ALMA LIMPA - Pequenas Grandes Liçoes de Luiza Soares de Jesus

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ALMA LIMPA PEQUENAS GRANDES LICÕES DE LUIZA SOARES DE JESUS

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Rubens R. Câmara

ALMA LIMPA PEQUENAS GRANDES LICÕES DE LUIZA SOARES DE JESUS

Belo Horizonte - MG 2015

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Título

ALMA LIMPA Pequenas Grandes Licões de Luiza Soares de Jesus Autor Rubens R. Câmara Fotografias Acervo Familiar Revisão Maria Célia Aun Alexandre Bomfim Editoração Gráfica Andréa Esteves Edição do Autor Belo Horizonte – MG 2015

C172b

CÂMARA, Rubens R. Alma limpa: pequenas grandes lições de Luiza Soares de Jesus / Rubens R. Câmara. – Belo Horizonte: [s.n], 2015. 154p. 1.Biografia 2. Relato memorialístico. I. Rubens R. Câmara II. Título CDD – 920.008

Catalogação na publicação: Janaína Cruz Reis – CRB 2484

2015 Proibida a reprodução total ou parcial por quaisquer meios, sem autorização expressa do autor.

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DEDICATÓRIA À memória de minha mãe, Luiza Soares de Jesus. A meus irmãos Rui, Roberto, Robeson e, especialmente, a Ruth, nossa segunda mãe. 5

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AGRADECIMENTOS

A Maria da Conceição Castilho Urbani, Danilo Fernandes Rocha e José Francisco de Paula Sobrinho, diletos amigos, que me acompanharam mais de perto, prestando valiosa colaboração para que este livro se tornasse realidade.

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LUIZA

(In memoriam)

Pequenos caprichos Caprichava E os tornava grandes Pequenas carícias Acariciava E as tornava imensas Pequenos cuidados Cuidava E os tornava enormes Pequenos perdões Perdoava E os tornava eternos Pequenas tristezas Entristecia E as tornava mínimas Pequenos silêncios Silenciava E os tornava minúsculos Pequenos amores Amava E os tornava infinitos (Rubens R. Câmara, Abril/2005) 9

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PREFÁCIO O falecimento de minha mãe, Luiza Soares de Jesus, ocorrido em 23 de abril de 2005, deixou, evidentemente, uma sensação de vazio e desolação em todos parentes e amigos. Em silêncio e lágrimas, nossos corações clamavam por mais um minuto da presença dessa pessoa amada, por mais um segundo da luz de seu olhar, por uma palavra a mais. Luiza não nos decepcionou. Ela nos deixou um pequeno diário escrito na última década e meia de sua vida, o qual, de certa forma, pereniza sua presença entre nós. Num gesto de egoísmo, lancei mão dessa relíquia e a guardei como se fosse somente minha. Embora não se justifique essa atitude, o fato de eu ter sido o filho que conviveu com ela por menos tempo fazia-me sentir legitimado a essa exclusividade. Queria recuperar o tempo perdido, conhecê-la um pouco mais e melhor. Por quase dez anos, li e reli esse diário, com ele chorei, sorri, sonhei e o estudei em silêncio. Somente agora me sinto à vontade para, além de render uma homenagem à minha mãe, reparar aquele gesto de egoísmo perante meus irmãos, tornando público seu pequeno diário, singelo na forma, mas imensurável no conteúdo. Ao transcrevê-lo aqui, entremeando comentários, reflexões e parte de minha história, proporciono a meus irmãos, parentes e amigos a oportunidade de rememorar momentos felizes, tristes, apreensivos, de conquistas, de dúvidas, de vitórias e de diversos outros matizes, bem como de tomar conhecimento de fatos e circunstâncias que ficaram velados até mesmo para os que estavam pró11

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ximos a ela, e que, agora, serão revelados. Por fim, aos que não a conheceram, proporciona-se a oportunidade de terem uma noção de quão especial ela foi. Por outro lado, é um resgate de uma memória pessoal. Saí de casa muito cedo, aos doze anos de idade, e somente voltei a ter um convívio mais próximo com minha mãe vinte e tantos anos mais tarde. Mãe e filho, estranhos um ao outro. Não havia cumplicidade, nem espontaneidade. Éramos duas pessoas que se amavam, mas não se reconheciam. Aos poucos, fomos nos familiarizando e nos restaurando como elos de uma mesma corrente. Ela me viu nascer e renascer. Já sabia tudo de mim, quando a vi morrer. Mas eu, sobre ela, tinha muito a aprender. Relutava em dar publicidade a esse diário, por entender que estaria violando sua privacidade, pois, até mesmo minha mãe mostrou-se insegura quanto a registrar suas memórias, tendo escrito: “Tem hora que penso que estou escrevendo muita bobagem, até detesto. Escrevo muito mal, tenho medo de alguém encontrar [o diário]. Me dá vontade de rasgar.”

Porém, Luiza não destruiu seu manuscrito. Aliás, imediatamente, no mesmo parágrafo, ela venceu o próprio constrangimento e se permitiu realizar sua catarse: “Mas penso [que] estou fazendo só para me recordar alguma coisa. Pouco importa se alguém não vai entender nada disso que escrevo.”

Com essa frase, sinto-me autorizado a trazer a público as suas memórias. Mais que isso, tenho o dever de fazer coro 12

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a sua coragem e, no que me couber acrescentar, fazê-lo de maneira honesta e respeitosa, evitando-se uma inútil exposição de fatos e circunstâncias de que o fio condutor desta história pode, sem prejuízo de seu entendimento, prescindir. Obviamente que a história de Luiza Soares de Jesus não vai ser contada em toda a sua integralidade, mas qual história jamais o foi?

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“Sei que ela foi a alma mais amável e generosa que já conheci, e sei que devo a ela o que existe de melhor em mim.” (Barack Houssein Obama, in “A Origem dos meus sonhos”, 2014)

“Todos nós temos algo a acrescentar ao que já foi dito sobre as mulheres e seus dilemas.” (Ana Paula Padrão, in “O Amor Chegou Tarde Em Minha Vida”, 2013)

“Seus olhos azuis se fecharam, mas o brilho deles permanece em meu coração.” (Bernadete Muinhos Paula, “Mãe”, in “Reflexões e Imagens”, 2010)

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O DIÁRIO Luiza Soares de Jesus teve quatro vidas distintas. De seu nascimento, no seio de uma família simples, até os vinte anos de idade, viveu com os pais, cuidando dos irmãos e da casa. Depois, vinte anos de casamento, cinco filhos e as alegrias, preocupações, realizações e frustrações normais da vida de uma pacata família do interior de Minas Gerais. A terceira parte, pobre, abandonada pelo marido, travou uma batalha ferrenha por cerca de vinte anos para tirar a família do “zero absoluto”, conduzindo-a um lugar à luz do sol. E a quarta, vinte e quatro anos, quando, finalmente, pôde dar-se o direito de aposentar o verbo “lutar” e desfrutar apenas do “viver”, embora, guerreira nata, ainda tenha vencido mais algumas batalhas. Seria impossível contar sua história de forma linear e completa, por falta de testemunhos ou depoimentos, por terem se perdido documentos e registros e, obviamente, pela ausência da personagem principal para detalhar os fatos e circunstâncias de sua vida. Contudo, ela deixou um pequeno diário. Numa caderneta, medindo cerca de 11 x 16 cm, de capa dura e miolo com cinquenta páginas pautadas, que não foram totalmente utilizadas, Luiza deu início a seu diário no dia dois de janeiro de 1990, aos sessenta e nove anos incompletos; portanto, quatorze anos, três meses e vinte um dias antes de seu falecimento. Nele, um arrazoado de sua vida, mesclando lembranças e o cotidiano, escrito sem periodicidade regular, numa narrativa despreocupada de sequência lógica ou acadêmica, seguindo apenas os impulsos de sua memória emocional. Na mesma trilha de seu diário, pretendo, aqui, acrescentando fatos e esclarecendo circunstâncias, bem como divagando sobre sentimentos e recuperando lembranças, contar a história de 15

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Luiza e, em consequência, a de sua família, sempre atento à profundidade das pequenas grandes lições que legou de forma simples, mas com sabedoria. Assim, inicia-se uma viagem pela vida e alma de Luiza Soares de Jesus.

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ORIGENS “Diário L. 2.1.1990 Eu, Luiza, nasci de família pobre e humilde, éramos 6 irmãos. Sou a mais velha, lutei para ajudar meus pais.”

Não há forma mais adequada, ainda que prosaica, de se começar um diário do que pela data em que é iniciado e as informações pessoais básicas. Já o título, “Diário L.”, é inusitado. Por que não “Diário de Luiza” ou “Meu Diário” ou simplesmente “Diário”? Porém, deixo para decifrar esse enigma mais ao final. Luiza nasceu no dia 21 de março de 1921, filha de João Soares Barbosa e Ana Amélia [Goulart de Mello] de Jesus, em Pimenta, MG. O distrito de Pimenta pertenceu ao Município de Formiga até 30 de agosto de 1911, quando foi transferido para o de Bambuí até 1923. Assim, ao menos oficialmente, Luiza, nascida em 1921, seria considerada cidadã de Bambuí, embora talvez nem ela própria tenha se dado conta disso. Mesmo porque, pouco tempo mais tarde, em 1924, Pimenta passou a pertencer a Piumhí até 1943 e somente adquiriu o status de cidade em 27 de dezembro de 1948. Mas, a essa altura, sua família já havia se mudado de lá para Formiga há mais de duas décadas, em 1926, onde seus irmãos nasceram e ela e seus pais já haviam assumido a naturalidade formiguense, embora não fossem, efetivamente, nascidos nos contornos urbano ou rural dessa cidade. A exemplo de centenas de antigas famílias brasileiras, a de Luiza também foi atingida pela decadência econômica decor17

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rente do esfacelamento dos bens em inventários e partilhas entre os numerosos herdeiros e agregados por ocasião do falecimento dos patriarcas. Hoje, essa situação está sintetizada no dito popular “pai rico, filho nobre, neto pobre”. A colonização do oeste de Minas deu-se, em boa parte, pelo assentamento de famílias de origem açoreana em sesmarias concedidas a alguns pioneiros. Entre os ancestrais de Luiza, destacam-se os nomes de Luis Antônio Teixeira Álvares e João Garcia Pereira – este, açoreano; aquele, português continental –, aos quais foram concedidas terras para cultivo no início do século dezoito. Anteriormente a esses, o grande colonizador Ignácio Correia Pamplona, também açoreano, recebeu várias sesmarias, promovendo o estabelecimento de muitas famílias patrícias em seus domínios. De sorte que a quase totalidade dos ancestrais de Luiza provinha de famílias beneficiárias de concessão de sesmarias ou daquelas agregadas aos pioneiros. Foi o caso de Francisco Xavier Goulart, açoreano, tetravô de Luiza. Esses Goulart eram considerados ricos para os padrões da época. Prova disso é que, com o falecimento prematuro de sua bisavó, Severiana Bernardes da Silveira, deixando vários filhos menores de idade, o bisavô, Antônio Gonçalves Goulart, contratou pajens negras e professores particulares para cuidar dos órfãos. Mais tarde, ele veio a se casar novamente, gerando mais filhos, constituindo numerosa família. Mesmo assim, a avó materna de Luiza, Mariana Leonor Goulart, houve por herança de seu pai uma propriedade rural no lugar chamado Caveira, no distrito de Córrego Fundo, hoje município. Tratava-se de uma casa de morada e pastos ao redor, de razoável extensão. Mariana, após o falecimento do marido, João Theodoro de Mello, envolveu-se com um viúvo, o qual tinha vários filhos. Estes se apossaram de grande parte das terras de Mariana, deixando-a apenas com a casa. Com a morte do viúvo, ela não participou da partilha dos bens do finado, em razão de não serem oficial ou religiosamente casados. Ainda em vida, a avó de Luiza decidiu vender a tal casa e dividir o dinheiro entre os filhos, ficando sem nada. Viveu seus últimos anos sob os cuidados da filha Ana Amélia, mãe de Luiza, porém, internada num asilo. 18

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Histórias semelhantes de “empobrecimento” vêm de outros antepassados de minha mãe. João Theodoro de Mello, seu avô, era descendente do fundador de Pimenta, local de nascimento dela. O povoado que deu origem a essa cidade foi fundado pelo tenente-coronel Antônio Gonçalves de Mello, em 1841, que doou terreno e dinheiro para a construção da capela de Nossa Senhora do Rosário da Estiva, portanto, era homem abastado. Contudo, nos autos do inventário de seu bisneto, João Theodoro de Mello, consta que este possuía apenas uma casa de morada e alguns velhos utensílios de trabalho, que deveriam ser partilhados entre seus vários filhos. Para que isso fosse possível, o Juízo deve ter levado os bens a leilão e dividido o produto arrecadado entre os herdeiros, após descontadas as custas judiciais. O montante recebido certamente foi insuficiente para aquisição, por cada um deles, de outros bens de raiz. Já pelo lado paterno de Luiza, as origens genealógicas são obscuras. João Soares Barbosa, meu avô, fabricava artesanalmente petrechos para cavalgar, tais como selas, estribos, freios e cintas, daí resultando-lhe a alcunha “João Seleiro”. Segundo tradição familiar, ele tinha sangue indígena, o que, aparentemente, se comprova, no retrato abaixo reproduzido, por sua tez morena e cabelos pretos e lisos.

João Soares Barbosa

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Talvez essa ascendência lhe viesse por seu pai, Jesuíno Soares Barbosa, que seria natural do Estado da Bahia. Entretanto, não se localizaram documentos que confirmassem essa suposição. Pelo lado materno de João Soares Barbosa, sabe-se que sua avó chamava-se Francisca Braga e era “mulher branca”, conforme se infere do registro de seu óbito, ocorrido em 11 de fevereiro de 1942, constando nesse registro que “não deixou bens”. Assim, de ascendentes baianos e indígenas, os Soares Barbosa, com certeza, não provinham de famílias abastadas. O fato de minha mãe ter nascido “de família pobre e humilde ”, ou seja, não ter herdado bens de valor econômico, não a privou de outros valores, mais importantes, como a religiosidade, o caráter forte e a perseverança, como se verá ao longo de sua história.

Da esquerda para direita: Luiza, 6 anos; seu pai João Soares Barbosa, 31; empregado; seu irmão José, seis meses; sua mãe Ana Amélia (Goulart de Melo) de Jesus, 21 e empregado

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OS PRIMEIROS ANOS João Soares Barbosa, a despeito de seu ofício de seleiro, sabia ler e escrever com certa desenvoltura. Consta também que tocava violão. Ele era cerca de dez anos mais velho que minha avó Ana Amélia [Goulart de Mello] de Jesus, que tinha 14 anos quando se conheceram. No período de namoro, João encarregou-se de alfabetizar a futura esposa, ao menos basicamente, de forma a lhe garantir habilidade para assinar o próprio registro de casamento, o que ocorreu um ano mais tarde, em 1920. Portanto, é provável que minha mãe também tenha recebido do pai a alfabetização inicial, tendo em vista que, em Pimenta, um pequeno povoado na década de 20 do século passado, talvez não existissem escolas. Posteriormente, já morando em Formiga, ela deve ter frequentado os bancos escolares oficiais, pois costumava dizer que estudara “até o terceiro ano”. Em 1927, já estabelecido em Formiga, meu avô fez-se fotografar ao lado da família e empregados, expondo seus produtos e utensílios de trabalho. Luiza teria, então, seis anos de idade, sendo essa sua primeira foto. O estabelecimento de João Seleiro ficava em algum ponto ao longo da, hoje, rua Abílio Machado, em Formiga, bairro conhecido como Chapada. Nesse bairro, morava também a família Câmara, nas imediações das ruas atualmente chamadas Pains e Elisa Gomes, antigo beco do Sapé. Nesse beco, corria um riacho de água salobra que servia apenas para se lavar roupa. É provável que Luiza tenha frequentado o lugar e tenha chamado a atenção de todos, principalmente dos rapazes, por sua juventude e beleza. Fruto de uma miscigenação espetacular, corria-lhe nas veias sangue de diversas raças e etnias. Nasceu loira de olhos azuis, 21

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legado genético de seus ancestrais holandeses. Segundo relata Gilberto Freire em “Casa Grande & Senzala”, os genes recessivos tendem a se manifestar primeiro e depois cedem lugar aos dominantes: “Nas regiões mais penetradas de sangue nórdico, muita criança nasce loura e cor-de-rosa como um Menino Jesus flamengo para tornar-se, depois de grande, morena e de cabelo escuro”. Foi isso, mais ou menos, o que aconteceu com Luiza. Aos vinte anos, minha mãe era uma mulher branca de cabelos escuros, traços sensuais e olhos profundamente azuis.

Luiza aos 21 anos de idade (1942)

Em seu diário, num salto de vinte anos, ela chega a seu casamento, sem qualquer palavra ou comentário sobre namoro e noivado. 22

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“Casei-me [em] 2.12.1942 [na verdade, 1941] com 20 anos, meu marido com 22, éramos duas crianças simples. Estudei muito pouco, ele também não tinha cultura nenhuma, tomamos muitas cabeçadas para sobreviver, vivemos 20 anos, tive 5 filhos.”

Geraldo aos 19 anos de idade (1939)

Namoro e noivado na década de quarenta do século passado, evidentemente, estavam longe dos moldes atuais. Na foto abaixo reproduzida, meus pais eram noivos. Ao contemplar essa foto, minha mãe costumava relatar que o fotógrafo teria sugerido que eles ficassem mais próximos um do outro para melhor composição. Contudo, ela teria se recusado a se aproximar de Geraldo, 23

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este, porém, tomou-lhe a mão. Luiza tentou se desvencilhar, mas meu pai a segurou com mais firmeza, chegando a lhe causar algum incômodo.

Luiza e Geraldo, noivos (1941)

Segundo relato de Rui, meu irmão mais velho, toda a família Câmara e agregados viviam na “rua ou travessa São João [em Formiga, MG]. Na frente, uma casa grande, morava tio João [Rodrigues Câmara]. No quintal, havia uma mangueira enorme, mais ou menos no centro, e diversas casinhas ao redor fechando o terreno. Um cortiço. Ali moravam o avô Ilídio [Gomes Rodrigues Câmara], o tio 24

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Sebastião [Rodrigues Câmara], vulgo Tatão, sua esposa Carolina, vulgo Carola, que fora esposa do tio Zé [José Gomes Rodrigues Câmara], já falecido”. E foi numa dessas casas que os recém-casados foram morar e onde nasceram os dois primeiros filhos do casal, Rui e Ruth. Final da década de quarenta do século passado, sem televisão ou outras formas de lazer, a família, por iniciativa de tio João, que se passava por patriarca daquele grupo familiar, se divertia com jogos de cartas, em suas várias modalidades, e jogo de vísporas, hoje chamado de bingo. “Minha mãe detestava aquele lugar e jamais, em hipótese alguma, colocou as mãos num baralho, nem permitia que eu ficasse lá” – Rui continua o seu relato – “Tio João argumentava: ‘bobagem, aqui é a família reunida, se divertindo com respeito, não tem bebida, nem pouca vergonha’.” Embora corresse dinheiro, as apostas “eram ínfimas, mais a título de brincadeira [...], dinheiro mesmo só moedinhas, naquele tempo falava-se réis, hoje centavos”. Além disso, “segundo tio João, ‘dinheiro aqui é o seguinte: ele é meu, sai do bolso esquerdo e entra no direito, ou seja, roda, roda, mas fica do mesmo tamanho, às vezes eu ganho o que emprestei’!” O fato é que alguém da vizinhança deu queixa daquela jogatina. Os policiais chegaram invadindo o local e houve um acirramento de ânimos. Os parentes defendendo o saudável e inocente entretenimento familiar, enquanto as autoridades insistiam em pôr fim àquela contravenção. Nesse disse me disse, meu pai levantou mais a voz, questionando a autoridade do delegado, na verdade um farmacêutico que fora nomeado ad hoc para o cargo, e acabou sendo preso por desacato. Luiza tinha um espírito apaziguador e contemporizador, porém sem perder de vista seus direitos e a defesa deles. Portanto, assim que “soube do ocorrido, ficou indignada e desafiou a todos que ali se encontravam: ‘Vocês são uns covardes, deixaram que o levassem, levando a culpa sozinho; vocês são uma corja de imprestáveis’. Corajosa e destemida, aquela mulher dirigiu-se ao Dr. Noronha, Juiz de Direito da Comarca, e foi logo dizendo: ‘Doutor, o senhor tem autoridade 25

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para me ajudar. Conto-lhe o ocorrido, mas garanta que ele não seja maltratado como acontece com frequência àqueles que são presos. Ele é um homem de bem, honesto, trabalhador e merece ser tratado como tal’. Consta que, chegando à delegacia, eles o encontraram tentando se explicar para o Delegado, e o Juiz, após interferir em sua soltura, disse-lhe: ‘Sr. Geraldo, o senhor tem uma mulher de valor, saiba valorizá-la’. Meu pai prometeu e cumpriu. Naquele mesmo dia procurou uma casa e se mudou daquele lugar. Tornou-se um grande admirador deste Juiz e posteriormente meu pai e Aristides, amigos inseparáveis, foram trabalhar juntos, [nomeados ad hoc] como Oficiais de Justiça, graças a este incidente”. Minha mãe já demonstrava toda a solidez de caráter e, considerando-se a época, uma surpreendente desenvoltura para defender seus direitos perante um meio absolutamente machista. Aliás, como se verá ao longo de sua história, foi uma ativista anônima e silenciosa, mas efetiva, no seu reduzido universo de influência, na defesa dos direitos humanos, da biodiversidade e, principalmente, da dignidade da mulher. Meus pais, então, mudaram-se para a nova residência na, hoje, Rua dos Missionários, esquina com o local onde seria erguida, mais tarde, a Igreja do Sagrado Coração de Jesus, cuja construção recebeu ajuda deles. A casa, considerando a época, início da década de cinquenta do século passado, não era um primor de arquitetura. Todavia, era uma moradia bem mais digna do que a anterior, conforme relata Rui em suas memórias. “A casa era grande, com dois quartos, uma cozinha grande e lembro-me de um banheiro num canto, mas não era de esgoto encanado. A grande novidade, coisa de rico, era o chuveiro quente, do tipo serpentina. (Encanamento que passa por dentro do fogão e, esquentando a água, vai direto para o chuveiro). Por falar em fogão este era de lenha, [havia] um forno, que deixou minha mãe maravilhada. A entrada desta 26

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casa era pelos fundos: entrava-se pela cozinha para depois chegar a um corredor que dava acesso aos dois quartos, no final do corredor uma pequena janela que dava vista para a rua principal, à direita uma porta bloqueada.” O dono desse imóvel era o senhor Nicolau José Miserani, qualificado como “turco”. Talvez ele tenha herdado a alcunha de seus pais, que efetivamente seriam estrangeiros, sírios ou libaneses. À época, as pessoas originárias do Oriente Médio eram genericamente denominadas de “turcas” porque emigravam para o Brasil com passaporte da Turquia, em razão de seus países de origem, Síria e Líbano, estarem sob o Império Turco-otomano. O fato é que o senhor Nicolau, honrando seu tino comercial atávico, havia dividido essa casa em duas, isolando um cômodo que fazia frente para a rua principal, para render dois aluguéis. Assim como o senhor Nicolau, minha mãe também tinha seu instinto comercial e esse “cômodo na frente, sempre fechado, era cobiçado [por ela], que teimava em convencer o marido, de que ali era um ponto comercial muito bom, perto da futura construção da Igreja Sagrado Coração. Mais para convencê-lo, do que por necessidade, fazia doces e quitandas, do tipo bolo e pão”, dos quais uma parte era vendida para a vizinhança por ela mesma e, quanto à outra, Rui se encarregava de vender pelas ruas, o que, certamente, já ia fazendo nascer uma freguesia. A iniciativa de Luiza rendeu o esperado, ou seja, Geraldo convenceu-se da ideia. Assim, continua Rui, “quando cheguei da escola, o nosso pai e nossa mãe mais umas pessoas estavam limpando o cômodo da frente e a animação era muito grande. Em pouco tempo, a venda já estava montada e o movimento compensava todo esforço. O velho Nicolau, segundo soube, estava satisfeito por ter vendido umas cacarias e aumentado mais um pouco o aluguel. Lembro-me muito bem de que o ‘velho’ trabalhava de Oficial de Justiça e durante o dia a mãe cuidava de tudo. Até eu ficava vigiando a venda. À noite, se o pai se ausentava, a venda ficava fechada e alguma coisa era vendida à porta. A 27

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mãe sempre repetia que foram bons aqueles tempos, pois havia fartura; estavam ajuntando dinheiro; eles tinham prestígio; apesar do grande número de ‘fiados’, a venda estava bem sortida e foi nesta época que eu fiz minha ‘primeira comunhão’, com o Pe. Remaclo [Foxius], hoje tido como santo e você [Rubens] veio ao mundo.[...] Este foi indubitavelmente o período mais feliz de nossa saudosa Mãe. Ela falava, em fragmentos, desta época, sempre deixando claro que viveu momentos de felicidade ali naquela casa”. Segundo um opúsculo de memórias escrito por meu irmão Rui para presentear nossa mãe por ocasião do seu 81º aniversário, Geraldo, “apesar da pouca instrução escolar, exibia uma caligrafia bonita, desenhada. Escrevia com desenvoltura com ambas as mãos. Ele treinava escrever de trás para frente. Ele resolvia com facilidade as quatro operações de aritmética. O mérito é de minha mãe, que o instruiu a fazer troco e a resolver as ‘continhas’. O resto ele aprendeu sozinho e dominava bem as operações fracionárias. Falava alguma coisa de inglês e conhecia hábitos e costumes de diversos países. O que mais me fascinava era vê-lo jogando víspora [bingo], com as cartelas viradas e marcando os números, apenas de memória”. Minha mãe comentou certa vez que ensinou ao marido – “a duras penas” - as operações matemáticas, percentagem e “prova dos nove”, antigo método de conferir a exatidão das adições. Depois, é verdade, Geraldo até se tornou mais rápido do que ela, em razão de sua privilegiada memória fotográfica. Já no que diz respeito à escrita, meu pai era bem mais desenvolto, talvez em razão da herança genética dos antepassados Câmara que sempre tiveram belas caligrafias e muitos deles foram escrivães e notários judiciais. Uma prova dessa sua destreza foi um caderno que, por muitos anos, Luiza guardou e no qual Geraldo escrevera vários poemas de sua autoria, como um mimo a ela, quando ainda eram namorados ou noivos. Meu pai continuava como Oficial de Justiça ad hoc e Luiza cuidava mais diretamente do negócio, ou seja, atendimento ao públi28

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co, manutenção e reposição dos estoques, bem como da contabilidade, controle das cadernetas de crédito e balanço. “Eu dando conta dos filhos [que] eram bem perto um do outro, lida da casa, lavar, cozinhar, dar remédio, ainda fazia doces para colocar na venda, trabalhar no balcão, atendendo a freguesia, sempre sorrindo.”

Como minha mãe relata em seu diário, ela e meu pai eram ambos originários de famílias humildes e nenhum dos dois tinha profissão definida ou escolaridade superior, tanto menos muito recurso financeiro. Assim, conjugando esforços e respectivas habilidades, eles conseguiram manter essa porta de comércio, à época chamada de venda, por alguns anos. Àquele tempo, décadas de quarenta e cinquenta do século passado, o caráter patriarcal e machista da sociedade era muito exacerbado, de sorte que as mulheres, principalmente as de camada social mais humilde, eram relegadas quase somente às atividades domésticas. Mesmo assim, minha mãe postava-se à frente dos negócios, para que se encaminhassem mais lucrativamente. O verdadeiro tino comercial estava com ela e não com o marido, que, embora fosse empreendedor e trabalhador, carecia de melhor preparo, que nela era inato. Geraldo, segundo o relato de meu irmão Rui, dizia que “o negócio é comprar por um e vender por dois; e para isso, não precisa ser muito inteligente, não”. Luiza, contudo, sabia que comerciar, assim como tudo na vida, vai além da matemática pura e simples, exigindo tato, sensibilidade, perseverança e intuição. 29

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A iniciativa de Luiza desagradava o marido, seja porque se sentia constrangido em ser dirigido pela mulher, seja por se sentir enciumado por sua forma natural de irradiar simpatia e beleza no atendimento à clientela. Certa vez, ela me confidenciou que tiveram alguns atritos, típicos em relacionamentos conjugais, mas, a despeito desses desentendimentos, manteve-se decidida a ajudar o marido. A frase “sempre sorrindo ” dá indicação de que, embora um pouco constrangida, não deixava de vir atender a freguesia com sua costumeira cortesia. Em seu diário, quarenta anos mais tarde, Luiza nos dá uma ideia de como a família estava bem estabelecida e participativa na vida social e religiosa da comunidade: “Hoje, 17 de maio de 1992, estou me lembrando [de] quando construímos a matriz do S.C. de Jesus. Cada serviço que tinha nesta Igreja, tinha uma ajuda da gente. Não me lembro bem, mas mais ou menos em 1950 eu e mais colegas fomos paraninfas da pedra fundamental, benta pelo Padre Remaclo F. [Foxius]. Ali no fundo do alicerce, ficou minha pequena lembrança. Fomos aos trabalhos, fazendo barraquinhas, rifas, tudo que podia. Dava coisas para o leilão. Meu marido gostava de arrematar leilões, tudo para ajudar. Nós morávamos ali bem ao lado e também construía nossa família. Meu terceiro filho nasceu ali de lado e vendo aqueles paredões crescendo. A grande Matriz que é hoje. S. C. de Jesus.” 30

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Nesse relato, ela se refere a meu nascimento. Minha mãe teve um longo período de infertilidade, cerca de seis anos, por isso, a chegada de mais uma criança foi motivo de muita alegria para a família, e meu pai fez questão de dar uma grande festa por ocasião do batizado. Corria o ano de 1952, éramos três irmãos: Rui, com 10 anos de idade; Ruth, com sete; e eu, recém-nascido. As duas fotos, reproduzidas a seguir, mostram, a primeira de mais ou menos 1960, a fachada da Igreja e parte da casa em que a família morou, já em ruínas; e a segunda, um “santinho” destinado a angariar fundos para a construção da igreja, impresso em 1950.

Igreja do Sagrado Coração de Jesus (1960)

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Cartão (1950)

No entanto, essa fase da vida teve uma mudança drástica. “Não deu para ganhar dinheiro como ele [Geraldo] queria, fomos para Goiás, cidade de Anápolis, em busca de melhora. Lá ficamos cinco anos no mesmo batido, ele abriu pequeno comércio, vamos à luta.”

Em suas memórias, Rui deixa transparecer que aquela mudança para Goiás foi uma decisão precipitada e unilateral de nosso pai, em razão de um inesperado prêmio de loteria, bem como de um 32

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fato insólito que o atormentava há algum tempo. Luiza talvez sequer tenha sido consultada sobre o assunto, apenas comunicada. “Voltando da escola, encontrei minha casa em polvorosa: íamos nos mudar para Goiás. Não tive tempo para compreender o que estava acontecendo. Tudo se desenvolvendo muito rapidamente. Móveis desmontados. Caixas amontoadas. Um dia, a sorte lhe sorriu, e ele ganhou num jogo de letras, denominado Kosmos. Naquela época, era dono de uma venda, ali na esquina da Igreja Sagrado Coração de Jesus, em terreno pertencente ao turco Nicolau. Recebeu o prêmio, vendeu a venda e se mandou prá Goiás, como ele gostava de dizer: ‘de mala e cuia’.” Se os dez anos iniciais da vida conjugal em Formiga não foram excepcionalmente prósperos (“como ele queria ”), estiveram dentro de uma faixa aceitável de conforto. Intimamente, minha mãe confiava na sua capacidade de evoluir. Contudo, não pôde dar continuidade a seu projeto de vida em razão da mudança de domicílio.

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A MUDANÇA Os Câmara eram, ao contrário da família de minha mãe, de origem mais urbana e também de natureza menos religiosa. Não eram católicos praticantes, como a maioria absoluta da população da cidade, embora, vez por outra, fossem à missa e a festividades da Semana Santa. Um certo ramo dessa família seguia a seita das “Testemunhas de Jeová”, portanto totalmente divorciados da doutrina católica, por não reconhecerem a divindade de Jesus. Talvez por causa disso, Geraldo tenha se deixado influenciar por uma e outra religião, por crendices e simpatias, conforme as circunstâncias, tornando-se muito supersticioso, temendo feitiço e mau-olhado. Era devoto de Nossa Senhora Aparecida, porém não o suficiente para vencer os medos e a insegurança decorrentes de sua frágil formação religiosa. A decisão de se mudar com a família para o Estado de Goiás deveu-se mais a um fato insólito do que, efetivamente, por não “ganhar dinheiro como ele queria ”. Pessoas mais antigas comentavam que Geraldo acreditava que “haviam feito alguma coisa contra ele”, pois não conseguia se estabilizar economicamente em Formiga. Meu pai tinha um espírito jovial, sempre alegre e brincalhão, sendo que, esquecido de suas superstições e medos, ou talvez para disfarçá-los, fazia chacotas com todos, até mesmo com pessoas que, em respeito à senilidade ou condição social e física delas, não deveriam ser alvo de seus chistes. Segundo conta Rui, “bem na porta da cozinha de nossa casa havia um chafariz cuja água era de uso de todos os moradores daquele lugar. E bem perto da porta de nossa cozinha, fazendo parte do que chamávamos de nosso quintal, havia uma 35

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minúscula casinha de um cômodo só, caindo aos pedaços, em que morava uma velhinha benzedeira que também tinha fama de feiticeira. Meu pai, sempre que passava ali, a chamava e a velha perguntava o que nosso pai queria e ele dizia: ‘só queria saber se você ainda não morreu’ e dava gargalhadas. Uma implicância sempre desautorizada pela nossa saudosa mãe”. A velha senhora, irritada com essa afronta diária, teria lhe lançado uma maldição, mais ou menos nos seguintes termos, ainda conforme o relato de Rui: - “Ô sô Geraldo, eu não quebro suas pernas e te deixo na cama, porque você tem sua esposa que é uma santa e os meninos pra tratar, mas aqui em Formiga você não vai ganhar nem esmola prá viver.” Geraldo teria se deixado influenciar por essa ameaça de mau agouro da “velha feiticeira”, creditando a ela a dificuldade de se estabelecer com sucesso em Formiga. O fato é que meus pais não tinham recursos financeiros suficientes para montar um comércio sortido e com grande estoque, portanto a rentabilidade da venda era proporcional ao investimento. Obviamente que não podiam concorrer, de imediato, com os grandes comerciantes já estabelecidos na cidade. Seriam necessárias persistência e paciência, mas Geraldo, dominado pelo desânimo e pela superstição, achava que a melhor solução seria procurar oportunidades em outro lugar. Desde o governo Vargas, havia uma certa euforia nacional com relação à chamada “Marcha para o Oeste”, que visava à conquista dos sertões brasileiros, atraindo para lá gente de diversas origens. No imaginário popular, o futuro promissor estaria no Brasil Central, para onde já se planejava o deslocamento da capital do país, o que, de fato, seria concretizado no Governo de Juscelino Kubitscheck, na década de sessenta. Assim, no final de 1952 ou início de 1953, meu pai partiu com a família para buscar melhores oportunidades naquela região. 36

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A VIDA NO PLANALTO CENTRAL Minha mãe, desde o início, não queria ter se mudado para Goiás, porém acompanhou o marido, honrando os votos do matrimônio. Ela exigiu, entretanto, que sua irmã Floripes, o marido e o filho de um ano de idade fossem levados por Geraldo para essa aventura no Brasil Central. De fato, a companhia de tia Floripes foi fundamental para que Luiza suportasse os difíceis primeiros meses naquele Estado, bem como os anos que se sucederam, embora sempre sonhasse com o retorno a Formiga. A reconstituição desse período vem, ainda, de um depoimento colhido de meu irmão Rui que, por ser o filho mais velho, à época com dez ou onze anos, lembra-se com mais clareza dos detalhes. A família residiu, inicialmente, num vilarejo chamado Matão [hoje, a cidade de Ouro Verde de Goiás], a cerca de 35 quilômetros de Anápolis, GO, no qual não havia qualquer infraestrutura urbana. A motivação para a escolha dessa localidade teria vindo de Aristides Ribeiro, que fora colega de meu pai como Oficial de Justiça, e por quem ele nutria fraternal amizade. Aristides tinha um parente que administrava uma fazenda naquela região e certamente propôs algum tipo de sociedade a Geraldo, que ficaria encarregado de aproveitar a produção leiteira da fazenda, dedicando-se a fabricar laticínios para serem vendidos nas cidades das redondezas. O problema é que uma temporada de chuvas se abateu sobre a região, deixando a localidade incomunicável, em razão do péssimo estado das estradas. Sem meios de transporte, quase toda a produção se perdeu, sendo inevitável o prejuízo. Recorda-se Rui de que, em razão desse isolamento, os mantimentos foram se escasseando ao ponto de tia Floripes ter que refogar o arroz e preparar outros alimentos com manteiga de leite, esta, sim, em demasiada fartura. 37

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Além desse infortúnio, minha mãe e tia Floripes padeciam para cuidar dos filhos pequenos e dos afazeres domésticos, em razão da demora de cerca de três meses para receber o mobiliário despachado de Formiga por via ferroviária. Quando a mudança chegou, elas explodiram em alegria e passaram a desembalar os utensílios. Na ansiedade de decorar a casa e, principalmente, guardar as louças, improvisaram umas estantes que não suportaram o peso e desabaram, quebrando-se toda a louça. As duas se abraçaram, entre risos e lágrimas, lamentando o ocorrido. Ainda em Matão, Telésforo Campos, marido de tia Floripes, adoeceu e veio a falecer. Isso colaborou para que tanto Luiza quanto Floripes fossem tomadas de maior desgosto pela permanência naquela localidade. Ambas sonhavam com a volta para Minas. Meu pai, no entanto, relutava, pois acreditava que, em Goiás, estaria livre do “feitiço que lhe puseram em Formiga”. Ele decidiu, então, fixar residência na cidade de Anápolis, GO, onde poderia dar maior conforto à família e se dedicar ao comércio, atividade de sua preferência. Em Anápolis, a família morou, inicialmente, num barracão ao fundo de um terreno que Geraldo adquirira e onde, aos poucos, foi construindo uma grande casa. Luiza, mesmo descontente, cuidava dos afazeres domésticos e dos filhos com zelo e economia, deixando o marido livre para trabalhar. Geraldo adquiriu uma porta de comércio no Mercado Municipal e se cadastrou na Associação Comercial. Muito ativo e participativo, seu comércio se solidificou e expandiu, sendo que, mais tarde, veio a ser o administrador daquele conglomerado comercial. A mudança para a nova casa ocorreu depois de mais ou menos um ano. Prova, ainda, da boa saúde financeira da família foi o fato de ter continuado a dar guarida a Floripes, agora viúva e com o filho pequeno, bem como ter acolhido outros parentes provenientes de Formiga. Além do sucesso em seus empreendimentos, Geraldo também foi bafejado, mais uma vez, pela sorte. Rui, num fantasiado 38

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relato, certamente repercutindo a fértil e bem-humorada imaginação do pai, diz que, em certa ocasião, Geraldo caminhava de volta para casa, depois de um dia de trabalho, e pisou num pedaço de jornal que fora tocado pelo vento até seus pés. Era um retalho de uma edição recente de um diário local. Ali estava publicado um edital da Associação Comercial com a relação de dois ou três de seus membros que haviam sido contemplados com uma “casa de morada”, sorteio promovido por aquela entidade para incentivar e atrair empreendedores para a região. Porém, o tal recorte de jornal não trazia o edital em sua totalidade, e podia-se ler apenas parte do nome de um dos contemplados, “Geraldo Ro/”. Como seu nome completo era Geraldo Rodrigues Câmara, compareceu no dia seguinte ao escritório da Associação Comercial, constatando que era um dos contemplados, tendo chegado a tempo, antes de expirar o prazo para reclamar o benefício. Tratava-se de boa casa que veio aumentar-lhe o patrimônio. Contudo, para Luiza, o retorno financeiro não aliviava o desconforto da vida em Goiás. O clima escaldante na maior parte do ano e as precárias condições de saneamento básico da cidade favoreciam para que a região fosse, com muita frequência, assolada por epidemias de febre amarela, febre tifoide, além da doença de Chagas e da hanseníase. A par disso, para lá afluía toda sorte de gente, mesclando famílias bem-intencionadas com aventureiros. Eram marginais foragidos de outros centros, mendigos, prostitutas, oportunistas e exploradores inescrupulosos. Mascates turcos, ou judeus, batendo de porta em porta, oferecendo suas mercadorias com sotaque que dificultava as negociações. Ciganas abordando as pessoas com a promessa de ler-lhes o presente, o passado e o futuro – talvez Geraldo, pelo menos uma vez, deve ter se consultado com elas. Morféticos pedindo esmola, estendendo os chapéus seguros pelos cotocos das falanges deterioradas pela doença. Os amoladores de faca, punhais, peixeiras e tesouras anunciando, a plenos pulmões, seus serviços. Meu primo José Maria e eu estranhávamos os nordestinos, com seus chapéus e gibões de couro, bem como tínhamos medo dos “goianos dos pés rachados” 39

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a quem se imputava a autoria de todos os homicídios e chacinas que aconteciam na região. Policiais eram raros. O que imperava lá, como Luiza deixou consignado em seu diário, “era a lei da bala”. Existiam, porém, duas igrejas na cidade, a Igreja Matriz de Santana e a de Bom Jesus, de sorte que minha mãe não se afastou da religião, nem deixou esmorecer sua inabalável fé nos desígnios de Deus, na qual sempre buscou inspiração para superar as adversidades. “Lá nasceu [nasceram] os 2 últimos filhos. Gastamos a pequena economia, a sorte não ajudou para ganhar coisa que pagava a pena.”

Embora tenha escrito que “a sorte não ajudou pa-ra ganhar coisa que pagava a pena ”, seu comentário, feito depois de mais de trinta anos, não faz justiça à realidade dos fatos, talvez porque o tenha escrito ainda sob as vivas memórias da penosa vida que tivera, após aquela aventura no Brasil Central.

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DE VOLTA A FORMIGA Em Anápolis, minha mãe foi acometida pela febre tifoide. Mas se recuperou, embora tenha corrido sério risco de morrer. Depois desse susto, voltou a pressionar o marido para retornar a Minas. A contragosto, ele concordou. No final de 1957, Geraldo liquidou o que tinha em Anápolis, as casas e a porta de comércio, formando um bom capital para reiniciar a vida em Minas. Além disso, Luiza, com seu senso de economia, ao longo desses anos, fez, sem que o marido soubesse, uma espécie de poupança, colocando em latas de óleo vazias, as moedas que “sobravam” do fechamento diário das contas. Ela temia que os negócios do marido desandassem, e esse dinheiro serviria para custear a volta da família para Formiga. Por outro lado, considerava também a possibilidade de meu pai aceitar o retorno à cidade natal, mas só por pouco tempo. Nessa hipótese, ela compraria uma casa para se fixar, de forma definitiva, em Formiga, pois não estaria disposta a voltar ao Planalto Central. Como se verá, a segunda hipótese foi a que efetivamente ocorreu, entretanto não exatamente como ela imaginara. O meio de transporte mais seguro e econômico, à época, era o ferroviário. A viagem de Anápolis a Formiga, nas famosas “marias-fumaça” da RMV, sigla da, hoje extinta, Rede Mineira de Viação, jocosamente traduzida como “rincha mula veia”, constituía-se numa verdadeira aventura, principalmente para as crianças. Imagens e sons ficaram gravados para sempre em minha memória e na de meu primo José Maria, ambos com seis anos de idade: o barulho das rodas do trem sobre os trilhos, o cheiro de fumaça, o vai e vem de pessoas pelos vagões e a locomotiva rasgando o mistério da noite ou afrontando o sol da manhã com sua corrida resoluta. O temor de que o trem descarrilasse fazia nossos corações se apertarem. O desconfortável 41

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sono sobre duros bancos de madeira nos deixava irritadiços. Porém, o momento em que se abriam as “matulas”, feitas à base de frango e farofa, nos animava. Outra grande emoção eram as baldeações de trens, normalmente feitas à noite. Os passageiros desciam e ficavam ao relento, junto à linha férrea, esperando o “noturno” que viria de outra localidade. Quando se ouvia o apito ao longe, todos esticavam o pescoço procurando o trem que se anunciava. Havia uma pequena euforia quando a maria-fumaça, feito um dragão nervoso, surgia soltando fogo e vapor pelas ventas. O sino de alerta vibrava insistentemente. Depois, o som estridente das freadas e a corrida para se acomodarem nos vagões, enquanto o Chefe da Estação, trilando seu apito, pedia rapidez. Após a excitação das primeiras horas, íamos nos cansando, aumentando nossa irritação e ansiedade para chegarmos ao destino. Luiza nos dizia que Formiga estava logo atrás do morro que parecia correr ao lado do trem. Eu colava o rosto no vidro da janela e ficava ali entretido, observando a paisagem até ser vencido pelo sono. Quando acordava e percebia que os morros ainda corriam ao lado da locomotiva, irritado, questionava minha mãe por que a “Maria Fumaça” não os contornava e chegava logo a Formiga. Alguns adultos se divertiam com minha impaciência e puxavam conversa para me distrair. Perguntavam-me nome, idade e outras coisas que crianças sabem responder de pronto. Ao final, me provocavam dizendo que eu era um goiano inteligente. Fechava a cara e protestava dizendo que não era goiano, mas mineiro, mineiro de Formiga. Essa resposta praticamente se tornou meu apelido, de sorte que, nas paradas para almoço ou baldeações, alguns adultos me cumprimentavam chamando-me de “mineiro de Formiga”. Sentia-me orgulhoso de ser individualizado como tal. Tinha orgulho de ser mineiro e mineiro de Formiga. Era um sentimento atávico, e a tal frase, embora tenha sido dita de forma espontânea, não fora cunhada por mim. Mais tarde, já na escola primária, aprenderia o hino da cidade que tem os versos: “Meu orgulho maior é ser mineiro/E mineiro nascido em Formiga”. 42

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“Voltamos para Formiga.”

Em Formiga, meu pai adquiriu uma casa que precisava ser reformada. Enquanto isso, alugou outra no Bairro dos Quartéis para acomodar a família. Comprou, também, uma caminhonete e abriu uma porta de comércio. As crianças em idade escolar iniciaram, ou deram continuidade, aos estudos, e minha mãe pôde, finalmente, arrumar e decorar sua casa na cidade de onde nunca gostaria de ter se afastado. Além do mobiliário básico e necessário, Geraldo adquiriu uma máquina de costura Singer para minha mãe, que seria muito útil mais tarde. A mesa era farta e os filhos recebiam presentes de significativo valor, tais como bicicleta Monark, relógio Ômega e caneta Parker com pena de ouro, além de brinquedos. Meu pai comprou, também, uma vitrola, um imenso aparelho, assemelhando-se a um móvel, que tinha embutido toca-discos, amplificadores e autofalantes, além de compartimento para guardar os discos de vinil. Era capaz de suportar até doze discos, podendo reproduzir música por várias horas. Geraldo e Luiza convidavam os casais amigos, que traziam seus próprios discos “long-play”, reunindo-se para ouvir os grandes sucessos musicais da época, tais como “O Ébrio” e “Porta Aberta” de Vicente Celestino, além de canções de Orlando Silva, Nelson Gonçalves, Miltinho e tantos outros, sem esquecer as “Rainhas do Rádio”, Dalva de Oliveira, Emilinha Borba, Ângela Maria, Marlene. Também, por ocasião da Copa do Mundo de 1958, meu pai e os amigos se amontoavam concentrados ao redor de um grande rádio de marca Philips, acompanhando as transmissões de partidas de futebol. Luiza se irritava quando o grupo se desfazia de repente, como que se implodindo, aos gritos de gol. As coisas pareciam correr bem. Contudo, essa estabilidade econômica da família foi efêmera, em razão de Geraldo não ter logrado sucesso nos negócios. Aos poucos, foi alienando o que possuía, inclusive a casa que comprara e na qual sequer chegamos a morar. Supersticioso, costumava dizer que “Formiga não tinha futuro” e decidiu voltar para seu “El Dorado”, o Brasil Central. 43

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A RUPTURA No início de 1960, meus pais tentaram chegar a um consenso sobre voltar ao Planalto Central, mas Luiza não cedeu, pois acreditava piamente que era possível, sim, progredir em Formiga. “Com pouco tempo, o marido voltou para Goiás.”

Geraldo, então, partiu sem a família, prometendo, tão logo ganhasse dinheiro suficiente, voltar para buscá-la ou, quem sabe, tentar se reestabelecer na cidade novamente. Luiza parecia pressentir que esse arranjo não iria funcionar. Os dois mal se despediram, era muita emoção e revolta. Em seu diário, deixou registrada sua indignação: “[Ele] Disse que aqui não ganhava para dar conta dos filhos. Essa foi uma desculpa sem pé nem cabeça !”

Salvo telegrama lacônico comunicando a chegada em Anápolis, as primeiras notícias de meu pai talvez tenham sido recebidas por minha mãe um ou dois meses depois de sua partida. Os meios de comunicação, naquela época, eram bastante incipientes. Embora os serviços dos correios fossem confiáveis, padeciam da morosidade decorrente dos precários meios de transporte. Para comunicados mais urgentes, usava-se o telégrafo e sua linguagem lacônica, tarifado por palavra. Era também comum que as pessoas se valessem de viajantes, conhecidos ou pessoas “de confiança”, como portadores de cartas e encomendas para as localidades a que se dirigiam. O sistema de telefonia estava no mesmo patamar de precariedade. A grande maioria da população, que não possuía telefones em 45

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razão do altíssimo preço da assinatura, utilizava o Posto Telefônico para agendar ligações interurbanas que podiam demorar dias para serem completadas. Um funcionário da companhia telefônica vinha à casa do solicitante para informar data e horário em que a ligação seria completada, o que ocorria, também, com o destinatário da chamada. Ambos tinham, evidentemente, que comparecer ao Posto Telefônico, conforme agendado, para que se consumasse a comunicação numa das cabines próprias. Havia pouca, ou nenhuma, privacidade. As cartas eram recebidas com muita emoção e ela as lia para nós, as crianças, ávidas por notícias do pai. Percebia-se claramente quando saltava trechos que julgava inconvenientes ou “inventava” passagens nas quais o pai, supostamente, mencionava cada um dos filhos, declarando sentir muitas saudades. Com menor frequência, recebia comunicados para se dirigir ao Posto Telefônico para rápidas e emocionadas conversas com o marido. Cartas, telegramas e telefonemas foram escasseando. Remessas de dinheiro, ao que parece, nunca houve. Rapidamente, a situação financeira se agravou, fazendo com que a família, agora representada por Luiza e seus cinco filhos menores de idade, mergulhasse na mais rasa miséria. “Eu fiquei com 35 anos, 5 filhos de menor [...]. A moça com 14 anos empregou-se no serviço doméstico.”

Há que se fazer um pequeno ajuste com relação à idade de Luiza, pois, como meu pai voltou para Goiás no início de 1960, ela teria, então 38 anos, e não 35. Completaria 39 anos em março. Quantos aos filhos, de fato, todos eram “de menor”. O mais velho, Rui, faria 18 anos em novembro; Ruth, 15, em abril; Rubens, 8, em junho; Roberto, 6, em julho; e Robeson, 4 anos de idade, em agosto daquele ano. Sem casa para morar, sem alimento para dar a seus filhos, pensou em distribuí-los aos cuidados de parentes. O problema é que 46

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os familiares próximos também não desfrutavam de melhores condições financeiras. “Eu não tinha casa, nem 1 tostão e nem família para ajudar. Eu me conservei honesta de mãos dadas a N.S. Aparecida, [...]”

A honestidade a que Luiza se refere vai além da postura de não mentir, de não omitir, de não dissimular ou de não agir com esperteza para levar vantagem em tudo. Mas envolve, principalmente, a obediência incondicional às regras morais e religiosas, ainda que as circunstâncias adversas a tenham convidado, sem sucesso, a quebrá-las, como se verá. “ [...] lavando roupa, buscando lenha nas horas vagas, porque trabalhava em restaurante e ganhava umas migalhas para fazer todas as despesas e não dava para pagar aluguel, uma casa de 5 cômodos, pagava CR$15,00 novos.”

A despeito das dificuldades, minha mãe guiava-se pela retidão. Mantinha alto seu senso de justiça e de direito. Assim, como a renda que tinha não era suficiente para pagar o aluguel da casa em que morávamos, sofria grande desconforto por permanecer nela como inadimplente. Impiedoso, o senhorio fazia ameaças de despejar a família violentamente, mandando, muitas vezes, pessoas mal-encaradas rondarem a casa à noite, jogando pedras ou batendo nas portas e janelas para intimidar Luiza e os filhos. Com a máquina de costura, ela fazia reparos em roupas dos vizinhos para conseguir algum dinheiro, ao menos para pagar o aluguel. Porém, a freguesia era pequena e também de famílias humildes, de sorte que seu trabalho rendia pouco. Com muito pesar, se 47

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desfez da máquina. Ao que parece, foi dada ao senhorio para quitar os aluguéis atrasados e em garantia por alguns meses mais de permanência. Minha mãe, num gesto de desespero, tentou colocar os filhos menores num patronato, embora soubesse que não seriam aceitos por não serem exatamente órfãos. No entanto, certamente diante de sua súplica emocionada, a direção daquela instituição, por intermédio do Sr. Claudinê Sílvio dos Santos, se condoeu da situação e aceitou os dois filhos mais novos. Eles poderiam ficar no orfanato durante o dia todo, mas teriam que pernoitar em casa. Já era uma grande ajuda, pois a mãe e a filha Ruth, esta com 14 anos de idade, puderam se empregar como serviçais domésticas, enquanto o filho mais velho já estava em algum subemprego. Eu deveria ficar na casa de Tia Floripes durante o dia, mas, sentindo-me na obrigação de também prestar alguma ajuda, procurava ganhar algum dinheiro como engraxate de sapatos, ajudante em acabamentos de construções residenciais, vendedor de doces e pastéis pelas ruas da cidade, catador de ferro velho. Conseguia alguns trocados, que imediatamente repassava à mãe como uma mínima colaboração para reforçar o orçamento da casa. Luiza, apesar da penúria, não consumia todo aquele “capital”, separando algumas moedas que me devolvia para que comprasse balas para mim e os irmãos. Além de se empenhar a dar abrigo e sustento à família, minha mãe tinha especial preocupação com a educação escolar dos filhos. Costumava nos dizer que “a única riqueza que podemos acumular e que ninguém poderá nos tirar é o estudo”. Assim, o fato de ter conseguido colocar os dois filhos mais novos no patronato deu-lhe alguma tranquilidade, pois, além de uma alimentação regular, eles já seriam iniciados na alfabetização. Mais tarde, ela conseguiu, também, a ajuda dos Irmãos Vicentinos, irmandade a que seu pai, João Soares Barbosa, pertencera, que lhe cederam um pequeno casebre para morar. A Irmandade de São Vicente de Paula ainda seria importante em outra ocasião, mas, naquele momento, tirava-lhe um grande peso dos ombros que era estar ocupando, sem a devida remuneração, casa alheia. 48

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“Passei a morar numa casinha vicentina de chão, sem luz, fogão de lenha.”

A sucinta descrição que Luiza fez dessa “casinha ”, a bem da verdade, não omitiu muita coisa. Tinha três cômodos minúsculos e era coberta por telhas, sem forro. Havia mais um cômodo, contíguo à cozinha, mas com entrada independente onde morava uma anciã, também amparada pelos Irmãos Vicentinos. Os filhos menores torciam para que a tal velhinha falecesse logo, para que mais um quarto fosse integrado à casa. Não me recordo, ao certo, se a tal senhora faleceu ou foi transferida para um asilo, o fato é que, pouco tempo mais tarde, a família “ganhou” mais um cômodo. Embora estivéssemos, agora, livres de sermos literalmente despejados na rua, a situação da família, em si, era de total penúria, o “zero absoluto”.

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BELEZA TEM PREÇO; VIRTUDE, VALOR Antes ir morar na “casinha vicentina de chão ”, Luiza vivia atormentada por não poder pagar o aluguel e pelas constantes ameaças de despejo violento que o senhorio lhe fazia. Em razão disso, parentes e pessoas amigas se aproximavam para ajudá-la. Algumas traziam mantimentos, outras, dinheiro ou roupas usadas. Luiza, embora constrangida, recebia essas doações de bom grado. Por outro lado, vizinhas, movidas pela curiosidade doentia de constatar a miséria alheia, vinham nos visitar, faziam muitas perguntas, querendo saber o que estava faltando, se as crianças tinham almoçado ou jantado e encerravam dizendo que alguma coisa teria que ser feita etc. e tal, mas nada traziam, nem ofereciam ajuda. Minha mãe passou a evitar essas mulheres de forma não muito polida. Quando elas se aproximavam, normalmente em dupla, já ia dando desculpas de que teria que sair para trabalhar e que não poderia atendê-las. Elas ficavam ali com cara de tacho, dizendo que, além de pobre, Luiza era orgulhosa e mal-educada, que largava os filhos presos dentro de casa, indo pra rua fazer não-se-sabe-o-quê. Em certa ocasião, uma dessas mulheres veio até a nossa casa, com um bolo caseiro. Pediu desculpas pela intromissão e disse que Luiza teria que tomar providências urgentes ou a situação ficaria insustentável. Acrescentou, então, que talvez ela tivesse a solução. Mas a tal mulher, percebendo que eu acompanhava a conversa à distância, praticamente puxou Luiza para outro cômodo para lhe falar mais reservadamente. Poucos minutos depois, ouviu-se minha mãe gritando: 51

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- “Ponha-se daqui para fora, sua fofoqueira. E leve esse bolo, também!” Embora fosse ainda muito criança, percebi que alguma proposta indecorosa havia sido feita por aquela bruxa, que, aliás, não apareceu mais. Essa mulher, soube-se mais tarde, mantinha um bar de canto de rua e havia proposto a Luiza, então uma mulher bonita de trinta e oito anos, que prestasse favores sexuais a alguns de seus fregueses, mediante remuneração. Claro que ela se sentiu ofendida e enfurecida, mas conteve-se para não ir atrás daquela cafetina e esganá-la. Contentou-se em jogar-lhe o bolo, que se espatifou no chão, para a decepção das crianças. Luiza não ficou livre desses assédios. Parentes e amigos vinham pressioná-la no mesmo sentido, porém de forma mais respeitosa. Sugeriam que Luiza deveria, sim, buscar a companhia de um homem de bem, que a assumisse e aos filhos, casando-se com ela. Mas relutava em aceitar essa sugestão, em razão de seus princípios morais e religiosos. Além disso, ela captava nos olhos dos filhos a estranheza que lhes afligia com a possibilidade de um estranho vir a ocupar o lugar do pai deles. Num certo dia, presenciei uma conversa entre minha mãe e sua irmã, em tom emocionado, quase cochichado, sendo interrompidas por seus próprios soluços e lágrimas. Elas estavam sentadas, uma de frente para a outra, sendo que tia Floripes insistia que Luiza tinha o direito de reconstruir sua vida. Na verdade, viera intermediar uma aproximação de um vizinho, segundo ela, homem bom e religioso, que estaria disposto a se casar com minha mãe. Citou a si própria que já se casara novamente e era feliz. Luiza retrucou dizendo que não era viúva, mas casada. Viúva de marido vivo, ironizava. Tia Floripes, em contrapartida, acrescentou que talvez o tal vizinho sequer fizesse questão de se casar. Mais uma vez, minha mãe rechaçou a ideia, dizendo que, se ele não fazia questão do casamento, certamente não iria respeitá-la. Por fim, minha tia desistiu de argumentar e se despediu, dizendo que Luiza iria acabar com sua beleza e juventude 52

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de tanto trabalhar e, mesmo assim, sem ter onde morar e como sustentar os filhos. Outras pessoas, bem-intencionadas, também a bombardeavam com o mesmo tipo de argumentação, sempre colocando como trunfo o fato de ela ainda ser jovem e bonita. Para seu constrangimento, um ou outro pretendente, certamente encaminhado por essas pessoas, vinha visitá-la. Mas, para que não pairasse sobre ela dúvida alguma, colocava uma cadeira bem à frente da porta da rua, onde a visita se sentava, e pedia aos filhos que ficassem por perto. Certa vez, um desses pretendentes, ao se despedir, colocou algum dinheiro em sua mão. Desnorteada, hesitou um pouco, mas o devolveu ao tal cavalheiro. Ele insistiu, dizendo que “era sem compromisso algum”, mas ela não aceitou. Esse tipo de assédio deixou de acontecer a partir de uma conversa exaltada entre Luiza e outras duas ou três pessoas, entre as quais, sua irmã Floripes. Salvo em raras ocasiões, e aquela fora uma delas, minha mãe não costumava erguer a voz, esbravejar. Porém, estressada com a insistência dessas pessoas de que a única saída para a difícil situação em que se encontrava seria “arrumar um homem” para cuidar da família, praticamente aos berros e aos prantos, disparou contra elas uma espécie de sermão emocionado e desesperado, sem se preocupar comigo, que assistia a tudo assustado. Evidentemente, decorridos mais de cinquenta anos, não tenho como reproduzir fielmente, palavra por palavra, aquele discurso, exceto uma frase, que, por sua contundência, tornou-se inesquecível. Ela começou pedindo que a deixassem em paz, que confiava na ajuda de Deus e Nossa Senhora para dar conta de criar seus filhos. Se tivessem emprego para lhe oferecer ou quisessem prestar alguma ajuda, que aceitava. Se quisessem rezar por ela, que rezassem. Não se importava se estava perdendo a juventude e a beleza, iria lutar sozinha, até morrer, para criar seus filhos. Era uma mulher casada, abandonada pelo marido, mas honesta. Se fosse feia, certamente lhe dariam uma bíblia pra rezar, mas por a acharem bonita, mandavam homens baterem à sua porta. 53

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- “Não é virando puta que vou salvar meus filhos”. A emocionante imagem de seu rosto banhado de lágrimas, depois desse desabafo, parece flutuar no espaço até hoje, e a beleza singela de sua fala ainda ecoa no tempo, rimando com outro discurso, mais longo e de linguagem rebuscada, discutindo a mesmíssima questão da beleza e da virtude que, para os pobres de espírito, não podem coabitar a mesma alma. Trata-se de uma passagem de um clássico da literatura mundial, “Dom Quixote de la Mancha” de Miguel de Cervantes, escrito entre 1605 e 1615, que nos conta a história de uma linda camponesa, Marcela, que cativava a todos com sua graça. Homens de todas as origens e cabedais se apaixonavam por ela, que, sistematicamente, dizia não a todos. Mas um campônio, pobre e feio, Crisóstomo, que também se apaixonara por Marcela, ao ser recusado, acabou por se suicidar. Houve uma comoção na vila. A população culpava Marcela pela tragédia, pois Crisóstomo era considerado um homem bom, trabalhador e lhe tinha verdadeiro amor. Entendiam que Marcela, com sua frieza de coração, o teria levado à morte. A revolta ainda foi maior ao notarem que ela fora presenciar o enterro de Crisóstomo. Indignados, queriam saber como ela ousava vir testemunhar o resultado de sua crueldade. Em homenagem a Luiza Soares de Jesus, destaca-se parte da fala de Marcela: “Dizei-me: se, assim como o céu me fez formosa, me fizera feia, seria justo queixar-me eu de vós por me não amardes? E de mais, deveis considerar que eu não escolhi a formosura que tenho; que, tal qual é, o céu ma deu gratuitamente, sem eu a pedir nem a escolher; [...] tão pouco mereço eu ser repreendida por ser formosa, que a formosura na mulher honesta é como o fogo apartado, ou como a espada aguda, que nem ele queima, nem ela corta a quem se lhes não aproxima. A honra e as virtudes são adornos da alma, sem os quais o corpo não deve parecer formoso, ainda que o seja. Pois se a honestidade é uma das virtudes que ao corpo e alma mais adornam e aformosentam, por que há-de perdê-la a que é amada por formosa, para corresponder à intenção 54

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de quem, só por seu gosto, com todas as suas forças e indústrias, aspira a que a perca?” Somente Luiza soube por inteiro, e, aqui, pode-se conjecturar em parte, quão difícil terá sido conservar-se “honesta de mãos dadas a N.S. Aparecida ”, pois era uma mulher bonita, que vivera um casamento de amor por vinte anos, e viu-se, de súbito, sozinha, carente não só de dinheiro, de companhia, de afeto, mas, também, de saciar os legítimos apelos da carne. Para agravar seu tormento, mulheres à sua volta, parentes, amigas, vizinhas, cafetinas e fofoqueiras ardiam-se no fogo da inveja perante sua beleza e queriam, sob o pretexto de que era o único modo de proteger os filhos, jogá-la nos braços de quem estivesse disposto a pagar por sua honra, ou desonra, e depois, certamente, virem apedrejá-la. Mas Luiza firmara, desde sempre, compromissos com sua própria dignidade, com os preceitos de sua religião e com os sentimentos e amor de seu coração, não se deixando seduzir pelos argumentos das boas intenções, nem se vencer pelo engodo das más. A pergunta da linda camponesa de Cervantes calou a multidão. Porém, Marcela e Luiza, cada qual no seu linguajar, uma sob o traço genial do castelhano e a outra sob o calor da emoção, mas ambas convictas de seus propósitos, não se fizeram de rogadas e, elas mesmas, responderam: - “O céu por ora não tem querido que eu ame por destino; e o pensar que hei-de amar por eleição é escusado”. - “Não é virando puta que vou salvar meus filhos”.

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ZERO ABSOLUTO A expressão “zero absoluto” é uma referência à mais baixa temperatura que pode ser alcançada, ou seja, duzentos e setenta graus centígrados negativos. Trata-se de uma temperatura cientificamente presumida e não comprovada de forma empírica, mas cujo sentido figurado melhor qualifica o nível de pobreza em que a família se encontrava. Crianças, quando privadas dos insumos básicos de sobrevivência, tendem a amadurecer mais rapidamente. Assim, os filhos de Luiza, embora não pudessem subverter, ou apressar, o ritmo natural do desenvolvimento físico e etário, tinham consciência de que havia urgência em se tornarem adultos, ao menos mentalmente. Cada qual tinha que prestar sua colaboração, ainda que mínima, à salvação da família. Muitos dos sonhos, fantasias e brincadeiras infantis tiveram que ser engavetados na alma para, no futuro, quem sabe, recuperá-los com seus próprios filhos. Luiza conseguira que os dois filhos mais novos fossem aceitos no Patronato São Luis. Com relação a mim, que tinha por volta de onze anos, ela recomendou que eu me habilitasse como coroinha na Igreja Matriz de São Vicente de Férrer, em Formiga, paróquia sob a administração dos padres dehonianos, Congregação do Sagrado Coração de Jesus. Além do aspecto religioso, havia um atrativo a mais, principalmente para meninos pobres: após a celebração das missas, era oferecido a esses ajudantes-mirins um farto café da manhã com leite, pães e frutas. Mas o importante é que, à época, em face das reformas do Concílio Vaticano II, a Igreja Católica passou a se modernizar com o objetivo de manter seu “rebanho” corrente e atrair novos fiéis ou 57

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resgatar os que dela haviam se afastado. Também havia um programa para identificar e despertar as “vocações sacerdotais”, que, segundo as estatísticas, estavam diminuindo. Nas reuniões com os coroinhas, os padres falavam sobre os seminários, organização, dependências, currículo escolar, atividades etc., mostrando fotos e, algumas vezes, com depoimentos de seminaristas que estavam passando as férias na cidade. Arrematavam dizendo que se alguém “sentisse o chamado para a vida sacerdotal”, deveria manifestar essa intenção para ser preparado para o ingresso no seminário. Obviamente que, diante de tantos atrativos, eu não tive dúvidas em dizer ao padre Cornélio Korowsky, que era o responsável por recrutar os futuros seminaristas, que tinha interesse na carreira religiosa. Todavia, embora os seminários não fossem instituições com fins lucrativos, não eram beneficentes. As famílias dos seminaristas tinham que fornecer um enxoval completo, pois o regime era de internato, e deveriam fazer alguma doação em dinheiro para a manutenção da entidade. Assim, considerando a precária situação financeira da família, minha mãe apressou-se a me recomendar que desistisse daquele sonho, pois, se dependesse dela a compra de um único lenço para compor o enxoval, não teria como fazê-lo. Contudo, minha mãe tinha especial talento para lidar com as situações aparentemente difíceis de serem equacionadas. Primeiramente, teve uma conversa séria comigo, querendo saber se a vontade de ingressar no seminário decorria apenas dos atrativos que aquela instituição oferecia ou se era consequência de uma real vocação para a vida religiosa. A despeito da pouca idade, eu estava determinado a ajudar a família a sair daquela situação de miséria. Portanto, embora soubesse que Luiza leria minhas íntimas intenções, fui resoluto em afirmar que me sentia verdadeiramente vocacionado para a vida religiosa. Ela, então, passou à segunda parte de sua estratégia, ou seja, encontrar uma forma de custear a ida do filho para o seminário. Sugeriu ao padre Cornélio fazer uma campanha na paróquia em favor de um seminarista pobre, e ela, por sua vez, iria se encontrar como os Irmãos Vicentinos para obter deles alguma ajuda. 58

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De fato, a Irmandade de São Vicente de Paula, que já havia lhe cedido a “casinha vicentina de chão ” para morar, também se dispôs a custear os meus estudos no seminário. Luiza, então, aproveitou o momento para reavivar as diretrizes morais que passava aos filhos, dizendo-lhes que deveriam sempre pautar-se pela honestidade e gratidão, serem verdadeiros, trabalhadores, estudiosos e terem fé em Deus. E, dirigindo-se especialmente a mim, alertou-me sobre a responsabilidade que estava assumindo. Caso não tivesse certeza da vocação, que aquele era o momento certo para desistir. Fui decidido: “Mãe, eu quero ser padre!” Foi um momento de emoção. Minha mãe sabia o quanto aquela frase não era exatamente uma verdade, mas a tomava como tal, pois era o caminho que iria, de imediato, minimizar-lhe o fardo e, mais que isso, garantir uma educação de elevado padrão a um dos filhos, o que seria impossível por seus próprios meios. O custeio prestado pela Irmandade de São Vicente de Paula era bem modesto, decorrente de pequenas doações mensais de seus membros, a maioria constituída de homens simples e pobres. De qualquer forma, foi possível comprar algumas peças de roupas e calçados. Depois, Luiza iniciou uma peregrinação entre famílias conhecidas para doações. Essas não eram muitas, sendo que as roupas ou eram grandes, ou muito pequenas. No entanto, Luiza as aceitava de bom grado, pois as que não servissem para o futuro seminarista seriam repassadas aos filhos menores ou guardadas para serem utilizadas no ano seguinte. Feito o enxoval, chegou o momento da partida. Eu tinha apenas doze anos de idade, porém sabia perfeitamente que aquela seria uma longa viagem. Não se tratava apenas de uma viagem de cento e poucos quilômetros até Lavras, onde ficava o seminário, mas do definitivo corte do cordão umbilical, um mergulho no futuro. 59

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Ela não quis me acompanhar até a estação ferroviária, nem permitiu que meus irmãos fossem lá se despedir. Certamente, temia que a emoção abalasse minha confiança e me fizesse desistir ali mesmo na plataforma, ou, quem sabe, no dia seguinte, já no seminário. Ao se despedir, com seus belos olhos azuis vertendo copiosas lágrimas, minha mãe ainda me passou confiança, dizendo que eu deveria ser firme, não olhar para trás. Lembrava-me de que era experiente em longas viagens e que já vivera longe da cidade natal entre gente e costumes estranhos, portanto, nada tinha a temer. No íntimo, sentia-me culpado por estar indo para uma vida saudável, confortável e instrutiva, deixando para trás a família sem qualquer perspectiva de melhora. Mas prometi a minha mãe que iria estudar, me formar e, então, resgatá-la daquela situação de penúria.

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ENQUANTO ISSO... Paralelamente a minha história, a de meus irmãos também se desenrolava. O primogênito, Rui, zanzava de subemprego para subemprego, trabalhando como pintor de paredes, servente de pedreiro e balconista das Lojas Pernambucanas. Ele tinha diploma de tratorista, obtido numa escola profissionalizante de Pirassununga, SP, mas nunca exerceu esse ofício. Na ansiedade de conseguir melhores condições de trabalho, foi tentar a vida em São Paulo, onde também não conseguia se desvencilhar de ocupações pouco qualificadas. Escrevia à nossa mãe regularmente e, sempre que podia, colocava algum dinheiro no envelope. Contudo, misteriosamente, passou a não mais dar notícias, deixando-a muito preocupada. Além das dificuldades financeiras, somava-se, agora, a apreensão pelo desaparecimento do filho mais velho. Certa tarde, um funcionário dos Correios lhe entregou uma carta com o timbre do Hospital das Clínicas da cidade de São Paulo, dando-lhe conta de que Rui fora encaminhado àquele estabelecimento sob nome fictício, apresentando sinais de ter sido vítima de amnésia parcial de causa desconhecida, e que, depois de tratamento adequado, forneceu nome verdadeiro e endereço. Ao final, solicitava que alguém da família fosse buscá-lo. “O [filho] mais velho por falta do pai ficou doente, sofreu amnésia.”

Luiza não tinha condições de arcar com as despesas para ir a São Paulo buscar o filho. Talvez tenha escrito à direção do Hospital solicitando que o colocasse num ônibus com destino a Formiga ou cidade mais próxima. Ocorreu, no entanto, que Rui chegou inespe61

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radamente na casa da tia Maria, que morava em Angra dos Reis, no Estado do Rio de Janeiro. Ela o acolheu e providenciou sua ida para Formiga. Em poucas semanas, ele já estava em casa, recuperado. Esse incidente chamou a atenção de Aristides Ribeiro, antigo amigo da família, que passou a incentivar Rui a ingressar na Polícia Militar de Minas Gerais, instituição na qual um de seus filhos já assentava praça. Por outro lado, Aurélio Ferreira e sua esposa, Dona Isolina, casal amigo da família da época das “vacas gordas”, deram inestimável ajuda a Rui, acolhendo-o na pensão que mantinham em Belo Horizonte, na Rua Formiga, para se preparar para o concurso da Polícia Militar. De fato, meu irmão logrou aprovação para se incorporar àquela instituição, como soldado, passando, meritoriamente, a várias patentes e, por fim, a graduar-se no Curso de Formação de Oficiais. Meus irmãos mais novos, Roberto e Robeson, chegado o momento que não lhes era mais permitido continuar acolhidos pelo Patronato São Luís, em razão da idade, passaram também aos subempregos. Atendente de supermercado, aprendiz de sapateiro, operário de fábrica de farinha e outras ocupações subalternas fizeram parte do cardápio de atividades dos dois. A isso, somava-se o esforço de Luiza e da filha Ruth, que se mantinham como empregadas domésticas em troca de irrisória contrapartida financeira.

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QUEBRANDO O GELO Permaneci por cinco anos no seminário, recebendo boa formação escolar e religiosa, que foi fundamental para o curso de minha vida. Aguardava, ansiosamente, alcançar os dezoito anos de idade e concluir o segundo grau, sair do seminário, buscar emprego e, finalmente, poder dar minha colaboração ao reerguimento da família. Entretanto, não suportei a pressão interior e abandonei o seminário com dezesseis anos de idade e segundo grau incompleto. Mas foi de caso pensado. Antes, escrevera cartas à tia Maria, a mesma que acolhera meu irmão Rui quando saiu do hospital. Ela tinha boa condição financeira, pois era casada com Manoel de Oliveira Lima, mestre de obras numa grande indústria de construção naval, a Verolme Estaleiros Reunidos do Brasil, em Angra dos Reis, RJ. Eu imaginava que, com a boa formação que tinha, poderia conseguir um emprego naquela empresa. Os tios Manoel e Maria foram a Formiga no final do ano de 1969, aproveitando para visitar a família, que não viam há anos, e, evidentemente, me levar para Angra dos Reis. Luiza se surpreendeu com a situação. Tudo fora planejado à sua revelia, pois eu temia que ela não concordasse com minha saída do seminário. Mas o arranjo já estava feito, e, no início do ano de 1970, parti para o Estado do Rio de Janeiro. Os estaleiros pertenciam a um grupo holandês de construção naval, e, por óbvio, a empresa mantinha um quadro de vagas em aberto para profissionais qualificados nas diversas funções industriais, às quais eu não poderia me habilitar, pois ainda era menor de idade e não tinha o segundo grau completo ou curso técnico profissionalizante. Havia, também, um centro de aprendizado na empresa, 63

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destinado a jovens entre quatorze e dezessete anos, para os ofícios de soldador, calafateiro, pintor industrial e eletricista. Todavia, como as provas de seleção para o primeiro semestre de 1970 já haviam sido realizadas, eu teria que aguardar a próxima seleção a ser feita dentro de poucos meses. Nesse ínterim, arrumei um emprego informal no Clube Bela Vista, que era, majoritariamente, frequentado por profissionais qualificados da empresa, em especial os estrangeiros. Era faxineiro na parte do dia e garçom nos fins de semana. Embora fosse uma ocupação não qualificada, representava boa oportunidade para praticar o inglês básico que aprendera no seminário. De fato, vencendo a barreira da timidez, passei a atender, em inglês, os sócios estrangeiros, holandeses em sua maioria. Quando surgiu a oportunidade para me inscrever no processo de seleção da “escolinha” da Verolme Estaleiros, optei pelo curso de eletricista, que não era bem a profissão de meus sonhos, mas dada a situação, era o que de melhor poderia me acontecer. O nível de escolaridade para essa seleção era elementar, primeiro grau, de sorte que consegui “zerar” as provas. Tudo que tinha que fazer era esperar a publicação do resultado e a convocação para iniciar o aprendizado, que era remunerado à base de sessenta por cento do salário mínimo, além de café da manhã e almoço. Em minha cabeça, havia um turbilhão de ideias, imaginando que, dentro de duas semanas – os pagamentos eram quinzenais –, já poderia enviar algum dinheiro para a família. Tentava visualizar a alegria de minha mãe e irmãos quando recebessem a primeira remessa! Porém, ocorreu um fato surpreendente. No dia do resultado, fui confiante para o portão principal da empresa, onde os aprovados seriam convocados para admissão imediata. Os nomes começaram a ser chamados, em ordem alfabética, e, à medida que aproximava o anúncio de meu nome, o frio no estômago aumentava. Só que, de repente, o homem que fazia a chamada tirou seus óculos de leitura depois de um certo “Paulo de não sei o quê”, agradeceu a presença de todos e pediu que os selecionados o acompanhassem. 64

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Eu simplesmente não podia admitir que havia sido reprovado numa prova de nível tão baixo quanto aquela. Saí em disparada atrás do tal homem e, atabalhoadamente, em rápidas palavras, lhe expus meu drama. O homem não se mostrou surpreso. Pegou a lista de aprovados, correu o dedo nela e me disse que, de fato, eu havia tirado nota dez em todas as provas, porém não recomendara minha admissão porque eu estava num nível escolar bem superior aos demais garotos. O tal senhor, então, disse que, em breve, sem precisar quando, seria aberto aprendizado para contabilistas, desenhistas, projetistas industriais e outras funções que requerem melhor qualificação e que poderia, então, me habilitar. Fiquei desolado. Por um momento, coloquei sob suspeita a tese de minha mãe de que estudar seria a única salvação. Justamente por ter estudado, por saber mais que os outros, é que não conseguira o tão sonhado emprego. Só me restava voltar ao Clube Bela Vista, onde tinha salão e banheiros para limpar. No entanto, um engenheiro eletricista, Álvaro José dos Santos, conhecido por Dr. Álvaro, um dos poucos brasileiros associados ao Clube Bela Vista, admirou-se ao me ouvir conversar em inglês com os fregueses do bar e se interessou em me ajudar. Quis saber mais sobre mim, e lhe relatei minha trajetória até aquele momento. De modo resoluto, Dr. Álvaro prometeu me arranjar um emprego na Verolme Estaleiros. Para isso, deveria esperá-lo às oito horas da manhã da segunda-feira, junto ao portão principal da empresa. No dia combinado, às sete e trinta da manhã, já estava junto ao portão principal da Verolme Estaleiros Reunidos do Brasil. O engenheiro Álvaro, quebrando o protocolo de segurança da empresa, levou-me diretamente ao Departamento de Pessoal, indo conversar com o chefe daquele setor. Tratava-se do mesmo funcionário que, há alguns meses, me dera a notícia de que eu não havia sido selecionado para a “escolinha”. Os dois homens conversaram, em tom amistoso, mas com certa pressão de Dr. Álvaro para que eu fosse admitido com maior brevidade possível, apesar do “mau jeito” com que iniciara o 65

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processo. Dr. Álvaro dizia, ainda, que um diretor já o autorizara a tirar um aprendiz de eletricista da linha de produção para lhe servir de auxiliar em seu escritório, que estava uma baderna. Porém achava melhor admitir alguém especificamente para essa função, ao invés de tirar um garoto de seu aprendizado profissionalizante. O tal chefe do setor de pessoal sentia-se pressionado, sem saber o que fazer, mas, de repente, teve um estalo e achou a solução para o caso. Eles se despediram e me deixaram ali, sentado, por um bom tempo. Mais tarde, o homem voltou com uma papelada sob o braço e com um ar de satisfação no rosto. Explicou-me que teria convencido o diretor a contratar-me, visto que tivera excelente desempenho nas provas e que, de certa forma, fora injustiçado na seleção para a “Escolinha”. De fato, poucos dias mais tarde, fui admitido, inicialmente na função de aprendiz de eletricista, ganhando sessenta por cento do salário mínimo, até completar o segundo grau e os dezoito anos de idade. Ao atingir a maioridade, fui efetivado como auxiliar de escritório, passando a receber salário integral. Mentalmente, pedi perdão a minha mãe por ter duvidado de suas orientações. Pelas mãos do engenheiro Álvaro, iniciei minha vida profissional na Verolme Estaleiros Reunidos do Brasil, onde trabalhei por dez anos, sendo promovido várias vezes. Dei continuidade aos estudos, trabalhei no exterior pela empresa e, principalmente, pude prestar efetiva colaboração ao reerguimento da família. À medida que construía minha carreira na Verolme, mantinha Dr. Álvaro informado, que se mostrava orgulhoso pelo sucesso de seu protegido. Contudo, devido às viagens e ao fato de não mais residir em Jacuacanga, Angra dos Reis, passei um bom tempo sem me comunicar com ele, até que, certo dia, fui surpreendido pela no66

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tícia de seu falecimento por infarto agudo do miocárdio aos quarenta e poucos anos de idade. Por essa época, a saúde financeira da família era significativamente melhor, pois Rui e eu já mandávamos dinheiro para casa. Roberto e Robeson, ainda menores de idade, também colaboravam com o produto de seus subempregos. Minha mãe e Ruth continuavam a trabalhar como empregadas domésticas, porém em ritmo menos sobrecarregado. Ao sentir que a situação financeira da família já podia prescindir da caridade alheia, Luiza, que tinha alto senso de solidariedade, decidiu alugar uma casa para acomodar a família e liberar a “casinha vicentina de chão ” para outras pessoas, principalmente idosos, mais carentes. E foi o que, efetivamente, fez. Deixar a “casinha vicentina de chão ” já significava um avanço incrível. Obviamente que essa primeira casa alugada não era grande coisa, mas já era um passo significativo. Por outro lado, a pequena e irregular renda familiar exigia mudanças para fugir dos aumentos de aluguel, de sorte que, a cada vez que eu visitava a família durante as férias, encontrava-a em endereço diferente.

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ENFIM, O SOL No dia dois de novembro de 1982, embarquei num voo da empresa aérea KLM – Royal Dutch Airlines, com destino a Amsterdam, Países Baixos, a trabalho da Verolme Estaleiros Reunidos do Brasil. Era minha primeira viagem à Europa e em condições muito especiais, em razão dos benefícios financeiros oferecidos pela empresa. Essa temporada na Holanda, como erroneamente os Países Baixos são referidos – Holanda é apenas uma província daquele reino –, foi um período excelente para meu aprimoramento profissional e enriquecimento cultural. Após cumprir um período de serviços nos escritórios da Verolme Estaleiros nos Países Baixos, voltei ao Brasil. Meu desempenho foi muito elogiado pelos diretores da empresa e, em consequência, poucos meses mais tarde, fui designado para nova missão no exterior, dessa vez em Londres, Inglaterra. Eu não costumava dar notícias antecipadas dessas viagens à minha mãe, pois, como ela tinha pavor de avião, evitava causar-lhe preocupação. Somente depois de já estar em terra firme é que lhe telefonava. Ela protestava um pouco por não ter sido comunicada, pois, segundo dizia, queria ter rezado para que tudo corresse bem na viagem. Mas, ao final, mostrava-se orgulhosa do sucesso do filho, embora soubesse que ela, na verdade, era a grande vencedora. Com as vantagens financeiras advindas dessas viagens, pude comprar uma casa para minha mãe. Embora a família já tivesse vencido o “zero absoluto”, a compra desse imóvel representou o fechamento do demorado ciclo que se iniciou com a separação de meus pais. Agora, sim, a família poderia dizer que havia, finalmente, alcançado a luz do sol. 69

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“Um filho que ainda é solteiro é uma joia para mim. Deu-me ótima casa com todo conforto.”

Era um imóvel simples, mas bem localizado e novo. Tinha um pequeno quintal, onde Luiza se dedicava a cultivar suas plantas e hortaliças. A expressão “com todo conforto” certamente vai além das facilidades funcionais da casa, abrangendo a satisfação pessoal, o conforto interior, o merecido descanso da mulher guerreira que, somente agora, depois de décadas, podia recostar-se numa cadeira de balanço e cochilar embalada pela tranquilidade do dever cumprido. Luiza tinha o costume de, ao se mudar para um novo endereço, e isso ela teve que fazer muitas e muitas vezes, escolher um lugar bem visível no quintal e escrever a giz, ou a carvão mesmo, a frase “DEUS É AMOR”, pois, segundo ela, “onde há amor, Deus está, e onde Ele está, nada nos falta”. Na primeira vez que a visitei, depois que se instalou nessa nova e definitiva casa, da qual não precisaria mais se mudar, fui até o quintal procurar a frase, que estava lá, bem visível. “O dinheiro que recebo de aposentadoria de doméstica serve para compras de remédios para reumatismo.”

Essa parte inicial de suas memórias talvez tenha sido escrita de uma penada só, no dia 2 de janeiro de 1990, trazendo, ainda que de forma resumidíssima, sua biografia. Luiza somente retomou as anotações em seu diário nove meses mais tarde, para contabilizar, com indisfarçável orgulho, os dividendos de sua incansável luta pela sobrevivência. “Hoje 20-10-1990, estou com 69 anos, vivo só, mas muito feliz. Tenho 7 netos que são minha alegria, 3 noras bacanas, 1 genro. 70

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Dei conta desses filhos. Graças a Deus e N.S.Aparecida, criei todos, estudaram e casaram. São ótimos pais de família e são bons demais para mim, eu adoro eles cada vez mais.”

Não se pode afirmar, com certeza, que, se meu pai não tivesse ido para Goiás, mas permanecido em Formiga tocando os negócios sob a orientação de Luiza, eles teriam, em poucos anos, se firmado economicamente e constituído um sólido patrimônio. Isso porque, como já se disse, embora Geraldo tivesse disposição para o trabalho, carecia de método, paciência e persistência para enfrentar as dificuldades iniciais de qualquer projeto, ficando ansioso por resultados imediatos. Minha mãe, ao contrário, tinha equilíbrio e sensibilidade para os negócios, sabia gerenciar. Como escreveu em seu diário, quando meu pai disse que, em Formiga, “não ganhava para dar conta dos filhos ”, Luiza se exaltou dizendo “que essa era uma desculpa sem pé e nem cabeça ”, pois sabia que o problema não estava no “onde”, mas “como” conduzir os negócios. De qualquer forma, eles se separaram, e ela, embora mais por necessidade do que por orgulho, teve que provar que estava certa, ou seja, dava para criar, sim, os filhos em Formiga. Cronologicamente falando, do momento em que a família foi morar “numa casinha vicentina de chão ” até o dia 20 de outubro de 1990, quando escreveu “Dei conta desses filhos ”, passaram-se vinte e cinco anos. Sob essa parábola, acumulam-se os detalhes da saga desse pequeno grupo familiar que, capitaneado por Luiza Soares de Jesus, saiu do “zero absoluto” até alcançar um lugar ao sol.

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Luiza aos 75 anos de idade (1996)

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MINHA DOCE IRMÃ RUTH Ruth, a única filha de Luiza, teve seu final de infância e início de adolescência interrompidos para cuidar dos três irmãos mais novos e da casa. Depois de Roberto e Robeson irem para o patronato e eu, para o seminário, ela tornou-se empregada doméstica sem receber praticamente nada, tendo, quase só, o benefício das refeições. Àquela época, seria risível alguém pleitear direitos trabalhistas: nem os empregadores assinavam Carteira de Trabalho, nem se pagava salário mínimo integral. Ela trabalhou também em fábricas, uma de brinquedos e outra de massas alimentícias, como uma verdadeira escrava branca, ruiva de olhos azuis. Ruth não tinha vaidade alguma e, mesmo se tivesse, não poderia comprar roupas, nem joias, nem petrechos de maquiagem. Não tinha namorado. Talvez nem se permitisse sonhar. Vencida a primeira batalha, à qual, repetidas vezes, é referida como a quebra do zero absoluto, Luiza e Ruth já não precisavam trabalhar como empregadas domésticas, embora não deixassem de prestar algum serviço a terceiros para complementar a economia da casa. Assim, nossa mãe passou a dedicar especial atenção à filha, sua fiel e inseparável escudeira na luta pela sobrevivência. Luiza sabia que os filhos já podiam seguir seus caminhos por si mesmos e que era o momento de resgatar a dignidade da filha, essa criatura doce e inocente, dona de um coração sensível, que jamais reclamou para si uma ninharia que fosse, além de um olhar, uma palavra ou um abraço. Engana-se, porém, quem pensar que, só então, Luiza começara a se preocupar com Ruth. Não! Antes, sua luta era tão aguerrida que não poderia privilegiar esse ou aquele filho com mais aten73

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ção, pois o objetivo maior tinha que ser alcançado e todos deveriam estar alinhados na mesma guerra santa. Na verdade, Luiza mantinha, desde sempre, especial zelo com minha irmã, pois temia que pessoas inescrupulosas e mal-intencionadas tentassem assediá-la com propostas indecorosas, assim como fizeram com ela própria. Manteve a filha sob severa custódia, embora tivesse em mente que, mais cedo ou mais tarde, teria que deixá-la assumir as rédeas de sua própria vida. Voltando um pouco no tempo, deve-se relembrar que, ao retornar de Anápolis, Luiza trouxe de lá uma poupança secreta, que fizera guardando moedas em latas de óleo. Esse dinheiro não foi suficiente para comprar uma casa, como era sua primeira intenção, para “garantir o futuro dos filhos”. Contudo, ao chegar a Formiga, tomou conhecimento de que se vendiam lotes num bairro bem afastado da cidade, onde não havia infraestrutura alguma de iluminação, rede de esgoto e fornecimento de água. Por isso, o valor desses lotes era mais acessível. Mesmo assim, como o dinheiro secreto não seria suficiente para adquirir um deles à vista, fez uma compra parcelada, dando o montante arrecadado das latas de óleo como início de pagamento e assinando dezenas de promissórias para liquidação mensal do restante. Não se sabe como ela conseguiu liquidar o saldo. Se teria utilizado o pouco dinheiro que o marido lhe deixara ao partir para Goiás ou se teria ficado inadimplente durante o tempo em que a família submergiu no zero absoluto, vindo a resgatar as promissórias bem mais tarde, quando as condições financeiras já eram melhores. O certo é que o lote “sobreviveu” às intempéries. Nem nos piores momentos, minha mãe aventou a possibilidade de vendê-lo. Seu tino comercial, sim, engendrou uma operação interessante. Com o correr dos anos, aquele bairro teve boa valorização em razão da urbanização e das construções que começaram a surgir ali. Luiza começou a especular no sentido de fazer uma permuta daquele lote por outro de menor valor. Dessa forma, além de manter um imóvel, ainda teria algum retorno financeiro. 74

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Não se conhecem exatamente os detalhes dessa operação, porém a troca foi realizada. A partir de então, passou a perseguir a realização de um sonho: construir uma casa! “Fiz ali uma casinha simples que dei à filha, é a única mulher, os outros 4 são homens.”

Construir essa “casinha simples ” foi fruto de uma empreitada custosa, demorada, persistente e, para enxugar a interminável lista de adjetivos, meticulosa. Se, num mês, ela podia comprar um saco de cimento, comprava e guardava. No outro, alguns tijolos. Acontecia de nada ser adquirido por boa temporada, evidentemente, por falta de dinheiro. Algumas pessoas doavam uma coisa ou outra. Fizeram-se mutirões, parentes e amigos ajudaram. Num trabalho de formigas, foi-se erguendo a “casinha simples ”. O sonho das moedas guardadas em latas de óleo tornava-se realidade depois de vinte e cinco anos. Simples na forma, simples no tamanho, simples na qualidade, simples na localização, tão simples quanto a alegria de uma criança, ou seja, maravilhosa casinha! E o que mais engrandece esse feito de minha mãe é o fato de ter construído essa casa antes mesmo de eu lhe ter adquirido, com os rendimentos de meu trabalho no exterior, aquele imóvel que se tornaria sua residência definitiva. Luiza deu a “casinha simples ” à filha de forma oficial, registrando-a em seu nome. Ao se casar, Ruth tomou “posse mansa e pacífica” da “casinha ”. Porém, sair de sob as asas da mãe foi, figurativamente, um novo parto. Sorrisos e lágrimas. Embora morassem na mesma cidade e em endereços bem próximos, a “separação” foi dolorosa. Luiza sentia muita falta de Ruth, e a recíproca era verdadeira.

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VIDA QUE SEGUE O filho mais velho de Luiza, Rui, casado, morava em Passos, MG. Roberto e Ruth, também casados, já viviam em suas próprias casas. Eu, desde tenra idade, vivia longe e, até então, continuava distante. Somente o filho mais novo, Robeson, ainda solteiro, morava com ela. Mesmo depois de se casar com Marla, permaneceu em companhia da mãe por cerca de um ano, até se mudar para sua própria casa. Luiza escreveu, então, em seu diário que vivia “só, mas muito feliz ”. Mais tarde, para aliviar a solidão, sugeriu à filha Ruth que se mudasse para perto dela: “[20.10.1990] À filha já casada, aconselhei a alugar a casa dela e pagar aluguel aqui perto para ser minha companhia.”

O arranjo funcionou por pouco tempo. “O marido não gostou, vai voltar [para sua casa] de novo. E eu vou ficar só novamente. 24- [...] 1991 – Minha filha ouviu o marido, mudou-se, saiu de perto de mim, deixou-me só de novo. Tudo que acontece, Deus é servido.”

Luiza se sentia só, mas não solitária. Tinha interesse pela vida e pelo lazer, procurava se manter ativa física e mentalmente. 77

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“Fiz uma visita a meu filho Rui [na cidade de Passos, MG] do dia 19 de abril até dia 30 [de 1991]. Foi ótimo, estavam juntos meus netos, nora e filho. Eu, Luiza, trabalhei no 1º Encontro EC do S.C. de Jesus nos dias 3-4-5 de maio de 1991. Foi ótimo. Muita oração e alegria com os colegas. 21-3-1991 – Completei 70 anos, já não estou muito boa. Dor nas juntas das pernas, dificuldade para andar, mas faço força, finjo que não é nada, vou às missas, visito os filhos. Enquanto der conta, vou andar. Se Deus quiser, quero passear muito, gosto de ir em festas.”

À medida que a idade avançava, aumentava sua insegurança. Tinha medo, e com razão, de não ter a quem recorrer no caso de um mal súbito ou queda. Embora os filhos que moravam em Formiga a visitassem diariamente, seu maior receio era o de passar a noite sozinha. Os netos, à medida que cresciam, já lhe faziam companhia, porém, como ela dizia, “não são de muita valia, dormem feito pedras; se precisar, mal tenho força para acordar eles”. Além disso, estavam entrando na adolescência, o que os tornava de convivência difícil. O espírito empreendedor de Luiza, contudo, continuava aceso, de sorte que vislumbrou a possibilidade de ir morar com a filha para minimizar a insegurança. Porém, não queria ser um estorvo na vida do casal, e a solução que encontrou foi construir, no terreno da “casinha ” que dera à filha, uma espécie de quitinete simples, que lhe serviria de morada. Ela própria se admirava com sua 78

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disposição para, já aos setenta e três anos de idade, tocar mais uma empreitada em sua vida. “Eu ainda nesta idade, 73 anos, estou construindo um quarto nos terrenos da Ruth para que eu possa passar alguns dias lá. Glória a vós, Senhor. Em começo de março de 1995, mudei para o quartinho. Estou [me] sentindo bem mais tranquila e ando mais. Não fico parada. Venho em minha casa sempre, isto é um passeio para mim.”

Mais tarde, minha mãe decidiu, a despeito do desconforto de ficar praticamente sozinha, permanecer em definitivo em sua casa, da qual tanto gostava, pois, realmente, não poderia se arriscar movimentando-se muito. “Hoje, 20 de abril, já estou com 77 anos de idade. Já não estou boa, canso muito, ando menos, mas não paro. Quase não aguento fazer minha lida, mas vai indo. Continuo só, durmo junto de meu neto Hederson [filho de Ruth].”

Ela padecia, desde os trinta anos de idade, de uma deficiência na perna direita decorrente de um acidente rodoviário, que lhe causou fratura exposta do fêmur e perda de grande parte da panturrilha, ficando no local, por anos, uma ferida aberta de difícil cicatrização, que lhe exigia permanentes cuidados, bem como reduzia-lhe a mobilidade. “29 de abril. Fiz uma cirurgia na perna, fiz transplante [na verdade, en79

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xerto]. Já fazendo 5 meses que faço curativo e sofro dores. Graças a Deus está melhorando bem.”

Ela costumava dizer que gostaria de viver muito, porém somente se ainda fosse capaz de andar. Não gostaria de passar pelo dissabor de se locomover em cadeira de rodas ou, pior ainda, com o auxílio de terceiros. Somente a partir de determinada época, já muito insegura de seu equilíbrio e temendo uma queda, que certamente a deixaria incapacitada, é que passou a se valer de uma bengala. Depois de uma longa vida de luta, podia, agora, se dar o direito a alguns prazeres. As passagens a seguir dão uma pequena mostra dessa nova fase. “Robeson entrou de férias, convidou-me para ir para as águas de Furnas e saímos dia 14 e fiquei até 19 [do] mês de outubro 1991, foi ótimo passeio em casa de amigos de meu filho, que me trataram muito bem. Fiquei feliz da vida. 19-20.12.1991 – 25 de dezembro, passei junto do Rubinho e Robeson na casa dos sogros de Robeson. Foi muito bom para todos nós. Dia 1º de janeiro 1992, fomos para casa do Rui em Passos, foi ótima a farrinha. 1 fevereiro 1992 fui na festa de debutante de Belissa, filha do Alair, me diverti muito. Gostei da organização e do bem que eles trataram a gente, hoje 4.2.1992. 80

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19-20 Dezembro 1991 foi dia de grande alegria para mim e os irmãos de Rubinho. Nós assistimos à formatura de Rubens. Coisas tão lindas que eu nunca pensei que ia ver. Obrigada Jesus.”

Já morando em Belo Horizonte, decidi terminar o curso de Direito que havia abandonado há décadas para me graduar em Administração de Empresas, formação mais apropriada para a carreira que, então, desenvolvia na área de comércio exterior. Portanto, foi de grande emoção para ela ter comparecido à solenidade de colação de grau e demais festividades da formatura, pois, em razão de eu ter vivido longe da família por cerca de vinte anos, minha mãe não participou dos principais eventos de minha vida pessoal e profissional. “7 de agosto de 1992 – Agradeço a Jesus pela graça recebida. Meu filho Rubens começa a trabalhar no serviço judicial [Justiça Federal]. Obrigada por esse filho inteligente e sadio.”

Depois de décadas trabalhando em empresas privadas, multinacionais, resolvi dar uma guinada em minha vida profissional, em razão de a crise econômica mundial ter afetado negativamente a oferta de emprego em minha área de atuação. Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, o provimento dos cargos públicos, normalmente oferecendo boa remuneração e estabilidade, deveria ser obrigatoriamente feito mediante concursos de provas e títulos, sendo maior a oferta de vagas para carreira jurídica. Então, decidi me aventurar por essa área. Dada a dificuldade de conciliar o emprego e o ritmo intenso de estudos na faculdade e preparatórios para prestar concursos públicos, fiz uma reserva financeira e deixei o emprego para me ocupar exclusivamente com a preparação acadêmica. 81

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Já no início de 1992, obtive sucesso em cinco concursos públicos, restando-me apenas aguardar a nomeação para um deles. Em agosto de 1992, tomei posse na Justiça Federal. Com a estabilidade oferecida pelo Estatuto do Servidor Público e maior disponibilidade de tempo, pude desfrutar mais do convívio com minha mãe e irmãos, estreitando laços que, em razão de minha ausência por tantos anos, haviam se lasseado.

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ANIVERSÁRIOS, COMEMORAÇÃO DA VIDA Luiza, inspirada na fé cristã, valorizava a comemoração dos próprios aniversários, os de seus filhos, de demais parentes e amigos. Mas, durante anos seguidos, muitas dessas datas natalícias passaram sem qualquer comemoração ou presente. Porém, jamais deixava, por ocasião do Natal, de montar o presépio, como que festejando, numa única data, todos os natalícios, costume que vinha desde tenra infância. “7-11-1997/Luiza. Quando eu tinha 7 anos, comecei a fazer o presépio. Era a preparação do Natal, todo o ano a mesma coisa: eu ia ao mato com meus irmãos apanhar folhas de coqueiro, barba de pau, para armar o presépio. Na estação, pegava pedra queimada para a gruta, areia, papel, etc. Hoje ficou mais fácil, se faz a árvore pisca-pisca, palhacinho e fica tudo colorido. Mas eu gostava de ter trabalho, muito prazer com o armamento do presépio. Foram muitos anos de luta, enquanto aguentar quero ter o prazer de armar a árvore para repetir o aniversário do menino Jesus, nosso Senhor.”

Posteriormente, com a melhor situação financeira, as confraternizações eram mais frequentes. Luiza resplandecia de fe83

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licidade, menos pelas festas e presentes, mais por considerar que cada comemoração era uma forma de agradecer a Deus por ter conseguido o seu intento na vida, qual seja, criar os filhos e alcançar a tranquilidade na velhice. Em algumas passagens de seu diário, chega a admirar-se por ter cumprido sua missão. No seu 75º aniversário, eu a presenteei com o livro de minha autoria, “A Grande Família – Homenagem aos 75 Anos de Idade de Luiza Soares de Jesus”. Nesse livro, embora vasculhasse o tempo à procura do passado, focalizei outra história: a genealogia da família, com maior ênfase nos antepassados maternos. Entendia que a saga pessoal de minha mãe era uma “história que só ela poderia contar, pois somente o silêncio de seu coração a vivenciou, sofreu e registrou por inteiro. Ainda que tenha tido êxito em sua luta, não soaria elegante, agora, relembrar fatos e circunstâncias que o tempo se encarregou de tornar distantes e indolores”. E, de fato, à época, ela já estava escrevendo o seu diário, contando com suas próprias palavras e emoção os principais eventos de sua vida, descortinando-se sua bela história de vida. Naquele aniversário, registrou: “Eu, Luiza, dia 21-3-1996, completei 75 anos. Antes, uns dias, senti uma crise, pressão alta, mas passou e estou bem outra vez. O Rubens me trouxe um livro feito com muito carinho. O livro chama-se ‘A Grande Família ’. É uma homenagem ao meu aniversário natalício. Eu só tenho [a] agradecer a Deus por tudo de bom que tenho, principalmente meus filhos que são ótimos.”

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Luiza aos 75 anos de idade (1996)

Um ano mais tarde, ela se refere a esse livro, novamente no dia do seu aniversário: “Tenho em mãos o livro ‘A Grande Família ’ escrito pelo meu filho Rubens. Hoje, dia do meu aniversário, recebo a visita de toda família que são filhos, noras, genro e netos. É grande alegria por estar juntos. Salve 21-3-1997.”

Ao completar 77 anos de idade, Luiza teve uma surpresa muito emocionante e completamente inesperada: 85

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“Sempre em meu aniversário, tenho surpresa. Dia 12-3-1998, tive a grande alegria e emoção, chegou em Formiga meu sobrinho Samuel. Pois meu irmão Messias desapareceu com 12 anos de idade, nunca tivemos notícias. Agora, chega seu filho de 31 anos e são 5 irmãos. E o Messias morreu já há 11 anos. Foi uma alegria completa a nós todos saber que ele construiu uma bela família.”

A história de Messias é surpreendente e interessante desde seu início. Messias era o caçula e seu nome, na verdade, não era esse. Segundo depoimento de Luiza, minha avó Ana Amélia, conhecida como Sinh’Ana, queria dar ao filho o nome de Jesus. Contudo, o padre, que oficiava naquele dia, não aceitou batizar a criança, argumentando que nenhum ser humano deveria ter o mesmo nome do Cristo. Ana Amélia deixou de batizá-lo, pensando em voltar no domingo seguinte em que outro padre estivesse oficiando os sacramentos. Na segunda ocasião, o celebrante também não concordou. Uma vez mais, o batismo não se realizou. Na terceira tentativa, Sinh’Ana, então, escolheu o nome Messias e o sacramento foi realizado. Entretanto, ela insistia que a criança se chamasse Jesus e foi com esse nome que o registro civil foi lavrado. Apesar dessa insistência, o nome de batismo, Messias, foi o que se firmou no meio familiar, e Jesus, na vida civil. Como já se sabe, Luiza era “de família pobre e humilde, éramos 6 irmãos. Sou a mas velha, lutei para ajudar meus pais ”. Eram três irmãs, Luiza, Floripes e Maria, e

três irmãos, Cirilo, José e Messias/Jesus, sendo que estes, bem jovens, saíram de Formiga para procurar empregos em outras localidades. Nunca mais se teve notícia de Cirilo, sendo que Luiza suspeitava 86

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que o mesmo tivesse sido vítima de um desabamento na construção de um túnel, pois, conforme notícias que chegaram a Formiga, muitos dos soterrados não puderam ser resgatados para identificação. O outro irmão, José, ficou ausente por décadas, mas costumava se comunicar por cartas com Luiza e, por volta dos cinquenta anos de idade, com saúde abalada, voltou a Minas, especificamente para a cidade de Arcos, vindo a falecer poucos meses mais tarde em razão de infarto do miocárdio. Com relação a Messias/Jesus, a família não teve mais notícias dele desde sua saída de casa. Na verdade, aos doze ou treze anos de idade, ele fugiu de casa apavorado, com medo de que pudesse ser preso em razão de uma rixa em que se metera, tendo causado lesão corporal num dos baderneiros. Luiza fez várias tentativas de localizá-lo, porém sem sucesso. À época, a família estava de mudança para o Estado de Goiás e minha mãe gostaria de tê-lo levado também. Talvez um complicador para se obter notícias do irmão tenha sido justamente a duplicidade de nomes. Quatro décadas após a fuga de Jesus/Messias e cerca de onze anos depois de seu falecimento, um filho dele, Samuel Soares, veio a Formiga procurar pela família, anunciando no programa do radialista Claudinê Sílvio dos Santos que era “filho de Jesus Soares e neto de Ana e João Soares e gostaria de localizar seus parentes”. Meu irmão Roberto ouviu esse anúncio algumas vezes e, a princípio, não se deu conta de que se tratava de um primo. Depois, ao que parece, lembrou-se da história do duplo nome próprio de Messias e foi ao encontro de Samuel, que, acompanhado de sua família, proporcionou uma comemoração muito especial do aniversário de Luiza naquele ano, com o resgate da história de seu irmão há décadas desaparecido. Outra comemoração muito especial foi a de seu 80º natalício. Promoveu-se uma festa em grande estilo para muitos convidados, com celebração de missa, farto buffet e música ao vivo, no Salão de Recepções do Lions Clube. “21-3-2001. Completei 80 anos de vida, já não ando como no ano 87

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passado que andei 4 quilômetros em procissão. Mas estou contente. Vou à igreja e faço minhas pequenas coisas. Então, neste aniversário teve uma bonita missa celebrada pelo R. Padre João. Depois, reunião de família e amigos, foi muito bonito e uma alegria geral. Comemos, bebemos a valer e ganhei lembranças lindas. Salve 21-3-2001.”

Eu tinha o costume de presenteá-la com uma joia de ouro por ocasião de seus natalícios e, naquele dia especial, dei-lhe um robusto anel, no qual fora gravado “Oitenta Anos”. Várias vezes eu a vi com o braço estendido, contemplando aquele anel, sustentando um ar de satisfação e orgulho. “3 de fevereiro foi aniversário da Luciana. Eu e Maria fomos para festejar o aniversário, mas foi muito sem graça, o Rubinho sentiu-se mal e para nós não teve festa, mas, sim, tristeza e sentimento.”

Corria o ano de 2002 e Luciana, uma amiga da família, completava seu 30º aniversário. Preparou uma grande comemoração, fazendo questão que Luiza fosse a Belo Horizonte participar da festa. Ela aceitou de imediato o convite e foi acompanhada da nora Maria Esméria, esposa de Rui. Contudo, eu fui acometido de um mal súbito na noite anterior, tendo que ser internado às pressas. Na verdade, silenciosamente, um tumor se desenvolvia em minha hipófise e aquela crise de labirintite foi a pista para que o mal fosse detectado e, mais tarde, extirpado. 88

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Luiza com 81 anos

“Em março 21-3, completei 81 anos, mas neste ano 2002, as coisas não foram nada boas, Rubinho adoeceu e desta vez foi sério. Ele fez cirurgia, sofreu bastante e nós juntos sofrendo. O fim de ano foi melhor. Passamos um Natal feliz. Agora chegou o 2003, tudo bem e esperamos os aniversários. Já estamos em véspera do carnaval, depois Semana Santa e novamente o 21-3, inteirando 82 anos de idade de LUIZA.” 89

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Aos quase 82 anos de idade, Luiza Soares de Jesus era uma mulher bonita, tranquila, ar nobre, fala pausada e tom suave. Vestia-se de forma simples, mas com elegância. Gostava de joias e discreta maquiagem. Tinha um sorriso cativante. Um olhar que parecia penetrar nos corações das pessoas e que, em contrapartida, fazia-as também “mergulhar naquele azul, azul da cor do mar” e enxergar um pouco da grandeza de seu coração. Luiza foi bonita, sempre. Tinha uma pele aveludada, sem manchas, que, com o avançar da idade, apesar das inevitáveis rugas e flacidez que ali se desenhavam, ainda permanecia bonita, linda mesmo! Ela tinha consciência disso e era vaidosa, mas sua vaidade não era um exercício fútil de esnobismo, mas uma demonstração de respeito ou retribuição à Natureza, que a privilegiara com tanta formosura. Às vésperas dos festejos desse seu natalício – aqui vai um exercício de imaginação –, ela deve ter se olhado no espelho e pensado: “Obrigada, Senhor, por tudo que me tem proporcionado até hoje. Sinto, porém, que não vai demorar muito para eu voltar ao pó do qual me originei, e essa beleza...” – fim da ficção. Juntou suas melhores roupas e joias, e saiu, em segredo, indo ao centro da cidade. Na comemoração de seu octogésimo segundo aniversário, dia vinte e um de março de dois mil e três, após receber seus presentes, ela, um pouco constrangida, disse que tinha uma surpresa e não sabia se os filhos iriam gostar. Naquela saída secreta, ela fora a um estúdio e fizera um ensaio fotográfico, a exemplo daqueles que as meninas fazem aos quinze anos, sem, obviamente, o apelo sensual exagerado. Ficamos abismados por várias razões: a beleza das fotos, a ousadia dela, o orgulho que sentíamos, o impacto da surpresa e a inexplicável emoção de nos descobrirmos filhos de uma “Elizabeth Taylor”! A beleza não foi um facilitador em sua vida, nem estorvo. Como visto, no auge das dificuldades financeiras, sem qualquer recurso para criar seus cinco filhos, foi vítima de pressão 90

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e constrangimentos provocados por pessoas, umas bem-intencionadas, outras nem tanto, que gostariam de convencê-la a se valer de sua beleza e juventude como moeda de troca para alcançar desafogo financeiro, em detrimento de seus princípios morais e religiosos. Todavia, era bela não somente na aparência, mas também na alma, e ambas se sustentaram exuberantes até a serena velhice. Assim, a julgar apenas por seu semblante, sem lhe conhecer a história, poder-se-ia imaginar que toda a classe e o elegante modo de ser, todo o preparo para lidar com as pessoas bem como o refinado humor e admiráveis autocontrole e alegria de viver tivessem sido herdados de uma educação esmerada e culta, proporcionada por uma família aristocrata. Ao contrário, de origem humilíssima, minha mãe moldou-se a si própria, poliu a nobreza congênita e solidificou o caráter a ferro e fogo, em lutas, vitórias e derrotas, com lágrimas e trabalho. Na comemoração de seu 84º aniversário, um mês antes de seu falecimento, pode-se se notar, na foto reproduzida na página seguinte, sua fragilidade física, mesmo assim, ainda ostentando um belo sorriso. Portanto, pode-se dizer que o perfil sereno e feliz estampado em suas fotos reflete mais a alma do que a história de Luiza Soares de Jesus.

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FRIO CONFORME O COBERTOR A libertação do “zero absoluto” foi gradativa, mas, por volta de 1980, poder-se-ia dizer que já era total. Assim, depois de uma intensa vida de luta, Luiza merecia e valorizava o conforto e a tranquilidade de que desfrutava na velhice. Seu diário é pontilhado de agradecimentos a Deus por isso, bem como de manifestações de satisfação pelos eventos prazerosos de que participava, ainda que simples. Mantinha, também, sempre aceso o desejo de continuar a viver intensamente. “Enquanto der conta, vou andar. Se Deus quiser, quero passear muito, gosto de ir em festas.”

Contudo, ainda teve que viver e sofrer com momentos de apreensão e tristeza, quer seja em razão de sua própria saúde que se deteriorava e aborrecimentos causados por atitudes desrespeitosas de netos adolescentes, quer seja por situações desafortunadas vividas por filhos e pessoas de sua consideração. “Em 1990, tive um filho preso, não sei como aguentei estar calada. Não conversei este assunto com nenhum dos irmãos dele, minhas amigas e demais parentes não sabem nada. Eu fingia que não era nada. Peguei com Jesus, Maria Santíssima para me dar forças. Eu ia visitá-lo, mas não gostava de ver aquele Tenente de cara triste, ali parado e inútil para o mundo. 93

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Graças a Deus venceu, voltou ao trabalho, mas já não é o mesmo de antes. Ele era alegre, disposto a satisfazer a todo mundo, hoje é um sorriso triste, sem graça. 17-6-1991. O Tenente aposentou-se da Polícia Militar, graças a Deus. Ele e a família estão felizes e eu também muito contente [por] receber esta graça que pedi.”

Esse episódio trouxe muito sofrimento para Luiza, mas, como sempre foi de seu estilo, ao final de cada batalha, agradecia a Deus por tê-la privilegiado com firmeza suficiente para suportar as provações e colocar-se à disposição para enfrentar novos desafios, se necessário fosse. “Mas venci mais este trabalho. Obrigada, Jesus. Estou aqui à suas ordens para lhe servir. Luiza.”

Outra grande dor que Luiza sofreu foi por ocasião do falecimento de sua mãe, Sinh’Ana, como era conhecida, que começou a apresentar debilidade física, em razão de seus oitenta e oito anos de idade, no início de 1992. “Em começo de abril [1992], a Sinh’Ana, minha mãe, esteve muito mal de saúde, mas Graças a Deus, ela se recuperou e está ótima, hoje 30 de abril.”

De fato, mais ao final do ano, Sinh’Ana, em razão de falência múltipla dos órgãos, veio a falecer em Arcos, MG, onde morava com a filha Floripes. Luiza deixou consignado em seu diário um lindo e confortante pensamento: 94

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“4-12-1992 – 1ª Sexta-feira. Dia muito triste para mim pois devolvi a minha mãe a Deus. Agradeço a ele por ter emprestado Ana Amélia de Jesus para mim e meus irmãos. Fiquei contente com Jesus, deu-me força para aguentar junto dela, aproveitei ela sólida e aos poucos foi perdendo as forças e dando uns últimos suspiros...”

Dia 4 de dezembro de 1992 foi uma sexta-feira, e Luiza se encarregou de avisar a todos os parentes que moravam em outras cidades que, caso quisessem se despedir de Ana Amélia em corpo presente, deveriam se apressar, pois minha avó, em suas últimas vontades, havia recomendado que não fosse sepultada no sábado, mas na sexta-feira, antes do sol se pôr, num inusitado desejo atávico de origem judaica. Aliás, treze anos mais tarde, a poucos dias de sua morte, minha mãe faria a mesma recomendação à filha Ruth. No entanto, como faleceu justamente num sábado, as providências puderam ser tomadas, sem grandes transtornos, para que o sepultamento fosse realizado no domingo. Ana Amélia havia solicitado também que seus restos mortais fossem enterrados em Formiga, onde Luiza mantinha, há muito tempo, um jazigo no Cemitério do Santíssimo, no qual foram sepultados muitos parentes, tanto do lado de sua família, quanto da do marido. Essas sepulturas eram cedidas pela Prefeitura Municipal, que, mais tarde, ofereceu a possibilidade de se lhes adquirir a posse, mediante uma espécie de comodato, gerando ao comodatário a obrigação de mantê-las em bom estado de conservação. Diligente, apesar das dificuldades financeiras, ela providenciava benfeitorias na sepultura, como deixou anotado num bilhete de 1982: “Documento do Túmulo do Cemitério Santíssimo S. [Sacramento]. 95

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Chico Coveiro pegou para fazer a gaveta na cova [de] João Soares [Barbosa, pai de Luiza] pelo preço de 8.000,00 mil Cruzeiros, com tudo dele, dei de entrada 3.000,00 Luiza Soares. Dia 19-1-82 zeiros

3000,00 três mil cru-

Dia 8-3-82 zeiros

2.000,00 dois mil cru-

Dia 13-4-82 zeiros

3.000.00 três mil cru-

Foi por 8.000,00 mil e ficou tudo pago por Luiza Soares de Jesus.”

Ana Amélia aos 85 anos de idade.

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Portanto, tendo em vista que vó Sinh’Ana falecera por volta das onze horas da manhã, o traslado do corpo de Arcos para Formiga teve que ser providenciado rapidamente, para que lhe fosse cumprido o último desejo. A maioria dos parentes chegou a tempo do sepultamento, realizado na sexta-feira, às 17 horas, e puderam render as últimas homenagens àquela doce velhinha, cuja passagem nessa vida pode ser resumida numa única palavra: suavidade. Antes mesmo de Luiza encerrar seu ano de luto pelo falecimento de sua mãe, foi surpreendida pela morte trágica de um parente próximo. João Bueno de Oliveira era marido de Maria Aparecida de Oliveira, sobrinha de Luiza e filha de Floripes, e morava em Arcos, MG. Homem simples, alegre, amava a natureza e se divertia com pescaria esportiva. No início do ano de 1993, João, aproveitando o final das férias, foi pescar com alguns amigos em algum ponto na orla do Lago de Furnas. Uma tempestade se avizinhava e eles desistiram. João se encarregou de tirar a canoa da água e um raio o atingiu, fulminando-o instantaneamente. “6 de janeiro 1992 [na verdade, 1993 Luiza se enganou na data], foi triste o velório de João da Aparecida. Morte repentina que muito nos abalou.”

O peso da idade e as fortes emoções tinham reflexos no organismo de Luiza, que, a bem da verdade, considerando a vida penosa que levara por muitas décadas, até que era muito saudável. A partir do momento em que a situação financeira da família passou a permitir, fazia seus “check-ups” regularmente e tinha uma rotina de hábitos salutares e preventivos. “Eu já estou sentindo que alguma coisa já não está bem comigo. O médico diz que estou com água no pul97

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mão do lado esquerdo. Eu sinto uma dor leve no peito e no rim do lado esquerdo. Em 3/3/93 operei de uma das vistas em Belo Horizonte, Clínica Hilton Rocha e fui muito feliz, graças a Deus. 4-2-1994 Graças a Deus, [em] minha família todos em paz, eu mais animada e conformada com a velhice. Faço de conta que não sinto nada e vou levando a vida. Minha idade, em março dia 21, completo 73 anos. Para mim parece um século, pois lutei muito na vida. Hoje vivo em paz, boa casa, dinheiro para as despesas, mas coração de velha sempre triste pelas recordações e pelas perrenguezas que a gente carrega. Estamos vivendo a entrada da nova moeda que é o Real. Não está nada fácil, principalmente para mim, todos Brasileiros têm esperança de uma vida melhor, que tudo vai dar certo. Hoje, 25 do 12 1994, eu agradeço a Deus por este ano que passou. Tive algumas doenças, mas nada grave. Graças ao Pai, [o] acidente da Marla que nos causou grande susto, acabou tudo bem, ela está ótima.

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O Robeson foi operado 2 vezes, mas tudo bem recuperado 24 de dezembro. Só tenho [que] agradecer a Deus, nosso pai, por este ano que está passando. Foi muito bom para todos meus familiares. Eu sinto algum problema de saúde, mas é coisa da idade. Estando andando, fazendo coisas, já está ótimo.”

Segundo os Evangelhos, o que faz mal ao homem não é o que lhe entra pela boca, mas o que sai dela. O inverso também é verdade! Fala a boca do tesouro que a alma guarda. Luiza, na maioria das vezes, encerra as passagens de seu diário, tanto as boas, quanto as ruins, com uma mensagem positiva de agradecimento ou declaração de sua satisfação com sua vida. Mais do que isso, nesse diário, não registrou, com o objetivo de perenizar, um único sentimento de mágoa, ódio, vingança, despeito, raiva, inveja ou o que mais fosse. Quando falou sobre fatos e situações que lhe causaram sofrimento, o fez com o coração já exorcizado desses ranços e ressentimentos. “1/4/93 – Tudo novo. Tem nossa boa Semana Santa. Estamos de novo em véspera da Semana Santa. Se Deus quiser que vou aproveitar muito, fazer penitência, agradecer a Deus e fazer boas caminhadas.”

Seria de se esperar que uma pessoa que teve toda uma vida de dificuldades, lutando para prover o sustento da família, quisesse, na velhice, apenas desfrutar do merecido descanso, colhendo os frutos de sua vitoriosa trajetória. Era, contudo, da natureza de Luiza servir, ajudar, ensinar, guiar, compartilhar e proteger. Assim, preocupava-se com as pessoas menos favorecidas, participando de campanhas de arrecadação de alimentos, roupas e utensílios em prol 99

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dos necessitados. Fazia pequenas e regulares doações em dinheiro para entidades beneficentes, assistenciais e religiosas, tais como APAE [Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais], ACCCOM [Associação do Combate ao Câncer do Centro-Oeste de Minas], Apostolado da Oração, Irmandade de Jerusalém, além de, evidentemente, pagar o dízimo à paróquia. Incansável, já com setenta e dois anos de idade, decide, num gesto de amor, prestar serviço voluntário numa creche para crianças carentes: “Dia 12/4/1993/ comecei a trabalhar na creche de crianças de 6 meses a 3 anos. Tem 10 meninos, meu serviço é voluntário para servir a Deus. Estou contente, passo o tempo sem ver. Estou mais calma, dormindo bem. Fico lá de 8 às 11 da manhã. O dia fica pequeno, passa num instante.”

Minha mãe foi, apesar das adversidades, uma pessoa feliz e especial, justamente porque toda sua vida foi lastreada num bom coração. Obviamente que teve seus defeitos e fraquezas, cometeu erros e enganos. Porém, não persistiu neles, depurando-se com as dificuldades e purificando-se na inabalável fé em Deus. “12/10/1993 – Começo de semana, passei me sentindo doente, mas hoje, dia de N.S. Aparecida, passei ótima, sentindo uma saúde boa. Passei muito bem, fui a um show na Rodoviária, diverti [-me] vendo um trio elétrico da América, com programas lindos e alegres. Hoje 8 de julho [1994], graças a Deus, tudo bem com minha família. Rui 100

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retocou minha casa que ficou muito linda. Tenho feito reuniões religiosas, pedindo a Deus pela minha família, amigos e vizinhos. No dia 13-8-95, foi a visita do Padre Zezinho em Formiga. Foi muito agradável. Hoje, dia 9-9-95, estou indo para BH para seguir para a praia junto [com] meu filho e noras. Luiza. Fiz o passeio na praia, senti [-me] muito bem, pena que foram poucos dias. 1.10.1995. O Robeson passou 4 meses comigo até reformar a casa deles. Já voltaram, estou só com Jesus e Maria e vou vencer até o fim, se Deus quiser. Eu sempre tive o desejo de passar o 1º dia do ano em uma praia, mas ainda não foi possível, não tive esta oportunidade, mas quem ler não precisa ter pena de mim, é porque não mereci cumprir este desejo. Mas ganhei muitas coisas boas, passeei enquanto aguentei. Hoje não devo sair com estranhos, já não dou conta de resolver sozinha.”

Ao ler essa passagem de seu diário, fiquei um tanto constrangido, pois não me lembrava de lhe ter realizado o desejo de pas101

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sar o réveillon na praia. Ela não era de exigir as coisas e, quando as pedia, o fazia quase que num comentário ou sugestão. Muitas das vezes, planejava suas viagens e excursões sem muito alarde e com suas próprias economias. O fato é que, como ela mesma escreveu, se seus sonhos não se realizassem, entendia que não os merecera cumpridos. “Salve 24-12-1996 – 16:20 horas. Eu, Luiza, entro o ano de 1997 muito feliz, saúde regular e vivo bem com a vida e junto com meus filhos e netos. Agora tem uma hora e meia que o Papa João Paulo II chegou ao Rio. Falou sobre a família e sobre a paz e está percorrendo as ruas de carro móvel até [a] Candelária. 3-1-1997.

[...] este fim de ano 1997 foi ótimo ter a visita do Papa, muita alegria e oração no Rio J. Mas pela televisão, nós apreciamos, participamos de tudo que passou, graças a Deus. Agora estou [me] preparando para ir a Arcos, aniversário do Carlos Henrique. Vamos encontrar toda a família. Isto é ótimo. Tudo acontece na véspera do Natal e aí dia 26 de dezembro viajo para a praia. Estou muito contente. 15-1-1998 Luiza. Fiquei muito contente neste Natal. Reuniu-se toda a família em minha casa, uma pequena ceia de leitoa, peru, vinho, cerve102

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ja e foi uma alegria só. As crianças alegres com os presentes que o Rubinho sempre faz a festa. Os adultos também tiveram os seus, o que é bom é a paz. Eu, com meus 76 anos, dia 26 do 12 fui para a praia e passei lá o 1ª de janeiro. L.”

Fiquei aliviado ao saber que Luiza realizara seu desejo de passar o dia primeiro do ano na praia. “Tive um Natal ótimo, estava recuperando bem, meus filhos reuniram-se em minha casa, foi grande alegria que senti junto com noras, netos e meus queridos filhos. Ganhei deles muito carinho e muito amor. Sr. Meu Deus, obrigada por tudo. Hoje, dia 12-2-1999. Estou de saída para as praias do E. Santo. Vou com Robeson e família. 9-9-1999. Voltei a viajar para Caldas Novas, em Goiás. A Ruth foi junto e fomos muito felizes, graças a Deus. Hoje, 21-9, recebi a visita do quadro capelinha da Mãe Rainha. Agora estou em véspera de ir a BH. Salve 21-9-999, eu já conto com 78 anos de idade, boazinha e sempre fazendo minhas lidas da casa.

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O Rubens trabalhou em Natal [na verdade, a cidade de Belém do Pará], rodou de avião para lá e para cá e eu ficava com o coração apertadinho, mas vencemos, ele foi feliz e com saúde. Graças a Deus. Voltou a BH e com dinheiro ajudou a todos nós. Só sei agradecer a Deus todo minuto de minha vida. Obrigado, sr. Deus pai. Luiza com 78 anos.”

Luiza recebendo a “Mãe Rainha” (1999)

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“21-11-1999 – Já fim de ano, temos grande alegria. São 2000 mil anos [do] nascimento de nosso salvador. Se Deus quiser, vai haver mudança para melhor a nossos irmãos que sofrem com falta de moradia, doenças e fome. Eu estive um pouco doente, mas agora estou regular. Passei muito bem. E dia 10 vai ser a formatura do Robeson, outro advogado na família, obrigado Jesus, sou muito feliz. Terminou o ano de 1999, eu tenho ótimos filhos, lindos netos. Tudo foi bom, festas de aniversário, festas de Igreja, afinal todos os irmãos, ricos, pobres, novos, velhos, crianças, doentes, todos reunidos na paz de Jesus, Maria [e] José. Luiza. Salve [o] ano novo. Carta para o Ano 2000. 31 de dezembro. Sr. Meu pai do céu, muito obrigada por tudo que aconteceu para mim neste ano. Tudo foi bom. As dores, doenças e alegrias, tudo passou e sou feliz com as vontades de Deus [que] olhou-me com carinho. Obrigado, Luiza. 21-12-1999”

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Essa singela “Carta para o Ano 2000” contém uma profunda e interessante lição. Ser feliz é o grande objetivo de todos nós e, para isso, perseguimos as coisas e circunstâncias que achamos que vão nos proporcionar esse estado de espírito. Contudo, Luiza nos ensina que ser feliz independe de “tudo de bom ”, das “dores, doenças e alegrias ” que acontecem “para ” nós, porque tudo passa, menos a felicidade que deve se irradiar de dentro para fora. “1-5-2000. Estou com 79 anos. Hoje, 1º de maio, começo do mês de Maria Santíssima e dia de São José, pai adotivo de Jesus. Fiz uma caminhada de 4 quilômetros com um batalhão de gente, fomos rezando, ouvindo palestra, até o local onde se vai construir a Igreja de S. José, protetor do trabalhador e família. O lugar é no Bairro Maringá. 2001, Graças a Deus, foi ótimo para mim e toda família. Tivemos saúde, paz, alegrias [e] muita amizade entre nós. Hoje, 28 de janeiro de 2002, estamos em começo de ano novo. Já estamos em Setembro de 2003 – Foi um ano regular, não muito bom e nem ruim.”

E a última frase de seu diário. “29-9- [2]003. 8 horas e 15 minutos, sábado. Dia do Idoso ”. 106

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“MÃE, PRAZER EM CONHECÊ-LA!” Saí de casa muito jovem para estudar num colégio interno. Tinha doze anos e era, considerando a época, 1965, muito infantil. Voz de criança, ainda usava o que se chamava de “calças curtas”. Era franzino e tímido. Nas primeiras férias em casa, depois de seis meses, causei um impacto muito grande nos parentes. Visualmente, estava maior, mais saudável e, o grande susto, minha voz já era grave, de adulto. Além disso, eu havia assimilado um pouco o sotaque dos colegas paulistas e aprimorado o sofrível português que falava corriqueiramente. Depois, em razão dos mais longos períodos de ausência e poucas semanas de férias por ano, o distanciamento entre mim e a família tornou-se mais acentuado, principalmente depois de sair do seminário e iniciar a vida profissional no Rio de Janeiro, onde me tornei adulto, nos anos setenta, sob influência da abrupta evolução dos costumes iniciada na década anterior pela geração “paz e amor”. Resumindo, Luiza não viu aquele filho crescer, não participou dos períodos conturbados de sua adolescência e naturais descobertas. Não conhecia seus hábitos, costumes, rotinas ou preferências alimentares. Não ficou sabendo, de imediato, quando conseguiu seu primeiro emprego, não participou de sua formatura de segundo grau e nem do bacharelado em Administração de Empresas, não conheceu sua primeira namorada. Enfim, até então, eu não havia compartilhado plenamente com minha mãe e irmãos as alegrias de minhas conquistas, nem as aflições e dificuldades que enfrentei durante aquele longo período de ausência. Em contrapartida, a recíproca era verdadeira. Assim, quanto voltei ao convívio familiar, sentia-me um estranho no ninho, e o ninho não sabia como acomodar aquele corpo estranho. 107

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Portanto, depois de mais de vinte anos, minha mãe e eu éramos duas pessoas que, indiscutivelmente, se amavam, mas não se reconheciam. Foi difícil, custosa e sofrida a, digamos, “refamiliarização”; porém, lentamente, fomos nos redescobrindo e nos reconstruindo como elos de uma mesma corrente. Até que um dia, Luiza já havia se reentronizado como mãe de Rubens e podia se dar o direito, e o dever, de assumir o comando sobre aquele filho “repatriado”. Já o tratava como os demais filhos, embora estes achassem que ele era alvo de favorecimentos especiais. Ela já se sentia autorizada a lhe dar conselhos, combater seus maus hábitos, opinar sobre cuidados com saúde e zelo profissional. Em contrapartida, eu pude ir me familiarizando com sua personalidade forte, caráter impoluto, conduta reta e espiritualidade inconteste. Ela me impressionava com sua simplicidade e dignidade, com sua clareza de raciocínio e, principalmente, com a agilidade mental para não deixar passar oportunidades de enriquecer as pessoas com seus conselhos, opiniões e, obviamente, “puxões de orelha”. Por essa época, eu tinha uma namorada, que foi a primeira a frequentar a casa de minha mãe. Elas se tornaram amigas. Meus irmãos já eram todos casados, “na igreja e no papel”, e o meu “relacionamento” com a tal namorada causava um certo desconforto em Luiza, pois sempre fora ferrenha nos seus princípios morais, civis e religiosos. Ela gostaria que eu também seguisse a rígida cartilha da “Tradicional Família Mineira”. Abordou diplomaticamente o assunto comigo, iniciando por me perguntar se havia algum impedimento para que me casasse com a tal moça. Isso era uma possibilidade, ela deve ter imaginado, em razão de saber pouco sobre minha vida pregressa. Disse-lhe que eu e a namorada fazíamos parte de uma nova geração, na qual o que valia realmente era comprometimento pessoal, e não a formalidade da religião ou do registro civil. Minha mãe não se deu por satisfeita, é claro, e me recomendou que pensasse no assunto, dizendo que um homem sério – que ela acreditava que eu fosse – deveria assumir suas responsabilidades de maneira formal. E, mais, se eu equiparava “relacionamento” a casa108

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mento, por que não oficializar a situação? Ao final, arrematou com uma frase que me deixou um tanto desnorteado: - “Olha, meu filho, o que serve para enrolar, serve também para cobrir.” Com sua forma simples de falar, foi destrinchando a profundeza dessa frase. Mais do que simplesmente querer me dizer que “relacionamento” era, na verdade, “enrolação”, estava também querendo resgatar a dignidade da mulher que convivia comigo, que, segundo minha mãe, apenas me servia, sem ser servida, que me protegia, mas que não era protegida. Se eu me sentia bem-aceito, acolhido por aquela mulher, abraçado (enrolado) por aquela mulher, deveria haver a contrapartida, eu deveria aceitá-la também como esposa, acolhê-la, abraçá-la e, consequentemente, fazê-la cumprir sua primordial missão, ou seja, ser “coberta” (fecundada), formar uma família, me aquietar. Ao final, ela fez menção de me pedir desculpas por estar interferindo no meu modo de viver, mas eu a interrompi dizendo que ela estava certa. A partir daquela conversa, deixou de existir distanciamento entre nós. Assim era sua postura nas várias ocasiões em que tinha, por dever, ou por provocação, que emitir sua opinião, dar conselhos ou tomar alguma atitude. Objetiva, sem ser agressiva; franca, sem ser ofensiva. Sempre com as palavras certas e raciocínios claros, aproveitava a oportunidade propícia para atingir seus objetivos, estes, sempre favoráveis material ou moralmente a quem se dirigia. Por isso era respeitada e, como tal, atraía a amizade e consideração de muitas pessoas, não só parentes e amigos, mas também de estranhos, que, muitas vezes, tinham com ela um contato de poucos minutos, mas que acabavam “hipnotizados” por sua simpatia. Luiza tinha, também, um lado misterioso, fantástico. O folclore brasileiro é muito rico por causa das influências recebidas de culturas e costumes das variadas raças e etnias que amalgamaram o nosso povo. No início do século passado, década de 109

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vinte, quando Luiza Soares de Jesus nasceu, o imaginário popular era recheado de lendas, crendices, feiticeiras, benzedeiras, maldições, simpatias, bênçãos etc. Em sua família, por exemplo, acreditava-se que sua avó, chamada de Vó Bana, cujo nome original era Mariana Leonor Goulart, possuía poderes paranormais. Segundo se dizia, ela sabia “rezas brabas”, benzia as pessoas, tirava “encostos” e coisas do gênero. Ela própria não negava essa fama. Eu e meu primo José Maria gostávamos de lhe pedir que nos contasse estórias “do tempo em que os bichos falavam” e de assombrações e almas penadas, o que, mais tarde, costumava tornar nossos sonos agitados. Ao contrário de Mariana, a sua filha, Ana Amélia (Goulart de Melo) de Jesus, conhecida como Sinh’Ana, era pessoa pacata e muito religiosa, e sobre ela não havia relato algum de que tenha herdado esses “poderes” fantásticos. Entretanto, com relação a minha mãe, pesava-lhe alguma reputação mística insólita. Era procurada por mães aflitas que traziam seus bebês com febre e chorando muito para que os curasse. Ela os tomava nos braços, murmurava alguma coisa em voz baixa, fazia o sinal da cruz sobre sua cabecinha com um terço ou ramo de alecrim e, em poucos minutos, a criança dormia feito um anjinho barroco. Bastante cético, eu imaginava que a mágica talvez estivesse no jeito de embalar o bebê que, certamente, já exausto de tanto chorar e se agitar, acabava por ceder ao sono. Contudo, isso acontecia com todos os bebês que lhe eram trazidos para a bênção. Ouviam-se comentários de que Luiza era muito poderosa e os efeitos de suas benzeduras eram duradouros. Questionada sobre o que dizia, ou rezava, nessas bênçãos curativas, ela disse que apenas pedia a Deus para dar alívio àquelas crianças que, nessa fase, sofriam de cólicas. Eu a encarei, esperando que me dissesse mais, que revelasse o truque, mas ela, um pouco encabulada, apenas disse: - “A fé faz milagres, filho!” O postulado basilar do cristianismo é a fé. A fé remove montanhas, rezam os evangelhos. E fé não faltava em Luiza. Ela era procurada também por muitos adultos que desejavam que os “rezasse”. Isso deu início a um vaivém anormal de 110

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pessoas desconhecidas em sua casa, o que causava preocupação aos filhos. Delicadamente, pedi-lhe para que não realizasse mais essas curas, pois temia que, à medida que sua fama fosse se espalhando, mais pessoas viessem procurá-la e, dentre elas, gente inescrupulosa e maldosa que poderia lhe causar algum mal material ou físico, porquanto era idosa e morava praticamente sozinha. De fato, ela foi diminuindo os “atendimentos” e, com o tempo, já não os fazia mais. Posteriormente, senti-me arrependido por ter lhe inibido essa prática, pois, afinal, era apenas uma questão de fé. Entre as miudezas de seu espólio, encontraram-se várias orações escritas de próprio punho, que talvez fossem as rezas que ela pronunciava ao “benzer” as pessoas. Havia preces para curar o tabagismo, alcoolismo e outras invocando proteção para viagens e saúde, além de anotações sobre doenças, detalhando suas causas e efeitos, bem como dietas e remédios apropriados a cada uma.

Oração contra embriaguez e abuso de entorpecentes

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Um caso espetacular desse suposto poder de Luiza teve a minha participação. Tia Maria, irmã caçula de Luiza, saiu de casa muito cedo e ficou longo período sem dar notícias à família. Décadas mais tarde, já casada e com família formada, reapareceu e voltou a manter convívio com os parentes. Entretanto, depois de seu divórcio de Manoel de Oliveira Lima, voltou a perder contato com a família. Luiza mandava-lhe cartas para o endereço em Petrópolis, RJ, sem obter respostas. Mais tarde, as cartas passaram a ser devolvidas pelos Correios, por não se localizar a destinatária. A preocupação de minha mãe com a irmã começou a se intensificar, então pediu-me que fosse ao Estado do Rio de Janeiro tentar localizá-la. As poucas pistas existentes indicavam que tia Maria residira algum tempo na casa de Petrópolis, que lhe coubera na partilha da separação judicial. Depois, vendeu esse imóvel, indo morar na Baixada Fluminense. Daí, mudou-se para Niterói. As diligências realizadas nessas localidades quase restaram totalmente infrutíferas, não fora uma antiga vizinha, em Niterói, ter relatado que a conhecera bem. Disse mais, que, em certa ocasião, Maria a procurara pedindo ajuda, pois havia sido assaltada, perdendo todas as suas economias, mas que ainda tinha algum saldo numa Caderneta de Poupança em Petrópolis. Essa vizinha emprestou-lhe dinheiro, mas não teve mais notícias dela. Com essa informação, retomei as investigações em Petrópolis, sem maiores progressos. Restava, então, pesquisar os obituários. Minha mãe, contudo, tinha certeza de que a irmã estava viva em Petrópolis e me disse que iria orar para que Maria aparecesse e me recomendou que fizesse o mesmo. Ditou-me a prece que deveria repetir com bastante concentração: “Maria, já que não consigo chegar até você, que venha a mim, se viva estiver”. À noite no hotel, em Petrópolis, antes de dormir, concentrei-me e fiz a oração. Na manhã seguinte, domingo, visitei os pontos turísticos do centro de Petrópolis. Na verdade, esse passeio era mais para pro112

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porcionar alguma distração à namorada que me acompanhava naquela enfadonha viagem do que efetivamente para procurar por tia Maria. Visitamos o Museu Imperial, a casa de Santos Dumont e, depois, fomos caminhar pela praça D. Pedro, e qual não foi minha surpresa ao ver, sentada num dos bancos, uma senhora idosa e cabisbaixa: era tia Maria! Ela demorou a me reconhecer, confundindo-me, inicialmente, com meu irmão mais velho, Rui. Encontrar Tia Maria naquele banco da praça D. Pedro foi algo totalmente incrível. Petrópolis é uma cidade que se desenvolveu margeando o Rio Piabanha, e, ao longo do tempo, com a expansão imobiliária, as íngremes encostas também foram sendo povoadas. O acesso a certos pontos desses bairros mais altos, ainda hoje, é feito somente a pé, através de longas escadarias ribanceira acima. Tia Maria, praticamente indigente, vivia de favor num pequeno compartimento de depósito, nos fundos de uma casa ao final de uma escadaria de mais de cem degraus. Com uma lesão no joelho esquerdo, ela, numa dolorosa “via-sacra”, descia e subia aquela escada uma vez ao mês, para receber sua pensão alimentícia, oriunda do divórcio. Porém, por não estar mais suportando tal esforço nos últimos tempos, entregou o cartão magnético e senha à pessoa que a acolhia, para recebimento da pensão. Aproveitando-se da situação, o senhorio, alegando que lhe fornecia alimentação e moradia, retinha todo o dinheiro, deixando Maria sem recursos nem mesmo para comprar analgésicos. Há meses que não vinha ao centro da cidade, sentindo-se sozinha e infeliz. Naquele domingo, resolvera, apesar da enfermidade no joelho que a incomodava, vir à praça D. Pedro relembrar os tempos em que fora feliz naquela cidade. Esse reencontro inesperado de tia Maria, além de realizar o desejo de minha mãe, proporcionou-me a oportunidade, décadas mais tarde, de lhe retribuir a ajuda que ela me prestara no início de minha vida profissional, ao me acolher em sua casa de Angra dos Reis. Eu a resgatei daquela situação vexatória, alugando-lhe um pequeno apartamento em Belo Horizonte, onde viveu por alguns 113

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anos. Mais tarde, sentindo o peso da idade, preferiu mudar-se para Formiga, onde pôde conviver com suas irmãs Luiza e Floripes. As três, depois de tantos anos, puderam se reunir, felizes, num flagrante assinalado por Luiza como “As Três Mosqueteiras”.

As irmãs, da esq., Floripes, Luiza e Maria (2001)

Além de benzeduras e mentalizações para fins mais humanísticos, há alguns relatos de Luiza ter colocado sua fé a serviço de interesses mais práticos. Em seu diário, ela nos dá conta de um fato: “A Viação Campo Belo estava fazendo promoção de passagem para 3 casais para ida a Aparecida do Norte. Eu escrevi 2 cartas, 1 para Ruth e outra para o marido dela, o Joaquim. Ganhei e eles foram viajar dia 13 de agosto [93]. Fiquei muito feliz.” 114

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Esse sorteio, no entanto, não foi o primeiro em que fora contemplada. Vinte anos antes, Luiza planejava cumprir uma promessa que fizera de visitar o Santuário de Nossa Senhora da Aparecida, no vale do Paraíba, no estado de São Paulo. Porém, como a situação financeira da família não era das melhores, não tinha como arcar com os custos da viagem. Assim, ao tomar conhecimento de uma promoção da Rádio Inconfidência de Belo Horizonte, que sortearia uma viagem à Aparecida do Norte com as despesas de viagem e hotel pagas, ela deve ter feito suas mentalizações e se inscreveu na tal promoção. De fato, foi sorteada, conforme comprova a carta abaixo reproduzida. Cumpriu, então, a promessa que fizera há alguns anos em favor do restabelecimento da saúde da filha, Ruth.

Noutra ocasião, minha irmã Ruth precisava de uma geladeira nova, mas o dinheiro andava curto. Luiza, ao ficar sabendo de uma promoção em uma loja de eletrodomésticos, preencheu um úni115

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co formulário e o depositou na urna disponibilizada naquele estabelecimento comercial. Resultado: Luiza Soares de Jesus, contemplada! Esses fatos são curiosos e de somenos importância, pois o grande e verdadeiro milagre que Luiza Soares de Jesus operou foi o de conduzir uma pequena e frágil embarcação, sua família, por águas turbulentas, contando apenas com o sopro de sua fé para inflar suas velas, e trazê-la a um porto seguro, vencendo uma tragédia que, a cada dia, se anunciava mais próxima, mas que, ao final, não se consumou. A par de seu caráter firme e princípios morais, religiosos e civis apurados, cultivava alegria. Gostava de ler, de cinema e festas em geral. Quando artistas de renome vinham se apresentar na cidade, pedia a seus filhos que a levassem aos shows. “Se Deus quiser, quero passear muito, gosto de ir em festas.”

Luiza, 83 anos, e Marla (2004)

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Nesses eventos, ela se iluminava de alegria e descontração, participando ativamente da animação, como se vê no flagrante da comemoração do aniversário de quarenta anos de sua nora Marla, onde se pode notar o grande ar de felicidade em seu rosto, equiparado ao da aniversariante. Ela também se divertia com as coisas mais corriqueiras do dia a dia e casos engraçados da família. Um desses, envolvendo o filho mais velho, Rui, e seu aprendizado de leitura, tornou-se lenda familiar. Havia em casa um calendário de parede de doze páginas, ilustrado, no qual, em cada mês, estampava-se a imagem de um animal e seu respectivo nome. Para auxiliar o aprendizado do filho, Luiza soletrava-lhe a palavra, no caso, jacaré, formando as sílabas para que ele, então, a dissesse por inteiro. Depois de algumas tentativas frustradas, Luiza recomendou ao filho que observasse bem a figura. Ele, então, num lampejo “de inteligência”, exclamou: - “É lagartixa, mãe!” Ela contava e recontava essa história, não como uma forma de “bullying”, apenas adorava uma boa e sadia piada. E, obviamente, isso em nada afetou o desenvolvimento intelectual de meu irmão. Outro caso, que seria cômico, não fosse trágico, referia-se a um parente dela, muito simples, que, por ocasião da Segunda Guerra Mundial, temia que os bombardeios aéreos que ocorriam na Europa também pudessem atingir a cidade de Formiga. Ele resolveu voltar para a roça donde era originário, entendendo que lá teria mais segurança. De fato, colocou sua pequena mudança numa carroça e partiu. Corria o mês de junho, e o tal parente, na mesma noite que chegou a seu sítio, resolveu ir aos festejos juninos que ocorriam no arraial. Eclodiu uma desavença entre os festeiros e alguém fez uns disparos de revólver, sendo que uma bala perdida o atingiu, causan117

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do-lhe a morte. Luiza sempre arrematava essa história dizendo que fugir da morte é, na verdade, correr em sua direção. Ela também se divertia com uns versos recheados de cacofonias e disparates que recitava, fazendo a alegria dos filhos e a dela própria, que se enrubescia de tanto gargalhar, como os que seguem: - “Desde que peguei amá-la / meu coração por ti gela / meus amores por ti são / e a lua vem nascendo / redondinha como um envelope / se não queria casar comigo / por que me pediu a égua emprestada?”

Luiza, 80, apreciando o vinho.

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HUMOR NA DOR Seu senso de humor jamais a abandonou, mesmo em momentos dramáticos. Minha mãe era altamente diligente com seu bem-estar físico e mental. Não se descuidava. Fazia check-ups regularmente, tinha atividades físicas, fazia caminhadas e hidromassagem. Gostava de viajar para a praia, para Caldas Novas, Aparecida do Norte e cidades circunvizinhas onde moravam parentes mais próximos. Também participava de eventos sociais da terceira idade, além, evidentemente, de frequentar a Igreja Católica e atividades de assistência social. Gostava de se alimentar bem, tomar vinho. Porém, ocorreu de, aos quase oitenta e quatro anos de idade, ser acometida por um câncer. A princípio, suspeitava-se de uma gastrite ou esofagite, sendo que os recursos médicos de uma cidade do interior não proporcionavam diagnósticos precisos e rápidos. Com isso, os sintomas foram se agravando, e ela, perdendo peso. Depois de algumas semanas, um dos médicos confidenciou aos familiares que a doença era grave, recomendando que consultasse um oncologista em Divinópolis ou Belo Horizonte. A suspeita de que Luiza estivesse com câncer, aos quase oitenta e quatro anos de idade, trouxe, sem dúvidas, grande apreensão para toda a família e amigos. Mas não havia como fugir, era inadiável enfrentar a realidade. Meus irmãos e eu a levamos ao Hospital do Câncer em Divinópolis, para uma bateria de exames mais especializados. O médico que a atenderia tinha uma aparência um pouco desleixada e se movimentava nervosamente de uma sala a outra, 119

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falava ao telefone, dava ordens a enfermeiras, conferenciava com colegas, trocava palavras com pacientes pelos corredores, de sorte que fiquei um pouco inseguro se ele daria à nossa querida mãe uma atenção especial. Porém, quando chegou à sala de espera, o médico leu de forma carinhosa o seu nome e a procurou com um olhar suave. Ajudou-a a se levantar e a conduziu para o consultório, fazendo um gesto para que eu os acompanhasse. À medida que fazia os exames físicos e consultava os laboratoriais e de imagens, conversava com ela em tom calmo, perguntando sobre sua idade, filhos e coisas corriqueiras. Ao final, voltou-se para Luiza e disse de forma carinhosa: - “Dona Luiza, eu tenho uma notícia para lhe dar!” Claro que ela sabia do mal que padecia, mas, até aquele dia, ninguém tivera coragem de lhe dizer ou lhe perguntar. No momento, havia uma tensão no ar. Eu temia que o médico, com todas as letras, lhe dissesse o nome da enfermidade. Mas ele trouxe uma primeira pitada de humor: - “A senhora está grávida!” Houve um momento de descontração. Todos riram. Mas a obra-prima estava por vir. Luiza voltou-se para o médico e, com incrível presença de espírito, disse-lhe, quase num sussurro: - “Bem, doutor, pelo tamanho do incômodo que estou sentindo, devem ser gêmeos!”

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PAIXÃO, AMOR, ORGULHO E RESPEITO Meu pai, Geraldo, faleceu aos cinquenta e quatro anos de idade, de câncer de pulmão e derrame pleural, na cidade de Goiânia, e, curiosamente, num hospital chamado “Santa Luiza”. Na certidão de óbito, lavrada no Cartório de Registro Civil da 2ª Zona da cidade de Goiânia, GO, consta que o “extinto deixa bens, conforme afirmou o declarante [Joeli Alves de Oliveira]”. Mas Luiza escreveu em seu diário que “O marido nunca mandou nada, não deixou nada, faleceu aonde vivia, data 05-12-1973”.

Na verdade, talvez Luiza quisesse dizer que, embora o marido tivesse bens, não deixara consignado, verbalmente ou por escrito, que se deveria dar ciência a sua família em Minas sobre isso, para pleitear o que fosse de direito. Aliás, antes mesmo de receber o comunicado de falecimento do marido, ela já havia decidido não reclamar esse patrimônio, pois o importante teria sido que ele tivesse lhe prestado assistência quando ela mais necessitara. Já agora, não tinha interesse em se aventurar num conflito com possíveis interessados nesses bens lá no Brasil Central. Por outro lado, nunca fez segredo do orgulho que sentia de ter dado “conta destes filhos ”, vendo-os, agora, estudados, casados e “bons demais para mim, eu adoro eles cada vez mais ”. Embora tendo consciência de que o abandono do marido fora a causa principal da vida difícil que levou, sempre passou para seus filhos a mensagem de que deveriam respeitar a memória do pai, ainda que não o tenham conhecido bem, assim como ela respeitava nossos sentimentos com relação a ele. Dela, nunca se ouviu qualquer palavra ofensiva ou adjetivo que o desmerecesse, fazendo sempre 121

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questão, quando falava dele, de ressaltar-lhe as qualidades, o bom humor e o caráter amoroso com relação aos filhos e a ela mesma. Assim é que, percebendo que a morte do pai afetara muito ao filho mais velho, Rui, ela lhe sugeriu que fosse a Goiânia, numa espécie de ritual de despedida, recolher alguma lembrança ou simplesmente depositar uma flor sobre o túmulo. Embora ela o tenha acompanhado nessa viagem, não foi a Goiânia, preferindo aguardar em Anápolis. Separado de minha mãe, meu pai viveu em Goiás por cerca de treze anos, constituindo lá um novo círculo familiar e de amizades. Aquela região do Planalto Central atraía aventureiros de toda sorte, e a ninguém se exigia apresentação de “pedigree” ou atestado de bons antecedentes. Não se faziam muitas perguntas, nem muitas respostas eram dadas, embora se soubesse que estas e aquelas poderiam, a qualquer momento, vir à tona. Assim, quando meu irmão saiu à procura das pessoas que haviam dado a notícia do falecimento de nosso pai, sua presença causou certo alvoroço naquele bairro de periferia de Goiânia. Em razão de não ter o endereço exato, Rui tinha que colher informação batendo de porta em porta. À medida que ia se deslocando de um logradouro a outro, uma pequena multidão prestativa e curiosa o seguia, querendo se inteirar dos detalhes de sua visita. Finalmente, localizou a família que cuidou de nosso pai em seus últimos meses de vida. Em rápida conversa, explicou o motivo de sua viagem, esclarecendo, de imediato, que não vinha reclamar os bens do falecido. Aliás, por orientação de nossa mãe, trataria da transmissão deles a quem os detivesse por posse pacífica. Isso trouxe certo alívio àquela família, bem como a outra, residente na vizinhança, que também ocupava um imóvel, sem título legal. A ida a essa outra casa foi igualmente acompanhada pelo cortejo de curiosos, que aguardava na rua o desfecho da conversa. No dia seguinte, Rui compareceu ao cartório local para formalizar as respectivas transmissões de propriedade dos imóveis àquelas famílias, o que foi realizado sem o rigor legal pertinente, com 122

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a conivência do tabelião. Cumprida a missão que Luiza lhe confiara, voltou a Anápolis para encontrá-la, levando consigo uma mala, que lhe fora entregue, com objetos, documentos e outros pertences de nosso finado pai. Na viagem de volta a Formiga, de trem, Rui abriu a tal mala, mostrando à mãe aquelas miudezas. Com o coração apertado, Luiza lançou um olhar sobre aquele mínimo espólio, sem querer, na verdade, examinar o que havia ali. Porém, respeitando os sentimentos do filho, sugeriu-lhe que guardasse o que eventualmente quisesse como lembrança e, depois, se desfizesse do resto. Havia uma foto do corpo de nosso pai exposto em seu féretro, que Rui lhe mostrou. Minha mãe a contemplou por uns segundos, bateu a mão espalmada sobre ela e disse: - “Descanse em paz, Geraldo!” – virou-se para o lado e exclamou: “Pronto, acabou! Não quero ver mais nada. Pode se livrar disso tudo!” Rui pegou para si uma coisa ou outra, fechou a mala e lhe perguntou se era mesmo para se livrar dela. Luiza confirmou. O trem se aproximava da ponte sobre o Rio Paranaíba, divisa entre os Estados de Goiás e Minas Gerais, e meu irmão, sem cerimônias, atirou a mala pela janela. Luiza se espantou com aquele gesto, mas os dois acabaram por achar graça da situação. Um passageiro, julgando que a mala havia caído acidentalmente, fez menção de acionar o alarme, mas foi contido por Rui, dizendo que estava tudo bem. Essa foi a última vez em que Luiza esteve em Anápolis. Anteriormente, em 1964, ela estivera lá, numa situação mais sofrida e dramática.

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ALMA LIMPA Geraldo e Luiza viveram vinte anos juntos e, como ela escreveu em seu diário, “eu queria que ele voltasse a viver em paz, continuar juntos, criar nossos filhos. Nós não tínhamos brigado, não tinha nada que nos amolasse ”.

Os dois se apaixonaram na adolescência, sendo cada qual o primeiro amor um do outro, amor que atravessou décadas. Em certa ocasião, quando eu tinha por volta de oito anos de idade, e meus pais, quase vinte de casados, os surpreendi dançando sem música e se beijando apaixonadamente na cozinha da casa. Fiquei quietinho num canto, observando os dois e tentando conter o riso com as mãos sobre a boca. Mas o riso escapou, os dois se assustaram. Meu pai também caiu na gargalhada, dizendo “O que você está fazendo aqui, seu moleque, xispa fora!”. É claro que, por mais pacíficas e harmoniosas que tenham sido as duas décadas de convívio, a inesperada separação e as terríveis consequências a que Luiza fora submetida afetaram o amor que sentia pelo marido. Mais do que isso, como Luiza tinha temperamento forte e autoestima exacerbada, ao não encontrar uma razão lógica para o afastamento do marido, sentiu-se ferida em sua dignidade e resolveu procurá-lo para, com paz no coração, tentar, não uma reconciliação, pois entendia que não houvera uma ruptura real, mas a retomada pelo marido de suas responsabilidades. Contudo, não há como negar que, por mais nobre que uma pessoa possa ser, a indiferença e o desprezo do outro podem fazer germinar no seu coração a terrível semente do ódio e desejo de vingança. Nesse momento, ninguém mais, além dela própria, poderia descrever o que se passou naquele encontro, cerca de quatro 125

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anos depois de ter sido abandonada. Por isso, parafraseando Camões, que cesse tudo o que a Musa antiga canta, pois uma voz mais alta se alevanta. E, como num filme de Woody Allen, Luiza sai da tela e vem, pessoalmente, reviver a cena: “Os três filhos menores não se alembravam bem do pai, o caçula [Robeson] tinha loucura para conhecer. Com ajuda de minhas amigas, deram-me um pouco de dinheiro, arrumaram uma carona na carroceria de uma caminhonete e lá fui para Anápolis, Estado de Goiás. Deixei os outros cada um em casa de família. Chegamos, fui conformar ele para voltar e lutar juntos para criar os filhos. Este marido não fez conta alguma, nem do menino e só dizia ‘o dia que vocês quiser voltar para Minas, dou passagem de volta ’. Eu queria que ele voltasse a viver em paz, continuar juntos, criar nossos filhos. Nós não tínhamos brigado, não tinha nada que nos amolasse. Ele não resolveu nada. Passamos 1 mês num quarto, parecia mais um galinheiro. Então pensei ‘o dinheiro que ele der para passagem, vou comprar uma garrucha. E Goiás era fácil, lá era a lei da bala. Treino [uns] dias, quando ele entrar, virar para fechar a 126

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porta, punha 2 balas nas costas dele, pegava o menino que já estava dormindo, ia [me] entregar à polícia, tudo acabava ali ’. Então era mês de maio, sempre fiz novena neste mês e dizia ‘Mãe do Céu, faça que eu aguente tudo de pé como vós nos pés da cruz com seu filho Jesus. Dai-me tua mão, Nossa Senhora’ . E ela na hora da tentação, diz-me ao ouvido ‘vá à Igreja, é mês de maio...’ Eu toda noite saia com meu filho, ia à missa, não rezava, ficava de pé, quando o povo ajoelhava, eu também. Fui ao confessionário, contei ao monsenhor, ele disse ‘venha toda noite, vou rezar para você ’. O menino tinha 7 anos, já confessava, falei ao padre ‘este que vai entrar é meu filho ’, até ontem não sei o que o padre falou ao menino. Bom, no fim do mês, meu filho mais velho, que ficou em casa, mandou um telegrama para o pai nos mandar de volta, se não, ele também viria com todos os irmãos. Este homem deu-me o telegrama e o dinheiro da passagem de trem e pensei ‘o que eu ia fazer? Meus filhos ver-me na cadeia ? Não !’ Peguei o menino, vim no 1º trem que partia. 127

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Cheguei feliz, nada mais, com a alma limpa e disse ‘obrigado minha mãe Maria Santíssima, você me salvou ’.”

Alma limpa! Luiza voltava de Anápolis com a alma limpa, a pedra filosofal da sobrevivência. Se tivesse mantido o ódio e o ressentimento em seu coração, certamente não teria tido energia, persistência, humildade e inteligência para ir travando e vencendo batalha após batalha até alcançar a serenidade da velhice, engalanada pelo orgulho do dever cumprido. “Aqui estou, rezo todos os dias, agradeço a ela [Nossa Senhora Aparecida], ajudou-me na hora da tentação e ajudou-me dar conta de meus queridos filhos.”

Cai o pano!

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A DESPEDIDA A manhã do dia vinte e três de abril de dois mil e cinco, sábado, estava muito brilhante. O céu completamente azul, e eu sentia uma inexplicável euforia no ar. Conduzia meu carro bem lentamente pelo centro da cidade de Formiga, observando o vaivém das pessoas, animadas e sorridentes, sendo que algumas me reconheciam e me acenavam. Estava indo em direção ao Hospital São Luís, a “Santa Casa de Caridade”, onde minha mãe, de oitenta e quatro anos, padecia de um câncer. Os últimos meses haviam sido de muita consternação para todos da família, pois assistíamos, impotentes, ao sofrimento da pessoa que mais amávamos. Vi meu sobrinho Helder, dono de um invejável sorriso, que também estava indo ao hospital visitar a avó. Nesse momento, acentuou-se em mim um sentimento de culpa, um conflito interno, seja pelo ar de euforia, seja pela alegria natural de meu sobrinho, em contrapartida ao trajeto em direção ao quarto frio e leito sofrido de minha mãe. Evidentemente, não me sentia no direito de ter uma sensação de felicidade. Não era o momento. Mentalmente me recriminava. Até mesmo o perfume de uma rosa, que levava para minha mãe, me incomodava naquela hora. Eu colhera aquela rosa do quintal de sua casa, onde ela cultivava algumas hortaliças, entre um mamoeiro e duas roseiras. Luiza dedicava especial atenção a essa minúscula horta, de sorte que couve, alface, cebolinha e hortelã estavam sempre viçosas. As roseiras também floriam regularmente. Ela, com certeza, ficaria feliz ao receber aquela rosa. 129

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De fato, emocionei-me ao vê-la sorrir, sentir o perfume da rosa e, tocando-a com os dedos, murmurar: “Que gracinha”. “Que gracinha” não é uma expressão usual para demonstrar admiração por uma rosa, mas, partindo de minha mãe, soava natural, pois cultivava, desde sempre, uma relação muito intimista e humana com a natureza. Conversava com as plantas e os animais, com a chuva, a noite e o sol. Ela ficou com a rosa por alguns instantes em silêncio e, antes de devolvê-la, teve comigo um rápido e surpreendente diálogo: - “Eu sonhei” – ela começou a dizer – “com um campo muito bonito, coberto por gramado bem verde e cheio de flores amarelas. O céu azul. Muito lindo. Um lugar muito lindo.” - “É? Me fale mais desse lugar!” – pedi. Depois de alguns segundos de silêncio, ela perguntou: - “Vocês já avisaram a minha mãe?” Fiquei confuso com a pergunta, porque minha avó Ana Amélia já havia falecido há cerca de treze anos. Diante de minha hesitação, os belos olhos azuis de minha mãe foram se marejando e duas lágrimas correram por suas faces. Ela, então, me devolveu a rosa que coloquei num pequeno vaso e passei a enxugar suas lágrimas. Eu tinha a nítida sensação de estar lendo seus pensamentos, como se estivesse a me dizer que estava de partida. Era o momento de dizer adeus. Eu não sabia exatamente o que lhe falar. Beijei-lhe a fronte e me afastei um pouco para olhar bem nos seus olhos e dizer a frase que jamais havia lhe dito: - “Mãe, eu te amo.” - “Eu também te amo, meu filho!” Ambos choramos em silêncio por alguns segundos até que o ruído da porta se abrindo nos apartou desse abraço emocionado. 130

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Era Helder que chegava, juntamente com minha cunhada Marla. O neto pediu benção à avó e trocaram algumas palavras. O contraste entre os dois era imenso. Helder é alto e forte, rosto largo, moreno. Luiza, àquela altura, talvez pesasse menos de quarenta quilos, a pele muito pálida e os cabelos totalmente prateados. Contudo, mesmo aos oitenta e quatro anos de idade, no seu leito de morte e trespassada por dores, fazia questão de se preparar para receber as visitas. Passava batom, alinhava os cabelos, colocava os óculos emoldurando seus belos olhos azuis e certificava-se de que seus brincos estivessem lá. “Uma gracinha”, poder-se-ia exclamar. Nos olhos de Helder, a tristeza de ver a avó em estado tão frágil. Eles se despediram. Ficamos somente minha mãe, sua nora Marla e eu. Deveriam ser dez horas e trinta minutos, pouco mais ou pouco menos. A próxima hora que se seguiu foi a última de Luiza nesta dimensão. Entre vinte e trinta minutos depois das onze horas da manhã do dia vinte e três de abril de 2005, eu e minha mãe estávamos com os braços entrelaçados. Eu lhe segurava o antebraço esquerdo, e ela, o meu. Um segundo antes de o brilho de seus olhos e o viço de sua pele se apagarem, senti os dedos dela comprimirem meu braço, em dois rápidos espasmos. Luiza exalou seu último suspiro de forma bem natural e tranquila. Marla fechou-lhe os olhos, beijei-lhe a fronte. Eu tinha, então, a dramática missão de abrir aquela porta e dizer a meus irmãos que nossa mãe Luiza acabara de falecer. No que pese a dor da perda, a notícia soaria como um alívio, em razão do sofrido calvário pelo qual ela, fisicamente, e nós, filhos, parentes e amigos, emocionalmente, havíamos passado naqueles últimos meses. Mas que palavras usar? Com um gesto, todos me entenderam. As lágrimas substituíram qualquer discurso. 131

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Naquele momento, não se sabia que Luiza, há treze anos, já havia encontrado as palavras certas para servir de conforto nesse momento. Em seu pequeno diário, no dia quatro de dezembro de 1992, ela registrou que aquele fora o dia mais triste de sua vida. Textualmente, escreveu: “Dia muito triste para mim pois devolvi a minha mãe a Deus. Agradeço a ele por ter emprestado Ana Amélia de Jesus para mim e meus irmãos.”

Belas palavras...

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POSFÁCIO: “DIÁRIO L.” Haveria, de fato, algum enigma ou mensagem cifrada, consciente ou inconscientemente, incrustados nesse “Diário L.”? A letra L corresponde ao lamed, assim grafado , que é a maior letra do alfabeto hebraico. Segundo a Cabala, essa letra significa a ligação com as esferas superiores. Com ela se escreve a palavra lamed, que significa “ensinar” ou “aprender”, representando, portanto, uma forma mais elevada de conhecimento. Também é a inicial do nome da personagem bíblica Liah, mulher de Jacó, que sofria por ser a esposa vista por todos como “segunda opção”, mas se consolou com o fato de poder, ao final, cumprir o seu destino. Casada com Jacó, teve dele seis filhos, conseguindo tornar-se uma matriarca. É exemplo consumado de mulher de valor, alguém que sofre por seus ideais, mas permanece resoluta em sua fé e devoção. Ela viu o seu caminho na vida e assumiu o seu controle, mudando as circunstâncias e assumindo a responsabilidade por seu destino para colocar as coisas em ordem (apud Deepak Chopra, Michael Zapolin & Alys R Yablon in Oráculo Cabalístico). Portanto, qualquer semelhança de Luiza com a personagem bíblica talvez não seja mera coincidência.

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APÊNDICE:

TRANSCRIÇÃO DO DIÁRIO DE

LUIZA SOARES DE JESUS “Diário L. 2.1.1990 Eu, Luiza, nasci de família pobre e humilde, éramos 6 irmãos. Sou a mais velha, lutei para ajudar meus pais. Casei-me 2.12.1942 com 20 anos, meu marido com 22, éramos como duas crianças simples. Estudei muito pouco, ele também não tinha cultura nenhuma, tomamos muitas cabeçadas para sobreviver, vivemos juntos 20 anos, tive 5 filhos. Eu dando conta dos filhos que eram bem perto um do outro, lida de casa, lavar, cozinhar, dar remédio, ainda fazia doces para colocar na venda, trabalhar no balcão, atendendo a freguesia sempre sorrindo. Não deu para ganhar dinheiro como ele queria, fomos para Goiás, cidade de Anápolis, em busca de melhora. Lá ficamos 5 anos no mesmo batido, ele abriu pequeno comércio, vamos à luta. Lá nasceu [nasceram] os 2 últimos filhos. Gastamos a pequena economia, a sorte não ajudou para ganhar coisa que pagava a pena. 135

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-Voltamos para Formiga, Com pouco tempo o marido voltou para Goiás. Disse que aqui não ganhava para dar conta de filhos. Esta foi uma desculpa sem pé e nem cabeça ! Eu fiquei com 35 anos, 5 filhos de menor, o mais velho por falta do pai ficou doente, sofreu amnésia. A moça, com 14 anos, empregou-se no serviço doméstico. Eu não tinha casa, nem 1 tostão e nem família para ajudar. Eu me conservei honesta de mãos dadas a N.S.Aparecida, lavando roupa, buscando lenhas nas horas vagas, porque trabalhava em restaurante e ganhava umas migalhas para fazer todas as despesas. Fiquei magrinha e o que ganhava repartia para todas as despesas e não dava para pagar aluguel, uma casa de 5 cômodos, pagava Cr$15.00 novos. Passei a morar numa casinha vicentina de chão, sem luz, nem água, fogão de lenha. Dei conta destes filhos. Graças a Deus e N.S.Aparecida, criei todos, estudaram e casaram. São ótimos pais de família e são bons demais para mim, eu adoro eles cada vez mais. Um filho que ainda é solteiro é uma joia para mim. Deu-me ótima casa com todo conforto. O dinheiro que recebo de aposentadoria de doméstica serve para compras de remédios para reumatismo. Hoje 20-10-1990, estou com 69 anos, vivo só, mas muito feliz. Tenho 7 netos que são minha alegria, 3 noras bacanas, 1 genro. 136

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O marido nunca mandou nada, não deixou nada, faleceu aonde vivia, data 1973-5-12. Fiz uma casinha simples que dei à filha, é a única mulher, os outros são 4 homens. A filha já casada, aconselhei a alugar a casa dela e pagar aluguel aqui perto para ser minha companhia. O marido não gostou, vai voltar de novo. E eu vou ficar só novamente. Os três filhos menores não se lembravam bem do pai, o caçula tinha loucura para conhecer. Com ajuda de minhas amigas, deram-me um pouco de dinheiro, arrumaram uma carona na carroceria de uma caminhonete e lá fui para Anápolis, Estado de Goiás. Deixei os outros cada um em casa de família. Chegamos, fui conformar ele para voltar e lutar juntos para criar os filhos. Este marido não fez conta alguma, nem do menino e só dizia “o dia que vocês quiser voltar para Minas, dou passagem de volta ”. Eu queria que ele voltasse a viver em paz, continuar juntos, criar nossos filhos. Nós não tínhamos brigado, não tinha nada que nos amolasse. Ele não resolveu nada. Passamos 1 galinheiro.

mês

num

quarto,

parecia

mais

um

Então pensei ‘o dinheiro que ele der para passagem, vou comprar uma garrucha. E Goiás era fácil, lá era a lei da bala. Treino [uns] dias, quando ele entrar, virar para fechar a porta, punha 2 balas nas costas dele, pegava o menino que já estava dormindo, ia [me] entregar à polícia, tudo acabava ali ’. 137

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Então era mês de maio, sempre fiz novena neste mês e dizia ‘Mãe do Céu, faça que eu aguente tudo de pé como vós nos pés da cruz com seu filho Jesus. Dai-me tua mão, Nossa Senhora ’. E ela na hora da tentação diz-me ao ouvido ‘vá à Igreja, é mês de maio...’ Eu toda noite saia com o meu filho, ia à missa, não rezava, ficava de pé, quando o povo ajoelhava, eu também. Fui ao confessionário, contei ao monsenhor, ele disse ‘venha toda noite, vou rezar para você ’. O menino tinha 7 anos, já confessava, falei ao padre ‘este que vai entrar é meu filho ’, até ontem não sei o que o padre falou ao menino. Bom, no fim do mês, meu filho mais velho, que ficou em casa, mandou um telegrama para o pai para nos mandar de volta, se não, ele também viria com todos os irmãos. Este homem deu-me o telegrama e o dinheiro da passagem de trem e pensei ‘o que eu ia fazer? Meus filhos ver-me na cadeia? Não !’ Peguei o menino, vim no 1º trem que partia. Cheguei feliz, nada mais, com a alma limpa e disse ‘obrigado minha mãe Maria Santíssima, você me salvou ’. Aqui estou, rezo todos os dias, agradeço a ela, ajudoume na hora da tentação e ajudou-me dar conta de meus queridos filhos. 25-3-1991 Minha filha ouviu o marido, mudou-se, saiu de perto de mim, deixou-me só de novo. Tudo que acontece, Deus é servido. 138

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Fiz uma visita a meu filho Rui do dia 19 de abril até dia 30. Foi ótimo [,] estava [m] juntos meus netos, nora e filho. Eu, Luiza, trabalhei no 1º Encontro EC do S.C.Jesus nos dia 3-4-5 de maio de 1991. Foi ótimo, muita oração e alegria com os colegas. 21-3-1991 Completei 70 anos, já não estou muita boa. Dor nas juntas das pernas, dificuldade para andar, mas faço força, finjo que não é nada, vou às missas, visito os filhos. Enquanto der conta, vou andar. Se Deus quiser, quero passear muito, gosto de ir em festas. Em 1990, tive um filho preso, não sei como agüentei estar calada. Não conversei este assunto com nenhum dos irmãos dele, minhas amigas e demais parentes não sabem nada. Eu fingia que não era nada. Peguei com Jesus, Maria S. para me dar forças. Eu ia visitá-lo, mas não gostava de ver aquele Tenente de cara triste, ali parado e inútil para o mundo. Graças a Deus venceu, voltou ao trabalho, mas já não é o mesmo de antes. Ele era alegre, disposto a satisfazer a todo mundo, hoje é um sorriso triste, sem graça. Mas venci mais este trabalho. Obrigada, Jesus. Estou aqui à suas ordens para lhe servir. Luiza. 17-6-1991 O Tenente aposentou-se da Polícia Militar, graças a Deus. Ele e a família estão felizes e eu também muito contente [por] receber esta graça que pedi. 139

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Robeson entrou de férias, convidou-me para ir para as águas de Furnas e saímos dia 14 e eu fiquei até 19 [do] mês de outubro 1991, foi ótimo passeio em casa de amigos de meu filho, que me trataram muito bem. Fiquei feliz da vida. 19-20.12.1991 25 de dezembro, passei junto do Rubinho e Robeson na casa dos sogros do Robeson. Foi muito bom e paz para todos nós. Dia 1º de janeiro 1992, fomos para a casa do Rui em Passos, foi ótima a farrinha. 6 de janeiro 1992, foi triste o velório de João da Aparecida. Morte repentina que muito nos abalou. Eu já estou sentindo que alguma coisa já não está bem comigo. O médico diz que estou com água no pulmão do lado esquerdo. Eu sinto uma dor leve no peito e no rim do lado esquerdo. 19-20 Dezembro 1991 foi dia de grande alegria para mim e os irmãos do Rubinho. Nós assistimos a formatura do Rubens. Coisas tão lindas que nunca pensei que ia ver. Obrigada Jesus. 1 fevereiro 1992 fui na festa de debutante da Belissa, filha do Alair, me diverti muito. Gostei da organização e do bem que eles trataram a gente, hoje 4.2.1992. Em começo de abril, a Sinhana, minha mãe, esteve muito mal de saúde, mas, graças a Deus, ela se recuperou e está ótima. Hoje, 30 de abril. 140

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Hoje 17 de maio de 1992, estou me lembrando [de] quando construímos a matriz do S. C. de Jesus. Cada serviço que tinha nesta Igreja tinha uma ajuda da gente. Não me lembro bem, mas mais ou menos em 1950 eu e mais colegas fomos paraninfas da pedra fundamental, benta pelo padre Remaclo F. Ali no fundo do alicerce, ficou minha pequena lembrança. Fomos aos trabalhos, fazendo barraquinhas, rifas, tudo que podia. Dava coisas para o leilão. Meu marido gostava de arrematar leilões, tudo para ajudar. Nós morávamos ali bem ao lado e também construía nossa família. Meu terceiro filho nasceu ali de lado e vendo aqueles paredões crescendo. A grande Matriz que é hoje. S.C. de Jesus. 7 de agosto de 1992 Agradeço a Jesus pela graça recebida. Meu filho Rubens começa a trabalhar no serviço judicial. Obrigada por este filho inteligente e sadio. 4-12-1992 – 1ª sexta feira Dia muito triste para mim pois devolvi a minha mãe a Deus. Agradeço a ele por ter emprestado Ana Amélia de Jesus para mim e meus irmãos. Fiquei contente com Jesus, deu-me força para aguentar junto dela, aproveitei ela sólida e aos poucos foi perdendo as forças e dando uns últimos suspiros... Em 3/3/93, eu operei de uma das vistas em Belo Horizonte, Clinica Hilton Rocha e fui muito feliz, graças a Deus. Tem hora que penso que estou escrevendo muita bobagem, até detesto. Escrevo muito mal, tenho medo de alguém encontrar. Me dá vontade de rasgar, mas penso 141

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[que] estou fazendo só para me recordar alguma coisa. Pouco importa se alguém não vai entender nada disso que escrevo. 1/4/93 Tudo novo. Tem nossa boa Semana Santa. Estamos de novo em véspera da Semana Santa. Se Deus quiser que vou aproveitar muito, fazer penitência, agradecer a Deus e fazer boas caminhadas. Dia 12/4/1993 Comecei a trabalhar na creche de crianças de 6 meses a 3 anos. Tem 10 meninos, meu serviço é voluntário para servir a Deus. Estou contente, passo o tempo sem ver. Estou mais calma, dormindo bem. Fico lá de 8 ás 11 da manhã. O dia fica pequeno, passa num instante. A Viação Campo Belo estava fazendo uma promoção de passagem de 3 casais para ida a Aparecida do Norte. Eu escrevi 2 cartas, 1 para Ruth e outra para o marido dela, o Joaquim. Ganhei e eles foram viajar dia 13 de agosto. Fiquei muito feliz. 12/10/1993 Começo de semana, passei me sentindo muito doente, mas hoje, dia de N.S. Aparecida, passei ótima, sentindo uma saúde boa. Passeei muito bem, fui a um show na Rodoviária, diverti [-me] vendo um trio elétrico da América, com programas lindos e alegres. 4-2-1994 Graças de Deus, minha família todos em paz, eu mais animada e conformada com a velhice. Faço de conta que não sinto nada e vou levando a vida. Minha idade, em março dia 21, completo 73 anos. Para mim pa142

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rece um século, pois lutei muito na vida. Hoje vivo em paz, boa casa, dinheiro para as despesas, mas coração de velha sempre triste pelas recordações e pelas perrenguezas que a gente carrega. Hoje 8 de julho, graças a Deus, tudo bem com minha família. O Rui retocou minha casa que ficou muito linda. Tenho feito minhas reuniões religiosas, pedindo a Deus pela minha família, amigos e vizinhos. Estamos vivendo a entrada da nova moeda que é o Real. Não está nada fácil, principalmente para mim, mas todos Brasileiros têm esperança de uma vida melhor, que tudo vai dar certo. Hoje, 25 do 12 1994, eu agradeço a Deus por este ano que passou. Tive algumas doenças, mas nada grave. Graças ao Pai, [o] acidente da Marla que nos causou grande susto, acabou tudo bem, ela está ótima. O Robeson foi operado 2 vezes, mas tudo bem recuperado. Eu ainda nesta idade, 73 anos, estou construindo um quarto nos terrenos da Ruth para que eu possa passar alguns dias lá. Glória a vós, Senhor. Em começo de março de 1995 mudei para o quartinho. Estou [me] sentindo bem mais tranqüila e ando mais. Não fico tão parada. Venho em minha casa sempre, isto é um passeio para mim. No dia 13-8-95, foi a visita do Padre Zezinho em Formiga. Foi muito agradável. 143

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Hoje, dia 9-09-95, estou indo para B.H. para seguir para a praia junto [com] meu filho e noras. Luiza. Fiz o passeio na praia, senti [-me] muito bem, pena que foram poucos dias. 7.10.1995 Eu, Luiza, dia 21-3-1996 completei 75 anos. Antes, uns dias, senti uma crise, pressão alta, mas passou e estou bem outra vez. O Rubens me trouxe um livro feito com muito carinho. O livro chama-se “A Grande Família”. É uma homenagem ao meu aniversário natalício. Eu só tenho [a] agradecer a Deus por tudo de bom que tenho, principalmente meus filhos que são ótimos. 24 de dezembro. Só tenho [que] agradecer a Deus, nosso pai, por este ano que está passando. Foi muito bom para todos meus familiares. Eu sinto algum problema de saúde, mas é coisa da idade. Estando andando, fazendo minhas coisas, já está ótimo. O Robeson passou 4 meses comigo até reformar a casa deles. Já voltaram, estou só com Jesus e Maria e vou vencer até o fim, se Deus quiser. Eu sempre tive desejo de passar o 1º dia do ano em uma praia, mas ainda não foi possível, não tive esta oportunidade, mas quem ler não precisa ter pena de mim, é porque não mereci cumprir este desejo. Mas ganhei muitas coisas boas, passeei enquanto aguentei. Hoje não devo sair com estranhos, já não dou conta de resolver sozinha. Salve 24-12-1996 – 16:20 horas. 144

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Eu, Luiza, entrei o ano de 1997 muito feliz, saúde regular e vivo bem com a vida e junto com meus filhos e netos. Tenho em mãos o livro “A Grande Família” escrito pelo meu filho Rubens. Hoje, dia do meu aniversário, recebo a visita de toda minha família que são filhos, noras, genro e netos. É grande alegria por estar juntos. Salve 21-3-1997. Agora tem uma hora e meia que o Papa João Paulo II chegou ao Rio. Falou sobre a família e sobre a paz e está percorrendo as ruas de carro móvel até [a] Candelária. 3-1-1997 Este fim de ano 1997 foi ótimo ter a visita do Papa, muita alegria e oração no Rio J. Mas pela televisão, nós aproveitamos, participamos de tudo que passou, graças a Deus. Agora estou [me] preparando para ir a Arcos, aniversário do Carlos Henrique. Vamos encontrar toda a família. Isto é ótimo. Tudo acontece na véspera do Natal e aí dia 26 de dezembro viajo para a praia. Estou muito contente. 7-11-1997/Luiza. Quando eu tinha 7 anos, comecei a fazer o presépio. Era a preparação para o Natal, todo o ano a mesma coisa: eu ia para o mato com meus irmãos apanhar folhas de coqueiro, barba de pau, para armar o presépio. Na estação, pegava pedra queimada para a gruta, areia, papel, etc. Hoje ficou mais fácil, se faz a árvore pisca-pisca, palhacinho e fica tudo colorido. Mas eu gostava de ter trabalho, muito prazer com o armamen145

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to do presépio. Foram muitos anos de luta, enquanto aguentar quero ter o prazer de armar a árvore para repetir o aniversário do menino Jesus, nosso Salvador. 15-1-1998 Luiza. Fiquei muito contente neste Natal. Reuniu-se toda a família em minha casa, uma pequena ceia de leitoa, peru, vinho, cerveja e foi uma alegria só. As crianças alegres com os presentes que o Rubinho sempre faz a festa. Os adultos também tiveram os seus, o que é bom é a paz. Eu, com meus 76 anos, dia 26 do 12 fui para a praia e passei lá o 1º de janeiro. L. Sempre em meu aniversário, tenho surpresa. Dia 12-31998, tive grande alegria e emoção, chegou em Formiga meu sobrinho Samuel. Pois meu irmão Messias desapareceu com 12 anos de idade, nunca tivemos notícias. Agora, chega seu filho com 31 anos e são 5 irmãos. E o Messias morreu já há 11 anos. Foi uma alegria completa a nós todos saber que ele construiu uma bela família. Hoje, 20 de abril, já estou com 77 anos de idade. Já não estou boa, canso muito, ando menos, mas não paro. Quase não aguento fazer minha lida, mas vai indo. Continuo só, durmo junto de meu neto Hederson... 3 de outubro de 1998 Já em véspera de uma viagem do Rubens, vai trabalhar uns tempos fora de B.H. Mas já não estou bem da cabeça, não sei o lugar que ele vai, mas N.S. Aparecida sabe, vai de mãos dadas com ele e tudo vai dar bem, se Deus quiser. 146

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Em setembro, eu estava de viagem pronta para Caldas Novas, Goiás. Dia 5 setembro, piorei com problemas de pressão, fui internada, saí dia 8, e 9 era a viagem, então estou feliz assim mesmo. L. Tive um Natal ótimo, estava recuperando bem, meus filhos reuniram-se em minha casa, foi grande alegria que senti junto com noras, netos e meus queridos filhos. Ganhei deles muito carinho e muito amor. Sr. meu Deus, obrigada por tudo. Hoje, dia 12-2-1999 Estou de saída para as praias do E. Santo. Vou com o Robeson e família. 9-9-1999 Voltei a viajar para Caldas Novas, em Goiás. A Ruth foi junto e fomos muito felizes, graças a Deus. Hoje, 21-9, recebi a visita do quadro capelinha da Mãe Rainha. Agora estou em véspera de ir a B.H. Salve 21-9-[1]999, eu já conto 78 anos de idade, boazinha e sempre fazendo minhas lidas de casa. O Rubens trabalhou em Natal [na verdade, trata-se da cidade de Belém do Pará], rodou de avião para lá e para cá e eu ficava com o coração apertadinho, mas vencemos, ele foi feliz e com saúde. Graças a Deus. Voltou a B.H. e com dinheiro ajudou a todos nós. Só sei agradecer a Deus todo o minuto de minha vida. Obrigada, Sr. Deus pai. 147

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Luiza com 78 anos. 21-11-1999 Já fim de ano. Este ano temos grande alegria: são 2000 mil anos [do] nascimento de nosso salvador. Se Deus quiser vai haver mudança para melhor a nossos irmãos que sofrem com falta de moradia, doenças e fome. Eu estive um pouco doente, mas agora estou regular. Passei muito bem. E dia 10 vai ser a formatura do Robeson, outro advogado na família, obrigado Jesus, sou muito feliz. Terminou o ano de 1999, eu tenho ótimos filhos, lindos netos. Tudo foi bom, festas de aniversário, festas de Igreja, afinal todos irmãos, ricos, pobres, novos, velhos, crianças, doentes, todos reunidos na paz de Jesus Maria José. Luiza. Salve [o] novo ano. Carta para o Ano 2000 31 de Dezembro Sr. meu pai do céu, muito obrigada por tudo que aconteceu para mim este ano. Tudo foi bom. As dores, doenças, alegrias, tudo passou e sou feliz com as vontades de Deus [que] olhou-me com muito carinho. Obrigado. Luiza 31-12-1999

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1-5-2000 Estou com 79 anos. Hoje, 1º de maio, começo do mês de Maria Santíssima e dia de São José, pai adotivo de Jesus. Eu fiz uma caminhada de 4 quilômetros com um batalhão de gente, fomos rezando, ouvindo palestra, até o local onde se vai construir a Igreja de S. José, protetor do trabalhador e família. O lugar é no Bairro Maringá. 21-3-2001 Completei 80 anos de vida, já não ando como no ano passado que andei 4 quilômetros em procissão. Mas estou contente. Vou à Igreja e faço minhas pequenas coisas. Então, neste aniversário teve uma bonita missa celebrada pelo R.Padre João. Depois, reunião de família e amigos, foi muito bonito e uma alegria geral. Comemos, bebemos a valer e ganhei lembranças lindas. Salve 21-3-2001. 2001, Graças a Deus, foi ótimo para mim e toda a família. Tivemos saúde, paz, alegrias muita amizade entre nós. Hoje, 28 de janeiro de 2002, estamos em começo de novo ano. 3 de fevereiro foi aniversário da Luciana. Eu e a Maria fomos para festejar o aniversário, mas foi muito sem graça, o Rubinho sentiu-se mal e para nós não teve festa, mas sim tristeza e sentimento. 149

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Em Março 21-3, completei 81 anos, mas neste ano [de] 2002 as coisas não foram nada boas, o Rubinho adoeceu e desta vez foi sério. Ele fez cirurgia, sofreu bastante e nós juntos sofrendo. O fim de ano foi melhor. Passamos um Natal feliz. Agora chegou o 2003 tudo bem e esperamos os aniversários. Já estamos em véspera do carnaval, depois Semana Santa e novamente o 21-3, inteirando 82 anos de idade de LUIZA. 29 de abril Fiz uma cirurgia na perna, fez transplante. Já fazendo 5 meses que faço curativo e sofro dores. Graças a Deus está melhorando bem. Já estamos em setembro de 2003. Foi 1 ano regular, não muito bom e nem ruim. 29-9-[2]003 8 horas e 15 minutos, sábado, dia do Idoso.”

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ÍNDICE Prefácio ........................................................................... 11 O Diário .......................................................................... 15 Origens ........................................................................... 17 Os Primeiros Anos ......................................................... 21 A Mudança ...................................................................... 35 A Vida no Planalto Central ............................................. 37 De Volta a Formiga ......................................................... 41 A Ruptura ....................................................................... 45 Beleza tem Preço; Virtude, Valor .................................. 51 Zero Absoluto ................................................................. 57 Enquanto Isso... ............................................................ 61 Quebrando o Gelo .......................................................... 63 Enfim, o Sol .................................................................... 69 Minha Doce Irmã Ruth .................................................. 73 Vida que Segue ............................................................... 77 Aniversários, Comemoração da Vida ............................ 83 Frio Conforme o Cobertor ............................................. 93 “Mãe, Prazer em Conhecê-la!” .....................................107 Humor na Dor ................................................................119 Paixão, Amor, Orgulho e Respeito ................................121 Alma Limpa ....................................................................125 A Despedida ...................................................................129 Posfácio: “Diário L.” ......................................................133 Transcrição do Diário de Luiza Soares de Jesus ...........135

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Rubens R. Câmara rubenscamara@yahoo.com.br Belo Horizonte – MG –Brasil

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