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EBER S. CHAVES | DILÚVIO

DILÚVIO

EBER S. CHAVES | Vitória da Conquista, BA.

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O ar saturado sobre a minha cabeça. Um vento além-túmulo rasgando minha pele seca pela longa estiagem. Há um som desabando sobre esta cidade, é o trovão; e me pergunto por quanto tempo meus tímpanos poderão resistir a isso. Lá nas alturas, até aonde meus olhos alcançam, conjuntos visíveis de minúsculas gotículas de água e cristais de gelo se misturam. Uma

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nuvem está se formando com minúsculas gotículas de água, tão minúsculas que permanecem suspensas no ar. É uma nuvem fina e delicada que oferece ao céu a aparência acinzentada. O milagre da natureza: pequenas gotas atingindo peso suficiente e se precipitando sobre o solo. Um milhão de gotículas de nuvem numa gota de chuva caindo sobre o meu crânio danificado. Pancadas de chuva atingem o meu corpo e deixam hematomas. Atingem meu coração e meus ombros doloridos. Lágrimas de um céu acinzentado se perdem na chuva que desmorona. Até onde consigo me lembrar, a chuva continua caindo; e cuido que essa chuva é o reflexo do estado do meu corpo, e foi pensando assim que deixei que ela caísse sobre mim.

A água invade minha pele e estou tremendo como uma folha. Se eu conseguisse encarar esse chuva; se eu conseguisse me reconciliar com ela; eu inclinaria minha cabeça e a daria boas-vindas: - Ó nanica gota de chuva que cai sobre a minha cabeça, chame-me de tolo, mas ficarei aqui parado contemplando a sua ruína. Você deve ter desabado do céu; você deve ter se machucado no meu couro cabeludo; você precisar de um lugar melhor para cair, mas te peço que caia devagar. Rebenta mais uma vez a trovoada como havia sido anunciada –e dessa vez rebentou como nunca antes. O tempo fechou. O negrume cobre os céus; e as águas já sobem pelas pernas frígidas da morte, lavando os degraus, os sonhos, as calçadas e os guarda-chuvas que se contorcem pelas ruas. Acorda a cólera divina, e ela cairá sobre a humanidade. Eu, defronte ao meu inconsciente, observo e vivo a cautela necessária para lidar e me aprofundar nesta tempestade. A força das águas associada às forças celestes. Duas forças, dois elementos, ar e água em revolução; ou seja, mudanças à vista, quer eu queira ou não; quer eu me feche no meu entorno focando minha

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salvação, ou não. E, antes de me desunir e deslocar vagarosamente sobre o pedestal arrasado pela longa erosão, abraço a chuva violenta causando cheia repentina. Até onde consigo me lembrar, a chuva continuava caindo sobre o meu crânio danificado, reduzindo-o a migalhas. Quarenta dias e quarenta noites e Deus ainda não enxugou as suas lágrimas – e eu mal posso ouvir seu gemido através da chuva. Os homens perecem nas águas e enlouqueço ao contemplar o polvo gigante decepando seus corpos. Tentáculos bizarros movidos a óleo, sem dó e sem dor fazendo o seu trabalho. E não tardará até o dia em que as profundezas comerão as tripas dos senhores da arrogância. Eu fugi das águas diluvianas e me refugiei num mar isolado e raso que ocupava o fundo de um abismo. Nesse proto-mar as águas eram ternas, e as ondas anãs e raquíticas aguardavam à chegada do vento violento que ali nunca ventou. E na minha mente os ventos sopraram. Enxurradas, inundações e torrentes assolaram meus pensamentos. O dilúvio psicossomático explodiu em fúria. As águas caíram pelo abismo, subjugando aquele antiquíssimo proto-mar, estourando os seus limites em direção norte e sul e leste e oeste.

Flutuei num novo mar de emoções por dias e noites. No mar de onde tudo nasce e para onde tudo retorna. Querido Deus, o que fiz? Disse a mim mesmo, enquanto contemplava a grande inundação se elevar até o céu; formando ondas que foram comparadas aos dragões das profundezas, que surgiam como súbitas irrupções do inconsciente –outras águas, de ordem psíquica, de uma inércia enganadora, impelidas pelas pulsões instintivas a atacar o espírito, e o ego dirigido pela razão. Eu, em minha jangada, flutuava sobre o mundo submerso. Por quarenta dias e quarenta noites fui açoitado pelas ondas e escarnecido pelo vento e a chuva. Jogado de um lado para o outro nas marés da

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decadência. O relâmpago acenava para mim, e queimava os corpos que boiavam. Lembro-me quando o meu barco tropeçou no vento e Deus o ergueu novamente. Mas eu mal pude ouvir sua voz triste sussurrando através da chuva.

Rosto no vento; e ainda estou cavalgando a tempestade, cortando as ondas e brincando com a sorte. Estou pronto para submergir nas águas, mas está tudo afundando, enquanto flutuo. Sintome tão vivo. Se não tenho amor próprio, não entendo pelo que estou lutando. A verdade é triste, sem mentiras: estou amaldiçoado. Eu poderia suplicar por misericórdia, mas me pergunto o que poderia acontecer caso minha suplica fosse ouvida. - Ó Tempestade, ainda que você acabe com o meu corpo e molhe-o até a última gota, nunca tocará meu espírito. E vós, ó Nuvens Sombrias, mostrem-me o que seguram em suas mãos. Sobrevivo... Estou fazendo minha parte, agora é a vez de me retribuírem. Quarenta dias e quarenta noites. Não há mais lágrimas para o céu derramar. As nuvens secaram. Deus cessou seu pranto, mas eu mal pude ouvir seu lamento através da chuva. Tenho que tomar uma atitude agora, porque o tempo passa e não vai me esperar. Com dificuldades cheguei aqui. Vá com vento agora essa minha frustração! E podem vir as últimas ondas que por cima delas passarei. Fiz uma promessa a mim mesmo, de que duraria até envelhecer. Aqui estou eu, vomitado pelas ondas, no lugar onde a mãe Terra ergueu a sua mais alta escultura – o encontro entre o Céu e a Terra, a morada dos deuses e objetivo da ascensão humana. Aqui, descanso –certamente Deus tem sobre mim desígnios de misericórdia e chacota. E estando a salvo das águas, dancei e ri dos afogados. Ah, a sorte! Quem é esta autoridade desconhecida, esta potência inflexível e eterna que se deixou dobrar com as palavras deste pobre homem? Talvez, debaixo dessa palavra se deva entender a Providência. Enfim, um lugar onde possa repousar meus pés! As águas

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que dão à luz todos os seres e os alimentam, reabsorvem aquilo que formaram. Há muito tempo eu sinto a necessidade de me retirar da humanidade; de suprimir toda informação inútil e todo o trabalho imposto; de iluminar minha alma, fortalecer minha vontade, sustentar o meu ânimo. Estar aqui a salvo é mais do que um deslocamento físico, é uma insatisfação que me leva à busca e à descoberta de novos horizontes. No dia em que o céu tornou a ser azul, e as águas retornaram para o abismo, avistei, deslizando pelas águas, o navio da salvação, a nova arca da aliança entre Deus e a humanidade. Gentilmente, acenei para eles. - Capitão, lá fora, no despenhadeiro, há um homem que acena para o navio e parece dizer varias coisas. É um pedido de socorro! Como foi possível para um pobre diabo livrar-se do decreto divino da morte pela água? - Não, marujo; ele não está pedindo socorro, apenas acenando, se despedindo de nós; e parece nos desejar uma boa viagem. O navio seguiu o seu caminho; e como o Cristo, andou sobre as águas. As ondas abriram espaço para sua passagem, para depois se agitarem atrás dele – tábua na água, para onde a corrente levar ela vai. Eu permaneci em meu isolamento. Não era mais capaz de me relacionar com os outros; sentia temor em relação a eles. Não existia amor suficiente em meu próprio coração para que pudesse amar novamente a humanidade. Há uma tempestade silenciosa dentro de mim e um dia ela se sossegará.

EBER S. CHAVES é daqueles que acham que há uma certa glória em não ser compreendido. Baiano, natural de Itaquara/BA; reside em Vitória da Conquista/BA. Estudioso de psicanálise, história, religião e filosofia (mas sabe que a imaginação é mais importante que o conhecimento); e fã de música, poesia, literatura fantástica, cervejas especiais e feijoada.