Blue Velvet

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BLUE VELVET REVISTA CULTURAL URBANA ~ EXPRESSO NÚMERO 01 ~ JUNHO 2006

CINEMA Entrevista com um apaixonado Victor Almeida FOTOGRAFIA e Poesia inspirada na Cidade de Lisboa PINTURA Margarete: a cicatriz Nazi na Alemanha de Kiefer RECORTES Caminhante I had a Dream Buganvília


EDITORIAL

Cultura para todos a Blue Velvet Não vou tentar definir o que é a cultura, como fizeram muitos outros. Intuitivamente damos-lhe uma dimensão antropológica. Só o homem é cultural. Faz parte da cultura tudo o que é adquirido após o nascimento. Não vou repetir a afirmação de um velho e estimado professor ao afirmar que a cultura é tudo aquilo que fica, depois de tudo se ter esquecido. Cada pessoa, cada comunidade e povo tem a sua própria cultura. Apesar disso todos reconhecemos facilmente que o nosso nível cultural é muito baixo. Vivemos ainda demasiado virados para a sobrevivência, para o estritamente necessário, faltando tempo e possibilidades económicas para criar momentos de ócio, de lazer, indispensáveis para contactos mais ou menos frequentes com as fontes culturais. Dizem as estatísticas, que os portugueses, a nível da Europa são os que lêem menos jornais e que lêem menos livros. Como contrapartida são os europeus que vêem mais horas de televisão e as crianças portuguesas batem as suas congéneres comunitárias, por uma margem notável, no acto cultural de ver televisão. Que dizer desta escola paralela, rica em programas sem nível? Seja como for, é preciso fazer algo para inverter esta posição. A cultura

Ficha Técnica tem sido sempre a parente pobre dos vários governos. A Segundo Opção do Plano para 1996 aponta para uma aposta maior na promoção cultural. A educação, a formação e a ciência, juntamente com a cultura são áreas prioritárias da acção governativa. É dito que o Estado não pode, nem deve monopolizar a vida cultural e deve «respeitar, viabilizar e estimular a multiplicidade e a variedade das iniciativas culturais, surgidas no seio da sociedade civil». É preciso apostar mais nas muitas e diversificadas entidades privadas e também nos orgãos de poder autárquico e regional, transferindo para eles competências e meios, hoje concentrados na administração central. Muitas colectividades têm mantido vivos, valores culturais à custa de persistência e voluntariado. A elevação da Secretaria de Estado da Cultura a Ministério, é um sinal da importância que o actual Governo quer dar a este sector importante da vida portuguesa.

Tem de manter e criar infraestruturas indispensáveis à acção cultural, embora a aposta maior deverá ser nas pessoas e colectividades. Muita coisa terá de ser repensada e dinamizada. São necessárias mais verbas, mas sobretudo uma racionalização da utilização do dinheiro, que permita uma maior atenção à informação e à formação, através da comunicação social, do livro, do teatro, do cinema, dos museus, dos arquivos, do património. Uma informação e consciencialização fortes para os domínios diversificados da cultura irão dar os seus frutos a médio e longo prazo. Só com cidadãos e povos cultos é possível alcançar um melhor nível de vida e fruir de valores a que só o ser humano tem acesso. O prazer estético, o gosto pela arte, a consciência do belo, são acessíveis apenas às pessoas que atingem um certo grau cultural. E todos têm direito a essa valorização. A solidariedade há-de abranger não apenas o pão e a habitação mas deverá alargar-se também, aos valores culturais.

BlueVelvet Tel.: 00351 123456789 Rua xpto n.º 8-6 Dto 1600 Lisboa / Portugal bluevelvet@expresso.pt www.expresso.pr/bluevelvet Directores David Cruz Leonardo Xavier Susana Carvalho Teresa Nunes Redacção David Cruz Leonardo Xavier Susana Carvalho Teresa Nunes Fotografia David Cruz Leonardo Xavier Susana Carvalho Teresa Nunes Design DcLxScTm Depósito Legal 229 9551/05 ISSN 164-2769 N.º de Registo do ICS 124770 Copyright Todos os Direitos Reservados Os artigos publicados são da responsabilidade dos autores Impressão ArcoIris (apolo70)


BLUE VELVET

CINEMA

Entrevista com Victor Almeida

PINTURA

Margarete: Anselm Kiefer e o trauma pós-holocausto

EDITORIAL Cultura para todos

ÍNDICE

RECORTES

Você está aqui

Caminhante I had a dream Buganbilia

FOTOGRAFIA e Poesia em Lisboa

CAPA

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ENTREVISTA COM Victor Almeida

É um pouco como acontece com as gerações todas.(...)quando damos conta já não podemos sair,

é adictivo demais. Como surgiu o seu interesse pela 7ª arte? O que acontece, geralmente com todas as pessoas, é que somos levados a ver coisas dentro do contexto em que estamos inseridos. No meu caso específico, passou pelo Cineclube de Viseu, onde realmente, sendo um meio pequeno, acabava por ter uma grande importância. Era a única forma que nós tínhamos em aceder a determinados filmes que não passavam de outra maneira. Estamos a falar dos anos 70, final, e realmente o que surge e o que se passava no cinema eram os blockbusters, já de certa maneira consolidados nas salas de cinema. Não eram maus filmes, mas nós tínhamos um circuito alternativo que era realmente o Cineclube que nos permitia ver nessa altura cinema com uma certa qualidade, desde cinema soviético, alemão, francês, os americanos como Scorcese, Copolla, Spielberg (primeiros filmes deles) e que me ajudaram, de certa maneira, a ver e a gostar de cinema. É evidente que não começou com o simples gesto de ir ao cinema. É um pouco como acontece com as gerações todas. Os amigos convidam… e quando damos conta já não podemos sair, é adictivo demais.

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(...)ir ao cinema era um pretexto, o mais obrigat贸rio era sair de casa(...)

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O que o levou a sair de casa e ir ao cinema? É uma pergunta engraçada. Sair de casa era obrigatório. Não era tanto ir ao cinema mas mais sair de casa. Era um pretexto e uma forma de ver os amigos e estar com os amigos. Estou a falar quando ainda tinha 15 anos, não era tempo de namorar e fazer outras coisas, isso fez-se mais tarde. Não com os meu pais, de todo. Na minha geração os pais não viam cinema, estamos a falar do interior de Portugal, não estamos a falar dos pais formados, executivos de Lisboa. O interior tem as suas características e é bom que isso não seja confundido. Nós, que andávamos em Artes, acabámos por formar um grupo de pessoas que se interessava pelo cinema e pelas artes. E ir ao cinema era um pretexto, o mais obrigatório era sair de casa, cortar com essa passividade da família que nos puxava para territórios completamente conservadores, o Cineclube aí tinha um papel fundamental. E esse universo do Cineclube existia só em pontos específicos do País, como Viseu, ou em quase todas as cidades principais de Portugal? Todas as cidades tinham um Cineclube. Essa ideia clubista que vem muito antes

do 25 de Abril, era criada nessa perspectiva de se constituir como um movimento de contra poder em relação ao cinema que aparecia nas salas portuguesas. Depois do 25 de Abril, porque houve um grande afirmar político, serviram também, para esse afirmar, a exibição de objectos de propaganda por parte de alguns cineclubes, ferramenta muito importante para consolidar a democracia. Por volta de 77, 78 os cineclubistas começam a ter uma programação muito alternativa e a fazer com que pudéssemos descobrir cinemas independentes, por toda a Europa e por todo o mundo. E isso foi muito importante e julgo que havia um por cada cidade, aqui em Lisboa tínhamos o ABC, não sei como está agora, mas o ABC foi importantíssimo. Prefere ir ao cinema sozinho ou acompanhado? Eu tenho aquela ideia americana! Para ir ver movies posso ir acompanhado, para ir ver cinema vou sozinho. O cinema para mim é um objecto de reflexão e de prazer também, mas é sobretudo um objecto de reflexão e de estímulo intelectual. Mas essa questão acho que não é uma questão pertinente. Eu posso ir sozinho

e estar acompanhado e ir acompanhado e estar sozinho. Não é seguro que ao ir sozinho esteja sozinho, mas também não dá para perceber quando estou sozinho e quando estou acompanhado. Não vou ao cinema seguramente para namorar, mas se há pessoas que vão e fazem isso, também acho muito bem. Depende de cada um. Apagam as luzes e depende de cada um, cada um faz o que quer! O cinema é uma obra que deve ser vista por cada um da maneira que achar melhor. Há pessoas que vão ao cinema muitas vezes seguidas ver o mesmo filme, não tanto cá, mais nos Estados Unidos, mas cá também já há pessoas que vão ao cinema várias vezes e em contextos diferentes. Há muitas formas de nos aproximarmos da obra e não posso dizer que aquela é melhor ou pior. Eu tenho a minha e tenho o meu cinema, acho que é por aí. Mas ir ao cinema tem o seu lado social, cinema em casa não. Cinema em casa é para eu guardar, para ter um testemunho em casa. Ir ao cinema é ir ao cinema, é importante. Tem aspectos sociais.

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Uma sala de cinema é… …o paraíso! Sala Favorita. O Monumental… não é pela sala, é pela cerveja. Não é por a sala ser confortável, não é por aí.

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É ficção, o que não quer dizer que não entre pela nossa vida dentro(...)

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Come pipocas quando vai ver um filme ao isso jamais! É ficção, o que não quer dizer que não entre pela nossa vida dentro, cinema? Não, não tenho o hábito de comer pipocas. e que choremos e expressemos emoções. Mas também não tenho nenhum sentimen- Como diziam Sergei Eisenstein, o cinema é to negativo. Não estou preocupado com a arte do povo. É assimilável. isso. Vou ao cinema sozinho, procuro ir em altura que não tem ninguém, discretamen- A oferta das salas de cinema vai de enconte. Não gosto de ir ao cinema quando toda tro ao que se define como “bom cinema”? a gente vai ao cinema. Não gosto de confu- Jamais, jamais! Neste momento é a oferta mais idiota que eu já vi, absurda! Filmes sões, regra geral. com tanta qualidade, feitos na Europa, Um episódio engraçado que se tenha pas- Coreia, Hong-Kong, Shangai chegam a Portugal perfeitamente idiotas. Não só no sado numa sala de cinema? O único episódio mais ou menos engraçado, cinema, mas comercialmente e em áreas não teve piada nenhuma na altura, mas foi económicas, estamos a ser liderados por na estreia na inauguração do Cinema Mo- grupos económicos que decidem/contronumental, à meia-noite, na sala teatro, não lam da maneira mais obtusa possível. O houve filme. A máquina avariou, e foi um cinema português não aparece, não tem episódio caricato. Não me lembro assim de possibilidades, a produção espanhola que mais episódios. As pessoas em Portugal tem muita qualidade não chega cá tamportam-se civilizadamente, não é como ver bém, nós somos tratados da maneira mais filmes no estrangeiro onde há maior con- humilhante e degradante possível. Por fusão. Mais agitação, as pessoas entram e exemplo a Cinemateca, que é um local alsaem a meio do filme. Aqui é bom para ver ternativo, não tem agilidade para passar o cinema, é quieto. Lá fora é mais agitado, cinema que existe, tinha que ter uma outra intervêm mais no filme, mexem-se, falam, actualidade que ela não tem. Eu acho que participam na acção. Aqui são quietas, não realmente estamos pobres, estamos muito mais pobres. A produção que existia há incomodam. uns anos atrás não é a mesma que hoje, realmente houve mercados que explodiram Identifica-se mais com essa quietude? Não sei, acho que não, não faço a míni- em termos de produção mostrando cinema ma ideia, acho que não. Podia era haver de grande qualidade, mas que não chega as duas coisas, acho que somos um povo cá. terrivelmente quieto. Lá fora há filmes em que as pessoas se manifestam mesmo, com algum personagem. O cinema é o retrato da vida, não é a vida,


O Melhor Filme. Não queria ser banal na escolha… há vários… Misfits! É de 50 e tal. Aconselho-vos a ver, e depois digam-me porquê.


O pior. Eu ponho o pior que é bom! As Aventuras de Buckaroo Banzai: Na 8ª dimensão. É dos anos 80, é um filme completamente ABSURDO! Mas é a ver! Não vos ia dar o privilégio de meter como pior filme, um filme comercial, jamais! Estamos a falar de filmes que são arte, ainda. Esses comerciais não entram na categoria de cinema. Têm que ver! Era fácil dar um filme da Madona e dizer que era o pior filme, mas não é por aí, são filmes comerciais e nem sequer se incluem na categoria de cinema. Meios tecnológicos, benificia ou prejudica? Era suposto que, com as novas tecnologias, o cinema português viesse a ter novas agilidades, mas também não tem acontecido isso, teima em demorar a acontecer isso. Desculpem-me, não é nenhuma Teoria da Conspiração, mas eu vejo tudo num controle muito grande que é feito por parte dos meios que controlam a produção de filmes e a sua distribuição, portanto só passa aquilo que eles querem que passe. O digital poderia ser bom para criar alternativas e agilizar o mercado, mas era importante que as companhias disponibilizassem esses filmes, mas não. Ou por que acham que são comerciais, não sei! Esta coisa do mercado global, da globalização, que

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no fundo é um mercado económico, como ele é muito igual, no mesmo nivelamento, falta-nos a diferença, falta-nos muita coisa, principalmente alternativas. O cinema português agrada-lhe? O cinema português está a melhorar bastante porque conseguiu afastar os fantasmas do cinema de autor. O cinema português começa a caracterizar-se por um sistema de pretenção mais social, começa a chegar a mais gente, está a começar a dar os primeiros passos e isso é optimo! Quem sabe se daqui a uns anos vamos ter mais cinema produzido em Portugal e com isso mais cinema de autor também. Enquanto não se acreditar, não há forma dele próprio sair das cinzas. Enfim, hoje em dia o cinema português está um pouco melhor, existem algumas coisas que contribuíram um pouco para essa evolução e julgo que isso seja bastante importante. Qual a importância do Trailer e do Cartaz na comunicação do filme com o público? Eu acho que o cinema é um produto, o filme é um produto. Nós queremos sempre pensar que é um produto cultural, mas dentro dessa perspectiva de produto cultural, ele tem que ter estratégias de marketing, de divulgação e de comunicação muito dirigidas. Um cartaz e um trailer são as coisas mais

dirigidas ao público. È evidente que quando nós falamos de cinema, por exemplo de produto de cinema americano, é evidente que ele tem que ter estratégias de compras (entrevistas por exemplo). E tudo isto faz parte de uma estratégia de comunicação que no caso do cinema tem que ser levada em conta e que é fundamental. Mesmo o cinema português, que há uns anos atrás passava ao lado dessas estratégias, hoje em dia obviamente que já não passa pois o cartaz e o trailer são os objectos mais visíveis, são aqueles que obrigatóriamente têm que ser feitos e que são algo banalizados no contexto da comunicação. Mas não se esqueçam que se calhar o trailer ou o cartaz são aqueles que envolvem menos custos na estratégia de comunicação. Porque a estratégia de comunicação depois vai muito em dedo de agarrar nos actores (no caso do cinema americano) e metê-los a viajar pelo mundo inteiro e não sei se sabem, mas isso envolve valores astronómicos, e tudo isso faz parte de uma estratégia de comunicação extremamente industrial, porque o produto é industrial. A linguagem da comunicação depois não pode ser para um produto qualquer, tem que ser para um produto cultural. Há uma estratégia comercial de venda do produto em que tudo está programado para vender esse produto, normalmente são os protago-


Que influência tem o cinema na sua actividade enquanto designer? O cinema não me influencia directamente enquanto designer mas faz parte da minha vida, e tudo o que eu faço é afectado pela minha vida. As imagens vêm de todos os lados e do cinema também, é inevitável. A narrativa do cinema fotográfico é uma narrativa que, para mim, interessa-me muito, seja ela uma narrativa linear ou não, mas não posso dizer que o cinema tenha repercussões no meu trabalho, tal como a literatura não o tem, mas que faz parte da minha vida isso faz! Agora influenciar directamente o meu trabalho não, mas sim da maneira mais súbtil e acho que assim até é mais interessante.

Magnum Photos

FOTOGRAFIA: Do filme ‘The Misfits’, John Huston, 1961;

nistas e realizadores que estão envolvidos nessa estratégia de comunicação, acho que não há mais ninguém envolvido nessa estratégia. Mas não se esqueçam que os meios desenvolvidos para os outdoors não serão dos maiores porque, por exemplo, o cinema americano gasta muito dinheiro a fazer a divulgação do produto através desses processos e entrevistas. Faz tudo parte de um jogo, de um processo de comunicação.


POESIA NA FOTOGRAFIA Inspirada na Cidade de Lisboa SUSANA CARVALHO

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IN ANTÍDOTO

Caminho sobre as pedras do passeio. Ouço os meus passos debaixo do nevoeiro. Fujo da morte porque quero correr na sua direcção. A memória como uma maldição. Caimos na eternidade e a memória é um peso, continua a prender-nos em qualquer ponto para onde nunca poderemos voltar.

José Luís Peixoto

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CONTINUAS AÍ

Continuas aí, onde te deixei distante do mundo e das gentes, sem pressa, sem sonho Contentando-te com o descontentamento de seres o que és, vivendo os restos de uma vida que não é a tua. Continuas aí, onde os dias são curtos e as noites intermináveis, Sendo apenas corpo alado por entre rostos que te prendem, que te fazem estremecer ao olharem-te nos olhos. Ainda insistes em te esconderes dos olhos que te olham, que te prendem, e que te fazem estremecer. Continuas aí, esperando e desesperando por algo que não conheces, por algo que não sabes o que é. Aí, de alma vazia, insensível perante a intensidade das vidas diante de ti, fugindo, fugindo sempre. Porque foges do passado, revivido nos olhos que te olham? Porque não páras? Porque te escondes de ti, e te acobardas da vida? Há em ti o medo da multidão, que não existe. O medo que alguém te tire dessa solidão que te acompanha. O medo de viveres, o medo de seres feliz. Continuas aí, e permanecerás esperando que tudo mude, e nada volte a ser o que era, ou, que simplesmente tudo se matenha. Tanto faz! Continuarás aí.

Autor desconhecido


ADORO LISBOA

Lisboa tem histórias de reis, De mares e de selvas Lisboa tem histórias de hotéis, De espiões e de guerras Lisboa tem lendas de heróis, Princesas, donzelas Lisboa tem lendas do cais, Do fado e navalhas; Lisboa tem a tradição, Dos bairros antigos Vinho e sardinhas no verão à beira do rio Lisboa tem os rés-do-chão E as altas mansardas E há que descer e subir Por estreitas escadas Adoro Lisboa, Eu quero-lhe bem, Gosto de ver as gaivotas nos céus de Belém. Adoro Lisboa, E as histórias que tem E sei que há muita gente Que adora também

Madredeus por Pedro Ayres Magalhães e Fernando Júdice


MINHA MORTE ALHEIA Quando eu morrer alguns amigos vão levar um baque enorme. E na hora da notícia ou do enterro Sentirão que alguma coisa grave aconteceu para sempre. Depois irão se esquecer de mim, da cor do luto e da melancolia, exactamente como eu fiz com os outros que em mim também morreram. O morto, por pouco, é pesado e eterno. Amanhã a vida continua com buzinas, provérbios, sorveteiros nas esquinas, esplêndidas pernas de mulheres e esse ar alheio de que a morte não apenas se dilui aos poucos, mas é uma coisa que só acontece aos outros. in A Catedral de Colônia (1985) Affonso Romano de Sant`Anna


PINTURA Margarete: a cicatriz Nazi na Alemanha de Kiefer Leonardo Hermanns Xavier

Anselm Kiefer

aproximar a temática Nazi através da estética era, dramaticamente formulado, visto como uma acto bárbaro, desrespeitoso, no pior dos casos anti-semitista. Kiefer nunca foi Nazi nem nunca defendeu qualquer tipo de política exterminista, nem jamais entrou para os caminhos do anti-semitismo nem os defendeu, mas ele afirmara a necessidade de se sentir como Adolf Hitler, líder ideológico, político e militar do regime Nazi, para poder compreender melhor essa louca personagem, e a consequente enorme ferida – e actual cicatriz – da sociedade alemã. Para dificultar a cicatrização da ferida, a Alemanha teve que se debater – para além do sentimento de culpa perante o Holocausto – com a própria desunião nacional, que perdurou até aos anos 90. Contrariamente à reacção agressiva e redutora do lado alemão, impulsionada pela na altura ainda muito recente ferida do regime Nazi, ou antes trauma Nazi, Kiefer teve uma recepção muito positiva do outro lado do Atlântico, nos Estados Unidos da América. Aqui, talvez pela vantagem de os críticos e a sociedade não estarem cegados e ultra sensíveis perante a temática abordada, as obras de Kiefer tiveram uma aceitação enorme, sendo considerado por muitos críticos da arte como um dos maiores pintores alemães. Ao olhar dos americanos e outros críticos internacionais, e acima de tudo do próprio Kiefer, as obras pretendiam encontrar maneiras de confrontar a Alemanha com o seu fantasma e de sarar de uma vez por todas as suas feridas. Não que as obras de Kiefer tenham uma síntese e um resumo, e com isso uma conclusão do Holocausto – não é possível descrever o indescritível – mas elas confrontavam o observador com as questões profundas sobre de que maneira ele se deve relacionar com um pedaço tão importante da história da humanidade.

Anselm Kiefer nasceu no início do período pós-guerra na Alemanha, exactamente em 1945. Foi talvez um dos pintores alemães que mais assumidamente se confrontou, nas suas obras, com o pesado trauma que a sociedade alemã herdou do regime Nazi, e a sua indissociável política exterminista. O Holocausto é para todos nós, sociedade ocidental, um conceito claro: um terrível período da história política e social alemã, na qual um louco assumiu o comando de uma nação poderosa, com o fim de conquistar o mundo e exterminar raças por ele consideradas inferiores – categoria na qual caía qualquer Com o passar do tempo, e a cicatrização das cultura e nacionalidade que não a alemã. Contrariamente à reacção agressiva feridas através do debate constante e a cada e redutora do lado alemão, vez maior união nacional, a Alemanha começou Para a sociedade alemã no entanto o impulsionada pela na altura ainda a aceitar as obras de Kiefer, e a dar-lhe a Holocausto é um enorme trauma, que muito recente ferida do regime Nazi, respectiva importância, e começou acima durante largos anos bloqueou por completo ou antes trauma Nazi, Kiefer teve de tudo a reconhece-las como importantes a cultura alemã, envergonhada perante o uma recepção muito positiva do ferramentas de confrontação e compreensão da mundo, e sem respostas para si mesmo. outro lado do Atlântico sua própria história. É ainda nos dias correntes um grande trauma, passados mais de 60 anos sobre Kiefer desdobrou-se durante muito tempo com o poema Todesfuge o fim desse período negro: é actualmente proibido na Alemanha (fuga da morte), de Paul Celan, um dos mais importantes poetas possuir qualquer símbolo do antigo regime Nazi, ou manifestar qualquer apoio, simbólico ou outro, a ele. Os alemães, ao contrário do período pós segunda guerra mundial. Celan, que cometeu suicídio em 1970, foi preso num dos campos de concentração de outras nações que se tiveram que confrontar e confrontam com do regime Nazi pela sua crença judaica, onde perdeu toda a sua horríveis crimes contra a humanidade, tiveram por várias razões que ultrapassam o meu conhecimento, uma relação especialmente família. Libertado em 1945 pelo exército vermelho, publicou uma séria de poemas escritos durante a sua estadia no campo. difícil e angustiante com o seu passado relativamente recente. É importante perceber esta relação dos alemães para com o seu passado para compreender grande parte das obras de Anselm Kiefer. Durante muito tempo, e ainda hoje até certo ponto, Kiefer foi incompreendido pelos alemães, e classificado como neofascista – certamente o que mais contribui para esta classificação foi a série de fotografias e pinturas de Kiefer publicadas na Alemanha em 1969, onde se pode vê-lo a imitar o vestuário e a saudação Nazi em locais privados e públicos, tanto na Alemanha, como na Itália e França. Theodor Adorno escrevia “Nach Auschwitz ein Gedicht zu schreiben ist barbarisch” – escrever um poema depois de Auschwitz é bárbaro. Esta frase demonstra bem a atitude que a nação alemã tinha perante o Holocausto. Qualquer tentativa de

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O poema Todesfuge fala-nos de um grupo de habitantes judeus de um campo de concentração, que repetidamente ao amanhecer bebe leite negro. Ritmadamente, e com formulações cada vez mais curtas, é-nos dada a sensação de um crescendo. Este grupo tem que, por ordem de um comandante alemão da SS (corpo militar de elite do regime Nazi), cavar as suas próprias covas no céu, para o qual irão em forma de fumo. Enquanto isso o comandante escreve cartas de amor. Ele exige que os judeus dancem e trabalhem para ele, e depois de um crescendo de claustrofobia e ansiedade no desenvolvimento do poema, assassina-os com balas de chumbo. Duas figuras são contrastadas repetidamente no poema, e assumem-se por fim como os dois elementos opostos


que Celan utiliza no final do poema. Margarete é a mulher à qual o comandante da SS escreve as suas cartas de amor, e tal como os olhos azuis do comandante, o seu cabelo dourado evoca as características típicas da raça ariana. Por contraste Sulamite é a mulher judaica, cujo cabelo longo e preto, típico da sua raça, é também sinal das cinzas resultantes do seu queimamento. Na metáfora que finaliza o relativamente longo poema , lemos “dein goldenes Haar Margarete \ dein aschenes Haar Sulamith” – o teu cabelo dourado Margarete, o teu cabelo em cinzas Sulamith”. Várias pinturas foram criadas por Kiefer a partir deste poema, e acima de tudo a partir desta sua metáfora final, focando-se sempre numa das personagens, Margarete ou Shulamite, apesar de sempre haver sinais da outra personagem. Em Margarete encontramos Sulamite representada através das cinzas e falsas sombras nas bases das chamas, e em Sulamite encontramos Margarete epresentada através de pequenos pedaços de palha dispersos pelo Bunker, como que vestígios da sua presença e autoria da infraestrutura.

Nas sombras dos cabelos dourados, eles próprios em forma de chamas altas, como que as chamas do inferno, a emergir das cinzas na parte inferior da tela, encontramos alguns fortes traços pretos, como que sombras. Mas sombras não são, nem fariam sentido – são sim traços que remetem para o cabelo preto de Shulamite, que é também representada pelas fortes manchas representativas da cinza. De notar também que a palha encontra-se igualmente representada por entre as cinzas, nos limites do quadro: as chamas não se encontram em território alheio – é nas próprias chamas, dentro da Alemanha, que as cinzas são criadas como uma pequena parte do território. O céu azul com pequenos e discretos pontos brancos a remeterem por um lado para estrelas, por outro para o fumo que sobe a partir das cinzas, dos judeus queimados pela violência das chamas do comandante alemão, objecto de amor da população alemã que não adivinha que ele está a destruir a nação, a trai-la.

No final Kiefer criou duas pinturas, ambas em 1981, a primeira referente à amante do comandante, e consequentemente à figura do alemão. É-nos apresentada uma tela relativamente grande (2,8 por 3,8 metros), em que Margarete é representada através do seu cabelo dourado, o céu para o qual os judeus irão em forma de fumo é representado atrás do cabelo em tons de azulo, e Shulamite é representada por traços negros para o seu cabelo, e manchas pretas, cinzas e brancas para as suas cinzas, resultantes de pequenas chamas nas pontas do cabelo de Margarete. Seguindo uma tendência mais abrangente de Kiefer, encontramos a palavra Margarete escrita por entre o cabelo dourado. A obra representa uma enormidade do conteúdo do poema de Celan, e faz uma ligação extraordinária à relação Nazis Margarete - Anselm Kiefer, 1981 Óleo e palha sobre – Judeus durante o Holocausto. O cabelo tela, 280 x 380 cm, Saatchi Collection, Londres dourado é representado com recurso a palha. Se em obras anteriores Kiefer utilizou este material mais por uma questão de experimentação, Margarete é uma óptima descrição da relação Nazi – Judaica no aqui ganha um simbolismo especial: a Alemanha tem na sua seu lugar geográfico mais crítico, um campo de concentração cultura uma forte presença da palha como ligação à natureza, alemão. Celan viveu a experiência judaica na primeira pessoa, à terra. A palha em si representa a Alemanha, e fala sobre ela e descreveu-a num poema arrepiante, que inspirou Kiefer para mesma, para além da personificação como amante do comandante várias obras. Este por seu lado, não tendo vivido a experiência, SS. A relação de amante com o comandante também remete para utilizou o relato de Celan, a sua própria vivência pós-guerra, e a uma ideia da relação que a população alemã tinha perante Adolf sua tentativa de encarnar Adolf Hitler, para assim descrever na Hitler. Tal como um homem que esconde a sua vida real e os seus sua obra as três entidades representadas: as vítimas judaicas, a pecados à sua amante, que não se intromete na vida do homem, sociedade alemã e o ódio Nazi. Sociedade alemã essa ainda nos Adolf Hitler dava e prometia à população alemã muita coisa em dias de hoje traumatizada pela traição de que foi alvo: só no ano troca do seu “sim” incondicional, do qual abusou para levar a passado, em Maio de 2005, e após décadas de discussão quase cabo os seus maiores pecados. As chamas estão nas pontas dos doentia, na tentativa de não cometer mais nenhum erro por cabelos dourados, e no entanto quem está em cinzas é Shulamite. menor que fosse e de agradar a toda a gente, foi inaugurado em Isto porque apesar de os assassinados serem os judeus, os Berlim um memorial ao Holocausto. alemães estavam a destruir-se a si mesmos. Durante décadas, e ainda nos dias de hoje, a Alemanha sofre com os seus actos.

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CAMINHANTE

Tudo passa e tudo fica. mas a nossa sina é passar, passar, fazendo caminhos, caminhos sobre o mar, caminhante não há caminho. faz-se o caminho a andar e quando voltares a vista atrás verás o caminho que nunca voltarás a pisar como estrelas no mar.

Autor desconhecido

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I had a dream It happened on the night I met you In the dream there was our world And the world was dark because there weren’t any roobins And the roobins represented love And for the longest time, there was just this darkeness...and all of us Sudden thousands of roobins were set free and they flew down and brought this blinding light of love And it seemed like, that love, could be the only thing that would make any difference And it did So I guess it means there is troubles ‘till the roobins come.

in Blue Velvet, David Lynch



POEMA DA BUGANVÍLIA

Algum dia o poema será a buganvília pendente deste muro da Calçada da Graça. Produz uma semente que faz esquecer os jornais, o [emprego e a família, E além disso tudo atapeta o passeio alegrando quem [passa. Mas antes desse dia há-de secar a buganvília e o varredor há-de levar as flores secas para o monturo. Depois cairá o muro. E como o tempo passa mesmo contra a vontade, também há-de acabar a Calçada da Graça e o resto da cidade. Então, quando nada restar, nem o pó de um sorriso que é o mais leve de tudo que se pode supor, será esse o momento de o poema ser flor, mas já não é preciso.

António Gedeão

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