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LETÍCIA MADERE| FULIGEM

FULIGEM

LETÍCIA MADERE | Ouro Preto, MG.

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Ela contornava a Avenida Amazonas sentindo um batuque escavado no estômago. Não que aguentasse fome ou qualquer indelicadeza nos intestinos, era mesmo o tal do engulho que se hospedava na moça toda vez que ela saía por alguma rua da grande Beagá. E o pior é que podia até apelar pra um desses remédios anti-enjoo que a coisa usava do seu direito de não fazer efeito e escondia a reviração atrás do Santo Subconsciente. ─ Isso aí é somatização Lúcia... Teus exames não deram coisa alguma – disse o gaúcho, barba cor de cevada, clínico geral do Posto de Saúde do bairro –, mas o SUS não cobre atendimento psicológico por essas bandas. Posso te dar um encaminhamento para um hospital do centro... ─ Se eu tiver que pagar muito caro, vou ter que ficar enjoada

mesmo.

─ É de graça, tu só vai ter que pegar ônibus.

A moça tomou posse do encaminhamento com data e assinatura em escrita farpada do doutor, e sabia que só porque era doutor já estava perdoado por Deus e a Virgem Santa pela feiura da letra. Guardou o papel dobrado no bolso da calça, saiu do consultório e lá ia pela avenida suportando o vai e vem nos cafundós do ventre, torcendo pro embolo não subir até a garganta e obrigá-la a tirar a sacola da bolsa. Sacola da mercearia do bairro que tinha carregado a água oxigenada 20 volumes pra descolorir umas mechas de cabelo, sacola branca daquelas que se acumulam nas esquinas empachadas com restos de não sei o que. Apertou o passo quando olhou a hora postiça na tela do smartphone recém-comprado com o salário de auxiliar de escritório lá na Pampulha – não era lançamento, foi o que coube. Postiça não pra moça que sabia navegar em touch screen, e fazia questão de

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pronunciar “tâch” bem certinho tal qual tinha ensinado a patroa versada em inglês; mas postiça pra mãe dela, batizada e criada em Ouro Preto, mãe que preferiu continuar levando o ante e o post meridiem no pulso. O ônibus apontava lá no funil do semáforo e cá no ponto se formava um segundo funil pra todo mundo entrar no veículo graúdo amontoado de gente. Lúcia ficou por último, mas respeitava a ordem de chegada porque não gostava nem um pouquinho de confusão. Tinha dito pra si mesma, em pensamento, que fecharia os olhos durante o trajeto pra não atiçar o enjoo com aquele passa-passa de paisagem na janela. E se fosse uma paisagem mais ou menos bonita, haveria de fazer o mesmo, porque duvidava e muito do estômago nessas circunstâncias. “Se só andando já se revira um tanto, quem dirá no ônibus? Melhor fechar os olhos e fazer de conta que não tá acontecendo nada” ─ pensava a moça. Chegando ao escritório eis que a patroa se assustou com a cor de Lúcia.

─ Menina, porque tão pálida? Por acaso passa mal?

─ É o enjoo que te contei outro dia, um que não acaba de jeito nenhum. Cheguei do médico agora, ele disse que é uma tal somatização e me mandou prum psicólogo. Será que sou louca Dona Carmem? A Carmen que sabia inglês, mas não era versada nas ciências da mente, fingiu que era só pra não perder a autoridade do seu posto e disse que se tratava de coisa séria, que era melhor a moça descansar por uns dias, quem sabe até visitar a mãe lá na cidade natal, não era longe mesmo. Sucedeu-se então que a Lúcia entrou em mais um ônibus, dessa vez intermunicipal, rumo a Ouro Preto. Segurava o enjoo com uma

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bala extra forte de eucalipto que a tia lá de Contagem mandou dizer que ajudava, que se não curasse ao menos trazia alívio, e duas horas depois ela avistava um nevoeiro branquinho, branquinho, “branco de doer as vistas” diria a mãe, um nevoeiro montanhês quase pronto pra se desabar num chuvisco franzino e deixar as ladeiras de pedra-sabão ainda mais ensaboadas. A moça desceu na rodoviária úmida, foi a pé até a Praça Tiradentes e de lá pegou o ônibus para um distrito do alto. A mãe esperava na rede da varanda, tinha na mão uma distração de agulha, devia ser ponto cruz. ─ Cê pegou chuvisco filha?

─ Ô lugar que chuvisca mãe, toda vez é isso.

─ Deita aí na rede filha. Me conta como vão as coisas.

─ Ah mãe, primeiro eu já vou logo dizendo que eu não tô grávida, mas arrumei um danado de um enjoo que não sei de onde vem. E sabe o que é estranho? Desde que eu desci lá na Igreja Mercê de cima é como se alguém tivesse me arrancado o enjoo com a mão.

─ É da fuligem filha, esse enjoo vem da fuligem.

─ Mas o que tem a ver enjoo com fuligem, mãe?

─ Tudo... Tudo a ver minha filha. Seu pai morreu foi de fuligem, depois que pediu o divórcio e inventou de ir morar lá em São Paulo. ─ Mãe, cê não tá falando coisa com coisa. Papai morreu de infarto. ─ Infarto provocado por fuligem. Cê precisa é arranjar emprego aqui mesmo, não tem problema ganhar só uns trocados não. Melhor do que ficar lá se adoecendo com fuligem. Aqui você tem o ar das

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montanhas, viu que já passou? ─ Preciso terminar o estágio, mãe.

Lúcia almoçou sem a reviravolta, os estribilhos no ventre se calaram. Depois ladeirou por Ouro Preto aproveitando a calmaria do estômago, dava até pra sentir o cheiro das bugigangas de cerâmica sem enjoar. E se alguém perguntasse que doença tinha quando regressasse à capital, guardava resposta melhor do que a escrita na receita do doutor: “eu tenho é a doença da fuligem, mas é coisa fácil de sarar em Ouro Preto. Lá tem curandeiras anciãs, dá pra ver elas de tudo quanto é canto da cidade, aparecem até nas selfies dos turistas. Volto esse ano ainda”.

LETÍCIA MADERE é escritora por força do acaso e por convicção. Estudou quatro períodos de filosofia na Universidade Católica de Brasília e na metade do curso resolveu aventurar-se no mundo do empreendedorismo textual. Possui artigos publicados na Revista Glocal, na qual já dissertou sobre artes e existencialismo. Atualmente é fundadora e editora-chefe da Priori Conteúdos, uma miniagência de criação de textos institucionais e jornalísticos.