XADREZ FASCINANTE - Volume I: 1475 a 1953

XADREZ FASCINANTE POSIÇÕES E HISTÓRIAS QUE TRANSFORMAM PESSOAS EM ENXADRISTAS Volume I: 1475 a 1953 REWBENIO A. FROTA Copyright © 2018 por Rewbenio Araújo Frota (autor) Capa: Rewbenio Araújo Frota Imagem de Capa: Val Vesa (Unsplash.com), Two man playing chess (2017) Revisão: Jacqueline Amorim Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida, distribuída ou transmitida por qualquer forma ou por qualquer meio, incluindo fotocópia, gravação ou outros métodos ou mecânicos eletrônicos, sem a prévia autorização por escrito do autor, exceto no caso de breves citações incluídas em revisões críticas e alguns outros usos não-comerciais permitidos pela lei de direitos autorais.

Escrito no Brasil. Esta obra segue as regras da Nova Ortografia da Língua Portuguesa.

A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação dos direitos autorais (Lei no 9.610/98), punível pelo artigo 184 do Código Penal.

Sumário Apresentação e agradecimentos Símbolos e Notação Algébrica 1 A nova dama e o surgimento do xadrez moderno 2 O mestre de todos os mestres 3 Três peões vão ao paraíso 4 Vitória de honra de um homem honrado 5 A mais famosa posição da história do Xadrez 6 Outra joia de Anderssen 7 Morphy: o primeiro prodígio das Américas 8 Na Ópera, terreno de Philidor, quem se imortaliza é Morphy 9 A arte não carece de exatidão 10 Combatendo fogo com fogo 11 Bispos, para que te quero?

12 Tragédia no tabuleiro 13 Steinitz: uma combinação imortal 14 Pillsbury, mais um gênio meteórico 15 Quando um campeão mundial precisa se impor 16 O brilho de Rubinstein 17 2001 antecipa 1997 18 Um lance nada inocente 19 Vencendo com a ideia do maior rival 20 O eterno Capablanca 21 Xadrez diplomático 22 "Uma miraculosa concatenação de circunstâncias" 23 Um mestre em busca da verdade 24 Salvo do Holocausto por uma combinação brilhante 25 Alekhine e sua visão de raios-X 26 1938: um ponto de inflexão nos tabuleiros 27 Nem só de grandes mestres vive o xadrez!

28 Bronstein, o mais humano dos grandes mestres 29 Completamente diferentes, quase iguais 30 Sábio, não por ser velho, mas por ser Euwe!

31 Minha dama em troca do seu rei!

32 Quando a esmola é grande... Índice de Jogadores Bibliografia Notas Sobre o autor

Apresentação e agradecimentos "Antiquíssimo e sempre novo, mecânico em sua organização, mas somente eficaz por meio da imaginação (...), único jogo que pertence a todos os povos e a todas as épocas e do qual ninguém sabe que deus o trouxe para a Terra para matar o tédio, afiar os sentidos, desafiar a alma." Stefan Zweig (Novela de Xadrez, 1944)

Há alguns anos (como passam rápido) pensei em fazer uma série de postagens para meu blog Lances Quase Inocentes a fim de apresentar aos leitores aquelas posições de maior importância para a história do xadrez. Como eram postagens curtas, e eu não tinha nada a acrescentar nas análises técnicas das partidas completas em relação às magistrais obras publicadas ao longo dos anos, decidi focar na posição chave de cada partida famosa e contribuir no sentido de unir informações soltas, quase nenhuma delas disponível em língua portuguesa, sobre o contexto da partida, quem eram os adversários, o que tornou aquela posição tão célebre etc. O objetivo era trazer um conjunto de informações mínimas, essenciais, que todo aquele que passa pela vida precisa saber sobre o xadrez.

Para o blog, apenas cerca de uma dúzia de textos foi produzida, a maioria bem curtos, limitados ao formato do canal, mas foram uma semente.

Quando pensei em retomar a série, minhas ambições já estavam mais aprofundadas, era necessário rever o que já tinha feito, ampliar, enriquecer, trocar algumas das posições escolhidas por outras mais relevantes (aprender xadrez é um processo) e completar o projeto: seriam 64 posições críticas de 64 partidas famosas. Mas como escolher?

Um dos critérios: não poderia ser uma posição de abertura, do tipo armadilha, tão comuns em livros para iniciantes. Outro critério, seriam candidatas naturais posições presentes em livros de referência como a fantástica coletânea Meus Grandes Predecessores de Garry Kasparov, Zurich International Chess Tournament de David Bronstein ou 500 Master Games de Tartakower & DuMont. Esses gigantes já haviam feito a triagem natural, mas apenas na intersecção de várias dessas magistrais fontes eu encontraria meus 64 tesouros. Mas a cada dia são criadas partidas que podem se tornar antológicas! Então, o trabalho não poderia se prender somente aos clássicos.

Algumas páginas de internet, como ChessHistory.com, Chessbase.com, Chess.com e ChessGames.com foram levadas em conta, em especial está última, que conta com uma área de comentários de usuários da página que é um verdadeiro manancial de referências!

Para dados sobre jogadores e outras personalidades citadas no livro, usei a Wikipédia como fonte principal (em geral a versão em inglês, que costuma ser mais completa) e outras fontes citadas oportunamente no texto.

Escolhidas as partidas, pesquisados os assuntos, amarradas as pontas soltas, verifiquei que o trabalho seria hercúleo! Então decidi dividir o livro em dois volumes.

Neste primeiro volume que ora entrego, cubro um período que vai desde a primeira partida do xadrez moderno, jogada em 1475, até o marcante Torneio de Candidatos de 1953.

O segundo volume tratará dos anos seguintes, até a era atual, em que nomes como Kasparov e Carlsen estão ofuscados pela assombrosa perfeição técnica dos algoritmos computacionais!

Agradeço aos leitores do blog, aos amigos enxadristas e não enxadristas pelo interesse demonstrado pelo assunto ao longo dos anos. Agradeço especialmente à minha amiga Jacqueline Amorim, que corajosamente se voluntariou para revisar o texto. Finalmente, à

minha família pelo apoio e paciência nos períodos de dedicação ao livro, sem os quais eu não teria o equilíbrio para realizar nenhuma tarefa de valor.

Que a leitura seja agradável e o objetivo alcançado. A repercussão desse primeiro volume vai me acompanhar e animar na conclusão do segundo, que espero lançar brevemente.

Macaé, 10 de setembro de 2018 Rewbenio A. Frota

Símbolos e Notação Algébrica ! !! ? ?? !? ?! × + ++ # 1-0 0-1 1/21/2 +V -D =E

Lance bom Lance excelente Lance fraco Lance péssimo Lance interessante Lance duvidoso Captura de peça xeque xeque duplo xeque mate Vitória das brancas Vitória das pretas Empate Forma sintética de indicar o resultado geral de confrontos entre dois jogadores, ou o desempenho de um dado jogador dentro de um torneio (V vitórias; D - derrotas; E - empates).

A notação algébrica é, hoje, a única forma reconhecida pela Fédération Internationale des Échecs (FIDE) para o registro de partidas. Embora a leitura deste livro não dependa de profundos conhecimentos sobre o xadrez, aproveitará melhor a leitura quem souber os movimentos das peças e a notação usada para descrever os desfechos das famosas posições aqui tratadas.

O tabuleiro é mapeado por letras e números: a cada coluna é associada uma letra de a a h e a cada linha um número de 1 a 8. As peças são referenciadas pela respectiva inicial em maiúsculo: • • • • •

R - rei D - dama (não se usa rainha para não causar confusão na notação) T - torre B - bispo C - cavalo.

Os peões são indicados simplesmente pela letra da coluna que ocupam: por exemplo, 1.e4 significa que, na primeira jogada das brancas na partida, o peão da coluna e se moveu até a casa e4; 1. … e5 significa que, na primeira jogada das pretas na partida, o peão da coluna e moveu-se até a casa e5. Nas capturas, usa-se o símbolo ×: 12.e×d5 significa que, na 12ª jogada das brancas na partida, o peão da coluna e tomou o peão inimigo que se encontrava na casa d5; 12. … c×d5 significa que, na 12ª jogada das pretas na partida, o peão da coluna c tomou o peão inimigo que se encontrava na casa d5. Quando um peão chega ao final do tabuleiro, ou seja é promovido, ele é trocado por uma outra peça mais poderosa, normalmente a dama: 53.e8=D, significa que, no 53º lance das brancas, o peão branco da coluna e chegou até a casa e8 e foi promovido a dama; 53. … f1=C, indica que, no 53º lance das pretas, o peão preto da coluna f chegou até a casa f1 e foi promovido a cavalo.

Antes de cada jogada há um número que indica quantas jogadas foram feitas até ali. A primeira jogada da notação é sempre das brancas, a segunda das pretas. Quando se omite a jogada branca e se retoma a notação a partir de uma jogada preta, é comum o uso de reticências: 23. … Cf6, na 23ª jogada, as pretas moveram um cavalo para a casa f6.

Há momentos em que duas peças iguais podem se mover para a mesma casa, ´para evitar confusão na notação, usa-se a coluna, a linha ou, em alguns casos, a casa inteira de origem da peça: 20.Tac1 indica que, no 20º movimento, a torre branca que estava na coluna a moveuse para a casa c1 (a outra torre branca também poderia mover-se até a mesma casa); 16. …

C6d5 (ou 16. … Cf6d5) para indicar que, no 16º lance do preto, havia dois cavalos pretos na coluna f (um em f6 e outro em f4) mas foi movido aquele da linha 6 (ou da casa f6).

Os esclarecimentos acima são suficientes para compreender as partidas do livro, maiores informações para aprofundamento podem ser acessadas no excelente artigo da Wikipédia1 sobre o tema.

A nova dama e o surgimento do xadrez moderno

Castellvi, F. × Vinyoles, N. (Valência, 1475) Posição após 18. … Dg6 O xadrez é um dos jogos mais antigos praticados pelos seres humanos, e não sem razão!

Seja pelo encanto de haver tantos mistérios ocultos, mesmo com todas as peças diante dos olhos do jogador, ou pela infinidade de metáforas e correlações que podem ser feitas entre o jogo e situações da vida, o xadrez se mantém firme por séculos na afeição das pessoas, enxadristas ou não.

A forma ancestral do jogo surgiu na Índia, provavelmente no século V de nossa era, mas foi logo levado à Pérsia, espalhando-se pelos povos árabes que, séculos depois, chegaram à Europa pela península Ibérica, especialmente no território da atual Espanha. A forma moderna do jogo, porém, só foi alcançada mil anos depois do surgimento do jogo, no século XV. A posição acima pertence à mais antiga partida registrada na qual os movimentos das peças são todos idênticos aos atuais (inclusive en passant; além do 'salto duplo' do rei, precursor do roque, não realizado durante essa disputa). Em especial, o amplo movimento da dama, que na regra medieval tinha ação muito mais restrita que a do próprio rei, bem como uma ampliação do movimento do bispo, que antes saltava de 3 em 3 casas e passou a não ter limite em seu movimento diagonal. A partir de então, a dama, que antes se movia apenas uma casa em diagonal, nunca longe de seu rei, tornou-se a peça mais forte e dominante do tabuleiro! A mudança foi tão marcante que em manuscritos da época o jogo passou a ser chamado de 'o xadrez da dama furiosa'. Acredita-se que essa mudança seja reflexo da influência da rainha Isabel I de Castela, cuja autoridade era maior que a de seu marido, o rei Fernando de Aragão. O casal foi responsável, por exemplo, pelo financiamento

da viagem de Colombo e consequente ampliação dos horizontes da humanidade. Há estudiosos2 que querem relacionar esse novo mundo que surgia, geograficamente mais amplo e muito mais dinâmico no campo comercial, às mudanças nas regras do xadrez, que tornaram o jogo muito mais rápido, estratégica e taticamente mais rico que a versão medieval.

A partida é descrita integralmente no poema catalão Scachs d’Amor (Xadrez do Amor). O manuscrito que contém o poema foi descoberto em 1905 na cidade de Barcelona, e a data mais provável de sua composição é o ano de 1475. O poema usa o xadrez para contar uma peleja amorosa entre uma dama e um cavaleiro, coisa comum na literatura da época. As peças representam características da personalidade humana ou outros aspectos da vida prática.

No bando branco, o rei é a razão, a dama é a vontade, a torre é o desejo, o bispo é o pensamento, o cavalo é o louvor e o peão um serviçal. No bando preto, o rei é a honra, da dama é a beleza, a torre é a vergonha, o cavalo é o desdém, o bispo é o doce olhar e o peão um cortesão. O bando branco representa o planeta Marte (masculino) e o bando preto o planeta Vênus (feminino), o árbitro da partida é o planeta Mercúrio3. Esses três planetas estavam em conjunção nos céus de Valência em meados daquele ano de 1475, durante as comemorações de verão no hemisfério norte, provável data da escrita do manuscrito.

Os três autores do poema fazem as partes de jogadores e árbitro: Francesc de Castellvi (?

– 1508) representou as brancas (Marte), Narcis Vinyoles (1440? – 1526?) representou as pretas (Vênus) e Bernat Fenollar (1445? – 1516) foi o árbitro (Mercúrio). Eles se alternam entre lances e versos, dentre os quais as estrofes do árbitro explicam as regras do novo jogo.

Ao total, o poema tem 64 estrofes, uma para cada casa do tabuleiro.

Apesar de não haver impedimento algum para que a partida tenha sido jogada realmente, é mais provável que tenha sido composta, como o próprio manuscrito sugere, para fins de maior riqueza poética e para representação em tabuleiros com peças humanas em festivais, como era comum então.

A partir do diagrama acima, as brancas lançam a combinação final, com ajuda dos novos poderes de dama e bispo, para dar mate4 ao rei contrário: 19.Bf4! B×f4?? Seria possível prosseguir a luta, ainda que em desvantagem, com 19.… D×g2, mas certamente, o poema ultrapassaria as 64 estrofes planejadas. 20.D×d7+ Rf8 21.Dd8# (1-0).

A nova dama executa o primeiro xeque-mate do xadrez moderno! O mundo e o xadrez nunca mais seriam os mesmos.

Quando três peões vão ao paraíso

McDonnell, A. × La Bourdonnais, L.C.M. (Londres, 1834) Posição após 24.B×e8

N

o século XIX, Inglaterra e França clamavam ter os melhores jogadores de xadrez da Europa. Em 1834, para tirar essa dúvida, foram reunidos os dois mestres que eram considerados os melhores enxadristas desses dois países para uma série de seis matches (!), que ficaram conhecidos como "A maratona de Westminster", para definir qual dos dois era o melhor jogador da Europa, quiçá do mundo.

Alexander McDonnell (Irlanda, 1798 – 1835), foi próspero homem de negócios e enxadrista amador, radicado em Londres. Faleceu já no ano seguinte a esta partida ainda muito jovem, e não pôde mostrar desenvolver todo o seu potencial, sobejamente demonstrado em suas partidas contra La Bourdonnais.

Louis Charles Mahé de La Bourdonnais (França, 1795 – 1840), era filho de ilustra família ligada às armas francesas desde longa data. Após gastar sua fortuna completamente, voltouse para o xadrez como forma de sustento e foi, assim, um dos primeiros profissionais do jogo.

Frequentador do Café de La Régence, foi discípulo de Deschapelles e, quando este parou de jogar, La Bourdonnais assumiu o posto de melhor jogador francês. Assim como McDonnell, morreu precocemente, ainda no auge de sua força enxadrística, e deixou um vácuo que só seria preenchido parcialmente por jogadores como Saint-Amant e Kieseritzky, que não alcançaram junto aos seus contemporâneos o mesmo reconhecimento que teve La Bourdonnais.

Os dois jogadores teriam jogado um total de 88 partidas nas dependências do Clube de xadrez de Westminster, mas somente 85 se conservaram. O placar final, porém, foi preservado, com contagem em favor do francês (+45 -30 = 13)8. Após este encontro, La

Bourdonnais desfrutou da reputação de ‘Campeão do Mundo’ até sua morte, em 1840. Tal fama ajudou-lhe a fundar o primeiro periódico de xadrez do mundo, Le Palamède, que circulou em Paris entre 1936 e 1939. Pouco antes da série de matches, em 1833, publicou o livro Nouveau traité du jeu des échecs, que chegou a ser traduzido para o russo.

A posição acima é da 62ª partida da série (16ª do 4º match), as pretas têm certa desvantagem material, compensada pela ação e mobilidade de seus peões centrais. Esta posição não é a mais famosa desta partida, mas é o ponto inicial da combinação cujo desfecho permanece até hoje fascinando amadores e enxadristas experimentados ao redor do globo.

A partir do diagrama acima, a partida continuou assim: 23. … f×e4! "A avalanche de peões passados afasta tudo de seu caminho" (Kasparov9) 24.c6 f×e3 Ignorando a ameaça sobre o bispo de b7, que não pode ser capturado. 25.Tc2 De3+ 26.Rh1 Bc8 27.Bd7 f2 28.Tf1 d3 29.Tc3 B×d7 30.c×d7 e4 31.Dc8 Bd8 32.Dc4 De1 33.Tc1 d2 34.Dc5 Tg8 35.Td1 e3 36.Dc3 Segue agora o arremate, que leva a uma famosa posição vencedora, com três peões colados na sétima fila, e incontáveis ameaças! 36. … D×d1! 37.T×d1 e2 "Que falange!

Philidor certamente ficaria encantado com tão fantástica investida de peões" (Kasparov). Os peões pretos ligados na sétima fila tornam inofensivas as poderosas peças pesadas brancas, que abandonaram sem esperar pelo xeque-mate (0-1).

Posição final “… depois de ver essa posição, eu não fui mais capaz de viver sem xadrez!” (Kasparov) Uma conclusão realmente fantástica! É muito raro encontrar algo assim, com ares de composição artística, em uma importante partida real, principalmente quando disputada no mais alto nível, no que hoje seria considerada uma legítima disputa pelo título mundial!

A mais famosa posição da história do Xadrez

Anderssen, A. × Kieseritzky, L. (Londres, 1851) “A Partida Imortal”, posição após 17. … D×b2

A

posição acima é talvez a mais famosa da história do xadrez12. As brancas estão prestes a sacrificar suas duas torres em troca de um ataque indefensável.

Uma simples partida informal entre dois dos mais fortes participantes do Torneio Internacional de Londres de 1851, disputada após o fim do evento, viria a ser considerada a 'Partida Imortal' do jogo de xadrez, título que mantém desde que foi assim batizada no jornal Wiener Schachzeitung em 1855.

Justamente naquele ano de 1851, Adolf Anderssen (Alemanha, 1818 – 1879) seria aclamado "Campeão do Mundo13" ao vencer de forma surpreendente o fortíssimo torneio de Londres, eliminando no caminho até a final do evento o favorito Howard Staunton (principal organizador da competição). Até 1842, Anderssen tinha resultados modestos, e era conhecido somente como compositor de estudos e problemas, depois de publicar seu livro Aufgaben für Schachspieler. Contudo, ele demonstrou rápida evolução e, em 1846, empatou um match contra o mestre Daniel Harrwitz, feito que motivou seu convite para o torneio de Londres. Após a vitória, sua reputação de melhor enxadrista do planeta manteve-se até sua derrota frente a Paul Morphy em 1858, mas como este abandonou o xadrez logo no ano seguinte, Anderssen voltou a ser considerado o campeão mundial até sua derrota definitiva frente a Wilhelm Steinitz em 1866. Mesmo após essa derrota ele continuou a disputar torneios até dois anos antes de sua morte e ainda colecionou inúmeras vitórias em eventos internacionais. Apesar de tão vitoriosa carreira no xadrez, Anderssen não foi um profissional.

Exercia o magistério, sendo professor das disciplinas de alemão e matemática em nível

secundário. Seus compromissos com o ensino por diversas vezes impediram que ele participasse de eventos enxadrísticos.

Lionel Kieseritzky (Rússia, 1805 – 1855), também foi professor de matemática em sua terra natal, onde já era um jogador sem rivais, até ser obrigado a emigrar por motivos pouco esclarecidos. O gosto pelo xadrez fez com que fosse viver em Paris, domiciliado no próprio Café de La Régence. Apenas no novo país passou a ser um profissional do xadrez, por meio de aulas e partidas contra amadores que pagavam 5 francos para jogar com o mestre. Foi um dos mais fortes mestres europeus daquela época (inclusive teve vantagem no confronto direto contra Anderssen: +9 -7 =3, todos os confrontos em 1851, incluindo-se a 'Partida Imortal'), além de ser criador e editor da revista La Régence. Tristemente para Kieseritsky, esta derrota parece ter marcado o início de sua decadência tanto enxadrística como pessoal, agravada por problemas financeiros. Passou para a história como o 'Perdedor Imortal' e morreu poucos anos após o confronto com Anderssen. Há de se exaltar a postura de Kieseritzky, tão nobre e tão afinada com o amor que tinha pelo xadrez, ao enviar os lances da partida imediatamente para publicação em seu próprio periódico La Régence14, não se importando com o fato de ter sido ele o derrotado. Essa atitude permitiu rápida divulgação da partida e, sem isso, talvez os registros da partida seriam perdidos, como acontecera tantas outras vezes.

O encanto da 'Imortal' se deve à brilhante sequência de sacrifícios de peças e peões em troca de tempos de desenvolvimento utilizados no ataque direto a um rei não rocado, exposto no centro do tabuleiro. A posição final de mate tem duas peculiaridades que contribuíram para a perpetuação da fama da partida: 1. Todas as quatro peças 15 brancas restantes participam do ataque final; 2. Todas as peças pretas continuam no tabuleiro, como tristes e impotentes espectadoras.

A partida continuou assim: 18.Bd6! B×g1? 19.e5! D×a1 20.Re2 … Segundo Kieseritzky, em artigo para o seu periódico La Régence, ele abandonou após este lance. Porém, outra versão informa que ele ainda teria jogado 20.… Ca6, após o qual Anderssen teria anunciado xeque-mate em 3 lances, e, só então, Kieseritzky teria abandonado. Essa pequena indefinição sobre o desfecho é típica de confrontos informais, sem registro em súmula, mas em nada reduz o brilho desta partida. Provavelmente, os lances finais com a bela combinação de mate não chegaram a ser realizados no tabuleiro pelos protagonistas, mas têm sido feitos com frequência desde então! Ainda serão repetidos incontáveis vezes, enquanto existirem resquícios do xadrez, esse belo jogo, na face do planeta: 21.C×g7+ Rd8 22.Df6!! C×f6 22.Be7# (1-0).

Outra joia de Anderssen

Anderssen, A. × Dufresne, J. (Berlim, 1852) Partida 'Sempre Viva', posição após 18. … Tg8

A

pós assegurar seu lugar para posteridade com a Partida Imortal, já bastante popular na própria época em que foi jogada, Anderssen não se deu por satisfeito e brindou ao xadrez com outra obra-prima.

Jean Dufresne (Alemanha, 1829 – 1893) foi jornalista, escritor e mestre e compositor de estudos e problemas de xadrez. Apesar de não ter sido um jogador tão famoso e habilidoso, como Kieseritzky, aproveitou o privilégio de ser pupilo do próprio Anderssen, com quem teve a oportunidade de travar inúmeros duelos, com histórico de resultados favorável ao mestre (+25 –5 =2, incluindo esta Partida Sempre Viva). Dufresne, porém, não passou à posteridade enxadrística somente como o ilustre perdedor da Partida Sempre Viva, seu nome é lembrado como o autor de um dos mais famosos livros de xadrez do século XIX, Kleines Lehrbuch der Schachspiels, editado em primeira edição em 1881 e que continuava sendo editado em língua alemã até bem recentemente16! Junto com Zukertort, outro famosos discípulo de Anderssen, escreveu Grosses Schach-Handbuch, lançado em 1873.

Após uma disputa equilibrada, no mais puro estilo romântico de ataque, Anderssen sacrifica seu cavalo, que foi erroneamente aceito, trazendo à luz uma das mais belas combinações de mate da história do jogo: 19.Tad1! "Uma sempre-viva na coroa de louros do herói que o xadrez perdeu" (Steinitz, em análise publicada após a morte de Anderssen) …

D×f3? 19. … Tg4! permitiria defesa às pretas. 20.T×e7+! (Kasparov17) C×e7? "Para criar uma obra-prima de xadrez, você realmente precisa da participação generosa de seu oponente!"

(Kasparov) 21.D×d7!! (Kasparov) R×d7 22. Bf5++ Re8 23.Bd7 Rf8 24.B×e7# (1-0).

Morphy: o primeiro prodígio das Américas

Paulsen, L. × Morphy, P. (Nova Iorque, 1857) Posição após 17.Da6 "… um dos mais famosos sacrifícios de Dama da literatura do jogo" (Tartakower & Du Mont18)

N

o século XIX ,o xadrez como conhecemos hoje era basicamente uma prática europeia.

Naquele continente estavam os mais renomados mestres, inclusive aqueles, como Anderssen, que ostentavam o título não oficial de 'Campeão do Mundo'. Porém, já se praticava o xadrez em outras áreas do planeta.

Em 1857, celebrou-se o primeiro Campeonato dos EUA, que consagrou um jovem enxadrista, ex-menino prodígio: Paul Morphy (EUA, 1837 – 1884). Morphy veio de família abastada e influente do sul dos EUA, e teria aprendido a jogar xadrez somente assistindo a partidas entre seu pai e seu tio. Ainda criança, aos 12 anos, derrotou o mestre húngaro Johann Löwenthal em match informal (+2 -0 =1)19, um grande feito! Formou-se bacharel em Direito com apenas 20 anos e foi obrigado, pela pouca idade, a aguardar até poder exercer qualquer atividade profissional no ramo das leis. Aproveitou, então, o ano sabático forçado para se dedicar mais seriamente ao xadrez. Venceu o campeonato de seu país (que acabou sendo o único torneio do qual tomou parte) e lançou-se a vôos mais altos: em 1858, partiu em turnê pela Europa a fim de enfrentar os melhores jogadores do mundo, notadamente Anderssen e Staunton!

O período "europeu" de Morphy foi muito bem sucedido, vencendo a todos aqueles que aceitaram seu desafio: Anderssen (+7 -2 =2), novamente Löwenthal (+9 −3 =2), Saint-Amant (+1 -0 =0), Daniel Harrwitz (+5 -2 =1), Henry Bird (+10 -1 = 1) e Augustus Mongredien (+7 -

0 =1), além de outros de menor expressão. A convincente vitória sobre Anderssen (vencedor do Torneio de Londres em 1851, tendo eliminado Staunton) foi mais que suficiente para que Morphy fosse aclamado por seus pares como novo "Campeão do Mundo". Porém, ele considerava que ainda seria necessário enfrentar e vencer Staunton. Este recusou, ou adiou com promessas jamais cumpridas, todas as tentativas de Morphy, de modo que a disputa jamais ocorreu. Staunton, cujo ápice de sua força como jogador ocorrera mais de 10 anos antes, certamente não seria capaz de oferecer grande resistência ao tremendo talento de Morphy. Um tanto frustrado com o episódio, Morphy retornou aos Estados Unidos em meados de 1859 e começou a trabalhar como advogado, sem muito sucesso. Quanto ao xadrez, ainda participou de algumas exibições, mas acabou por afastar-se definitivamente em 1870, a tal ponto de se recusar até mesmo a conversar sobre o jogo. Faleceu precocemente aos 47 anos de idade.

O adversário de Morphy nesta partida foi o outro finalista do 1º Campeonato dos EUA, Louis Paulsen (Alemanha, 1833 – 1891). Notório mestre europeu, Paulsen estava a trabalho nos EUA e foi convidado a participar do torneio. Foi o único a vencer uma partida contra Morphy em todo o evento e viria a se tornar depois um dos melhores jogadores do mundo entre 1860 e 1870. Seu nome é associado a inúmeros sistemas de aberturas, como a variante Paulsen da Defesa Siciliana. Não sofreu, portanto, o efeito avassalador observado em outros derrotados de forma brilhante. Ele continuou jogando bem e o auge da sua carreira ainda viria alguns anos depois, em 1862, quando empatou um match com Anderssen (que após a retirada de Morphy das competições sérias, voltara a ser considerado o melhor jogador do mundo em atividade).

A partida em questão, sobretudo o desfecho a partir do diagrama mostrado acima, deu fama mundial a Morphy, pois foi publicada em periódicos europeus20. A partir da posição acima, as pretas demonstram a fragilidade da posição branca (que tem praticamente 3 peças isoladas da ação principal) com um fantástico sacrifício de Dama: 17. … Df3!! 18.g×f3 Tg6+ 19.Rh1 Bh3 20.Td1? Com jogo perfeito, as pretas podem dar xeque-mate em 6 jogadas a partir de agora. 20. … Bg2+ 21.Rg1 B×f3+ 22.Rf1 Bg2+?! Vários mestres que analisaram a partida afirmam que 22. … Tg2! seria mais rápido, pois seguiria por exemplo com 23.Dd3 Tf2+ 24.Rg1 Tg2+ 25.Rf1 Tg1#. Tartakower & Du Mont falam algo interessante em defesa de Morphy: provavelmente ele já tinha visto toda a sequência vencedora mais longa e jogou no "automático". 23.Rg1 Bh3+?! Novamente seria mais rápido 23. … Be4+ 24.Rf1 Bf5! 25.De2 Bh3+ 26. Re1 Tg1#. 24.Rh1 Bf2 25. Df1 A entrega da Dama é forçada para postergar um pouco mais a partida. 25. … B×f1 26.T×f1 Te2 27.Ta1 Th6 28.d4 Be3 e as brancas abandonam (0-1).

Lista de jogadores e partidas (ordem de aparecimento) 1. Francesc de Castellvi 1 2. Narcis Vinyoles 1 3. François-André Danican Philidor 2 4. Hanz Moritz Brühl 2 5. Alexander McDonnell 3 6. Louis Charles Mahé de La Bourdonnais 3 7. Pierre Charles de Saint-Amant 4 8. Howard Staunton 4 9. Adolf Anderssen 5, 6 10. Lionel Kieseritzky 5 11. Jean Dufresne 6 12. Paul Charles Morphy 7, 8, 9 13. Louis Palsen 7 14. Duque de Brunswick & Conde d'Isoard 8 15. Henry Edward Bird 9 16. Johannes Zukertort 10 17. Joseph Henry Blackburne 10 18. Dr. Emanuel Lasker 11, 15 19. Johann Hermann Bauer 11 20. Mikhail Chigorin 12 21. Wilhelm Steinitz 12, 13 22. Curt von Bardeleben 13 23. Harry Nelson Pillsbury 14, 15 24. Dr. Siegbert Tarrasch 14, 19 25. George Rotlewi 16 26. Akiba Kiwelowicz Rubinstein 16 27. Roesch (Dr. Frank Poole) 17 28. Filie Schlage (HAL 9000) 17 29. Stepan Levitsky 18 30. Frank Marshall 18, 21 31. Aron Nimzowitsch 19 32. José Raúl Capablanca 20, 21, 24, 26 33. Ossip Bernstein 20 34. Edwin Ziegler Adams 22 35. Carlos Torre Repetto 22 36. Richard Réti 23 37. Efim Bogoljubov 23 38. Andor Lilienthal 24 39. Dr. Alexander Alekhine 25 40. Samuel Reshevsky 25 41. Mikhail Moiseyevich Botvinnik 26, 29

42. Frank Parr 27 43. George S.A. Wheatcroft 27 44. Ludek Pachman 28 45. David Ionovich Bronstein 28, 29 46. Efim Petrovich Geller 30 47. Dr. Machgielis "Max" Euwe 30 48. Yuri Averbakh 31 49. Alexander Kotov 31 50. Paul Keres 32 51. Vasily Smyslov 32

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Notas 1. https://en.wikipedia.org/wiki/Algebraic_notation_(chess) (acessada em 07/09/2018).

2. Calvo, Ricardo (1998) "Valencia Spain: The Cradle of European Chess", Chess Collectors International (CCI) Meeting, Maio/1998, Vienna-Áustria.

3. Bataller, Alexandre & Carme Narbon (1991) "Escacs d'amor: una obertura al joc", A Sol Post, 2: 45-74.

4. Os termos 'xeque-mate' e 'mate' serão usados sempre como sinônimos neste livro.

5. Autor de Essai sur le jeu des echecs (1737) no qual introduz a notação algébrica para registro de partidas de xadrez, usada até hoje.

6. São exemplos dessa renovação a publicação de Principia Mathematica por Newton em 1687 e os esforços para a criação da primeira enciclopédia de caráter universal sob direção dos franceses Diderot (também enxadrista e frequentador do Café de La Régence) e D’Alembert, cujo primeiro volume apareceu em 1751.

7. Análise extraída de: Philidor, l'inventeur des Echces modernes, EUROPE ECHECS Nº 436, jullho/agosto 1996.

8. Há fontes que indicam também +45 -27 = 13 (considerando apenas as partidas que se conservaram) e +44 -30 = 14.

9. Kasparov, G. (2003), "Garry Kasparov on My Great Predecessors, Parte 1", Everyman chess.

10. https://pt.wikipedia.org/wiki/Pierre-Charles_Fournier_de_Saint-Amant (consulta em 09/09/2018).

11. Fine, R. (1951), "The World's Great Chess Games", Dover Books on Chess, Courier Corporation Ed., 1976.

12. A 'Partida Imortal' está firmemente enraizada na cultura enxadrística, inspirando livros sobre o jogo, como 'O Jogo Imortal' de David Shenk de 2006. Na cultura popular, a partida também se faz presente. Um precioso exemplo é a famosa cena de Blade Runner (um filme de 1982 que trata basicamente do tema da imortalidade), na qual os personagens Sebastian e Dr. Tyrell repetem os mesmos lances de Andersen e Kieseritzky.

13. Ainda não existia a FIDE – acrônimo para Fédération Internationale des Échecs (Federação Internacional de Xadrez) - que viria a ser fundada somente em 1924. (https://en.wikipedia.org/wiki/FIDE consulta em 18/07/2018).

14. https://babel.hathitrust.org/cgi/pt?id=nyp.33433066639869;view=2up;seq=230 (consulta em 20/07/2018).

15. É comum a distinção entre o termo 'peças' (para se referir a cavalos, bispos, torres, dama e rei) e peões. Normalmente, quando se refere a peças,o texto não diz respeito aos peões. Outro termo comum é 'peça maior', para se referir a torres e dama e 'peça menor' referente a cavalos e bispos.

16. Edição de 2012: https://www.exlibris.ch/de/buecher-buch/deutschsprachigebuecher/jean-dufresne/kleines-lehrbuch-des-schachspiels/id/9783943293029 (consulta em 18/07/2018).

17. Kasparov, G. (2003), "Garry Kasparov on My Great Predecessors, Parte 1", Everyman chess.

18. Tartakower, S. & Du Mont, J. (1975), "500 Master Games of Chess", Dover Chess.

(Reedição integral da versão de 1952). Futuras menções aos autores referem-se a esse mesmo livro.

19. Outras fontes indicam +3 -0 = 0 20. A combinação ficou tão famosa foi usada como figura de capa na primeira edição em inglês do livro "The Modern Chess Instructor", de Steinitz, publicado em 1889. (http://www.chesshistory.com/winter/extra/paulsenmorphy.html consulta em 22/02/2018).

Sobre o autor

Rewbenio Araújo Frota nasceu Fortaleza-CE (1979) e divide sua profissão de engenheiro com duas grandes paixões: o xadrez e a literatura. Escreve regularmente no seu blog Lances Quase Inocentes (www.LancesQI.com.br) e publicou em 2017 o livro infantil com temática de xadrez "Que Peça eu quero ser?" pela editora Expresso Poema, obra que dedicou aos seus dois filhos. Em 2018 publicou a coletânea de contos "O jogador que desejava perder". Além do xadrez, sua produção literária explora campos como ficção científica e realismo mágico.

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