Alexandre da conceiçâo def3 corr

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À laia de justificação… Começava a despertar para a vida cívica, quando o Prof. Guilhermino Ramalheira me chamou a atenção para a figura de Alexandre da Conceição, e por acréscimo, para o sentimento e mágoa sentidos por nunca se ter levado por diante um movimento para o retorno dos restos mortais do Poeta, a Ílhavo, sua terra natal. Incitava-me a conhecer o concidadão, pois, se outras razões não houvessem - e havia, claro -, tendo sido AC. um engenheiro de grande distinção, com obra reconhecida!... - dizia o Professor amigo - far-me-ia bem atentar que os engenheiros não deveriam confinar o seu saber e/ou interesses, ou ainda esgotar as suas capacidades nos intricados cálculos matemáticos, atolados nas equações, funções, sequências, regras ou algoritmos - ou outros que tais -, enxovados nas práticas lógicas e formais, frias, despidas de sentimentos ; deveriam - ele mo recomendava -, como tão bem o fez A.C., ensaiarem-se na vida cívica em procura de um sinal promissor do reverdecer de um «homem novo» que com ele traga o reflorir da esperança, se preciso for sangrando o tempo, as horas, o repouso e o ócio, para com essa dádiva atenuar o desfiguramento da sociedade, que, devendo ser solidária, é, na maior das vezes, abúlica, insensível, intolerante. 2


Dei - (me) a falar várias vezes com esse outro grande amigo que foi Frederico de Moura - vulto sue géneris da cultura ilhavense , distrital, e até nacional, de quem, valha a verdade, a terra madrasta uma vez mais, parece ter-se esquecido - com ele abordando o assunto ; aprofundei o conhecimento das razões da polémica que “o ílhavo” Alexandre da Conceição travou com Camilo, o leit- motiv, a essência, as peripécias e o desenlace desta portentosa, dura e magoada disputa talvez por isso «absurda» em alguns dos seus momentos -, tal os extremos a que por vezes chegou. Mas a verdadeira vida…, vive-se desafiando-a …vivendo-a em toda a plenitude, ainda que às vezes para tal seja necessário ultrapassar o conveniente, e até, extravasar o non sense. Se não formos capazes de vencer o destino, que nos reste pelo menos a certeza de que o ousámos desafiar. E aqui estou, a pagar a divida de amizade para com quem muito aprendi. Não os quereria desiludir, e muito menos que lá longe dessem por inútil o tempo que perderam comigo; onde, bem ao contrário, me «fui achando» Mais importante, contudo, é que com este ataviado trabalho, seja minha pretensão - última! - chamar a atenção para a figura de um «ílhavo» de dimensão humana tamanha, homem culto, fervoroso pelo bem e pela bondade, uma das maiores, senão a maior, figura da história da cultura ilhavense, com quem esta terra tem uma imensa divida de gratidão, que é tempo de pagar. Gostaria de sensibilizar as «gentes» desta terra, em particular a Câmara Municipal, para a urgência em Lhe prestar a homenagem devida - eventualmente, apondo o nome ALEXANRE DA CONCEIÇÃO à Biblioteca Municipal em construção - (*1), de se criar 3


um movimento público para Lhe perpetuar a memória em busto, e trazer, finalmente, os seus restos mortais para junto de nós. Que o vate me perdoe o atrevimento de lhe tocar na imagem com tão parcos recursos… Pena foi que mais de um século passado da sua morte, outros mais lúcidos e mais capazes não tivessem evitado a exposição do meu demérito. Cumpra-se a finalidade, pois… ainda que mal… Se há algum equívoco nesta minha ousadia, até direi: - …não tive culpa… empurraram-me …

(*1) À data a Biblioteca estava ainda em construção. A sugestão, essa, foi para o cesto dos papéis. Senos da Fonseca 2004

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ALEXANDRE DA CONCEIÇÃO

1 - Um «ílhavo» Almeida Garrett, uma das mais notáveis figuras da cultura portuguesa, e um dos seus escritores de maior relevância, glosou no livro “Viagens na Minha Terra” uma situação em que colocou, frente a frente, em discussão, campinos e «ílhavos» , com o fim de saber-se qual seria o mais valente : se o campino saloio, arrogante e fanfarrão, que valente e corajoso oferece o peito aberto à besta dando-lhe ainda terreno de sobra para carregar em louca investida, se «o ílhavo» no seu permanente desafio à fúria desenfreada, ululante, do mar. Das respostas saiu claro que a luta titânica, destemida, valente e leal do «ílhavo» com o mar, ao conter com golpes felinos de arrojo e de audácia, o seu endemoinhado ranilhar, é reconhecida como acto superior de afirmação de ousada valentia… que no dizer de Maia Alcoforado, “é um padrão tão grande de heroísmo que Portugal devia olhar para Ílhavo de calcanhares unidos e de chapéu fora da cabeça….” 6


«O ílhavo» por norma não é fanfarrão; não desafia. Aceita como desígnio o desafio do mar. «O ílhavo» não cita, mas não foge. Nunca!...: - antes enfrenta com a irreverência própria dos audazes, o «desafiante». «O ílhavo» sempre reconheceu o mar, - «o cão», como lhe chamava Ançã - como o mais forte, mas isso não lhe tolheu o gesto, e muito menos lhe reduziu a aventura. É certo que a regra, como sempre, teve excepções ; de entre os valentes «ílhavos» também apareceram os desafiadores; os que parecendo sobrevalorizar a destreza no trato e convivência com a rudeza do mar, tratam sibilinamente por «tu» a fúria da natureza agreste em noite de procelas

infuriadas,

que

naqueles

xucros

nem

uma

simples

«marmuração» (neles) provoca ; mas desses, ainda ao tempo, certamente, Garrett desconhecia o nome. Nunca teria ouvido falar dos arrais, Ançã ou Ronca, ou de outros que tais, gentios que olhavam o mar com uma indiferença que bordeava o limiar do desdém. Então não foi certo que o Ançã praguejava, desafiava, altivo e «alevantado» : - Ah mar se foras de aguardente emborcava-te só de um trago…”istipôr”?!... a que juntava, soberano: - “Ah mar… cão danado, que tanto ladras… maldito!...”. Garrett, não ouvira falar desse outro «ílhavo», do THOMÉ RONCA (que A. C. refere) : - ido de viagem para Lisboa, a pé, pela borda do mar - nesse tempo o caminho mais directo e menos “concorrido” - ao 7


deparar com gentio na praia de S. Pedro de Muel, que de joelhos, implorante, enganido pela desgraça , clamava socorro para familiares seus que o mar arrebatara do xávega, num gesto ousado, magnânimo e vigoroso, logo ali no areal se despoja das suas simples vestes e, num ápice, de um sopetão, sem interrogar ou se interrogar, ou sequer medir a dimensão da ousadia, lança-se ao mar e à força de fortes braçadas consegue, com estuporação da multidão, arrebatar às «goelas hiantes» do poderoso mar, um punhado de pescadores. Terminada a refrega, salva aquela gente, anónimo, quase que envergonhado do feito que acabara de cometer, enfia os calções e as manaias, afaga-se com o camisolão, enterra o boné, bebe um copo de três na praia, sobraça a sacola e, indiferente ao aplauso da multidão, parte lépido, esbamboando-se rumo a Lisboa, «que se estava a fazer tarde». Este Arrais, quando se lhe censuravam a (sua) incredulidade sobre a força do Mar, deduzia com lógica indestrutível: as tábuas abóiam… um barco é feito de tábuas - logo abóia ; não vai ao fundo. Simples. De uma lógica linear, impossível de confronto. Estes dois exemplos - e tantos outros haveria a trazer à colação se essa fosse a finalidade do momento, e/ou tempo para tal panegíricos, dão -nos o retrato do «ílhavo» rude, assombroso e desafiador, intemerato citador, que em todas as situações, muito embora sobrepesando a grandeza suprema do adversário, não teme todavia o confronto, não foge, não arreda pé em todas as circunstâncias .

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Fá-lo porventura com suprema angústia mas, em todas as ocasiões, com audácia, quando não, com raivosa determinação. Quando o mar alvoroçado ruge, envolve e bate com fragor sevo o casco da sua embarcação, ora parecendo levá-la ao céu para logo a despejar nas profundezas do inferno ; quando os vagalhões rolam em catadupa e o mar medonho, qual trovão ribombante, estrondoso e horrendo, se abate com fragoído brutal sobre a frágil casca de noz; quando a noite é de terror face à impetuosidade do monstro, é, em cenários dantescos destes, neste pélago de borrascas revoltas, que «o ílhavo» de antanho escreveu de preferência, a sua gloriosa estória... Seria contudo extremamente redutor - e tem-no sido nos últimos tempos - confinar «os ilhavos», apenas e só, a este punhado que escreveu a «ode marítima ilhavense» ; e não saber - ou disso nos pretenderem fazer esquecer - que esse mesmo temperamento estóico de uma bravura impetuosa na afronta a forças desarcadas esteve presente, noutros «ilhavos» , embora noutras circunstâncias : - aqui, com os pés (bem) fincados nesta terra sobranceira ao mar, figuras de grande merecimento participaram na luta, por vezes desconfortável e truculenta, para lobrigar novos rumos (desejados) por entre névoa que porfiava em encobrir o devir e, com ele, o ensejo de descobrir o Homem do tempo novo. Aqui, onde as “marés” nem sempre foram de quietude, «ílhavos» intervieram, amiúde, obreiros de rara acuidade nas artes, na cultura, nas letras e na política. 9


Esquecê-los seria omissão desagradecida, de uma injustiça flagrante ; olvido que empobreceria e estreitaria - ou até enjeitaria - «a nossa» perspectiva histórica. É pois bom que se alertem as gerações que chegam, que na cultura, na vida cívica, na participação da construção do futuro, na resposta aos ventos de mudança que ciclicamente varreram Portugal, houve sempre - em todo o tempo ! - «ílhavos» de grande mérito, na luta lúcida e multiforme – marcante -, fossem quais fossem as mais variadas opções com que exerceram o sacerdócio da cidadania , legando-nos marcas incisivas, inapagáveis , testemunho sólido de que (eles) estiveram na feitura dos caboucos sobre que se pretendeu - então - ousar edificar uma sociedade (mais) fraterna. Por esse país fora - andarilhos em terra como outros o foram no mar -pouco a pouco, os «ílhavos terráqueos» migraram, «botando» rumo a vários horizontes para, aí instalados, abrirem janelas com largueza e espaço suficientes para que por elas se infiltrasse o saber

que

anunciava o «novo homem português» do último quartel do Século XIX, contagiados pelas profundas transformações que corriam por essa Europa fora – e que aqui chegariam em primeira mão -, fruto do contacto precoce das nossas gentes «marinheiras» com povos longínquos . Nessa tarefa prestigiaram “o berço” onde sentiram as primeiras maresias, onde verteram os primeiros choros de revolta contra o sofrimento, onde sentiram os afagos das mãos calejadas dos seus

progenitores,

homens

e

mulheres,”

descendentes

dos

TARTESSOS , de estirpe pelasga, vindos das lonjuras mediterrânicas, 10


gentes temperamentais, ágeis, inquietas, valorosas e desafiantes”, no dizer de Jaime Magalhães de Lima. Aqui, em terra, o combate travado foi também por vezes sofrido, rorejante de suor, fadário de sujeição em imperiosa necessidade de contribuir para a criação do devir. Não o esqueçamos, pois… Na retaguarda, os que se ativeram em terra, em nada desmereceram os heróis do mar: foram heróis de modo diferente mas, também, heróis do seu tempo.

2- Modelo das Polémicas Portuguesas Aqui chegados, é minha pretensão introduzir os leitores a um desses heróis da cultura ilhavense, talvez o seu maior expoente (ou pelo menos um dos seus maiores…) e revê-lo, num desses desafios que ficou como marco assinalável da cultura nacional; desafio em que o citador é «o ílhavo» Alexandre da Conceição, e o citado, nada mais nada menos que esse artífice sagrado da escrita Portuguesa do Século XIX, hoje ainda, um dos maiores vultos da literatura portuguesa, Camilo Castelo Branco. Desafio que ficou para a história da cultura no nosso País como bem o caracterizou Camilo - como o « Modelo das Polémicas Portuguesas». Camilo era, pela sua extraordinária cultura, pelo seu imenso e incomensurável saber, pela facilidade do verbo que lhe brotava caudaloso qual torrente inquieta e inquietante, um polemista duro, 11


invencível, por vezes - muitas das vezes - irascível, simultaneamente venerado e temido, pois então, considerava-se não haver outro que com ele fosse capaz de medir forças, tal o poder de persuasão do «escopro» com que lavrava o papel ; que ora macio ora de inusitada rudeza, chegava por vezes a raiar a grosseria e, até, algumas vezes, a brutalidade. De Camilo, diz contudo quem lhe foi muito próximo: “ nunca… ter descido à deslealdade, à traição; aos expedientes de rancor que espera… mas sempre grande, demasiadamente grande, enorme nos seus ajustes de conta” Sabedor das virtudes e até louvaminheiro de tal adversário - como veremos - Alexandre da Conceição não temeu lançar o repto a Camilo, desafiando-o, bem na linha da tradição do «ílhavo» de excepção que não mede o tamanho da peleja, antes, aceita a inevitabilidade da mesma: nela mergulhado, AC. alardeia de um modo expressivo todas as capacidades do seu intelecto , de onde sobressai uma sólida e talentosa formação crítica a que se junta uma aguda impulsividade e determinação postas na defesa das novas correntes filosóficas de então - de que dá prova de farto saber - , especialmente no que escreveu para lá da polémica. Mas antes de irmos adiante, para situarmos Alexandre da Conceição no tempo, é bom que nos detenhamos (para já) na pouca importância dada por esta terra, a filho de tanta dimensão. É certo que à época, na terra, Conceição foi invectivado e esconjurado. Ílhavo amamentava - como hoje ainda amamenta - elementos amarizados pelo mais pérfido pendor ultramontano!... Terra Madrasta! A tal ponto que Alexandre da Conceição ferido no mais profundo do seu ser com as invectivas, as 12


perfídias e dichotes que Lhe foram arremessados por um «grupelho» dos seus conterrâneos, posterga a possibilidade de, após a morte, as suas cinzas virem a ser depositadas em Ílhavo: Alexandre da Conceição foi gravemente ferido no seu íntimo!..., e reage deste modo brutal, profundamente magoado, até à mais solapada fundura de todo o seu ser. Mais de um Século passado desse estado de alma que num arrojo levou o poeta a gritar tamanha revolta, é tempo de reconciliação. Adiante voltaremos ao assunto. Nunca percebi porque entre nós foi este acontecimento postergado para o olvido, ano após ano, afastado das iniciativas culturais de quem tem obrigação de os trazer à luz do dia. Duvido que os dedos de uma mão não cheguem para contar os que, em Ílhavo, sabem que Alexandre da Conceição foi seu concidadão invulgar, facto que, como veremos, Camilo - e ainda bem!... - também só o soube tardiamente. Mas soubeo ; ...outros aqui não o sabem… e isso é que é grave ; lacuna, que urge colmatar . Situemos Alexandre da Conceição:

3- Alexandre da Conceição em Ílhavo

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Filho dos amores «ilícitos» entre o distinto médico cirurgião Bernardino Soares da Conceição, natural de Belazaima, Águeda, que veio exercer para Ílhavo, e da sua governanta D. Joana Marques de Carvalho, Alexandre da Conceição chegou para a vida no dia 16 de Outubro de 1842, segundo Manuel Ferreira da Cunha, na Rua Serpa Pinto, ali na casa onde esteve instalado, mais tarde o Museu Regional de Ílhavo; já por outras informações provindas do Arrais Ançã, que como veremos o conheceu particularmente de bem perto, ficámos a saber ter ido posteriormente viver com os Pais para a casa que viria a ser mais tarde de Francisco Paula Teiga ; ali habitou, enquanto rapazinho frequentava a escola do Mestre Prof. Ratola... Abre-se desde já aqui um parêntesis para dizer que durante a polémica, Camilo desconheceu a origem do seu adversário; desconheceu o facto da sua naturalidade e, até, da sua bastardia, pois sempre pensou ser o mesmo natural de Trancoso, Trás- os- Montes. É só, quase no final da mesma, que toma conhecimento do erro. E é de supor - pela mágoa posteriormente denunciada por A.C.-, que teria sido de Ílhavo, de um «grupelho de intrigalhistas» da terra, que propelira a denúncia e o desdouro do facto. Camilo extrai desse conhecimento tardio claros dividendos, atirando-se com “ganas” inauditas ao «ílhavo», interrogando-se : - “mas saibamos?: onde diabo nasceu o homem? Nasceu nas fraldas do Pernaso? ou nas fraldas da mãe? Ah ele não é de origem divina - sentencia Camilo - , mas procede de uma raça antiquíssima 14


que veio para a Lusitânia, 1372… anos antes de Cristo, acaudilhada por Baco e se estabeleceu em Ílhavo”… Alexandre da Conceição viveu a sua juventude em Ílhavo: foi companheiro de escola do Ançã, rapagão atrevidote, acompanhando-o, certamente nas deambulações pelos Sete Carris, no jogo da malha na Capela e teria com ele – mestre da arte - ensaiado as primeiras braçadas ,como tantos de nós o fizemos , na Barquinha do juncal ancho ; rapaz sensível, foi lançando o seu olhar inquieto sobre a realidade humana envolvente, interiorizando o sofrimento das «suas» gentes na luta pela sobrevivência; introspectivo, foi certamente tocado pela dor dos que não viam os seus voltar ; e teria sido impossível não ter retido a negrura do luto - nas vestes e na alma - dos que aqui ficavam à espera do regresso que nunca mais será; viu - e gravou -o olhar perdido de desalento dos filhos órfãos que não voltariam a sentir a ternura de um afago dum pai que ficou lá longe, nesse mar imenso sem fim!... . Foi assim tempo suficiente para que o jovem «ílhavo», desde o berço ungido com o supremo dom de captar de um modo diferente, profundamente sensivo, a realidade que o cercava, não tenha ficado imune às circunstâncias, ao meio e às gentes que lhe ampararam a juventude, e Lhe emprestaram adubo suficiente para alimentar a plantita ainda frágil que era, então, seivando-a para a tornar no tronco forte de homem - “alto, moreno, peninsular, com olhar ardente e penetrante, inundado de paixões” em que se tornou, mais tarde. Vibrátil, soube viver com intensidade um tempo de desassossego, cheio de ódios e vinganças, que varreu o país de canto a canto ; neste tempo 15


inquieto, Alexandre da Conceição deixaria a cadeira de mero espectador para assumir o papel de proeminente actor, cedo saltando para a boca de cena nacional onde se manteria até ao fim da sua curta vida “Foi um grande espírito; recto altivo pelo carácter fecundo e erudito, pelo pensamento” refere-nos, Ferreira da Cunha. Homem de corpo inteiro cultor da liberdade - esquadria que Lhe emoldurava o retrato de inquietude -, A.C. viria a assumir-se cidadão interveniente e ousado, atento aos sinais, inovador e frontal, não Lhe faltando a pertinácia (inegavelmente) herdada do contágio directo com os «ílhavos» do seu tempo . “Esta individualidade propensa a exageros temperamentais” - disse dele Frederico de Moura - “havia de acorrentá-lo à realidade e à vida” e, inevitavelmente, conduzi-lo-ia a um esgotamento nervoso que foi a causa da sua morte. Ao debruçar-se sobre esta gente com quem desde logo partilhou a brisa morna da maresia, gente que guarda da juventude o ímpeto com que se lança em voo largo logo que o buço desponta, era impossível nesses primeiros anos de vida - e não o foi -, não ter o jovem Conceição deixado de se impressionar com a mesma e, sobre ela atentar, reflectir e (dela) captar sinais, na leitura da biografia do «homem»

que,

«expurgada a natureza, é o autor do que de duradouro nos fica na retina, para sempre».

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“os artistas (os poetas) são… dotados de um condão de ver as coisas secretas… de um sentido apurado para registar emoções… que só tocam a sensibilidade dos eleitos…”,disse-nos Frederico de Moura . Alexandre da Conceição, artista da pena - ademais

poeta -, não

poderia ter ficado indiferente à ânsia de libertação do homem da beira mar que põe os olhos bem lá para diante, para bem longe, até onde as funduras do mar tocam novamente a terra, em procura de novos desafios; E disse-nos ainda Frederico de Moura: ”Duas maneiras tem o ambiente para influenciar o homem; ou o estigmatiza… ou o estimula. Com uma agressão que o solicita… por outro lado, envolvido por um panorama largo e de horizontes claros, dispõe de uma vocação muito mais virada para o sensorial, ficando escravo da cor e da forma e iluminado, por dentro, de uma luz doirada.” Quando foi para outras paisagens, Alexandre da Conceição levaria bem gravada no seu intimo, esta herança que qual ferrete nos marca a todos nós!!..: - no sangue que lhe corria nas veias, fervilhava (já) a vocação para a aventura, no caso, do «devir do homem novo». E partiu…mergulhando no cadinho escaldante das novas correntes do pensamento que grassavam como «pandemia» benéfica, propagandose, rápida e inexoravelmente por todas as tertúlias culturais da época. Era um tempo de mudança tumultuoso que iria ter um forte impacto no panorama cultural, social e político do País, aquele onde A. da Conceição se embrenhou em procura da sua «circunstância»… que preencheu com a pena, que por vezes –muitas das vezes - ousou 17


ultrapassar com a firmeza de um carácter alimentado por um rasgado ideal liberal, exemplo de “rebeldia , de desassombro, de um combatente sonhador ” , como o referiu Frederico de Moura , apontando-o á “geração de falhados da sua terra” ,que o desconhecia . Geração que, parece, tem dignos continuadores…

4- Alexandre da Conceição e o Arrais A prova de que Alexandre da Conceição se fundiu com as gentes da sua terra - e não foi mero excedente no tempo, como alguns quiseram que fosse -, reside no facto de, ao ter por companheiro de escola o arrais Ançã - na escola do Prof. Ratola a quem irá dedicar um capítulo em Ensaios de Critica e de Literatura - lhe dedicar privilegiada, fraterna e ternurenta amizade, num laço estreito que se prolongaria por uma vida inteira - até ao fim!. Porquê?!... esta admiração possessiva pelo Arrais.... É caso para reflexão… Provavelmente,

diremos,

porque

cedo,

prematuramente,

A.C.

descortinou no Ançã, logo ali nos bancos da escola e nas brincadeiras de que eram companheiros inseparáveis, a grandeza indócil deste Hércules do mar português, o ícone que seria a fonte inspiradora da sua, também, inesgotável determinação e lhe viria a conferir uma notável coerência cívica. 18


Foi amigo de Ançã : partilharam a mesma cama - a barra -, como aquele

dizia, e comungaram da mesma mesa; Conceição não se

esqueceria vida fora do amigo que deixara aqui em Ílhavo, e sempre que a vida o permitia, aquando das suas vindas habituais à Costa Nova, procurava-o com avidez para saber novas dos seus feitos, chegando a manifestar-lhe, até, a pretensão de o querer levar consigo convidando-o para seu remador particular, quando era, então, Director do Porto da Figueira da Foz. E até se admira (!) de ver Ançã eleito arrais ; ao que este, lépido, sibilino, felino como era seu apanágio, retribui de sopetão: “e eu me admiro de o ver engenheiro... veja lá…“ Este era o tónus refrescante de vida que (aqui) vinha assiduamente procurar, com que procurava amenizar a tendência temperamental, inquieta e agitada ; e onde Alexandre da Conceição não perderia o ensejo de se auto estimular com o vigor para o feito, a bravura para o ataque, a frontalidade para o desafio. Se foi certo que o Ançã desprezava a “grandura” do mar, Conceição desprezou a dimensão de Camilo, e sem hesitar, ofertou-lhe o peito nú. Ançã atirava-se à vaga e gritava :- “istipor istipor”... Conceição imitao, e em diatribe, adverte “Vamos hoje acariciá-lo (a Camilo) com os nossos adjectivos mais untuosos e emolientes… a ver se amaciamos os lombos hirsutos deste javardo”… Dois enormes «arrais», destemidos, intemeratos, cada qual o mais firme ao «leme» do “seu xávega”; cada qual, a seu modo e jeito. Um, com a «mãozorra» firme onde atava o reçoeiro ; outro com o maneio 19


destro, viril e empolgado da pena, riscando com ela sulco fundo, inapagável, na cultura portuguesa do tempo. Em todas as circunstâncias - ambos - «ílhavos» nucleares, inteiros. Alexandre da Conceição afastado de Ílhavo pelas vicissitudes da vida, não renega de modo algum a sua Terra Natal como se chegou a insinuar. Bem pelo contrário: a ela acorria regularmente para visitar carinhosamente a sua mãe e os amigos, aqui vindo, amiúde, render-lhes homenagem, como aconteceria no poema dedicado ao Padre José Regala aquando da sua primeira missa. E há relatos de que sempre que aqui vinha, procurava ávido, ansioso, a inquirir dos novos feitos, dos novos desafios do Ançã. Como este, Conceição gostaria de um dia se atirar a desafios grandiosos, desiguais, com vencedor anunciado - como sempre sucedia com o arrais -, é o que parece poder-se inferir desta obsessão de Conceição, por Ançã . Quem sabe ? Querem o retrato de um «ílhavo» tão dedicadamente fiel à sua terra e aos seus amigos? Ainda que esborratado pela debilidade notória do aprendiz de escriba, que sou, de que me penitencio ad eterno : - aqui vo-lo deixo : - Alexandre da Conceição!. E é (só) por se sentir de corpo e alma um «ílhavo», dos pés à cabeça, que se poderá explicar o sentimento de revolta que lhe atinge o íntimo quando, durante uma das batalhas mais amarga da sua vida, sente dos conterrâneos a sanha persecutória odiosa, o opróbrio desqualificado; Ílhavo, ontem como hoje - sempre !!! -, foi e é, madrasta para os seus filhos , quanto mãe mimada é para os que recebe no seu seio . 20


Julgamos pois, varrida a testada daqueles que, anos a fio, puseram em causa o «ilhavismo» deste ser de eleição, de quem na evocação do jornal REPÚBLICA de 5.12.1888 se diz ser “ Homem de uma só face, digno como a própria dignidade... um dos mais representativos valores da mentalidade portuguesa do último quartel do Século XIX.” Conceição nada nos deve; nós é que muito lhe estamos a dever… “Devedores, sejamos pagadores” diz-nos Cesário Cruz em “O Ilhavense” aquando do centenário do seu nascimento. Sejamos pagadores, mesmo se relapsos… O Prof. António Maria Lopes, outro invulgar exemplo da cultura ilhavense dedica-lhe um poema que deixa na campa de Alexandre da Conceição, em Viseu, onde assume (assim) parte dessa dívida, Em tua vida foste mal ferido Na Terra cujo nome engrandeceste Ílhavo de hoje, em ti reconhecido Segreda às tuas cinzas... não morreste.

5- Alexandre da Conceição conceituado Profissional Voltemos à juventude de Alexandre da Conceição quando, por razões de continuar os seus estudos, vai para a Academia Politécnica do Porto onde cursa Engenharia Civil, diploma que consegue com raro brilhantismo. 21


Já engenheiro qualificado, reconhecido, exerce primeiro em Coimbra onde se refere ter sido o autor do edifício dos Paços do Concelho -, depois na Figueira da Foz - onde ocupou as funções de Director do Porto - para em seguida, já como Director de Obras Públicas, se fixar na

Guarda

e,

depois,

finalmente,

em

Viseu

(1882/89),

desempenhando de um modo profícuo e com elevado mérito, os altos cargos que Lhe foram consignados.

6- Alexandre da Conceição e o Romantismo A fase romântica do poeta coincide com o tempo despreocupado dos estudos, quando frequentou a Academia Polytechnica do Porto ; “rapaz ardente, olhar profundo e penetrante, inundado de paixão, temperamento bem vincado que dava já lugar a uma e outra lenda” -como o descreveu Teófilo - vive o tempo das borrascas idealistas da Escola, onde convive com uma geração de poetas : com Guilherme Braga, Custódio José Duarte, Ernesto Pinto d’ Almeida, Pedro Lima e outros, dão forma aos seis volumes do cancioneiro sob o titulo «GRINALDA», verdadeiro cancioneiro do lirismo contemporâneo de então, como o fora a colecção de Garcia de Resende com o cancioneiro do Séc. XV, começo do Séc. XVI . Alexandre da Conceição encontra nas tertúlias do Porto (na Rua das Flores e outras) tempo disponível para cedo dar lugar ao poeta sonhador, hiperbólico, romântico ; é, ainda então, um inequívoco 22


aderente desta corrente literária aquando da publicação do seu primeiro livro “Alvoradas” - que inclui no cancioneiro - o que, mais tarde, lhe será atiçado pelo agastado Camilo. Quando inicia o percurso de adesão às novas correntes literárias do pensamento realista, assume com rara honestidade intelectual, no poema “Confissões”, o pecadilho anterior: Eu fui do romantismo um crente afirmado!!! E dissipei a alma em muito verso errado… Que o tempo, esse coveiro alegre e pachorrento Lançou, assobiando, à vala esquecimento. Mas, como um velho estroina, eu sinto no organismo A antiga perversão do velho romantismo.

7- Alexandre da Conceição e o Realismo Alexandre da Conceição “cedo se deu conta de como a idealização romântica caíra no sentimentalismo piegas e acompanha com entusiasmo a dissolução crítica encetada pela Escola de Coimbra de quem é um dos fundadores e nela assume um papel de destacado interventor” Dele diz Teófilo de Braga, “O espírito de Alexandre da Conceição avançou pela sua elevada cultura científica; (…) acompanhou a escola de Coimbra, que compreendeu e definiu superiormente (…). Ensaia-se na Critica literária, publicando “Notas de Critica Literária”, iniciando com um grupo de amigos de onde se destacam 23


alguns dos maiores vultos da época - Teófilo de Braga (que mais tarde reuniria e publicaria o espólio de Alexandre da Conceição, já depois da morte deste, em as “OUTONAES”), Antero de Quental, Guilherme Braga, Cândido Figueiredo (que o referencia em Homens e Letras), Guerra Junqueiro e outros – que empreenderam a caminhada ao encontro da alvorada da escola realista. Para esta mudança, para esta nova hiper valorização dos factos científicos, para tão assumida adesão à corrente positivista, não foram certamente alheias as reais dificuldades de sobrevivência no andarilhar permanente da vida em busca de sustento para as suas seis filhas, duas delas filhas naturais, nascidas fora do seu casamento com D. Olimpia Eugénia da Cunha - que viria a falecer em 1880 - de quem diz: Armaste-me cavaleiro Para os combates da vida A ti pois meu ser inteiro Mãe dos meus filhos, querida … Numa sede incontida de intervenção que o espartilho de uma vida dura não consegue apaziguar - antes exacerbar - Alexandre da Conceição integra-se, em Coimbra, nos movimentos culturais que procuravam novo rumo para as Letras, para as Artes e para a Política. A partir daí, sem tergiversações, ciente do porto que pretende demandar A. da Conceição aponta rumo para a nova corrente realista (anticlerical) que irrompe qual corrente caudalosa, “renegando religiões, reis e clero…“- no dizer de Camilo - mas que, de facto, pese embora ao 24


Visconde de Correia Botelho, corifeu supremo do romantismo, era muito mais do que isso: era uma nova corrente do pensamento que representava um corte radical com os valores caducos, ultrapassados e anacrónicos, de um tradicionalismo reaccionário que na literatura - a “expressão

da

sociedade”

-

se

assumia,

absurda

e

desproporcionadamente espiritualista; pretendiam os valores da nova corrente, que àquele (romantismo) sucedesse um novo estilo positivista, realista e científico. Interveniente, ousado, assumido líder de tertúlias, A.C. é um dos fundadores da Escola Coimbrã que ousará mudar. Intervém na polémica Bom Senso e Bom Gosto, em que os positivistas investem contra A. Feliciano de Castilho, ao revoltarem-se contra o supremo desprezo deste pela nova escrita, em especial, a de Teófilo e Antero. Para criticar a idealização romântica que caíra no convencionalismo sentimental e piegas, Alexandre da Conceição escreve: “Esses escritores, com o publico em geral e sobretudo com o pequeno publico que lê e estuda alheio aos microscópicos

interesses das cotteries

literárias ,sentiram um grande tédio pelo formalismo romântico, compreenderam que perante a espantosa revolução operada lá fora em todos os ramos da actividade humana pelo descobrimento das novas ciências, pela reforma e ampliação das antigas, pelos maravilhosos desenvolvimentos

da

industria

e

das

artes,

pela

moderna

sistematização filosófica, por esta assombrosa expansão da vida intelectual (…) se deve assumir que o nosso formalismo literário era todo impregnado de espiritualidades transcendentes e falsas, todo 25


cheio de banalidades e pueril… de uma esterilidade e ridículo irremediáveis.” A.C. coloca-se ao lado de Teófilo e de Antero, e ainda com Eça de Queiroz, Mendes Leal, Oliveira Martins envolve-se nas célebres Conferências do Casino (1871), acontecimento marcante na cultura portuguesa, que, curiosamente mais tarde, outro grande vulto ilhavense - Mário Sacramento -, haveria de focalizar no notável ensaio sobre Eça de Queiroz «HAVERÁ UMA ESTÉTICA DE IRONIA», (trabalho que lhe abriria as portas para o lugar de inegável destaque que viria a alcançar na critica literária portuguesa). A AC., a critica saúda-o, não como uma bela promessa, mas como afirmação dum notável temperamento poético, ocupando, diz-nos Cândido Figueiredo, “no seu tempo, merecidamente lugar de honra, pela largueza dos traços, pelo colorido das tintas, pela feição muitas vezes irónica, e discretamente naturalista”… Provavelmente as dificuldades da vida - vida de trabalho e luta -, ao ver-se rodeado das filhas órfãs de mãe, quebrar-lhe-ia o alento, consumir-lhe-ia o estilo moderno, lúcido, cheio de ironia e de entusiasmo pelos novos princípios, e quiçá ter-lhe-ia cortado alguns voos que cedo lhe tinham sido antevistos .

8- A Polémica à Portuguesa. Causas. Chegados aqui urge, finalmente, entrar muros adentro na Polémica terçada com Camilo. Para a analisar, observemo-la segundo os seguintes parâmetros: 26


1- Causas próximas, que estiveram na sua origem 2- A parte boa: ideologia em confronto 3- A parte menos boa; a turbulência das palavras 4- O final e consequências

Como causa próxima que conduziu Alexandre da Conceição a bater-se com Camilo Castelo Branco, fixa-se no aparecimento das correntes realistas, e no choque que estas correntes do pensamento e de expressão vieram trazer por confronto directo com as ideias tradicionais, românticas, que tinham no prestígio de Camilo, o seu expoente máximo. Nesse dealbar da nova corrente literária em Portugal, Camilo anteviu um «esmorecimento» da sua posição de destaque, e expedito, começou por as ridicularizar. A todos os níveis da vida Nacional foi iniciado um combate entre as forças progressistas (democráticas, republicanas, anti-clericais e pela Liberdade) e as forças conservadoras. Novos valores se afirmam, desde logo; alguns destes, de onde se destaca o inovador Eça, fazem prever que Camilo, já no ocaso da sua carreira e cada vez mais atormentado com a sua cegueira e com a loucura do pobre filho Jorge, filho amado, veja neles a razão para o desbotamento da (sua) auréola de mestre da novela passional; de incontestado, sente passar a discutível; o que não suporta. Ferido, amargoso, bilioso, disfarça mal a sua vaidade irritada. 27


Camilo não aceita, pois, esta ultrapassagem e, julgando-se capaz de fazer uma incursão por aqueles domínios do realismo, escreve os «romances facetos» “Eusébio Macário” e “A Corja”, em 1880, que vão servir de bode expiatório às invectivas dos realistas. Camilo quis combatê-los, e mais :- ridicularizá-los. Ora, de facto, “A Corja”, ao contrário do que Camilo queria que fosse, não era, na verdade, um livro mais realista que todos os outros saídos da pena do românico Camilo; o livro - tal como o “Eusébio Macário” - mantém na mesma, na forma e no essencial, o respeito pelo novelismo profissional Camiliano. Este pensava que a questão de adaptação à nova corrente literária seria fácil, bastando para tanto no seu entender, apenas e só, “pôr os adjectivos ladeados de substantivos” e, desse modo tão simples e apressadamente, arrumar a questão segurando o «interesse» do seu público, o que lhe era primordial : vital, mesmo… Era contudo tarde e quase todos adversários e até apaniguados - entenderam que não valeria a pena, a Camilo, intentar esta mudança radical. Preferível seria, manter-se onde sempre estivera, solidificando o respeito que todos, mesmos os novos, lhe rendiam unanimemente. É inicialmente nesse sentido, e com esse propósito, que Alexandre da Conceição, redactor em “O Século”, de Magalhães Lima, posiciona a sua discordância à incursão pseudo realista de Camilo, acusando-o de nele existirem duas contradições ou posturas: - uma na dependência da sua escrita profissional: outra na dependência quanto ao seu público. 28


De facto o labor profissional de Camilo, a imensidão da Obra produzida,

trouxeram-lhe

um

aprofundado

e

“...

inesgotável

conhecimento dos segredos linguísticos, uma matriz segura no manejo do bordão de varredor de feira literária, além de lhe proporcionar a criação de uma galeria de personagens surpreendentes” - diz-nos Alexandre Cabral. Mas tal premência de viver da escrita trouxe-lhe uma percepção errada do modo de entender a realidade Social do seu tempo. Camilo prende-se à pequenez dos problemas humanos das suas figuras, e faz do mesmos não mais que “motivações pessoalistas que nunca as consegue retirar da projecção provinciana”. Mesmo a estrutura das novelas que produz a ritmo endiabrado - por vezes escrevendo mais do que uma em jornais diários diferentes obedece mais à satisfação das expectativas geradas nos fiéis leitores dos folhetins, do que às exigências do enredo. Camilo - que necessidade material era pago à página! – faz por vezes

por

render

demasiadamente o peixe, e isso desqualificou –esporádica e pontualmente - a teia da (sua) novela. «Isto» é o que Alexandre da Conceição quer, então, discutir com o mestre do Romantismo. Logo no início da polémica, esta foi a opção, o caminho pretendido por Alexandre da Conceição, quando afirma: “Ambos os Trabalhos literários (“A CORJA” E “O EUSÉBIO MACÁRIO”) têm por intuito confessado lançar sobre a Escola realista ……de que Eça é o expoente 29


máximo… todo o ridículo (…). Há nessa queda, diz…uma ignóbil exploração mercantil e da ignorância do público português…” E lá vai atirando ao mestre, - a quem no entanto reconhece enorme talento - que “A Corja” é um romance, de uma banalidade suja como crítica do realismo, um esgar grotesco e lastimoso…(...) …que vale contudo pela primeira parte … (nos) estudos sobre história pátria, feitos com talento e consciência” Bastante para que Camilo não perca tempo, e na resposta, utilize mais o porrete que a cabeça ou o estilo, já que foge à definição de princípios esclarecedores, que nos conduzisse a saber dos motivos que o teriam levado a enviesar a sua deriva de escritor com os referidos livros, o que leva Conceição a voltar à liça, e a interrogar : “que ideia faz Camilo da escola realista para dizer que as características da mesma são artificiais e de convenção, ao alcance da palavra habilidosa de qualquer retórico atrasado e não, produtos de profunda transformação intelectual ?” Alexandre C. insiste, assim, em que o escrever na nova corrente, não é um exercício de correcto alinhamento de adjectivos e substantivos, dispostos por boa ordem, mas sim, uma linguagem, produto de uma transformação intelectual íntima, profunda e objectiva; verdadeira, genuína e autêntica. Posição advinda de uma nova filosofia, que tanto pretendia revolucionar a arte, como intervir na política e/ou na ciência. Daí, assumir-se como o positivismo realista. 30


Ora não tendo o génio mudado a sua filosofia, estando inteiramente fora destes princípios, arredio desta corrente de renovação, como era possível a Camilo nortear o seu espírito e rumar para uma nova escrita de ambição realista, de um modo sincero, intelectualmente probo? A tal não ter acontecido - e era claro que para Conceição tal não aconteceu -, os trabalhos de Camilo atrás referidos, teriam sido um escárnio aos realistas, um acinte, visando apenas zombar do novo pensamento: tal falha de princípios, vindo de quem vinha, era o que Alexandre da Conceição não aceitava e, por isso, questionava o mestre do romantismo. Camilo na resposta nega que tivesse qualquer intenção de ridicularizar a Escola realista. E até cita palavras de grande admiração por Eça; mas o que não aceita, é que AC. lhe atribua dois «feitios» de escrita, com dois estilos e dois processos. Acha por isso oportuno lembrar a Conceição ter o próprio, sido em “Alvoradas”, (obra citada anteriormente) um romântico que teria, também, mudado de rumo, pois, diz: “depois de “Alvoradas” o mavioso vate fez a educação positivista… e ganhou zanga às religiões, ao clero aos reis….” E remata “se escrevi o “Eusébio Macário” num estilo nu, de galhofa, mostrando espáduas brunidas de mulheres sem úlceras que deduz o Sr. Conceição ? - que tenho uma retórica atrasada, que sou um velho católico, um literato autoritário e quinhentista…. 31


E vai ao encontro da grande questão que é a de saber-se, se “A CORJA”, foi feita sem alinhavar os personagens como Eça o faz… persuadido estava que esses romances (realistas) podem fazer-se com observação e estilo, sem recurso ao positivismo… evolutivo de Spencer ou o Positivismo de Comte - diz Camilo. E continua :- “ para que se há-de assoprar com tamanho empirismo e ciências pingues uma COISA TÃO OCA E FÚTIL COMO A NOVELA? É o próprio Camilo que a dado passo reconhece: “O Eusébio Macário é o mais banal, mais oco, e mais insignificante romance que ainda alinhavei para as fancarias da literatura de pacotilha” E é ainda dele que salta a «suprema confissão» :- “Sejamos francos: a gente faz romances sujos porque a sociedade nos pede a história contemporânea, não partimos de uma renovação da moral... emergimos de um lodaçal de inveterados vícios” AC. responde com violência a esta desagregação intelectual do mestre, criticando a cedência que Camilo diz ser necessário assumir para satisfazer o público: - “se o público anão tem o depravado capricho de pedir ao Sr. Camilo que se mostre despido num circo... o senhor apresenta-se em pelo a troco de alguns vinténs” Bem ao contrário, o que importa - assegura A.C.- é clarificar a ideologia .“Camilo não entende” que o realismo é o positivismo na arte “e que mesmo nas duas escolas, a de Eça e a de Moreno, o que as separa, é aquela seguir os princípios evolucionistas de Spencer, e a de Moreno, o positivismo de Litrée”. A questão do lugar a ocupar pela 32


psicologia em cada uma destas escritas era acessório, circunstancial. A finalidade, essa, era a mesma: o exausto convencionalismo romântico estaria assim morto pela arte moderna que destrói toda a velha metafísica espiritualista, submetendo-a à Ciência. Aliás, Camilo lá mais para o fim, vem conceder um pouco de razão a AC. quando diz: “Pareceu-me que o realismo se podia exercitar sem estudos prévios, por ser fácil como matéria de observação e estilo descrever a verdade das coisas ter das morais uma introspecção mais ou menos da realidade” . Este o erro claro de Camilo Castelo Branco. Pouco ou mais se consegue catar na polémica que sirva o objectivo de clarificar ou sequer discutir novas ideias e novas correntes do pensamento. A polémica, a partir de certa altura tem efectivamente pouco de sumo já que os autores não foram capazes de lúcida e criticamente dilucidar toda a problemática que lhe era adjacente. Aliás muitos críticos são da opinião de que apenas A.C., num artigo sereno que publicou no nº 50 de “O Século”, em 6 de Março de 1881, com o título “O Sr. Camilo Castelo Branco e “A CORJA”, foi capaz, com clareza, de expor o que estava verdadeiramente em causa. Se a polémica não esbanjou em ideàrio, o mesmo se não pode dizer em truculência. Foi um combate de iguais - o que muito enobrece Conceição - onde se esgrimiu

num emaranhado de diatribes que

raiaram os limites da conveniência. 33


A luta foi violenta, quase poderíamos dizer, feroz :- Arrasadora. Neste particular alguns críticos consideram que a mestria de Camilo, quando da pena fazia porrete para tudo levar na frente, sobressaiu em esperada contundência, embora com uma oposição galharda da parte de Conceição, que talvez adivinhando o desfecho, não zarpou em fuga, antes deu a cara à luta, emprestou a pena, e espalhou o saber; e, quando necessário, também soube solevantar «o porrete…» A troca de mimos teve momentos altos que definiram a grande destreza dos intervenientes no raro engenho de tecer com poucos fios, uma “bonita” (?!) esgrima de chocarrices. Rebusquemos alguns cardos nessa floreira de mimos. Disse AC.: “Camilo escolheu as armas, isto é derivou para insulto: Insulto terá. Réplica à altura e desinibida: De quem não teme a dimensão do adversário” e remata :- “escolheu o cacete: terá o cacete” mas Camilo está à altura, e desfere, lesto: “mostra-se o gatuno que se arremanga para escalar uma janela. Pode subir que eu hei-de preferir o escarro ao apito” A que Conceição replica: 34


“Desinfectada a grandes doses de cal virgem das imundices que a estrumam pelas quais o Sr. Camilo tem uma predilecção de cerdo faminto…. É medonho este Camilo! Acomoda-Te, leão!” Camilo aponta a Conceição e desfere, classificando-o de “Filósofo alargatado de rapsódias, de plagiatos incruados, de burundangas em vasconso” que deve descansar - aconselha - “ porque não há bestialidade que , por muito estafada, de si mesma se não enoje”…. “Adeusinho até outra vez…” E preparados para regressar a penates, parecem decididos a dar por terminada a emposta depois de tratadas frioleiras como o hors ligne ou hors de ligne ; um em Seide, outro em Viseu, parecem interessados em acabar com o «non sense » da discussão. Mas estava para chegar uma «nova» a Camilo com que entendeu dar, ainda, a estocada final. Camilo que sempre supôs ser Conceição oriundo de Trancoso, descobre que afinal o vate é de Ílhavo; maldoso, forja e publica uma carta em que “notáveis?!” daquela terra transmontana se manifestavam incomodados, pela facto de, ali, não constar que “Conceições fosse família da Terra”, donde saísse o filosofo Conceição.

35


A carta a ter existido, não foi enviada por próceres de Trancoso, mas sim, como acima referimos por reaccionários de Ílhavo. Do facto, Camilo, aperalta-se em estridências, disposto a espetar uma última farpa, e assim, ferir de morte o seu opositor: “ Mas saibamos” …. “ onde diabo nasceu o homem? É filho de Apolo? Nasceu nas fraldas do Parnaso? Ou nas fraldas da mãe?.. Ah não ele não é de origem divina mas procede de uma raça antiquíssima que veio para a Lusitânia em 1372 antes de Cristo… acaudilhada por Baco e estabeleceu-se em Ílhavo…“ O sr. Conceição de raça Pelasga nasceu em Ílhavo e talvez descenda de Baco. Eu desejo que ele me prove… que descende do bêbedo filho de Sémele. Antes isso que neto de algum apanhador de moliço da Ria” afirma. Sem rebuços, Camilo atira-se à origem de Conceição, à ilicitude amorosa dos progenitores, e fá-lo de uma maneia impiedosa, soez e cruel, que vai atingir o poeta no mais íntimo e profundo do seu ser sensível, nobre, de acrisolado amor por sua mãe. E sem compaixão, crava ainda o aguilhão, indo mais fundo. “Voltando a Ílhavo - remata - não direi, por enquanto, nada da mãe: Deixo-o de escabeche…

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9- Fim da Polémica A polémica atingira um ponto em que todos compreenderam que era tempo de parar. Já nada de útil se poderia acrescentar ; nada mais que ofensas que deixariam marcas para todo o sempre. E terminou… Melhor assim … Para nós a história aproxima-se, também, do fim. Em 11/10/89 Alexandre da Conceição morre em Viseu, ainda novo, com 47 anos de idade, tendo junto a si, nessa hora da verdade, a sua Mãe. A morte é consequência de um esgotamento nervoso já diagnosticado aquando da polémica, uma forma de suicídio em que se afundou o seu temperamento impetuoso, vibrátil, arrebatado. Daí, o admitir-se a existência de alguma dose de amargura já ao tempo da polémica, que tenha conduzido Conceição a alguns excessos brindados a Camilo. Que o próprio reconheceu ao confessar: “Camilo é uma figura de escritor e de sábio que podia ser notável em qualquer parte do mundo. Eu caí, como todos os seus adversários; se eu adivinhava que ele sabia metade das coisas que revelou saber, eu não me tinha metido com ele.”

37


10- Homenagem de Camilo Por seu lado, Camilo é um adversário temível, mas tem dentro de si uma incomensurável ternura, e é senhor de uma dimensão humana que o leva a ser um amigo tão intenso e saudoso na dor, quão terrível, arrebatado, rebelde, e impiedoso opositor era, na refrega. Aliás, já anteriormente - embora as intenções fossem outras - o barão de Seide teria colocado Conceição entre os maiores do tempo, quando em carta a Tomás Ribeiro do periódico («República») escrevia com acinte : «Convém fazer rir o público à custa dos Arriagas, dos Teófilos, Magalhães Limas, Conceições etc. Empalados em caudilhos, personalizada a República neles - sem menosprezo da questão doutrinária - a questão morre como a lendária Maria Rita» Na morte daquele que tinha sido seu temível adversário, escreve, sentidamente: “Creio já ninguém se lembra hoje de Alexandre da Conceição falecido há quinze dias. Recordo-o eu com saudade, porque a sinto desse tempo em que ele e eu, para gáudio das galerias, esgrimimos algumas frases insensatas ou talvez aleivosias, e de todo o ponto inúteis. Caímos ambos quase a um tempo nas trevas eternas; mas ele é mais feliz porque as não pode apalpar com os braços inertes cruzados sobre o peito”. E remata com um soneto 38


Se o bondoso riso era apagado Restava-lhe este honroso predicado Pregando Socialismo era sincero Era assim este notável escritor e homem amargurado: temível, violento, intratável, no combate; cheio de compaixão, transbordante no amor e no ódio, sincero na dor. Demónio e Anjo. Dois adversários que finda a peleja denotam uma sincera admiração mútua. Nem todos, contudo, tinham à época, a grandeza humana espelhada nestes dois grandes da cultura portuguesa.

11- Terra Madrasta Em Ílhavo, os «próceres da politiquice» da altura, pura e simplesmente fizeram de conta que nada tinha acontecido. E assim postergaram para o olvido esta figura ímpar de cidadão, um grande da cultura Portuguesa, um maior dos «ílhavos»: esta Terra, que do poeta só títulos faustosos teria para prodigalizar, expressos num movimento de respeito e exaltação pela grande perda, fez pura e simplesmente de conta que Alexandre da Conceição era, aqui, um simples desconhecido.

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E em que se basearam os próceres como razão «patrioteira» para tal repúdio? Durante gerações foi justificado essa omissão, fundamentalmente por duas afirmações, (que hoje é possível provar, terem sido inverdadeiras, baixas, intoleráveis, mesmo execráveis), a saber:

1ª - Que Alexandre da Conceição depois de sair, jovem, de Ílhavo, ter-se desligado em absoluto da terra, e nunca, com ela ou suas gentes, ter mantido laços de amizade 2ª - Que Alexandre da Conceição teria mesmo afirmado “ não pretender ter as suas cinzas depositadas em Ílhavo” após falecimento. O que, se não é de todo uma inverdade é, tal afirmação, retirada do contexto e subtraídas - por maldade e para fins vis - as razões que teria Conceição, para tal postergação. Quanto à primeira afirmação, que pretendia ser uma razão para justificar o injustificável, ela é falsa ; rigorosamente falsa. O que acima fica dito desmente à saciedade tal aleivosia, que, ou foi dada por ignorância ou, como suponho antes, por má fé. Quanto à segunda acusação, é facto de se ter anunciado ter o vate expresso o desejo de, depois da sua morte, não desejar que as suas cinzas viessem para Ílhavo. Mas isso, bem ao contrário, demonstra que 40


A.C. se sentia um «ílhavo» de corpo inteiro, de pleno e total direito com direito à defesa do seu bom nome (o que em vida lhe foi negado). E por assim se sentir magoado no seu «ilhavismo», desiludido, é que mostrou daquele modo tão indignado e ofendido, a (sua) profunda e execrável mágoa pelos ataques soezes, calúnias e outras verrinas, de que foi alvo, provindas de alguns conterrâneos seus, caciques ao tempo, em Ílhavo .

12- Recuperação da Memória Só em 1892, em escrito assinado por Manuel Ferreira Cunha, em “O Nauta”, foi iniciado desagravo à memória do ilustre «ílhavo»; a que se seguiram, mais tarde, muito mais tarde (1922), outras posições assumidas em “O Ilhavense”, em que ao mesmo Ferreira da Cunha, se vieram juntar Pereira Teles, Frederico de Moura e no «Beira Mar» Cesário Cruz e Guilhermino Ramalheira, na tarefa de repor a grandeza de Alexandre da Conceição aos olhos da terra ingrata, para assim estimularem o desígnio que era - e é imperioso -, de trazer para Ílhavo os restos mortais daquele Filho grande - um maior - desta Terra . Outros, como Maia Alcoforado, indignado com o esquecimento a que foi votado A.C., escreve e deixa na sua campa em Viseu:

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“Não sei se Ílhavo comemorou o centenário do nascimento do poeta. Anda a monte o sentimento de gratidão, escondido por solitárias veredas, encharcadinhas de lama, onde as rãs coaxam e zumbem os mosquitos” Finalmente a CMI da Presidência de Amadeu Cachim, por sugestão de Abel Ferreira de Castro, engrandece a Terra, ao adquirir o mausoléu do insigne poeta.

13- Acerto de Contas É altura de acertarmos definitivamente com as contas:

1- Atribuindo à Biblioteca Municipal ,o nome de «BIBLIOTECA ALEXANDRE DA CONCEIÇÃO» 2- Colocando na mesma, em lugar de destaque, um busto, a fazer, por subscrição pública. 3- A contactar a família, no sentido de se saber, se a mesma, autorizaria a vinda dos restos mortais do poeta para Ílhavo, sua terra natal.

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Se tal acontecer, direi apenas: Valeu a pena !... SENOS DA FONSECA テ考havo, 2004

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Alexandre da Conceição Poeta da Terra Absurda

INDICE Página Alexandre da Conceição À laia de Justificação...

1

1 - Um «Ílhavo»

5

2 – Modelo das Polémicas Portuguesas

10

3 – Alexandre da Conceição em Ílhavo

13

– Alexandre da Conceição e o Arrais

17

4

5 – Alexandre da Conceição conceituado Profissional

20

6 – Alexandre da Conceição e o Romantismo

21

7 – Alexandre da Conceição e o Realismo

22

8 – A Polémica à Portuguesa. Causas.

26

9 – Fim da Polémica

36

10 – Homenagem de Camilo

37

11 – Terra Madrasta

38

12 – Recuperação da Memória

40

13 – Acerto de Contas

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