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desconfiança” | Entrevista com Rui Zink

[CONTEÚDO EXTRA] “A literatura deve sempre incutir alguma desconfiança” | Entrevista com Rui Zink

Entrevistamos o escritor e professor universitário Rui Zink, após o lançamento de O livro sagrado da Factologia (Teodolito, 2017) dentro da programação do evento Correntes d’Escritas, realizado na cidade de Póvoa do Varzim entre os dias 21 e 25 de fevereiro de 2017. Zink deunos pista sobre o que é a Factologia, falou sobre o período de “febre coletiva pelo qual o mundo está a passar” e ainda, sobre o papel do escritor e da literatura.

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Por Tânia Ardito

SUB | A Factologia não é uma revolução, uma religião ou um movimento. Apenas diz que precisamos aceitar os fa(c)tos. Mas quais? Os verdadeiros ou os inventados?

RUI ZINK |Ah, não posso revelar... É como um polícia a dizer “o criminoso é o mordomo” (rs). Mas por trás dos meus livros, há muitas vezes antepassados. Antepassados que eu sei que conheço quando começo o livro, antepassados que descubro que o eram ao chegar ao fim do livro ah e... O Jorge Luis Borges disse isso, que nós vamos descobrindo família. E antepassado do meu livro é, por exemplo, o livro Meia de Gato, do Kurt Vonnegut, em que há uma personagem que inventa uma religião que é o Bokononismo, que é uma religião um bocadinho burra. Portanto, o meu livro tem esse lado, que é uma sátira às seitas que estão muito na moda. As seitas que dizem que sabem... E neste caso, O Livro

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Sagrado da Factologia é, se calhar, o oposto daquilo que diz que é, tal como muitas seitas, pensam que são uma coisa, muitas dizem queremos a democracia e querem ao contrário, vamos tornar a América de novo grande e fazem ao contrário. Portanto entra nisso, não é um livro humorístico, mas é um livro que tem algum humor. E para mim a literatura deve sempre incutir alguma desconfiança. A literatura pergunta, não afirma. As seitas muitas vezes afirmam "nós temos razão", o escritor quando escreve um romance sabe sempre que só uma coisa é certa: que não tem razão.

SUB | Durante a sessão de lançamento, referiu que estamos vivendo uma espécie de febre ou loucura coletiva e que Trump seria o sinal dessa loucura.

RUI ZINK | Ah pois, eu penso que nós hoje mais do que nunca, estamos confundido fé com razão. Em todas as épocas há isso. O princípio do partido político e da religião, que são muito parecidos, assenta numa crença de que nós estamos certos. Só uma pessoa muito estúpida escolhe o partido errado, nós temos sempre o partido certo. Mas há febre quando essa crença, essa fé que é uma força boa se torna um bocadinho perigosa e quando essa força se torna um bocadinho negativa. Neste caso, eu penso sempre nas pessoas apaixonadas que chegam ao pé de nós e dizem "encontrei o homem da minha vida” ou “a mulher da minha vida" e uns anos depois chega ao pé de nós e dizem "vamos nos separar", "esse homem destruiu a minha vida", "ela deu cabo de tudo", "foi a pior coisa que eu fiz" e nós, que estamos de fora, sempre olhamos com um sorriso um pouco triste. Porque nem achamos a pessoa tão extraordinária, no princípio era bom para você, mas não era assim a melhor do mundo e você diz "oi, viu, viu, ela (ele) não é fantástica?" E eu digo "bom se você diz", mas quando há a

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separação também não é um monstro, muitas vezes. Agora neste momento, neste início de século XXI, estamos passando por uma fase febril e não é a fase febril bonita da paixão, é a fase febril do divórcio litigioso, rs. Foi o que assistimos no Brasil com o impeachment, em que o mínimo que se pode dizer é que nenhuma das partes tinha razão, podia haver uma parte que tivesse razão, e uma pessoa diz "ah, esses que são os bons", mas depois foi um carnaval de horror, patético e que fez rir o mundo. E a eleição de Trump é um sintoma, como a eleição da Marine Le Pen em França. Como a ditadura Erdoğan. A Turquia foi durante esses anos todos um país relativamente aberto. Eu estive lá em 2011, no parlamento de escritores que foi lá. Istambul capital da cultura, era uma coisa relativamente aberta. E de repente, o mundo está ficando inesperado. O Brasil estava a bombar com uma força enorme nesses últimos 15 anos, o mundo estava a começar a respeitar o Brasil e, de repente, dá um tiro no pé. E esta situação é feia. E é feia, como mais uma vez o divórcio. Quando você e o seu marido tiverem uma discussão brutal, a única gente que fica a rir são os vizinhos e os inimigos (rs), ou seja no vosso caso a Argentina. (rs)

SUB | Ao final do Prólogo, encontramos uma série de coisas que seriam piores que um “escritor sem palavras”, entre elas, talvez a pior “um amanhã sem esperança”. Acredita que estamos perdendo a esperança?

RUI ZINK | Eu penso que ainda não. Não até porque para perder a esperança é preciso ver o que vem aí. Se alguém aqui devia perder a esperança será o escritor deste livro (rs), que como é alto e pesa 104Kg vê um pouco mais longe. O dever do escritor é ver um pouco mais longe.

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Agora fala-se muito do escritor Stefan Zweig ... que se suicidou no Brasil e que ele perdeu a esperança. Ele era um judeu, culto, era um dos maiores do seu tempo. Ele viu o mundo dele morrer dentro dele. O mundo antigo, o mundo de cavalheiros, o mundo da gentileza. Ele sabia mesmo quando Hitler fosse vencido, esse mundo de gentileza não ia mais voltar.

E portanto, quando ele se suicida, o Stefan Zweig... Suicida-se porque sabe que o mundo dele terminou e suicida-se porque está sem esperança. Ao contrário de muita gente, ao contrário de muitos judeus que, nos campos contra todas as chances, sobreviveram. E depois, quando saíram, reconstruíram suas vidas, casaram, tiveram filhos, fizeram vida. Emigraram para Israel, Portugal, Brasil, para muitos países. O Stefan teve essa falta de esperança. Portanto, eu espero que não. Não estamos vivendo um mundo sem esperança, estamos vivendo um mundo que está passando por uma febre. É uma situação de febre, um dia muda. E neste momento, ainda não há falta de esperança, há só o medo. E por isso é que candidatos do medo conseguem ganhar em tantos países. Há medo quando numa Turquia prendem mais de 30 mil acadêmicos, livreiros, editores, professores, jornalistas, a coisa está ficando má. E quando no Brasil, de repente, no movimento anti-Dilma se começa a dizer coisas; eu ouvi como "se pagamos esse salário às babás como é que uma pessoa vai fazer" é pensar mesmo que as babás são seres infra-humanos. E é um regresso a um passado que não devia. Quer dizer, o Brasil tem que crescer, o mundo tem que crescer e eu espero mesmo que seja uma febre e neste momento não estamos num período de falta de esperança, estamos num período em que o mundo está a abafar um pouco a esperança.

SUB | Estamos escrevendo histórias sobre o medo?

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RUI ZINK | Escrevi um há 4 anos e depois vieram muitos atrás. Um livro é sempre um exagero, quer dizer um livro é um bocadinho paranoia com uma moldura à volta. Quer dizer, eu não acredito em tudo o que está nos meus livros, espero que ninguém acredite. Mas a história tem de estar organizada de forma a emocionar o leitor. Mas é um mundo fechado, é sempre um exagero. Em Portugal, por exemplo, nós temos um contra-ciclo. Há menos medo nesse último ano. Temos neste

momento um presidente solar, de direita, mas solar e um primeiroministro de esquerda, de esquerda, mas também solar. Ou seja, temos dois políticos na frente do país otimistas. O ano passado, tivemos uma coisa muito boa que nos deu um grande alto astral que foi a vitória no Euro. Foi a primeira vez que Portugal teve uma vitória internacional séria no futebol. Portugal ficava sempre em terceiro, quarto, nunca conseguia, nunca lá chegava. Durante anos, nós vivíamos um pouco por transfer. Eu torcia desde criança pelo time do Brasil até ao Sócrates, depois do Sócrates o Brasil continuou a ganhar, mas deixou de jogar bonito e bem. Mas o ano passado aconteceram coisas muito boas, Portugal está num bom momento que não dura para sempre, nada dura para sempre. Mas é um bom momento, é o presidente da ONU, é o Euro (futebol), é um governo que funciona, uma economia que sendo frágil, está muito melhor do que a maior parte dos nossos vizinhos e temos a perspetiva, ao contrário da França, de ter choques violentos por causa da religião, por causa do casamento gay, que nós tornamos legal muito antes da França… “Quem é o país atrasado aqui, oh?” E temos alguma confiança. Neste momento, acho até que há mais bebés a nascer em Portugal. E isso é bom.

SUB | O senhor está presente nas redes sociais, principalmente o Facebook. Quase sempre faz uso da ironia e acaba às vezes sendo malinterpretado. Vale a pena correr o risco?

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RUI ZINK | Tenho que correr o risco, se eu tiver medo de ser malinterpretado então não devia fazer literatura. Porque há literatura quando um texto pode ser mal-interpretado. Um texto que só pode ser interpretado de uma maneira não é um texto literário. Se o texto tem alguma ambiguidade, o leitor não tem a certeza do que o texto diz, então há literatura. Para mim, esta definição é clara, lapidar. No meu caso, eu sou um artista. Quem me conhece sabe o que eu sou. Muita gente ou chega, vê pela primeira vez e muitas vezes tem a posição errada. Às vezes deixa triste. Faz um tempo, isso é uma coisa que aconteceu, uma mulher negra, afro-americana, foi presa por um polícia branco, foi presa em sua casa porque ela saia de um carro bom e caro. Estava numa zona da cidade boa e cara. E o polícia prendeu a mulher negra por prostituição e ela disse: “Não, este é o meu carro, esta é a minha casa” e ele “Ha, ha, como é que você pode, você é uma bandida, vem pra aqui vender os seus serviços, sua prostituta, má e não sei quantos”. E ela foi presa. Acontece que a senhora era mesmo diretora de um banco, o carro bom era dela e a casa boa era dela. E o meu comentário reproduziu essa notícia no Facebook e o meu comentário foi: “oh, vê-se logo que ela tem cor de criminosa”. O jogo é linguístico, porque nós usamos a expressão “cara de criminoso” e naquele caso, eu estava trocando cara por cor. Houve duas ou três pessoas que disseram logo: “seu racista” e eu respondi uma a uma dizendo: “Olhe peço desculpa, mas é ao contrário. Você não me conhece, mas eu estava precisamente denunciando”. Geralmente as pessoas compreenderam, pediram desculpas e foi uma situação embaraçosa. Agora, eu não devia ter feito aquele jogo, bom para certas pessoas, para quem o mundo é literal, sim eu devia estar calado, devia dizer coisas que só tivessem um sentido. Mas na verdade, para mim isto é tirar o sal da vida, para mim isso é um mundo cinzento, onde nós nunca dançamos com a língua, com as ideias, só somos autómatos. Esse mundo para mim, é um mundo fascista e eu uso a palavra com

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peso. O mundo sem humor é um mundo sem graça. A alegria é olharmos sempre para o mundo, ou seja, a malícia, a brincadeira, o jogo e o riso são, para mim, componentes fundamentais do mundo. A ironia e o risco de ser incompreendido faz parte e cá eu sou toda a arte que ao longo dos séculos correu esse risco.

SUB |E para o senhor, qual o papel das revistas literárias on-line?

RUI ZINK | É fundamental, sobretudo numa altura… o grande problema de qualquer revista é a distribuição, é o grande problema também do livro hoje em dia. E no caso das publicações on-line vem tornar mais barata a produção, vem tornar-nos cosmopolitas. Isto é, Subversa não é uma revista sediada em parte nenhuma, parte do Brasil porque foram as pessoas que a fizeram. Mas é uma revista de língua portuguesa que pode ser lida em todos os continentes e esse é o poder do on-line. E ao mesmo tempo supera o prolema da distribuição que é: a revista é levada por um carro para uma parte distante… e o on-line faz essa coisa bonita que é… resolve esse problema do centro e da periferia. O Brasil é um país gigante, Portugal mesmo sendo um país pequeno tem centro e periferia, tem Lisboa e depois tem o resto. O on-line, o mundo da internet vai tornar cada ponto do mundo num centro. Um moço pode estar numa das dez ilhas de Cabo Verde e de repente através do on-line a Subversa chega a ele exatamente ao mesmo tempo da pessoa que esta em Nova Iorque, ou em São Paulo, ou em Paris. Portanto, essa é a vantagem. O on-line parece que foi inventado para as revistas.