moliceiro» versus «Matola».

Para lá destes tipos, outras embarcações («Mercantela»s199, a «Bateira Erveira de Canelas»200,

Fig. 83 – A «Bateira Erveira de Canelas».

ou as «Chatas» da pateira201)

199

«Mercantelas» eram bateiras de linhas idênticas ao «Mercantel», de dimensões mais reduzidas; comp.10 – 12 m; nº cavernas de 17 a 20. 200

Esta embarcação tinha na proa a forma de uma bateira com bica saída. Na ré ostentava um recurvar da bica para dentro tipo do «Moliceiro». Também recentemente se utilizavam uns pequenos «Matolas». 201

Tipo de barcas de fundo chato (reforçado por travessas) e costado muito baixo (20 a 30 cm) e comp. máx. 6,30 m; boca 1,30 m. Eram movidas à vara.

138


Fig. 84 – «Chatas» dos sapais de Cacia.

Fig. 85 – «Chatas» dos sapais de Cacia.

foram utilizadas, para além da «ílhava» anteriormente referida (Cap. 4), na faina da recolha das ervagens, em novas situações de desempenho mais no interior lagunar onde a faina se desenrolava na proximidade da sua posterior utilização. 139


5-3-1 Dimensões do «Moliceiro» Sendo o «Moliceiro» um referencial, e provavelmente o expoente máximo atingido pela evolução da construção naval ligeira, lagunar, justifica um registo pormenorizado das suas características e uma atenta observação para conservação rigorosa do plano geométrico das suas formas, de modo a evitar futuros abastardamentos. O «Moliceiro» é uma daquelas jóias da arquitectura naval que deve estar imune a todo o tipo de transformação, seja de formas e ou características (fundamentais). Sejam quais forem os argumentos que as pretendam justificar. Incluindo o seu possível desempenho em novas, e algo aberrantes, utilizações turísticas. Para isso pareceu-nos do maior interesse recriar seu plano geométrico de um modo preciso. Mas agora fazendo-o também em 3D, o que permite uma análise muita detalhada dos pormenores, e o seu registo e manuseamento, o que nos parece precioso contributo para a história desta embarcação. Tratava-se (ou trata-se porque o «Moliceiro» ainda hoje é construído, ocasionalmente, não para trabalho mas para fins de preservação e recreação turística), de uma embarcação que evoluiu de um comprimento de 13 metros202 (praticamente o mesmo da «ílhava» – 13,75 m203) para um comprimento de 14,5/15 m, sendo a linha de água, de aproximadamente 7,50 m. O «Moliceiro» tem de boca 2,50/2,60 m, e de pontal 0,40/0,45 m, sendo estruturado por 21 cavernas (11 para ré e 10 para a proa), sobre as quais são fixadas as pranchas do fundo, tabuado de largura variável, com 202

Magalhães, Luiz de, in «Os Barcos da ria de Aveiro», 1905-1908.

203

Se atentarmos bem na fig. 59 apercebemo-nos rapidamente que o «Moliceiro», é sem dúvida uma evolução directa e sucessiva da «ílhava»

140


espessura de 0,02 m. Sobre os braços das cavernas são pregados, face com face, os forros do casco que têm a mesma espessura que o fundo (0,0 2m). Verificamos desde logo que inicialmente as dimensões principais teriam sido como que decalcadas da «ílhava» (comp.13,75 m, boca 2,50 m, e pontal 0,70 m – ver Cap. 4). A deslocação do «Moliceiro» com 15 m de comprimento e com a boca de 2,50 m, é de 5 Ton.

5-3-2 Designação dos componentes Para elevar o bordo é utilizada uma falca, dividida em três partes. A falca de proa tem o comprimento de 3,05 m e atinge, a meio, 0,52 m de altura. A outra, o falquim, que segue daquela para a proa, a fechar, tem cerca de 1,50 m de comprimento, (tendo 0,02 m de espessura), só se utilizando nas bolinas com ventos fortes. Finalmente a falca de ré tem cerca de 4 m de comprimento. As falcas são fixadas pelas pernas ou pés que se encaixam nas encalas, espaços limitados pelas cavernas, sendo trilhadas entre a draga e a borda. A sua vedação contra o bordo é conseguida por intermédio de um cordão (tiras) de serrapilheira, por vezes «untado» com lodo, para assim melhor suster a entrada de água quando a borda mergulha204.

204

O próprio moliço exercia, empilhado, uma vedação à entrada de água.

141


Fig. 86 – «Moliceiro» carenado205.

Elemento preponderante para a navegação à vela, é a toste; trata-se de uma prancha trapezoidal constituída por tabuado de pinho com cerca de 2,30 m de comprimento, e largura que vai de 0,70 m no cimo, a 1,00 m na borda inferior. Na parte superior (cabeça da toste), são feitos dois orifícios para a passagem do cabo da toste que a enlaça no mastro. A cabeça da toste é reforçada, na zona onde tem os furos para passagem dos cabos. A sua posição na água é muito próxima da vertical – dizendo um pouco (15/20º) para ré –, e a sua função é a de criar uma componente anti-deriva que anule o caimento transversal. Tal componente conjugada com o impulso gerado pela vela, cria a resultante que origina o avançar da embarcação. Utilizam-se duas tostes a cada mastro; uma levantada (a barlavento) enquanto a outra está metida na água, (a sotavento). As tostes na situação de arrasto do moliço podem ser colocadas, pousadas transversalmente de borda a borda, com o sentido de facilitar o trabalho aquando das manobras de recolha e acamação das ervas. 205

Na foto pode ser apreciado que uma das tábuas do fecho do fundo já está colocada. Seguidamente será colocada a outra. E finalmente, com o barco nesta posição, será colocada a tábua de fecho do costado.

142


Quando na faina do arrastar206, com a finalidade de facilitar a deslocação dos moços na borda, a toste pode ser colocada montada no pau da tosta, ajudando assim a melhorar o governo da embarcação. No desenho abaixo identificam-se os principais componentes da embarcação. .

Fig. 87 – Nomenclatura.

O mastro é feito numa vara única que entra na enora, atravessando o traste (peça que une as bordas consolidando a boca e que serve de guia ao referido mastro). O mastro tem um comprimento de 8 – 8,50 m207, e 0,17 m de diâmetro na base. Para as velas que hoje,

206

Esta forma de colher o moliço, com ancinhos de arrasto, era designada por mariscar. 207

Os barcos do início do Séc.XIX teriam mastros de 6 m.

143


exageradamente, se utilizam nas regatas lagunares (o motivo decisivo para manter viva a pretensão de conservar este património da sua história), os mastros ultrapassam já os 10 m. A sua parte inferior é talhada em quadrado de 0,10 m x 0,10 m que vai encaixar na coicia; a parte superior do mastro que toma o nome de cachola vai adelgaçando até à sua extremidade. No seu extremo superior – cachola – é inserido um rasgo rectangular (roldana), no sentido B.B. – E.B., por onde passa a ostaga. Pode ser inserida neste rasgo uma roldana, ou simplesmente embutida uma peça de madeira mais dura (por exemplo laranjeira) na sua parte inferior, para suportar o roçar da ostaga. Com a finalidade de permitir que a embarcação possa passar por debaixo das pontes, com tirante de ar insuficiente, o mastro pode ser facilmente arriado, sendo para o efeito «descochiado».

Fig. 88 – Moliceiro do autor, com o mastro «descochiado».

Para simplificar tal operação o «traste» decompõe-se em duas partes ligadas por dobradiças, sendo a de trás fixa. Levantando o 144


mastro, e libertando-o da coicia, mantendo-o pelo cambadouro, pode o mesmo ser arriado suavemente até o pousar no «forcado», colocado sobre cagarete. A verga208 é uma vara (de 0,80 m de diam.) onde a vela é envergada na parte superior por atilhos – os envergues –, enlaçada com nós direitos; a verga (invergue) tem em média 4,50 m de comprimento (actualmente nas velas regateiras chega aos 6 m) e é composto na frente pelo punho. A parte posterior, alevantada, denomina-se empena. O aconchego da verga ao mastro é conseguido pela maior ou menor folga dada pela troça209, e deve ser feito no primeiro terço/quarto anterior. Para a bolina o aconchego dever ser total, enquanto na popa pode ser mais lasso.

5-3-3 O Leme Atinge proporções notáveis este elemento fundamental para dirigir o rumo da embarcação. É notável que as suas linhas estejam em perfeita sintonia e harmonia com as linhas do «Moliceiro». Apresenta linhas curvas, doces, muito elaboradas, de uma elegância soberba, onde sobressai a chança, entalhe inserido na sua bordadura exterior. O leme divide-se 210: 208

Esta verga é na gíria, designada como invergue.

209

A troça, depois de encostar a verga, vem fixar-se junto à amarração da ostaga na draga. 210

Também ouvi designar por madre a parte central da porta do leme. Não creio que correctamente. Quando muito, madre, poderá ser a zona frontal onde se inserem os machos.

145


– a cabeça, que é atravessada pelo xarolo (com 2,00 m de comp. e cerca de 0,50 m de diam.) no qual, nas suas extremidades, se fixam os cabos de mando, a B.B. e E.B., – a porta ou pá do leme.

Fig. 89 – A imponente e elegante porta do leme.

O macho superior tem aberturas rectangulares – duas e até três –, onde pode entrar a cavilha (de ferro), permitindo suspender o leme a diversas alturas. O que permite a, o que facilita a deslocação da embarcação em baixios. Além disso permite suspendê-lo quando ancorada, atracada ou varada, evitando avarias. Nesta posição de todo levantado, o macho superior pousa a sua ponta inferior numa pequena cratera inserida na fêmea (superior), de tal modo que a parte inferior da porta fica a um nível um pouco levantado do fundo da embarcação. O pau da toste, para lá da função anteriormente referida, serve ainda para que a sirga – cabo que vindo do xarolo circunda o pau da toste – permita que o governo do leme se possa efectivar de qualquer ponto da embarcação.

146


Fig. 90 – Macho em descanso na fêmea.

Fig. 91 – Nomenclatura.

147


Na ausência de vento a propulsão da embarcação é feita à vara. Esta tem cerca de 4 metros de comprimento, sendo encostada ao ombro pelo moço que a finca no fundo lodoso. E, desse modo, correndo na borda, impulsiona a embarcação à medida que se desloca da proa para ré. Quando não há vento, ou por razões de forte corrente, a deslocação da embarcação pode ser feita à sirga. Nesta, a deslocação da embarcação é feita por tracção de longo cabo fixado na draga, à proa, ou no pau da toste, puxado por moço que se desloca pela borda da ria, a pé. Junto ao castelo da proa, quase na sua continuação, existe um estrado composto por dois paneiros – as painas – onde está colocada a lareira sobre uma chapa metálica (por vezes forrada a barro para proteger a madeira da agressão do fogo). De um espigão cravado na antepara do castelo de proa, pode ser suspenso o panelo de três pés, no qual a tripulação cozinha as refeições. Que sendo muito simples, tinham a virtude de serem quentes: – um caldo com uns olhos de couves, colhidos ali à borda, temperado com um pouco de conduto211. Ou uns peixitos (principalmente enguias) que teriam vindo enleados nos ancinhos ao longo do arrasto do dia, e que davam para uma saborosa caldeirada212. Ou ainda, até, se outra vitualha não houvesse dada o atraso na maré, dava-se um salto à borda, ao milheiral viçoso, de onde se colhiam umas espigas de milho tenro, que assadas, amainavam a fraqueza. Um pipo oval encanteirado no castelo da proa, continha o vinho com que a tripulação atenuava a exsudação diária, ou com que aconchegava, no estômago, o caldo fumegante. No referido castelo da proa existiam, a cada lado, como no «Mercantel», as prateleiras (cheleiras) onde se alinhavam louças, de

211

Conduto era toucinho salgado para engordar o caldo.

212

A caldeirada de enguias do «Moliceiro», não era exactamente como as actuais, amarelecidas pelos pós de enguias (açafrão). Não levava tomate, mas utilizavam o pão de unto que lhe conferia especial sabor.

148


barro ou de esmalte, e talheres de ferro, com umas canecas à mistura contendo alguns temperos, e um ou outro utensílio indispensável para o cozinhado: – almotolia do azeite, garrafa de vinagre, ou género cebolas, alhos e ou um pequeno suporte para colocar uma vela de estearina para uma iluminação nocturna, bruxuleante.

Fig. 92 – Portinhola.

Uma portinhola (a gaiola) fecha o castelo de proa. Nele existia uma caixa fixada à prateleira, designada por cofre, onde se guardavam as moedas recebidas pelas cargas vendidas. O piso do castelo da proa, em madeirame, era coberto por uns enxergões de folhelho sobre os quais se estendiam as características mantas de trapos, onde o arrais e o moço dormiam quando não havia condições de regresso atempado a casa, por vias da maré ou de outro contratempo, entretanto surgido. Muitas das vezes, as embarcações tinham que aguardar o virar da maré em zonas como a ponte das «Duas Águas», no Forte. O barco era encalhado e a tripulação aproveitava para dormir tranquilamente. Com a finalidade de ser acordado a horas, era fixado ao pé de um tripulante uma bóia deitada para a areia da coroa. Quando a maré enchia, os esticões da bóia eram o despertador da tripulação.

149


Também, na popa, existiam dois compartimentos cobertos. O primeiro que serve de assento ao arrais – a entremesa – onde guardava o barril da água. O outro – o cagarete – é o local onde se recolhiam as forcadas e as tamancas, e outros apetrechos. Na zona entre o varão da escota e a entremesa existe um paneiro.

5-3-4 Plano Vélico; Cabos e Poleame 17

2

1 3 4

16 15

5 6

11 7 14

8

12 13

9 10

Legenda: 1-Verga

7-Testa

13-Esteira

2-Envergue

8-Forra do calcador 14-Punho da escota

3-Cachola do Mastro 9-Alça da calcadeira 15- Valuma 4-Troça

10-Calcador

16-Mosca

5-Focinheira

11-Teada

17-Alça da empena

6-Bolinão (poas)

12-Rizes

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A vela do «Moliceiro», talhada e cosida à mão por mestres veleiros, rústicos, sem outro tipo de conhecimentos que não fosse o advindo de uma intuição notável para tão complexa tarefa, é produto de um sucessivo e intenso aperfeiçoamento. Obra a todos os títulos notável pelo aperfeiçoamento conseguido. Conhecimento transmitido de geração em geração, numa recolha (permanente) de dados observados, extraídos de experiências que foram sendo feitas no sentido de melhorar o seu desempenho. Uma vela de pendão, não tendo rigidez na parte inferior (por inexistência da retranca), depende, por isso, para o seu bom desempenho, de ter um talhe (corte) muito aperfeiçoado, de modo a adaptar a lâmina (o pano) às diversas incidências dos fluxos de vento, permitindo facilmente o seu escoamento sem turbilhões, elevando o impulso de deslocação final ao melhor compromisso ângulo-avanço. A vela é executada em pano de lona, identificado por um número (pano número oito, nove, e ou dez) que referencia a sua espessura. Há, assim, panos para ventos fortes (mais pesados) e outros para ventos fracos (mais leves). Impressiona que se descortinem na vela do «Moliceiro» todas as astúcias usadas na gíria náutica da arte vélica, permitindo o correcto ajustamento (o trimming) do seu perfil às condições de navegabilidade e tempo. Por incrível e inexpectável que pareça, todos os conceitos, habilidades e truques de afinação, usados na arte vélica moderna para melhorar o desempenho, são patentes desde há muito na vela do «Moliceiro». Como foi isso possível (?!), é pergunta intrigante. Fundamentalmente a vela do «Moliceiro» é um trapézio em que os seus lados se designam do seguinte modo: a valuma (1) – parte posterior; a esteira (2) – parte inferior; a testa (3) – parte anterior; e a empena (4) – parte superior, atada à verga. Conforme os metros de pano usados para a sua confecção, assim há velas de 35, 40, 50 metros. Nos tempos actuais, usam-se para as 151


regatas, 100 m. E até já se ensaiaram velas de 120 m. Poderemos pois dizer que uma vela de 50 m terá a área aproximada de 30 m2. Outro modo de designar uma vela, identificando-a na totalidade das suas medidas, é referenciá-la pelo número de tiras – teadas – de pano, usadas na sua feitura. Assim uma vela de 7 panos e meio – ou oito – na empena, significa que terá cerca de sete metros na valuma, e nove panos e meio, na esteira. As teadas são sobrepostas cerca de 0,02 m, em costuras de cima – abaixo, cosidas manualmente. Assim a largura real de cada pano corresponde a 0,58 m. Por isso, dez panos, correspondem a cerca de 5,80 m de largura. A toda a volta da vela é feita uma bainha, guarnecida por um cabo (fineo) de 0,004/0,006 m. Exteriormente à bainha, são nela cosidas as moscas, distanciadas aproximadamente de dez em dez centímetros. Pelas referidas moscas passa um cabo de sisal (hoje de nylon) de cerca de 0,012 m. A esteira não leva moscas, sendo rematada só com a bainha. Em algumas velas, constatei a existência de um cabo para afinar a esteira, o que permite «compô-la» melhor. Na testa, na parte inferior e junto ao mastro, a vela leva uma forra, chamada forra do calcador. Nesta forra são inseridas as abraçadeiras, atilhos que aconchegam a vela ao mastro. No cabo que as enforma são feitas a alturas de um pano (cerca 0,60 m), duas (três) mãozinhas. Servem para quando se riza o pano, se enganchar, aí, o cadernal superior da calcadeira, à medida que a vela diminui de altura na testa. Na linha que vai do punho da escota (ponta inferior traseira da vela) aos olhais dos calcadores, em cada junta dos panos são colocados os atilhos dos rizes, que servem para a manter enrolada quando rizada. Para rizar enrola-se a vela pela esteira (um ou dois rizes, e até três, em algumas velas), arriando-se a verga para a vela descer. Seguidamente enfia-se a talha superior da calcadeira no olhal ao nível do enrolamento, para a tensionar, ajustando-a, depois de rizada. A asa da escota mantém-se, pois é imutável em qualquer situação de rizar.

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Na valuma, de dez em dez centímetros, o cabo da bordadura é fixado à bainha pelas moscas, atrás referidas. São pequenas alças de pano (ou couro) cozidas na vela e que enlaçam o cabo. Pelas moscas passa o cabo de afinação da valuma. No corte da vela, quer na esteira, quer na valuma, o mestre veleiro dá um pequeno rodo. Isto é, o pano não é cortado a direito, mas faz uma ligeira curvatura no centro (cerca de 0,05 m de flecha). Na testa da vela, junto da focinheira, existe uma forra (reforço) que vem até ao ponto de inserção da perna mais baixa do bolinão. Este é composto por cinco pernas (poas) – sendo certo que agora, em algumas velas, se usam apenas quatro para «não estorvar» o trabalho da vara, à proa. O bolinão destina-se a distribuir a tensão na parte superior da vela, puxando-a para vante, a fim de melhorar a entrada do vento. Na empena, em cada união do pano, ou e a meio destes, fixam-se dois atilhos – os envergues – para com eles amarrar a vela à verga, atando-os com nós direitos. A focinheira tem uma alça que entra num rasgo da verga, fixando a vela à frente, não a deixando correr para trás. Na forra da empena é cosida a corda da empena que fixa atrás, na verga, o que permite esticar toda a empena. O ângulo que o corte da empena faz com a testa é chamado a guenda de vela. Na parte inferior, a ré, a vela tem a asa da escota. Trata-se de um mãozinha inserida numa forra, onde entra a talha superior guarnecida pela escota.

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Fig. 93 – Varão da escota.

No varão da escota (fig. 93), situado no terminus da draga, corre a talha inferior. Actualmente, dada a dimensão das velas, usa-se um outro varão da escota, a ré do referido. Para não dificultar a circulação interior na embarcação, aquele varão quando não está em uso, pode ser retirado ou encostado à draga, fixado numa fêmea existente a EB, situada a vante da charneira. Todas as faces da vela são possíveis de ser afinadas (como veremos adiante), por cabos. Aumentando a tensão nestes, assim se consegue tornar a vela mais plana para as bolinas. Ou folgando-os, permitir um ensacar, para os largos. Referimos já as várias possibilidades de redução do pano, conforme as condições de tempo, ou de trabalho. Há duas maneiras de isso acontecer. Pelos rizes, enrolando-a, encurtando-a, atando-a pelos atilhos, de modo a adaptar a área vélica à intensidade do vento. Ou por manobra mais comum na fase do arrasto, com a finalidade de ajustar a velocidade do barco à apanha de moliço; nesta situação a vela é puxada pela calcadeira e enrolada em volta do mastro, deixando apenas um triângulo de área activa, na parte superior da 154


vela, para uma movimentação lenta do barco. Idêntica manobra é usada quando a embarcação é varada na praia, enquanto se realiza qualquer tarefa, momentânea. Por exemplo, em actos de descarga ou embarque.

Fig. 94 – Mariscando.

O «Moliceiro» poderia utilizar uma pequena vela a vante – traquete – aparelhada no mastaréu, pequeno mastro de 4 a 5m, que entrava num orifício quadrado feito na caverna (espécie de 2ª coicia) existente junto da antepara do castelo de proa. Passava numa abertura entre as painas, indo fixar-se em cima, ao argolão, encostado a um encaixe existente no barrote. Esta vela usada em ventos fracos tinha uma área (variável) que não andava longe dos 15/20 m2.

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Fig. 95 – «Moliceiro» envergando traquete.

O «Moliceiro», embarcação de trabalho mas e também de ócio domingueiro, frequentador de todas as festas lagunares, dado à bênção do respectivo orago, caprichava nesses dias de bulício festeiro, no adorno com que o «chançudo» do rústico o engalanava. Um dos hábitos mais requintados na sua exibição era o de se «vestir» envergando uma lindíssima vela com um pano bordado, pregado (ponteado) à vela, ostentando símbolos patrióticos.

Fig. 96 – Insígnia real monárquica exibida na vela de «Moliceiro»213.

213

A vela onde está aposta esta insígnia faz parte do espólio do M.M.I. A data, 1816, nela inscrita, nada terá a ver com a data da sua exibição na embarcação.

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5-4 A Arte de Velejar no «Moliceiro» O «Moliceiro» é um barco muito rápido, ágil, nervoso, precisando de conhecimentos extremos quando em manobra de vela. Veloz em situações de largos, e mesmo em bolinas quando em bordos ziguezagueantes é capaz de remontar ao vento em bordos curtos, desenhados nos canais que a maré baixa deixa ainda com água, suficiente, para que o barco os aproveite. O «Moliceiro» impressiona pela sua extrema mobilidade e pela doçura com que responde ao toque do leme que se quer pouco metido. E dá gosto quando, mudando de amuras, depois de leve arribação para ganhar velocidade, vai docemente para o vento, aproveitando-o em bolina apertada. Espanta todo aquele que conhece a arte de velejar, constatar que no «Moliceiro» estão incluídas todas as afinações que nos veleiros modernos, rápidos, de tecnologia avançada, são exigidas pelos skippers profissionais, se tivermos em conta que este desenvolvimento técnico, no «Moliceiro», se deu, seguramente, há quase um século. A própria construção permite satisfazer a pretensão personalizada de um ou outro cliente, conferindo-lhe com ligeiras nuances uma melhor adaptação a determinado tipo de manobra. Por exemplo: – para o pião em viragens mais rápidas, para que a embarcação tenha esse tipo de comportamento (e aptidão) bastará que o fundo suba mais a ré, sendo apenas plano numa zona central, mais curta. A superfície molhada com o barco vazio – condições que permitem bolinas rápidas – era assim, menor. O centro de carena corria a vante, e o momento aplicado pelo leme na viragem em relação ao centro de viragem, era por isso maior. A embarcação torna-se muito mais nervosa. Vejamos em particular, alguns procedimentos que interessam a uma boa manobra, tendo em conta a situação da mareação: 157


5-4-1 Com vento na popa (ou no largo), há que soltar (folgar) o calcador e o bolinão – se o vento for fraco – ao mesmo tempo que folgar a esteira e a valuma. Neste tipo de singradura o que se pretende é «ensacar» a vela, dando-lhe a maior exposição possível ao vento. A toste (neste tipo de navegação), ou é completamente retirada da água, ou, quando muito, levemente metida a sotavento, para melhorar a manobra e manter rumo. Nas popas poder-se-ão colocar as duas tostes como asas ao vento, como o fim de aumentar a área de exposição. O leme deve estar mergulhado levemente, apenas com a superfície de pá minimamente indispensável, para umas correcções doces de rumo. Pois é importante que os desvios para a orça possam ser antecedidos por ligeiras e antecipadas correcções, evitando ângulos fortes que só iriam travar o andamento da embarcação.

Fig. 97 – «Moliceiros» a um largo.

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Para abrir ainda mais a vela, nestas condições de navegação, é utilizada uma das varas enfiada no punho da escota, pela ponta abicada. A outra ponta (punho) é encravada na borda de barlavento, o que irá permitir o avanço do punho (da escota) e uma maior abertura de toda a vela. O cambadouro – que vem da ponta do mastro fixar-se à draga – deve ir bem peado, para, em caso da cambadela, proteger o mastro do risco de se quebrar. O toque na escota é de muita sensibilidade, devendo o arrais folgá-la ou colhêla, conforme a aragem, ou tão só o prenúncio de rajada, sendo importante a sensibilidade no sentir da pressão no punho da escota, adivinhando a chegada (ou abrandamento) da refrega. Havendo mais do que dois tripulantes a bordo, o excedente não necessário para a manobra deve vir posicionar-se a ré, para levantar o barco de proa, de modo a que a vaga não o empache, permitindolhe uma melhor planadura ao diminuir a superfície molhada, e, desse modo, proporcionar-lhe mais velocidade.

5-4-2 Na bolina o barco é mais exigente. Quanto mais forte é o vento, maior deve ser a tensão dada no bolinão, para assim baixar a focinheira. O calcador deve ser apertado fortemente, de modo a esticar a testa da vela. De igual modo deve ser afinada a esteira e a valuma, dando-lhe tensão para dar a melhor forma laminar à vela.

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Fig. 98 – «Moliceiros» à bolina.

O ângulo de bolina mais cerrado situa-se entre os 45º/50º. A toste, nesta situação, deve ser bem calcada (mergulhada), fazendo um ângulo aproximado de 30º/45º relativamente ao plano de água. Tendendo a desequilibrar-se (e subir), é necessário, com alguma frequência, corrigir a sua posição, quer ajustando o seu enlace com o mastro, subindo-o, de modo a que a toste avance e corrija a inclinação, melhorando o ponto de aplicação de deriva. A embarcação com as falcas metidas suporta bem ângulos de inclinação por volta de 50º, voltando à posição normal com facilidade.

Fig. 99 – «Moliceiro» mostrando o fundo.

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O leme214 nas bolinas deve ser bem mergulhado, de modo a corrigir as orças com o mínimo de travamento possível.

Fig. 100 – «Moliceiro» à bolina com vento fresco.

Para isso deve antecipar-se a manobra ao sentir que a rajada vai chegar. Quanto mais intensidade de vento, mais plana deve ficar a lâmina da vela, a fim de dar um melhor escoamento ao vento. E deverá ser continuadamente ajustada, se se verificarem saltos de vento, em direcção e intensidade. O pessoal embarcado nesta mareação, que não for necessário à manobra, deve fazer prancha. Isto é, deslocar o seu peso tanto mais para a borda – ou até para fora dela – quanto possível. Sendo um barco fino (longa linha de flutuação e boca relativamente curta), é muito importante para um bom andamento, manter em todas as circunstâncias o fundo da embarcação cuidadosamente 214

Em casos extremos chega-se aos 60º, vendo-se todo o fundo da embarcação. Espectáculo arrepiante!

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limpo. Para isso as carenagens (para amanhação) são feitas amiúde. Hoje são usados anti-foullings que trazem contudo um problema acrescido ao ambiente marinho. Fundamental para um bom desempenho, é a técnica da…, Viragem de bordo Deverão ser respeitados, por ordem, os seguintes procedimentos: O camarada da proa se necessário auxilia a manobra com a vara metida à proa, impulsionando a embarcação, tornando o volteio mais rápido. Passada a escota para a nova amura, enquanto a vela bate na linha do vento, o arrais mete leme a meio, e ou até permite arribar um pouco, para que a embarcação ganhe andamento, e vá, rápida, para a nova orça. Logo que se verifique ser a embalagem suficiente, o moço mete a toste na água, e calca-a bem. Logo de seguida levantará a toste que anteriormente vinha mergulhada, recolhendo-a. Depois de o arrais levar o barco para a orça, para o ângulo certo, metendo para o efeito leme a meio, o moço deve corrigir o calcador. Se a orça é mais aberta: – folga, ligeiramente. Se a orça é apertada: – calca, procedendo no bolinão do mesmo modo. Quanto mais apertada é a orça, e mais fresco é o vento, maior é a tensão exigida no bolinão.

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Fig. 101 – Amuras!

5-5 Fases da Construção Pormenores e sequência da construção de um «Moliceiro» 215 A madeira utilizada na construção das embarcações lagunares era essencialmente o pinheiro (bravo e manso) e uma ou outra espécie mais dura, como o carvalho, faia, laranjeira e outras. Usadas para pontos específicos, caso da roldana (entalhe no mastro onde passa a ostaga). O tabuado, assim genericamente designando todas as tábuas que compõem o fundo e costado e os folheamentos (cuja espessura é de

215

Todas as embarcações da laguna seguem exactamente os passos da metodologia que abaixo se descreve. Pelo que, aqui, apenas referimos em pormenor esta, entendendo dispensável repetir nas restantes embarcações.

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0,20 m), era cortado de pinheiro bravo que não tivesse sido sangrado216. Já o pinheiro manso (e em particular a raiz) era especialmente procurado para, dos seus ramos, se cortar o cavername e braços.

Fig. 102 – Braços de caverna de embarcação, antes de moldados.

As madeiras eram seleccionadas pelo mestre carpinteiro, atendendo à sua dimensão e aptidão, que para o efeito se ia abastecer em zonas geográficas próximas onde por tradição sempre existiram boas plantações florestais de pinho. Cortados pelos madeireiros, vinham os toros para o estaleiro e, depois de descascados, eram serrados na espessura pretendida.

Fig. 103 – Peça de onde se irão extrair duas cavernas. 216

Retirada a resina.

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As tábuas resultantes eram postas a secar, à excepção dos toros de onde se pretendia retirar a borda e a draga, que eram metidos em água salgada, a curar. O mesmo sucedia à vara que iria servir para o mastro. No estaleiro, o início da construção consistia na disposição de estacas de sustentação da tábua central do fundo. São oito mais a que fixa a curva a vante, no «Moliceiro». Nelas é estendido um fio nivelado (visível na figura abaixo), que representa o fundo da embarcação, na parte plana. O topo das estacas não tem o mesmo nível em todas elas. A primeira estaca tem o extremo levantado em relação ao nível do fundo, 50 cm; a segunda, 12 cm e a terceira 5 cm, etc.

Fig. 104 – Tábua de fundo ou quilha em posição (notar linha nível).

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A partir daí estão os seus topos coincidentes com o nível, à excepção da última que levanta 2 cm. Nestas estacas é pregada a tábua central, de fundo, ou quilha ou também chamada tábua da armação. Transversalmente a esta linha de estacas são dispostos cavaletes cuja linha superior coincide com os topos das estacas. Servem para colocar as tábuas de fecho

Fig. 105 – Com o pau de pontos fixa-se o ponto exterior da tábua de aresta. com a forma pré-cortada do fundo da embarcação. No lado de fora esta tábua é chanfrada (sutada) para receber a tábua do fecho, também ela sutada. Todas estas posições e dimensões estão especificadas no pau de pontos. As cavernas (no «Moliceiro» em número de 21) são colocadas com um vão (bão) de 0,60 m, alternadamente. Só depois cada uma é 166


completada e alinhada com o respectivo braço, colocadas então sobre as tábuas do fundo, a elas fixadas provisoriamente por grampos.

Fig. 106 – As cavernas em fase de acerto (ainda sem os braços).

Depois de conferidas as posições são depois pregadas, com prego zincado e, mais tarde, solidamente fixadas com tacos (cavilhas) de madeira tronco-cónicos.

Fig. 107 – Encavernar.

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Fig. 108 – Esqueleto do «Moliceiro» na fase inicial de colocação das cavernas. (Na foto pode ver-se já aplicada a tábua de verdegar)

À proa, a tábua de fundo que se prolonga para lá da primeira estaca, é fortemente curvada na sua extremidade anterior, a fim de lhe ser aposta a bica de proa.

Fig. 109 – Colocação da bica da proa. 168


O talão217 da proa é de 0,85 m para vante do forcado. A ré o talão é de 0,70 m. A bica é cortada segundo molde específico (designado por molde de papo). As bicas de proa e de ré são aguentadas em posição por varas até que a forma final da embarcação lhes dêem a consistência devida. É muito sensível a ligação destas peças ao fundo, sendo para o efeito utilizada pregaria e cavilhas. Os braços das restantes cavernas são colocados e ajustados, sendo as emendas feitas alternadamente, a B.B. e a E.B., por razões de resistência. A forma da caverna é dada por moldes pré-definidos. A boca de cada caverna é dada pelo pau de pontos. Fixadas as cavernas ao tabuado do fundo (quilha e fecho) com pregos para as posicionar, segue-se a operação de aplicar os costados. A tábua de fecho, em baixo, só é aplicada com a embarcação carenada; a da borda (tábua de verdegar), em cima, é a primeira a ser aplicada. Estas são, no «Moliceiro», as tábuas principais do costado (no «Mercantel» são três: as referidas e a do meio designada por entre-dois).

Fig. 110 – Colocando cavilhas nos folheamentos. 217

Talão é a distância que vai da inserção do bico da proa ao primeiro forcado ou da inserção do bico da ré ao último forcado.

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O restante espaço, na proa e a ré, é preenchido pelos foliamentos que irão constituir os painéis que mais tarde serão decorados. Segue-se uma das principais operações da construção: a aplicação da borda (peça de madeira de 0,11 x 0,22 m) que é fixada exteriormente e circunda toda a embarcação na sua linha superior. É colocada em posição por grampos e pregada às cavernas. Depois de assim posicionada será arrochada por cavilhas218219. A borda e a draga (0,13 x 0,22m) (peça semelhante àquela que reborda interiormente a embarcação) são cortadas do rolo de pinho seleccionado, antigamente usando uma serra manual e hoje com moto serra. A parte interior da borda e a exterior da draga têm um sutamento (uma inclinação) que é dado por uma tabela de inclinações laterais (escala) (fig. 111).

Fig. 111 – Tabela de inclinações da face interior da borda e suta.

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Actualmente nesta fixação são já usados parafusos e porcas de inox, revestidos por tacos. 219

Na embarcação para a fixação do tabuado às cavernas há três tipos de cavilhas diferentes: as que ligam o tabuado do costado e o do fundo às cavernas têm aproximadamente 0,015x0,20 m; as que ligam a draga às cavernas têm 0,022x0,35 m; as que ligam a cinta às cavernas têm 0,020x0,25 m.

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Fig. 112 – Borda cortada antes de ser colocada.

Os troncos de onde são retiradas a borda e a draga, peças de assinalável dimensão, são colocados mergulhados na água da ria para manter a madeira verde, para desse modo melhor as curvar à linha superior do casco.

Fig. 113 – Troncos mergulhados na «ribeira».

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Fig. 114 – Esqueleto220 da embarcação já com borda e draga aplicadas.

Segue-se a colocação da coicia, entre a 10ª e a 11ª caverna, com o encaixe (0,10 x 0,10 m) para a entrada do pé do mastro.

Fig. 115 – A coicia entre a 10ª e 11ª caverna (ainda sem encaixe). 220

No fundo ainda não fechado, distinguem-se, ao centro a tábua da quilha e lateralmente as tábuas de aresta. O construtor que se vê na fotografia é o Mestre Esteves de Pardilhó.

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Esta peça que tem a espessura de 0,12 m, é colocada, exactamente centrada na linha, proa-ré (meia-nau), da embarcação. Recortado o traste, constituído por duas peças de madeira de espessura 0,10 m, unidas pelas dobradiças, o mesmo é encaixado em entalhe feito na draga para o receber, sendo a sua parte fixa (a posterior que serve de guia do mastro) fixada por cavilhas à mesma de modo a se obter uma ligação muito rígida. O traste dá passagem ao mastro para o que tem, como referido, uma passagem de aprox. 0,20 m de diâmetro – enora. O mastro na sua extremidade tem a forma de quadrado de 0,10x0,10 m, que vai encaixar na coicia, em baixo. É então tempo do mestre foliar as bicas de ré e de proa, fixando os forros.

Fig. 116 – Foliamento da bica de proa221. (Distingue-se o fio de prumo na bica, que marca a distância desta, à caverna - 0,165 m).

221

Pode apreciar-se o molde de papo, mais escuro.

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De seguida o Mestre corta o barrote da proa usando para isso o molde colocado sobre a peça de pinho manso.

Fig. 117 – Moldes.

Fixando-o na 5ª caverna a contar da proa, o mestre forra a antepara onde se insere a portinhola. Segue-se a colocação do tabuado que cobre a bica da proa. Primeiro uma tábua central de linhas em esquadria e, depois, lateralmente as beiradas que exteriormente têm a forma do bordo. São, uma e outras, pregadas sobre sete barrotes interiores.

Fig. 118 – Cobertura da bica (barrote exterior e interiores).

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Fig. 119 – Cobertura da proa. (Distingue-se o tabuado de fecho lateral, e os barrotes interiores).

Fig. 120 – Antepara e paina.

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Só depois de tratadas com protector é preenchido o espaço entre elas

e, assim, se fecha a coberta completamente. No cimo da coberta lá estão os golfiões, nascidos das mãozinhas.

Fig. 121 – Golfiões.

A ré o mestre coloca as anteparas da entremesa e do cagarete222, cobrindo-as com painéis amovíveis, para poder dispor do espaço por baixo dos mesmos223. Como já anteriormente referido, o talão de ré – distância entre o forcado de popa e a roda de popa, é de 0,70 m.

222

No cagarete era normalmente guardado o sal.

223

Na entremesa é guardado o pipo, forcadas e outros objectos.

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Fig. 122 – Entremesa e cagarete. (Podem-se identificar os forcados, da entremesa e biqueiro).

Existe no estaleiro um molde do leme, que serve para ajudar a posicionar as fêmeas na roda de popa onde vão entrar os espigões (machos). Tudo verificado e colocado, o molde serve para depois recortar o tabuado que compõe a cachola, a madre e a porta.

Fig. 123 – Molde do leme.

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Na cabeça224 do leme é introduzido o xarolo aonde se vão fixar as cordas do leme. A embarcação está, pois, praticamente concluída. Num tempo que normalmente toma ao mestre e um ajudante pouco mais que oito semanas. Antes é volteada (carenada no estaleiro), colocada sobre um dos costados, deixando o fundo à vista para, finalmente, se fechar, colocando as tábuas de fecho anteriormente referidas, e proceder ao encavilhamento de todo o tabuado de fundo, nas cavernas, pois só nessa posição o trabalho pode ser feito de fora para dentro. Seguidamente, ainda nesta posição é afagado todo o fundo até este ficar pronto para receber o primário. Regressada a embarcação à posição normal, os costados são lixados, afagados e aparelhados. Depois, enquanto se cortam e constróiem os paneiros que irão cobrir o fundo, traçam-se e cortamse as falcas, adaptando-lhes as pernas que as trilharão entre borda e draga.

Fig. 124 – Acerto das pernas das falcas nas encalas. 224

Também é conhecida por cachola do leme.

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5.6 Decoração: Motivação da cultura popular de uma «classe» Vêm então o pintor225 e ajudante, que iniciam a preparação das zonas onde vão ser executadas as pinturas. Os desenhos previamente traçados em papel vegetal são decalcados para o painel onde se aplicou um primário.

fig. 125 – Pintor decorando o traste.

Começa a aplicação das cores: – pintam-se todos os vermelhos, os verdes, os amarelos, os azuis, num constante laborar neste ou

225

O mestre pintor Zé Manel indicou-nos como 70 horas as necessárias para decorar um «Moliceiro».

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Fig. 126 – Início decoração do painel de proa.

naquele outro motivo, numa roda viva em volta da embarcação, que pouco a pouco vai ganhando um garrido portentoso,exuberante, de uma prodigalidade fustigante, quase convulsiva.

Fig. 127 – Motivo floral.

O ajudante acaba as partes mais simples. O maior trabalho reside nos motivos florais, plasmados em 2D, e no sombreado que os destaca a cargo do mestre. 180


Fig. 128 – O painel monumental da proa.

Fig. 129 – Painel de ré em fase de acabamento.

Fig. 130 – Painel.

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A embarcação é finalmente pintada, nos costados por ela toda. Primeiro uma ou duas demãos de primário, e depois, a cor do casco: normalmente preto. Mas e também, a gosto do cliente, pode ser pintado em outras cores (vermelho, verde, azul, etc.). No passado usava-se muito o pez louro, amarelado. A coberta (castelo) da proa e as bordas, dragas e traste, eram antigamente embreados (cobertos de breu/piche). Hoje, aplica-se uma tinta preta areada sobre a qual se espalha serrim (ou casca de arroz), melhorando assim a movimentação sobre a zona, tornando-a menos escorregadia. Os fundos das embarcações eram, no passado, brochados a pez. Hoje utilizam-se tintas primárias sobre as quais se aplicam antifoullings, para se evitar a adesão de algas ao fundo da embarcação. O leme, todo preto, apenas se distingue, de embarcação para embarcação, por exibir uma marca que identifica o construtor.

Fig. 131 – Siglas de Mestres.

O xarolo pode ser pintado: vermelho a B.B., e verde a E.B. Pronta a embarcação, a mesma é colocada sobre uma zorra feita com barrotes, sendo puxada até à ribeira mais próxima onde, em verdadeiro tumulto festivo, é lançada à água. 182


Altura para lhe colocar o mastro retirado de um pinheiro alto com cerca de 11 m, de diâmetro variável, que vai de 0,17 m no pé a 0,05 m na cachola, tanto quanto possível sem nós, e bem desempenado. Para isso esteve a estagiar longo tempo na água salgada, para evitar que empene. E para que verde, se preciso for, possa ser corrigido. Retirada a casca à vara de pinheiro, é depois afagada e alisada. Se algo distingue esta embarcação de todas as outras, é a monumentalidade cromática da decoração dos seus painéis, de proa e de ré, inexcedíveis na sua singularidade e simbolismo. Mas não são só os painéis a exibir espalhafatoso tratamento cromático. Outros pontos, ainda que do interior da embarcação, são profusamente decorados. Os golfiões – com o casal de namorados – e a portinhola da antepara do castelo de proa – com vaso floral ou signo-saimão.

Fig. 132 – Os golfiões enquadrados na decoração da bica.

Ou no barrote ou vertente que encima a antepara, decorado com alongado friso floral. Os forcados são também decorados com ramos florais; e ainda, o é a parte frontal da entremesa do arrais, que é normalmente decorada 183


com um único arranjo floral, embora em alguns casos, grandioso e espectacular.

Fig. 133 – Decoração da entremesa e forcados.

Fig. 134 – Antepara do castelo de proa.

Fig. 135 – Pintor e Ajudante na decoração.

184


O «Moliceiro» transcende, em muito, na particularidade e no excesso, na grandiosidade e na singularidade da decoração, toda a família de embarcações tradicionais da Laguna, e até do País. Só o «Varino» se lhe aproxima um pouco, porque terá tido, certamente, a mesma origem. Os motivos, as iluminuras que nos atraem o olhar, o convite à espreitadela e ao excesso das figuras representadas são expressos numa profusão cromática riquíssima, onde se mistura a ingenuidade com a malícia insinuada. Sugerida pelos rodapés vernáculos, genuínos, vertidos numa linguagem típica de rústico, não isenta de erros, antes usando os trocadilhos e as distorções, uma espécie de transcrição fonética (?) dos regionalismos, hoje intencional, propositada, ontem jeito no falar, produto de uma cultura inspirada na vida corrente. Os painéis são enquadrados por cercaduras de uma multiplicidade de cores, estonteante, onde se desenham flores, ramalhetes ou, mais prosaica mas não menos expressivamente, se alinham elementos geométricos que fazem lembrar os arabescos em que a região é rica, na azulejaria, enquadrando emblemas, signos, cruzes e ou figuras, onde se mistura a fé com o pagão em linguagem rural. Tudo tendo em vista o exprimir a individualidade do dono da embarcação que se junta à chança simbolicamente recortada na porta do leme do barco.

Fig. 136 – Motivo floral da cercadura.

185


a)

b)

c)

d)

e) Fig. 137 (a, b, c, d, e) – Cercaduras.

186


Esta decoração, no início Séc. XX226, não se ficava apenas nos motivos decorativos acima referidos. Fazia também parte da apresentação da embarcação, em dia festivo, o envergar de uma vela especialmente confeccionada para aquelas ocasiões, que no seu centro exibia um brasão bordado, branco ou policromado, ou, tão só, um simples vaso de flores, circundado por elementos florais. Era a vela «rica», só para uso nos dias festivos consagrados à devoção dos oragos que povoavam a beira da Laguna, e de que estas gentes eram fiéis devotas. Os primeiros barcos, já com decoração, embora não tão notória nem tão complexa e muito menos berrante da que se tornaria habitual em meados do Séc. XX, teriam aparecido por volta do último quartel do Séc. XIX, mais seguro princípio do Séc. XX227; muito embora pareça, por registos fotográficos existentes, serem ainda decorações muito incipientes, não tão exuberantes, quer na policromia quer nos motivos228.

226

Mestre David dos Santos, um dos mais conceituados mestres veleiros, ainda vivo, e sua esposa (95 anos) afirmaram-nos o que já pressupúnhamos: os barcos inicialmente, mesmo os da zona norte não eram pintados. Apenas na proa – afirmou mestre Luis – alguns eram pintelgados, com símbolo inserido. A esposa do mestre foi mais categórica: – trabalhando desde criança no «Moliceiro» de seu pai, garantiu que as pinturas apenas apareceram depois das burdiadelas (sic) dos barcos pelas festas do S. Paio. 227

Julgamos ser possível associar este aparecimento de motivos decorativos, no «Moliceiro», com igual acontecimento nas cangas e nos arcos festivos triunfais, num processo onde os objectos adquirem forma de afirmação sócio-cultural. Tal corresponderia a melhoria de vida que se fez sentir em meados Séc.XIX, na região norte lagunar, e que se tornou imperioso celebrar. (ver «Sistemas de Atrelagens de Bois em Portugal» de Ernesto Veiga de Oliveira, Fernando Galhano, e Benjamim Ferreira, Instituto de Alta Cultura, Centro de Estudos de Etnologia). 228

Os painéis teriam aparecido nas embarcações do norte lagunar. Inicialmente tratar-se-ia de painéis brochados (ver fig.138), sem inscrições. Sarapintados na

187


Fig. 138 – «Moliceiros», ainda apenas brochados no painel de proa (Séc. XIX).

Também os painéis eram, inicialmente, menos garridos como se pode apreciar na foto abaixo, em alguns casos não incluindo rodapés229.

Fig. 139 – Barcos do início Séc. XX.

popa e proa com pessoas e animais disformes, diz-nos Teófilo de Braga in «O Povo Português nos seus costumes e tradições», 1885, vol.I, ed. D. Quixote, 1985, p.135. 229

Julgamos ter clarificado um ponto que tem feito correr muita tinta, sujeito a muita divagação. O «Moliceiro» não foi inicialmente decorado com a profusão conhecida hoje. E quando o foi, a ideia partiu do norte da Laguna. Tal teria acontecido na segunda metade do Séc. XIX.

188


Fig. 140 – Barcos do início Séc. XX.

A decoração era feita pelo mestre construtor, ou por artista especializado contratado para o efeito. Há várias tentativas de sistematização dos painéis. Em nossa opinião cremos que poderemos reunir os painéis a dois grandes tipos: os de exaltação (motivação política, fé, cariz histórico ou patriótico) e os de pleno acinte local (jocosos, irónicos, satíricos e ou brejeiros). Nestas duas grandes divisões, poderemos encontrar uma ou outra derivação.

Fig. 141 – «VIB Ó NOSSO PERSIDENTE»230.

230

Este era o painel inserido no «Moliceiro» do autor, solicitado pelo PCP para o Festa do Avante de 1984. Dadas as relações do Partido com Eanes, foi solicitada

189


Parece-nos ser claro que este tipo de decoração está bem de acordo com os hábitos e a cultura das gentes da lavoura, que assiduamente desciam à borda para obter o moliço de que precisavam para alimentar as suas terras231. A representação popular – os artistas eram meros reprodutores da vontade das gentes – exprime o património comum de ideias e valores, e tem um alvo, um destinatário, que normalmente está impregnado dos mesmos valores, neles se revendo. Certo é que no «Moliceiro» os temas foram variando com as alterações políticas e sociais, e até com a liberdade da sua expressão 232. Esta classe dos lavradores233 – é bom não o esquecer –, estava muito ligada ao poder político local (Séc. XVIII/XIX), tendo por hábito a apropriação e exibição de certos símbolos – as varas!234 – que a distanciava e a distinguia dos restantes grupos comunitários. Símbolos (precisamente) do tipo floral, de cores muito garridas, muito elaborados, os quais usavam com certa dose de chança, aos domingos, quando iam com a família à missa, vestidos a rigor. E a permissão para a alteração do mesmo. Não autorizada, foi o mesmo coberto por um painel sobreposto, falso. 231

Aqui se percepciona que as primeiras embarcações foram propriedade do labrego rico. Ele exibiu na mesma a sua prosápia. Depois as embarcações passaram para o moliceiro da ria, trabalhando por conta do lavrador ou por conta própria. A tradição decorativa tinha então já força, suficiente, para ter continuidade. 232

A exaltação da realeza, de símbolos monárquicos, de figuras pátrias, motivos religiosos, até à liberdade para expressão erótica. 233

Homens bons, de boa consciência – detentores de bens significativos – (…) que muito embora não sendo nobres poderiam desempenhar efunções e cargos a nível administrativo, económico e político. Fonseca, Senos da, in «Ílhavo – Ensaio Monográfico», ant.cit., p.188. 234

Ver Fonseca, Senos da Fonseca, in «Ílhavo – Ensaio Monográfico», ant.cit., p.188.

190


mesmo por hábito descalços quando ocupavam cargos na edilidade, ostentavam na parede, a prosápia colorida. Mas e ainda se deve atentar que a aposição de símbolos (religiosos, políticos, ou tão simples de crendice) era um hábito destas gentes. Que os exibiam, nos arcos triunfais erectos em dias festivos.

Fig. 142 – Arco triunfal da Srª do Pranto235.

Símbolos exuberantes religioso-pagãos, peças triunfais ostentando no rendilhado dos seus motivos uma intensidade e uma variedade cromática, inconfundíveis, a que não faltava, ao centro, a glorificação do orago, encimado por coroas ou brasões floridos. Parece assim certo, ter a origem desta tradição de decorar os seus barcos, as raízes nos costumes e hábitos da classe dos lavradores, tiques com que procuravam distinguir-se da classe piscatória de

235

Repare-se na similitude dos motivos florais e bandas, em tudo idênticos aos usados no «Moliceiro».

191


quem se supunham socialmente distintos: social, material e politicamente. Foi, ainda, o mesmo hábito, que os levaria a utilizar decorações similares nas cangas dos seus animais, decorando numa alegre mistura de cores os motivos geométricos do cabeçalho entalhados, paciente e artisticamente, à goiva.

Fig. 143 – Canga murtoseira.

Em resumo: não é aqui intenção ser mais um a reproduzir a imensidão de fotografias de painéis de «Moliceiros». Demasiadamente mostrados, mas sempre vistosos. Belos. A nossa intenção foi a de procurar encontrar (?) a justificação do seu aparecimento, a provável data em que tal aconteceu, e identificar a zona de onde partiu essa tradição236.

236

Temos formada uma segura opinião de que a decoração teria aparecido nos barcos construídos na região de Murtosa-Pardilhó. E a atestá-lo é que mesmo ali perto, Estarreja, ou em zona mais longínqua Esgueira, Ílhavo – e em toda a Gafanha e Mira – as embarcações ali produzidas o não fariam, por norma.

192


5-7 Planos Geométricos e de Construção (2D)237

Fig. 144 – Tomada de cotas sobre modelo real.

237

Ver DVD anexo.

193


Fig. 145 – Tomada de cotas sobre modelo real.

194


Fig. 146 – Planos 2D.

195


5-8 Planos GeomĂŠtricos (3D)238

238

Ver DVD anexo.

196


197


Cap. 6 – O «Barco do Mar» Temos para nós que nenhuma embarcação tem nas suas formas a ostentação de uma atitude tão desafiadora ao mar, como o «Barco do Mar». Embarcação utilizada na arte de Xávega durante mais de dois séculos na da orla costeira que vai do Mondego ao Douro239, por muitos referida como o «Meia-Lua» da Xávega. Preocuparam-se, eruditos ou simples observadores, a buscarem-lhe inspiração. Foram feitas aproximações, por vezes mais parecendo que tal exercício servia apenas para registar uma ou outra semelhança, num ou noutro ponto. Despidas que foram a maior parte delas de sentido histórico que as justificasse, foram algumas vezes, mesmo delirantes, como se o «Meia-Lua» viesse de um passado muito longínquo, saído da poeira dos tempos, e não tivesse sido a sua nascença verificada em tempos ainda próximos, ainda não muito distantes, permitindo saber com rigor a origem e o porquê do seu aparecimento e, desse modo, atribuir-lhe paternidade. Registemos algumas dessas notações.

239

Lopes, Ana Maria, in «Vocabulário Marítimo Português», Coimbra 1975, refere ainda o «Meia-lua ou Saveiro»), da Caparica. Alguns autores chegam à estranha confusão de pensar que o «Meia-Lua» da Caparica terá sido mesmo o primeiro barco deste tipo, a aparecer na orla ocidental, quando de facto ele é totalmente uma inspiração do «Meia-Lua» de Aveiro.

198


Descortinaram-lhe parecenças com o «knarr» normando no alevantado das proas, e também na finura das popas.

Fig. 147 – «Knarr» Viking.

Desprezando, contudo, a total falta de identificação de toda a parte restante das suas formas com aquela histórica embarcação viking, não atentando serem totalmente diferentes (no conceito) as técnicas usadas em sua construção, esquecendo que assim teria de ser, pois os dois tipos de embarcações destinavam-se a misteres muito diferentes na sua finalidade. Um – o «Knarr» –, foi concebido para bem navegar no mar largo. Para isso, rápido, ágil, muito leve, movido por vela quadrada, necessitando de uma quilha bem pronunciada para lhe permitir a estabilidade de rumo. O seu casco era trincado (tabuado sobreposto) conferindo-lhe a forma, antes de ser estruturado e reforçado o seu interior. O «Barco do Mar», esse, era movido a remos. Tinha fundo plano e bordo baixo. Era fino a vante e a ré, para lhe permitir romper a pancada do mar na borda, e não, concebido para largas sortidas. Estruturava-se em cavernas a que eram pregadas os folheamentos do casco (tábua encostada a tábua).

199


Fig. 148 – O «Barco de Xávega».

No Mediterrâneo cataram-lhe parecenças, só porque usava fundo chato, e porque o «Meia-Lua» deveu o seu aparecimento à necessidade de utilizar a arte da Xávega240, esta sim, uma das muitas artes de pesca provenientes daquelas bandas. Nada mais. A pergunta deve colocar-se: para que precisariam as gentes mediterrânicas de um barco para mar quebrado, desabrigado? E até na Mesopotâmia, juraram fazer fé de encontrar inspiração nas parecenças a um primitivo barco (?) feito de caniço ligado com barro, destinado para navegação em águas tranquilas e mornas dos históricos rios da região. Quem o fez esqueceu-se de referir que os extremos elevados do barco de Ur eram resultantes de, para juntar o

240

Arte Xávega.

200


caniço à frente e atrás, obrigatório era elevar os extremos, para, obviamente, empírica mas racionalmente, lhe conceder flutuação.

Fig. 149 – Barco de Ur.

Ora a data provável do aparecimento do «Barco do Mar», seguramente acontecida no Séc. XVIII241 para ser utilizado nas artes grandes242, indicia, isso sim, que a tradição da construção naval na Laguna, vinda desde os primeiros tempos da sua formação (Séc. IX/X), e desde cedo experimentada no complexo desenvolvimento desse notável barco que foi a Caravela Pescareza243– essa como já referido, de clara inspiração mediterrânica – teria, no referido Séc. XVIII, uma já longa 241

Ver Fonseca, Senos da, in «Ílhavo – Ensaio Monográfico» ant.cit., p. 376.

242

As primeiras referências de apanha da sardinha na borda remontam a 1500, na questão contra o conde D. Díogo Pereira – Lamy, Sousa, in «Monografia de Ovar», p. 154. 243

Ver fig. 11.

201


experiência e tradição. Era já, no referido século, por si só, perfeitamente capaz de criar uma embarcação que respondesse, satisfatoriamente, a novos desafios, entretanto surgidos, obrigada que foi a reformular a forma e dimensão das que até aí vinham sendo usadas.

Fig. 150 – «Barco do Mar».

Esta nova embarcação não teria, pois, de ir buscar longe a inspiração porque era apenas o aperfeiçoamento de uma outra anterior. A arte naval lagunar já teria sido posta à prova quando chamada a fabricar naus, barcas, pinaças, que por aqui (Laguna) foram profusa e de uma maneira célere, construídas. Daquele saber de arte naval derivou uma arte mais empírica e de menor complexidade, que assentou arraiais por toda a geografia lagunar, aperfeiçoando e recriando pequenas embarcações adaptadas para laborar em águas interiores («Bateiras» – de todos os tipos – «Saleiros», «Barcas», «Varinos», etc.). Para isso não foi preciso ir buscar inspiração externa, sendo tão somente necessário a adaptação às exigências, no sentido de dar resposta aos fins em vista, tendo em conta a especificidade do lençol líquido onde aquelas iam laborar. 202


Assim, o «Barco do Mar» nasceu do requisito de criar uma embarcação capaz de substituir as grandes bateiras de mar, aptas apenas, para pescar, ali, na beirada, sem grandes condições para romper a vaga na pancada do mar, em segurança. Salvo se aquele marulhasse em total sossego. E que para lá desta desqualificação não teriam capacidade para embarcar as redes da arte nova, trazidas pelos galegos

Fig. 151 – Embarcando a Xávega.

para esta região, as quais dada a sua dimensão, proporcionavam uma muito maior capacidade de captura. Com o «Meia-Lua» da Xávega foi possível responder à procura provocada pelo novo processo de salga implantado pelo francês MIJOULLE 244, em Ovar, e que rapidamente se estenderia a outros locais do litoral, permitindo a conservação da espécie capturada durante um período muito mais longo. O que fez explodir o consumo daquela espécie. Consistia este novo método de salga em substituir as tinas de madeira245 por grandes tanques onde se colocava a sardinha, em 244

Mijoulle implantou a primeira fábrica de salga em Ovar, em 1776.

245

As tinas ou barricas começaram a ser substituídas por grandes tanques construídos em alvenaria.

203


moura, depois de estripada – escorchada –, aí ficando pelo menos durante três dias. Seguia-se uma prensagem246; e depois de embarricada era levada para o interior do País e ou até exportada pelos mercantis. Certamente que o caderno de encargos de tal construção não sendo de fácil consumação, tinha, contudo, a vantagem de conter os parâmetros de um modo muito concreto, advindos da experiência das lides pioneiras das primeiras pescas na beira-mar, praticadas com as embarcações anteriormente referidas: – «ílhava», «chinchorro», etc.

Fig. 152 – Entrada no mar.

Poderemos imaginar resumir o caderno de encargos a que o «Barco do Mar» deveria obedecer. Caderno que conteria os requisitos necessários, colocados desafiadoramente em cima da mesa à 246

Amorim, Pe. Aires, in «Da Arte de Xávega de Espinho a Ovar», ed. CMO, p.

14.

204


mestrança naval para que esta encontrasse resposta satisfatória, Cremos não andar longe da verdade se dissermos que esse caderno de encargos exigiria: – Uma embarcação que tivesse parte de fundo, plano, a fim de permitir o seu deslizamento na areia, sobre rolos, para a fazer chegar à borda. Ou para a subtrair à pancada do mar, levando-a, duna acima. – Uma embarcação que tivesse as duas bicas afiadas, permitindo-lhe a saída do mar, com uma ou outra, em caso de impossibilidade de dar volta antes de varar. – Uma embarcação em que as bicas não deveriam oferecer grande resistência à vaga, de modo a permitir bom governo na manobra, evitando serem pegadas e descontroladas. – Uma embarcação em que a bica da proa deveria ser muito levantada para despontar da vaga em qualquer situação, libertando-se da mesma. – Uma embarcação muito esguia de modo a que o mar não lhe batesse e a encabritasse demasiadamente sem lhe retirar estabilidade. – Uma embarcação de bordo suficiente para o deslocamento necessário. Capaz de comportar uma rede e cabos que poderiam atingir as 15 tons. – Uma embarcação com boca avantajada, de modo a proporcionar-lhe um bom desempenho quando batida lateralmente pela vaga. – Uma embarcação que acomodasse um número elevado de remadores no seu bojo.

205


Fig. 153 – «Barco do Mar», encabritado.

6-1 O «Barco do Mar»: do Séc. XVIII ao Séc. XX As artes grandes ao exigirem trabalhar com aparelhos de avantajada dimensão substituindo as artes menores utilizadas na pancada do mar, ou nas águas247 logo que passada aquela, embarcadas nas «bateiras de mar», exigiam barcos de muito maior dimensão. E de características muito específicas, como acima referimos. O aparecimento destas artes no litoral de Aveiro ter-se-ia verificado por volta de 1776248, trazidas pelos galegos que as teriam importado dos catalães, estes já conhecedores e praticantes daquelas artes de 247

Águas – zona depois de passada a rebentação e antes.

248

Falamos das artes, porque a pesca no litoral teria acontecido muito antes. Em 1510, D. Manuel fez mercê a D. Manuel, filho do Conde da Feira, de «todollos direitos (…) asy dizimas (...) de toda a pescaria que se fizer na costa do mar da Foz de Espinho até á Foz do Vouga. ANTT CHANCELARIA D. Manuel, livro 15, fls 132 – Amorim, Pe. Aires in «Da Arte da Xávega de Espinho a Ovar», ed. CMO, 1999.

206


pesca que, desde tempos muito anteriores, eram usadas, no mediterrâneo pelos árabes (a arte da xabbaca249). Existem indicações que nos podem levar a admitir uma data mais precoce para a introdução destas artes250. De facto o contrato realizado em 1751, na vila de Ovar, para a utilização de uma rede nova chamada arte onde se referia querião fazer hua nova arte (…) das introduzidas de novo nesta vila, permite admitir que tal prática se poderá ter verificado em anos anteriores àqueles que se vem admitindo. O «Meia-Lua», assim o descreveu La Roerie 251, é uma embarcação de extremidades alevantadas, numa curva ousada, a uma altura relativamente considerável, tanto a vante como atrás.

Fig. 154 – O «Meia-Lua» aterrando.

Inicialmente utilizaram-se apenas barcos de dois remos, muito contrariamente ao que comummente se refere, ou até é vulgar, julgar-se. Barcos que tinham um pequeno castelo no bico da proa 249

Lopes, Ana Maria, in «O Vocabulário Marítimo Português», Coimbra, 1975, p.160. 250 251

Amorim, Inês, in «Aveiro e sua Provedoria Séc.XVIII», 1996. La Roerie, in «Navires et marins de la rame à l'hélice». Paris, 1946, p. 171.

207


para resguardo das farpelas, e duas bancadas para remadores, tendo cerca de 11,50 m de comprimento e deslocando cerca de 10 tons.

Fig. 155 – Preparação para o lanço.

Os dois remos eram praticamente do mesmo comprimento da embarcação, medindo 11,90 m. Eram de pá curva. A embarcação era tripulada por 35 homens. Oito a cada remo: – 4 sentados e 4 de pé; 6 a 8, aos cambões252 – camboeiros – e 6 para a rede; havia ainda um pescador colocado na proa munido com uma vara vareiro de proa – cuja missão, era, com a mesma, impedir que a embarcação se atravessasse ao mar aquando da entrada; os restantes: – dois arrais, e um ou outro homem para substituição dos remadores cansados.253. Inicialmente estes barcos não se afastavam muito da praia por razões de segurança. Por um lado por necessidade de um rápido regresso se as condições de tempo a isso obrigassem. Mas e

252

Cabos em esparto de 0,03 m, ligados aos punhos dos remos, puxando-os para vante. 253

Ver fig. 156.

208


também, por serem habituais, naqueles tempos, os assaltos perpetrados por piratas árabes, de que há registos (Julho de 1738, e Abril de 1754)254 255. Em 1776, há notícias de se utilizar um único barco256, situação que se manteria até 1838257. Em meados do Séc. XIX passaram a ser utilizadas, em cada rede, duas daquelas embarcações. Uma levava a rede e o reçoeiro, largando-a na volta; na outra o càlão atava a mão da barca, trazendo-a para terra.

254

Oliveira, Pe. Miguel, in «O Furadouro e a sua história antiga». Ovar, 2004, p.

8. 255

Deste último ataque foram levados cativos 219 pescadores.

256

Que, segundo deduzimos, deveria ser de dois remos.

257

Lamy, Alberto Sousa, in «Monografia de Ovar». Ovar, 1977, p. 171.

209


Fig. 156 – «Barco do Mar» de dois remos (primitivo).

Com a introdução dos novos métodos de conservação tornou-se nítido que era necessário criar um barco mais possante, que permitisse ir dar o lanço mais fora, levando redes maiores, largando muito maior quantidade de cabo e rede. Apareceram (nos finais do Séc. XIX) por essa razão os «Meia-Luas» de quatro remos, que embarcavam 45 pescadores. Eram embarcações com cerca de 16,45 m de comprimento, por 4,18 m de boca. O pontal era 1,30m, e tinham 1,00 m de calado. Deslocavam 15,30 tons e nele embarcavam, como referimos, quarenta e cinco tripulantes, assim distribuídos:

210


Fig. 157 – «Barco do Mar» de 4 remos

(fins Séc. XIX – primeira década do Séc. XX). As distâncias a que estas embarcações se afastavam da costa foram assim aumentando. Do inquérito industrial de 1890, poderemos ficar a saber:

211


Quadro VI Distâncias da costa, a que era levada a Xávega.

Costas

Comprimento médio cabos

N° cabos

Afastamento

Paramos

120/130

30

3.750 m

Esmoriz

80

36

2.880 m

Cortegaça

80

29

2.320 m

Furadouro

60

160

9.600 m

Torreira

25

160

4.000 m

S.Jacinto

34

200

6.800 m

Costa-Nova

25

220

5.500 m

Mira

25

180

4.500 m

Até 1884 as redes eram retiradas do mar por esforço braçal do pescador que envergava um cinto que se prendia por laçada especial aos cabos de alar; participavam nesta tarefa, não só os pescadores

212


de toda a companha, e seus familiares, mas e ainda, pessoal auxiliar e um ou outro mirone, que se chegavam para dar uma ajuda258.

259

Fig. 158 – Arte puxada à cinta

.

Em 1884, na companha do político aveirense, Manuel Firmino, a exercer a faina na costa de S. Jacinto, foi feita a primeira experiência com a tracção animal260.

Fig. 159 – Os «bois» na borda.

258

(…) o alar da rede era feito ao som cadenciado de um tambor: plan… plan… plan… rataplan… plan… enquanto o mulherio ia gritando lé… ai lé… tiro lé, ólari lolé – Santos, Zagalo, ref.por Lamy, Alberto de Sousa, in «Monografia de Ovar», p. 180. 259

Silva, A. Baldaque da, ant.cit.

260

Unamuno, Miguel in «Por Terras de Portugal e Espanha», referiria esta chegada dos labregos com os bois, à borda, como a ruralização do mar.

213


Fig. 160 – A ruralização da beira-mar.

Logo depois as companhas da Costa-Nova iriam seguir-lhe as pisadas. Os bois em parelha, atrelados à canga, eram atados por intermédio de um chicote com uma laçada ao reçoeiro, e, do outro lado, à mão da barca, assim se alando a rede para terra numa operação lenta que chegava a demorar duas horas (a ruralização da borda do mar).

Fig. 161 – Os enxalavares.

214


Fig. 162 – Xávega no Litoral de Aveiro.

6-1-1 Nomenclatura dos componentes essenciais A embarcação, limitando-se a curtas estadias no mar, não tinha qualquer tipo de comodidade, para lá dos trastes261 onde se sentavam os remadores, e as estribeiras. No exterior, nas alhetas e nas amuras de cada bordo, existiam umas peças em cruz, forjadas em ferro, com gancho na frente, chamadas arganéus, onde se inseriam as argolas dos cabos que o arrastava para a largada, ou o rebocava para a sua saída do mar, aquando do regresso da faina. Para lhe dar maior consistência nas zonas de maior batimento, o fundo da embarcação é (à proa e a ré) abraçado por uma série de tiras de chapa de ferro, designadas por boçardas. que o ligavam ao casco. A zona de inserção do escalamão no bordo superior (remadouros) é chapeada com reforço de ferro.

261

Peças (bancadas) a toda a largura do barco, com cerca de 0,06 m de grosso por 0,40 m de largo. Para efeito de não permitir o barco, abrir, eram colocados uma espécie de gatos metálicos fixando o traste ao bordo exterior. Hoje utilizam-se esticadores com porca, por debaixo do traste.

215


No prolongamento dos bordos, junto da proa acham-se as requintas onde os camboeiros se assentam, de dimensão 0,30x0,40 m, e 0,03 m de espessura. Na bica da ré existe uma peça de madeira – o descanso da muleta – onde esta se apoia. Por debaixo desta existem duas argolas – as armelas – que se utilizam para puxar o barco para cima, para a lomba. No interior existem junto ao bordo interior, as requintas, simples banquetas de madeira boleadas no bordo. Existem ainda umas pranchas para apoio dos remadores de pé, chamadas recoveiras.

Fig. 163 – Estrutura construtiva (nomenclatura).

216


6-2 Evolução dos Preços da Embarcação Os preços destas embarcações foram evoluindo com o passar dos anos. É-nos dado conta pelas «Informações para a Estatística Industrial da Repartição de Pesos e Medidas» de 1867, que em 1865, no Furadouro, trabalhavam nas artes 725 pescadores com 13 barcos grandes e 3 pequenos. O preço das embarcações era de 43$000 réis, sendo 140$000 réis o custo da rede. O barco pequeno custaria 16$000 réis, e a rede pequena, 94$000 réis. O número de Companhas, em 1865, era assim distribuído: Quadro VII Número de Companhas e Embarcações na região

Localidade

Número de Companhas

Barcos Grandes

Barcos Pequenos

Furadouro

5

13

24

Torreira

7

16

32

S. Jacinto

2

7

24

Costa-Nova

8

7

28

Temos depois diversas referências, com o que estabelecemos o quadro evolutivo abaixo: 217


Quadro VIII Evolução dos Preços das Embarcações Ano

Barco Grande

Barco Pequeno

1865

72$000 Réis

57$000 Réis

(80$000) 1890

112$500 Réis (146$000)

1940

5.000$00 Esc.

1960

20.000$00 Esc.

2000

1.000.000$00 Esc.

2007

2.500.000$00 Esc.

6-3 Decoração Esta embarcação é muito sóbria de decoração. Lateralmente o casco era (normalmente) pintado com duas faixas (largas) de cor forte (onde predominava o vermelho e o azul) separadas por faixa branca. Ao centro da embarcação, no bordo, apunha-se o nome (ou a indicação do protector – Nª Srª da Saúde; Srª da Conceição; etc.). Os painéis de proa eram decorados com um símbolo ou com uma imagem, inserida num círculo, encimado por uma fiada ondulada, garrida, que desce até ao castelo de proa. Na 218


bica da proa a cruz latina com um ramo de flores, e um ou outro símbolo, religioso. Nas amuras de vante, num rectângulo sobre fundo preto, era inserido o número de matrícula, número de inscrição da embarcação na respectiva capitania. Nas alhetas de ré, cruzes, motivos floridos ou signos-saimão.

Fig. 164 – Proa com símbolo religioso.

6-4 Arte Xávega Mas o que é a Arte Nova (ou Arte Grande)? A Arte Nova ou Xávega, é uma rede de arrasto com que se pratica o «cerco» ao peixe, varrendo o fundo arenoso, sendo estendida no 219


mar por uma embarcação (o «Barco do Mar») a distâncias variáveis, entre a uma e as três milhas. Rede que fica ligada a terra pelos cabos do reçoeiro (e da mão da barca), fixados aos càlões, e é constituída por um saco, a bocada, ligado pelas mangas (tralhas) que se vão fixar nos càlões anteriormente referidos. A Xávega (arte) é sem dúvida uma evolução do chincorro, uma rede que trabalhava do mesmo modo – varrendo o fundo da laguna – mas de muito menor dimensão. Para uma comparação das dimensões destas redes atentemos no quadro abaixo: Quadro IX Comparação entre Artes. Estrutura das redes de arrasto ou "varredouras" Tipos

Mangas

Saco

(metros)

(metros)

Homens

Mugeiras

40

8

15 a 20

Tarrafas

35

6

15 a 20

Chinchorros

30 a 32

4a5

3a4

Chinchas

12

3

3a4

O saco da Xávega, de secção trapezoidal, para além de usar uma malha muito apertada nas mangas que iam do claro(a) à

220


alcalena262, podia mesmo ser cego no seu final, tendo dimensões aproximadas de:

Saco

70 metros de circunferência 40 metros de profundidade 8 metros de largura no fundo, "coada"

Mangas

230 metros de comprimento 20 a 25 metros de largura

Fig. 165 – Aparelho de XÁVEGA263.

262

Laranjeira, Eduardo Lamy, in «Furadouro – O Povoado, O Homem e o Mar».

263

Fonseca, Senos da, in «Ílhavo – Ensaio Monográfico», ant. cit.

221


A flutuação para a abertura do saco é dada pela cortiçada264, fixada na tralha superior (corche), enquanto na parte inferior, no prume(o), funcionando como peso para a arrastar pelo fundo, (a profundidade de trabalho era de cerca de seis braças em fundo liso de areia) eram usadas as pandas. Que eram «malhas» de barro com cerca de oito centímetros de diâmetro, tendo dois furos para fixação à rede. Mais tarde foram substituídas por chumbadas.

Fig. 166 – A recolha do peixe com os xalavares.

Fig. 167 – Bois metidos no mar.

264

As redes até ao Séc. XX eram de linho, precisando por isso de mais cortiçada porque eram menos «boeiras», mais «levianas».

222


Fig. 168 – Carregando as artes.

6-5 Construção A construção do barco do «Barco do Mar» segue exactamente os mesmos passos das restantes embarcações lagunares. A sequência é rigorosamente a mesma, existindo como nas restantes um pau de pontos onde se encontram exaradas todas as dimensões que permitem, mesmo a uma mestrança incapaz de tirar uma medida numérica com a ajuda de metro, fixar com exactidão as dimensões principais da embarcação. Podemos, pois, fixar a ordem das diversas fases de construção, do seguinte modo: 1- Colocação das estacas (no barco actual de 9m são cinco as necessárias) que vão posicionar a tábua do fundo, ou quilha. Na parte curva, a deformação do tabuado (cuja espessura vai de 2,5/5 mm, conforme barcos de 9 m a 16,5 m) pode ser conseguida submetendo-a ao fogo para a conseguir dobrar. 2- Colocação das tábuas de fecho. Em cada local da caverna o pau de pontos dá a largura do fundo. As 223


tábuas de fundo do «Barco do Mar» são, naturalmente de maior espessura que as das embarcações de águas interiores. Nestas tábuas de fecho é feito o côvado (assutamento). 3- Acavernar (colocar cavernas), depois ajustar os braços das ditas. 4- Fixar as bicas de proa e ré, na posição correcta, à tábua de fundo. 5- Aplicação da tábua de verdegar. 6- Aplicar tábua de entre dois. 7- Aplicação tábua do bordo (cinta) (0,16 x 0,03 m) e draga (0,25 x 0,03 m). 8- Execução da falca265 fixa (ao centro 0,15 m x 0,03 m). A falca morre na 2ª caverna a contar da ré. 9- Aplicação dos foliamentos de proa e ré. Foliamento da draga à falca. 10- Execução do (re)bordo superior, com aplicação dos remadouros266. 11- Carenar, para aplicar tábuas de fecho do fundo. 12- Colocar os trastes, estribeiras e requintas. 13- Aplicação das ferragens (arganéus, boçardas e armelas). E ainda os estalabordos267 (actualmente executados em

265

Ao «Barco do Mar», tal como sucedeu na «ílhava» quando foi pescar para a borda, aplicou-se uma falca fixa, para na prática se aumentar o pontal da embarcação. 266

Zona do bordo onde são inseridas as labaças para os escalamãos ou escalamões. 267

Zona do bordo onde corre o reçoeiro, mão da barca e a arte.

224


chapa inox, antigamente em madeira rija: - carvalho, laranjeira ou outra. 14- Pintura Quadro X

268

Tipo de Barco

Barco grande

Barco pequeno

Comprimento

16,45m

9m

Boca

4,18m

2,90m

Pontal

1,28m

1,00m

Nยบ Cavernas

27

16

Nยบ remos

4

2

Nยบ homens

45

35268

Actualmente utilizando motores, estes barcos com comp. de 9/10 m, levam 12 tripulantes.

225


6-6 Planos GeomĂŠtricos (2D)269

269

Ver DVD anexo.

226


6-7 Planos GeomĂŠtricos (3D)270

270

Ver DVD anexo.

227


Cap. 7 – O «Varino» Dois termos, soando foneticamente de um modo muito semelhante – ovarino e varino – confundiram-se, confundindo muito boa gente. E ainda hoje se confundem no seu significado, sendo certo que «varina», é, com certeza, um desvio da forma «ovarina», que inicialmente quereria designar «mulher de Ovar». A designação de varino generalizou-se, passando a abranger não apenas a naturalidade, a certidão do local de nascença, mas uma certa forma de vida. E passou, assim também, a designar não só as mulheres (e os homens) identificados com a região lagunar, mas por extensão, e muito mais genericamente, gentes provenientes não só da borda lagunar, mas e também de áreas um pouco mais a norte, que iam até ao rio Douro. Era pois gentiaga identificada pelos hábitos, costumes, trajos, maneiras e modos de falar, agregada em grupos específicos – clãs – dispersos pela beira do Tejo. Grupos esses imunes a influências estranhas, impermeáveis a uma aculturação externa, como que vivendo em ilhas (ilos) de difícil acesso, conseguindo manter a sua identidade numa preservação que durou mais de dois séculos. Só que o termo varino, importa sublinhar, não designou apenas «as gentes» que labutaram nas diversas actividades ribeirinhas, fosse nas artes de pesca, ou embarcados no transporte fluvial, no Tejo. «Varino» foi, também, designação com que se referenciou toda uma familia de embarcações, no mínimo estranhas e singulares, 228


repentinamente ancoradas pela beirada do rio, ao tempo em que os seus tripulantes se iam agasalhando em estranhos tugúrios feitos de caniço, alapando-se sem parecer pedirem autorização para tal desaforo. Havia alguns traços comuns, característicos e afinidades visíveis nessas embarcações, justificando familiaridade e até origem. Eram patentes nas mesmas, similitudes no conceito de construção (fundo chatos, lemes de charolo, estrutura em cavername), mas e também, nos fins para que eram utilizadas: pesca, pequenos e grandes transportes fluviais, ou e até na inspiração das formas: – abicadas nas extremidades, recurvadas como fatia de melancia sem polpa. Ou como disse Fialho d’Almeida271, barcos em forma de pão de bicos. Mas e ainda, o termo varino correu para identificação do Gabão de protecção usado no Séc. XIX pelos pescadores (e depois adoptado por outros estratos sociais), abotoado de cima abaixo, com capuz largo pendendo nas costas. Preto para luto, ou castanho para trabalho no dia a dia.

Fig. 169 – Varinos e o gabão.

271

Almeida, Fialho d’, in «Os Gatos», Lisboa 1949, (1ª Edição 1889 -1894).

229


A palavra varino serviu, também, para emprestar nome e assim designar uma arte de pesca utilizada na Azambuja, no Séc. XIX, para a pesca do sável 272.

7-1 Os Varinos chegam ao TEJO Pode, num conceito temporal, especular-se com maior ou menor certeza, ter-se verificado a chegada ao Tejo destas gentes idas da Laguna, em meados do Séc. XVIII. Fossem de Ovar ou fossem de Ílhavo – e ou até da Murtosa –, a razão da migração foi comum a todas elas: - a profunda crise lagunar verificada pelos anos de setecentos, provinda do inquinamento das águas interiores como consequência da sua não renovação, impedida pelo estado precário da sua ligação ao mar. Nesse período de forte constrangimento económico a referida ligação situava-se, nessa centúria, muito para sul do paralelo das gafanhas. Quanto mais a barra se deslocasse para sul mais se agravava a situação da vida lagunar. A razão residia no facto de, com a barra muito lá para sul, o efeito renovador das marés se fazia sentir de um modo muito mais atenuado, provocando um intenso e irreversível assoreamento, originando, assim, um maior impedimento ao vaivém das águas. Chegou-se a um ponto em que, quer por impossibilidade de dar acesso à entrada ou saída das embarcações que traziam ou escoavam as mercadorias, quer pelo praticamente total desaparecimento das espécies e riquezas (sal e moliços) gerados na laguna, se caiu numa situação de total estagnação de quase todas as actividades económicas que nela se 272

Homenagem a H. Seixas, p. 210, foto 525, ed. Museu de Marinha, 1988.

230


sustinham. O que veio trazer o desespero a estas gentes, que já de si irrequietas, se lançaram litoral abaixo em procura de novos pousios fora de portas. De facto, como consequência da situação atrás referida – uma verdadeira calamidade regional – teria resultado, ainda e de sobremaneira, a ruína da exploração salífera, uma das mais atractivas actividades económicas da região. Não só era escassa a quantidade de sal extraída, mas péssima a qualidade produzida (o sal preto). A diminuta produção, era pois, destituída de valor comercial, inviabilizando a sua comercialização. Mas ainda que pouco se pudesse amealhar como resultante da sua venda, haveria, ainda, a própria impossibilidade de o fazer sair pela barra, tornada impraticável para embarcações de maior calado. A produção paralisou na sua quase totalidade. As marinhas foram abandonadas, e o marnoto foi juntar-se à horda de pescadores que se pusera a caminho para a borda do mar, em procura de outros locais em que fosse possível sobreviver. Aos ovarinos e aos ílhavos273 não restou, pois, outra alternativa que não fosse a das artes, transferindo-se uns, com as mesmas, para os areais mais próximos (costa de S. Jacinto, Torreira, Ovar), enquanto outros migraram para o Douro (Afurada). E uma outra parte muito significativa, foi em demanda do Tejo, aqui se estabelecendo na pesca do sável e nas artes da tarrafa274, ou ainda, engajando-se na cabotagem fluvial. Que nesse período conhecia tempo de grande actividade, fundamental para estabelecer e reforçar as relações comerciais entre as duas margens do Tejo, carregando pessoas e toda a espécie de bens, matérias-primas e 273

Fonseca, Senos da, in «Ílhavo – Ensaio Monográfico», doc. 20, p. 516 – Dos officiais Da vª de Aveiro contra os officiais das Câmaras das vªs de Estarreja, jlhauo, angeja, e outras mais (1686), onde se afirmava: Por já neste tempo estar a Barra entupida (…) e se terem extinguido todas as embarcações (…) os pezcadores por evitarem estes danoz deijão suas molheres e filhos e se uam para o Porto e outros para Lisboa. 274

Ver Cap. 4 – A «ílhava».

231


produtos, transbordando-os de uma para outra margem, ou destas para os barcos que demandavam o Tejo em sua procura. Baldaque da Silva275 salienta, como já anteriormente referimos, que no século passado – no Séc. XVIII – a emigração feita da região lagunar, era já consistente. Procurando mais informação para o estabelecimento seguro da datação histórica, correcta, podemos ler na «Nova Relação da Batalha Naval que tiveram os Algarvios com os Saveiros, nos mares que confinam com o celebrado País da Trafaria»276, proveniente da literatura popular de setecentos, o seguinte: (…) sucedeu que os saveiros saindo da costa que fica ao sul da Trafaria (…) de uma certa enseada em que os ditos saveiros vivem a maior parte do tempo. O que ajuda a confirmar que já nessa data (meados Séc. XVIII) a procura daqueles locais, para aí estabelecerem interessantes colónias piscatórias, era já um facto consumado e de expressão assinalável, pois eram já significativos os agregados populacionais resultantes de agrupamentos de pescadores instalados no Tejo. Foi, aliás, numa dessas colónias formada por cabanas erguidas no areal da praia da Caparica, que Pina Manique, o Intendente, ainda então homem de confiança de Pombal, em 1777, decidiu procurar uns desertores que ali se tinham refugiado. Dessa feroz intervenção resultou uma autêntica chacina nas gentes que habitavam aqueles tugúrios, bem como a destruição, consumidas pelo fogo, das cabanas dos Varinos ali recentemente instalados, como foi então referido. Chegados a Lisboa acolhiam-se junto à Torre da Boavista, ou à de Belém, varando em Paço d’Arcos. 275

Silva, A. Baldaque da, in «Estado Actual das Pescas em Portugal», ant.cit., editado em 1892. 276

Anónimo, editado na Catalunha por Francisco Guevaz.

232


Continuariam até Azambuja, em cujas praias praticavam a pesca do sável com a varina: – arte de pesca apropriada para a captura daquela espécie. E indo mais rio adentro, embrenhar-se-iam no Tejo, chegando até Vila Franca onde já, em 1727, se teriam verificado nascimentos de «cagaréus»277. Em 1819 os pescadores de Alhandra, Alverca e outros locais vizinhos, clamavam a D. João VI contra os excessos praticados pelos pescadores de Aveiro, a que chamavam Varinos, que utilizavam redes de arrasto muito prejudiciais, e que, sendo proibidas, ainda por cima não pagando competentes direitos278. Na primeira metade do Séc. XIX, podemos conhecer279 que tais colónias tinham efectivamente subido até Vila Franca, e aí se fixando (1825) em bairros característicos, sendo (já) assinalados óbitos de gentes idas da região lagunar. Teriam levado consigo a família, e por lá ficariam até ao fim dos seus dias, sepultados para sempre, longe da terra natal. Temos pois todos os elementos para definir o final do Séc. XVIII, o Séc. XIX, e até, ainda, o Séc. XX, como os dois séculos e meio da Diáspora dos ílhavos e dos ovarinos pelos arredores de Lisboa, na beira-rio.

7-2 «Varino» (Embarcação)

277

Cagaréus – nome por que eram conhecidas as gentes de Aveiro. «Cagaréus e Ceboleiros», Sarabando, José. 278

Lamy, Alberto, in «Monografia de Ovar», Tomo I, p.156, Ovar, 1977.

279

In «Navegando no Tejo», ed. CRRL.

233


Ao consultar o que foi referenciado pelos que se dedicaram ao estudo das embarcações tradicionais do Tejo, constatamos uma certa confusão – para o leitor não informado – existente na classificação dos «tipos de embarcação». A designação «Varino» é aplicada a várias embarcações, algumas das quais profundamente diferentes no conceito e nas formas, e até nas técnicas construtivas. Tentemos clarificar um pouco esta confusão, patente em várias publicações. Várias fontes relevam o «Varino» de 1808 com a forma que se apresenta na figura abaixo:

280

Fig. 170 – «Varino» de 1808

280

.

Não é possível deixar de relevar a forma da proa inspirada na «muleta».

234


Um dos tipos com inspiração originária nas embarcações da laguna, tal a similitude na forma e nos conceitos, com as mesmas. Salientam vários autores consagrados, ser esta embarcação inspirada nas «ílhavas» deixadas no Tejo281 pelos pescadores de Ílhavo282. Ora pensamos não ser de todo correcto (historicamente), dizer que a inspiração vinha das «ílhavas» deixadas por lá. De facto, em 1808, praticamente estavam as «ílhavas», ainda, a chegar ao Tejo, como referido anteriormente, quando abordámos aquela embarcação283. De onde se pode concluir que as duas embarcações («ílhava» e «Varino») foram contemporâneas no Tejo, e, será mais correcto, isso sim, equacionar a hipótese de aqueles «Varinos» terem sido construídos na Laguna, utilizando o saber e a técnica de construção por aqui existentes, aproveitando a grande experiência da feitura de embarcações próprias para acesso a fundos baixos, capazes de se estabilizar, se assentes em fundo seco. E aqui construídas (região lagunar), eram então enviadas para o Tejo, para aí laborarem, como o foram um número notável de outros tipos de embarcações (genérica e impropriamente designadas por «Enviadas»).

7-3 Características do «Varino» de 1808

281

Como se afirma no web site da A.N.C. – www.ancruzeiros.pt

282

Os pescadores, com a «ílhava» mantiveram-se a pescar no Tejo, até ao primeiro quartel do Séc. XX. 283

Ver Cap. 4 – A «ílhava».

235


Esta embarcação, tinha, pois, muitos aspectos similares às embarcações da laguna, delas absorvendo características fundamentais, a saber: - Fundo chato. - Proa e popa em bica, curvadas nos dois extremos. - Leme de xarolo, habitual nas embarcações da Laguna, alinhado com o fundo. As grandes diferenças estarão no plano vélico: - Vela grande latina triangular (vela bastarda). - Estai à vante. - Mastro muito inclinado para trás. - Inserção dos esporões da «Muleta» na roda de proa.

7-4 «Varino de Culè» ou «Varino de Pau de Aresta» Outra embarcação considerada como do tipo «Varino», é o «Barco de Culè» ou «Varino de Pau de Aresta» (ou ainda, «Varino de Água Acima»284), nome que lhe advém do facto da ligação do casco ao fundo plano ser feito por dois paus de aresta.

284

Estas embarcações eram predominantemente utilizadas para carregar mato e caniço, do «Porto da Raposa» para Vila Franca.

236


Fig. 171 – «Varino de Culè»

No essencial das linhas, era um «Varino» muito idêntico ao referido anteriormente, como se pode observar na figura acima. Media até 12/13 metros envergando um pano latino bastardo, com estai à proa, permitindo uma inclinação do mastro muito marcada para ré, fazendo deslocar o plano vélico nesse sentido, o que certamente lhe conferia razoáveis condições de bolina. O fundo era plano, e o leme prolongado na linha do fundo aumentava a superfície da porta, estendendo-se para trás, o que facilitava o acesso da embarcação a zonas pouco profundas, mantendo boa governabilidade. Na foto abaixo285

285

Fotografia inserida em «Navegando no Tejo», ed. da CCRL, com coordenação de Fátima Magalhães.

237


Fig. 172 – «Varinos de Culè» acostados.

podemos apreciar várias destas embarcações, em finais Séc. XIX, sendo de realçar a forma da porta do leme que é perfeitamente visível no varino do primeiro plano, prolongada para trás.286 Nestas embarcações é comum a existência de paneiros, bem como de duas cobertas, à proa e a ré, bordas falsas (falcas), forras interiores, um ou dois dormentes e a secorda, espécie de rebordo saliente sobre o dormente de cima como refere Lixa Filgueiras287. No Séc. XIX irá verificar-se uma evolução nestes tipos de embarcações, adaptando-as para o cumprimento de um requisito específico que era o do transporte de certo tipo de mercadorias (cortiça, sal e madeiras), entre as duas margens. Surge assim, o «Varino de Carga».

286

Ver ponto 7-9-1.

287

Filgueiras, O. Lixa, in «Barcos».

238


Fig. 173 – «Varino de Carga» Séc. XIX/XX.

Trata-se de um barco pesado, com uma capacidade que ia das 10 Ton às 80, 100, e até 120 Ton. Tinha duas cabinas: uma à proa (para os moços) e outra a ré (para o arrais), com porão central coberto por paneiros. Tem notórias diferenças de concepção em relação aos anteriormente referidos, pois tem painel da ré e o leme é de cana (utilizando sistema de gualdropes, assentando em cadaste).

Fig. 174 – «Varino de Carga» com vela latina triangular

239

(1927).


Este tipo de embarcação usou, inicialmente, ele também, vela triangular latina, bastarda, que evoluiu para a vela latina de carangueja envergada num mastro (mão da carangueja) muito inclinado para ré e um ou dois estais, a vante). O fundo é chato (ligeiramente côncavo), de onde se desenvolve um costado bojudo, ligado àquele por paus de aresta; tem uma falsaquilha no seu plano médio, que estabelece continuidade com a roda de proa, permitindo-lhe um assentamento perfeito nas zonas baixas, com os paus de arestas salientes. O fundo saía para fora da linha do costado, servindo para conveniente apoio, quando encalhado (varado). Outra função deste prolongamento lateral do fundo é o de fazer efeito anti-deriva288.

Fig. 175 – Corte Transversal (paus de aresta e quilha falsa).

288

Efeito que contraria o caimento lateral (deriva) da embarcação fazendo-a avançar.

240


Não dispensava, contudo, a pá da toste, para diminuir o arrolado (deriva). O comprimento variava conforme o deslocamento, chegando a atingir 20 metros. O seu mastro elevava-se a 25 metros (o plano ponto 7-9-2 corresponde a uma embarcação de 12 metros de comprimento, de fora a fora). O «Varino de Carga» que se mostra na gravura abaixo, aparece no Séc. XIX, para dar resposta a uma necessidade que se tinha colocado aos transportadores de mercancias no Tejo. Este tipo de «Varino» – o mais vulgar de fins do Séc. XIX – foi, de facto, utilizado para transportes entre margens. E ou destas, para carregamento dos navios que demandavam o Tejo, sendo especialmente utilizado no transporte de cortiça, sal e madeiras.

. Fig. 176 – «Varino de Carga» transportando cortiça.289 . 289

Notar o prolongamento da cana do leme, passando acima da carga e a utilização de barcaças de apoio, para equilíbrio lateral.

241


Durante finais do Séc. XIX as instalações fabris e os armazéns da cortiça viriam fixar-se na margem sul do Tejo, mais concretamente para perto da zona da Moita, Amora, Seixal, Arrentela e Sarilhos. Eram zonas de praias alagadas, de pauis ribeirinhos que ficavam a descoberto nas marés baixas. O acesso era, por isso, difícil, senão mesmo impossível para as embarcações como a «Fragata». Esta, derivado ao seu fundo bojudo, redondo, provido de quilha, não só calava água em excesso, como ficava desequilibrada (tombada) quando em seco.

Fig. 177 – «Varinos» no Porto do Tejo290.

7-5 Inclusão do «Varino» nas embarcações Lagunares Porque decidimos incluir esta embarcação nas «Embarcações Históricas» nascidas na Laguna? 290

Vila Velha de Ródão.

242


As razões residem no facto de que o «Varino», sob o ponto de vista de desenvolvimento e construção – de criação isso será impossível opinar – terá tido as suas raízes mais profundas na Laguna, que foi o seu «berço»291, construído profusamente por muitos dos estaleiros estabelecidos na sua borda. Assim surgem-nos registos de construção daquele tipo de embarcação em Pardilhó, Murtosa, Ovar, Ílhavo, e certamente em Aveiro, nos estaleiros da Calle de S. João. Só na zona de Pardilhó registamos, no princípio do Séc. XX, os seguintes estaleiros: do Chão do Capitão292 e o da Ribeira da Nacinha. Nestes e em outros da zona da Ribeira laboraram activamente os mestres Zé da Fateixa, David da Lestra, Benjamim Picadeiro, José Maria Gabriel293, Joaquim Roleiro, «Os Ministros», Joaquim Fragoso, Jaime da Costa294 e Álvaro Venâncio, todos eles referenciados como mestres especialistas na construção de «Varinos». Já de estaleiros de Ovar (Cabanões, Marinha, S.João) são referidos os nomes de «Marcelas», «Linos», «Ribeiros» e outros. Da «Estatística Industrial da Repartição de Pesos e Medidas», de 1867, pode ser retirada uma relação das embarcações deste tipo que foram construídos nos diversos estaleiros da Laguna.

291

Pelo menos no conceito, sem dúvida.

292

Neste «Chão do Capitão» – Pardilhó – esteve instalada, também, uma seca de bacalhau. 293

Mestre Gabriel foi o mestre construtor do bacalhoeiro «Maria das Flores», no Bico da Murtosa. 294

Jaime da Costa, irmão do mestre Lavoura, construtor de «Moliceiros», tem ainda hoje, em Sarilhos, o seu estaleiro a laborar.

243


Quadro XI Anos de 1853-1862 Anos

Bateiras

1853

-

1854

10

1855

Valores (réis)

Nº «Varinos» 79

11.573$000

36$000

119

17.433$000

22

667$000

98

14.357$000

1856

8

57$900

46

6.739$000

1857

7

31$000

60

8.790$000

1858

18

172$000

78

11.427$000

1859

-

-

63

9.229$000

1860

-

-

51

7.471$000

1861

58

419$000

57

8.350$000

1862

24

211$000

16

2.344$000

Total

147

607

97.715$000

A prova não poderia ser mais evidente sobre a ligação umbilical deste tipo de embarcação à Laguna.

244


Fig. 178 – Braços de cavernas do «Varino»295.

Aqui teria sido, pois, engenhosamente arquitectada, fruto da experiência naval lagunar, e por aqui terá sido profusamente construída. Que passaria, definitiva e exclusivamente, para a beira do Tejo, quando gentes idas da região lagunar foram, como referido anteriormente, estabelecer-se (e ou laborar) nos estaleiros das margens do Tejo296. Estas embarcações, acabada a sua construção na Laguna eram enviadas para Lisboa (e ou para Setúbal). Recolhemos a notícia (oral) que os dois últimos «Varinos»297 construídos na região de 295

Esta fotografia prova à evidência, se outras não houvesse, a ligação umbilical do «Varino» à tecnologia naval da Laguna, in «Barcos, memórias do Tejo», ed. C.M.Seixal, 2007. 296

Os locais onde se fixaram os estaleiros, na margem sul do Tejo, e nos quais trabalhavam predominantemente gentes idas de Pardilhó, foram Sarilhos, Seixal, Moita e Amora. 297

O último «Varino» ido da laguna, foi chamado «Ana Maria». Nele andou embarcado o Ti João da «Caixa» (João Lopes Afonso, de Pardilhó), que nos deu preciosas referências da nomenclatura dos componentes desta embarcação.

245


Aveiro (Pardilhó) teriam seguido para viagem, para o Tejo, em meados de 1930, depois de lançados à água na laguna de Aveiro. Do mapa recolhido da referida Estatística, poderemos ter uma ideia dos locais onde eram produzidas estas embarcações: Quadro XII Tipos

Águeda

Aveiro

De carga

2

4

Castelo Paiva

Estarreja

Ílhavo

Ovar

Barco Gr. pesca mar Barco Peq. pesca mar Moliceiros

10

9

2

Bateiras Gr.

10

Bateiras Peq.

10

Batéis Varinos Gr.

2 20

17

Varinos Peq.

27 Total

246

2

184


Fig. 179 – «Varinos» construídos em Aveiro, chegados ao Tejo, carregando duas bateiras.

7-6 Viagem de «varar o mar» Para essa demanda do Tejo embarcavam normalmente três tripulantes, geralmente gentes de Ílhavo, numa viagem que teve a designação de «varar o mar»298, travessia que em boas condições demoraria cerca de dois dias, e apenas feita com a companhia de um relógio de sol de três vinténs.

298

Cunha, Ferreira da, in «Ilustração Portugueza», nº 500 de 20.09.1915 referia entre outros o mestre Manuel Lamarão que só naquele ano teria feito três daquelas viagens.

247


Recolhemos, junto de mestres que no princípio do Séc. XX ainda tripulavam estas embarcações, informações que levam a concluir que o «Varino» seria um barco suficientemente rápido (mas evidentemente não tão rápido como a «Fragata») para o desempenho da sua normal actividade, tendo em consideração o seu deslocamento. Bolinando razoavelmente, melhor nos largos, calava cerca de 20/30 cm de água, quando vazio. O que era essencial ao desempenho de muitas das suas tarefas na aproximação aos sapais. À proa tinha um guincho manual, de tambor299, para levantar o ferro de unhas300. Incluía no equipamento varas para ajudar à sua manobra, ou para impulso aquando da falta de vento, embora andasse sempre com uma lancha a reboque para puxar a embarcação em caso de calmaria. O leme era de grandes dimensões, porta inclinada, superando ligeiramente a linha de fundo. A cana do leme entrava na cabeça do mesmo, podendo a mesma ser movimentada por gualdrope.

Fig. 180 – Gravura da «Ilustração Portugueza», de 1915, de um bota-abaixo de uma «Enviada» na Malhada (Ílhavo).

299

Este guincho situava-se entre o alboi e a escotilha do mastro.

300

Para proteger as amuras das unhas do ferro, quando pendente, existiam as raposas. Quando recolhido, o ferro repousava na boçarda. Para acesso a esta, exista o estrado do estai.

248


Fig. 181 – «Varino» no carreto.

Já anteriormente referimos que a partir do início do Séc. XX estas embarcações passariam a ser, também, construídas na zona da Moita e Sarilhos, para onde se vieram fixar muitos dos carpinteiros navais vindos das zonas vizinhas de Pardilhó e arredores, sendo ainda hoje possível encontrar rastos dessa grande colónia de gentes, ida da zona lagunar do norte.

249


Fig. 182 – Cavername do «Varino»301.

Uns estabelecendo-se por conta própria, fundando estaleiros. Outros trabalhando para os proprietários dos diversos estaleiros existentes na zona302, empregando-se como carpinteiros, calafates, pintores, etc.303. Nos dias de hoje ainda laboram alguns desses estaleiros, muito embora para reparação e manutenção das embarcações existentes, ou, excepcionalmente, para construção de algumas

301

Fotografia tirada nos estaleiros de Jaime da Costa em Sarilhos Pequenos/Moita. 302

No livro «Barcos, Memórias do Tejo» editado pela Câmara Municipal do Seixal, são referenciados estaleiros, existentes no Séc. XIX, no Seixal e Arrentela, e vários outros já instalados no Séc. XX, pela zona do Seixal. 303

No livro acima referido é registado (p. 22) um depoimento de João Estrela carpinteiro naval a malta do norte era mais atiradiça (…) punham-se a trabalhar por conta própria. (…) porque lá por Pardilhó fez-se muitos barcos destes (…) que depois vinham pelo mar.

250


(poucas) unidades para fins de recreio. Parece assim, ser lícito, intuir que a partir de determinada altura, se percebeu ser mais fácil e rentável, construir a embarcação na margem do Tejo, até porque o abastecimento da madeira adequada para tal fim (pinho manso) era facilmente encontrado na margem sul daquele rio (Azambujeira).

Fig. 183 – O último «Varino» construído nos Estaleiros de Sarilhos de Jaime Costa.

Dados da «Corografia Industrial do Concelho de Ílhavo», de 1864, dão-nos conta de que nesse ano teriam sido construídos, em Ílhavo (Malhada), 19 embarcações do tipo de «Barco de Mar» e «Varino», ao preço de 80$000 réis. Das «Informações para a Estatística Industrial» de 1865, recolhemos os valores de 320$000 réis, para os «Varinos» grandes, e 116$000 réis para os «Varinos» pequenos. 251


Em outros pontos da laguna é referida a construção intensa de embarcações do tipo «Varino», quer fossem pequenos – de culè? – e ou grandes, «Varinos de Carga». A questão parece, pois, colocar-se em saber qual o tipo dos «Varinos», acima referidos, que teria sido, inicialmente, construído nos estaleiros da laguna de Aveiro. Sobre os dois primeiros tipos, acima referidos – «Varino de 1808» e «Varino de Culè» – cujas técnicas de construção eram perfeitamente idênticas às usadas nas embarcações lagunares («ílhavas», «Saveiros» fluviais), que os antecederam, parece não restar grandes motivos para dúvidas. A diferença no plano vélico (triangular, bastarda, no «Varino», e vela de pendão, na «ílhava», pode explicar-se pela necessidade de rapidez daquelas embarcações, precisando de boas prestações à bolina, o que não sucedia na «ílhava», comummente utilizada só, para as popas. A construção era pois, a tradicional: fundo plano pregado (encavilhado) às cavernas, bicas das proas e ré curvas, e leme de charolo. Do documento fotográfico, do espólio de H. Seixas 304, retira-se, também, qualquer dúvida sobre o local de origem. Ainda nos princípios do Séc. XX se construíam «Varinos de Carga», na região de Aveiro, e enviados depois para Lisboa, levando na viagem embarcações de menor porte (ver «ílhava»), ou carga vária, de que se refer a madeira e sal, como sendo das mais habituais. Desse modo a viagem era utilizada para amealhar mais umas moedas para juntar aos parcos ganhos daqueles intrépidos marinheiros, que naquelas condições se arriscavam em tão problemática viagem, apenas guiados por relógio de sol de «vinténs».

304

Homenagem do Museu de Marinha a Henrique Maufroy de Seixas, ed. de 1988.

252


Quanto ao «Varino de Carga», este, dada a sua dimensão e especificidade, apenas tem a ver com os barcos lagunares no que respeita à técnica de construção. Quanto às formas apenas a proa tem semelhanças com os anteriores «Varinos», de onde certamente evoluíram, mas está muito mais perto da forma da proa da «Muleta», só lhe faltando o dentado. O conceito do fundo chato para diminuir o calado, parece sugerir que essa característica foi o contributo da experiência da navegação lagunar, que já era patente nos tipos anteriores, embora nestes as influências fossem muito mais extensas e de todo tipo.

Fig. 184 – «Varino» (ao centro) em construção nos Estaleiros Mónica (1940).

7-7 Decoração

253


O «Varino» recolheu do «Moliceiro» o tique de exibição, em peças do seu interior (anteparas) e exterior (painéis da proa, bordas, etc.). Exibiu uma decoração cromática onde se incluem, preponderantemente, motivos florais que terão a particularidade de serem objecto de um tratamento muito mais aperfeiçoado que no «Moliceiro», sob o ponto de vista artístico. Embora em todas as circunstâncias os tons usados sejam os mesmos, fortíssimos na sua garridice, eles deixam de fora as figurações e os rodapés atrevidos do «Moliceiro», bem como as expressões dos arabescos, para se particularizarem numa decoração que visa envolver símbolos (bandeira) ou nome da embarcação, num painel monocromo, apondo-lhe nos cantos ramalhetes florais, cuidadosa e artisticamente executados. Minuciosamente executados por mestres pintores muito mais perfeccionistas e muito mais profissionais na execução. Se no «Moliceiro» os motivos surpreendem pelo exibicionismo cromático, no «Varino», os motivos florais eram, requintados e minuciosamente recortados, e pintados, numa execução onde imperava um maior (muito maior) pendor artístico. No «Varino» eram mestres pintores de outras artes (cerâmicas?) que eram chamados a decorar a embarcação.

Fig. 185 – Cesto Floral (Barcos e Memórias do Tejo).

254


A zona no «Varino» que nos aparece como a mais redundante é a da antepara de ré, onde as cintas florais são profusas e variadas, as letras (identificadoras da nacionalidade ou local de armação, data de lançamento à água etc.) artisticamente executadas, e num ou outro caso, o centro da antepara era usado para representar o proscénio onde se exibia um quadro referenciando a vida marítima fluvial,

Fig. 186 – Antepara de ré.

ou, não raro, eram exibidos nessas anteparas (e em outras embarcações tradicionais do Tejo) motivos religiosos (Sras. da Graça, da Atalaia, etc.), desenhos artísticos que se não tinham grande qualidade na figura evocada, tinham diferente qualidade, para melhor, nos motivos florais que as enquadravam.

255


7-8 Designações: Componentes do «Varino»

1

2

9

3

4 5

6

7

10 8

Legenda: 1

– Caneco

6 – Cana do leme

2

– Cabeço

7 – Cachola do leme

3

– Escotilha

8 – Cinta

4

– Boneca

9 – Alcatrate

5

– Curva da sicórdia

256

10 – Antepara do castelo de proa


14 1 7 3

2

13 9

12

4 15 16 5

11

6

8

Legenda: 1 – Calcez

9 – Vela grande

2 – Mesa das enxárcias 3 – Carangueja

11 – Cadernal de carga

4 – Mãozinha da carangueja

12 – Enxárcias

5 – Mastro

13 – Gordim

6 – Aros

14 – Adriça da vela grande

7 – Envergue

15 – Caçoilos

8 – Estai

257


9 10 1

8 6

11

7 5

3

4 1

2

Legenda: 1 – Tábua de aresta

7 – Sicórdia

2 – Quilha falsa

8 – Forro

3 – Sobrequilha

9 – Alcatrate

4 – Escoa

10 – Cinta

5 – Dormente inferior

11 – Tábuas do costado

6 – Dormente real

258


Fig. 187 – «Varino» na carreira.

7-9 Planos Geométricos (2D)305

305

Ver DVD anexo.

259


7-9-1 «Varino de Culè».

260


7-9-2 «Varino de Carga».

261


7-10 «Varino» em 3D306 Entendemos utilizar os mais modernos meios informáticos, concebendo os planos da embarcação, em desenho de 3 dimensões. Não só permite uma boa visualização, como a rotação que se pode fazer permite analisá-la sob todos os pormenores, com real eficácia e fidelidade. Permitindo extrair facilmente dimensões de todas nas suas formas geométricas.

Fig. 188 – «Varino» 3D.

306

Ver DVD anexo.

262


263


Glossário

A Aboiado – Algas que andam à tona da água. Águas – Espraiado do mar depois de passada a rebentação. Alar – Recolher a rede. Alça da empena – Mãozinha onde laça o cabo da empena. Alça da focinheira – Mãozinha que entra na verga. Alcalena – Uma das partes da manga, nas artes de arrastar. Alcatrate – Tabuado que reborda as obras mortas, em cima. Alevantado – Empinado. Alheta – Parte curva do costado, dum e de outro lado da roda de popa. Amanhação – É o acto em que, com o barco carenado, se procede à limpeza e tratamento do fundo da embarcação. Amura – Parte curva do costado, dum e de outro lado da roda da proa (também designada por bochecha). Amurar – Fixar à amura. Antepara da proa – Limite do castelo da proa. 264


Glossário

Antepara de ré – Limite da coberta de ré. Arganéu – Peça metálica cruciforme onde vão engatar as argolas fixas aos cabos que puxam o barco do mar. Armela – Argola na roda de ré, abaixo do descanso da muleta, que recebe cabos, durante as manobras de entrada e saída do barco do mar. Arrolado (moliço) – Algas que vão dar à borda da água. Arroteador – Rústico que desbrava terrenos incultos. Arte da tarrafa – O mesmo que tarrafa. Arte de xávega – Rede de arrasto, fundamentalmente constituída por um saco, ligado a duas mangas. Arte Nova – Técnica de arrasto onde se pratica o “cerco” ao peixe, com rede que varre o fundo arenoso, utilizando o barco do mar. Artes grandes – O mesmo que Arte Nova. Asa da escota – Alça onde trabalha o cadernal da escota.

265


Glossário

B Baixel – Embarcação grande e pouco alterosa. Barca – Navio bojudo, que podia armar até três mastros (mas vulgarmente só um) com panos redondos. 2. Barca – Embarcação de fundo chato, abicada nos dois extremos, usada, em tempos longínquos, em águas fluviais e lagunares. 3. Barca – Nome por que também é conhecido o barco mercantel. Barco de carreto – Embarcação de transporte de mercadorias. Barco de xávega – Embarcação destinada ao lançamento da arte com o mesmo nome. Barlavento – Amura de onde sopra o vento. Barrote – Conjunto de traves interiores que sustenta a coberta da proa. Também designado arcos. Barrote da proa – Limite da coberta da proa. Bateira – Embarcação ligeira lagunar, movida a remos ou à vela, de fundo chato, abicada nas duas extremidades.

266


Glossário

Bateira de mar – Bateira interior levada para a borda do mar. Bateirão – Bateira que superava os 8 a 9 m. Batel – Pequena embarcação que seguia a reboque, pronta para rebocar ou ajudar na manobra. Bica – Ponto mais alto e recurvado, na embarcação, situado à proa e à popa. Bica afiada – Bica esguia. Bica da popa – Prolongamento da roda da popa. Também conhecida na gíria por bica de ré. Bica da proa – Prolongamento da roda da proa. Boca – Largura máxima da embarcação. Boca da caverna – Distâncias entre braços da caverna. Bocada – Designação dada à entrada do saco, na arte de arrastar. Boçarda – Cada uma das tiras de ferro que abraça, reforçando e ligando, o fundo ao costado, no barco do mar. Bolina – Navegação à vela com ventos de proa. 267


Glossário

Bolinão – Sistema que permite puxar para vante (nas bolinas), ou folgar (nos largos ou popas com ventos moderados) a parte superior da testa da vela – a focinheira –, através das poas. Bombordo – Lado esquerdo do navio, para um observador a bordo, virado para a proa; designado pela sigla B.B. Boneca – Peça colocada a vante do mastro do Varino, para inserir os toletes onde davam volta as adriças. Borda – O mesmo que bordo. Borda falsa – Falca fixa. Braço da caverna – Peça de madeira curva que completa a caverna.

C Cabeça da toste – Parte reforçada da toste onde passa o cabo que a ajusta ao mastro. Cabeço – Peça para dar volta aos cabos de amarração. Cabeço do leme – Parte superior, mais alta e estreita do leme, onde entra a cana de manobra. 268


Glossário

Cabedelo – Restinga de areia junto à barra. Caçarete – Uma das partes da manga, nas artes de arrasto. Cachola do leme – Parte do leme atravessada pelo xarolo. Cachola do mastro – Parte superior do mastro onde passa a ostaga. Cadaste – Peça de fecho da popa onde estão inseridas as fêmeas e nas quais vão entrar os espigões do leme (machos). Cágado – Juntamente com tarma, a meio do remo, constituem os seus reforços. Cágado é a parte que entra no escalamão. Cagarete

Tampa

móvel,

que

cobre

o

último

compartimento, a ré, e onde a tripulação costumava guardar o sal. Caimento – Diferença de calado entre a proa e a popa. Calado – 1. Altura de água necessária para a embarcação navegar. 2. Calado – Também se diz do ancinho trilhado ou fixado na borda do moliceiro. Càlão – Peça de madeira que fixa a manga ao cabo de alar. Calcadeira – O mesmo que calcador. 269


Glossário

Calcador – Sistema de desdobramento em talha de três gornes, que permite dar tensão à testa da vela. Calcar – Tensionar a testa da vela. Calle – Canal da ria, canalete. Escrevia-se inicialmente Calle e depois Cale (Cale da Vila). Cambadela – Acontece, quando, descontroladamente, a vela passa de uma para a outra amura. Cambadouro – Cabo que vem da cachola do mastro fixar-se à draga, destinado a apoiar o mastro nas cambadelas. Cambão – Cabo em esparto ligado ao punho do remo, puxando-o para vante. Camboeiro – Remador que acciona os cambões. Cana do leme – Barra, com um dos extremos entalhado, que entra na cachola do leme, servindo para manobra da embarcação. Caravela

Embarcação

desenvolvida

em

Portugal

especialmente adaptada para bolinar, foi um dos maiores contributos para a Epopeia dos Descobrimentos. Carena – Obras vivas do navio. 270


Glossário

Carenagem – Viragem da embarcação na praia para aceder ao seu fundo. Caribe – Embarcação árabe do Índico, que esteve na base do desenvolvimento da caravela. Castelo da proa – Parte coberta da proa, limitada pela antepara da mesma. Caverna – Cada uma das peças curvas de madeira em U, que assentam sobre o fundo chato, e que formam, no seu conjunto, o esqueleto resistente da embarcação. Cavername – Esqueleto da embarcação. Conjunto das cavernas. Cavilha – Taco de madeira, tronco-cónico, cavacado pelo mestre. Serve para fixar o tabuado às cavernas. Chança – Entalhe no dorso da porta do leme. Charolo – Variante ortográfica de xarolo.

271


Glossário

Chata – Embarcação de fundo chato, fusiforme, reforçado por travessas, e costado muito baixo. Típica da pateira de Fermentelos. Também é conhecida por lancha, patacha ou até bateira. Cheleira – Cada uma das pequena prateleiras existentes no interior do castelo da proa onde se guardavam alguns temperos, utensílios, e ou, vestimentas. Chincha – Arte de arrastar idêntica ao chinchorro, mas de menores dimensões, própria para águas lagunares. Chinchorro – 1. Arte de arrasto para terra constituída por saco e duas mangas utilizada, actualmente, na bateira de bicas ou chincha; numa primeira investida, foi utilizada também na ílhava. 2. Chinchorro – Embarcação que tomou o nome da arte utilizada. Chumbada – Chumbo que faz arrastar as redes pelo fundo. Cinta – Peça exterior ao casco, que protege (e dá consistência) ao costado. Cinto – Faixa presa à cintura do pessoal de terra, ligada por chicote aos cabos de alar, com que se puxavam as redes. Claro – Uma das partes da manga, nas artes de arrastar. 272


Glossário

Coada – Parte final do saco das artes de arrastar, de malha muito apertada. Coberta da proa – O mesmo que castelo da proa. Coicia – Madeiro reforçado, assente nas cavernas, com rebaixo quadrado (pia), onde enfia o pé do mastro. Também designado por coucia, côcia ou coxia. O mesmo que carlinga. Contravento – Fazer avançar a embarcação na direcção do vento. Corche – Tralha superior da rede. Corpo – Parte central do saco das artes de arrastar. Cortiçada – Conjunto de bóias de cortiça, fixadas na tralha superior da rede. Costado – Parte lateral de um e outro lado da embarcação, do casco da embarcação. Crista da proa – O ponto da proa que mais aponta para o céu, no barco do mar. Crista da ré – O mesmo que bica da popa.

273


Glossário

D Descanso da muleta – Cunha, na roda de popa, onde se apoia a muleta. Descochiado – Diz-se do mastro, quando é retirado da coicia. Deslocação – Capacidade em carga embarcada. Dormente real – Peça de reforço interior do casco, por baixo da sicorda. Dormente pequeno – Forro inferior. Draga

Peça de secção

rectangular,

que aperta,

interiormente, os braços das cavernas, à borda.

E Embarcadouro – Zona reforçada do bordo de ré, na alheta, por onde roçam os cabos de alar e a arte, quando esta é posta ao mar. Empena – Parte superior da vela, que leva os envergues. Empinar – Erguer, levantar. 274


Glossário

Encabritar – O mesmo que empinar. Encala – Abertura entre o bordo e a draga. Enora – Passagem no traste para o mastro. Ensacar a vela – Folgar a vela para permitir que ela forme saco, nas popas e ou largos. Entre-águas – Zona do mar, logo que passada a pancada daquele nos baixios. Entremesa de ré – Tampa móvel, a ré, que serve de assento ao arrais e onde se guardavam o pipo, forcadas e outros objectos. Envergues – Pequenos atilhos, que, superiormente, atam a vela à verga. Enviada – Designação genérica, dada às embarcações construídas na Laguna e levadas, por mar, para Lisboa. Enxalavar – Carro de bois de duas rodas de madeira muito largas, utilizado para o transporte do peixe da beira-mar, para os armazéns da salga na beira-ria. Escalamão – Peça cilíndrica de 0,20 m por 0,03 m, onde entra o cágado do remo. 275


Glossário

Escoa – Barra de madeira colocada sobre as cavernas, (e) onde encostavam os paneiros do fundo. Escorchado – Estripado. Escota – Cabo que guarnece os moitões; um fixo à asa da escota, e outro fixo à argola que corre no varão, permitindo folgar ou caçar o pano. Escoteiras – Entalhe no bordo superior das alhetas permitindo com facilidade trilhar a escota. Escotilha – Em geral, acesso a espaços (paióis) onde se guardam diversos materiais de manobra. Esguicha – Embarcação algo semelhante à ílhava, sem coberta, com falca postiça. Já extinta, era construída na região de Aveiro e foi usada na Trafaria para o lançamento da arte de arrastar para terra, denominada chinchorro. Na Trafaria a arte era também designada por, esguicha. Estai – Vela triangular avante do mastro. Esteira – Parte inferior da vela.

276


Glossário

Estibordo – Lado direito do navio, para um observador a bordo, virado para a proa; designado pela sigla E.B. Estribeira – Vara redonda colocada à largura do barco, para os camboeiros apoiarem os pés.

F Falca – Peça móvel (tábua de madeira), destinada a aumentar o pontal da embarcação, que se adapta entre o bordo e a draga, nas encalas. É fixada pelas pernas da falca. Vedada com serapilheira, torna a embarcação estanque mesmo com o bordo debaixo de água. Falquim – Falca de pequena dimensão, à proa (1,50 m). Falsa quilha – Prancha que, exteriormente, no fundo, dá continuidade à roda de proa. Fatico – Roupas de trabalho. Focinheira – Parte da vela, no canto superior esquerdo, com alça que fixa à frente, na verga. Folheamento – O mesmo que foliamento. 277


Glossário Foliamentos – Tábuas que preenchem o espaço, à proa e na popa, acima da tábua de verdegar. Foliar – Aplicar os foliamentos. Forcada – Peça em forma de Y, que se enfia na encala, para servir de apoio ao cabo do ancinho. Completa a função da tamanca. Forcado – Peça de madeira em forma de Y, que pousa no cagarete, para descanso do mastro quando descochiado. Forcado biqueiro – O último forcado de ré. Forcado da proa – O primeiro forcado da proa. Forra da focinheira – Reforço do canto superior esquerdo da vela. Forra do calcador – Reforço na testa da vela, junto ao mastro, onde são inseridas as abraçadeiras, atilhos que aconchegam a vela ao mastro. Fragata – Embarcação de carga, típica do Tejo, de casco redondo, bojudo, com quilha, que podia carregar até 100 e 120 ton. G Gaiola – Pequena gaveta, fechada, à entrada da cheleira, onde se guardavam documentos, dinheiro e algum objecto de valor. 278


Galpão – Tosco barracão para trabalho de artesão. Golfiões – Prolongamentos exteriores do forcado da proa ou das mãozinhas. Gualdropes – Cabos ou correntes que saíam da cana do leme e permitiam fixar o seu governo. Guenda – Inclinação da verga. Gurutil – Nome correspondente à verga, em marinharia.

I Iate – Navio de dois mastros, tendo o mastro grande, geralmente, caimento. Içar – Levantar a vela. ílhava - Bateira de fundo chato e arqueado, boca aberta e proa e popa erguidas. Os seus meios de propulsão eram a vela ou os remos. Levada para a borda do mar, foi muito difundida no Tejo na arte da tarrafa. Ílhavos – Migrantes, naturais de Ílhavo. Ilho – O mesmo que ílhava.

279


Glossário

L Labaça – Zona de reforço do bordo superior, onde entra o escalamão, no barco do mar. Leme – Peça de governo da embarcação. Lugre – Navio com pelo menos três mastros, envergando em todos eles panos latinos.

M Maçãzinha da proa – O mesmo que crista da proa. No «varino» toma o nome de caneco. Machos – Espigões de ferro que entram em argolas, as fêmeas, fixadas na roda de popa. Madre – Parte da porta do leme, onde se inserem os machos. Manga – 1. Largura máxima da embarcação. O mesmo que boca. 2. Manga – Cada uma das partes laterais, na arte de arrastar que conduzem ao saco. Mão da barca – Cabo que liga ao segundo càlão e é trazido até ser entregue em terra. 280


Glossário

Mar – Nesta acepção, mar significava as águas depois da rebentação. Mar alevantado – Mar de vaga alta. Mastro – Vara de madeira, que sustenta a verga, donde pendem as velas. Meia-lua – Nome dado, genericamente, ao barco da arte de xávega. Meia-nau – Região média longitudinal da embarcação. Mercantel – 1. Negociante de peixe que o expedia para o interior do País, através dos almocreves. 2. Mercantel – Nome atribuído à mais possante e robusta embarcação lagunar, de carga, de fundo chato, que também se dedicava ao transporte de pessoas entre margens. Mercantela – Designa uma embarcação de linhas idênticas ao mercantel, de dimensões mais reduzidas. Mercantil – O mesmo que mercantel, na primeira acepção. Molde de popa – Molde que determina a forma da bica da popa.

281


Glossário

Moliceiro – 1. Homem que se dedica à apanha do moliço. 2. Moliceiro – Nome atribuído à mais esbelta embarcação lagunar de fundo chato e pequeno calado, de proa e popa erguidas. Os seus meios de propulsão são a vela, a sirga e a vara. Destinava-se à colheita e transporte do moliço. Moscas – Reforços de lona ou até de cabedal, por onde corre o cabo da bordadura, que afina a valuma. Mugeira – Arte de arrastar também com mangas e saco. Usou-se na costa, nas cales mais profundas da ria e, actualmente, caiu em desuso. Muleta – Vara terminada em forquilha, que empurrava o «barco do mar» na rebentação.

N Nau – Grande navio de guerra ou grande navio mercante.

O Orçar – Levar a embarcação mais para a linha do vento. 282


Glossário

Ostaga – Cabo que atravessa a cachola do mastro, prende ao envergue e iça a vela. Ostague – O mesmo que ostaga. Ovarina – Mulher de Ovar. Ovarino – Homem de Ovar.

P Pá da tosta – O mesmo que toste. Pá do remo – Parte mais larga do remo, que normalmente mergulha na água. Paina – Estrado, à proa, composto por dois paneiros. Painel de popa – Parte do costado, a ré, no «moliceiro». Painel de proa – Parte do costado, à proa, no barco do mar, que é decorada. Paiol – Compartimento no castelo de proa onde se guardavam mantimentos, velas, cabos de manobra e outros.

283


Glossário

Panda – Malha de barro com dois furos para fixação à rede, mais tarde substituída por chumbada. Paneiro – Soalho móvel de embarcação. Papo da proa – Distância entre a vertical da maçãzinha e o ponto mais a vante da tábua da quilha, exteriormente. Passage – O mesmo que passagem. Pau da toste – Pau que se fixa no lugar do pau do mastaréu, junto ao castelo da proa. Também serve de ponto de passagem à sirga ou para aguentar a toste, no acto de mariscar. Pau de pontos – Vara quadrangular com 1,50 metro de comprimento que tem marcadas, por incisão, todas as medidas necessárias à construção das embarcações. Paus de aresta – Pranchas laterais, salientes no fundo, que melhoravam o desempenho nas bolinas e facilitavam o equilíbrio da embarcação no encalhe. Pé – Base ou parte inferior do mastro, normalmente, quadrangular.

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Glossário

Pernas da falca – Pés, através dos quais as falcas enfiam, nas encalas. Pernas do bolinão – Sistema engenhoso que permite distribuir a tensão sobre a focinheira. Pião – Viragem da embarcação sobre si própria. Pinaça – Embarcação de quilha, de vela e mastros, de popa carregada, armada com três (ou dois) mastros. Poas – Conjunto de cabos (5) costurados na testa, que compõem o bolinão, o primeiro na focinheira, formando vários ângulos. Permite puxar a testa a vante. Pontal – Medida da embarcação, em altura, entre o fundo e a linha da borda. Popada – Navegação com vento na direcção popa-proa. Porta do leme – Parte maior e mais larga do leme. Proa – Parte anterior da embarcação. Prumo – Tralha inferior da rede.

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Glossário

Punho – 1. Parte mais delgada do remo, onde o remador fixa as mãos. 2. Punho – Parte da frente da verga, entalhada em forma de coração, para fixar a alça da focinheira. Punho da escota – Canto inferior direito da vela.

R Reçoeiro – Cabo que liga o càlão a terra. Recoveira – Prancha para apoio dos remadores de pé. Rede boieira – Rede leve, leviana, que tem facilidade em boiar. Regalo – Uma das partes da manga, nas artes de arrastar. Remeiro – Homem que se encarrega do remo. Remo da proa – 1. Segundo remo do barco do mar, a contar da proa, em embarcação de dois remos. 2. Remo da proa – Terceiro remo do barco do mar, a contar da proa, em embarcação de quatro remos. Remo de ré – Remo do barco do mar mais próximo da popa, em embarcação de quatro remos. 286


Glossário

Remo do castelo da proa – Remo do barco do mar, mais próximo da proa, em embarcação de quatro remos. Remo maião – 1. Remo do barco do mar, mais próximo da proa, em embarcação de dois remos. 2. Remo maião – Segundo remo do barco do mar, a contar da proa, em embarcação de quatro remos. Requintas – Pequenas banquetas laterais para os camboeiros se sentarem. Retranca – Peça que enverga a esteira da vela latina e roda no mastro. Revezeiro – Remador substituto. Rizar – Encurtar a área do pano, adaptando-o a um refrescamento súbito do vento. Rizes – Atilhos delgados, distribuídos em duas ou três fieiras, nas faces da vela, que lhe permitem diminuir a superfície. Também há velas que rizam por cima. Rizos – O mesmo que rizes.

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Glossário Robaleira – Toda a embarcação usada nas zonas de Torreira, Mira, Buarcos e Cova, na pancada do mar, para a pesca do robalo. Roda da popa – Peça curva, que prolongando a tábua da quilha, forma a popa do barco. Roda da proa – Peça curva, que prolongando a tábua da quilha, forma a proa do barco. Rodapé – Legenda, frase sob o desenho, nos painéis do barco moliceiro. Rodo – Curvatura, ao cortar o pano, na esteira e na valuma. Roldana – Rasgo rectangular na cachola do mastro.

S Saleiro – Nome por que é conhecido o mercantel, quando transporta sal. Salineiro – O mesmo que saleiro. Salsugem – Concentração salina na água que chegava às marinhas. Sangrar – Retirar a resina ao pinheiro.

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Glossário

Saveiro – Designa diversos tipos de embarcação; mas, concretamente, designava as bateiras que eram utilizadas nas safras do sável, nos rios. Sicorda – Espécie de rebordo interior saliente, no «varino» sobre o dormente de cima, que desenha e estrutura o porão da embarcação. Sigla – Marca que identifica o construtor, pintada na parte superior do leme. Sirga – Cabo que sai do xarolo, circunda o pau da toste, permitindo governar a embarcação de qualquer ponto desta. Sobrequilha – Peça de reforço interior, colocada sobre as cavernas, longitudinalmente, que estruturava a embarcação, não permitindo que esta alquebrasse. Sotavento – Parte para onde sopra o vento.

T Tábua da quilha – Primeira tábua a assentar, no fundo; também pode chamar-se central ou a de fundo.

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Glossário

Tábua de aresta – Cada uma das tábuas que ladeiam, exteriormente, as tábuas de fechar do fundo. Tábua de fechar o costado – Tábua inferior do costado, de fora a fora. Também chamada de tábua de encobedear. Tábua de fecho do fundo – Cada uma das tábuas que ladeiam a tábua da quilha. Tábua de verdegar – Tábua superior do costado, de fora a fora. Tabuado – Conjunto de tábuas que compõem o fundo e costado da embarcação. Talão de proa – Distância entre o forcado da proa e a roda da proa. Talão de ré – Distância entre o forcado de popa e a roda de popa. Tamanca – Peça em forma de ângulo ligeiramente obtuso, que também enfia na encala, para, juntamente com a forcada, trilhar o cabo do ancinho.

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Glossário

Tarrafa – Arte de arrasto, tipo varredoura de superfície, constituída por saco e duas mangas, usada nas «ílhavas». Teada – Cada uma das tiras usadas na feitura da vela, com cerca de 0,60 m de largura. Tensionar – Ajustar a vela. Testa – Parte dianteira da vela. Tostes – Pranchas trapezoidais de madeira, que evitam o arrolar da embarcação quando bolinam. Tralha – Designação genérica dado ao cabo onde ata a rede. Traste – 1. Peça, através da qual passa o mastro da embarcação e que estrutura a forma da embarcação. 2. Traste – Banqueta, a toda a largura do barco em que se sentavam os remadores, no barco do mar. Trilha-pés – O mesmo que recoveira. Troça – Cabo que aconchega a verga ao mastro.

V Valuma – Parte traseira da vela. 291


Glossário

Vão – Espaço entre cavernas. Vara – Utilizada na chamada deslocação à vara, em todas as embarcações lagunares. Varão da escota – Varão metálico onde corre a argola a que se vem fixar o moitão da escota. Varar – Entrar com a embarcação pela praia. Varar o mar – Expressão utilizada para designar a viagem das embarcações de Aveiro para Lisboa. Vareiro de proa – Homem à proa, munido de uma vara, cuja missão era impedir que a embarcação se atravessasse ao mar, quando nele entrava. Varino – Embarcação que laborava no Tejo, alternativa às fragatas, com maior possibilidade de acesso a zonas baixas por ter fundo plano. De vários deslocamentos, o varino poderia atingir as 120 ton. Varinos – Identificação por que eram conhecidas as gentes idas da laguna.

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Glossário

Varredouras – Artes que percorriam o fundo arenoso, puxadas para terra, pelas mangas. Vela bastarda – O mesmo que vela latina triangular. Vela de pendão – Vela quadrangular que enverga em verga, que pode amurar à proa, ao mastro ou à borda. Vela latina de carangueja – Vela envergada na carangueja, cuja esteira era livre, amurando ao pé do mastro, e regulada pela tensão exercida no punho da escota. Vela latina triangular – O mesmo que vela bastarda. Verga – Vara de madeira que suspende a vela. Na gíria, é designada como invergue. Vertente da proa – O mesmo que barrote da proa. Vintaneiro – Homem que ia cumprir a vintena nas armadas do rei. Vintenas – Organização vinda do tempo de D. Dinis.

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Glossário

X Xalavar – Saco de rede entralhado em arco de ferro, destinado ao transporte de peixe. Xarolo (Xerelo) – Vara que atravessa a parte superior da cabeça do leme, de cujas extremidades partem os cabos de comando da embarcação.

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Ficha Técnica: Revisão Texto: Teresa V. Cunha Organização Glossário: Ana Maria Lopes Projectos 3D (desenhou): Luís Costa Capa: Autor

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ÍNDICE Pág. E o berço foi a Laguna…

Introdução CAP. 1 – A Laguna CAP. 2 – A Arte Naval Lagunar 2-1 Embarcações de alto bordo 2-2 Embarcações de bordo raso 2-3 Recuperação do historial das embarcações lagunares CAP. 3 – As embarcações, veículo de trabalho O «Mercantel» 3-1 O «Mercantel» 3-1-1 O «Mercantel» na passage 3-1-2 O «Mercantel» no carreto 3-1-3 O «Mercantel» no transporte do sal O «Saleiro» 3-2 Evolução do «Mercantel» 3-3 Características do «Mercantel» 3-4 Planos Geométricos e de Construção (2D) 3-5 Planos Geométricos (3D)

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ÍNDICE Pág. CAP. 4 – A «ílhava» 4-1 Chegada ao Tejo 4-2 A «ílhava», embarcação do Séc. XVII/XVIII ao Séc. XX 4-3 Sugestões recolhidas do modelo 4-4 Planos Geométricos (2D) 4-5 Planos Geométricos (3D) CAP. 5 – O «Moliceiro» 5-1 Inspiração 5-2 Breve história do Moliço 5-3 Características do «Moliceiro» 5-3-1 Dimensões do «Moliceiro» 5-3-2 Designação dos componentes 5-3-3 O Leme 5-3-4 Plano Vélico; Cabos e Poleame 5-4 A Arte de Velejar no «Moliceiro» 5-4-1 Com o vento na popa (ou no largo) 5-4-2 Na bolina o barco é mais exigente 5-5 Fases da Construção Pormenores e sequência da construção de um «Moliceiro» 5-6 Decoração : Motivação da cultura popular de uma «classe» 5-7 Planos Geométricos e de Construção (2D)

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ÍNDICE Pág. CAP. 5 – O «Moliceiro» (cont…) 5-8 Planos Geométricos (3D) CAP. 6 – O «Barco do Mar» 6-1 O «Barco do Mar» : do Séc. XVIII ao Séc. XX 6-1-1 Nomenclatura dos componentes essenciais 6-2 Evolução dos Preços da Embarcação 6-3 Decoração 6-4 Arte Xávega 6-5 Construção 6-6 Planos Geométricos (2D) 6-7 Planos Geométricos (3D) CAP. 7 – O «Varino» 7-1 Os Varinos chegam ao TEJO 7-2 «Varino» (Embarcação) 7-3 Características do «Varino» de 1808 7-4 «Varino de Culè» ou «Varino de pau de Aresta» 7-5 Inclusão do «Varino» na embarcações Lagunares 7-6 Viagem de «varar o mar» 7-7 Decoração 7-8 Designações: Componentes do «Varino» 7-9 Planos Geométricos (2D) 7-9-1 «Varino de Culè» 7-9-2 «Varino de Carga» 7-10 «Varino» em 3D

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ÍNDICE Pág. GLOSSÁRIO

BIBLIOGRAFIA

ÍNDICE

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