Revista Recine nº 11 - 2014

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Ano 11

Nº 11

Arquivo Nacional Novembro de 2014

.A ZRTE O E D S . A QUAU A R I . T N S R S O O S R A Z I E A I A M M L E D O L H ÍPAEN C O S L C E O O C O E E T C T R D R N N S ÇAA G I A I E E T L S M G A O E O T A N U L S E F L M O ; T Q E E O L H I S T N C . N L O E E R A E O O S U L S S L G B M S I S A A N A A U A Ê E V G J A E Z R I G C S U É A I A R A R R F P C C S A A A , S C R E O E S Z E S D É E N O V . O D A Á S E E N A E T S E DNÃESN ERICOM, NOIO, DE OR TORNEC T N SLMOIEL OSSE ÁCAIL REX IO CCONSVA DICO. F ÍL ULEM DE DO MÉ SSAHOO AAGRR ÚDSICAM S- JO S SE IGNA

S E G R O B S I U L E G R O J , E EL

Revista do Festival Internacional de Cinema de Arquivo

C E G IU MMAN O A S R D Ã E E S S O R IL D O Ã S O A

V ND E E R N A E D D A A S S A

U N O HOMRAOESGUUA , BRAD

Nº 11

D M R M D S I I D A A A N X M N U O O S U OÁ MO AME N UPAÇÃ

Ano 11

ÃS :O CO

Revista do Festival Internacional de Cinema de Arquivo Arquivo Nacional Novembro de 2014


S O T NI SA O M FA LTEL; E.

24 A 28 DE NOVEMBRO DE 2014

ARQUIVO NACIONAL ENTRADA FRANCA / WWW.RECINE.COM.BR PRAÇA DA REPÚBLICA, 173 – CENTRO – RIO DE JANEIRO

- ENÃS OD AVEAD A E E L S C O G J U N A Q J O O A U B G S E R S U R E E I S I E N S M E L T C G E A O U G N L R S Ç A E H Ã A E R O L L H DECPÍA EESS R T E O R O N U M S A S D D I A A A O I A R S . Q T U U IS A G E S R B Z O E R T O E C O LR L AG E S

T A L E N T O CHANCELA

TAINJRADITEO E U OCS– SDAE O U O R M D G L A M OESH TEÃN S A O T H Á O : X É I OSMLI E V M A OLEDN ECR G R O S S E R IA D E F A Z Ê L O C O M

PARCERIAS APOIO CULTURAL

LÍN E P H

REALIZAÇÃO

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ZIRO O S N. I A .

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PATROCÍNIO

N M A S S U A E G I A S R N , R S É G A I S E IR C SP ZANO CE. R A E Á R E . A A C SV ES RT TOAN ,ICO R A D E E É O N V S E D M OIO, CCOES DL M O N E O O , A X D R I L N I C M G CALEULE SE ODU I Á EICA MFSÍ JO SRAMDAIS D A O D S R Ã R N Ú Ç N O A A M B A U P U N U U AOSGM E ,OC D N U AEA U A A S O M É R R Q M , O M O E R T R O L L CCSOE A A E M U S O M O A A E D E D O D A SR DR RAR

FILMES / PALESTRAS / REVISTA RECINE


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Cartaz do filme Sargento Getúlio (1983), de Hermano Penna, baseado na obra de João Ubaldo Ribeiro. Serviço de Censura de Diversões Públicas - RJ

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© 2014 by Arquivo Nacional do Brasil Praça da República, 173 CEP 20211-350 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil Tel. 55 21 2179 1286 • 55 21 2179 1253 e-mail: recine@arquivonacional.gov.br

Presidente da República Dilma Rousseff Ministro da Justiça José Eduardo Cardozo Diretor-Geral do Arquivo Nacional Jaime Antunes da Silva Coordenação-Geral de Acesso e Difusão Documental Maria Aparecida Silveira Torres Coordenadora de Pesquisa e Difusão do Acervo Maria Elizabeth Brêa Monteiro Editora Renata dos Santos Ferreira Edição, Redação e Revisão de Textos Renata dos Santos Ferreira Pesquisa de Imagens Mariana Lambert Projeto Gráfico Alzira Reis Diagramação Alzira Reis • Tânia Bittencourt Capa Marina Lutfi / Cacumbu Coordenação-Geral de Processamento e Preservação do Acervo Mauro Domingues Coordenador de Documentos Audiovisuais e Cartográficos Marcelo Nogueira de Siqueira Equipe de Documentos Iconográficos Bruno Duarte dos Santos • Luiz Claudio de Abreu Santos • Rodrigo Cavaliere Mourelle • Sérgio Miranda de Lima (supervisão) Equipe de Documentos Filmográficos Antonio Laurindo dos Santos Neto (supervisão) • Christiane de Oliveira Pereira • Leandro Hunstock Maria Goretti Aires Moreira Coordenadora de Preservação do Acervo Lúcia Saramago Peralta Digitalização de Imagens Adolfo Celso Galdino • Agnaldo Neves • Cícero Bispo • Fábio Martins • Flávio Lopes (supervisão) • Janair Magalhães • José Humberto • Rodrigo Rangel Tratamento de Imagens ActionItec Informação e Tecnologia

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Agradecimentos Bill Morrison • Cinemateca Brasileira/SAv/MinC • Daniel Santos • Elfi Fenske • Eugenio Puppo e Matheus Sundfeld (Heco Produções) • Fernando Fortes • Henrique Dantas (Hamaca Filmes) • Ilya São Paulo • Lara Souto Santana • Liana Farias • Lorena Garrido (Drama Filmes) • Márcia de Abreu Jacintho • Meila Renata Quinhões de Carvalho • Olney São Paulo Jr. • Patrick Werneck • Samuel Alarcón • Tempo Glauber

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cine Apresentação

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Mercado editorial e novos circuitos da literatura

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Renata dos Santos Ferreira Vera Lúcia Follain de Figueiredo

Cinema e literatura

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Os cinematographos de João do Rio

30

Borges e Santiago: uma “invasão” no cinema argentino

40

Jorge Amado, articulador das manifestações culturais − um recorte nas artes plásticas e no cinema da Bahia

50

Carolina de Jesus e Ozualdo Candeias: literatura, cinema, cultura popular

58

Literatura, cinema e história nas representações de Nelson Pereira dos Santos e Graciliano Ramos

68

Grito da terra: ética e estética da adaptação em Olney São Paulo

80

O latino-americanismo transgressivo de Glauber Rocha

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Gerson Noronha Filho Aline da Silva Novaes

Keilla Conceição Petrin Grande

Benedito Veiga

Rodrigo Cazes Costa

Tania Nunes David Claudio Novaes

Maria Gutierrez

Na intranquilidade do universo de Nelson Rodrigues

100

O cinema que olha o cinema: uma breve história da apropriação no audiovisual

110

Gestão arquivística na era do cinema digital: novas possibilidades, velhos desafios

118

Minha casa é a literatura

126

Diálogos entre literatura, vídeo e cinema: a transcriação da obra de Guimarães Rosa para o sistema audiovisual

132

A perenidade de Caio Fernando Abreu: um flanar entre cinema e literatura

142

Joel Cardoso

Adriana Cursino

Alessandro Ferreira Costa

Entrevista com Marçal Aquino

Enio Luiz de Carvalho Biaggi

Fabiano Grendene de Souza

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Literatura e cinema. Duas linguagens que se misturam e se completam para felicidade do leitor/ espectador. Nos filmes de Nelson Pereira dos Santos, nos textos de Clarice Lispector e Caio Fernando Abreu, nas reflexões de Jorge Luis Borges e nos roteiros de Gabriel García Márquez existe um casamento próximo da perfeição entre as letras e as imagens, em que não faltam paixões, suspense, drama, ironia... Como num bom livro ou filme. Neste 11º número da Revista REcine, a intenção é provocar a reflexão, tentar compreender como se desenvolve essa aliança entre o cinema e a literatura. Adaptar uma obra literária para o cinema significa traduzir de uma linguagem para outra, o que pode ser um ato de libertação, pois mais do que mostrar-se fiel ao produto original, o cineasta precisa libertar-se da expressividade da palavra escrita no intento de contar uma história e transmitir sua mensagem em sequências de imagens. O leitor que já elaborou em sua imaginação os cenários e os personagens que leu no livro talvez se incomode com a interpretação do filme à mesma trama. É natural e esperado que tal conflito aconteça, porém, deve-se analisar a questão sempre se levando em conta que são sistemas de signos diferentes, meios de comunicação com características próprias, caso contrário incorre-se no erro de avaliar uma obra tendo como referência formas e peculiaridades que não são compartilhadas entre a palavra escrita (o texto literário) e a imagem em movimento (o cinema). A discussão sobre as adaptações cinematográficas de obras literárias é um exercício estimulante, pois abrange uma relação que, apesar das muitas ressalvas − a mais comum delas diz respeito à suposta perda de qualidade que um texto sofre ao ser traduzido em imagens, induzindo a crer que o cinema estaria num patamar inferior à arte das letras −, costuma ser bastante proveitosa para ambos os lados. O que esperar do encontro entre uma arte erudita e um meio de entretenimento que logo no começo de sua história foi considerado fugaz e fadado ao esquecimento na poeira dos anos? Se o cinema ganhou respeito e credibilidade ao transpor clássicos da literatura para as telas, os enredos literários, por sua vez, conquistam

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mais leitores quando absorvem características da linguagem e da dinâmica cinematográfica. E estes são os extremos nesta discussão, no meio dela há diversas análises, com as mais variadas nuances, como provam os artigos publicados neste número da Revista REcine. O debate torna-se ainda mais polêmico quando observamos o mercado editorial. Talvez não vejamos no Brasil um movimento tão forte quanto nos Estados Unidos de convergências midiáticas envolvendo cinema e literatura. O best-seller com tantos milhões de leitores é capaz de transcender fronteiras e barreiras linguísticas com maior facilidade ao se transformar em conteúdo audiovisual, e o cânone literário supera os limites da palavra escrita e se eterniza como um desfile de imagens, de astros e estrelas a serviço da narrativa. Desde clássicos até a literatura de autoajuda dos últimos anos, nada escapa ao gosto popular e às veias grossas do mercado, que jorram milhões de dólares em lucro na venda desses filmes, livros e outros subprodutos. Em suma, uma indústria auxilia a outra na meta de vender cada vez mais. E, enquanto sobram questões semióticas, ideológicas e filosóficas nesta discussão, a criatividade e o talento dão as cartas do jogo. Que sensação tem o leitor quando assiste a uma adaptação dirigida por um Pasolini, um Nelson Pereira dos Santos? E o que leva um escritor como Gabriel García Marquez ou Jorge Amado a se envolver com roteiro e produção de cinema? Talvez a resposta a estas perguntas reflita um pouco sobre esse encontro tão produtivo e bem-sucedido entre a literatura e o cinema. Trata-se de uma imensa transferência de ideias, interpretações, visões de mundo. O cineasta que se apaixona pela obra literária e quer transformá-la num filme colocando nele sua impressão particular; o escritor que absorve em seu estilo o entusiasmo pelo cinema, na forma de uma narrativa dinâmica, cheia de detalhes, com descrições semelhantes às que se faz em um roteiro cinematográfico. João do Rio, já na primeira década do século XX, fez do livro um cinema de letras, com seu Cinematographo: crônicas cariocas. Não é uma operação matemática ou uma ciência exata, e sim fórmulas múltiplas de trabalhar uma

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narrativa, com discursos textuais e fílmicos, que se entrelaçam, interpenetram. A literatura nos envolve, ativa a imaginação, nos faz construir mundos a serem explorados; o cinema, por sua vez, hipnotiza, como afirmou certa vez Gabriel García Márquez, e o mundo ficcional do filme nos engolfa, nos faz viver outra existência. Na sala escura, na frente do livro aberto, as ideias soam como pequenas maravilhas esperando nossa descoberta: imagens, sons, letras, páginas à espera de leitura; tudo é uma poesia que acomete os sentidos, precisa chegar às pessoas, não importa de que forma, pois todas as artes são nobres e necessárias. O objetivo do REcine 2014, o festival, é apresentar a afinidade tão vigorosa que existe entre alguns literatos e o cinema, especialmente no Brasil e na América Latina. A escolha dessa abordagem temática é inspirada no envolvimento de escritores do nível de García Márquez, Jorge Luiz Borges, Dalton Trevisan, Caio Fernando Abreu e tantos outros com a atividade cinematográfica, permitindo que esta linguagem influísse em seus escritos e também escrevendo roteiros e participando das adaptações de seus próprios textos. Eles venceram a resistência dos mais críticos à associação cinema-literatura, deram brilho e consistência à arte que ainda lutava para se afirmar como tal. Este dossiê procura compreender alguns dos diversos aspectos que envolvem a relação cinemaliteratura: Vera Follain analisa a influência do mercado editorial na adaptação literária para o cinema; Gerson Noronha compara as duas artes; no artigo de Aline Novaes nos deparamos com um cinema do Rio de Janeiro nas crônicas de João do Rio. A tradução para o cinema dos escritos de Jorge Amado, Caio Fernando Abreu, Jorge Luis Borges, Guimarães Rosa, Nelson Rodrigues e Graciliano Ramos – este último na interpretação de Nelson Pereira dos Santos – recebem a atenção de Benedito Veiga, Fabiano Grendene, Keilla Petrin, Enio Biaggi, Joel Cardoso e Tania Nunes David, respectivamente. A literatura de Carolina de Jesus e o

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cinema de Ozualdo Candeias são examinados no artigo de Rodrigo Cazes, e Cláudio Novaes descreve a ligação entre cinema e literatura na carreira do cineasta baiano Olney São Paulo. Maria Gutierrez aborda o diálogo entre o cinema de Glauber Rocha e a literatura latino-americana. O entrevistado da vez é Marçal Aquino, um dos escritores mais importantes da atualidade, roteirista de cinema e TV, com livros adaptados para a tela grande.

Com a palavra, o cinema

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Neste número também, dois artigos voltados para a preservação audiovisual: Adriana Cursino se dedica ao tema da apropriação no audiovisual usando como objetos de estudo as produções dos cineastas Bill Morrison e Samuel Alarcón; já o trabalho de Alessandro Ferreira versa sobre a gestão arquivística na era do cinema digital, assunto premente que cada vez mais deve ser discutido por pesquisadores e profissionais do da área. E antes de começar esta jornada literário-cinematográfica, por que não se perguntar: quem nunca experimentou a sensação de assistir a um filme baseado em uma obra literária e teve vontade de ler o livro inspirador? Ou desejou que um livro se tornasse filme? As boas histórias e os bons personagens precisam se manifestar em diversos meios, especialmente se isto implica em atingir um público mais amplo. O mais encantador é vê-los representados ou reproduzidos com arte.

Do romance de Jorge Amado, Dona Flor e seus dois maridos (1976), direção de Bruno Barreto. Recordista de bilheteria do cinema brasileiro por mais de trinta anos. Acervo LC Barreto. Arquivo Nacional

Renata dos Santos Ferreira Editora

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Em visita ao Brasil, o poeta chileno Pablo Neruda (ao centro) encontra Vinicius de Moraes, Jorge Amado e a filha deste, a pequena Paloma. Novembro de 1956. Correio da Manh達

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Vera Lúcia Follain de Figueiredo Doutora e mestre em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Professora

adjunta (associada) da PUC-Rio.

Mercado editorial

e novos circuitos da literatura

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Cartaz do filme A primeira noite de um homem (EUA, 1967), de Mike Nichols, bem-sucedida adaptação do best-seller de Charles Webb. Serviço de Censura de Diversões Públicas - RJ

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cine

COM A PALAVRA, O CINEMA

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Se o grande descentramento – aquele que seria gerado pela democratização dos meios de produção dos bens simbólicos e pela diluição das compartimentalizações que definem competências – sonhado por intelectuais como Walter Benjamin, na primeira metade do século passado, não se realizou, não se pode, entretanto, deixar de reconhecer que o mercado global e as novas mídias têm operado, sobretudo a partir das três últimas décadas, deslocamentos significativos. Nesse quadro, cinema e literatura vêm atravessando um momento de grandes mutações, em função não só das tecnologias digitais, que, favorecendo a convergência de mídias, põem em xeque a especificidade de cada linguagem, mas também da vasta expansão de uma cultura midiática de mercado, que cria zonas de indistinção, abalando a dicotomia arte elevada/cultura de massa tal como concebida pela modernidade. Como observou Andreas Huyssen, o consumo é cada vez mais o denominador comum de toda cultura, tornando ilusões sobre a autonomia do “erudito” tão difíceis de sustentar como o sonho transgressor das culturas das minorias.1 A convergência entre o mercado de livros e o de produtos audiovisuais insere-se, assim, no movimento mais amplo de expansão de uma estética multimídia, que, tensionando os limites de cada arte, amplia as zonas de interseção entre os diversos campos artísticos. Classificações e paradigmas de valor consagrados na esfera literária são, então, postos em xeque diante do fenômeno de uma “literatura hipermídia”, já que, conforme assinalou

Roger Chartier, os suportes materiais que permitem a leitura, a audição ou a visão dos textos participam profundamente da construção de seus significados: Se os textos se emancipam das formas que os acompanham desde os primeiros séculos da era cristã – desde o códex, o livro composto por cadernos, do qual derivam todos os objetos impressos que nos são familiares – são, de fato, todas as tecnologias intelectuais, todas as operações em curso na produção de significações que se encontrarão modificadas.2

Na era da tecnologia digital, filmes, fotografias, textos, músicas, traduzidos em dados numéricos, inserem-se numa rede não hierárquica de circulação. Em meio a essa contínua torrente de transformação intertextual, de textos gerando outros textos em um processo incessante de reciclagem, as obras literárias vêm cada vez mais desempenhando o papel de prototextos dos textos cinematográficos e televisivos. Como destacava, na década de 1980, Umberto Eco, no lugar do choque e da frustração de expectativas, ganha terreno, na era eletrônica, uma estética da repetição que vem minando o critério da originalidade característico da arte moderna. Identificada com os produtos veiculados pelos meios de comunicação de massa, essa estética da serialidade implica a ideia de infinitude do texto, cuja variabilidade se converteria em prazer estético.3 A literatura entra nesse circuito e o alimenta, mas sem a proeminência de outrora, pois sua distância em relação a outros tipos de textos, anteriormente

1 HUYSSEN, Andreas. Literatura e cultura no contexto global. In: VILELA, Lúcia Helena; MARQUES, Reinaldo (Orgs.). Valores: arte, mercado, política. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002. p. 37. 2 CHARTIER, Roger. Do palco à página: publicar teatro e ler romances na Época Moderna – séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002. p. 91. 3 ECO, Umberto. Sobre espelhos e outros ensaios. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. p. 110.

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Mercado editorial e novos circuitos da literatura

rotulados como não literários, torna-se menor, ou, dizendo de outra forma, as fronteiras do campo literário se distendem para abarcar textos que se situam na interseção entre artes diversas, difundidos por diferentes meios, suscitando novas práticas de leitura. Assim, o lugar tradicionalmente ocupado por ela na cultura ocidental moderna vem sendo alterado não só pelos imperativos da razão mercantil, mas também pela interação da velha tecnologia da escrita com as mais recentes tecnologias disponíveis. Já nos anos 60 do século passado, McLuhan chamava a atenção para o fenômeno de interpenetração entre diferentes mídias, destacando que, para a indústria cinematográfica hollywoodiana, um best-seller era como um “jorro de petróleo ou indício de ouro”,4 isto é, os banqueiros de Hollywood farejavam, neste tipo de livro, grandes lucros para o cinema, uma garantia de sucesso de bilheteria. Além de já ter sido aprovado pelo gosto popular, o best-seller ainda emprestaria ao meio cinematográfico a “superioridade do meio livresco”. Ao longo da segunda metade do século XX, entretanto, como assinalamos em obra anterior,5 acentua-se o movimento inverso a este, isto é, o mercado editorial esforça-se para criar best-sellers a partir das telas. A visibilidade da obra literária vai se tornando tributária do fato de ter sido tomada como texto-base para um filme. A ideia é que se chegue à literatura por intermédio de sua versão audiovisual – esta ganha o status de obra final, enquanto o texto literário, visto por esse ângulo, tende a ocupar o lugar do argumento, do texto realizado para dar origem a um filme e que será lido a partir da mediação do espetáculo fílmico. Esse movimento não se restringe somente ao caso de reedição de obras que foram filmadas, colocando-se, na capa, fotos do filme, como tática de sedução para a compra do livro, mas dá lugar a uma série de outras estratégias que visam diluir as fronteiras entre as duas esferas de produção. Dentre estas estratégias, está a recente utilização, pelas editoras, dos meios audiovisuais para divulgar

livros. Pequenos filmes, de cerca de dois minutos, exibidos na internet, em sites, blogs de editoras e até no cinema, são usados como trailers de livros: no cinema, procura-se exibi-los antes de filmes que tenham alguma afinidade com a obra. O book trailer serve de chamariz para o texto, substituindo resenha e publicidade escritas nos moldes tradicionais, como se as palavras impressas fossem insuficientes para atrair leitores, que necessitariam de estímulos audiovisuais. Em diferentes formatos, de acordo com o tipo de livro que apresentam, os book trailers podem mostrar, por exemplo, cenas do autor lendo trechos selecionados, intercaladas com imagens de arquivo, como costuma acontecer com livros de historiografia. Outras vezes, ouvese a poesia de um escritor consagrado na voz de um poeta com maior visibilidade midiática, de um ator ou cantor, enquanto imagens alusivas à obra ou à vida do autor do texto recitado são exibidas. Quando se trata de livros de ficção, o trailer busca sintetizar visualmente o enredo dessas narrativas:6 quase sempre conta com trilha sonora e é estrelado por atores, aproximando-se dos trailers de filmes. Há, no entanto, exceções, como o caso do romance Leite derramado, de Chico Buarque: neste book trailer, por cinco minutos, o autor, em primeiro plano, lê algumas páginas do livro – a câmera só se desloca da imagem do escritor para aproximar-se das páginas que estão sendo lidas, voltando em seguida para o autor. O propósito de atrair o leitor/espectador evidentemente não se esgota nos book trailers. O mercado editorial tem investido também na publicação de roteiros e de histórias de realização de filmes, isto é, de relatos das etapas de elaboração de uma obra cinematográfica concluída, assim como de obras híbridas nas quais se reúne material variado como fotos, entrevistas, depoimentos, críticas e, às vezes, o próprio roteiro. Essas edições, que, pelo próprio apelo visual do projeto gráfico, não parecem ter um objetivo apenas didático, tiram partido da popularidade do audiovisual e do prestígio remanescente

4 MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. São Paulo: Cultrix, 2003. p. 74. 5 FIGUEIREDO, Vera Lúcia Follain de. Narrativas migrantes: literatura, roteiro e cinema. Rio de Janeiro: PUC-Rio; 7 Letras, 2010. p. 44. 6 A título de exemplo, pode-se citar o trailer realizado para ser exibido nos cinemas como peça promocional do livro A guerra dos bastardos, de Ana Paula Maia, lançado pela Língua Geral, em 2007.

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Com a palavra, o cinema

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Laranja mecânica (EUA/Inglaterra, 1971), dirigido por Stanley Kubrick: o filme garantiu o sucesso nas vendas do livro de Anthony Burgess, lançado pela primeira vez em 1962. Serviço de Censura de Diversões Públicas - RJ

da cultura livresca, movimentando o mercado editorial. O livro serve de suporte para narrativas relacionadas à fase pré-filme, cumprindo, em certa medida, função semelhante a do extra do DVD que apresenta o making off da obra cinematográfica: com a diferença de que sua associação com a cultura elevada agrega valor ao conteúdo. Na mesma direção, a ampliação da publicação dos roteiros tem fortalecido a ideia, defendida por alguns profissionais do cinema, de que estes constituem um novo gênero narrativo, capaz de despertar o interesse do leitor comum, não especializado. Para o cineasta brasileiro Sylvio Back, por exemplo, “o espectador adora virar ‘leitor de um filme’, da linguagem e carpintaria do roteiro, como se ali encontrasse algum mistério revelado no que viu ou no que verá na tela, o que transforma, sim, o roteiro de cinema num gênero”.7

Se o espectador adora virar “leitor de filmes”, como afirmou Sylvio Back, pode-se dizer também que o leitor cada vez mais vai se tornando “espectador de livros”. Isto porque, buscando fazer uma literatura para ser lida como um filme, mais até do que para ser filmada, escritores utilizam tópicos da cultura audiovisual como mediação entre o texto e o leitor, evocando o mundo das imagens técnicas como forma de estabelecer uma base comum que favoreça o deslizamento do universo literário para o mundo das narrativas audiovisuais. Assim, a ficção literária contemporânea, ao mesmo tempo em que questiona o regime de visibilidade instaurado pelas imagens tecnológicas, sua insuficiência para representar a realidade, seu caráter de mercadoria, procura aproximar o texto desse mesmo regime de visibilidade. Acrescente-se que, além do fato de, por

7 Jornal do Brasil, Caderno Ideias, 24 jan. 2009.

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Mercado editorial e novos circuitos da literatura

Correio da Manhã

vezes, o escritor já escrever de olho na tela, ou seja, procurando formatar o texto para facilitar futuras adaptações, aproximando-o do roteiro, o espaço de tempo entre a publicação do livro e sua adaptação para o cinema reduziu-se significativamente. Essa aproximação entre os dois campos, que deixa marcas na escritura, é estimulada pelo mercado de bens culturais que, cada vez mais, trabalha com o reaproveitamento das matérias ficcionais disponíveis, distribuindo-as por plataformas diversas, o que fica evidente no caso das narrativas transmidiáticas, cujo processo de criação prevê, desde seu ponto de partida, a circulação das obras em suportes diferentes, como o livro e a tela do cinema ou da televisão. Nesse contexto, a parceria entre escritores e cineastas brasileiros, numa espécie de colaboração que transcende as fronteiras de cada campo, tem sido frequente, daí a presença de escritores no set de filmagem de suas obras, colaborando estreitamente com diretores e roteiristas, podendo ocorrer, inclusive, que os escritores atuem como

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atores. O filme Os famosos e os duendes da morte, por exemplo, resultou do trabalho conjunto realizado pelo diretor Esmir Filho e o escritor Ismael Canappele. O primeiro, ao ler o esboço do romance de Ismael Canappele, identificou-se com a história e decidiu filmá-la. Não se trata, portanto, de uma adaptação no sentido que comumente se atribui a esse termo, uma vez que o roteiro e a forma final do livro nasceram juntos. Trata-se de uma criação compartilhada: o livro, ainda em fase de finalização, foi influenciado pelo próprio desenvolvimento do filme. Surgiram, simultaneamente, o filme de um livro e o livro de um filme (publicado pela Iluminuras). Canappele assinou o argumento junto com o diretor e fez uma participação no filme, que conquistou o Troféu Redentor, como melhor longa de ficção do Festival do Rio de 2009. Também Lourenço Mutarelli atuou como ator na adaptação de seu romance O cheiro do ralo, realizada por Heitor Dhalia (2007), e na adaptação

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de Natimorto por Paulo Machline (2011). Aliás, após o filme, o livro O cheiro do ralo ganhou uma sobrecapa com foto e texto de Selton Melo, ator que encarna o personagem principal. Ressalte-se, ainda, a seguinte declaração de Lourenço Mutarelli, em entrevista: “Não sei se vou reler O cheiro do ralo algum dia, mas se reler, imaginarei o Selton Mello na história.”8 Em outra entrevista, afirma: Eu quero que quem me adapte tenha liberdade, pois uma outra mídia não me compromete. É diferente de uma peça de teatro. Na peça tem o seu nome como autor. Se alguém muda o final da peça, como fizeram, você se queima como autor. Mas, no filme, o pessoal faz o que quiser.9

O caso de Lourenço Mutarelli, cuja carreira como escritor foi impulsionada a partir do momento em que O cheiro do ralo chegou às telas de cinema, torna-se, desse modo, exemplar para a reflexão que aqui se desenvolve. Depois de O cheiro do ralo, publicado em 2002, dois de seus romances – Jesus Kid (2004) e Miguel e os demônios ou Nas delícias da desgraça (2009) – foram escritos sob encomenda para virar filmes. Talvez por isso o romance Jesus Kid constitua-se numa crítica tão ácida à submissão dos escritores aos interesses da indústria cinematográfica e do mercado editorial. O livro nasceu de uma solicitação do diretor Heitor Dhalia, que necessitava de um roteiro para um filme de baixo orçamento. Mutarelli aceitou a encomenda, mas escreveu um romance para ser adaptado e não um roteiro. Neste romance, o personagem principal, chamado Eugênio, é um escritor de livros de entretenimento, que, necessitado de dinheiro para pagar contas, aceita a proposta de um produtor e de um diretor de cinema para escrever o roteiro de um filme. O contrato obriga Eugênio a escrever o roteiro num hotel, onde deverá ficar por três meses, sem poder sair, fazendo lembrar tanto a situação dos participantes de reality shows quanto de alguns projetos editoriais que implicam o deslocamento dos escritores para

locais determinados pelos editores. O personagem do diretor no universo ficcional exige que o filme de Eugênio seja sobre um escritor, em crise criativa, que se lança em um projeto de escrever um roteiro para um filme. Por outro lado, o diretor também exige que o enredo tenha muita ação e inclua mulheres. Como se vê na passagem abaixo, cita como exemplo do que deseja o filme Adaptation (EUA, 2002), de Spike Jonze, com roteiro de Charles Kaufman:

Com a palavra, o cinema

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- E toda história deve se passar no interior do hotel? - Isso, desse hotel. Porque nós conhecemos o dono e ele vai deixar a gente rodar o filme aqui, na faixa. Isso nos economiza um montão de dinheiro. - Eugênio, você viu Adaptation? - Não, não vi. - Porra Eugênio, que tipo de roteirista você quer ser se você não vai ao cinema? - Eu não sei se quero ser roteirista. - [...] E ele precisa inserir um pouco de favela, diga isso a ele. - Favela? - É favela. Isso ajuda na captação. - Mas como eu vou inserir favela em uma história que se passa, toda, dentro de um hotel? - Porra nós vamos ter que arrumar um DVD do Adaptation. - Adaptation? - Cara, nesse filme, o cara bota todos os ingredientes hollywoodianos numa história que fala de orquídeas. É mole?!10

Criando um enredo em abismo, que espelha de maneira caricatural a sua própria situação, Lourenço Mutarelli, em Jesus Kid, chama a atenção para uma série de questões que tensionam a escrita literária quando esta já nasce comprometida com a produção audiovisual. Destaca o fato de problemas financeiros característicos do cinema acabarem por impor restrições temáticas aos romances ou determinarem a escolha de temas que facilitam a captação de recursos, como os de cunho social, que, na versão “filme de favela”, constituíram um gênero bastante explo-

8 Disponível no site G1: <http//g1.globo.com>. Consulta em: 14 out. 2009. 9 Disponível no site Empirical Empire: <http//stulzer.net>. Consulta em: 14 out. 2009. 10 MUTARELLI, Lourenço. Jesus Kid. São Paulo: Devir, 2004. p. 64.

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rado pelo que se convencionou chamar de Cinema de Retomada. Assinala, ainda, a preocupação com o sucesso de bilheteria, que induz à utilização de fórmulas garantidas de sucesso, como a mistura de ingredientes das narrativas de entretenimento com uma dose certa de metalinguagem. Como Heitor Dhalia observou no prefácio do livro, nada escapou à ironia de Mutarelli, voltada sobretudo para o cinema: o romance aponta de maneira cortante “as fraquezas, mesquinharias e ambições mal disfarçadas da atividade cinematográfica, que mescla arte e dinheiro, como nenhuma outra”. Em Jesus Kid, os clichês das narrativas de entretenimento tornam-se o próprio objeto da representação, isto é, o livro encena um tipo de encenação, dobra-se sobre o discurso da cultura de massa e o estiliza, exibindo seus artifícios com o objetivo de exauri-los. Representando representações, o romance constitui-se numa narrativa em segundo grau, já que procura evidenciar os mecanismos de fabricação das histórias estereotipadas que se alimentam da repetição dos esquemas genéricos. Absorve de maneira explícita e excessiva vários clichês, chamando a atenção para a retórica repetitiva e vazia que preside os produtos submetidos a interesses puramente mercadológicos. Ao utilizar de maneira crítica esses mesmos recursos, não abdica, entretanto, do propósito de seduzir um público mais amplo proporcionando-lhe o prazer do reconhecimento do que lhe é familiar. Assim, o romance/roteiro não deixa também de se alinhar com o modelo proposto – o mencionado filme Adaptation, no qual reflexões sobre a relação entre literatura, cinema e mercado cruzam-se com peripécias típicas dos filmes de ação. O artifício utilizado por Mutarelli – a mistura de ingredientes das narrativas de entretenimento com uma certa dose de metalinguagem – constitui-se numa convenção narrativa dominante em nossa época pouco afeita às radicalidades e às rupturas. Como observado anteriormente, preserva-se o enredo, satisfazendo aquele leitor que busca se divertir com a intriga, mas também se oferece algo

além da intriga – “uma dimensão metalinguística e reflexiva, reforçada por inúmeras citações, que permite a um outro tipo de leitor contemplar, de maneira distanciada as estratégias narrativas que criam o fascínio na primeira dimensão”.11 Por esse caminho, já trilhado, na literatura, por escritores como Manuel Puig, e, no cinema, dentre outros, por Pedro Almodóvar e QuentinTarantino, coloca-se em primeiro plano as convenções e os esquematismos que evidenciam a opacidade do jogo narrativo: combate-se, assim, a própria ilusão de transparência engendrada pelas imagens técnicas ao ocultarem o trabalho da sua produção. Miguel e os demônios ou Nas delícias da desgraça, livro do mesmo autor, posterior a Jesus Kid, escrito por encomenda do cineasta Tadeu Jungle, assume-se, sem críticas explícitas, como um texto pré-filme, sendo pontuado por indicações que remetem para a esfera cinematográfica, como a que inicia o texto – “tela branca” –, além de referências a posicionamentos de câmera que enquadrariam a cena narrada, como ocorre, por exemplo, na passagem: “A câmera se afasta, revelando a mosca que se debate contra o para-brisa.” Tais indicações constituiriam um recurso tanto para orientar os integrantes de uma equipe de filmagem, quanto para seduzir o leitor comum, familiarizado com a linguagem do audiovisual. Acrescente-se que, além da mixagem de ingredientes formais e temáticos de gêneros narrativos populares, como o romance policial e o filme de ação, predominam, em Miguel e os demônios, formas verbais no presente e frases nominais – recursos que tendem a presentificar as cenas narradas, como ocorre no cinema. Leia-se, a título de exemplo, o seguinte trecho: Calor infernal. Dezembro. Interior de um Fiat Uno branco modelo 94. Rua Domingos de Morais, Vila Mariana. Fachadas se alternam. Pequenas lojas, pequenas portas, prédios comerciais e residenciais. Blocos de três ou quatro andares. Papai Noel por toda parte. Múltiplo. Ubíquo. Papai de plástico, papai de gesso, papai de papelão. Postes e molduras cobertos de lampadinhas. Pisca-pisca.12

11 FIGUEIREDO, Vera Lúcia Follain de, op. cit., p. 43. 12 MUTARELLI, Lourenço. Miguel e os demônios ou Nas delícias da desgraça. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 6.

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Como se pode perceber, a estreita relação entre a obra literária e o campo do audiovisual, na atualidade, se manifesta em diferentes níveis. Um caso bastante significativo é o diálogo constante travado entre o cineasta Beto Brant e a literatura de Marçal Aquino. Para citar apenas um exemplo mais recente, o diretor, que adaptou o livro Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios, de autoria de Aquino, para o cinema, produziu uma série de televisão em quatro episódios – que depois também virou um filme – partindo de um personagem secundário do romance: o psicanalista Benjamim Schianberg. A série, realizada a convite da TV Cultura e do Sesc TV, acompanhou a construção do relacionamento amoroso entre um ator e uma artista plástica, no interior de um apartamento, onde, durante três semanas, aconteceram os encontros do casal. A proposta envolvia a instalação de câmeras no apartamento, como num reality show, com o diferencial de que os atores não estariam confinados. Na narrativa audiovisual, Schianberg, personagem cujo principal interesse é refletir sobre o comportamento amoroso tendo como base observações

reais, é representado pela voz de um narrador, que analisa a relação dos atores Gustavo Machado e Marina Previato. Segundo Beto Brant, não havia uma dramaturgia previamente escrita. Diz o diretor:

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A gente criou uma regra: contaminar o menos possível. Saíssem quando quisessem, limpassem o apartamento. E eu me comunicava com e-mails, torpedos, que era uma forma de manter contato sem contaminar. E de brincar mesmo! Eu estava em outro apartamento, com joysticks, com oito câmeras, como se fosse um game mesmo, buscando enquadramento e olhares, flagrando detalhes que acrescentassem significados no filme. Eu era o próprio Schianberg!13

Desse modo, o personagem do livro de Marçal Aquino deu origem a uma outra narrativa que se realizou de forma aberta, incorporando os elementos do dia a dia dos atores às tramas propostas no roteiro. A ficção de Aquino serviu, assim, de inspiração para uma obra que dilui os contornos entre a peça ficcional e o documentário. Beto Brant estabeleceu um diálogo com o modelo televisivo dos reality shows,

Gustavo Machado e Camila Pitanga no filme de Beto Brant e Renato Ciasca, Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios (2012), baseado no romance de Marçal Aquino. Divulgação Drama Filmes

13 Disponível no site Terra Magazine: <http//terramagazine.terra.com.br>. Consulta em: 23 fev. 2010.

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tendo como mediação o personagem de Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios. Encontra-se aí mais uma vez um exemplo do esforço empreendido pelos artistas no sentido de extrair potência inventiva de lugares-comuns temáticos e formais oriundos da cultura massiva, dobrando-se sobre ela e, por vezes, tomando para si a tarefa de comentá-la. Como o triunfo dos meios eletrônicos coincide com a penetração capilar do mercado em cada esfera da produção cultural, a literatura contemporânea tenta se equilibrar não só entre o texto e a imagem, mas também entre o campo da arte tal como instituído pela modernidade, com sua pressuposta autonomia, e o do mercado de bens simbólicos, com suas exigências de ordem econômica. Se a autonomia da arte, como afirmou Andreas Huyssen, foi sempre mais um ideal a alcançar do que uma situação conquistada, havendo sempre o perigo de desestabilização das fronteiras entre alta e baixa cultura, a diferença do quadro atual para o do passado está no deslizamento da narrativa de ficção de gosto popular, do suporte impresso do jornal, na forma de folhetim, para as telas. Por isso, para o escritor argentino Ricardo Piglia, a novela do século XIX está hoje no cinema, e o roteirista seria uma espécie de versão moderna do escritor de folhetins, porque escreve por encomenda e por dinheiro e a toda velocidade uma história para um público bem preciso que está encarnado no produtor ou no diretor ou nos dois.14 A favor da afirmação de Piglia está o fato de muitos escritores serem, hoje, profissionais multimídia, escrevendo roteiros para cinema e televisão, paralelamente à sua atividade como autores de obras literárias publicadas em livros. Estas últimas, algumas vezes, resultam da encomenda de editores, integrando coleções. Ao aceitarem escrever por encomenda, esses escritores estão afirmando o caráter profissional de sua atividade no campo da literatura e, portanto, contrapondo-se à premissa de que a verdadeira arte seria uma atividade desinteressada, incompatível com a ideia de remuneração. Reagem positivamente ao fato de terem de criar seus textos

a partir de um molde que lhe foi proposto pelo editor, ou seja, concordam em partir da repetição de um esquema básico para engendrar o novo. O editor assume, então, de forma explícita, o seu papel como instância de mediação institucional entre o escritor e o mercado – mediação externa à obra, mas que vai afetar a maneira como o autor se relaciona com a sua escritura. Além disso, a sinergia entre mercado editorial e diferentes meios de comunicação de massa tem se acentuado, como demonstra a pesquisa sobre a produção editorial brasileira na década de 1990, realizada por Sandra Reimão (2001).15 De acordo com o levantamento feito pela autora, é relevante, na listagem dos livros mais vendidos nesse período, o aumento do número de obras cujos autores mantêm atividades regulares nos meios de comunicação de massa ou tiveram seus livros adaptados pela televisão. Nesse sentido, é digno de nota que os dois primeiros volumes publicados da coleção Devorando Shakespeare, lançada em 2005 pela Editora Objetiva, são de autoria de Jorge Furtado, mais conhecido pela sua atuação como diretor de cinema, e de Luís Fernando Veríssimo, consagrado em função das crônicas veiculadas no jornal. O projeto da coleção, que previa a publicação de uma série de romances escritos por autores de renome, tendo como inspiração comédias de Shakespeare, foi inaugurado com livros escritos por profissionais do cinema e do jornalismo. Dessa forma, o mais popular – jornal e cinema – serviu de mediação entre o público e a narrativa literária, que, por sua vez, deveria fazer a ponte entre o leitor e o clássico teatral. As motivações econômicas da aproximação da literatura com o campo das mídias audiovisuais são por demais conhecidas. Para o mercado de bens culturais, o reaproveitamento das matérias ficcionais e sua distribuição por múltiplas plataformas constituem uma estratégia para maximizar os lucros. A indústria do entretenimento, sem dúvida, vem estimulando a produção de narrativas transmidiáticas: nestas, a intriga deve estar estruturada de forma a estimular

14 PIGLIA, Ricardo. Crítica y ficción. Buenos Aires: Planeta Argentina; Seix Barral, 2000. p. 30. 15 REIMÃO, Sandra. Os best-sellers de ficção no Brasil, 1990-2000. In: JORGE, Carlos J.F.; ZURBACH, Christine (Org.). Estudos literários/Estudos culturais. Évora: Universidade de Évora, 2001.

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a visita do espectador às diferentes mídias, sendo que, cada meio, com sua especificidade, contribui para o desdobramento da história, isto é, não se trata de uma simples transposição de suporte.16 Projetos editoriais, como a coleção Amores expressos, cuja ideia foi lançada em 2007 pela RT Features acompanhada pela Editora Companhia das Letras, pressupõem, logo de início, a transposição dos romances para as telas, além da realização de um documentário sobre a estada dos escritores nas cidades para onde foram enviados para escrever os romances, e dos blogs, nos quais estes escritores registrariam, dia a dia, verbalmente e através de fotografias, as experiências vividas a partir da participação no projeto. Dezesseis autores brasileiros viajaram cada um para uma cidade diferente do mundo, de Nova York a Xangai, em busca de inspiração para uma história de amor. Os documentários com os autores foram veiculados pela TV Cultura, em 2011, em formato de vinte minutos, tendo sido realizados também book trailers para cada lançamento, além das entrevistas de que participaram os autores envolvidos. A expectativa do produtor Rodrigo Teixeira era de que os livros se prestassem a adaptações cinematográficas – em caso positivo, cada autor receberia dez mil reais pelos direitos audiovisuais de seu romance.17 Em 2013, segundo matéria publicada pela Folha de São Paulo, estava sendo preparada a adaptação para o cinema de Cordilheira, de Daniel Galera, e de O filho da mãe, de Bernardo Carvalho. Como se pode perceber, trata-se, no caso da literatura, de um esforço para adaptar-se aos novos tempos, em que os textos literários circulam no interior de uma ampla rede de bens simbólicos, desfazendo-se antigas hierarquias, ao mesmo tempo em que o mercado, seguindo a lógica comercial, cria segmentações de acordo com o tipo de público a

que o produto se destina. Nesse contexto, o papel da crítica talvez não seja o de culpabilizar os escritores, mas de pensar as consequências, para o campo literário, dos deslizamentos promovidos pelos novos circuitos, à luz do papel exercido pelo mercado como grande mediador da cultura. Caberia indagar se os parâmetros de valoração criados a partir da arte modernista ainda são adequados quando se trata de avaliar a literatura produzida nesse cenário, se devemos julgá-la a partir dos critérios oriundos da estética do choque, da ruptura, da originalidade. Cânones modernistas, formulados há um século, são adequados para pensar a arte contemporânea? Os paradigmas estéticos modernistas não seriam datados historicamente, sendo frutos de uma época marcada pelo surgimento das metrópoles e pelos avanços dos meios de produção cultural ocorridos a partir do final do século XIX – fotografia, cinema, técnicas de reprodução e gravação? Por outro lado, não seria o caso de considerar também as permanências, isto é, de pensar como a criação artística da atualidade absorveu aspectos da poética modernista?

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Assim, se as vanguardas morreram como utopia, muitos de seus princípios estéticos regem a produção ampliada do mercado, ainda que perdendo a iconoclastia, a negatividade. Como observou Lev Manovich, as técnicas, como a montagem disjuntiva ou a colagem de materiais de procedência diversa, inventadas pelas vanguardas dos anos 1920, com o propósito de promover uma inovação estética radical, se converteram em operações básicas e rotineiras na era do computador.18 É, então, importante lembrar que uma das bandeiras das vanguardas históricas era a confluência, a integração do que se havia considerado artes diferentes – o que, em certa medida, vem sendo viabilizado pelo avanço das tecnologias da comunicação.19

16 JENKINS, Henry. Cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2009. 17 A Companhia das Letras editou até agora dez livros: Cordilheira, de Daniel Galera; O filho da mãe, de Bernardo Carvalho; O único final feliz para uma história de amor é um acidente, de João Paulo Cuenca; Estive em Lisboa e lembrei de você, de Luiz Ruffato; Do fundo do poço se vê a lua, de Joca Reineirs Terron; Nunca vai embora, de Chico Mattoso; O livro de Praga – narrativas de amor e arte, de Sérgio Sant’Anna; Barreira, de Amilcar Bettega; Ithaca Road, de Paulo Scott; Digam a Satã que o recado foi entendido, de Daniel Pellizzari. 18 MANOVICH, Lev. Novas mídias como tecnologia e ideia: dez definições. In: LEÃO, Lúcia (Org.). O chip e o caleidoscópio: reflexões sobre as novas mídias. São Paulo: Senac, 2005. 19 Outras referências bibliográficas: Aquino, Marçal. Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios. São Paulo: Companhia das Letras, 2005; FIGUEIREDO, Vera Lúcia Follain de. Os crimes do texto: Rubem Fonseca e a ficção contemporânea. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003; MUTARELLI, Lourenço. O cheiro do ralo. São Paulo: Devir, 2002.

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Gerson Noronha Filho Doutor pela Johns Hopkins University. Psicanalista, escritor, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e servidor do Arquivo Nacional.

Cinema e literatura

É sempre assim: os gregos e troianos se degolam.

Gerson Noronha Filho

Just when we are safest, there is a sunset-touch, someone’s death.

Robert Browning

” ”

A plumagem colorida das aves brilha também quando ninguém a olha.

G.W.F. Hegel

A certeza de que não se chega nunca lá é a presença desta agitação perpétua.

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Gerson Noronha Filho

Morte em Veneza (Death in Venice, 1971), filme de Luchino Visconti baseado na novela de Thomas Mann. Correio da Manhã

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Introibo ad altare A necessidade de narrativas remonta aos primórdios da civilização, quando os homens se reuniam em torno de fogueiras para que alguém (um artista) lhes contasse um relato de viagem, uma história, uma aventura, um fato real ou imaginário (uma mentira), ou uma tradição, um costume, uma moral, uma lei do grupo ou dos inimigos. Já o cinema é uma necessidade recente (início de século XX), invenção (teatro elétrico) construída com imagens em movimento, num trabalho de equipe, onde um cineasta comanda o work, mas depende de um número de pessoas que intermediam e vigiam sua criatividade e liberdade. O escritor de narrativas trabalha só, o que lhe confere espaço para voos altos e pouco risco de represálias de seu entorno. Muito raramente uma narrativa (um romance, por exemplo) tem as quatro coisas básicas de uma estrutura de roteiro (Seger)1 que são: (1) um final, (2) um início (3) um Ponto de Virada I e (4) um Ponto de Virada II. Mas é evidente que, já há um tempo, as narrativas estão contaminadas pelos conteúdos e pelas formas cinematográficas (Cortázar, Padura, Pynchon)2 e a relação entre as duas artes é de tensão criativa e de mútuas ansiedades (Bloom)3 e influências (Field).4

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O clássico E o vento levou (Gone with the wind, 1939), de Victor Fleming, em cartaz no Cine Ópera, no Rio de Janeiro, em 1972. O roteiro, originado do best-seller de Margaret Mitchell, contou com a colaboração dos escritores F. Scott Fitzgerald e William Faulkner. Correio da Manhã

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Carregamos uma tradição já milenar de escrita, mas é consenso, hoje (século XXI), que vivemos mais numa civilização de imagens, a maioria coloridas e sonorizadas. As narrativas e os filmes são artefatos (Adorno)5 estratégicos da indústria cultural ocupando a mesma importância da TV, do rádio, da música (popular e erudita), dos jogos eletrônicos (mais voltados para crianças e adolescentes) e do teatro. Business mais interessados em oferecer escapismo, anestesia, diversão e beleza do que verdades e reflexões. Soft power concebido e condenado a vigiar, amedrontar, racionar e punir os excessos de produção de artefatos críticos. As narrativas são o produto de um esforço individual e de uma cadeia de agentes de leitura, revisão, tradução, propaganda, impressão, distribuição e venda. O filme é o produto de um esforço coletivo com uma divisão de trabalho complexa. O operation, o proceder, a práxis eficaz de ambas as artes (cinema e literatura) é alcançar o maior número de consumidores, certeza de remuneração justa para proprietários de direitos e investidores. As suas incoerências (Diegues)6 e as suas estranhezas dificultam sua cognoscibilidade (Bourdieu)7 para a alegria da academia e dos críticos. Perturbação (Estorung) hermenêutica representada por aquelas frases de Alan, “ninguém pensa o que quer” (Sartre),8 e

1 SEGER, Linda. A arte da adaptação: como transformar fatos e ficção em filme. São Paulo: Bossa Nova, 2007. 2 CORTÁZAR, Julio. O jogo da amarelinha. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970; PADURA, Leonardo. O homem que amava os cachorros. São Paulo: Boitempo, 2013; PYNCHON, Thomas. Mason & Dixon. New York: Henry Holt and Company, 1997. 3 BLOOM, Harold. The anxiety of influence: a theory of poetry. London: Oxford University Press, 1975; ______. The Western Canon. New York: Harcourt Brace & Company, 1994. 4 FIELD, Syd. Os exercícios do roteirista. Rio de Janeiro: Objetiva, 1984. 5 ADORNO, Theodor. Teoria estética. Lisboa: Edições 70, 2006. 6 DIEGUES, Cacá. A coerência não é uma virtude artística. Folha de São Paulo, 28 jul. 2014. Ilustrada, p. E1. 7 BOURDIEU, Pierre. As regras da arte. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 8 SARTRE, Jean Paul. La nausea. Paris: Gallimard, 1938; ______. Qu’est-ce que la littérature. Paris: Gallimard, 1948; ______. A imaginação. Porto Alegre: L&PM, 2009.

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Cinema e literatura

Helena Ignez e Paulo José em O padre e a moça (1965), de Joaquim Pedro de Andrade, inspirado em poema homônimo de Carlos Drummond de Andrade. Correio da Manhã

aquela de Flaubert, “ninguém escreve o que quer” (sejam livros ou roteiros). Frases que também se aplicam ao cinema: ninguém filma o que quer. O cinema, desde os seus primórdios, buscou sempre ora uma reprodução da realidade, ora a revelação da violência, do amor, da incomunicabilidade, do suspense, da magia, do sonho, da fantasia, do absurdo e do fantástico presente na vida cotidiana. A dialética, entre o real e a imaginação. Esta polaridade mítica e estrutural já está lá nos filmes de Lumière (documental) e Méliès (fantasia), e na relação dialética entre o cinema e a literatura. A explosão da construção de salas de espetáculo pelo mundo, a partir dos anos 1920-50, período de maior expansão do soft power norte-americano, desencadeia uma feroz busca de caminhos lucrativos e de público, já que esta expansão se dá em

um contexto econômico-cultural de domínio do show (Debord),9 do consumismo (Baudrillard)10 e da medianidade (Marx). Nesta adolescência, o cinema, como Narciso, apaixona-se por seus lucros, seu impacto na cultura e a iconização dos seus heróis (filmes, diretores, atores e atrizes). A competição planetária crescente em um mundo menos bipolar (USA x URSS) diluirá estes apaixonamentos sem alterar o desequilíbrio de forças entre o cinema central e o cinema periférico. Nestes anos iniciais (até a década de 1950), o cinema ainda não é considerado como uma arte, muito menos uma linguagem (Betton).11 Só com os ensaios de Cocteau, Bazin, Deleuze ele alcança esta posição. Uma arte e uma linguagem que diz sem discorrer, mostra sem demonstrar e conta histórias sem mergulhar nelas. Uma arte aberta e devedora às influências das outras artes.

9 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Lisboa: Afrodite, 1972. 10 BAUDRILLARD, Jean. La société de consommation. Paris: Denoël, 1970. 11 BETTON, Gerard. Estética do cinema. São Paulo: Martins Fontes, 1987.

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Nestes cento e poucos anos de vida, diretores, roteiristas e produtores se esforçaram em apresentar ao público uma gama variada de caminhos para a produção de filmes com efe maiúsculo e, sempre que possível, recorreram à literatura para ajudar na concepção de suas criações. Sem que se possa afirmar que todos os caminhos possíveis estejam aqui nomeados, os principais focos dos filmes são: expressionismo-político (Eisenstein), lírico (Fellini), imagem-fato (Rossellini), história (Griffith), documentário (Flaherty, Coutinho), musical (Minelli), imagem-ação (Ford), humor (Chaplin), revolução (Glauber), vanguarda (Godard, Antonioni), teatro (Bergman), terror (Lang), efeitos especiais (Spielberg, Lucas), suspense (Hitchcock), montagem/ decupagem (Welles, Bergman, Resnais, Tarantino). Filmes incapazes, entretanto, de ‘arranhar’ o poder, a força e a penetração daquele àquele Outro, hegemônico e majoritário, focado no show, na diversão, no entretenimento, no tamponamento do ‘mal-estar’ (Freud) e na anestesia do aprisionamento (Benjamin).12 O cinema tem “costelas” com o teatro, a fotografia, a música, a iluminação, a maquiagem, os figurinos, a mise en scène, a ópera, a cenografia, a mágica, os efeitos especiais, a dança, o som. Mas a sua costela mais especial é com a literatura, através dos roteiros adaptados, sejam a partir de narrativas ou de peças de teatro, ópera ou musicais. O cineasta pode se contentar em inspirar-se na história literária e segui-la passo a passo; sendo assim, o filme é apenas representação, ilustração de uma narrativa, transcrição de linguagem para linguagem. Mas a fidelidade à obra original é rara, senão impossível. Em primeiro lugar, porque não se representa visualmente significados verbais, da mesma forma que é praticamente impossível exprimir com palavras o que está expresso em linhas, formas e cores. Em segundo lugar, porque a imagem conceitual que a leitura faz nascer no espírito é fundamentalmente diferente da imagem fílmica, baseada em um dado real que nos é oferecido imediatamente para ver-se e não para imaginar gradualmente. O tempo do romance é construído com palavras. No cinema, ele é construído com

fatos. Os romances suscitam um mundo, enquanto os filmes nos colocam diante de um mundo que eles (os diretores/montadores) organizam de acordo com certa continuidade. O romance é uma narrativa que se organiza em mundo, enquanto o filme é um mundo que se organiza em narrativa. A fidelidade de uma adaptação geralmente não coloca maiores problemas quando se trata de descrever “do exterior”, como testemunhas objetivas que não emitem qualquer ponto de vista subjetivo a respeito das personagens e dos eventos.

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A narração cinematográfica se coloca sob a forma de um espetáculo, de uma representação, mas quando ela é uma introdução a tudo que é abstrato, “interior”, “conteúdo latente” ou subjetivo, ela coloca, imediatamente, graves problemas: o filme não pode sugerir ou revelar temperamentos e provocar imagens mentais senão por uma relação de imagens e pela palavra. É possível (então) perceber toda a dificuldade, talvez impossibilidade, de transpor para a tela uma literária eminentemente psicológica. Podemos explicar assim os fracassos das tentativas de transposição cinematográficas de inúmeras obrasprimas. Além disso, há o problema da temporalidade. É importante reunir o máximo de coisas num mínimo de tempo, exprimir tudo pela ação com tempo limitado, donde a necessidade de estilizar, de suprimir uma grande parte dos elementos do romance. Na maioria dos casos, a transposição para o cinema de uma narrativa é uma recriação. Uma criação, eminentemente, pessoal (Betton). Há muitos e muitos filmes cujos roteiros se inspiraram em narrativas, filmes que se esforçaram em segui-las capítulo a capítulo, numa tentativa (invariavelmente infrutífera) de mimetizar um texto em imagens. O esforço visa transformar o filme numa representação, transcrição de uma linguagem para outra linguagem. Neste sentido, a transcrição seria uma reprodução da equação platônica entre o mundo real e o mundo das ideias (Benjamin). Mas essa busca de servidão é um sonho, uma miragem porque não se representa visualmente significados verbais e, também, porque as imagens que a leitura

12 BENJAMIN, Walter. The origin of German tragic drama. London: Verso, 1998.

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Cinema e literatura

faz nascer na mente dos leitores são diferentes das imagens fílmicas, baseadas em fotografias (o real) que aparecem na tela para serem vistas (por um olho sem corpo), e não para serem imaginadas. Muitos filmes são adaptações − 85% deles, por exemplo, premiados pelo Oscar na categoria de melhor filme, são adaptações (Seger). Mas muito raramente estas ‘conversões’, estas recriações, passagens do mundo das palavras e das frases para o mundo das imagens alcançam a categoria de obras-primas, agradando tanto aos críticos como ao público. O fato é que muitos fracassos fílmicos são adaptações. Pode-se afirmar sem erro que não existe adaptação fácil nem adaptação impossível. Uma das razões destes ‘fracassos’ é que o entendimento na literatura vem da leitura que alimenta a imaginação. E no cinema a imaginação (menos livre) é controlada pela montagem. Há também um hiato entre a letra, as ideias (pensamentos) e as imagens (mecanismo). Na letra há uma maior presença do inconsciente (Zizek).13 Já no cinema, o que não pode ser dito pode ser mostrado. A literatura não é história ou sociologia, é ideia, é imaginação, um mergulho (solitário) no avesso das coisas e dos sentimentos dos homens. No cinema o entendimento por imagens é diferente do entendimento da leitura porque há uma diferença entre a apreensão de uma existência como coisa inerte (uma narrativa à espera de um sentido dado pelo leitor) e a apreensão de uma existência como imagem em movimento. Uma passagem, no entanto, é possível entre a imaginação e o entendimento pela via das imagens, mas esta passagem é sempre problemática e confusa (Sartre). Não há nem livros bons nem livros ruins para serem adaptados, mas apenas maneiras ruins de adaptá-los (Seger). Nunca há uma só possibilidade de adaptação, há sempre várias possibilidades e nenhuma alcança a perfeição. E se muitos escritores buscam o cinema como uma segunda chance para que suas narrativas alcancem um número maior de leitores, este propósito prático e lucrativo nem sempre vinga ou perpetua-se no tempo. Em 1974, por exemplo,

Francis Ford Coppola adaptou um dos textos canônicos da literatura americana, O grande Gatsby, para as telas e fracassou, o que não aconteceu com Apocalipse now (Seger). De qualquer forma, é sempre, comercialmente, mais viável trabalhar com um material que já tem certo público (Bíblia, Agatha Christie, Simenon, Jane Austen, Conan Doyle, por exemplo). A adaptação de narrativas para o cinema tem também seus custos. Custos altos porque uma adaptação implica vários pagamentos. Em primeiro lugar, é preciso comprar os direitos do autor da narrativa e depois pagar o autor do roteiro (ou autores). Além disso, o material original é avaliado duas vezes: primeiro, avalia-se o potencial de adaptabilidade da narrativa (em geral por um leitor de estúdio) e, depois, se o roteiro produzido fez uma adaptação ‘verdadeira’. Escrever um ‘roteiro adaptado’ não é uma ‘sopa’, é uma guerra. As dificuldades são infinitas. Para visualização dessas dificuldades, vejamos esta simples comparação. ‘Para ser um best-seller, um livro precisa ser lido nos EUA por um milhão de leitores. Para ser um sucesso, uma peça da Broadway precisa de um público de oito milhões. Contudo, se apenas cinco milhões de pessoas forem assistir a um filme, ele é considerado um fracasso retumbante (Seger). Muitas vezes, o esforço de atrair a curiosidade de um número grande de pessoas condiciona o roteirista a aparar ou eliminar pontos polêmicos, uma estratégia que pode afetar a qualidade estética. Encontrar um equilíbrio entre agradar a todos e desagradar a muitos é o nó górdio do work de um roteirista. Existe (anotem aí) um tipo de adaptação impossível (ou proibida): aquela na qual o roteirista não tem licença criativa, nem liberdade para cortar e adicionar, pois mudanças são absolutamente essenciais (Seger). A adaptação é uma estrada em campo minado. Vejamos: um romance de James Cain, O carteiro sempre toca duas vezes, por exemplo, já deu lugar a quatro obras cinematográficas: uma de Chenel (1939), uma de Visconti (1942), uma de Garnett (1946) e outra de Rafelson (1981) (Deleuze).14 Nenhuma das quatro

13 ZIZEK, Slavoj. Como ler Lacan. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. 14 DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 1990.

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conseguiu chegar lá. E, por isso, quando não ‘se tem nenhum roteiro novo’, tira-se do bolso a sugestão de ‘refilmar’ um roteiro/filme de sucesso no passado. Uma estratégia de maquiagem, de reembalagem de um mesmo produto. Gênesis e gozo Um produtor ou um diretor de cinema apresenta a um roteirista uma narrativa (biografia, romance, conto, memórias, peça de teatro, musical, poema), já selecionada e aprovada para ‘adaptação’ por um leitor-analista de estúdio. Esta é a tradição do business. O pedido de análise ao roteirista pode incluir a escrita de um parecer e, até, de um argumento (máximo de quatro páginas) de um roteiro. Aceita a encomenda, o roteirista assinará um contrato onde se estabelecem os direitos e os deveres das partes e a remuneração devida, seja em percentagem da venda de bilhetes, uma soma fixa ou participação

David Lean dirigiu a versão para as telas de Doutor Jivago (Doctor Zhivago, 1965), de Boris Pasternak. Serviço de Censura de Diversões Públicas - RJ

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nos lucros. O roteirista entra, então, de “cabeça” e “coração” no trabalho. A primeira providência é o controle daquela ansiedade da influência da obra original e dos roteiros anteriores (Seger, Field): “Weaker talents idealize, figure of capable imagination appropriate for themselves. But nothing is got for nothing and self-appropriation involves the immense anxieties of indebtedness” (Bloom). Uma segunda providência é o roteirista colocar-se na situação de litígio com a narrativa a fim de colher um máximo de ideias e fantasias para o trabalho de conversão da narrativa em imagens. Uma postura de procura, de enfrentamento simbólico com os minotauros do texto original. Todos estes combates (com vitóriasderrotas) levarão o roteirista ao gozo do sucesso. É todo um trabalho sísifico porque as narrativas têm em si muitas histórias, e muitas histórias não cabem num só filme. Mais: raramente, a estrutura, o enredo, a velocidade, o final e o tempo de um filme batem com a de um livro.

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de filmes já permite uma montagem doméstica, mas esta é rara de ocorrer na prática. Resumindo: um filme é uma linguagem visual apoiada por diálogos, ação, música, sonoplastia, efeitos especiais, cenários e locações externas. Uma narrativa é feita de palavras e frases. Antes do contrato com o roteirista, há um contrato contingente de cessão de direitos do autor da narrativa para o produtor. E durante o work in progress, é comum que uma série de encontros se faça entre o roteirista e o produtor/diretor para a negociação das opções do work.

O Decameron (1971) de Pier Paolo Pasolini é uma adaptação de nove histórias da obra de Giovanni Boccaccio. Serviço de Censura de Diversões Públicas - RJ

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As personagens de um romance, por exemplo, tem profundidade maior, menos segredos, maior transparência. Nas narrativas há uma maior demanda colaborativa da imaginação e da atenção do leitor, que retira da escrita um ou até múltiplos sentidos, enquanto um filme está preso ao tempo fixo da sessão, aos poucos temas desenvolvidos e a uma resolução que o público pede seja sem ambiguidades. A leitura de uma narrativa pode ser interrompida, avançada ou lida de muitas maneiras, como já mostrou Cortázar em O jogo da amarelinha, já os filmes vistos em salas de cinema estão amarrados a um tempo e uma montagem. A gravação em CD-Rom

Muitas vezes, o roteiro inclui para cada personagem uma biografia completa e detalhada das suas ações e caráter para auxiliar o diretor na seleção dos atores e atrizes e facilitar o trabalho de mise en scène e montagem. Em todo este processo de ‘troca de saberes’ entre o produtor/ diretor e o roteirista, é fundamental que as partes corram riscos dentro do razoável para que o roteiro tenha aquela estranheza que caracteriza as obras de qualidade (Bloom). Roteiros como os de: Cidadão Kane, A regra do jogo, Ivan, o terrível, O encouraçado Potemkin, E o vento levou, Morangos silvestres, Ligações perigosas, Chinatown, Vidas secas, Deus e o diabo na terra do Sol, Casablanca, Tubarão, Luzes da ribalta etc. Os roteiros têm em média 120 páginas (minutos) divididas em: Ato 1 – Início, pg. 1-30, também chamado de Apresentação, contendo um Ponto de Virada 1 (pg. 25-27); Ato 2 – Meio ou Confrontação, pg. 30-90, com um Ponto de Virada II nas pg. 85-90; e Ato 3, chamado de Fim ou Resolução, pg. 90-120. Este esquema clássico é apenas uma indicação, no entanto, útil. O objetivo é chegar a um filme próximo e respeitoso da obra adaptada, que emocione e atraia a curiosidade do público. Infelizmente, poucos filmes/roteiros alcançam a profundidade e a dimensão do intentio operis e o intentio autoris das narrativas. Escrever um roteiro é um trabalho artístico e artesanal, cujo sucesso depende da experiência, da competência, da tenacidade e, sobretudo, da sorte e do talento

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do roteirista. Ofício que exige inventiva para se chegar a uma qualidade mínima. Durante todo o processo, o roteirista terá que responder a muitas perguntas. O roteiro tem personagens fortes e atrativos? Para cada ação há uma reação em sentido contrário? As ações, os flashbacks estão claros? Os diálogos soam reais, verossímeis? Os pontos de vista das personagens e do narrador (caso haja um) estão visíveis? Os diálogos e as cenas movem a história para a frente? A apresentação, o confronto e a resolução estão bem definidos? Está claro no filme que as personagens não são o que dizem, mas o que fazem (suas ações)? O roteiro há de especificar, também, os subtextos, o que acontece sob a superfície das cenas − o que não é dito (Field). O roteiro pode seguir a regra dos três passos ou pode alterar esta sequência, como fez Resnais em O ano passado em Mariembad. A prova dos nove é se o filme toca (ring the bell) o coração do público e dos críticos. No geral, aqui e ali, nos países ricos e nos pobres, nos países livres e nos autoritários, nos países soberanos e nos subalternos, o que se vê e o que se faz mais é o ajoelhar às regras e às tradições. O cinema é muita coisa, mas é, sobretudo, uma indústria de altos riscos (poucos blockbusters, poucas obras-primas, uma imensa medianidade e uma parcela ponderável de lixo). Da produção mundial anual na casa dos milhares de filmes, só uma dezena deles trará algo que parece feito para mim, para os críticos e a posteridade. Filmes que caminham por seus próprios pés e nos quais a narrativa original parece estar na situação de “sapato” para o roteiro. Nenhum filme tem as mesmas ideias, os mesmos efeitos ou dá o mesmo prazer de uma narrativa, mas são essas estranhezas que trazem para a tela aquela graça, aquela jouissance, promessa de bonneur que é uma das definições da beleza (Hegel).15 Filmes que não cessam de nos dizer coisas e que voltamos a rever sempre que possível. Filmes banquetes em que o cardápio é nada menos que um roteiro de qualidade.

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As influências, as ‘contaminações’ e as dívidas entre as artes e os artistas provam que o savoir y faire se constrói em torno da imaginação (Sartre), do vazio (Lacan),16 dos sintomas, medo da morte e do confronto com as criações do passado e do presente (Bloom). As obras de arte são um modo de enfrentar e tratar o excesso, de tamponar tanto a náusea (Sartre) como a angústia (Freud). Toda criação traz uma imensa ansiedade aos criadores que não temem serem qualificados como falsificadores, aperfeiçoadores, ‘falso moedores’ (Gide).17 Em menor ou maior grau, todo o filho(a), todo o novo (o hoje) têm partes, pedaços do progenitor (dos progenitores), têm pedaços vindos do antes, do velho (do passado), porque o puro, o único, o singular, o nada vindo do nada não existe no mundo real. Tudo que é, é movimento, é mudança, é tese, antítese e síntese, superação, descontinuidade. Todas essas dívidas intra-artes e intra-artistas não fazem os criadores menos originais, ao contrário, os fazem mais originais (Bloom), é o que dizia Picasso: “Eu não procuro, eu acho.” As artes e os artistas vivem num estado de contaminação permanente, o que faz com que cada criação seja semelhante a um romance familiar (Freud), isto é, uma arena de amores e ódios, invejas e reconhecimento, afirmação e negação, de guerra entre iguais, de luta entre ‘filhos’ e ‘pais’, um rosário de Laius e Oedipus ad infinitum. Literatura e cinema Literatura não é real, não é vida (Bakhtin).18 Literatura é palavra, frase, ficção e signo (Sartre). Uma forma de acesso ao Mundo (Weltzuwendung) e de trabalho no Mundo. Um work de seleção do real. Uma seleção que é um ato de fingir. Um fingir que permite ao leitor apreender a intencionalidade de um texto. A literatura pede tempo, solidão, leitura, interpretação (Iser).19 Todo texto é ficcional, inspirase, representa e mimetiza o real, mas não é o real.

15 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Curso de Estética: o belo na arte. São Paulo: Martins Fontes, 1996. 16 LACAN, Jacques. O seminário, livro 7, a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. 17 GIDE, André. Les faux monnayeurs. Paris: Gallimard, 1925; ______. Journal des faux monnayeurs. Paris: Gallimard, 1927. 18 BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2010. 19 ISER, Wolfgang. O fictício e o imaginário. Rio de Janeiro: Eduerj, 1996; ______. O ato da leitura. São Paulo: Ed. 34, 1994.

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Nele há sempre um excedente que cumpre desvelar e que só é possível acontecer se houver empatia (Einfuhlung) entre o texto e o leitor. A atividade estética de uma leitura só ganha forma quando damos acabamento ao material da nossa compenetração. Cinema é outra coisa, é língua. A esperada língua universal da humanidade, não é uma linguagem, é um sistema imagem-movimento (Deleuze). As imagens, espécie de sintomas, revelam o que se passa por trás do movimento, e, ao fazerem isso, colonizam os expectadores. Ver um filme é uma experiência e uma vivência estética diferente de ler um livro. Nos livros, os efeitos só aparecem com a leitura (Iser). Os textos são uma espécie de piquenique em que o autor leva as palavras e o leitor o sentido, os sentidos (Eco).20 Num livro as palavras alimentam a imaginação apresentando uma história com personagens, narrador, ideias e ambiente. As narrativas prendem – em geral − a atenção do leitor a partir de duas perguntas principais: a da causalidade (quem foi?) e da temporalidade (o que vai acontecer agora?). É a clássica divisão entre histórias de detetive (quem matou Laio?) e as histórias de aventura (quem chegou lá?). Quem encontrou sua Penélope? Sua Íthaca? E o suspense só acontece se as respostas a estas perguntas demoram a ser reveladas. No cinema, um olhar acompanha as imagens num espaço de tempo finito (Xavier)21 e, diferente dos livros, o cinema é dependente de muitas outras artes e linguagens. E as interpretações dos sentidos são mais controladas (um dos efeitos do roteiro). São essas diferenças estruturais entre as duas artes que causam os erros da criação de um roteiro adaptado de um livro (Field). Nenhuma imitação é perfeita (Aristóteles).22 As imitações são aproximações e, tal como o paradoxo de Zeno, chegar lá é um ideal, uma miragem, daí que um mesmo livro na mão de diferentes roteiristas-diretores produz filmes diferentes. Neste sentido, as adaptações são, simultaneamente, “caveiras de burro” e uma das forças vitais do cinema (Seger). O tamanho dessas

dificuldades recriativas são descritas com humor por Syd Field. Segundo este, dos dois mil roteiros lidos em dois anos por ele para um estúdio, ele só recomendou quarenta para adaptação, e desses apenas uma fração se transformou em filme. É natural então haver toda esta ansiedade. A mesma ansiedade acontece com os escritores quando se propõem a escrever um livro. À partida eles precisam saber se têm algo a dizer. E se esse dizer irá interessar aos leitores. Uma arte, enfim, em que muitos são chamados, mas poucos são os escolhidos. A cada ano, milhões de livros são publicados. Uma parcela menor é lida e apreciada. Uma parcela maior é esquecida. E uma parcela mínima permanecerá como uma referência para as próximas gerações. Um último aspecto: a literatura não vive tanto sob o teto da maldição do dinheiro e do marketing, porque é uma arte de baixíssimos custos de confecção, preservação e guarda. Qualquer indivíduo com umas ideias, um lápis e papel escreve um livro, e, com um pouco mais de sorte encontrará um editor e uns leitores. Os nós górdios da literatura são outros. Primeiro, é necessário alcançar uma qualidade mínima para a atração de um número significativo de leitores que, expostos a um excessivo número de ofertas (uma das características das sociedades de consumo), tem dificuldades de separar o joio do trigo, o lixo do luxo, o descartável do canônico. O segundo desafio é atrair um número de formadores de opinião (críticos da academia e da mídia) capazes de ampliar o número de leitores. O terceiro desafio é a narrativa ter sintonia com o mundo imaginativo e retórico dos leitores (Lodge).23 Três desafios difíceis de serem alcançados. O escritor com sua narrativa convida o leitor a dividir uma determinada visão de mundo e com essa ‘manobra’ prende a sua atenção e o seu tempo. Assim sendo, toda narrativa tem um intentio operis que só é revelado pela leitura como explicam tanto a teoria do efeito quanto a teoria da recepção (Iser). As estruturas das narrativas são construídas: ou (1)

20 ECO, Humberto. Interpretación y sobreinterpretación. Cambridge: Cambridge University Press, 1995. 21 XAVIER, Ismail. O olhar e a cena. São Paulo: Cosac Naify, 2002. 22 ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Nova Cultural, 1999. 23 LODGE, David. A arte da ficção. Porto Alegre: L&PM, 2009.

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colaboradores. Na sua infância, os filmes foram vistos como um lugar de ilusão, engano e alienação, uma arena para a ingenuidade e a sublimação, um “novo circo”, um teatro elétrico.

‘minuciosamente’ como mostram os registros do work in progress de uns poucos (Flaubert, Gide, Henry James, Joyce, Proust); ou (2) de forma intuitiva como faz a maioria. Na literatura escolhas são feitas pelos autores. Estes escolhem o título, os temas, o número e os tipos das personagens, o enredo, a psicologia, a linguagem, o estilo, o tamanho da obra, a ordem, a velocidade e os tempos da narrativa e o (provável) público-alvo. E são essas escolhas – intentio auctoris − que determinam o número e os tipos de leitores. A partir do século XVIII, a literatura caminhou tanto para uma hegemonia da simplificação e da massificação quanto para uma aposta na complicação (Foster).24 Já os filmes, a partir do fim da Segunda Grande Guerra, parecem (desejar) apostar na direção da simplificação, do divertimento e do ilusionismo. Um embate desigual. Filme Os filmes mostram uma série de imagens em movimento, imagens lembranças e imagens sonho (Deleuze), a partir de um trabalho de direção, mise en scène, câmara, diálogos, sonorização, iluminação, arte, efeitos especiais, maquiagem, organização de cenários e montagem. Trabalho de criação coletiva que apresenta uma visão de mundo, visão que, no geral, se atribui primeiro ao diretor, em seguida ao roteirista, depois ao produtor, aos atores (vou ver um filme de Carlitos) e, por último, aos outros

A abertura para a produção de filmes de arte e vanguarda, de documentários, de filmes de revelação de verdades e mentiras das sociedades, dos indivíduos e da história e de filmes ideológicos ou revolucionários esteve sempre presente ao lado do cinema de massa, mas numa condição de marginalidade e minoria (Betton). É natural que esta diversidade fílmica tanto em qualidade quanto em quantidade se distribua de forma diferente nos diversos países. Saber qual é a mistura ideal é uma questão em aberto e de difícil resposta. De qualquer forma, é unânime o entendimento em todos os centros de poder de que o cinema é um dos mais poderosos soft power. Mesmo não cumprindo todas as suas ambições constitutivas e todos os seus sonhos de criação, o cinema ainda significará muito para muita gente pelo mundo.

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Audrey Hepburn estrela a superprodução épica Guerra e paz (War and peace, 1956, direção King Vidor), transposição para o cinema da obra-prima de Leon Tolstói. Correio da Manhã

Fecho Apesar dos riscos de queda, de culpa e de reprovação, as adaptações das narrativas para o cinema vieram para ficar e proliferar. E a explicação dessa teimosia é que as adaptações são o elixir do business. Os resultados infelizes do passado – meus senhores e minhas senhoras − são o melhor tônico para acender a criatividade dos roteiristas. Parafraseando Montesquieu, os roteiristas por cautela, custos e cálculo aprenderam a seguir as regras (Field, Seger, Aristóteles), mas é quando as desobedecem, assumindo a liberdade de errar e acertar, que surgem os roteiros chamados de exceção. E assim como na cena ‘reveladora’, ‘não programada’ do À la recherche du temps perdu, em que o narrador, Marcel, ao passar de madrugada pela vitrine de uma livraria, após a morte do escritor Bergotte, vê seus livros ‘iluminados’ e conclui que o artista está mais vivo do que nunca. Assim, também, os filmes ‘iluminados’ pelo amor e a fidelidade do público, são a melhor prova de que conquistaram um lugar na história do cinema.25

24 FOSTER, Edward Morgan. Aspect of the novel. London: Edward Arnold, 1949. 25 Outras referências bibliográficas: BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 2004; BECKETT, Samuel. Fim de partida. São Paulo: Cosac Naify, 2002; PARIS, Jean. Joyce par lui-même. Paris: Editions du Seuil, 1963.

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Capitu (1968), de Paulo CĂŠsar Saraceni, inspirado no Dom Casmurro de Machado de Assis. Correio da ManhĂŁ

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Doutora em Literatura, Cultura e Contemporaneidade e mestre em Comunicação Social pela Pontifícia UniverAline da Silva Novaes sidade Católica do Rio de Janeiro. Bolsista de pós-doutorado do CNPq e professora licenciada das universidades Cândido Mendes e Estácio de Sá.

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Avenida Central e o lampadário da Lapa, no Rio de Janeiro do final da década de 1910. João do Rio, em seus textos, mostrava o cotidiano de uma cidade que se modernizava: um cinema das letras. Fotografias avulsas

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O jornalista e escritor João do Rio, pseudônimo de João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto. Correio da Manhã

João e o Rio O início do século XX foi uma época marcada por grandes mudanças urbanas. As cidades passavam a contar com um novo modelo que considerava também avanços técnico-científicos e, por consequência, novos hábitos e formas de sociabilidade foram criados e até mesmo impostos. A população é apresentada a novidades como o bonde elétrico, os cafés, o automóvel, o saneamento e, além de outras coisas, o cinema. No Brasil, essas transformações foram mais evidentes na cidade do Rio de Janeiro: a metrópole-modelo. O Rio de Janeiro é apenas uma de tantas cidades do mundo que passaram pelo processo de modernização. Diferentes espaços urbanos foram levados a transformações, reordenamentos, embelezamento, tornando-os, em alguns casos, vulneráveis a atrocidades, justificadas pela racionalidade técnica e o desejo de um futuro a alcançar. Sendo assim, a fundação da cidade se dá em busca da concretização de um sonho. O nível simbólico constrói um padrão e, na tentativa de alcançá-lo, a urbe se rende e condiciona sua formação a esse modelo. A cidade, então, se apresenta como uma busca pela representação desse sonho, abrindo caminho para construções e destruições, sejam físicas ou, no que se refere aos citadinos, no campo psíquico. É na direção dessa aspiração, atrelada ao interesse econômico, que o Rio de Janeiro se urbaniza. Escritores que viveram essa época buscavam, em seus textos, dar conta das mudanças urbanas e novas formas de viver. Nesse sentido, destaca-se

Paulo Barreto, um escritor que incorporou a cidade na sua denominação mais usada, João do Rio. João Paulo Alberto Coelho Barreto, nome de batismo do escritor, nasceu no Rio de Janeiro, em 5 de agosto de 1881, e estreou na imprensa antes de completar 18 anos. Durante a carreira profissional, colaborou em diversos jornais e revistas da época, como A Tribuna, Gazeta de Notícias, A Ilustração Brasileira, entre outros. Em seus textos, abordava diversos assuntos. A peculiaridade do escritor, no entanto, deu-se em virtude dos relatos que fazia do Rio de Janeiro. O pseudônimo João do Rio revela sua forte ligação com o espaço urbano, que foi narrado em toda sua multiplicidade. Cinematographo: uma coluna, um livro, um filme... Após o século XIX, século áureo no que se refere às narrativas literárias, aparece um novo olhar sobre a arte em questão. Nos jornais, a literatura dividia espaço com as notícias e, neste contexto, o jornalismo se alimentava da ficção enquanto a notícia influenciava a literatura, haja vista a repercussão dos folhetins. Além disso, era sob o signo da literatura que o cinema dava os primeiros passos.2 Por outro sentido, a literatura também era estimulada a experimentar a linguagem cinematográfica, como ressalta Figueiredo: [...] no início do século XX, quando o cinema começou a se legitimar culturalmente, despertou grande interesse nos escritores e nos artistas em geral, sendo visto como o meio mais adequado para expressar a

1 O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – Brasil. 2 BROCA, Brito. A vida literária no Brasil 1900. 4. ed. Rio de Janeiro: José Olympio; Academia Brasileira de Letras, 2004.

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meira publicação na edição ano XXXIII/número 223, em 11 de agosto de 1907, e permaneceu até 19 de dezembro de 1910, quando foi substituída por outra coluna intitulada Os dias passam.... Publicadas, em sua maioria, nas edições dominicais da Gazeta de Notícias, as crônicas que compunham a coluna Cinematographo eram divididas em pequenos blocos pelos dias da semana.

Cinema Paris na Praça Tiradentes, nº 42. Junho de 1924. Correio da Manhã. Nas crônicas de João do Rio, a conjuntura de uma época marcada pela narrativa que dilui as fronteiras entre jornalismo, literatura e cinema

vida urbana moderna, pois estaria em perfeita consonância com seu ritmo acelerado, com o avanço das técnicas de reprodução e com o modo de produção industrial. Naquele momento, de intensa interpenetração entre as artes, os recursos da linguagem cinematográfica servem de estímulo ao propósito de renovação do texto literário que tenta escapar da tirania da sequência linear, buscando o efeito de simultaneidade próprio da imagem.3

Assinada por Joe, um dos pseudônimos de Paulo Barreto, a coluna ganhou como título o cinema. Não à toa, já que era o frisson da época. As crônicas, ligadas aos acontecimentos do dia a dia, apresentam-se como uma espécie de crônica-reportagem que passa em revista os principais fatos da semana. Diversas eram as questões abordadas em Cinematographo. Em cada crônica, um tema distinto. Em cada coluna, várias crônicas e, por consequência, diferentes temas. Joe fazia da coluna uma revisão da semana ou uma revista da semana. Com base na leitura do resgate das fontes primárias, são temáticas frequentadoras de Cinematographo: a modernização da cidade, a política e os costumes. Somam-se a essas, as críticas teatrais, literárias e sociais; todavia, outros assuntos eram abordados. Em grande parte, uma miscelânea de temas era tratada em uma única edição. Na coluna do dia 1º de março de 1908, por exemplo, o cronista apresentou uma crítica da peça Cordão, de Arthur Azevedo, além de escrever sobre carnaval, jornalismo (fazendo menção à revista Fon-Fon) e assuntos femininos (por meio do perfil da personagem espanhola Carmen Ruiz).

A proliferação de narrativas literárias, jornalísticas e cinematográficas, sobretudo, a interseção das referidas linguagens possibilitou a origem do “cinematographo de letras”, a expressão é de João do Rio. O escritor é o mais puro exemplo do estreitamento entre a nova técnica e a literatura.

Em A capital irradiante: técnica, ritmo e ritos do Rio, Nicolau Sevcenko aponta as mudanças ocorridas com o aparecimento do cinema. A nova técnica desencadeou um choque em toda sociedade por oferecer uma experiência da cidade “não apenas como cultura visual, mas acima de tudo como um espaço psíquico”.4

A coluna Cinematographo surgiu assim que a Gazeta de Notícias adotou a impressão colorida. Teve sua pri-

No Brasil, a primeira exibição se deu em 1896, após um ano do surgimento do cinema na Eu-

3 FIGUEIREDO, Vera Lúcia Follain de. Roteiro, literatura e mercado editorial: o escritor multimídia. Cibercultura, n. 17, p. 4, mai. 2007. 4 DONALD apud SEVCENKO, Nicolau. A capital irradiante: técnica, ritmo e ritos do Rio. In: ______ (Org.). História da vida privada no Brasil − República: da Belle Époque à era do rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 522.

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ropa. Documentos da época e testemunhos dos primeiros espectadores revelam euforia e estabelecem uma relação imediata entre as novas técnicas, o cinema e as grandes cidades. A série de novidades no espaço urbano deste período provocou mudanças de percepção e na própria maneira de viver do homem comum, “nenhuma impressão marcou mais fortemente as gerações que viveram entre o final do século XIX e o início XX do que a mudança vertiginosa dos cenários e dos comportamentos, sobretudo, no âmbito das grandes cidades”.5 É fato que o desenvolvimento tecnológico causou uma mudança profunda na sociedade. Os novos recursos técnicos “desorientam, intimidam, perturbam, confundem, distorcem, alucinam”,6 a nova experiência da vida urbana moderna afeta a própria subjetividade do homem. As transformações da modernidade geraram uma proliferação de estímulos e sensações. Em meio ao clima perceptivo de superestimulação, Charney aponta para a captação do instante como uma tentativa de experienciar essa modernidade fugaz e discute a experiência do instante como uma “sensação imediata e tangível”.7 Segundo o autor, a captação do instante possibilita a “experiência sensorial em face do caráter efêmero da modernidade”.8 É o conceito de instante que oferece uma maneira de fixar um momento de sensação, de experimentar um presente sensório dentro da alienação e do vazio da modernidade que o autor associa à experiência no cinema. [...] o esvaziamento da presença estável pelo movimento e a resultante separação entre a sensação, que sente o instante no instante, e a cognição, que reconhece o instante somente depois de ele ter ocorrido. Juntos, esses dois aspectos do instante moderno criaram uma nova forma de experiência no cinema.9

É interessante notar que João do Rio busca a captação desse instante, sobre o qual discorre Charney. A bem da verdade, a irreverência do escritor neste momento se encontra especificamente na mediação do olhar sobre a cidade a partir da tentativa de fixação do instante. É justamente aqui que João do Rio se afasta dos objetivos do flâneur-repórter, observado em A alma encantadora das ruas (1908), pois as novas técnicas, sobretudo o cinema, mudam a percepção da cidade. O escritor não se detém em um determinado assunto. Diante de uma profusão de acontecimentos – traço da modernidade –, é necessário que o cronista pince o proeminente e siga em busca de outro fato a ser relatado. A proposta é diferente, o momento é diferente. É a Era do Automóvel, da velocidade. Sobre esse novo olhar do escritor, escreve Gomes:

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Não se demora em cada tema para aprofundá-lo: há outro assunto que merece uma crônica. A cidade é aquela que passa, tudo flui no tempo acelerado da velocidade e da pressa, “a pressa de acabar” (título da crônica que encerra esse volume de 1909): ser breve na captação dos instantâneos do cotidiano, porque há outros mais adiante.10

Pode-se dizer que, nesta fase, observa-se a produção de João do Rio influenciada por essa possibilidade de captação de instantes e por esse novo momento do qual são marcas e características: a pressa, a velocidade, o automóvel, os novos aparatos modernos etc. Em meio a esse contexto, João do Rio escreve Cinematographo: crônicas cariocas. O volume lançado em 1909 parece incorporar toda a conjuntura da época e, sobretudo, revela ser possível fazer de um livro um cinema de letras, marca principal da narrativa. Assinado por João do Rio, pseudônimo usado em todos os livros, o livro de 390 páginas é formado por 44 crônicas, além de uma introdução – na qual

5 Ibidem, p. 514. 6 Ibidem, p. 516. 7 CHARNEY, Leo; SCHWARTZ, Vanessa R. (Orgs.). O cinema e a invenção da vida moderna. Trad. Regina Thompson. São Paulo: Cosac Naify, 2001. p. 317. 8 Idem. 9 Ibidem, p. 318. 10 GOMES, Renato Cordeiro. João do Rio por Renato Cordeiro Gomes. Rio de Janeiro: Agir, 2005. p. 97.

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O Real Gabinete Português de Leitura, para onde foi doada a biblioteca de João do Rio, após sua morte. Fotografias avulsas

o autor explica todo o significado que abarca a relação existente entre crônica e “cinematographia” – e uma nota para o leitor, que finaliza a narrativa reiterando a ideia do livro como um cinema. João do Rio, em Cinematographo: crônicas cariocas, produz uma narrativa que dilui as fronteiras entre jornalismo, literatura e cinema. O deslizamento de algumas crônicas das páginas dos jornais para o livro e a maneira pela qual a literatura do escritor lida com o cinema para mudar sua própria linguagem apontam para um transbordamento no que se refere à interseção desses diferentes suportes. O autor, no decorrer do seu livro, faz nascer um cinema sobre o Rio de Janeiro e todas as questões que permeavam e caracterizavam a cidade naquele momento. As crônicas que compõem Cinematographo abordam assuntos corriqueiros e, de certa forma, refletem as peculiaridades do modo de vida da população carioca no ano de 1908. Sobretudo, funcionam como um cinema das letras do referido ano. Ao se deparar com o livro intitulado Cinematographo: crônicas cariocas, sabendo da existência da coluna homônima da Gazeta de Notícias, é no mínimo natural pensar que existe uma grande relação entre essas produções ou mesmo que o livro é uma transcrição no todo ou em grande parte da coluna. A analogia acaba, de certa forma, colaborando para o pensamento de que o livro de 1909 é a coletânea de

textos publicados na coluna da Gazeta de Notícias. Raimundo Magalhães Jr. consegue ser ainda mais radical ao considerar que João do Rio utilizava esse artifício – de colher textos de jornais para publicálos em livros – para produzir grande parte de suas obras. Como revela Gomes: “Há uma curiosa observação de Raimundo Magalhães Jr. afirmando que, depois do sucesso do livro As religiões no Rio, João do Rio descobriu a forma de se fazer autor de uma grande bibliografia, transferindo seus escritos das páginas dos jornais para as do livro”.11 Partindo de um estudo sobre a obra de Paulo Barreto realizado com base em João do Rio: catálogo bibliográfico (1994), de João Carlos Rodrigues, e, posteriormente, em fontes primárias na Biblioteca Nacional, foi verificado que apenas trechos de seis colunas Cinematographo estão presentes no livro. Isto significa que quase toda a produção da coluna se encontra unicamente nas páginas da Gazeta de Notícias. Ao contrário da afirmação de Raimundo Magalhães, as observações comprovam que o escritor, para compor todos os seus livros – inclusive Cinematographo: crônicas cariocas –, não se limitou a transferir seus escritos de um suporte para outro. Para compor o livro de 1909, João do Rio selecionou textos publicados em A Notícia e na Gazeta de Notícias, além de pedaços autônomos da coluna.

11 GOMES, Renato Cordeiro. João do Rio: vielas do vício, ruas da graça. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1996. p. 79.

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Ao mudarem de suporte, os escritos deixam de ter relação com o jornal e passam a ter relação com o livro, sobretudo, com as outras crônicas da coletânea, instituindo outro tipo de sequência narrativa. Os textos escolhidos, ao fazerem parte do novo suporte, ganham autonomia. Agora, não estabelecem ligação direta com as matérias jornalísticas, não estão vulneráveis ao consumo imediato e tampouco apresentam a efemeridade dos textos jornalísticos. Oferecem-se de uma forma diferente, não como os antigos fragmentos possuidores de significados distintos, mas como fragmentos que vão ajudar a construir o significado de um todo, no caso, do livro – um “cinematographo de letras”. Um cinema sobre a vida carioca de 1908 Ao demais, se a vida é um cinematographo colossal, cada homem tem no crânio um cinematographo de que o operador é a imaginação. Basta fechar os olhos e as fitas correm no cortical com uma velocidade inacreditável. João do Rio

cinematográfica de João do Rio. Nesse sentido, a crônica e o cronista, como operador dessa máquina, serão mediadores entre a vida carioca e os leitores, ou melhor, entre a vida carioca e o público. “O cronista, um operador; as crônicas, fitas; o livro de crônicas, um cinematógrafo de letras: essas analogias que orientam o volume Cinematographo e a percepção por parte de Paulo Barreto do próprio trabalho como cronista”.14

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É também no prefácio que o escritor mostra o seu encantamento pelo cinematógrafo. Segundo João do Rio, o cinematógrafo “é extramoderno, sendo como é resultado de uma resultante de um resultado científico moderno”.15 Essa arte que possibilita a percepção da cidade de outra maneira foi incorporada pelo autor para produzir sua obra e, dessa forma, fez com que o livro deslizasse para o cinema. A preocupação presente em João do Rio, ao produzir a sua narrativa, já era comum no século XVII europeu, época em que o mercado livreiro publicava sucessos de alguns dramaturgos. Tomando como base as ideias de Chartier, comenta Figueiredo:

Cinematographo: crônicas cariocas retrata a vida carioca no início do século XX, ao abordar, nas crônicas que o compõem, as múltiplas questões existentes no cotidiano do Rio de Janeiro da época. Em um momento de profundas transformações, João do Rio desvenda todos os segredos de uma sociedade que buscava, a todo custo, se colocar à altura da sociedade parisiense.

Como consequência desta preocupação dos escritores de teatro, as publicações passam a trazer gravuras, mostrando o cenário e indicações cênicas, que ajudavam o leitor a imaginar alguns elementos da encenação, ou seja, são utilizados vários procedimentos visando alinhar ao máximo possível o discurso impresso à performance oratória.16

Logo no prefácio, o escritor revela a proposta do livro de ser um cinema sobre o Rio de Janeiro e mostra que é possível, pois a “crônica evoluiu para a cinematografia”.12 As crônicas que, ao seguirem o fio condutor de uma determinada obra, atribuiriam a organicidade interna desta, serão agora fitas – “uma fita, outra fita, mais outra...”13 – que, de forma sucessiva, construirão o significado da narrativa

Essa preocupação torna-se evidente ao se observar a narrativa de João do Rio, que parece informar ao leitor, a todo instante, que este se encontra em um cinematógrafo. Esse fato fica evidente ao se observar quatro pontos distintos. O primeiro é o prefácio, espaço escolhido pelo autor para explicar a concepção do livro e servir “também como declaração de princípio”.17 É na introdução que João do

12 RIO, João do. Cinematographo: crônicas cariocas. Porto: Chardron de Lello & Irmão, 1909. p. X. 13 Ibidem, p. V. 14 SÜSSEKIND, Flora. Cinematógrafo de letras: literatura, técnica e modernização no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 47. 15 RIO, João do, op. cit., p. VIII. 16 FIGUEIREDO, Vera Lúcia Follain de, op. cit., p. 2. 17 GOMES, Renato Cordeiro, 2005, op. cit., p. 79.

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Rio explica como pode ser possível a existência de um cinematógrafo de letras e revela que a proposta da obra é exatamente essa. Tal artifício foi usado, pelo escritor, para explicar também a proposta de outros volumes. O segundo ponto se refere à forma pela qual o autor organiza suas crônicas. A sucessão dos textos de Cinematographo: crônicas cariocas parece obedecer a uma linha condutora e, como consequência, corrobora para a formação do sentido total da obra, uma crônica parece dar continuidade à outra, como se fosse uma sucessão de fotogramas que se completam. Um exemplo disso é notado na sequência de duas crônicas: “A solução dos transatlânticos” e “A reforma das coristas”. Na primeira, o narrador fala sobre a decadência do teatro e critica as pessoas ligadas a essa arte, como pode ser observado no seguinte trecho: “Há quarenta anos o nosso repertório é leve. Os artistas antigos e feitos não se querem dar ao trabalho de estudar peças novas, e os artistas novos, sem escola, sem ensaiador, sem disciplina, têm por ideal fazer os papéis das peças velhas como confronto”.18 A crônica que a sucede, intitulada “A reforma das coristas”, propositalmente, tem como foco as coristas. O escritor inicia uma nova cena – uma nova crônica – que reforça a ideia da decadência do teatro, exposta no texto/fita anterior. A intenção é notada quando o narrador deprecia a profissão, estratégia escolhida por ele:

ou outra qualquer afirmação ainda mais escandalosa, para ganhar cinco mil réis.19

A linguagem usada por João do Rio é também um fator que transporta o leitor para uma sessão de cinema. A partir disso, é importante observar que Mikhail Bakhtin (1895-1975), em oposição ao pensamento saussuriano – privilegia a língua – concentra suas atenções na fala, ou seja, no discurso. Para ele, o discurso, que se relaciona com as estruturas sociais, consciência individual e com o contexto histórico-social do emissor, envolve um cruzamento, um diálogo de vários textos. Esse diálogo pode ser em nível horizontal e em nível vertical. Bakhtin chama esses dois níveis de diálogo e ambivalência, respectivamente, e Julia Kristeva, em Introdução à semanálise,20 denomina intertextualidade. Ao tomar como base o referido conceito, pode-se destacar a relação intertextual no que se refere à linguagem literária e cinematográfica. O léxico escolhido pelo escritor colabora para a imaginação fazer parte desse cinematógrafo e ser a grande responsável pela exibição do filme na mente de cada um. João do Rio atinge a mente humana, ao adotar um texto repleto de descrições, mas, ao mesmo tempo, de rápida leitura, dando ao leitor a impressão de estar assistindo a uma cena de cinema. Na crônica “Ludus Divinus”, esse fator pode ser observado com clareza:

Neste país em que as mulheres não têm grandes necessidades, o posto de corista era positivamente dado às infelizes. Os autores nada lhes faziam nas peças alegres, nem as punham em relevo. Eram damas ou muito gordas ou muito magras, lamentavelmente sem graça. Quando aparecia uma criatura mais moça, ou não demorava, ou morria ou era logo artista empurrada pelos cômicos, jungida as ligações violentas. E era uma tristeza ver mulheres velhas com famílias numerosas, o ventre enorme, o corpo numa elefantíase de linhas, cambando os sapatos e sujando as gazes, clamarem nos revistões cariocas: nós somos as ninfas,

Pons e Le Bouche, afinal encolerizados, atiraram-se furiosamente um contra o outro, Pons com a tática dos cachações para entontecer o inimigo, colando a cabeça à cabeça de Le Boucher. Era despedaçante. As mãos agarravam os músculos com ímpetos de rasgá-los, os braços enlaçavam os troncos como se fossem separar, uma vermelhidão tingia a atmosfera, e os dois lutadores com cada flexão de braço pareciam alucinar mais a galeria. Mas um urro rebentou, atroou, ecoou longe. Pons atirara ao chão o adversário. Enquanto o campeão do mundo fazia esforços para dominar, o tronco de Le Boucher foi-se erguendo devagar; firmando-se nos joelhos, nas pontas dos pés. A tentativa falhou. Caiu de novo, cruzou os braços

18 RIO, João do, op. cit., p. 158. 19 Ibidem, p. 164. 20 KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. São Paulo: Perspectiva, 1974.

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cine A Gazeta de Notícias de 1º de março de 1908 com a coluna de João do Rio, o Cinematographo. Fundação Biblioteca Nacional

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Folha de rosto do livro Portugal d’agora, de autoria de João do Rio, publicado em 1911 por H. Garnier. Biblioteca do Arquivo Nacional

em torno do pescoço, e como um titã erguendo um mundo, a cara vermelha escorrendo suor, o povo viu esse corpo vir surgindo até levantar-se de todo num supremo arranco.21

João do Rio ensaia as técnicas que serão desenvolvidas no modernismo ao adotar alguns artifícios para o processo da escrita, como mostra o exemplo. O escritor incorpora e faz uso de elementos para criar uma aproximação entre o leitor e o texto, que, por sua vez, se tornará uma cena após a ativação mente/imaginação. A pontuação, a sintaxe, as palavras escolhidas, o tempo verbal transportam o leitor para esta cena com direito a montagens, corte e outras técnicas cinematográficas. O livro/filme é encerrado com uma espécie de carta de despedida ao leitor, como indica o próprio título – “Ao leitor” –, último artifício usado por João do Rio para fazer de sua obra um cinema sobre a vida carioca. Nesse espaço, o escritor reitera, pela última vez, a proposta do livro: E tu leste, e tu viste tantas fitas... Se gostaste de alguma, fica sabendo que foram todas apanhadas ao natural e que mais não são senão os fatos de um ano,

as ideias de um ano, os comentários de um ano – o de 1908, apanhados por um aparelho de fantasia e que nem sempre apanhou o bom para poder sorrir à vontade e que nunca chegou ao muito mal para não fazer chorar. A sabedoria está no meio termo da emoção.22

É interessante observar a colocação do narrador em determinados trechos. Ao nomear as crônicas de fitas, ele reafirma a ideia do livro como cinema, o que o leitor leu ou viu foram fitas que são textos. Essa analogia colabora para edificar a ficcionalização, constituída pelas crônicas de 1908, e também pelas publicadas em outros anos distintos. Além disso, é possível notar a aproximação estabelecida entre crônica e cinema, quando o escritor revela que os fatos foram “apanhados por um aparelho fantasista”, isto é, pelo cinematógrafo. A crônica, assim como o “aparelho fantasista”, registra a realidade observável no Rio de Janeiro de 1908, relatando o corriqueiro, os fatos do dia a dia. O trecho “a sabedoria está no meio da emoção” resume o sentido dessa última parte e do livro em si. O meio da emoção seria o natural, ou seja, a realidade observada, e foi desta maneira que as crônicas/fitas surgiram, posto que estas foram mediadoras dos fatos, também naturais, do ano

Assinatura do escritor no álbum sobre o Theatro Municipal do Rio de Janeiro, publicado em 1913 pela Photo Musso. Biblioteca do Arquivo Nacional

21 RIO, João do, op. cit., p. 152-153. 22 Ibidem, p. 390.

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de 1908. Nesse sentido, cabe ainda destacar que o apelo referente ao artifício próprio da arte fez do natural não apenas o documentado, mas a sua contaminação pelo ficcional – intenção clara a João do Rio no prefácio e na nota “Ao leitor”. Assim como João do Rio mostra, no decorrer da narrativa, a proposta de fazer de seu livro um cinema, revela também o fio condutor da obra no próprio subtítulo: “crônicas cariocas”. Na verdade, o próprio título como um todo, Cinematographo: crônicas cariocas, serve como base para uma análise, pois une o cinema e o Rio de Janeiro, os pontos principais do livro. Ao se fazer uma ligação entre esses pontos, é possível perceber facilmente o objetivo do escritor de produzir um filme que traga como temática a vida no Rio de Janeiro, como é exposto no próprio prefácio: “Com pouco tens a agregação de vários fatos a história do ano, a vida da cidade numa sessão de cinematógrafo”.23 São esses fatos de um ano que vão servir de registro da cidade, fatos que servem de metonímia para representar toda a sociedade carioca, formada pelos “encantadores” dos salões, pela “canalha” de rua e pela classe média. João do Rio comenta a vida no Rio de Janeiro e desvenda os segredos dessa sociedade em cada crônica/fita que compõe o seu livro/filme. Cinematographo: crônicas cariocas é um filme feito de cenas que, em conjunto, retratam o dia a dia carioca, no processo de modernização. As crônicas são estruturadas para documentar tudo que diz respeito à vida no Rio de Janeiro de 1908, seja a “cena” ou a “obscena”,24 pois nada pode deixar de ser relatado, tampouco esquecido. Trata-se do filme de um ano, de uma revista de um ano, dos fatos do ano de 1908; embora textos também publicados em outros anos sejam elementos participativos da narrativa que se deseja cinematográfica. O Rio de Janeiro é o cenário do filme, no qual será narrada toda a multiplicidade que pode existir em

uma cidade durante o processo de modernização. O encantamento por parte de uma grande maioria de pessoas no que se refere a esse processo e, por consequência, às mudanças pode ser observado em personagens como o barão Belfort e o conde Sabiani, que deliravam com a dança da princesa jamaicana Verônica, em “Gente de music-hall”. João do Rio cria um conjunto de oito crônicas para falar da Exposição de 1908. Vitrine da modernidade e do progresso, a exposição era uma forma de mostrar o Brasil para o mundo e, com isso, atrair capital estrangeiro: “[...] a sensação do Brasil num mostruário colossal para o mundo e para o próprio Brasil; e os resultados do conhecimento exato do estrangeiro, com a entrada de capitais para a exploração das riquezas nacionais e o desenvolvimento das indústrias”.25 Para retratar o mundo da arte do início do século XX, além de enaltecer pintores como Henrique Bernardelli, Rodolfo Amoedo e Antônio Parreiras, João do Rio revela os tipos que frequentavam a exposição: A raça estava toda. Havia a dama animadora que pinta nas horas vagas entre os trabalhos de agulha e os exercícios ao piano, tomando posições científicas para observar as pinturas face-à-main no nariz, havia os rapins esperançados do Montmartre carioca que fica ali pelos lados da travessa Leopoldina; havia a coleção de mestres oficiais tratados com as considerações de Budhas ambulantes, havia os críticos desde os velhos até os pequenos de fralda que nunca viram um quadro e chamam de idiotas grandes artistas, havia a onda polimorfa do burguês achando sempre melhor o pior [...].26

Ao descrever essas diferentes “raças” frequentadoras das exposições, João do Rio faz uma crítica ao modismo da época e, principalmente, registra hábitos e peculiaridades de uma parcela da sociedade do Rio de Janeiro, denominada pelo escritor de “snobs cariocas”. Segundo o escritor, os “snobs cariocas”,

23 Ibidem, p. V. 24 GOMES, Renato Cordeiro, 1996, op. cit., p. 31. 25 RIO, João do, op. cit., p. 286. 26 Ibidem, p. 186.

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além de mesquinhos e pretensiosos – como são os de outros lugares –, acham feio ser brasileiro. A desnacionalização dos estratos economicamente mais elevados do Brasil é abordada em outras crônicas. Em “Um problema”, o cronista conta alguns casos de “rapazes ricos que eram mais estrangeiros na sua terra que os próprios estrangeiros, mais deslocados e frios no próprio lar do que numa rua de Londres” e atribui esse problema aos “produtos glaciais do snobismo ou da tolice dos pais, que acabam odiando a própria pátria e renegando a família”.27 Ao mesmo tempo em que João do Rio fala sobre os costumes da “gente de cima”28 – como o que alguns “estetas, imitando Montmartre” tinham de “discutir literatura e falar mal do próximo” enquanto “enchiam o ventre de cerveja”29 na rua da Assembleia ou na rua da Carioca –, também documenta os hábitos da “canalha”. Em “O barracão das rinhas”, por exemplo, o escritor apresenta o esporte feroz das brigas de galo, que aconteciam em um barracão a cerca de cem metros da estação do Sampaio. Além dos costumes, alguns traços linguísticos que marcam essa classe podem ser observados. Em “Dito da rua”, o escritor ressalta expressões típicas, a linguagem do malandro e da capoeira, e destaca a gíria da época “E eu, nada?” que, mesmo não exprimindo nada, servia para inúmeras situações. Apesar de se mostrar, por inúmeras vezes, eufórico no que diz respeito à modernização, João do Rio também manifesta certa nostalgia ao imaginar que os signos do Rio antigo seriam apagados para que fosse erguida a cidade moderna: A mudança! Nada mais inquietante do que a mudança – porque leva a gente amarrada essa esperança, essa

tortura vaga que é a saudade. Aquela mudança era, entretanto, maior do que todas, era uma operação da cirurgia urbana, era para modificar inteiramente o Rio de outrora, a mobilização do próprio estômago da cidade para outro local. Que nos resta mais do velho Rio antigo, tão curioso e tão característico? Uma cidade moderna é como todas as cidades modernas.30

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O cronista valorizava o Rio antigo. A preservação dos signos da cidade marcaria a tradição, a história do lugar e da população que ali vivia. A reorganização da cidade causaria a perda da identidade e da tradição, fato que ocasiona em João do Rio e em outros que viveram naquele momento certo desconforto, como pode ser notado nas crônicas “O velho mercado” e “Horas da biblioteca”. Um traço relevante da vida carioca naquele momento, também destacado na obra, era a pressa. O tempo mudou. A era da velocidade, do automóvel, da aceleração do ritmo de vida das pessoas já se fazia presente nas ruas da cidade. As renovações técnicas implicaram mudanças de hábitos e costumes, e João do Rio escolhe esse tema para tecer os momentos finais do filme de 1908, com a fita/ crônica “A pressa de acabar”. Dessa forma, ele justifica o término da sua narrativa, pois ele tem pressa, o leitor tem pressa. O momento é outro, “já nada se faz com o tempo. Agora faz-se tudo por falta de tempo”.31 João do Rio seguiu em direção a um só rumo: a leitura da cidade do Rio de Janeiro. Para percorrer e desvendar a cidade, escolheu as crônicas que “quase sempre, são respostas a certas perplexidades pessoais e sociais”.32 Nas páginas do livro, as crônicas submeteram-se apenas à linha condutora da obra e ganharam autonomia para ser o que autor desejou. Tornaram-se fitas. E a obra, cinematographo.33

27 Ibidem, p. 93. 28 Apud GOMES, Renato Cordeiro, 1996, op. cit., p. 63. 29 RIO, João do, op. cit., p. 129. 30 Ibidem, p. 214. 31 Ibidem, p. 385. 32 GOMES, Renato Cordeiro, 2005, op. cit., p. 30. 33 Outras referências bibliográficas: BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoievski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1981; RODRIGUES, João Carlos. João do Rio: catálogo bibliográfico. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Dep. Geral de Doc. e Inf. Cultural, Divisão de Editoração, 1994.

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Keilla Conceição Petrin Grande Mestre em Estudos de Linguagens pelo Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET/MG). Docente na área de Letras, com ênfase no ensino de Literatura.

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Borges e Santiago: uma “invasão” no cinema argentino

O escritor argentino Jorge Luis Borges. Correio da Manhã

Cena do filme Invasión (Argentina, 1969), de Hugo Santiago. Proartel

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Lautaro Murúa (ao centro) em Invasión. Proartel

Não são recentes os estudos que aproximam a arte literária da cinematográfica. Na verdade, é considerado que, em seus primórdios, o cinema tomou da literatura a forma de elaboração narrativa. Por outro lado, a partir do desenvolvimento e consolidação da linguagem cinematográfica, que ganhou seus próprios contornos e especificidades, foi também a sétima arte uma fonte de técnicas e modos de elaboração artística para a literatura. E o tempo só fez consolidar o diálogo entre essas artes, ampliando a relação entre elas, seja através das várias adaptações que o cinema faz de obras literárias, seja pelo interesse que a sétima arte desperta entre autores de todos os tempos. Na gama de escritores que estabeleceram uma relação estreita entre literatura e cinema, encontra-se o argentino Jorge Luis Borges. O autor de Ficções sempre demonstrou interesse pela sétima arte, não apenas como cinéfilo, mas como alguém que excursionou pela crítica cinematográfica em resenhas acerca de produções as mais variadas, que iam do cinema hollywoodiano ao soviético, além de reconhecer e admitir a interpenetração das duas artes. A proximidade de Borges com o cinema revela-se em todo o percurso de sua produção. Já no primeiro texto que escreve sobre o tema, El cinematógrafo, el biógrafo, em 1929, o escritor propõe a diferença entre os dois vocábulos para associar cinema a

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“biógrafo”, pois para ele, mais que técnica e maquinaria, o cinema é “el que nos descubre destinos, el presentador de almas al alma”. Essa definição demonstra o estatuto que Borges conferia ao cinema, considerando-o muito além de simples imagens em movimento. Também nas resenhas que produziu ao longo de mais de dez anos, manifesta-se um crítico arguto, atento às nuances e aos aspectos que uma produção fílmica deve apresentar. Assim, suas análises percorrem desde o engendramento das tramas até os aspectos técnicos como a fotografia, a montagem, a dublagem, entre outros. Não que Borges fosse um crítico especializado ou se posicionava como tal – vale lembrar que, quando o autor portenho escreve suas resenhas, a própria crítica cinematográfica ainda não era uma disciplina especializada como temos hoje –, mas não deixa de chamar atenção os comentários atentos e engenhosos que o escritor lançava sobre os filmes a que assistia. Um outro acercamento de Borges com o cinema dá-se na elaboração de roteiros cinematográficos. Embora não houvesse logrado êxito nessas produções, o intento de criar também para o cinema demonstra ainda mais o apreço que o autor nutria por esse tipo de arte. Nesse aspecto, ele fez algumas inserções pela sétima arte. O primeiro dos roteiros, que se intitularia Suburbio, deu-se em 1940 e seria

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um trabalho para a Pampa Films, porém o filme nunca chegou a ser produzido e não há nenhuma indicação de que o texto do roteiro tenha sido preservado ou publicado, ficando apenas algumas notas da imprensa da época em que os roteiristas (além de Borges, Petit de Murat também assinava o trabalho) comentavam a respeito do argumento da película. Depois, por volta de 1942-43, viria a adaptação do romance Pago Chico, em um roteiro escrito a oito mãos: Borges, Bioy Casares, Manuel Peyrou e Enrique Mallea. Projeto que foi abandonado quando o governo militar argentino sugeriu algumas modificações no texto, algo não aceito pelos escritores. Nos anos de 1946 a 1948, a Alfar Producciones teria contratado Borges e Bioy para adaptarem os textos Hombre de la esquina rosada e Evaristo Carriego. No entanto, uma vez mais, o intento não se consolida.1 Em 1951, Borges e Bioy escrevem mais dois roteiros Los orilleros e El paraíso de los creyentes. O primeiro chegou a ser produzido em 1975 por Ricardo Luna, sem grande êxito de crítica e de público. Esses dois textos foram publicados em 1955 pela Editorial Losada, mas, a despeito do prestígio que os escritores já haviam logrado tanto pelas obras individuais quanto em parceria, ficaram relegados, senão ao esquecimento, ao menos ao desinteresse da crítica. Talvez porque esses roteiros não alcançaram êxito junto ao meio cinematográfico, a que se destinavam. Alguns anos depois, em junho de 1967, Borges e Bioy recebem do diretor Hugo Santiago uma proposta para escreverem um argumento para um filme. Até então, o cineasta argentino era pouco conhecido em território portenho, mas desde 1959 trabalhava com cinema em Paris e havia sido assistente de Robert Bresson no filme O processo de Joana d’Arc. A princípio, os escritores aceitaram o projeto, mas, segundo o diário de Bioy, eles pensaram em desistir, pois sentiam o encargo de entregar um trabalho com tempo fixado como um “jugo”. Para resolver esse problema, abriram mão dos trezentos mil pesos que receberam de adiantamento e, em um jantar, comunicaram a

Hugo Santiago a desistência e entregaram a ele um texto de dez páginas. Para surpresa de Borges e Bioy, o cineasta aceitou de bom grado e viu-se satisfeito com o “resumo” que recebeu. Mas a história não pararia por aí. Uma semana depois, Borges e Bioy entregam a Santiago um novo texto com uma pequena modificação no anterior e esse trabalho continuaria, dias depois, com os amigos escrevendo novos episódios, criando personagens e dando corpo a um trabalho de pouco mais de vinte páginas, que nunca foi publicado por determinação expressa dos autores. Por instância de Hugo Santiago, o roteiro receberia a colaboração de Borges e dele só não participou Bioy, porque o autor de A invenção de Morel faria uma viagem à Europa. A produção do filme iniciou-se em maio de 1968 e, em maio de 1969, o filme estreou em Cannes com exibição especial, já que não houve tempo hábil para que ele concorresse no festival, e lá obteve uma recepção favorável da crítica. Assim surge Invasión, uma produção que, podese dizer, proporcionou a Borges a consolidação de uma experiência com o cinema, visto que sua participação nessa obra deu-se desde a concepção do filme através da elaboração de seu argumento, até a oportunidade de vê-lo exibido em uma sala de cinema portenho. Aquilea ou Buenos Aires? “Aquilea 1957” são as palavras iniciais do filme Invasión, que aparecem sobre um plano de conjunto de uma cidade. A princípio, esses dois termos serviriam para, como é comum ocorrer em diversos filmes, situar-nos em um tempo e espaço determinados. No entanto, no decorrer da película até seu final, descobrimos que esses termos fazem parte de um jogo de sentidos que foge a qualquer referencialidade. Pode-se afirmar que todo o filme está assentado sob o signo do ambíguo: no papel das personagens, na relação entre elas, nas situações em que estão inseridas. Quando se pensa que se está próximo a uma resposta ou a um desfecho ou

1 Em 1962, Hombre de la esquina rosada foi levado às telas pelo diretor René Mugica, com roteiro de Carlos Aden, Isaac Aisenberg e Joaquin Gómez.

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solução, logo o espectador descobre que não passa de uma falsa impressão, pois o desenlace sempre escapa, oscila, num constante exercício de nunca revelar o todo da situação. O filme coloca em ação dois grupos cuja separação e identificação são possíveis pelas roupas que usam: os de branco e os de preto. Dos de branco nada sabemos a não ser que são os “invasores”. Seus nomes, origem, identidades nunca são revelados, tampouco o motivo da sua ação. Os “homens de preto”, por sua vez, são comandados por Dom Porfírio, um ancião que orienta toda a ação dos demais homens do grupo, composto por Herrera, quem lidera os outros quando uma ordem deve ser executada; Vildrac, um farmacêutico, cuja principal preocupação é não deixar a esposa perceber em que está envolvido; Irala, o mais atemorizado do grupo; Lebendiger, uma espécie de Don Juan portenho; Silva, médico e alcoólatra; Moon, engenheiro; e Cachorro, um tipo rústico e bronco, que lembra os heróis de Sternberg. Há, ainda, um terceiro conjunto de pessoas formado por homens mais jovens do que os de negro e, aparentemente, comandados por Irene, namorada de Herrera. Um mapa de Aquilea, fixado na parede da casa de Dom Porfírio, serve para traçar estratégias de ataque ao grupo inimigo. Mas essas localizações, uma vez mais, reforçam a ambiguidade já mencionada. Ao mesmo tempo em que remetem a pontos de Buenos Aires, o mapa não reproduz fielmente a cidade portenha, seria mais uma Buenos Aires fragmentada, reduzida, ou apenas sugerida. Não pode deixar de ser levado em conta o nome “Aquilea”, derivado de Aquiles, um dos heróis da invasão a Troia e que alude a uma cidade romana assediada e destruída por Átila, não sem antes ter sido corajosamente defendida. Na luta entre invasores e defensores, é feito um percurso pelos vários pontos da cidade, assinalados ao longo do filme: fronteiras sul, norte, sudoeste, noroeste. Quanto à data, 1957, Hugo Santiago afirma2 que eles a escolheram justamente por se tratar de um ano em que nenhum acontecimento ficou marcado para a

história, ou seja, um tempo meramente contingente. Mas se a intenção é elidir toda e qualquer referencialidade, por que a necessidade de um tempo demarcado? Uma vez mais, há o artifício de jogar com aquilo que apresenta concretude, mas, ao mesmo tempo, desliza para um campo do hipotético. Nessa questão do tempo e espaço vê-se a sobreposição e colisão de dois elementos, um espaço aparentemente concreto, mas ao mesmo tempo mítico, em que nenhum deles é mais apreensível ou prepondera sobre o outro; um tempo cronológico, delimitado, mas aberto a qualquer preenchimento simbólico.

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As personagens também estão inseridas nesse universo dúbio. Dom Porfirio direciona os passos que seu grupo deve dar e ele sempre sabe onde estarão os adversários. Mas quando a missão a ser cumprida não logra êxito, antes que seus cúmplices deem-lhe as informações, ele conhece, por antecedência, o que ocorreu. Também tem ciência das transações dos homens de branco e até das mudanças que eles fazem em seus planos. Como essas informações chegam até ele? É uma resposta que não temos. Até mesmo parece que Dom Porfirio induz seus homens a buscar a morte, que já está iminente. Talvez porque o antigo grupo – representado pelos homens de preto – tenha que desaparecer para que os jovens tomem seus lugares, como fica sugerido na cena final. Do mesmo modo, Irene é uma personagem que quase não se revela. Ela desconfia de que algo estranho se passa com Herrera, mas todas as vezes que ele se ausenta em razão de alguma ordem de Dom Porfirio, ela vai ao encontro do grupo de homens jovens. E a trajetória dela é marcada por mistérios: andando pelas ruas, um jovem parece simplesmente distribuir panfletos, mas o que entrega a ela tem uma mensagem anexada; também quando ela se dirige a uma comum banca de jornal, a revista que pega contém outra mensagem, porém o conteúdo desses textos nunca nos é revelado. Ela busca uma encomenda e não sabemos o que há naquela caixa, tampouco os motivos que a levam a explodir um carro. Somente no fim da história, tomamos conhecimento de que Irene trabalha para Dom Porfirio e, ao passo que

2 BORGES. Variaciones sobre un guión. Dirección: Alejo Moguillansky, 2008. Vídeo (76 min.). Colección Malba.cine − Edición especial. DVD 2.

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ela sabia da ligação do namorado com ele, Herrera é completamente ignorante da ocupação dela. A primeira “missão” dos homens de preto será destruir um caminhão que contém uma certa carga e, mais uma vez, não se explica o que trazem os intrusos. A perseguição a esse carregamento desencadeará uma luta armada entre os dois grupos e resultará na morte, um a um, dos sete homens do bando de Dom Porfirio. A ideia de uma trama que mais se oculta do que se revela, não está apenas no enredo, mas mostra-se na construção das próprias sequências fílmicas. Não assistimos a nenhuma morte dos homens de preto, a não ser o irônico fim de Moon, que caminha até aquele que lhe aponta uma arma e, ao ser interrogado se não havia visto o revólver, ele responde que era cego. De Irala, o primeiro a morrer, é mostrado apenas seu corpo em uma das salas de “la quinta de los Laureles”; um telefonema anuncia o velório de Vildrac; quando Lebendiger é atraído para uma armadilha, vemos uma porta que se fecha e ouvimos o estampido de um tiro; pelo grito dilacerante de Silva, que é capturado junto com Herrera na fuga da quinta, vem-nos a sugestão da tortura pela qual ele passa; e é pela velha faxineira que ajuda Herrera a fugir, que temos a confirmação da morte do médico; o corpo de Cachorro aparece pendido numa poltrona da sala de cinema, onde ele havia entrado para assistir a um western; por fim, o último a morrer é Herrera, cujo corpo é encontrado por Dom Porfirio no estádio de futebol, onde supostamente os invasores haviam montado uma estação de rádio. Quando a personagem Herrera, protagonista da história, faz sua primeira aparição na tela, ele está caminhando rente a um muro por uma rua escura e vazia. Embora seus passos pareçam seguros, de repente, ouvem-se ruídos, os quais não sabemos de onde vêm nem de quê são. E no momento em que ele para e mira algo distante com um binóculo, em vez de ele girar o corpo como quem perscruta tudo em derredor, é a câmera que girará sobre ele, como a demonstrar que ele também é observado, deixandonos a impressão de que há algo fora de campo, tanto do alcance da personagem como do nosso.

E assim, no amálgama de enredo e imagem, Invasión vai-se construindo, unindo o estilo de Santiago que, segundo o crítico David Oubiña, “é um cineasta do secreto e do oculto”,3 o que nos faz pensar, também, na sua formação junto a Bresson. Soma-se a essas características, o estilo de Borges que tem como um dos traços de sua escrita a marca desse universo “fantástico” que o filme evoca. Com essa pequena análise, não se pretende deixar uma ideia de que Invasión é um filme fora de qualquer contextualização ou interpretação, beirando a inépcia. A nosso ver, seu próprio caráter lacunar já é uma proposta de (re)leitura do que se convenciona chamar de “realidade”, ou pelo menos tal como a julgava Borges: “A realidade não é vaga; é vaga nossa percepção geral da realidade.” No artigo La salvación por la violencia, Gonzalo Aguilar, analisando o filme de Santiago e a produção contemporânea a ele, La hora de los hornos, de Fernando Solanas, pontua a discussão que as duas obras oferecem em relação à política argentina. Ambas foram produzidas e estreadas dentro do conjunto da conturbada circunstância do governo militar de Onganía e podem sugerir uma crítica aos acontecimentos de então. Entretanto, enquanto no filme de Solanas é patente a militância, na produção de Santiago essa seria só mais uma das vertentes possíveis de interpretação. Mas Invasión tampouco é somente essa remissão ao coetâneo. Como interpretação política, ele tanto pode remeter à opressão de um passado mais distante, colonial, já que não deixa de ser uma “invasão” o sistema do colonizador que, por vezes, subtrai e extingue a cultura do dominado, como ao futuro, pois, embora não saibamos o que trazem os homens de branco, eles estão cercados por aparatos tecnológicos: vários televisores, máquinas de escrever e aparelhos telefônicos na sala onde prendem Herrera, sem contar o pátio lotado de carros, o que pode aludir ao sistema de controle proporcionado pelos aparatos tecnológicos tão em voga na atualidade. E tantas outras formas de

3 OUBIÑA, Davi (Org.). Invasión. Edición especial. Buenos Aires: Fundación Eduardo F. Constantini, 2008. p. 19.

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manipulação que estão dispersas pela sociedade – cultural, política, econômica, ideológica – e que se exercem independentemente do consentimento ou consciência do corpo social caberiam nessa simbólica trama. Nesse sentido, são emblemáticas as palavras da personagem Herrera: “Dom Porfírio, eu cumpri sempre o que o senhor me mandou, mas esta cidade não tem remédio. Para quê morrer por gente que não quer se defender?” É corrente nos filmes que tratam de uma “invasão” ameaçadora que deve ser evitada a todo custo o apelo a seres extraordinários: extraterrestres, zumbis, monstros e, não raro, as personagens, quando humanas, são dotadas de força especial, seja por poderes próprios ou pelas armas que usam. A obra de Santiago e Borges dissipa qualquer apelo a esse tipo de estratégia e coloca em cena homens comuns, em situação incomum ou “situação fantástica”, como dito pelo próprio Borges. A partir dessa perspectiva, é possível apreender o que o crítico Gonzalo Aguilar aponta sobre a questão da alegoria no filme. Para ele, o cinema argentino, até então, apoiava-se em duas estratégias para tratar do tema político: o eufemismo e a alegoria. Com os filmes La hora de los hornos e Invasión, esse tipo de ancoragem se encerra, pois o filme de Solanas, pelo caráter claramente partidário e documental com que trata o assunto, lança fora qualquer atenuante que poderia dar-se ao tema. Já Invasión de tal forma trabalha a estética das imagens, que não se transforma em alegoria, pois não se permite a um código de tradução evidente. Se o filme dissipa o alegórico é justamente porque, sendo de tal maneira fluido e oscilante, acaba por não se enquadrar em um discurso que alude a outro ou que fala de uma coisa referindo-se a outra. Podendo aludir a uma situação, ao mesmo tempo, ele remete a nenhuma específica. É uma obra em que os sentidos oscilam, escapam e, quando parecem direcionar-se para um campo de interpretação, eles se esvaem em vários outros sem nunca deixar-se reter. Isso porque o filme fica no entremeio: não há um ponto de origem – não se sabe o motivo da invasão, tampouco

o que motiva a resistência – e não se chega a uma solução, temos várias perguntas e nenhuma resposta.

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E para coroar a ideia de uma trama que remete ao para “além de”, a um sempre possível “a mais”, o modo no mínimo intrigante como o filme se encerra, ou melhor, deixa-se em aberto. Dom Porfirio recebe um telefonema (não sabemos de quem), mas fica subentendido que se trata de uma má notícia. Ele segue para “La Cancha”, onde Herrera tinha sido cercado por um imenso batalhão de homens de branco, e lá encontra o corpo do companheiro no centro do campo de futebol. Na tela, aparece a palavra “Fim”. No entanto, o filme abre mais um plano sequência e temos Dom Porfirio, junto a Irene, falando àquele grupo dos homens mais jovens: “Tantos anos estive preparando-os. Eles já estão adentro. Agora começa a resistência. Agora cabe a vocês, os do Sul”, e Irene passa a entregar armas de fogo a cada um desses jovens. Dessa forma, o filme não se deixa terminar. Pode ser que esteja encerrada a geração de Herrera, mas o campo do conflito continua a existir. Como afirma o crítico Oubiña, “O filme presta-se a muitos sentidos e, por sua vez, não se entrega a nenhum”.4 Uma afirmação que também caberia a muitos textos borgeanos. Nesse aspecto, pode-se afirmar que Invasión traz em seu bojo a marca da literatura de Borges. A epopeia do homem comum, o culto à coragem, o indivíduo que caminha ao encontro de sua morte, o Acaso como regente da vida humana tanto são também reconhecíveis na trama do filme como em vários contos do autor portenho. As sete personagens que formam o grupo de Dom Porfírio são tipos extremamente ordinários, até mesmo medíocres: de um homem casado a um alcoólatra, de um engenheiro cego a um conquistador de charme duvidoso, eles estão longe de corresponder ao que comumente se espera de um herói: seres nobres, de conduta e caráter irrepreensíveis. O próprio Borges dá testemunho acerca disso: “São homens como todos os homens; não são especialmente valentes, nem, salvo um, excepcionalmente fortes. São gente que trata simplesmente de salvar a pátria desse perigo e que vão morrendo ou deixandose morrer sem maior ênfase épica.”

4 Ibidem, p. 26.

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Não obstante, sob a aparente banalidade, cada um deles irá enfrentar sua própria morte, pondo à prova seus limites e coragem − tal como vimos em outras personagens de Borges. Se, para o escritor portenho, tal como dizem Aguilar e Jelicié, não é possível haver nobreza na multidão, Invasión leva ao limite o destino individual: cada um encontrará na morte a insígnia de sua própria vida. Irala, que nunca conseguiu dissimular sua covardia, oferecese para entrar na chácara de “Los Laureles”, a fim de distrair os inimigos para que seus companheiros pudessem roubar o caminhão. Sua fala, sintética, é emblemática: “Se alguém tem que morrer, o mais indicado sou eu. Vocês podem oferecer sua valentia; eu só posso oferecer minha morte.” Vildrac, que se vê ferido por ter-se posto em linha de frente contra os invasores na quinta, só pede aos amigos que dissimulem para a esposa o real motivo de sua morte. Cachorro, uma personagem aficionada por filmes de faroeste, não por acaso, é assassinado durante a exibição do filme La pantera de México, justamente em um momento em que se deleitava assistindo à cena de um tiroteio. Lebendiger é atraído a uma armadilha por uma jovem e bela mulher, o que o surpreende, mas ao mesmo tempo coloca-o frente a si mesmo, já que lhe era próprio conquistar para enganar. Moon não consegue enxergar a arma que lhe é apontada e Silva recita fragmentos da milonga que havia cantado para os amigos no café: “Essa coisa tão de sempre, tão doce e tão conhecida; e com a bala, o esquecimento; disse o sábio Merlim: morrer é ter nascido.” Herrera, o qual dissera a Dom Porfirio que havia desistido da luta, por fim, acaba por, uma vez mais, tentar impedir alguma investida dos invasores e será este seu último intento, como que encerrando a etapa da luta daquele grupo. Borges, em um breve relato que faz sobre o filme, defende que essa obra trabalha um novo tipo de “fantástico”, já que não se trata de uma ficção científica, nem é povoada por seres de outro mundo;

não são personagens que agem, no geral, contrários à conduta de indivíduos comuns, mas estão inseridas em uma situação fantástica. Essa forma de elaboração que funde o factual com o hipotético, que usa de elementos concretos para as mais altas abstrações, é uma das bases sobre as quais se afigura Invasión e provoca o jogo de hesitação que marca todo o filme. Não é difícil reconhecer essa estratégia em outros textos borgeanos. Tlön é um mundo fantástico, imaginário, mas a composição desse universo transita entre a correspondência com esse nosso mundo − há língua, há filosofia, há literatura – porém, ao mesmo tempo, não há equivalência, pois em Tlön não importam os conceitos ou os sistemas lógicos. A própria categoria do tempo está fora de qualquer determinação e o adjetivo, em detrimento dos substantivos, demonstra que não há conceitos, pois as coisas são permutáveis ao invés de estáveis. Nada mais intrigante do que objetos de culto em Tlön aparecerem no mundo real. Sem contar os protagonistas, reconhecíveis como Borges e Bioy, os escritores e amigos que estão em uma discussão sobre a elaboração de um romance, o que parece muito provável, o improvável é a busca por uma enciclopédia de Tlön. Um outro texto que trava um diálogo bastante próximo ao filme é A loteria na Babilônia. De início, tal como o filme, evoca-se uma cidade de referência histórica, mas não sem estar cercada de simbologia. O que é a loteria na Babilônia senão um sistema que rege a vida dos homens à deriva deles? Nesse conto, tudo está pautado em um jogo que, a princípio, era praticado por alguns poucos. Porém, depois de algumas reconsiderações, a loteria passa a ser “secreta, gratuita e geral” e “é parte principal da realidade”. O narrador nos diz que o povo da Babilônia é devoto da lógica e da simetria, o que parece contradizer uma sociedade de homens cujas vidas e destinos são definidos através de um sorteio ou de uma combi-

5 Referências bibliográficas: AGUILAR, Gonzalo. La salvación por la violencia: Invasión y La hora de los hornos. In: ______. Episodios cosmopolitas en la cultura argentina. Buenos Aires: Santiago Arcos, 2009. p. 85-120; ______; JELICIÉ, Emiliano. Borges va al cine. Buenos Aires: Libraria, 2010; AQUILEA: Nueve pequeños films sobre Invasión. Direción: Alejo Moguillansky, 2008. Vídeo (47 min.). Colección malba.cine − Edición especial. DVD 2; BORGES, Jorge Luis. Obras completas. vol. I. São Paulo: Globo, 1998; ______. Obras completas II: edición crítica. Anotada por Rolando Costa Picazo. Buenos Aires: Emecé, 2010; ______. El cinematógrafo, el biógrafo. In: ______. Textos recobrados (1919-1929). Buenos Aires: Emecé, 2007. p. 468-472; CASARES, Adolfo Bioy. Borges. Edición al cuidado de Daniel Martino. Barcelona: Backlist, 2011; JOSEF, Bella. A crítica cinematográfica de Jorge Luis Borges. In: SCHWARTZ, Jorge. Borges no Brasil. São Paulo: Ed. Unesp; Imprensa Oficial, 2001. p. 135-145; SARLO, Beatriz. Jorge Luis Borges, um escritor na periferia. Trad. Samuel Titan Jr. São Paulo: Iluminuras, 2008.

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nação de sorteios. É justamente nessa contradição – entre outras sugeridas no decorrer do conto – que reside uma das tônicas do texto. A racionalidade é um dos pilares mais fortes sob o qual se constitui a cultura ocidental, que se apoia na crença na ciência, na tecnologia, no conhecimento humano como forma de gerir o corpo social, de modo que todas as coisas são explicáveis e cabíveis em uma perfeita relação de causa e efeito. A loteria na Babilônia coloca em xeque essa ideia do domínio humano absoluto sobre a própria vida. Os agentes da “companhia” são secretos assim como suas decisões. Decisões essas que provocam “toda sorte de conjeturas”. Tal como os invasores de Aquilea, a Companhia nunca se identifica, nunca expõe seus motivos, não se justifica; ela somente age.

É bastante peculiar, em Borges, esse posicionamento, às vezes até irônico, de colocar em dúvida a possibilidade de o “universo” corresponder a uma concatenação regida pela lógica, em que os fatos correspondam a uma ordem de causa e efeito. Em muitos de seus textos fica a ideia de que há um para além – da razão, do inteligível, do explicável, do visível, do palpável. E o autor logra essa dimensão em sua obra sem apelar a uma fantasia ou artificialidade extremadas. Trata-se, como já afirmou a crítica Beatriz Sarlo, de um “pesadelo racional”, que também se evidencia em Invasión. Uma lenda histórica ou uma história lendária? Aquilea ou Buenos Aires? A luta existe, mas por que se luta? São questões que o filme propõe, sem nunca respondê-las. Um filme em que, depois do “fim”, há continuidade. Nada que se estranhar quando se sabe que a assinatura de Borges faz parte do texto.5

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A cidade de Buenos Aires, que no roteiro de Borges e Bioy Casares parece ter inspirado a Aquilea de Invasión. Correio da Manhã

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É nessa tensão entre os elementos concretos – homens comuns, nomes próprios, objetos de uso trivial, lugares reconhecíveis – e, ao mesmo tempo, uma situação que escapa a uma explicação lógica e racional, que reside Tlön, a biblioteca de Babel,

Aquilea e tantas outras criações que permeiam o universo borgeano.

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O clássico de Joaquim Manuel de Macedo, A moreninha, chegou às telas de cinema em 1970, pelas mãos do diretor Glauco Mirko Laurelli. Na foto, os atores Sônia Oiticica, Nilson Condé, Carlos Alberto Riccelli, Tony Penteado, David Cardoso, Tereza Teller e Sônia Braga. Correio da Manhã

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Benedito Veiga Doutor em Letras pela Universidade Federal da Bahia e pós-doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo. Professor do Departamento de Letras e Artes da Universidade Estadual de Feira de Santana. Autor dos livros Dona Flor e seus dois maridos: uma história de cinema (Via Litterarum, 2009), Dona Flor da Cidade da Bahia (7 Letras, 2006), entre outros.

Jorge Amado,

articulador das manifestações culturais Um recorte nas artes plásticas e no cinema da Bahia

Jorge Amado toma posse na Academia Brasileira de Letras em 1961. Correio da Manhã

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Vista de Salvador, Bahia, maio de 1964. Referência cultural na vida e obra de Jorge Amado. Correio da Manhã

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Uma introdução amadiana Este é um tema costumeiro na biografia de Jorge Amado. Teríamos de fazer um recorte ao longo de sua vida para tentarmos dar vencimento em apenas uma etapa, sobretudo, quando nos fixamos, tão só, em sua terra natal, o que requer também outra delimitação, ou seja, sua fixação em sua urbe preferida, mas não a de nascimento, Salvador, chamada pelo artista e pelos mais antigos moradores de Cidade da Bahia, tomada com todas as idiossincrasias democráticas amadianas: sua preocupação de mostrar a todos um modo de viver culturalmente misturado, numa localidade que apresenta em sua estrutura os traços negros dominantes, mas não portadores das marcas do mando, ao lado dos da ancestralidade nativa e a dos conquistadores portugueses europeus, como, por exemplo, constatamos em seu livro Bahia de Todos os Santos: guia de ruas e mistérios: Quem guarda os caminhos da cidade do Salvador da Bahia é Exu, orixá dos mais importantes na liturgia dos candomblés, orixá do movimento, por muitos confundido com o diabo no sincretismo com a religião católica, pois ele é malicioso e arreliento, não sabe estar quieto, gosta de confusão e de aperreio. Postado nas encruzilhadas de todos os caminhos, escondido na meia luz da aurora ou do crepúsculo, na barra da manhã, no cair da tarde, no escuro da noite, Exu guarda sua cidade bem-amada. Ai de quem aqui desembarcar com malévolas intenções, com o coração de ódio ou de inveja, ou para aqui se dirigir tangido pela violência ou pelo azedume: o povo dessa cidade é doce e cordial e Exu tranca seus caminhos ao falso e ao perverso.

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O pintor Carybé em foto de 1965. Correio da Manhã

A primeira obrigação a se fazer quando nesse solo se põem os pés, quando aqui se desembarca, é dar de beber a Exu para assim lhe conquistar as boas graças, impedindo que se venha perturbar a festa com suas diabruras e arrelias. Para não se escorregar numa ladeira calçada de pedras negras e antigas, para não se correr susto num beco de fantasmas, para evitar os ebós, os feitiços, as coisas-feitas.1

Amado, como um dos pioneiros nos tratos literários com os marginalizados − principalmente, os negros e os relegados ao abandono ou ao desprezo social −, oportuniza constantemente a criação de um universo de denúncias de injustiças, vigentes ainda na sociedade brasileira. Uma articulação com as artes plásticas Excetuando seus dois livros iniciais de ficção, País do carnaval, de 1931, e Cacau, de 1933, o escritor sempre procurou associar sua criação artística com as artes plásticas, colocando um ilustrador, com certa evidência, para um diálogo com seu tema, como são exemplos: Santa Rosa, Mário Cravo Júnior, Carybé, Oswaldo Goeldi, Poty, Clóvis Graciano, Frank Schaeffer, Carlos Scliar, Renina Katz, Di Cavalcanti, Glauco Rodrigues, Floriano Teixeira, Aldemir Martins, Jenner Augusto, Calasans Neto, Otávio Araújo, Carlos Bastos etc., o que atualmente − após sua morte − tem sido cortado pela Editora Companhia das Letras em suas mais recentes edições, publicadas sem as ilustrações originais. Esse convívio proveitoso − e provocador! − entre o literato e o artista plástico tem sido de

1 AMADO, Jorge. Bahia de Todos os Santos: guia de ruas e mistérios. 40. ed. Rio de Janeiro: Record, 1996. p. 16.

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Jorge Amado, articulador das manifestações culturais

enorme utilidade para os receptores das obras de Amado. Myriam Fraga, artista e amiga pessoal dos Amado, em Bahia, a cidade de Jorge Amado, livro de depoimentos sobre a vida e a obra do escritor, argumenta: Foi a partir de Suor, em1933, que as ilustrações passaram a fazer parte integrante de sua obra − mas não por imposição do editor, ou por um capricho editorial, mas porque a relação com os ilustradores é visceral e profunda. Da mesma forma que é profunda e visceral a necessidade de cercar-se de obras de arte, que fazem de sua casa − quer esteja na Bahia, no Rio de Janeiro ou em Paris − uma referência cultural, consignada através de quadros, cerâmicas, esculturas, azulejos, fragmentos de uma visão de mundo que não prescinde da beleza como uma marca de humanismo.2

A Fundação Cultural Casa de Jorge Amado, sob o comando executivo de Fraga, promoveu, em 2000, no Pelourinho, um encontro com ilustradores da produção amadiana, reunindo alguns de seus criadores fixados em Salvador: Se alguns, como Carybé e Floriano Teixeira, escolheram viver na Bahia, após a leitura de Jorge Amado, outros, como Mário Cravo e Carlos Bastos, foram seus companheiros na efervescência do final dos anos 50, início de 60, quando o romancista decidiu fixar residência em Salvador. Calasans Neto, embora de uma geração posterior, logo teve seu talento de então jovem artista reconhecido e estimulado por Jorge Amado, de quem se tornou, além de parceiro, um dos mais queridos amigos.3

Essa mesa-redonda, composta de Calasans Neto, Carybé, Carlos Bastos, Floriano Teixeira e Mário Cravo Júnior, todos eles ilustradores de produções de Amado, serviu para testemunhar o relacionamento efetivo, acompanhado do respeito recíproco às relações no trato entre as partes interessadas, mostrando “o clima de informalidade e irreverência que costuma presidir as reuniões destes artistas”.

Para mostrar uma espécie de caminho entre o ficcionista e o ilustrador, talvez seja pertinente apresentarmos Teixeira, via Cravo Júnior, indiciando este as rotas da amizade, da opção do ficcionista e da competência do escolhido, como nos permite observar Fraga: Mário Cravo − Sim, mas aí é que está a história. É preciso explicar às pessoas que não se escolhe um ilustrador, nem se torna amigo, sem uma relação do escritor com o ilustrador, com o desenhista, sem que o desenhista dê o ar de sua graça. Esse homem [Floriano] é um dos mais meticulosos e expressivos desenhistas que apareceram nessa cidade nos últimos 50 anos. Então, um material bom para Jorge Amado, lógico, está certo? Vamos fazer um parêntese aqui para notarmos que, antes de um grande escritor escolher seu ilustrador, o cara tem que mostrar que é bamba no uso do desenho e dessa exposição eu me lembro muito bem. Foi uma exposição fantástica! Estou falando isso, só para ajudar um pouco, para vocês verem como a ilustração é ligada ao desenhista, ao artista e, eventualmente, ao escritor.4

A escolha do ilustrador não é aleatória, mas, na verdade, um reconhecimento de seus méritos, uma aprovação de suas realizações num caminho percorrido. Outra prova das ligações de Amado com os artistas plásticos: conforme o relatado em Navegação de cabotagem, quando o governador do estado da Bahia, o arenista convicto Antônio Carlos Magalhães, convidou o ficcionista para, por meio de suas relações e influências, ajudá-lo na decoração do Centro Administrativo da Bahia, na época em fase de construção. Escreve o autor: Toninho pretende colocar painel de artista baiano em cada um dos edifícios, decorar salas e gabinetes com óleos e aquarelas, desenhos, deseja que sua administração decorra sob o signo da arte, pede-nos, a Jenner e a mim, que o ajudemos no

2 FRAGA, Myriam (Org. e apres.). Bahia, a cidade de Jorge Amado. Salvador: FCJA; Museu Carlos Costa Pinto, 2000. p. 190. 3 Ibidem, p. 189. 4 CRAVO, Mário apud FRAGA, Myriam, op. cit., p. 194.

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projeto. Aceitamos a prebenda, parece-nos válida por todos os motivos: inclusive por bem-vinda às finanças sempre parcas dos artistas. 5

Posteriormente a esse fato, constatamos no citado centro da administração alguns painéis de criadores locais, inaugurados ou adquiridos num dos três governos de Magalhães.

No mais amplo, as ligações da literatura com o cinema são costumeiras e remotas. A ficção escrita tem fornecido oportunidades, em todas as épocas, de elaboração de roteiros cinematográficos adaptados, com premiação considerável, como as atribuições do Oscar, pela Academia de Artes de Hollywood, na categoria melhor filme: E o vento levou... (de 1939), Casablanca (de 1943), A malvada (de 1950), A volta ao mundo em 80 dias (de 1956), O poderoso chefão (de 1972) etc., sem citar os clássicos do teatro, a exemplo de Hamlet (de 1948), My fair lady (de 1964) e muitos outros.

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Uma história com o cinema

dois maridos (Dona Flor e seus dois maridos, de Bruno Barreto, em 1976); Otália da Bahia (Os pastores da noite, em 1976, de Marcel Camus); Tenda dos milagres (Tenda dos milagres, em 1977, de Nelson Pereira dos Santos); Gabriela (Gabriela, cravo e canela, em 1983, de Bruno Barreto); Jubiabá (Jubiabá, em 1987, de Nelson Pereira dos Santos); Tieta (Tieta do Agreste, em 1996, de Cacá Diegues); Capitães da areia (Capitães da areia, de Cecília Amado, em 2011).

Com a palavra, o cinema

Em termos nacionais, dois dos nossos literatos mais consagrados − Jorge Amado e Nelson Rodrigues − têm vários de seus trabalhos adaptados cinematograficamente − com cerca de dez de cada um deles usados −, ocupando os primeiros lugares na preferência dos cineastas. A partir da Companhia Cinematográfica Vera Cruz, aparecem adaptações, nacionais ou internacionais amadianas, enumeradas não exaustivamente: Terra é sempre terra (Terras do sem fim, em 1951, de Tom Payne); Seara vermelha (Seara vermelha, em 1962, de Alberto D’Aversa); Os capitães da areia (Capitães da areia, em 1971, de Hall Barlett); Dona Flor e seus

Um dos primeiros a indicar as tendências cinematográficas da obra de Amado foi Glauber Rocha, ao publicar no Suplemento Dominical do Diário de Notícias, de Salvador, Bahia, seu segundo artigo sobre Gabriela, cravo e canela, em 8-9 de maio de 1960, provocativamente intitulado “Cravo e canela (ou Jorge diretor de cena)”: O metteur-em-scène que existe em Jorge Amado assegura futuro eterno para Gabriela. Um romancista não se basta como apenas criador de personagens. Há quem crie os tipos, há quem cave o espírito do homem até

Sônia Braga e Marcello Mastroianni em Gabriela (1983), filme de Bruno Barreto baseado no romance de Jorge Amado. Serviço de Censura de Diversões Públicas - RJ

5 AMADO, Jorge. Navegação de cabotagem: apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 1994. p. 454.

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Jorge Amado, articulador das manifestações culturais

os últimos motivos de seu conflito. O romance descritivo psicologista é mestre nisto: debruçado numa cadeira, mesa, janela, cama, margem de lago, banco de jardim, o camarada começa a pensar. Rompe noites e auroras naquela crise perpétua, à espera de uma Verdade. Ora, o romance intimista que se faz no Brasil, salvo o falecido Cornélio Pena, é todo ele um exercício intelectual e não vivencial de homens que, adquirindo uma problemática através da cultura, lutam por fazer realidade suas existências, superproblemas jamais possíveis de acometer a espécie humana em nosso meio social.6

Rocha recusa a ficção descritiva psicologista, que foge de retratar a realidade interna e dominante no país, numa situação muito mais próxima da obra amadiana, e aponta que o escritor se vale do descritivo para fixar as marcas do tratamento social das personagens, como exemplifica o crítico: Chegamos, do outro lado (opostamente a Jorge Amado) para encontrar outro metteur-en-scène no romance brasileiro. Explico isto, a fim de deixar bem claro que o importante não é ser ágil, violento, lidar com cem personagens ao mesmo tempo. Isto é muito importante como ser calmo, lento, escorregadio, reticente, lidar com dois a três tipos humanos. O fundamental é o sujeito saber alguma coisa na arte do romance. Não saber é que não vale e esta incapacidade gera os subprodutos. Jorge Amado sabe, trabalhando um romance − com destaque Gabriela e Quincas − criar toda uma sequência na qual os personagens se agitam visualmente, tão bem desenhados são. O método descritivo de Jorge Amado é rápido: “Ainda agora, através da sujeira a envolvê-la, ele a enxerga como a vira no primeiro dia, encostada numa árvore, o corpo esguio, o rosto sorridente, mordendo uma goiaba...”7

A prosa contida, bem observado o ambiente, rápida, aproxima o literato do cineasta, tornandoo − no dizer de Rocha − um romancista cinematográfico, que cria, em poucas palavras, uma

característica marcante da personagem, como no exemplo: Gabriela é esguia! É conveniente acrescentar que Amado nunca foi contrário às adaptações de seus trabalhos: E, sem preocupações com a fidelidade a modelos, entende que uma adaptação de um romance para outro meio de comunicação só é válida se ela for uma recriação da obra literária, assume-se, pois, − sem dogmatismos − como trabalhador, no desempenho de seu oficio, como se expressa sobre as arrumações de Dona Flor, em suas diversas mudanças, pelos variados cantos: Foi francesa, russa, norte-americana, checa, argentina, turca, húngara ou búlgara, adquiriu acento português nas ruas de Lisboa, andou Europa e Ásia, sua face múltipla repetida, seu jeito igual, a reserva, a ânsia, o ímpeto e o amor queimando coração e corpo.8

O escritor reconhece que Bruno Barreto deu-lhe uma identidade estrita: a beleza e o talento de Sônia Braga, rodeada da atmosfera da Bahia; a interpretação dos atores, a escolha e a marca dos instrumentais técnicos do filme. E acrescenta: “Feliz Dona Flor, com tantos pais, tantas faces, seus maridos e a vitória final do amor, repetindo-se no livro, no desenho, no quadro, no cinema, nas traduções pelo mundo afora”.9 A conclusão convida à quebra de fronteiras entre as artes, entre os diversos níveis culturais, para a inserção da obra no mercado cultural e global, para a aceitação das diversas traduções, para a publicidade continuada, como em Dona Flor. Um encaminhamento conclusivo Amado, principalmente no âmbito da Bahia, exerceu um papel importante no incentivo literário, prefaciando jovens autores, comparecendo a lançamentos de livros, indicando editores. Por vezes, quando estava em terra, comparecia a seminários ou a atividades intelectuais, dando entrevistas nos

6 ROCHA, Glauber. Cravo e canela (ou Jorge diretor de cena). Diário de Notícias, Salvador, 8-9 mai. 1966. Suplemento Dominical, p. 1. 7 Ibidem, p. 112. 8 AMADO, Jorge. A dona Flor de Bruno Barreto. A Tarde, Salvador, 26 nov. 1976. Caderno 1, p. 2. 9 Idem.

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jornais, ou participando de outras atividades afins, como registra Benedito Veiga, em Dona Flor da cidade da Bahia: Jorge Amado desponta como catalisador dessas metas artísticas variadas; é chamado a atuar e também, por iniciativa própria, atua. Parte de sua obra literária não contesta isso. Antes mesmo de concluir Dona Flor, ele já se envolvera com a proposta do livro Bahia, boa terra, Bahia, desde o início de 1966. Diz Flávio Damn, fotógrafo da empreitada, que, para “[...] ilustrar o livro de 128 páginas que fará sobre a Bahia”, [...] “vai utilizar 120 fotografias, que escolherá entre 9 mil que serão tiradas em todo o Estado”.10

Outra comprovação: na lista dos produtos nacionais de exportações, não poderíamos excluir o trabalho de artistas plásticos baianos ou com residência local, todos, de certa forma, com ligações amadia-

nas − gravadores (como Calasans Neto), pintores (como Carlos Bastos), escultores (como Mirabeau Sampaio), desenhistas (como Floriano Teixeira), tapeceiros (como Genaro de Carvalho), alguns já distinguidos nacional ou internacionalmente.

Com a palavra, o cinema

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Com o acontecimento da I Bienal Nacional de Artes Plásticas da Bahia, realizada com sucesso em 1966, no espaço do Convento do Carmo, o escritor dela também toma parte, divulgando-a e participando de sua Comissão Executiva, sob a presidência da sra. Hildete Lomanto, tendo como conselheiros do certame, além de Amado, Odorico Tavares, José Rescala, Carlos Eduardo da Rocha, Antônio Celestino, D. Clemente Nigra e Godofredo Filho.11 Estas são apenas algumas anotações ligeiras sobre Jorge Amado, como articulador de algumas manifestações culturais na Bahia.

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Floriano Teixeira, pintor maranhense que ilustrou livros de Jorge Amado. Correio da Manhã

10 VEIGA, Benedito. Dona Flor da cidade da Bahia: ensaios sobre a memória da vida cultural baiana. Rio de Janeiro; Salvador: 7 Letras; Casa de Palavras/FCJA-FAPESB, 2006. p. 106. 11 NOTA DE REDAÇÃO. Hildete na presidência da Bienal. Diário de Notícias, Salvador, 21 dez. 1966. Caderno 1, p. 1.

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Vladimir Carvalho (à esquerda) dirige as filmagens de O país de São Saruê (1971), documentário inspirado na literatura de cordel do paraibano Manoel Camilo dos Santos. Correio da Manhã

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Rodrigo Cazes Costa Doutor em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Professor adjunto no curso de Produção Cultural da Universidade Federal Fluminense, em Rio das Ostras.

Carolina de Jesus e Ozualdo Candeias:

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literatura, cinema, cultura popular

Carolina de Jesus no lançamento de seu livro Quarto de despejo, em agosto de 1960. Correio da Manhã

A escritora à beira do rio Tietê, ao lado da Favela do Canindé, onde morava, em São Paulo, 1960. Correio da Manhã

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O Brasil, nos anos 1950 e 1960, vivia um período rico em sua história cultural e política. De um lado, aqueles que buscavam, em meio ao processo de industrialização e urbanização vivido pelo país, garantir melhores condições de vida para a população em geral. Por essa população podemos entender tanto aqueles que ainda viviam no campo quanto as massas que se deslocavam para os centros urbanos em busca de melhores condições de vida. De outro lado, estavam aqueles que pretendiam que a modernização tivesse um caráter conservador, privilegiando, em sua estrutura e métodos, as elites econômicas do país, ou seja, uma ínfima parcela da população. Os conservadores foram, como sabemos, os vencedores desse embate após o Golpe Civil-Militar de 1964.

Uma aliança importante havida naquele período era entre essa arte produzida no Brasil, que Ridenti observa como nutrida por um espírito revolucionário, e a cultura popular. Se havia algo de bom no país, em contraposição ao comportamento excludente de boa parte das elites brasileiras, era essa cultura produzida “espontaneamente” pelo nosso povo. O samba, o carnaval, as religiões afro-brasileiras, o falar do sertão. Havia um sentido de relevância estética, dignidade e pureza nessas manifestações que as faziam servir de matéria-prima para as criações de uma elite intelectual ainda herdeira das propostas modernistas. Bossa Nova, Grande sertão: veredas, Deus e o diabo na terra do Sol, os afro-sambas, Orfeu no carnaval, todas elas manifestações artísticas que apresentavam essa crença na arte popular brasileira como elemento fundante de um novo país, mais justo e próspero para toda a sua população.

Como bem observa Marcelo Ridenti,1 a cultura servia como metáfora do embate em torno de um projeto de nação mais à esquerda ou mais à direita, havendo no ar um espírito revolucionário por parte da maioria das manifestações culturais brasileiras à época, mesmo que muitos dos artistas envolvidos nessas manifestações não fossem propriamente marxistas em busca de uma revolução que visava a tomada de poder. De qualquer maneira, como assinala Roberto Schwarz,2 a cultura imbuída por esse espírito revolucionário de esquerda continuou predominante no processo cultural brasileiro até a decretação do AI-5, no final de 1968, mesmo com a política sendo dominada pela aliança de setores empresariais, civis e militares, com seu projeto de modernização conservadora.

Se havia uma enorme estima por essa contribuição popular como matéria-prima a ser transformada pelo filtro estético do modernismo, da vanguarda, havia, em paralelo, uma grande idealização do que era essa entidade sem forma denominada povo. A instituição que melhor simbolizou a visão, muitas vezes equivocada e ingênua, do falar pelo povo, de se fazer procuradora do povo, era o Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC da UNE). Apesar de seu importante papel de fomentador da produção artística, servindo como uma instituição que viabilizou a produção cultural de artistas como Ferreira Gullar, Eduardo Coutinho, Leon Hirszman e outros. O CPC também não era adepto da arte de vanguarda, ou seja, para os princípios de conscientização política proclama-

Brasil nos anos 1950-1960: cultura popular e arte revolucionária

1 RIDENTI, Marcelo. Artistas e intelectuais no Brasil pós-1960. Tempo Social, revista de Sociologia da USP, v. 17, n. 1, 2005. 2 SCHWARZ, Roberto. Cultura e política. São Paulo: Paz e Terra, 2001.

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Carolina de Jesus e Ozualdo Candeias

dos pelo CPC em seu manifesto (ver os dados do manifesto) era preciso que a arte fosse didática, a fim de ser compreendida pelo público a quem se destinava. Subestimava a capacidade do povo em falar por si e em entender o que lhes era dito. É nesse período, cujas linhas de força que animavam a política e a cultura hoje parecem distantes, que surgem dois artistas cujas trajetórias singulares seguirão, resumidamente, neste artigo: Carolina de Jesus e Ozualdo Candeias. Carolina de Jesus, favelada, negra, pobre, com pouquíssima escolaridade, mesmo assim escritora de um diário que pode ser colocado entre o que de mais potente se produziu na literatura brasileira, logo a literatura, a mais elitista das artes. Ozualdo Candeias, caminhoneiro, fiscal de obras, entre outras profissões sem nenhum glamour. Realizou seu primeiro longa-metragem, A margem (1967), com quase 45 anos, idade que Glauber Rocha (1939-1981), mestre de nosso cinema moderno, nem chegou a completar. Carolina de Jesus e Ozualdo Candeias foram artistas populares que falaram por si numa época em que não havia as tecnologias digitais que, nos dias de hoje, democratizaram a produção e a distribuição de manifestações artísticas. Carolina de Jesus e seu Quarto de despejo A literatura é uma manifestação artística em oposição ao que geralmente se estuda como cultura popular. Esta é formada por tradições que passam de geração em geração pela via da linguagem oral, sem que haja um registro escrito formal, a não ser quando estudiosos coletam as tradições cujos desaparecimentos parecem eminentes. A literatura, portanto, é o que pode passar mais distante de uma produção artística realizada por alguém que mal teve a oportunidade de frequentar uma escola.

Personagem das migrações do campo para a cidade, em busca de melhores condições de vida para uma descendente de escravos, Carolina de Jesus narra a sua vida, do nascimento até a chegada em São Paulo, no livro de memórias Diário de Bitita,3 publicado primeiro na França e depois no Brasil. Quando da publicação do diário na França, no início dos anos 1980, Carolina já havia sido esquecida no Brasil. É o retrato, ao mesmo tempo, das agruras pelas quais passava (e ainda passa) a população miserável e pobre do Brasil e a personalidade de uma mulher que não se conformava em exercer as profissões que eram destinadas aos que, como ela, vinham das camadas mais baixas da população. Por não querer ser empregada doméstica, vivendo em regime de semiescravidão, Carolina migra para São Paulo, onde acaba por viver na Favela do Canindé, local próximo de onde hoje fica a Marginal Tietê. É neste local que ela irá escrever seu livro mais importante, Quarto de despejo.4 A primeira edição de Quarto de despejo, publicada em 1960, ocorreu por um acaso. Audálio Dantas, jornalista, trabalhava na Folha da Noite e fazia uma reportagem na Favela do Canindé. Um morador da favela lhe disse que uma mulher, que lá morava, escrevia uns cadernos, coisa incomum entre uma população de analfabetos e pessoas com baixíssima escolaridade. Audálio Dantas, então, encontrou Carolina de Jesus e seus cadernos, tornando-se uma espécie de tutor intelectual e até mesmo econômico da escritora, relação cujos conflitos podemos conhecer melhor no diário que Carolina de Jesus escreveu após Quarto de despejo, Casa de alvenaria.5 O livro fez um imenso sucesso na época, vendendo mais de cem mil exemplares, quando as edições raramente passavam de dois ou três mil. Carolina conseguiu dinheiro para sair da favela e comprar uma casa de alvenaria. Transformou-se em uma celebridade, mas seu sucesso foi fugaz. Após o Quarto de despejo, Carolina publicou mais alguns livros, gravou um disco, desejava ser artista, ser famosa, estar na televisão, o que ia de encontro ao

3 JESUS, Carolina de. Diário de Bitita. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. 4 ______. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2012. 5 ______. Casa de alvenaria: diário de uma ex-favelada. São Paulo: Francisco Alves, 1961.

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que dela pensava Audálio Dantas, que acreditava estar esgotada a missão de Carolina de Jesus após a publicação de seu diário-denúncia. O sucesso desejado por ela não veio e, com a mudança progressiva do clima cultural no país, ocorrida após o Golpe Civil-Militar de 1964, o ideal nacional-popular que Carolina encarnava foi ficando para trás. Ela acaba por comprar um sítio em Parelheiros, bairro afastado na cidade de São Paulo, espécie de zona rural, onde vem a falecer em 1977, aos 62 anos.

é que Carolina de Jesus era uma mulher solteira no final dos anos 1950, início dos anos 1960, que sustentava uma família sem ter um homem a seu lado, situação absolutamente impensável para a época. Carolina de Jesus encara a figura de uma mulher libertária, que não se submete à estrutura social de sua época. Ela mantém relacionamentos com alguns homens de maneira ocasional, mas afirma a sua condição de mulher independente da estrutura patriarcal da sociedade, postura que ficará evidente nos confrontos existentes entre ela e Audálio Dantas, por ocasião dos fatos narrados em Casa de alvenaria.

A partir dos vários cadernos de Carolina de Jesus, Audálio Dantas editou a versão publicada em Quarto de despejo. Militante de esquerda, Audálio tentou transformar Carolina de Jesus e sua vida sofrida em bandeira da luta popular nos anos 1950-1960. No entanto, o discurso de Carolina era tão poderoso que dava margem a contradições que nem a edição do diário conseguia esconder: “...estou residindo na favela. Mas se Deus me ajudar hei de mudar daqui. Espero que os políticos estingue as favelas”.6 Ao contrário do discurso existente nos dias de hoje, em que há uma afirmação da favela como espaço produtor de afetos e de cultura, como proclama a famosa música de Claudinho e Buchecha, Carolina tinha horror ao ambiente em que vivia e sonhava se mudar do quarto de despejo para outro espaço onde pudesse ser mais feliz: “Sonhei que residia numa casa residível, tinha banheiro, cozinha, copa e até quarto de criada.”7

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São Paulo no começo da década de 1960: a metrópole moderna e conservadora, cenário para os excluídos sociais retratados na literatura de Carolina de Jesus e no cinema de Ozualdo Candeias. Correio da Manhã

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Carolina trabalhava como catadora de papel para tentar ganhar míseros trocados que permitissem a ela e aos filhos comprar a comida do dia a dia. “Cheguei em casa, fiz o almoço para os dois meninos. Arroz, feijão e carne. E vou sair para catar papel.”8 A sua vida, assim como um diário, cuja narrativa tem como característica a fragmentação, consistia nessa luta diária para obter alimento para si e sua família, direito básico que era negado aos que, como ela, viviam na favela, o quarto de despejo da sociedade. O singular nessa trajetória

O estilo de escrita de Carolina de Jesus em Quarto de despejo é uma mistura de metáforas herdadas do romantismo mais pueril: “O céu está azul e branco. Parece que até a Natureza quer homenagear as mães que atualmente se sentem infeliz por não poder realisar os desejos dos seus filhos.”9 Certamente, marca do que foi ensinado em termos de literatura brasileira a Carolina de Jesus nos tempos em que ela era estudante e de um realismo brutal: “Não tinha gordura. Puis a carne no fogo com uns tomates que eu catei lá na Fabrica Peixe. Puis o cará e a batata. E agua. Assim que ferveu eu puis o macarrão que os meninos cataram no lixo”.10 O realismo da fome de Carolina de Jesus e seus filhos é um dado que traz um incômodo, que chega a ser físico, ao ato de leitura de Quarto de despejo, tamanha é a força de seu relato. Eu, e imagino a totalidade ou a imensa maioria dos que me leem, nunca passei fome. Mas o relato de Carolina de Jesus sobre

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6 JESUS, Carolina de, Quarto de despejo, p. 20. 7 Ibidem, p. 40. 8 Ibidem, p. 12. 9 Ibidem, p. 31. 10 Ibidem, p. 43.

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Carolina de Jesus e Ozualdo Candeias

Ozualdo Candeias. Acervo Heco Produções

suas imensas dificuldades para obter comida é tão poderoso que podemos experimentar a mesma concretude que a escritora experimentou quando redigia seu diário. Outro elemento que faz parte do estilo de Carolina de Jesus é a forma como ela escreve desafiando a norma culta da língua. Evidente que sua desobediência à gramática não é uma forma de rebeldia proposital, mas empresta à sua escrita mais um elemento material que faz dela uma experiência singular no Brasil de 1960. Transferindo o diário da esfera burguesa para o de uma favelada que não completou o primário, Carolina de Jesus se empodera de um discurso que, anteriormente, pertencia apenas à outra parcela da população. Ela se apropria da escrita não para se tornar uma revolucionária, apesar de a sua escrita ser inovadora, mas para poder escapar de um local onde sentia estar presa, sentia um mal-estar. A literatura, para Carolina, é um instrumento para a libertação de condições materiais de vida que ela sentia insuportáveis, de uma rotina que não se modifica, conforme é narrado na última passagem de Quarto de despejo: “1 de janeiro de 1960: Levantei as 5 horas e fui carregar agua”. Em meio a esse

cenário de privações materiais, em que a literatura aparece como algo fútil ou inútil, na verdade, é o que permite a Carolina continuar a viver. Ozualdo Candeias e A margem No conjunto dos cineastas pertencentes ao que Ismail Xavier11 chama de cinema brasileiro moderno, Ozualdo Candeias foi, muito provavelmente, a figura mais singular. Caminhoneiro, funcionário público e, segundo certas lendas, até mesmo cafetão, Candeias frequenta um curso de cinema no MASP nos anos 1950, interessado em conhecer técnicas de fotografia e narrativa cinematográficas para melhor utilizar uma câmera de cinema 16 mm que havia comprado. Trabalhou, então, em documentários e reportagens cinematográficas, muitas vezes a serviço de Primo Carbonari, o grande produtor de cinejornais da época. No final dos anos 1950 e início dos 1960, dirige dois curtas-metragens documentários que marcam o início de sua produção como diretor: Polícia feminina (1959) e Ensino industrial (1962), filmes institucionais. No entanto, só iria conseguir iniciar sua carreira como cineasta de ficção com o icônico longa-metragem A margem (1967), quando

11 XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro moderno. São Paulo: Paz e Terra, 2004.

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já tinha 45 anos, sendo uma espécie de Glauber Rocha ao contrário no que diz respeito à idade em que iniciaram suas carreiras de diretores em longasmetragens de ficção, já que Glauber filma Barravento (1962) aos 23 anos. Candeias também não era fã do Cinema Novo capitaneado pelo baiano, mas isso não é assunto para este artigo. A margem é um desses filmes sobre os quais muito se escreve e se lê, cuja importância histórica é inegável, mas que foram pouco assistidos pelo público em geral. Na época de sua estreia chegou a ser lançado em circuito comercial, principalmente em São Paulo, mas não obteve sucesso de público. Em relação à crítica, foi louvado como uma espécie de maravilha do primitivismo no cinema, mesmo que de primitivo, em termos do manejo da linguagem cinematográfica, Ozualdo Candeias nada tivesse. Moniz Viana, crítico conservador da época, adversário do Cinema Novo, adorou A margem. Mesmo Ozualdo Candeias estando longe de ser um ingênuo que sua figura e seu filme poderiam sugerir, A margem, cujos recursos financeiros para a produção eram praticamente nulos, exalava uma espécie de pureza (vista como oriunda do primitivo de que falei) que o colocava distante dos filmes do Cinema Novo. Aqueles pareciam mais sintonizados com o cinema moderno que se fazia à época no mundo, influenciado pelo Neorrealismo italiano e a Nouvelle Vague francesa. A margem parecia saído de outra época, quase como um filme mudo de vanguarda por acaso filmado em São Paulo, no final dos anos 1960, e não nos anos 1920, em Paris. O filme acabou por batizar o conjunto de produções audiovisuais denominado de Cinema Marginal, apesar de se afastar das características que mais marcaram os filmes feitos na época por Bressane, Sganzerla e outros. Há um lirismo, quase que uma religiosidade mística, no filme de Candeias, que não se encontra nesses filmes, como O bandido da luz vermelha (1968) e O anjo nasceu (1969). A margem narra a história de quatro deserdados da sorte: uma prostituta negra (personagem que explora a sensualidade da mulher negra de uma maneira talvez inédita em nosso cinema), um homem de

terno, uma loura e um louco maltrapilho. Os quatro ficam a perambular pelas margens do rio Tietê, no mesmo local onde ficava a favela de Quarto de despejo. Quando das filmagens de A margem, a favela já havia sido removida, mas o local conservava uma aparência de sítio perdido em meio à enorme metrópole na qual São Paulo havia se transformado com a industrialização pesada das últimas décadas. Os personagens de Candeias eram os excluídos do processo de modernização conservadora que estava em curso no país. Impedidos ou sem o desejo de se juntarem ao ideal de trabalho, família e consumo que vigorava na época, eles ficam a vagar por onde seus corpos ainda podem transitar, ou seja, a margem do rio. Local típico dos excluídos: “Nós somos pobres, viemos para as margens do rio. As margens do rio são os lugares do lixo e dos marginais.”12

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Para narrar a história desses corpos que caminham pela periferia, Ozualdo Candeias utilizou, na primeira parte do filme, uma técnica que é bastante rara no cinema (Lady in the lake [1947], de Robert Montgomery, utiliza a técnica em toda a sua duração), que é a narração somente por meio de planos subjetivos. O plano subjetivo é aquele em que a ação é enxergada pelo espectador por intermédio do ponto de vista de um personagem, e não do narrador do filme. É um plano, portanto, no qual o personagem se torna o centro da ação e nós, espectadores, ficamos como que colados a ele. Espécie de discurso direto no cinema. Candeias faz, então, com que fiquemos colados a seus marginais durante toda a primeira parte do filme, que se encerra com a morte do personagem interpretado por Mário Benvenutti, o qual se distingue dos demais marginais por utilizar um bem cortado terno o tempo inteiro, o que faz com que sua figura se torne ainda mais estranha numa paisagem quase rural, certamente alguém que pertencia ao mundo do capital e do trabalho, mas que se viu impelido, por algum motivo que não é revelado no filme, a partir de lá. A margem, ao contrário de determinada tradição literária realista, passa longe de traçar quaisquer perfis psicológicos de seus personagens. Eles são o que nos é dado a ver deles em cena.

12 JESUS, Carolina de, Quarto de despejo, p. 55.

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Carolina de Jesus e Ozualdo Candeias

O filme se utiliza de pouquíssimos diálogos, tanto por uma questão de estilo como por uma questão de economia de recursos financeiros. Esse procedimento faz com que seja necessário prestar toda atenção às imagens do filme, já que mesmo as músicas da trilha sonora, do grupo Zimbo Trio, não chegam a guiar a dramaticidade das cenas, servindo mais como paisagens sonoras complementares às imagens. Principalmente na primeira parte do filme, a combinação de som e imagens pode remeter a um romance modernista, onde o leitor é levado pelo fluxo de consciência do narrador ou, no caso, narradores, que deambulam pelos grandes espaços vazios ainda virgens do processo modernizador. Na segunda parte do filme, que se instaura com a morte do homem de terno, o espaço urbano, do qual vários planos mostram as pessoas indo e vindo apressadamente pelo Vale do Anhangabaú e outras localidades do Centro de São Paulo, se transforma em espécie de oposição à aparente calma existente nas margens do Tietê. O filme parece, então, ter uma postura romântica, no sentido da valorização de um espaço que ainda não foi maculado pela modernidade capitalista, onde mesmo as relações amorosas já são regidas pela lógica da mercadoria. Apenas no espaço da margem do Tietê é possível a esses personagens exercitarem sua resistência, simbolizada no filme de maneira mais concreta pelo marginal louco que passa toda a história a carregar uma flor. Não que esses marginais sejam, necessariamente, heróis. Podem mesmo cometer atos como derrubar um aleijado de sua cadeira de rodas. Mas serão, mesmo sem um programa político, figuras de oposição a uma ordem vigente, atualizando, em outra chave, menos cômica e mais desesperada, os malandros da chanchada, principalmente o personagem do louco. Ao final do filme, no entanto, mesmo o espaço dos marginais se torna insuportável para eles. A mulher loura, pela qual o louco era apaixonado, acaba morta por uma rival numa zona de prostituição. Enlouquecido com a morte da amada platônica, ele acaba por juntar-se aos outros três marginais no mesmo barco que aparece no primeiro plano do filme, numa cena que evoca o delírio, já que dois deles estavam mortos. Num dos planos mais líricos do filme, a amada do louco surge correndo por

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uma ponte segurando a flor com a qual o louco, em vão, tentava presenteá-la durante toda a narrativa e entra no barco. Em vez de ser guiado por Caronte, o barqueiro de Hades, deus grego dos mortos, o barco é guiado por uma bela mulher. A música do filme ganha uma nova dimensão, um coral que traz uma atmosfera sacra, enquanto o barco navega pelo rio com seus cinco passageiros e o último plano faz uma fusão do barco no rio com o céu e o sol a brilhar, ampliando o efeito místico geral da cena. Ozualdo Candeias encerrava assim seu primeiro e marcante longa-metragem. Até os anos 1990 seria ativo como cineasta e diretor de fotografia em vários filmes produzidos, principalmente, na Boca do Lixo paulistana. Filmou até uma versão de Hamlet, A herança (1970), com David Cardoso como Hamlet! A versão é ambientada no interior do Brasil, procurando atualizar o medieval reino da Dinamarca para o latifúndio brasileiro e a luta por terras dos mais pobres. Mas é assunto para outro texto. Últimas palavras, por enquanto... No ano em que se comemora o centenário do nascimento de Carolina de Jesus, este texto procurou dar conta, de maneira sintética, dela e de um artista contemporâneo a ela, Ozualdo Candeias. Vive-se numa época em que a arte popular se apropria da tecnologia para produzir novas manifestações artísticas que não mais estão no diálogo com o modernismo elitista dos anos 1950-1960. Manifestações como o funk do Rio de Janeiro e o rap paulistano se dão numa outra chave, onde o brutal e o grotesco se cruzam em linguagens nem sempre de fácil aceitação para o público “educado”. Se desejássemos traçar uma genealogia dessas manifestações artísticas, nas quais o popular busca escapar de certa mediação feita pela figura do intelectual que produz e distribui diretamente a sua arte, Carolina de Jesus e Ozualdo Candeias são figuras a se pensar. E, no âmbito de um festival de cinema de arquivo, que seja mais fácil encontrar os livros de Carolina de Jesus no Brasil do que nos EUA (no momento a situação é contrária) e que os filmes de Ozualdo Candeias sejam restaurados e possam ser vistos pelo público nas melhores condições possíveis, aquelas que foram idealizadas pelo artista.

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Valéria Vidal em cena do filme A margem (1967), de Ozualdo Candeias. Acervo Heco Produções

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Cena de Memórias do cárcere (1984), de Nelson Pereira dos Santos, transposição para as telas do livro póstumo de Graciliano Ramos. Folheto Riofilme. Biblioteca do Arquivo Nacional.

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Tania Nunes Davi Doutora em História pela Universidade Federal de Uberlândia e professora da Fundação Carmelitana Mário Palmério (Fucamp/Facihus), Monte Carmelo (MG). Autora de Subterrâneos do autoritarismo em “Memórias do cárcere” de Graciliano Ramos e Nelson Pereira dos Santos (Edufu, 2007).

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nas representações de Nelson Pereira dos Santos e Graciliano Ramos

Nelson Pereira dos Santos é carregado pela equipe em comemoração ao término das filmagens de Memórias do cárcere (lançado em 1984). Folheto Riofilme. Biblioteca do Arquivo Nacional

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Introdução Literatura, cinema e história dialogam desde o surgimento do cinema como forma de expressão artística. Adaptar a linguagem literária para o cinema faz parte da complexa relação entre esses gêneros, produzindo representações tanto da narrativa literária como da sociedade e do tempo no qual o filme foi produzido e recepcionado. Nosso intuito, com este artigo, é apresentar o diálogo entre a literatura de Graciliano Ramos e o cinema de Nelson Pereira dos Santos por meio das obras Vidas secas e Memórias do cárcere, percebendo como ambos fazem representações do momento histórico e cultural em que foram produzidas, levando ao público reflexões sobre o Brasil do século XX. Os livros foram publicados pela primeira vez, respectivamente, em 1938 e 1954; já os filmes foram lançados originalmente em 1963 e 1984. Os dois filmes, juntamente com São Bernardo (dirigido por Leon Hirszman, em 1971), foram, em 2013, remasterizados e relançados em um box, no formato DVD, o que facilita o acesso do público. Nelson Pereira dos Santos (1928-) é um dos diretores mais consagrados no Brasil e no exterior, sendo o primeiro cineasta membro da Academia Brasileira de Letras. Sua filmografia é premiada e admirada internacionalmente. Reconhecimento que também tem a literatura de Graciliano Ramos (1892-1953), um dos escritores brasileiros mais traduzidos. O que diretor e escritor têm em comum é seu respeito pelo público, alguns posicionamentos políticos e a forma realista de representar a sociedade sem esconder ou dourar suas mazelas. A literatura desenvolve formas de construir ou reconstruir acontecimentos históricos, formas de pensar, sensibilidades, projetos, visões de mundo

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Graciliano Ramos. Correio da Manhã

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que o fazer histórico nem sempre consegue alcançar por meio dos documentos disponíveis sobre um determinado período ou situação. A liberdade criativa da literatura pode reconstruir o vivido e indicar pistas ao historiador para que ele se aproxime do passado captando as motivações e o imaginário de homens de outras épocas. O cinema também se utiliza dessa imaginação criadora, faz parte do imaginário coletivo e como tal deve ser tratado pela história, como uma fonte privilegiada para captar as representações construídas pelos sujeitos históricos sobre a sociedade em que vivem. Um filme é uma das instâncias utilizadas pelos poderes para criar, divulgar e legitimar determinados imaginários sociais e memórias coletivas por meio de representações que, ao serem ou não decodificadas pelos espectadores, permitem-lhes tecer suas leituras das ideias veiculadas. O uso do cinema como forma de divulgar determinados ideais hegemônicos não impede que ele seja utilizado como uma forma de contestação, de levar ao público propostas novas, visões dissonantes da sociedade ou projetos de categorias ou grupos sociais não hegemônicos. Mas também devemos ter em mente que o cinema é uma indústria e, como tal, desde o seu nascimento esteve atrelado aos grupos detentores dos bens simbólicos e/ou econômicos, veiculando assim os seus interesses. Um ponto de confluência entre a narração literária e a historiografia é que ambas procuram desenvolver discursos sobre o passado, construindo pontes entre o hoje e o ontem por meio de questionamentos e organização de uma realidade que seja coerente a partir dos fatos remanescentes do passado. A literatura lida com esses fatos por meio da subjetividade, do imaginário, das possibilidades; a história precisa controlar esses fatores para pro-

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duzir saberes e conhecimentos sobre o passado. A presença da subjetividade na literatura não a inviabiliza como fonte documental pela história, visto que a própria história já admite que os documentos são permeados por subjetividade, pois foram produzidos por homens com interesses próprios. Outro ponto em comum entre história, literatura e cinema é a captação, seleção, simplificação e organização do fator tempo. Eles o reinventam, ao fazer com que grandes períodos sejam explicados em uma página (história e literatura) ou se desenvolvam em poucas imagens (cinema), ou ao elevar um acontecimento insignificante ao patamar de grande marco histórico. Vidas secas e o Brasil esquecido do sertão O livro Vidas secas, publicado em 1938, não surgiu como um romance, mas na forma de contos vendidos a jornais nacionais e estrangeiros, permitindo que Graciliano Ramos sobrevivesse após os meses que passou preso em 1936-1937. Para o autor, o livro era honesto com a realidade do nordestino, não a enfeitava com cores que não existiam. Em carta a Portinari, ele assim se expressou sobre a necessidade de mostrar a realidade da dor sem disfarces: “Numa vida tranquila e feliz que espécie de arte surgiria? Chego a pensar que teríamos cromos, anjinhos cor de rosa, e isto me horroriza”. E logo acrescentou: “Felizmente a dor existirá sempre, a nossa velha amiga, nada a suprimirá. E seríamos ingratos se desejássemos a supressão dela, não lhe parece?”1

Vidas secas não escamoteia a dor, nem a realidade, e acabou sendo a última obra de Graciliano Ramos que podemos classificar de romance, pois depois dela o escritor voltou-se para os relatos memorialistas. Nele, temos uma família de retirantes, Sinhá Vitória (a mãe), Fabiano (o pai), o filho menor, o filho maior e seus animais (a cachorra Baleia, o papagaio), tangidos pela seca nordestina, sem perspectivas de uma vida melhor para seus membros, vivendo conforme o ciclo da natureza e seguindo os passos de seus antepassados. Foi a partir desses personagens, inseridos em uma geografia e sociedade que os silenciava, os (res)secava e os transformava em apenas mais um componente da paisagem, que Nelson Pereira dos Santos construiu seu roteiro e filmou Vidas secas. Filme que não foi seu primeiro, mas mostrou ao mundo um cineasta cuja forma estética e política estava amadurecendo. O roteiro de Vidas secas é muito fiel ao livro, mas existem diferenças entre o filme e o livro, alterações necessárias à adaptação de uma linguagem para outra, pois um signo visual apresenta algumas diferenças de um signo escrito. Apesar de afirmar que respeitou o texto, Nelson Pereira dos Santos não abriu mão da sua liberdade criativa para produzir Vidas secas, tanto que não seguiu a ordem de alguns dos capítulos na transposição, nem escolheu os atores principais de acordo com a descrição do escritor. O cineasta começou o processo de roteirização em 1958, e partiu para o Nordeste para produzi-lo em 1959, mas o tempo não colaborou com a filmagem – choveu muito, a

1 MERCADANTE, Paulo. Graciliano Ramos: o manifesto do trágico. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994. p. 83.

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paisagem ficou toda florida e verde, nada condizente com o sertão descrito por Graciliano Ramos – então, para aproveitar verbas e pessoal, filmou Mandacaru vermelho (lançado em 1961, no qual até o diretor fez um papel como ator). Entre 1960 e 1961, formou uma equipe, procurou locações em Alagoas e começou a rodar Vidas secas em 1962. Vidas secas foi filmado em preto e branco, assim como todos os filmes de Nelson Pereira até a década de 1970. Filmar em preto e branco na época estava ligado aos poucos recursos financeiros e ao difícil acesso a uma matriz colorida, mas hoje, ao vermos o filme, ficamos com a impressão de que ele é um documentário. Isso porque a utilização da película preto e branco está vinculada a uma estética cinematográfica que remete ao documentário e a uma suposta apresentação da realidade tal qual ela aparece. Vidas secas não é um documentário, mas expõe uma situação social ainda presente no interior do Brasil. A trilha sonora do filme resume-se ao lamento de um carro de boi que inicia e finaliza a história, seguindo os retirantes que caminham para a câmera nas tomadas iniciais de sua jornada e se afastam dela no final/início de mais uma caminhada forçada pela seca. Nesse sentido, o diretor respeitou uma das características mais marcantes em Graciliano Ramos – a secura no escrever e a sua pouca familiaridade com a música.

A narrativa é expressa por uma câmera intimista, utilizando poucos travellings, plongés ou angulações incomuns. A imagem captada é direta, seca, caminha com a família de Fabiano como se fizesse parte dela. Os planos do filme tendem a ser médios ou americanos, sendo os planos gerais importantes para mostrar o homem em sua relação com a natureza, a sua pequenez frente a uma paisagem não acolhedora. Já os fechados são utilizados em momentos de intensidade, como a morte da Baleia. A câmera é o narrador da história e, assim como o narrador do livro, ela não nos adianta nada, apenas segue os personagens, ora como seus olhos, ora por trás deles, como se apenas mirasse os acontecimentos, sem julgá-los, explorando a paisagem nordestina.

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Fotogramas de Vidas secas. Acervo Regina Filmes. Arquivo Nacional

Ao roteirizar, produzir e lançar Vidas secas no início da década de 1960, Nelson Pereira estava dialogando não apenas com Graciliano Ramos, mas com a sociedade brasileira de então. Ele assim se expressou sobre esse tema: “Na época em que fiz Vidas secas, não havia nenhuma produção acadêmica que colocasse tão claramente a questão da população nordestina, nada tão forte e direto”.2 Helena Salem ainda acrescenta a esse depoimento sua impressão pessoal sobre o assunto: “E no cinema, talvez nem mesmo até hoje tenha se conseguido abordar, com tamanha radicalidade, o problema da seca no Nordeste, da concentração da terra e das relações de poder no campo brasileiro”.3 Estes assuntos estavam na pauta de discussões da sociedade brasileira

2 SALEM, Helena. Nelson Pereira dos Santos: o sonho possível do cinema nacional. Rio de Janeiro: Record, 1996. p. 189. 3 Ibidem, p. 183.

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e foram silenciados pelo golpe militar de 1964, mas aparecem no filme e se mantêm como temas atuais. Fabiano (interpretado por Átila Iório) vive a situação de milhares de nordestinos que são obrigados a se mudar periodicamente, não têm estudo, nem perspectivas de melhorias para si ou seus filhos. Seres esquecidos pelas autoridades de um país que só se recorda da região para criar planos emergenciais mirabolantes que privilegiam os políticos, os proprietários e os corruptos. Além de ser tangido pela natureza, Fabiano era coagido pelo patrão, que roubava nas contas, pelo governo, que cobrava impostos sem dar retorno, e pela polícia, que batia e prendia sem motivo. O patrão dava-lhe descomposturas aos berros. E Fabiano pensava que “descompunha porque podia descompor [...]. Sempre fora assim”.4 As contas do amo diferiam das de Sinhá Vitória (interpretada por Maria Ribeiro) e Fabiano sabia-se roubado, mas “baixava” a pancada e emudecia, e se questionava: “Estava aquilo direito? Trabalhar como negro e nunca arranjar carta de alforria!”5 Um questionamento que não o levava à ação, mas apenas à certeza de ser explorado. Por sua vez, o episódio da sua prisão pelo soldado amarelo é muito similar à de Graciliano Ramos, que não chegou a apanhar de tacão, porém passou meses preso sem justificativa oficial. O mais interessante é que Fabiano achava que “apanhar do governo não é desfeita”6 e, apesar de não se convencer de que o soldado amarelo era governo, não se rebelou, não entrou para o cangaço, não matou o soldado amarelo quando teve chance, apenas apanhou, remoeu a desfeita e continuou a vida. Um personagem nada condizente com o herói proletário pregado pelos partidos comunistas do mundo todo. Fabiano não era revolucionário, não tinha consciência plena da exploração vivida e não chegou a esboçar reação aos desmandos do patrão ou do governo, era apenas mais um bicho sem estudo, sem fala, sem ação.

No final de Vidas secas, assim como no início, fugindo de mais um período de seca, a família de Fabiano sonhava em ir para o sul. Tal qual Fabiano, milhares de trabalhadores rurais no Brasil viveram sob o jugo dos latifundiários sem se dar conta de seus direitos. E quando, nas décadas de 1950-60, começaram a lutar pelos seus direitos, foram interrompidos em seus projetos pelo golpe de 1964. O círculo vicioso no qual vivia Fabiano não foi quebrado no livro, nem no filme. Ao contrário, foi reforçado pela figura dos meninos que queriam ser como o pai. Para se parecer com Fabiano, agiam como ele (os meninos conduziam os cabritos, aboiando, andavam como o pai, falavam pouco, não tinham perspectivas de um futuro que não fosse ser vaqueiro). O menino mais novo olhava para Fabiano com admiração, anda atrás dele imitando-o e, apesar de não falar nada, deixava perceber seus desejos. O menino mais velho também já seguia os caminhos do pai. Quem tinha planos para o futuro dos filhos era Sinhá Vitória: ela pensava que era preciso mudar, ser gente, não continuar fugindo, mas encontrar um lugar no qual os meninos pudessem estudar, crescer e melhorar sua condição financeira. Sinhá Vitória assim se expressou: “Mas quem é que vai andá sempre escundido no mato que nem bicho? Um dia temo que virá gente, pudemo continuá vivendo que nem bicho, escundido no mato, pudemo?” E Fabiano retrucou: “Pudemo não.” Ela e Fabiano não sabiam como seria esse lugar nem onde, mas o vislumbravam como “uma cidade grande, cheia de pessoas fortes. Os meninos em escolas, aprendendo coisas difíceis e necessárias. Eles dois velhinhos, acabando-se como uns cachorros, inúteis, acabando-se como Baleia”.7 Uma tênue esperança de mudar seu destino e o dos meninos, mas na cena final (na qual eles caminham para longe da câmera) o que vemos é a frase desconcertante e fatal: “E o sertão continuaria a mandar gente para lá. O sertão mandaria para a cidade homens fortes, brutos, como Fabiano, Sinhá Vitória e os dois meninos”.8 Poderia

4 RAMOS, Graciliano. Vidas secas. Rio de Janeiro: Record, 2006. p. 23. 5 Ibidem, p. 94. 6 Ibidem, p. 33. 7 Ibidem, p. 127-128. 8 Ibidem, p. 128.

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ser uma cena de afirmação de um futuro melhor, contudo ela nos remete a uma nova subserviência, uma vida que não tem nada de novo, num horizonte sem fim a engolir os personagens em vez de dar-lhes perspectivas melhores. Se fizermos a ponte entre a narrativa do filme e a sociedade brasileira da década de 1960 e além, só podemos visualizar um destino para os personagens (reais ou fictícios): migrarem para uma cidade, deixarem tudo que conheciam para trás, sua cultura, suas crenças, seus saberes, e se tornarem retirantes da seca, trabalhando em subempregos, ganhando pouco e sem terra para poderem plantar ou criar para a sua subsistência. Personagens que engrossariam a massa de trabalhadores alijados de seus direitos, vivendo precariamente nas periferias das cidades e ainda sem seus direitos mais básicos respeitados e atendidos pela sociedade. Memórias do cárcere e os porões do autoritarismo O Brasil do início da década de 1980 era um país sob o governo dos militares. Estes haviam perseguido e debelado a esquerda subversiva na década anterior, censurando, prendendo, deportando e desaparecendo com inúmeros brasileiros que ousaram levantar-se contra a violência, a repressão e a sua política de modernização conservadora. Militantes da esquerda, professores universitários, estudantes, artistas e políticos só puderam retornar ao Brasil depois da Anistia de 1979, e encontraram o país descobrindo que o preço social e político do milagre econômico era muito alto: a inflação enorme, os trabalhadores desempregados, os principais centros econômicos do sudeste sofrendo as consequências do êxodo rural, os salários baixos, o custo de vida astronômico, as desigualdades econômicas alarmantes, a emergência de uma indústria cultural voltada, principalmente, para a comunicação de massa via televisão e um regime militar que não conseguia controlar inteiramente as ações da linha dura e começava a perceber já ter chegado a hora de retirar-se do cenário político.

dos Santos começou a roteirizar o livro Memórias do cárcere. Esta obra autobiográfica de Graciliano Ramos narra o período em que ele ficou preso após a Intentona Comunista de 1935, contra o governo Vargas. O escritor foi preso em sua casa em Alagoas, em março de 1936, passou por várias prisões até chegar ao Rio de Janeiro e ser libertado em janeiro de 1937. O livro foi publicado após a morte de Graciliano Ramos e não passou pelo crivo de uma leitura e modificação final por parte do autor. Durante o tempo em que ficou preso, Graciliano Ramos não foi indiciado, interrogado ou recebeu qualquer explicação que indicasse o motivo exato de sua prisão. A situação do escritor não foi diferente da de centenas de outros presos políticos, encarcerados nas prisões do governo Vargas, no período anterior ao Estado Novo. Após a Intentona Comunista de 1935, o governo promoveu uma feroz repressão aos comunistas, identificados como um dos maiores problemas do Brasil. A polícia política de Getúlio podia prender e interrogar suspeitos de comunismo sem que estes tivessem sido formalmente indiciados ou mantê-los na prisão, mesmo quando já tinham cumprido as penas determinadas pela justiça. Graciliano Ramos não era membro do Partido Comunista (só entrou para o Partido em 1945), mas era abertamente simpatizante dos ideais comunistas e isso já era motivo mais que suficiente para ser preso.

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Maria Ribeiro e Átila Iório em Vidas secas (1963). Regina Filmes

Nelson Pereira, ao levar às telas a condição humana dos presos políticos brasileiros durante o Estado Novo, estava contando para o mundo a

Foi neste contexto sociopolítico e cultural de abertura, incertezas e desejos de redemocratização que Nelson Pereira

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Carlos Vereza (ao centro) interpretou Graciliano Ramos no filme Memórias do cárcere (1964). Folheto Riofilme. Biblioteca do Arquivo Nacional

história dos governos autoritários do Brasil, posicionando-se contra o arbítrio, a violência, a censura e a desumanização promovidas pelo governo de Getúlio e dos militares do pós-64. Partindo do texto de Graciliano Ramos, o cineasta levou dois anos para fazer a adaptação da linguagem literária para a fílmica. Neste período, fundiu os 237 personagens originais em 120, alterou nomes e a ordem cronológica dos acontecimentos, produzindo três roteiros diferentes. Durante as filmagens, apenas um, com cerca de trezentas páginas datilografadas, foi passado aos atores. Memórias do cárcere – o filme – não possui grandes efeitos de iluminação e de câmera. A câmera de Nelson é intimista, segue Graciliano Ramos (interpretado por Carlos Vereza), às vezes posicionandose atrás do escritor e em outras atuando como seus olhos, observando, captando a realidade caótica à sua volta. Essa estratégia de posicionamento da câmera pode ser captada em diversas sequências. Uma das mais explícitas é formada pelos planos da chegada de Graciliano na Colônia Correcional de Dois Rios, na Ilha Grande, Rio de Janeiro, em que a câmera porta-se como o olho do escritor, a tudo observando. Outro componente da produção do filme é a trilha sonora. Memórias não possui temas musicais para cada personagem ou situação, pois o diretor

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optou por utilizar apenas a Marcha solemne brasileira, uma fantasia retumbante para piano, orquestra e canhão composta a partir do Hino Nacional por Louis Moreau Gottschalk, em 1869. A composição ressalta os momentos marcantes do filme − as transferências de prisão. Essa estratégia ajuda a dividir o filme em quatro momentos básicos: Maceió, o porão do Manaus, o Pavilhão dos Primários e a Colônia Correcional. As outras músicas do filme foram cantadas pelos personagens, sendo trechos de canções populares satirizadas ou parodiadas, o Hino Nacional e o Hino da Proclamação da República. Nelson Pereira fez uma leitura muito própria a partir do testemunho de Graciliano Ramos, mostrando o Brasil das prisões, uma sociedade polifônica, com categorias sociais (intelectuais, militares, operários, nordestinos, negros, ladrões, assassinos, homossexuais, mulheres etc.) batendo-se a favor dos seus projetos e visões de mundo, mesmo quando estão encarceradas, silenciadas, reprimidas e tolhidas pela desumanidade das instituições carcerárias, seja em 1930 ou no pós-1964. Outro tema do filme é o ato de escrever. Em inúmeras cenas, Graciliano Ramos é mostrado fumando e escrevendo, este gesto solitário é ressaltado ao longo do filme. Na colônia todos querem participar do futuro livro, figurando nas eternas anotações do escritor, contando-lhe suas histórias. O interesse

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dos companheiros pelo seu relato atinge o clímax na cena em que os presos escondem em seus corpos o manuscrito de Ramos, a fim de que este não seja confiscado pela repressão. A cena da defesa conjunta do manuscrito é das mais significativas e líricas do filme. Nela, as diferenças de ideologia, de condições sociais e econômicas perdem sua importância frente à necessidade de manter viva a memória dos encarcerados. Uma memória que de outra maneira seria silenciada pelas representações oficiais promovidas e difundidas por ambos os governos autoritários. Deixar um testemunho por meio do futuro livro era uma forma de fazer falar os acontecimentos, os sofrimentos e os momentos de solidariedade pelos quais os presos políticos e comuns passaram dentro das prisões. Era mostrar aos regimes que, apesar do alto preço pago por professar ideias diferentes da governamental, eles não poderiam silenciar para sempre os ideais de liberdade e o desejo de um país social e economicamente mais justo. De certa forma, essa cena une os dois níveis de leitura propostos pelo cineasta na medida em que tanto as representações sobre os significados políticos dos cárceres quanto o significado do ato de escrever estão presentes, emaranhados e interligados nas imagens tecidas por Nelson Pereira dos Santos. Imagens que não correspondem à narrativa de Graciliano, mas têm uma força muito grande dentro do enredo do filme. O cineasta, possivelmente, construiu sua leitura em dois níveis a partir de uma observação de Graciliano Ramos presente no livro: “Liberdade completa ninguém desfruta: começamos oprimidos pela sintaxe e acabamos às voltas com a Delegacia de Ordem Política e Social, mas, nos estreitos limites a que nos coagem a gramática e a lei, ainda nos podemos mexer.”9 Dualidade expressa também no cartaz original de divulgação do filme, no qual o ator Carlos Vereza aparece, ao fundo, caracterizado de Graciliano em sua estada na Colônia: barbado, cabeça raspada, olhar melancólico e tendo, no primeiro plano, três lápis expostos de modo a representarem às barras de uma prisão. Uma prisão que pode ser a real pela qual o escritor passou ou a

imaginária da escritura e da gramática em um filme cujo subtítulo é “uma história de amor à liberdade”.

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Tendo em mente o desejo geral dos brasileiros de alcançarem a liberdade após vinte anos de governos militares, o cineasta optou por construir um final no qual Graciliano deixaria a Colônia Correcional de Dois Rios rumo à liberdade. Uma cena que emociona o espectador pela sua beleza, simplicidade e significados. Nela, um homem alquebrado, doente, cabeça raspada, após despedir-se dos companheiros, cruza o portão da Colônia e, num gesto expansivo, alegre e pouco comum à sua personalidade, joga para o alto o chapéu de palha (seu companheiro desde Alagoas) e este se transforma em uma gaivota (símbolo de liberdade e luz) voando em direção ao barco que o levará para a alforria. Ao fundo ressoa os acordes da Marcha solemne brasileira e o barco se afasta da ilha até o congelamento da cena. Essa imagem congelada expressa uma atitude temporária de Graciliano Ramos e do Brasil, ambos ficaram em repouso, quietos, paralisados por um longo período, frente aos empecilhos e espectros que os atordoaram, mas ao fim desse repouso eles vão ressuscitando. Enquanto Graciliano entrou a escrever sobre as asperezas da qual a vida é feita, denunciando o arbítrio, a despersonalização e a degradação vivida nos porões do governo Vargas, o Brasil se pôs a trabalhar para que os governos militares chegassem ao término, para não vivermos mais a censura, a tortura, a arbitrariedade, a fim de podermos expressar nossas posições, nossas ideias diferentes em um país onde os direitos políticos, individuais e coletivos fossem respeitados. O procedimento de libertar Graciliano Ramos no final do filme levou à alteração de algumas passagens que foram alocadas antes da saída da Colônia. Episódios que no livro são posteriores, como a estadia do escritor na enfermaria, a extradição de Olga Benário e Elisa Berger para a Alemanha, a festa de lançamento do livro Angústia e o encontro com o advogado Sobral Pinto, foram remanejados para antes da Colônia de modo que, ao término do

9 RAMOS, Graciliano. Memórias do cárcere. 32. ed. Rio de Janeiro: Record, 1996. v. II, p. 160.

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filme, o espectador tivesse a certeza da libertação do escritor. Como ele não chegou a escrever sobre sua libertação, essas modificações não alteraram o sentido geral do livro. Outra alteração de monta foi a mudança do nome de vários indivíduos e a fusão de personalidades e ações em um único personagem. A mudança nos nomes talvez se devesse ao fato de que alguns ainda estavam vivos no momento do lançamento do filme (Sobral Pinto, capitão Lobo, Nise da Silveira, Beatriz Bandeira, Prestes, Rodolfo Ghioldi) e poderiam ser contrários à representação de suas personalidades no filme. Daí Nelson manter apenas os nomes de alguns personagens históricos mais conhecidos, como Olga Benário Prestes, Luís Carlos Prestes (somente citado, como no livro), Sobral Pinto, Heloísa Ramos (esposa do escritor, interpretada por Glória Pires) e o próprio Graciliano. Aos outros renomeou e fundiu, como no caso do capitão Mata, companheiro de Ramos na primeira parte de sua prisão, chamado no filme de capitão Mota. Já o personagem Mário Pinto, do filme, funde ações de Paulo Paiva e de outros personagens do livro e, ainda, o personagem anspeçada Aguiar, na qual se fundiram as ações do tenente Bicicleta, do guarda Alfeu e do anspeçada Aguiar, todos da Colônia Correcional. Segundo o cineasta, era impossível encaixar todos os personagens de Ramos no filme, por isso escolheu alguns e promoveu a sua fusão com outros. Para citar mais uma mudança significativa, poderíamos partir do posicionamento das mulheres da Sala 4, ala feminina da Casa de Correção no Rio de Janeiro. O cineasta (res)significou a narrativa de Ramos, procurando construir pontes entre o livro de 1953 e a realidade do Brasil da década de 1980. Para isso, era necessário apresentar algumas posturas, falas e ações que levassem o público a encontrar pontos de identificação com a história do filme, para além do tema básico da repressão e da prisão. Isso foi alcançado por meio de várias analogias, metáforas claras ou sutis a serem decifradas pelo espectador ao longo do filme. No caso

das mulheres da Sala 4, Nelson as representou de uma maneira mais solta, alegre e descontraída do que no livro, ressaltando a liberação feminina da década de 1980 com sua gênese na década de 1930. Talvez a maior mudança tenha sido a suavização de algumas questões relativas aos militares. Em 1983 (ano da produção do filme), os militares ainda estavam no poder e poderiam censurar o filme, impedindo-o de ser exibido ao público. O cineasta não se utilizou das construções mais virulentas de Graciliano Ramos acerca da categoria militar, como chamá-los de “energúmenos microcéfalos vestidos de verde”10 ou mostrar diretamente as torturas nas prisões. Apesar disso, Nelson Pereira dos Santos mostrou a realidade violenta das prisões, construindo cenas em que os desmandos dos militares e a sua pouca aceitação dos civis estão bem exemplificadas. Edificou as cenas que apontavam para a violência das prisões sem banalizar o sofrimento dos encarcerados. Algumas dessas cenas são sutis, como mostrar os pés machucados de Sérgio; numa rápida passagem, o rosto enfaixado de um dos envolvidos com a Intentona ou os presos doentes e magros da Colônia Correcional. Outras são mais diretas, como o espancamento de um preso pelo anspeçada Aguiar ou o seu discurso fascista comunicando aos presos que todos iam para a Colônia para morrer. Não mencionamos essas modificações para classificar o filme como mais ou menos fiel ao livro, numa atitude purista que não é do interesse de nenhum pesquisador, e sim para captarmos algumas diferenças entre livro e filme. As modificações são decorrentes do processo de adaptação, do contexto sociocultural da produção de Memórias do cárcere – o filme –, e estão inseridas na parcela de liberdade criativa que todo cineasta tem ao transpor uma obra literária para as telas. Todas essas e outras liberdades tomadas por Nelson Pereira dos Santos não são um desrespeito ao texto de Graciliano Ramos, mas expressam a leitura feita pelo cineasta das representações do escritor. Uma leitura que, em determinados momentos, procura até camuflar suas interferências e adições como no episódio da transferência do

10 Ibidem, p. 51.

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capitão Mota do Pavilhão dos Primários para uma possível libertação. Quando estava se preparando para sair, ele declamou um poema subversivo de sua autoria. Graciliano não registrou todo o poema, por ter se esquecido de algumas partes.11 Nelson, respeitando o esquecimento do escritor, utilizou um áudio extremamente baixo nas partes adicionadas, como se assim pudesse suprimir seus acréscimos ao testemunho de Ramos. Considerações finais

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Por sua vez, Vidas secas recorda-nos de um Brasil rural, ligado à geografia da seca e que, mesmo no século XXI, não tem políticas públicas efetivas que mantenham o sertanejo em suas terras, que promovam uma ocupação responsável e sustentável do sertão e que permitam que as famílias do semiárido possam ter perspectivas melhores de futuro para si e para seus filhos. Logo, literatura, cinema e história devem manter um diálogo profundo, contínuo e profícuo entre si, permitindo que o leitor/espectador acesse representações outras que não as oficiais sobre temas e épocas diferentes da atual e reflita sobre outras possibilidades e projetos que poderiam ter sido concretizados, mas que foram silenciados pela sociedade ou pela conjuntura histórica.

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O diálogo entre literatura, cinema e história a partir das obras de Graciliano Ramos e Nelson Pereira dos Santos é rico em possibilidades interpretativas e apontam para a coragem dos seus criadores em levantar temas polêmicos e levá-los aos leitores e espectadores. Mesmo hoje, trinta anos depois do lançamento de Memórias do cárcere, o filme ainda é um relato comovente e lírico sobre os desmandos e a violência dos regimes autoritários de Getúlio Vargas e do pós-64. Ainda nos comove e incomoda com as cenas e as situações vividas por um escritor que percorre as prisões de Alagoas até o Rio de Janeiro, sem ser interrogado, indiciado ou

informado sobre os motivos da sua prisão – ou seja, um cidadão sem direitos, que não existia para o sistema e que, assim como tantos outros nesses dois períodos, poderia ter desaparecido nas prisões do governo. Fato que só não aconteceu porque vários intelectuais fizeram um movimento pela libertação de Graciliano Ramos.

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Vista da Colônia Correcional de Dois Rios, na Ilha Grande, RJ, onde Graciliano ficou preso entre 1936-37, durante a ditadura Vargas. Correio da Manhã

11 Ibidem, p. 226.

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Isabel Ribeiro e Nildo Parente contracenam em Asyllo muito louco (1970), dirigidos por Nelson Pereira dos Santos. Filme baseado em O alienista, de Machado de Assis. Correio da Manh達

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Claudio Novaes Doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo e pós-doutor pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor da Universidade Estadual de Feira de Santana e pesquisador dos programas de pós-graduação em Estudos Literários e Desenho, Cultura e Interatividade. Coordenador do Núcleo de Estudos em Literatura e Cinema da UEFS. Autor de Aspectos críticos da literatura e do cinema na obra de Olney São Paulo (Quarteto, 2011) e organizador de Cinco vezes sertão: literatura, cinema e outras escrituras (Quarteto, 2012), entre outros livros.

Grito da terra:

ética e estética da adaptação em Olney São Paulo

Olney e Helena Inês GritoDaTerra_03

Olney São Paulo e Helena Ignez nas filmagens de Grito da terra (1964). Hamaca Filmes

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Fotograma de O profeta de Feira de Santana (1970). Acervo Olney São Paulo – Fundo Cinemateca do MAM-RJ. Arquivo Nacional

No início da década de 1960, Olney Alberto São Paulo associou-se ao escritor Ciro de Carvalho Leite para fundar a Santana Filmes S/A, empresa responsável pelo filme adaptado do romance Grito da terra (1964).1 A relação entre cinema e literatura é constante na vida desse cineasta do interior baiano, transitando com sua obra pelas tensões éticas e estéticas da política e da cultura brasileiras, num período histórico de intensas ações ideológicas dos intelectuais, que desvelam os conflitos da formação nacional e redefinem o imaginário cinematográfico moderno brasileiro em confluência com o que Andre Bazin chama de “cinema total”, ao analisar o impacto cinematográfico neorrealista no mundo. O cinema torna-se uma linguagem que espelha os aparatos tecnológicos e os modelos narrativos de outras artes, como a literatura. Para o crítico francês, essa arte resultante das invenções técnicas era essencialmente o produto de um olhar ideológico, pois, segundo ele, “o cinema é um fenômeno idealista”.2 Essa afirmativa de Bazin serve para desvelar a vida e a obra de Olney São Paulo, que viveu e morreu do/para e pelo cinema, como ele mesmo afirma várias vezes em seus relatos pessoais. Antes de filmar Grito da terra, Olney já havia dedicado momentos iniciais de sua vida cinematográfica em Feira de Santana, na Bahia, a outros projetos de filmes com orientação histórica e literária pautados em temas do realismo sertanejo e urbano em diálogo com os escritores modernistas, mas todos esses projetos fracassaram por falta de

recursos. Alguns deles se deslocaram para seus textos literários e cinematográficos, após a mudança para o Rio de Janeiro, em meados dos anos 1960. Em terras cariocas, o sertanejo peleja pela continuidade da carreira intelectual, seja como cineasta, seja como literato. Publica o livro A antevéspera e o canto do sol, em 1969, mesmo ano em que adaptou para o cinema a novela Manhã cinzenta, escrita em 1966, e presente na primeira parte dessa coletânea, chamada de A antevéspera. Desse texto literário nasceu o filme homônimo, obra mais conhecida de Olney por causa das implicações com censura, que resultou no processo movido pela ditadura e o levou à prisão, acelerando a sua morte precoce. A estrutura dramática do texto e as claras marcações cinematográficas das imagens do conto o remetem a roteiro fílmico implícito, o que permite a leitura da obra de Olney São Paulo, seja a literária ou a cinematográfica, como um hibridismo entre a forma objetiva da câmera narrar o real sem retoques e a subjetividade do discurso subliminar ao texto que desvela o cineasta-escritor experimentalista em diálogo com tendências europeias de vanguarda, como intelectual munido de sua câmera-caneta que revela modos alternativos de produção de sentidos verbais e visuais. Essa sensação plástica do espelhamento de sentidos no texto literário-cinematográfico pode ser compreendida na análise de André Soares Vieira sobre a “escritura visual”. Segundo ele: No que diz respeito especificamente ao ato de contar um filme, seja em um roteiro, cine-roman ou romance-roteiro, não se trata apenas de uma

1 LEITE, Ciro de Carvalho. Grito da terra – caatinga. Rio de Janeiro: Lux, 1964. 2 BAZIN, André. O que é o cinema? Trad. Ana Moura. Lisboa: Horizonte, 1992. Col. Horizonte do Cinema. p. 22.

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Grito da terra: ética e estética da adaptação em Olney São Paulo

Cenas do filme Grito da Terra. Hamaca filmes

pesquisa sobre a escritura fundada na imitação, mas da capacidade do texto em fazer com que incumba ao leitor o trabalho de produção de sentido e de apropriação de uma obra.3

A especificidade ética e estética da obra de Olney São Paulo, atribuindo sentidos literários e cinematográficos ao texto, está presente desde o seu primeiro longa-metragem, Grito da terra, que é reescritura fílmica do romance de Ciro de Carvalho Leite, publicado simultaneamente à adaptação no cinema. Antes deste primeiro filme, Olney já havia protagonizado importantes episódios cinematográficos não realizados. Um deles foi o projeto de filmar o mito popular regional do salteador Lucas de Feira, que o cineasta desejava levar ao cinema contando a história do negro Lucas Evangelista dos Santos, “um misto de herói e bandido”.4 Esse personagem histórico e da literatura lendária viveu na região de Feira de Santana no século XIX e tornou-se famoso por cometer crimes e assaltos, além de

pregar o fim da escravidão. Lucas já era presença forte no imaginário da literatura popular consumida por Olney, por isto os preparativos para a produção do filme aparecem com frequência na imprensa baiana, o que criou muitas expectativas em relação ao resultado da obra. Mas o projeto foi abortado devido à falta recursos. Outro caso de insucesso precoce de Olney foi a tentativa de filmar o roteiro de O nordestino: longametragem, com três episódios inspirados na literatura regionalista. A primeira parte, denominada Cangaço, seria dirigida por José Teles; a segunda, Santa Brígida, seria realizada por Olney; e a última seria a finalização das filmagens já realizadas pelo cineasta Oscar Santana. O enredo completo desse filme contaria o cotidiano de um vaqueiro, a ser filmado no formato de curta-metragem, em 35 mm, porém, os problemas nas filmagens impediram a concretização do projeto. No entanto, estruturas narrativas e personagens do roteiro reaparecem na forma dos contos da segunda parte do livro publicado por Olney, denominada de Canto do Sol.

3 VIEIRA, André Soares. Escritura do visual: o cinema no romance. Santa Maria: Ed. UFSM, 2007. p. 99. 4 JOSÉ, Ângela. Olney São Paulo e a peleja do cinema sertanejo. Rio de Janeiro: Quartet, 1999. p. 60.

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Grito da terra será efetivamente a primeira realização em longa metragem do cineasta baiano de Riachão do Jacuípe. Filme orçado inicialmente em 15 milhões de cruzeiros, mas que custou ao final 30 milhões. O financiamento foi responsabilidade do escritor Ciro de Carvalho, que assumia a condição de produtor, arrecadando parte do dinheiro junto ao Banco Econômico, para iniciar as filmagens em outubro de 1963. O filme tem locações na comunidade rural de Bonfim de Feira, hoje distrito da cidade de Feira de Santana, exatamente em terras de uma antiga fazenda denominada de Bonsucesso, cujo proprietário era primo do autor do romance adaptado e produtor. A Santana Filmes S.A. se associou à produtora Saci Empreendimentos e Planejamentos S.A. para a realização de Grito da terra, contratando o elenco de atores e atrizes conhecidos do público cinematográfico à época, principalmente por atuação em obras do Cinema Novo: Lucy Carvalho, que atuou em Barravento (1963), de Glauber Rocha; Os cafajestes (1963), de Ruy Guerra; Tocaia no asfalto (1962) e A grande feira (1961), de Roberto Pires; e em Sol sobre a lama (1962), de Alex Viany; Lídio Silva, que já atuara em dois longas-metragens de Glauber Rocha, Barravento (1963) e Deus e o diabo na terra do Sol (1964). João de Sordi trabalhou com Olney em O caipora (1964), de Oscar Santana, e em O pagador de promessas (1962), de Anselmo Duarte. Também atua em Grito da terra Helena Ignez, atriz de destaque em filmes como Pátio (1959), estreia de Glauber Rocha no cinema; Assalto ao trem pagador (1963) e A grande feira (1961), ambos sob a direção de Roberto Pires. O elenco do filme de Olney São Paulo conta ainda com Raimundo Figueiredo, estreante no cinema e estudante de teatro na Universidade da Bahia, além de Branca Drugolensky, esposa de Ciro de Carvalho, e Marionel Martins. Há ainda Eládio Theotonio de Freitas, ator e também o diretor de produção de Grito da terra; e, por fim, entre os atores principais, o próprio escritor Ciro de Carvalho, que interpreta o delegado. Aparecem outros atores e atrizes menos conhecidos, além de muitos figurantes, nessa que será uma grande produção para os padrões da época, considerando que o cinema nacional apenas esboçava uma autonomia econômica e começava a

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flertar com a linguagem moderna da sétima arte. A economia do cinema ainda girava em torno da importação de filmes de grande público e buscava a maioridade intelectual no diálogo com a literatura, pois a aceitação do cinema como arte pelo público intelectualmente mais sofisticado dependia muito da relação que o espectador fazia entre o caráter formador do literário e o filme adaptado diretamente da literatura ou não.

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Fernando Ramos e Efigênio Matos fizeram a assistência de direção de Grito da terra, além de Valneide São Paulo, irmão do cineasta. O diretor de fotografia previsto era Waldemar Lima, afastado por causa de outros compromissos que atrasariam a produção, que deveria ocorrer em três meses de filmagens, pois Olney era funcionário do Banco do Brasil e obtivera licença com tempo definido. Leonardo Bartucci assume a fotografia. Ele havia trabalhado com Olney em Mandacaru vermelho (1961), filme de Nelson Pereira dos Santos improvisado para substituir a primeira tentativa do cineasta paulista de filmar o romance de Graciliano Ramos, Vidas secas, no sertão da Bahia, o que só ocorrerá de fato dois anos depois, quando Nelson Pereira encontra o sertão em condições climáticas para o cenário da seca. Olney se revela nesse período como leitor dos escritores regionalistas, assim como é costumeiro frequentador dos grupos cinemanovistas que se deslocam no sertão da Bahia para filmarem as obras emblemáticas do período áureo de rupturas formais e políticas que ecoam o cinema brasileiro no mundo. Grito da terra partilha de um sentido específico da adaptação, que caracteriza a obra de Olney desde o contraponto da narrativa do filme com a música estruturante. Os responsáveis pela trilha sonora foram Orlando Senna e Fernando Lona, o primeiro escreveu a letra da música tema do filme, Lamento de Justino, gravada por Lona nos estúdios da CBS no Rio de Janeiro, com arranjo e orquestração do maestro Remo Usai, no mesmo período da montagem do filme, em agosto de 1964. Há também as músicas Terra seca, Saudade sem nome, Depois do amor e Tema do enterro, todas interpretadas por Fernando Lona, cantor baiano morto precocemente 13

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anos após esse trabalho na trilha sonora de Grito da terra. Como diz Fernando Morais da Costa, o papel da música no enredo dos filmes das décadas de 1960/70 é um elemento dos mais analisados pelos críticos de cinema. Segundo ele: “O uso da música popular, ou, em alguns casos, mesmo da música erudita feita no Brasil, é entendido como uma ferramenta importante para o funcionamento do projeto de levar a cultura popular e o povo brasileiro para o centro da tela”.5 Olney tratava este aspecto musical com muita reverência, incluindo músicos populares em alguns enredos dos seus filmes, até mesmo atuando como personagens, como ocorre em outra adaptação literária sua, O forte (1975), baseada no romance homônimo de Adonias Filho, que traz no elenco o sambista Monsueto Menezes. Grito da terra é sofisticado para os padrões técnicos e de produção na época, considerando o filme de cineasta desconhecido do interior da Bahia e na primeira experiência com esta complexidade. O elenco artístico e técnico coaduna com a sofisticação do tipo de cinema de adaptação literária realizado por Olney, demonstrando o nível de tensão que o seu cinema busca no diálogo com demais artes – principalmente com a literatura – para a aceitação pelo público. Um aspecto importante na adaptação de Grito da terra é que o enredo do filme sofre consideráveis alterações em relação ao romance fonte. Um exemplo emblemático para o tipo da dialética dramática do filme é a personagem antítese representada pela ambiciosa Loly, moça rural que deseja sair do campo em direção à cidade. Ela se projeta em contraponto com a tese central do drama, que é representada por Mariá, amiga e cunhada de Loly, que, ao contrário da primeira, acredita numa revolução que transforme a vida rural em esperanças de condições melhores. Loly e Mariá são filhas dos agricultores Silvério e Apolinário, respectivamente, homens que procuram superar as dificuldades rurais, para sustentarem as famílias com os recursos da terra,

mas as adversidades climáticas e políticas os tornam cada vez mais reféns do fazendeiro Sebastião, que representa o típico vilão das condições agrárias adversas oriundas do sistema fundiário brasileiro. O filme de Olney assume a condição de denúncia social no viés ideológico do enredo, diferindo do olhar apenas telúrico do escritor Ciro de Carvalho na sua narrativa romanesca sobre a precariedade do clima e das políticas sociais no campo. Na obra cinematográfica, os subalternos se tornam cada vez mais ameaçados pelo fazendeiro Sebastião, personagem que representa o sistema coronelista, aproveitando-se da crise dos camponeses e espoliando as produções, para adquirir as terras de forma injusta. A síntese desta dialética é o próprio cinema de Olney, que assume uma enunciação neorrealista moderna, deslocando-se entre a necessidade ética de desvelar a crítica política, mas também aciona o viés estético que desvincula o seu cinema dos dogmas estruturais do Realismo Socialista, filiandoo também ao movimento poético da linguagem cinematográfica, realizando um filme que se projeta na política cultural do sistema cinematográfico brasileiro e marcado pela ruptura dos cinemanovistas. Desse ponto de vista, a obra de Olney passa a ser um signo cultural – conscientemente ou não –, pois dialoga com as demais expressões da cultura nacional da época, o que implica a necessidade de leitura semiológica que suplementa a visão do próprio diretor, como nos explica Christian Metz: Com relação ao cineasta, o semiólogo segue um caminho inverso. Aquele parte de diversos sistemas (na maioria das vezes implícitos, às vezes, até inconscientes) para constituir um manifesto; este apoia-se no texto para reconstituir (e de maneira sempre explícita) os sistemas que aí se acham implícitos, invisíveis, mas só nele localizáveis. O que o cineasta constrói é texto, o que o analista constrói é sistema.6

As impressões semiológicas sobre o sistema cinematográfico implícitas na linguagem de um filme podem ser acionadas de maneira particular

5 COSTA, Fernando Morais da. O som no cinema brasileiro. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2008. Col. Trinca Ferro. p. 180/1. 6 METZ, Christian. Linguagem e cinema. Trad. Marilda Pereira. São Paulo: Perspectiva, 1980. Col. Debates. p. 88.

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nesta obra de Olney, a partir de alguns aspectos na adaptação cinematográfica da personagem literária Mariá, que é interpretada por Helena Ignez e surge como autêntica invenção adaptativa do romance no filme do cineasta baiano. Essa personagem não aparece com a mesma intensidade no romance de Ciro de Carvalho e alguns críticos afirmam que ela teria sido criada no roteiro especialmente para a atuação da atriz cinemanovista, convidada pessoalmente por Olney. Na biografia do cineasta, a pesquisadora Ângela José7 afirma que a personagem Mariá foi criada especialmente para Helena Ignez e que ela não existe no romance de Ciro de Carvalho. A única edição do romance Grito da terra, lançada em novembro de 1964, tem a personagem Mariá, mas realmente no texto literário a personalidade dela é diferente da adaptada no enredo do filme. Esse fato não somente rompe com o paradigma da fidelidade da tradução, mas cria uma imagem inusitada nessa adaptação do livro, pois a filmagem é simultânea à escrita do romance, numa espécie de adaptação de mão-dupla em que alguns personagens do filme deslocam o texto literário da perenidade do significado, pois novos sentidos cinematográficos retornam para a releitura do romance, que foi lançado depois da realização do filme, assumindo assim um modelo de literatura que cria personagens simultâneos com a sua versão fílmica.

problematizar temas centrais da política econômica dominante no país, aproximando-se do modelo neorrealista literário e cinematográfico, travando um diálogo com as experiências cinemanovistas, principalmente com a trilogia do sertão cinematografado em Vidas secas (1963), Os fuzis (1963) e Deus e o diabo na terra do Sol (1964).

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O profeta de Feira de Santana. Acervo Olney São Paulo – Fundo Cinemateca do MAM-RJ. Arquivo Nacional

7 JOSÉ, Ângela, op. cit.

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No que diz respeito à temática, o filme de Olney São Paulo aborda os problemas políticos e econômicos nacionais oriundos da formação colonial no modo de vida do campesinato no Brasil, ainda presentes nos discursos literários ideológicos das décadas de 1950 e 1960, e que deram repercussão às políticas sociais das Ligas Camponesas e à luta geral da sociedade contra o latifúndio, pela reforma agrária e no combate ao analfabetismo. Diferentemente da concepção impressa no romance, esses temas no filme de Olney assumem um viés mais visivelmente ideologizado sobre as latentes disputas de classes que estavam em curso no período que culmina com o golpe de 1964. É importante compreender que a proposta do cineasta baiano no filme sobre estas tensões sociais é apresentar e

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Grito da terra: ética e estética da adaptação em Olney São Paulo

Olney ao lado de sua mulher, Maria Augusta, e a filha Pilar. Acervo da família

O filme de Olney não é propriamente obra do Cinema Novo, enquanto manifesto do grupo: não tem a adaptação diretamente radical realizada por Nelson Pereira, nem a recriação também radical da literatura no filme de Glauber Rocha, que recria o universo literário brasileiro nacionalista em seus transes cinematográficos internacionalistas. A forma de adaptação assumida por Olney São Paulo fica no “entre lugar” e no meio do caminho entre a dicção clássica da fotografia e o discurso político moderno, contracenando na sua narrativa a poesia das imagens e a narratividade dos discursos, que também são recursos emblemáticos do cinemanovismo. Olney se aproxima do Cinema Novo pelo viés de personagens emblemas que replicam o discurso ideológico, como o professor de Grito da terra, duplicação da imagem da “estética da fome” cinemanovista representada na figura do beato interpretado pelo ator Lídio Silva no filme Deus e o diabo na terra do Sol, de Glauber Rocha. As ambivalências do filme de Olney São Paulo entre um neorrealismo mais radical e as montagens de tom mais clássico sobre o tema agrário tornam a sua obra ainda mais contemporânea das trágicas contradições brasileiras, pois ela espelha a nação em busca de alternativas éticas e estéticas que atu-

alizem a história social e a política cultural. Olney assume em seus filmes a condição do intelectual urbano, mas sem abdicar das condições agrárias da sua formação tradicional. Como afirma Célia Tolentino, as décadas de 1950 e 1960 marcam o período em que “a transição do Brasil rural para o Brasil urbano e a do exclusivismo agrário para a primazia econômica industrial estavam em causa”8. Por isso, os temas relacionados à ruralidade do país se faziam tão presentes na pauta intelectual brasileira, embora o país estivesse passando por processo de urbanização acelerada nas grandes metrópoles, como Rio de Janeiro e São Paulo, mas que também conviviam com problemas típicos do campo e continuavam semelhantes no complexo identitário da origem colonial. O combate ideológico pela reforma agrária mostrado no filme de Olney está em diálogo com as literaturas das lutas internacionais pela descolonização, principalmente ecoando narrativas da literatura e do cinema comunista da Revolução Russa de 1917, trazendo como lemas ideológicos “pão, paz e terra”. A intensidade da literatura soviética na leitura de Olney pode ser exemplificada na forma familiar com que o cineasta homenageia o escritor e jornalista russoucraniano Ilya Ehrenburg, sendo incorporado ao

8 TOLENTINO, Célia Aparecida Ferreira. O rural no cinema brasileiro. São Paulo: Unesp, 2001. p. 12.

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primeiro nome do seu filho Ilya Flaherty Santana São Paulo, nascido nos tempos de gestação de Grito da terra, em 1963, que ainda traz no segundo nome uma homenagem ao cinema clássico, destacando a importância para Olney do cineasta americano Robert Joseph Flaherty, que é considerado um dos criadores do documentário direto. Grito da terra ajusta as imagens representativas da literatura, do cinema, dos movimentos ideológicos e das expressões estéticas emergentes no contexto histórico local para intensificar os discursos reformistas e revolucionários que, no Brasil, ecoam na recepção dos acontecimentos mundiais. Na época ocorriam as variadas reflexões sobre os desdobramentos políticos do fim da ditadura de Getúlio Vargas e do sucesso do projeto modernizador de Juscelino Kubitschek, bem como a ascensão de João Goulart ao poder central do país com os discursos de reforma social. Mas esse período que parecia apontar definitivamente para a democracia plena teve seu auge e também a maior decepção com o golpe de 1964. Os intelectuais acionavam todos os dispositivos éticos e

estéticos para explicar à sociedade o necessário fim do latifúndio no país, bem como a importância das reformas socioeconômicas de base, especialmente a fundiária. O filme de Olney reflete essas circunstâncias, ao apresentar e discutir questões que estavam no centro dos problemas rurais do Brasil, ampliando a produção de narrativas para os interiores da nação, como é o caso do surgimento desta cinematografia telúrica sertaneja no interior da Bahia, como um eco da política dos cineastas, que, à época, tornavam o tema agrário o motivo principal das experimentações estéticas neorrealistas e de éticas mais realistas na política e na cultura brasileiras.

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A alfabetização dos camponeses em Grito da terra é promovida pelo professor negro, que transita por imagens messiânicas e revolucionárias, como um beato conselheiro reproduzindo a filosofia educacional de Paulo Freire no sertão. Embora seja um discurso religioso, o beato absorve a persuasão da ideologia marxista sobre a luta de classes, ao mesmo tempo em que é citação direta da história de militância do camponês João Pedro Teixeira,

Olney em entrevista com Sílvio Tendler, Walter Carvalho e José Carlos Avellar. Acervo da família

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Grito da terra: ética e estética da adaptação em Olney São Paulo

líder das primeiras Ligas Camponesas do Estado do Pernambuco, de quem a literatura popular fizera um herói do imaginário regional, sendo o filme de Olney uma forma de registro ético da história social e das novas engrenagens estéticas do documental, forjando na ficção a imagem do militante e do mobilizador da consciência popular pela educação, o que, segundo o personagem do filme, é “a arma do sertanejo”. O personagem aponta a educação formal como única saída possível para o camponês se conhecer e de reconhecer os lados opostos da luta pelos direitos sociais, compreendendo que os fatores igualitários são difundidos através de uma leitura direcionada do texto bíblico, ao afirmar que “Deus não deixou terra pra ninguém”. Para compreendermos a importância ética e a dimensão estética desse tema no filme de Olney, ao representar o instrumental popular da alfabetização manipulado pelo beato negro, vejamos a análise de Roberto Schwarz sobre o método de Paulo Freire naquele contexto social e histórico do país. Para ele: Este método muito bem-sucedido na prática, não concebe a leitura como uma técnica indiferente, mas como força no jogo da dominação social. Em consequência procura acoplar o acesso do camponês à palavra escrita com a consciência de sua situação política. Os professores, que eram estudantes, iam às comunidades rurais, e a partir da experiência viva dos moradores alinhavam assuntos e palavras-chave – ‘palavras-geradoras’, na terminologia de Paulo Freire – que serviriam simultaneamente para discussão e alfabetização.9

A educação e o domínio da “cartilha”, para o professor, é a única maneira dos camponeses compreenderem que são capazes de reivindicar a terra e de contrariar os interesses dos grandes proprietários rurais. Em Grito da terra o núcleo dramático é esse tema, dando o seu tom sobre os personagens já emblemáticos do sistema cinematográfico brasileiro da época. O professor negro e as figuras femininas de Mariá e Loly representam a dialética do projeto

revolucionário e o misticismo religioso focados na educação como o viés da consciência de classe. Mariá segue ideologicamente o professor, incluindo em sua imagem elementos telúricos e sensuais da natureza sertaneja reprimida; Loly encena o viés extremo da dialética rural, ungindo a modernidade urbana como modelo e saída do capitalismo burguês para suplantar o mundo agrário conservador com suas mazelas. Para Ângela José, as duas personagens femininas são as engrenagens principais do filme, pois são elas as imagens protagonizadas das famílias nucleares do drama na narrativa. Silvério é o pai de Loly, o que mais sofre os efeitos da estiagem e é forçado a vender parte da sua terra a preço baixo para Sebastião, que por sua vez é o vilão que tenta dificultar a vida dos pequenos proprietários, a fim de adquirir os bens dos desgraçados, criando dificuldades financeiras aos pequenos proprietários que não conseguem escoar suas colheitas. O grande proprietário impede inclusive o casamento entre o seu filho, Geraldo, e Mariá, filha do pequeno agricultor Apolinário, repercutindo no filme o arquétipo clássico do amor proibido pelas desavenças familiares. A situação se agrava mais quando as plantações são perdidas na seca, o que obriga o pai de Mariá à dependência econômica completa de Sebastião, pois é obrigado a dar como garantia de empréstimos a propriedade da família. O filme de Olney enfoca as questões fundiárias do país através do embate entre o latifundiário Sebastião e os pequenos proprietários e trabalhadores locais. Esse tema atravessa a narrativa regionalista sertaneja do sujeito nacional espoliado, como um emblema da arte nacional-popular, sendo este enfoque central presente nos sutis diálogos entre a literatura e o cinema nacionais do período. Em entrevista cedida à Revista da Bahia, de 1965, Olney São Paulo afirma que ao ter contato com o texto literário de Ciro de Carvalho pela primeira vez disse que “faria o filme somente para dizer àquele personagem [Loly] que o Nordeste precisa de seu povo para salvar o seu futuro”.10 O cineasta realizou o filme acionando a questão da seca no Nordeste,

9 SCHWARZ, Roberto. O pai de família e outros estudos. São Paulo: Paz e Terra, 1978. p. 68. 10 Entrevista com Olney São Paulo. Revista da Bahia, Salvador, ano IV, n. 4, 1965. p. 56.

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não apenas como um problema climático, mas principalmente político e humanista, pois o período de chuvas intensas não muda a situação dos camponeses. Segundo ele, estava interessado em um “filme-poema em que o Homem e a Terra fossem os únicos personagens. Um quase documentário, uma crônica rural. Um depoimento sobre a vida do sertanejo desamparado e explorado”.11 Neste depoimento, Olney São Paulo aciona tanto a literatura de Euclides da Cunha, em Os sertões, quanto documentários cinematográficos, como Maioria absoluta (1964), de Leon Hirszman, ou ainda a poesia de poetas como Décio Pignatari, que publicara o famoso poema concreto Terra. O filme amplifica o tom de manifesto e os debates éticos e poéticos em torno do analfabetismo e do latifúndio nas imagens das famílias de Silvério, Apolinário e Sebastião, que perfazem a dialética do filme Grito da terra. O delineamento ético da estética na narrativa do filme de Olney São Paulo é atravessado por

Ciganos no Nordeste (1976), documentário dirigido por Olney São Paulo. Acervo Olney São Paulo – Fundo Cinemateca do MAM-RJ. Arquivo Nacional

tratamentos poéticos da fotografia, que adapta o romance numa leitura ao mesmo tempo objetiva sobre os conflitos agrários do Brasil e subjetiva do olhar humanista no cinema literário, construindo uma obra híbrida de experimentalismos e recursos cinematográficos tradicionais, para, como diz ele, “fazer de um filme simples”.12 Grito da terra é um jogo de percepção sobre a complexidade do simples, seja quanto ao caráter da adaptação fílmica brasileira protagonizada no modo particular de Olney, seja no âmbito político do cinema nacional de cunho ideológico. Os figurinos e utensílios usados, bem como os cenários, refletem a imagem dos moradores locais que haviam cedido muitas peças para as gravações, coadunando com os ideais éticos e estéticos desse cineasta nordestino, conhecido pelos parceiros de cinema pela simplicidade, mas, ao mesmo tempo, pelo rigor da sua obra, ao representar os dramas e a poesia do homem rural enraizados na memória através da literatura nacional popular.

11 Idem. 12 Idem.

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Sílvio Back (com a câmera) ensaia a cena do transe da virgem Ana, interpretada por Dorothée-Marie Bouvier, no épico A guerra dos pelados (1970). O roteiro foi inspirado no romance Geração do deserto, de Guido Wilmar Sassi, sobre a Guerra do Contestado. Correio da Manhã

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Maria Gutierrez Doutoranda em Meios e Processos Audiovisuais e mestre em Letras pela Universidade de São Paulo. Organizou cursos no Memorial da América Latina e publicou artigos em revistas no Brasil e no exterior.

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de Glauber Rocha1

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Em Cabezas cortadas (Glauber Rocha, Brasil/Espanha, 1970), há um ditador foragido que espera e prepara sua morte enquanto um profeta infunde esperanças no povo. Não há um relato linear de fatos, mas uma atmosfera onírica em que se superpõem períodos históricos. A história é condensada e se exibe uma série de tropos ibero-americanos num espaço imaginário que poderia situar-se em qualquer lugar ou em lugar nenhum. Com este filme, Glauber Rocha estabelece todo um diálogo intertextual com a literatura da América Latina.

Glauber definiu Cabezas cortadas como uma viagem borgeana pela obra de Shakespeare. Correio da Manhã

Chama atenção a proximidade da produção do filme com a data de publicação de três dos mais célebres “romances de ditadores” − El recurso del método (Alejo Carpentier, 1974), Yo el supremo (Roa Bastos, 1974) e El otoño del patriarca (García Márquez, 1975) − e sua afinidade com eles no compartilhamento de temas e propostas formais. Alguns autores procuraram diferenciar os romances centrados no tema da ditadura, os “romances de ditadura”, dos “romances de ditadores” propriamente ditos, publicados nos anos 1970. Nos romances de ditadura, que remontam ao século XIX, o ditador não aparece como protagonista, mas se denunciam as consequências de sua tirania; o escritor tem um propósito extraliterário, mais do que estético. O romance panfletário, no entanto, teria contribuído para fixar o tipo do ditador de ficção, que permaneceu muito tempo como caricatura, personagem sombra.2 Destes livros para os romances de ditadores dos anos 1970 rompe-se, segundo Ángel Rama, a distância entre poderoso e homens governados, que o contemplam de longe.

1 Este texto foi elaborado a partir de pesquisa realizada com o apoio da Fapesp. 2 CASTELLANOS, Jorge; MARTÍNEZ, Miguel A. El dictador hispanoamericano como personaje literario. Latin American Research Review, v. 16, n. 2, p. 79-105, 1981.

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Agora os narradores se instalam na consciência da personagem3 – como no filme de Glauber. O cineasta afirmou que o filme era uma “viagem borgeana pela obra de Shakespeare”.4 No bardo, Glauber encontra um “método” capaz de “teatralizar a história”.5 Segundo Jan Kott, a história em Shakespeare não se modifica, descreve círculos, girando sempre em torno da luta pela coroa, imagem do poder. Em Shakespeare, afirma Kott, “a disputa pelo poder é despojada de toda mitologia e mostrada em estado puro”.6 Trata-se da imagem mesma da história, ou a imagem do Grande Mecanismo. Segundo o autor, Shakespeare dramatiza a história pela condensação, desembaraça-a da descrição, da anedota, quase mesmo do relato. A história, grande protagonista da tragédia, é concebida como vazia de sentido, ciclo atroz. Já antes, em outros filmes de Glauber, havia sido detectada a presença de Shakespeare. Mas é em Cabezas cortadas que esta mais se evidencia. No filme, todo detalhe foi suprimido, ficamos somente com a queda do déspota, como no Rei Lear − uma queda física, espiritual, corporal, social. Além disso, há a forma grotesca com que a personagem do ditador se apresenta. Jan Kott afirma que, na contemporaneidade − seu livro é de 1961 −, o grotesco se

ocupa dos problemas, conflitos e temas da tragédia. Segundo Kott, “a tragédia é um julgamento sobre a condição humana, uma medida do absoluto; o grotesco é a crítica do absoluto em nome da experiência humana frágil”. Por isso, conclui o autor, “a tragédia conduz à catarse, enquanto o grotesco não oferece nenhum consolo”.7 Quanto a Borges, vemos que Glauber toma dele sobretudo a ideia de uma “poética da leitura”,8 ao realizar seu filme sobre elementos estruturais das peças de Shakespeare. Neste filme, Glauber concebe a criação artística como leitura, a arte como “discurso composto de discursos”,9 construindo, como Borges, sua originalidade na “afirmação da citação, da cópia, da reescritura de textos alheios”.10 Glauber compartilha com o escritor argentino a liberdade na atitude relativa à tradição a que está destinado o artista das “orillas”.11 Afinal, em um de seus textos bastante discutidos, Borges havia defendido nosso direito à cultura ocidental − e ao mesmo tempo nossa possibilidade de sermos irreverentes em relação a esta.12 A ideia de uma “viagem borgeana pela obra de Shakespeare” leva a pensar no debate que se fazia contemporaneamente na América Latina sobre

3 RAMA, Ángel. Los dictadores latinoamericanos en la novela. In: ______. La novela en América Latina: panoramas 1920-1980. Bogotá: Procultura; Instituto Colombiano de Cultura, 1982. p. 361-379. 4 ROCHA, Glauber apud PIERRE, Sylvie. Glauber Rocha. Campinas: Papirus, 1996. p. 259. 5 ROCHA, Glauber apud CARDOSO, Maurício. O cinema tricontinental de Glauber Rocha: política, estética e revolução (1969-1974). Tese (Doutorado em História Social) – Universidade de São Paulo, 2007. p. 123. 6 KOTT, Jan. Shakespeare, nosso contemporâneo. São Paulo: Cosac Naify, 2003. p. 29. 7 Ibidem, p. 129. 8 MONEGAL, Emir Rodríguez. Borges por él mismo. Caracas: Monte Ávila, 1980. 9 SARLO, Beatriz. Borges, un escritor en las orillas. Buenos Aires: Seix Barral, 2007. p. 101-102. 10 Ibidem, p. 17. 11 Idem. 12 BORGES, Jorge Luis. El escritor argentino y la tradición. In: ______. Discusión − Obras completas. Buenos Aires: Emecé, 1957. p. 151-162.

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uma personagem do bardo, Caliban, de A tempestade (Shakespeare, 1611). Em 1971, Fernández Retamar publicava o ensaio Caliban. De acordo com ele, em 1969 alguns escritores antilhanos haviam reivindicado a figura de Caliban, entre os quais Aimé Césaire, com sua Une tempête – d’après la Tempête de Shakespeare, adaptation pour um théâtre nègre (Aimé Césaire, 1969), em que Caliban se torna guerrilheiro negro e Ariel, a representação do intelectual, é um escravo mulato de Próspero.

Do traçado histórico das diversas retomadas da personagem, Retamar passa a um elogio do antiimperialismo de Martí e então ao ataque contra alguns escritores latino-americanos contemporâneos, em quem ele parece enxergar Ariéis, servidores de Próspero. Em texto de 1986, Caliban revisitado, Retamar situa o ensaio original no contexto que o produziu. Era o momento da polêmica em torno da revista Mundo Nuevo e do “caso Padilla”, quando, indignados com o mea culpa do poeta após um mês de detenção, uma série de intelectuais enviaram, de Paris, ao governo cubano, uma carta em que questionavam o fato. De acordo com Retamar, estas foram as “chispas” para a redação de Caliban, mas não só, também o teria gerado a reinterpretação do mundo motivada pela revolução. Neste texto de 1986, Retamar parece querer fazer justiça a Borges, resgatando sua importância a despeito dos ataques feitos no ensaio original, em que havia afirmado que Borges, por fazer da escritura um ato de leitura, por afirmar que nossa tradição está na Europa, seria um “típico escritor colonial”,13 e seus escritos, “testamento atormentado de uma classe sem saída”.14

Para o poeta e ensaísta cubano, não há metáfora mais acertada para nossa situação cultural, nossa realidade, que esta de Caliban, que aprendeu a língua de Próspero para maldizê-lo. Fernández Retamar se pergunta o que são nossa história e cultura senão a história e a cultura de Caliban. No entanto, ao propor Caliban como nosso símbolo, Retamar se dá conta de que “tampouco é inteiramente nosso”, também se trata de uma “elaboração estranha”, ainda que desenvolvida a partir de nossas realidades concretas. Mas, ele se questiona, como eludir completamente esta estranheza? Fernández Retamar argumenta através de outro exemplo: o

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Francisco Rabal é o ditador Díaz II em Cabezas cortadas. Acervo Cinemateca Brasileira/ SAv/MinC

termo mambí – palavra imposta pejorativamente pelos inimigos, mas reivindicada pelos independentistas cubanos, que tomaram com honra o que era injúria. Para o poeta e ensaísta cubano, esta é precisamente a dialética de Caliban.

No texto de 1971 de Borges, Fernández Retamar passava a atacar o trabalho de Carlos Fuentes, La nueva novela hispanoamericana, de 1969, por impor o esquema estruturalista ao estudo de nossa literatura. Para Retamar, o auge da linguística, quando a vertente estruturalista parecia ter “napoleonizado” as outras ciências sociais, tinha razões ideológicas; e a a-historicização implicada no estruturalismo seria “própria de uma classe que se extingue”.15 Retamar rejeitava a perspectiva de Fuentes, segundo a qual “somente a partir da universalidade das estruturas linguísticas se pode admitir, a posteriori,

13 RETAMAR, Roberto Fernández. Caliban. In: _____. Todo Caliban. San Juan: Callejón, 2003. p. 63. 14 Ibidem, p. 71. 15 Ibidem, p. 78.

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afirmações que Vargas Llosa e Cortázar haviam feito sobre tal autonomia, pois, para ele, a literatura da América Latina deveria estar atrelada à realidade. Ele mencionava as discussões em torno de Borges e se posicionava contrariamente à ideia de, na avaliação do trabalho de um escritor, separar-se política e literatura. Para Collazos, atitude intelectual e obra literária deviam coincidir. Ele escrevia contra certa literatura em que enxergava um menosprezo à realidade. E citava o exemplo do livro de Carlos Fuentes, Cambio de piel (1967), questionando se deveríamos “nos confinar na artificialidade de um cosmopolitismo radical”.18

os dados excêntricos de nacionalidade e classe”;16 contra esta ideia, Retamar oferecia o exemplo da cultura cubana: “filha da revolução”, do “rechaço multissecular a todos os colonialismos”,17 portanto inseparável da história que a engendra. Paradigmático do que eram os debates no momento em que Fernández Retamar escreveu Caliban é o livro Literatura en la revolución y revolución en la literatura. Trata-se da compilação de artigos publicados em 1969 na revista Marcha, por Óscar Collazos, Cortázar e Vargas Llosa. Um texto de Collazos, La encrucijada del lenguaje, motivou réplicas dos outros dois autores, que haviam sido mencionados no ensaio. O texto de Collazos atacava escritores latino-americanos que abraçaram o estruturalismo e a noção da autonomia da linguagem. Ele se colocava contra

Ao ser citado por Collazos, Cortázar se vê na obrigação de responder. E o faz em artigo também publicado na revista Marcha, em dezembro de 1969. De acordo com Cortázar, já não havia nada que fosse estrangeiro, todo escritor tinha direito ao patrimônio cultural universal. Ele afirmava a necessidade de deixar de lado a confusão entre literatura e política. E se burlava daquelas pessoas que, em seu complexo de inferioridade em relação a Borges, diziam-se comprometidos, “realistas”, tentando negar o mestre da literatura argentina por razões políticas. Cortázar argumentava que a realidade do escritor ultrapassa o contexto sociocultural, sem por isto “dar-lhe as costas”. O escritor argentino defendia a distinção entre a função intelectual e crítica e a criação narrativa, que podem dar-se simultaneamente ou não. Cortázar afirmava que um “contista ou romancista não o é por crítico, mas por criador”.19

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Cartaz do filme Cabezas cortadas (1970), filme que dialoga com a literatura latinoamericana. Acervo Cinemateca Brasileira/ SAv/MinC

Ao artista cabe a busca por formas experimentais, “abertas”, asseverava Cortázar, acrescentando, de maneira irônica, que é natural que o avanço da literatura seja mais retardado entre leitores e críticos. Contra o “conteudismo” da cobrança da representação do “contexto sociocultural e político”, Cortázar sugeria “enriquecedores deslocamentos” da realidade, capazes de revelar suas várias

16 Ibidem, p. 79. 17 Ibidem, p. 85. 18 COLLAZOS, Óscar. Encrucijada del lenguaje. In: ______; CORTÁZAR, Julio; LLOSA, Mario Vargas. Literatura en la revolución y revolución en la literatura. México: Siglo XXI, 1976. p. 29. 19 CORTÁZAR, Julio. Literatura en la revolución y revolución en la literatura: algunos malentendidos a liquidar. In: COLLAZOS, Óscar; CORTÁZAR, Julio; LLOSA, Mario Vargas, op. cit., p. 54.

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de Campos serviriam a uma defesa do filme de Glauber.

Glauber Rocha dirige o ator espanhol Francisco Rabal. Acervo Cinemateca Brasileira/SAv/ MinC

camadas. De acordo com Cortázar, uma realidade imaginária e multiforme estava sendo questionada em nome de um “‘dever’ que ninguém nega”, mas que não esgota o campo da literatura.20 Cortázar terminava afirmando que romance revolucionário não é só o de conteúdo revolucionário, mas aquele que procura revolucionar o próprio romance, sua forma; e que, para ele, os escritores devem ser “revolucionários da literatura mais do que literatos da revolução”.21 Já afastado do contexto polêmico do final dos anos 1960 e início dos 1970, um texto de 1980, de Haroldo de Campos, oferece implicitamente algumas respostas às questões levantadas pelo ensaio de Fernández Retamar, e parece corresponder à busca de uma compreensão mais matizada do “dialogismo” que caracteriza nossa cultura. Pois, se tivesse sido tema dos debates, Cabezas cortadas poderia ter sido atacado pelos defensores de uma arte mais atrelada à nossa realidade; neste sentido, alguns argumentos

Para Haroldo, a questão do nacional e do universal − notadamente europeu − na cultura latino-americana envolve a relação entre um patrimônio cultural universal e as peculiaridades locais; bem como a questão da possibilidade de uma literatura experimental, de vanguarda, num país “subdesenvolvido”. Campos recorre a Engels para afirmar a existência de uma lei complexificadora da transmissão do legado cultural na produção poética, e daí a possibilidade de surgimento do novo em condições subdesenvolvidas. Segundo Engels, as obras intelectuais de uma nação são propriedade comum de todos; portanto, a estreiteza e o exclusivismo nacionais são impossíveis e, da multiplicidade de literaturas nacionais, configura-se a literatura universal. Para exemplificar seus pontos de vista, Haroldo remete à antropofagia de Oswald de Andrade, entendida como expressão de uma necessidade de pensar o nacional em “relacionamento dialógico e dialético com o universal”.22 Para Haroldo de Campos, a antropofagia oswaldiana… é o pensamento da devoração crítica do legado cultural universal, elaborado não a partir da perspectiva submissa e reconciliada do ‘bom selvagem’ [...] mas segundo o ponto de vista desabusado do ‘mau selvagem’, devorador de brancos, antropófago.23

Vemos, portanto, que, entre o final dos anos 1960 e o início dos 1970, na América Latina, tanto o

20 Ibidem, p. 68. 21 Ibidem, p. 76. 22 CAMPOS, Haroldo de. Da razão antropofágica: a Europa sob o signo da devoração. Colóquio/Letras, n. 62, p. 10-25, jul. 1981. p. 11. 23 Idem.

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estruturalismo como a ideia de uma reapropriação “anticolonial” de Shakespeare, além de Borges, estavam no centro das discussões. Glauber, então, com sua “viagem borgeana pela obra de Shakespeare”, intervinha no debate de maneira prática. O cineasta havia dito que seu filme era estruturalista. O filme toma de Shakespeare a estrutura do “grande mecanismo”: um poderoso em decadência, a chegada de um Messias – e se resume a isto. Não há precisão de que ditador é este, de onde vem exatamente, e sobre o pastor muito menos, eles não têm história, um antes e um depois, são mera encarnação de uma estrutura que se repete. E exatamente esta forma é que expressa o seu conteúdo, porque o filme é sobre esta repetição como algo que nos caracteriza. Por isso, Díaz é sempre o mesmo, que voltou e voltará. Glauber usa o estruturalismo, a intertextualidade − procedimentos que costumam confinar a leitura no âmbito do texto − para tratar da história, de uma história cuja tendência é repetir-se. Em texto de 1968 endereçado a Paulo Francis,24 Glauber comentava estar lendo Borges, e, em Eztetyka do sonho,25 de 1971, mencionava o escritor em dois momentos. Destaquemos estes trechos do manifesto. Glauber afirmava ser preciso fazer a distinção entre o que é “arte revolucionária útil ao ativismo político, do que é arte revolucionária lançada na abertura de novas discussões, do que é arte revolucionária rejeitada pela esquerda e instrumentalizada pela direita”.26 No primeiro grupo ele citava La hora de los hornos (1968), de Solanas, no segundo, filmes do Cinema Novo brasileiro como os seus próprios, e, no último, a obra de Borges. Mais adiante, Glauber afirmava:

Arte revolucionária deve ser uma mágica capaz de enfeitiçar o homem a tal ponto que ele não mais suporte viver nesta realidade absurda.

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Borges, superando esta realidade, escreveu as mais liberadoras irrealidades de nosso tempo. Sua estética é a do sonho.27

E acrescentou, sobre o escritor geralmente associado ao cosmopolitismo: “Para mim é uma iluminação espiritual que contribuiu para dilatar a minha sensibilidade afro-índia na direção dos mitos originais de minha raça”.28 Ou seja: é um autor cosmopolita que lhe permite entender melhor sua região de origem.29 Com relação à reivindicação de Borges por Glauber: de acordo com Nicolás Fernández Muriano, no manifesto da estética do sonho, o cineasta propõe uma reflexão sobre as condições do cinema político latino-americano a partir de uma oposição entre Borges e Solanas. Para ele, Glauber toma de Borges “uma matriz temporal complexa que permite superar a matriz historicista que atribui a Solanas”.30 De fato, a apropriação de Borges por Glauber soa como uma provocação, não somente à intelligentsia latinoamericana de esquerda que na época rejeitava Borges, mas especificamente a certa esquerda argentina, representada por Solanas, devido à condenação que o filme lança a qualquer tipo de populismo. Assim, o que Glauber põe em prática com Cabezas cortadas é um “latino-americanismo transgressivo”31 que reivindica Borges, estruturalismo, Shakespeare, tudo sempre numa devoração antropofágica e livre.32

24 ROCHA, Glauber. From New York to Paulo Francis. In: ______. O século do cinema. São Paulo: Cosac Naify, 2006. 25 ROCHA, Glauber. Eztetyka do sonho. In: ______. Revolução do cinema novo. São Paulo: Cosac Naify, 2004. p. 248-251. 26 ROCHA, Glauber, 2006, op. cit., p. 249. 27 Ibidem, p. 251. 28 Idem. 29 Antonio Candido tratou do desenvolvimento de nossa literatura entre cosmopolitismo e regionalismo no texto Literatura e subdesenvolvimento. In: MORENO, César Fernández (Org.). América Latina em sua literatura. São Paulo: Perspectiva, 1979. p. 343-362. 30 MURIANO, Nicolás Fernández. Glauber Rocha, lector de Borges. Imagofagia, revista de la Asociación Argentina de Estudios de Cine y Audiovisual, n. 7, 2012. 31 Devo à professora da Faculdade de Letras da USP Ana Cecília Olmos a sugestão do termo “transgressivo” para caracterizar o latino-americanismo de Glauber neste filme. 32 Ver também: RETAMAR, Roberto Fernández. Caliban revisitado. In: ______. Todo Caliban. San Juan: Callejón, 2003. p. 113-130.

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Nelson Rodrigues conversa com Guimarães Rosa durante almoço no Palácio do Itamaraty carioca, em 1967. Correio da Manhã

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Joel Cardoso Pós-doutor em Artes (Cinema & Literatura) pela Universidade Federal Fluminense e doutor em Letras pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Professor do curso de Cinema e da pós-graduação em Artes da Universidade Federal do Pará. Autor de, entre outros títulos, Nelson Rodrigues: da palavra à imagem (Intercom, 2010) e organizador, com Bene Martins, de Desdobramentos das linguagens artísticas: diálogos interartes na contemporaneidade (PPGArtes, 2012).

Na intranquilidade do universo

de Nelson Rodrigues

É preciso ir ao fundo do ser humano. Ele tem uma face linda e outra hedionda. O ser humano só se salvará se, ao passar a mão no rosto, reconhecer a própria hediondez.

“O subúrbio tem fome de livros”, diz Nelson Rodrigues, em sessão de autógrafos que inaugura a Livraria do Correio da Manhã no bairro do Méier, Rio de Janeiro. Julho de 1967. Correio da Manhã

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Considerações preliminares: apresentar Nelson ainda é preciso? Temos dificuldades em aceitar o novo. Por detrás de máscaras que aparentam modernidade, somos, na verdade, demasiadamente conservadores. É tendência do ser humano ficar no conforto do conhecido. Se, por um lado, o desconhecido nos fascina, por outro lado, ele nos amedronta. Poderíamos nos perguntar: por que, ainda hoje, voltar a Nelson Rodrigues? Nelson Rodrigues continua, depois de mais de trinta anos de sua morte e mais de cem anos após o seu nascimento, sendo polêmico; sendo, ainda, para muitos, intragável; sua obra continua atual, provocativa, instigadora... Ele abriu, no estagnado panorama do nosso marasmo cultural, fendas que continuam vivas, continuam latentes, fendas que ainda incomodam. Homem das letras, cultivou os mais variados gêneros. O conto, o romance, o texto jornalístico, a novela, o folhetim (ainda em voga), a crônica, a crítica social e de arte foram algumas modalidades de gênero que expressaram o pensamento irrequieto do autor. Na crônica, fez escola. Se não criou, praticamente remodelou a crônica esportiva (leia-se futebolística). Com seu estilo direto, elegante, contundente, moldou o gênero, marcado por sua irreverência, pela sua maneira particular de encarar o futebol. Transitou, sobretudo, com sua habitual maestria, pelo teatro e, aí, fez escola. Depois do sucesso de Vestido de noiva, que ganhou unanimidade nacional, ele poderia ter se acomodado, ou se aproveitado do modelo que o notabilizara para criar outros similares. No entanto, a peça que viria na sequência de sua trajetória como dramaturgo desmente esse acomodamento. Álbum de família, peça transgressora, ficou proibida por 21 anos pela censura da

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época. Escreveu, ao todo, 17 peças. Sobrepondo-se ao social, indubitavelmente importante, ressalta, nelas, o ambiente familiar, onde pululam as obsessões, as taras, as perversões, as transgressões tácitas. Por eleger a família – entidade intocada –, as tramas, que seriam aceitas com mais naturalidade se ambientadas socialmente, ganham complexidade, intensidade quando ambientadas no seio da família. Alinham-se, em seus textos, traições (as mais diversas, nos mais diversos níveis), desejos (molas propulsoras da vida e calados socialmente), obsessões, taras, máscaras sociais (hipocrisias que, uma vez assumidas, já não podemos mais delas nos desvencilhar), religiosidade e pecado. Nelson Rodrigues e o cinema Nelson surge no universo do cinema em 1950, e, a partir daí, o cinema, atento à qualidade artística do texto, mas também de olho no mercado, fez e continua a fazer releituras das obras do autor. Os mais diversos textos foram transpostos para a tela grande. Entre 1952 e 2002, portanto, num período que abarca cinquenta anos, época em que me debrucei sobre o universo do autor na minha pesquisa de doutoramento, 22 textos do autor foram lidos pelo cinema. Nesse mesmo período, Nelson participou de diversas maneiras do fazer cinematográfico, ora acompanhando as filmagens (e interferindo ativamente nelas), ora criando diálogos, ora adaptando textos. O primeiro filme baseado diretamente em texto do autor é de 1952, Meu destino é pecar, com direção do argentino Manoel Pelufo. Mas, em 1950, ocorreu o primeiro envolvimento de Nelson Rodrigues com o cenário cinematográfico. Nessa data, ele assina os diálogos da comédia Somos dois, dirigida por Milton Rodrigues. Em 1961, escreve, também, os diálogos de Mulheres e milhões, comédia dirigida por Jorge Iléli. Em 1962, quando já em vigor as

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Fischer, esta, no auge de sua beleza, personificando um objeto desejável sexualmente pelos brasileiros. A última leitura desta peça foi viabilizada por Moacyr Góes, produzida em 2008-9 e, por conta de diversos problemas, foi lançada oficialmente apenas em 2013. Voltando ainda para a década de 60, ainda em 1963, Nelson se responsabiliza pelos diálogos de Meu nome é Pelé. No ano seguinte, 1964, mais dois filmes dos textos rodrigueanos: Asfalto selvagem e A falecida. Em A falecida, hoje um cult, com um roteiro que teve a participação de Nelson, e direção de Leon Hirszman, temos a estreia de Fernanda Montenegro no cinema, vivendo a atormentada Zulmira, uma mulher obcecada pela ideia de morte. A personagem sonha com um enterro de luxo, um enterro esplendoroso, para compensar a vida medíocre que teve. O beijo (1965) é a primeira leitura cinematográfica da peça O beijo no asfalto. O filme, dirigido por Flávio Tambellini, carregou nos tons realistas e expressionistas do texto. Hoje, é, também, um cult. Merece ser revisto. Ainda de 65 é Engraçadinha depois dos 30, uma continuação de Asfalto selvagem. Vindo de um texto em prosa, Nelson Rodrigues dá sua contribuição nos diálogos do filme. Dada a concisão de seu estilo jornalístico, seco, enxuto, transmitindo apenas o essencial, indo direto ao ponto, é chamado para elaborar os diálogos de O mundo alegre de Helô, filme de 1966, e da comédia de 1970 Como ganhar na loteria sem perder a esportiva.

Cartaz de Bonitinha, mas ordinária (1981) exibido em cinemas. Serviço de Censura de Diversões Públicas - RJ

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inovações estéticas do Cinema Novo, aparece Boca de Ouro, sob a batuta de Nelson Pereira dos Santos. Surge, a partir de então, uma sequência quase ininterrupta de textos rodrigueanos que migram para o universo do cinema. Isso, certamente, não é obra do acaso. A primeira versão de Bonitinha, mas ordinária é de 1963, com Jece Valadão, cuja personagem, simbolizando o machão cafajeste, faria sucesso à época. Bonitinha, mas ordinária é o texto de Nelson que mais foi revisitado pelo cinema. Alcançou três versões. A segunda, de 1980-1, com direção de Braz Chediak, versão em que atuam Lucélia Santos e Vera

Em 1972, Arnaldo Jabor dirige Toda nudez será castigada, um filme referencial na carreira desse diretor e, indubitavelmente, uma das melhores transposições de um texto de Nelson para a tela grande. A atriz Darlene Glória, vivendo a personagem Geni, está no melhor desempenho de sua carreira. O filme merecidamente conquistou diversos prêmios nacionais e internacionais. Jabor voltaria, em 1975, ao repertório dos textos de Nelson em O casamento, mas não consegue, desta feita, o mesmo impacto do primeiro. O universo da crônica rodriguiana migra para o cinema em 1978 com A dama do lotação. O filme, dirigido por Neville D’Almeida e estrelado convincentemente por Sônia Braga (outra musa do nosso cinema), se converteu, à época, em um dos maiores sucessos de bilheteria do cinema nacional.

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Produção de 1980, Os sete gatinhos foi dirigida por Neville d’Almeida. Em 1981, chega às telas a mais polêmica das peças de Nelson, Álbum de família. A direção é de Braz Chediak, com um elenco estelar: Dina Sfat, Vanda Lacerda, Lucélia Santos, Rubens Correia e outros. O roteiro deste filme contou com a participação de Nelson. Em 1983, chega às telas Perdoa-me por me traíres, um filme de J. B. Tanko.

em contato com oitocentas mil pessoas de uma vez é sério, é um fato muito transcendente”, afirmou Nelson em entrevista concedida para o Museu da Imagem e do Som em 1967. Escreveu, para a TV, três novelas e uma minissérie. Foi, em 1966, apresentador de um quadro, A cabra vadia, no programa Noite de gala. Duas de suas peças foram teledramatizadas: Vestido de noiva (de 1974, com direção de Antunes Filho, em preto e branco, sem dúvida, um espetáculo referencial até hoje e inexplicavelmente relegado ao esquecimento) e, em 1985, Senhora dos afogados (numa adaptação de Carlos Queiroz Telles, dirigida por Antônio Abujamra), além dos já citados quarenta episódios de A vida como ela é...

A vida como ela é..., nome de uma coluna diária de crônicas que Nelson Rodrigues assinou por mais de dez anos nas décadas de 50 e 60 do século passado para o jornal Última Hora, tinha como cenário o Rio de Janeiro da época. Os textos curtos, irreverentes, com finais inusitados, alcançaram um enorme sucesso. Foram o ponto de partida para uma série de quarenta episódios que, aproveitados pela Rede Globo de Televisão, eram apresentados nos intervalos do programa Fantástico.

Homem do seu tempo, atento à disponibilidade midiática da época, Nelson Rodrigues flerta, ousada e despreconceituosamente, com a televisão. “Acho a televisão uma coisa afrodisíaca. O fato de se estar

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Boca de Ouro, em 1990, volta às telas, agora sob a direção de Walter Avancini. Seguem-se outras produções: A serpente (1992, direção de Alberto Magno), Traição (1998, um longa em três episódios, cada um deles dirigido por jovens diretores, “O primeiro pecado”, de Arthur Fontes; “Diabólica”, de Cláudio Torres; e “Cachorro”, de José Henrique Fonseca), Gêmeas (1999, direção de Andrucha Waddington, que, inicialmente, faria parte do longa Traição). A mais famosa peça de Nelson, Vestido de noiva, ganha, finalmente, uma leitura cinematográfica em 2006. Na direção, Jofre Rodrigues, filho do dramaturgo.

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As crônicas de Nelson funcionavam como exercício dramatúrgico para o autor. As tramas, as situações, os diálogos de muitas delas apareceriam, depois, em suas peças. Também por conta dessas crônicas, muitos filmes experimentais foram produzidos. Um deles, de 1987, tem por título, exatamente, A vida como ela é... Com apenas cinco minutos de duração, foi dirigido por Nilson Queiróz Couto. Baseado no universo rodrigueano, surge, no ano 2000, Os filhos de Nelson, um interessante curta-metragem de Marcelo Santiago.

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Este percurso, que se sabe parcial e sucintamente apresentado, mostra a versatilidade de um autor, sempre inquieto, sempre buscando novas formas de representação. Nelson Rodrigues: polêmica, ousadia e irreverência A família é o inferno de todos nós. Nelson Rodrigues

Sem medo de se expor, afrontando abertamente o convencionalismo vigente, completamente descrente dos valores tradicionais, cônscio da fragilidade das evidências sociais, nem sempre verdadeiras, Nelson Rodrigues questionava tudo. É autor de frases primorosas, que entraram para a história e, em torno delas, se criou um anedotário, se tornaram antológicas. Nelson gostava de polemizar. Irreverente por natureza, suas frases, seus ditos impactavam. Caindo no gosto popular, hoje, as citações do autor são sempre lembradas e mencionadas, e, por vezes, como não poderia deixar de ser, até desvirtuadas. Mas isso, para o público ainda ávido de Nelson, realmente não importa. Não é esse mesmo o destino de toda obra de arte? O público decide o teor e as formas de recepção de toda produção artística. No teatro, área que conferiria maior credibilidade e notabilidade ao autor, criou peças referenciais, revisitadas nacional e internacionalmente pelos amantes e produtores teatrais. Sem medo de chocar, ele queria mesmo é “um teatro desagradável!... obras pestilentas, fétidas, capazes, por si só, de produzir o tifo e a malária na plateia”. Os temas apresentados em sua obra punham em cena a classe média. Sobretudo, as famílias da classe média. A família era a célula mater da sociedade, a panela de pressão onde se coziam todas as transgressões, todos os desejos, todas as taras. Em sociedade, a hipocrisia era (e ainda é) a

tônica dominante. Segundo ele, “toda família tem um momento em que começa a apodrecer. Pode ser a família mais decente, mais digna do mundo. Lá um dia aparece um tio pederasta, uma irmã lésbica, um pai ladrão, um cunhado louco. Tudo ao mesmo tempo”. O cinema era importante, mas o veículo de expressão em que mais se sentia à vontade era o teatro. Ele sabia da permanência do teatro enquanto arte. Afirmou: “O teatro vive de mortes e de ressurreições. De vez em quando, vem alguém passar-lhe o atestado de óbito. Mas ele continua. Não importa que a tela cinematográfica seja miguelangesca. […] Mas o teatro está vivo, o teatro é um cadáver salubérrimo.”1 Aí, talvez, resida a dificuldade maior de se transpor para o cinema, um outro suporte, com outros recursos, com outras dinâmicas narrativas, uma obra tão decididamente teatral. As estratégias que tão bem funcionam no palco carecem de adequações que, por vezes, descaracterizam o texto de origem. Homem do seu tempo, arguto observador do comportamento humano, o autor reflete com profundidade sobre as mazelas humanas, sobre o comportamento hipócrita e contraditório do homem, de como esse homem lida com os próprios desejos, reprime ou extravasa suas tensões. Como esse mundo interior vem à tona e se reflete na sociedade, opondo-se ou entrando em consonância com aquilo que a sociedade espera desse sujeito. A partir de suas próprias vivências, conferiu uma dimensão universal ao homem simples que transita pelas ruas de sua cidade, do seu bairro. Nesse mundo, as interdições são muitas. Era um mundo hipócrita, centrado nas aparências, feito de contradições, de interditos. Descobrir o mundo, mostrando especificidades do ser humano, na íntegra, sem subterfúgios, era tarefa hercúlea. Por isso, o universo familiar, onde tudo tem o seu início, o fascinava. Procurava, sorrateiramente, desvendar mistérios olhando “pelo buraco da fechadura”.

1 Nelson Rodrigues em crônica publicada no Jornal da Tarde, São Paulo, em 25 jun. 1968.

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Cada leitura de um texto – literário, teatral, cinematográfico – dialoga necessariamente com todas as nossas leituras anteriores, tanto as que têm a ver diretamente com o texto lido, como com outras, mais distantes, menos relevantes. Um texto – qualquer que seja ele – sempre vai fazer parte dessa ciranda intertextual que se instaura de imediato. Que se instaurem critérios comparativos é inevitável, mas que, no processo comparativo, se processem, como comumente acontece, critérios apenas valorativos, deveria ser repensado. Joel Cardoso & Luiz Guilherme dos Santos Jr.2

tor ocorre, via de regra, através das apresentações televisivas ou através do cinema. Os textos criam expectativas de que neles se encontrem traições, cenas tórridas de sexo, imoralidades. Em se tratando de adaptações literárias de textos famosos para o cinema, é comum, mesmo nos nossos dias, que as pessoas esperem uma transposição (uma tradução) fiel do texto de origem para as telas. Bem sabemos que as fronteiras entre as diversas artes se tornam cada vez mais tênues. As linguagens artísticas se entrecruzam, se interseccionam. Cinema e teatro, artes narrativas, compartilham técnicas e procedimentos ora distintos, ora similares. Vejamos, a respeito, as considerações de Sábato Magaldi:

Ainda hoje, o nome de Nelson Rodrigues está associado a um quê de imoralidade, de escândalo, de sexualidade. O contato das pessoas com o au-

O realismo cinematográfico, sobretudo depois que passou a falar na tela, absorveu o diálogo espontâneo, natural, cotidiano sem prejuízo dos avanços

Nelson Rodrigues: contrapontos criativos e filosóficos

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Vera Fischer e Nuno Leal Maia em Perdoa-me por me traíres (1980), de Braz Chediak. Serviço de Censura de Diversões Públicas - RJ

2 CARDOSO, Joel; SANTOS JR., Luiz Guilherme dos. Teatro, imagem e vanguarda: o filme “Vestido de Noiva”. In: CARDOSO, Joel; MARTIN, Bene (Orgs.). Desdobramentos das linguagens artísticas: diálogos interartes na contemporaneidade. Belém: PPGArtes, 2012. p. 143-173.

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Na intranquilidade do universo de Nelson Rodrigues

dos cortes, das elipses dos flashbacks. O cinema tornou-se admirável escola de uma linguagem ficcional. Por que não incorporá-la ao palco? Acredito que a grande liberdade da técnica dramatúrgica de Nelson tenha nascido na observação de espectador cinematográfico. Se a Sétima Arte não teve pudor de assenhorar-se de procedimentos teatrais, a recíproca não mereceria condenação. 3

Antonin Artaud, outro ícone do mundo dos palcos, afirmava que “o teatro é o lugar onde se refaz a vida”. Nelson, como ninguém, provou a veracidade disso. No seu teatro, a vida se refez extrapolando os limites de suas probabilidades. O cinema, com raríssimas exceções, se mostrou muito tímido na leitura das peças rodrigueanas. Se, no passado, o que se esperava era que os diretores se comportassem respeitosamente em relação à obra literária, hoje, preconiza-se que, procurando a originalidade, aproveitando a seu favor os recursos de que o cinema dispõe, o que almejamos é que, nesse entrelaçar de signos e tramas proposto pela transposição cinematográfica, alcancemos um ponto de equilíbrio em que o texto anterior, embora presente, não se torne o ponto fundamental da transposição fílmica. Em outras palavras, ao se ler, cinematograficamente, um texto literário, e, no caso, teatral, respeito e fidelidade ao texto de origem devem ficar subordinados à estética do novo suporte, no caso, o cinema. Essa discussão já vem ganhando espaço há um bom tempo. Toda tradução é problemática. Traduzir poesia de uma língua para outra, mesmo quando se trata de línguas próximas, como, por exemplo, do espanhol para o português, é apostar nas adequações, é investir na criatividade, é dominar técnicas. Perdem-se, no processo, as cadências que dão beleza e sustentação aos versos, volatizam-se as nuances semânticas e metafóricas, modificam-se as especificidades sonoras, criam-se outras relações sintáticas etc. Quando essa tradução se efetiva entre artes distintas, as dificuldades a serem superadas são muito maiores. E se se trata de uma obra co-

nhecida, como é o caso da obra de Nelson, uma obra lida e toda ela já encenada, as cobranças são infinitamente maiores. Não queremos, com isso, validar toda leitura cinematográfica feita do repertorio do autor. Os apelos comerciais, os oportunismos e tendências de época também se fizeram presentes. Porém, não convém investir nesse conceito de valores já que se trata de uma discussão inócua. Os filmes sobre a obra de Nelson Rodrigues aí estão. Há quem os respeite, quem os cultue; há, por outro lado, sempre de plantão, os detratores, a crítica negativa. Se a obra do dramaturgo merece respeito (e quanto a isso não há contestações), as leituras (principalmente as fílmicas) feitas a partir dela não encontram o mesmo respaldo, a mesma respeitabilidade. Há filmes, no entanto, que se tornaram referenciais e, sem dúvida, já entraram para a história da nossa cinematografia. É o caso, entre outros que poderiam ser arrolados, de Álbum de família, A falecida, Toda nudez será castigada, Os sete gatinhos, Bonitinha, mas ordinária, A dama do lotação. É inegável, nos filmes, a atualidade do autor. Hoje, mais do que nunca, precisamos, numa revisão de valores, voltar aos textos rodrigueanos. Lê-los, estudá-los, revisitá-los à luz da modernidade. Não só importante como dramaturgo, Nelson se firma, paralelamente, para além da criação teatral, como escritor de peso, situando-se entre os nomes mais respeitáveis do nosso panorama literário. Ocupando um lugar não galgado por nenhum outro dramaturgo, Nelson Rodrigues − quer gostemos, quer não; quer aceitemos, quer não − é o maior tragicômico do teatro latino-americano. A realidade, para ele, era assimilada no cotidiano, transformada, surrealística e ousadamente, à exaustão, pela sua subjetividade, até se converter em algo particular, absolutamente pessoal e, talvez, por isso mesmo, universal. Referimo-nos, aqui, ao seu decantado lado expressionista. Expressionismo que se traduz na tradução e incorporação da miserabilidade humana, na assunção deliberada das mazelas, polêmico ponto de questionamentos

3 MAGALDI, Sábato. Dramaturgia e encenações. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1992. p. 43.

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e de repulsas do ser. Ao contrário: o texto se nutre desse lado refutável, recusável, negado. O lado feio, esquisito, indizível e negado do ser humano vem à tona, torna-se visível. Nada, nesse sentido, pode causar mais desconforto ao espectador. Mas, por outro lado, nada também tão verdadeiro, tão presente, quanto esse lado humanamente assustador que negamos, rechaçamos, escondemos. Daí o sentido absolutamente teatral de suas obras: a ostentação de máscaras sociais, representando dissimuladamente para o mundo que nos cerca o que sentimos, o que somos interiormente, privilegiando o indizível que há em cada um de nós, aquilo que é inconfessável. Se cada qual se mostrasse tal qual é, sem dúvida, não seríamos sequer minimamente aceitos socialmente.

Com esta proposta estética realista inovadora, perpassada por uma ousadia filosófica que põe em cena o questionamento individual e coletivo do ser, não é de se estranhar que tenha surgido essa obra polêmica, obra que incomodou e continua incomodando também nos nossos dias. Seres carentes, buscamos, consciente e inconscientemente, a aceitação social. Buscamos, narcisicamente, nos demais, a nossa própria imagem. Espetacularmente, ansiamos pelo aval do outro. Fingimos. Em suma, representamos. A obra de Nelson é o desvendar desses escaninhos internos, escaninhos que nos devolvem a uma realidade que, a todo custo, queremos negar. Daí a sua grandeza, a sua originalidade, a sua eficácia (artística, filosófica, estética).4

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Lucélia Santos (1ª à esq.) em cena de Engraçadinha (1981), de Haroldo Marinho Barbosa. Serviço de Censura de Diversões Públicas - RJ

4 Referências bibliográficas: CARDOSO, Joel. Nelson Rodrigues: da palavra à imagem. São Paulo: Intercom, 2010; RODRIGUES, Nelson. Flor de obsessão. São Paulo: Cia. das Letras. 1987.

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Rossana Ghessa é Bebel, garota propaganda (1968), de Maurice Capovilla. Roteiro baseado no romance Bebel que a cidade comeu, de Ignácio de Loyola Brandão. Correio da Manhã

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Adriana Cursino Doutora e pós-doutora em Comunicação e Audiovisual pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e pela Universidade Carlos III de Madrid. Autora dos livros Crítica e análise do audiovisual (CCAA, 2010), História do audiovisual (CCAA, 2008) e Introdução ao audiovisual (CCAA, 2007). Como documentarista, dirigiu Estado de seca (2007) e Viaje a Yebisah (2014).

O cinema que olha o cinema:

uma breve história da apropriação no audiovisual

Las imágenes están vivas, mas, hechas como están de tiempo y de memoria, su vida es ya y siempre Nachleben, supervivencia, amenazada sin cesar y en trance de asumir una forma espectral.1

Giorgio Agamben

Decasia (2002). Bill Morrison Film

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Decasia (2002). Bill Morrison Film

Nos últimos anos, nota-se certa inquietude nas questões relacionadas ao conceito de arquivo e à importância atribuída à recuperação de imagens cinematográficas para finalidades estéticas variadas. É notório o fato de que os paradigmas do arquivo estão em mutação. Hoje, a preocupação com ‘arquivo’ coincide com a quebra da disposição tradicional do saber. Para o filósofo espanhol Miguel Morey, estamos diante da decomposição de um modo universal do saber, que se converte na quebra da noção de biblioteca e em sua substituição por nova forma paradigmática de arquivo, por uma espécie de ‘arquivo interminável’, sem princípio de seleção. Segundo Morey,2 esse fato coincide diretamente com a proliferação de imagens, de bases de dados digitais, da gestão desses dados e da revisão dos sentidos da memória histórica, geral e individual. Esse paroxismo consiste em praticamente tudo que ocorreu no mundo, relevante ou não, durante o último meio século ter sido transformado em arquivo audiovisual. Somos cada vez mais estimulados a trabalhar diretamente com um tipo de memória visual que abandona o padrão de acesso às informações de arquivos e bibliotecas tradicionais. Há hoje crescente sensibilidade e consciência para a perda iminente da memória cinematográfica e, por isso, valem os esforços institucionais para a preservação do material em processo de decadência. As imagens ‘salvas de seu fim’, a alteração na percepção do tempo e da memória resultam na

recriação da importância do arquivo, que ganha novas condições e tem de enfrentar desafios com a proliferação de imagens do mundo. A duplicação e o armazenamento da visualidade do mundo e a conversão deste em memória visual, distinta da memória linguística que havia predominado desde princípios do século XIX, produzem uma reconsideração do real cujos resultados só se fizeram notar em sua profundidade no final do século XX. O repertório foi redimensionado, e seus usos, como já dito, tendem cada vez mais a ser dialéticos, ensaísticos e experimentais, e não apenas ilustrativos, como podemos ver na produção contemporânea que trabalha essa questão na materialidade do próprio cinema. Como nos mostram alguns filmes que se articulam em torno do que podemos chamar de ‘ruínas do cinema’. Obras contemporâneas que se aproximam, pela forma como são montadas, de certas configurações do mundo atual, de uma ideia de história fragmentada,3 obras de feitura experimental que usam o próprio cinema como arquivo, opondo uma ideia de movimento e abstração à ‘força de presença’ de uma imagem histórica, de uma imagem documental. Trata-se de produção que reflete e tenta entender o estado que a arte cinematográfica atingiu e o que representa esse imenso banco de imagens que a cada dia ameaça desaparecer. “O cinema parece ser história, no sentido de que está sendo absorvido por outros meios”, observa Kerry Brougher.4 Tais obras contribuem para a reformulação das diversas noções

1 AGAMBEN, Giorgio. Ninfas. Valencia: Pre-texto, 2010. p. 23. 2 Citado em CATALÀ, Josep Maria. Las cenizas de Pasolini y el archivo que piensa. In: WEINRICHTER, Antonio (Org.). La forma que piensa: tentativas en torno al cine ensayo. Pamplona: Fondo de Publicaciones del Gobierno de Navarra, 2007. p. 92. 3 Os trabalhos do historiador Hayden White, que tendem a apagar as fronteiras entre o relato histórico e o relato de ficção, mostraram a necessidade de estudar as retóricas e as dimensões emotivas do discurso histórico a partir da teoria literária. A linha de renovadas visões sobre a legitimidade de outros discursos a respeito da história, além do acadêmico, e sobre o lugar do cinema nesse contexto abriu debates com os trabalhos do também historiador Robert Rosenstone. 4 WEINRICHTER, Antonio. El cine en el espacio del arte. Secuencias – Revista de Historia del Cine, Madrid, n. 32, p. 11-33, 2010. p. 18.

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O cinema que olha o cinema

de ‘material alheio’, denominado de modo geral como material de arquivo. Em obras como Decasia ou La ciudad de los signos, por exemplo, reflexões sobre história ou política estão presentes de modo subjetivo; onde em geral, o gesto de apropriação, desprovido da urgência do sentido narrativo imediato, torna as formas experimentais mais leves e as reflexões críticas mais criativas. Decasia, a decadência do tempo na matéria O filme Decasia (EUA, 2002, 67 minutos), de Bill Morrison5 é composto inteiramente de material de arquivo, de pedaços de filmes à beira do desaparecimento, todos feitos de nitrato de celulose, material altamente inflamável que tende a apodrecer facilmente. E é justamente a podridão que fascinou o diretor. Dramas, documentários, testes de projeção, cerca de mil filmes rodados entre 1914 e 1954 serviram de material de arquivo para Morrison. Seu objetivo era encontrar filmes em alto grau de deterioração que lhe permitissem associar a degradação do filme com a morte dos seres humanos representados. Decasia tem algo de sinfonia de memória. Girar é movimento constante nesse filme; um dervixe que sempre volta, como ponto sutil de um estado de meditação. A imagem de um filme passando no rolo, uma bailarina rodopiando, mulheres tecendo fios, uma roda-gigante para crianças, a vida em constante movimento. Pouco a pouco estamos imersos nesse ‘jogo’, no qual percebemos que todas as pessoas que aparecem no filme não só estão mortas, como também a decadência do nitrato espelha o processo de decadência corporal que afeta todos nós e o próprio cinema. Vida e morte do cinema Decasia representa a morte física do cinema, uma espécie de ruminação meditativa e hipnótica sobre o estado de fim de ciclo hoje comumente atribuí-

do ao cinema. A principal oposição com que nos deparamos é a de vida e morte e, em seguida, do presente que estamos construindo diante de um passado imenso e intenso. Em Decasia, Morrison trabalha com os vestígios que o tempo deixa, incontrolavelmente, na película e as condições metafóricas que esses vestígios podem assumir quando pensados como a experiência do cinema. Já em La ciudad de los signos (Espanha, 2009, 62 minutos), de Samuel Alarcón, vemos outra reflexão em torno da apropriação de imagens. La ciudad de los signos, um recorte no arquivo Nesse filme, os personagens do neorrealismo são como espectros da memória e assumem a condição de fantasmas quando são ‘recortados’ de filmes neorrealistas como collage e sobrepostos às locações, fielmente reproduzidas, de seus filmes de origem, tais como, por exemplo, Roma, cidade aberta (1945), Stromboli (1950), Paisá (1946), Viagem à Itália (1954), Europa 51 (1951), todos de Roberto Rosselini. La ciudad de los signos6 é um filme biográfico. César Alarcón, personagem que abre o filme praticando psicofonia,7 representa o pai do diretor espanhol Samuel Alarcón, que, desde criança, escutava gravações que seu pai fazia, sentia medo e ficava impressionado. César é personagem de um falso documentário que compõe a narrativa do filme. Samuel Alarcón selecionou filmes – a maioria de Roberto Rossellini –, locações e uma cidade – Pompeia, na Itália – para estabelecer relações entre vestígios (físicos) e espectrais de personagens de ficção do cinema neorrealista italiano. Começou gravando nas locações os espaços vazios, reproduzindo enquadramentos para depois fundir os personagens nesses espaços, para tentar descobrir o que pode haver de memória nos espaços físicos, as histórias que podem caber num mesmo lugar e como as imagens apropriadas

5 Morrison (1965-), cineasta norte-americano que ficou conhecido no meio audiovisual por essa obra, costuma ter seus filmes exibidos em festivais, museus e salas de concertos em todo o mundo, incluindo o Festival de Cinema de Sundance (EUA), o The Orphan Film Symposium (EUA), a Tate Modern (Inglaterra), entre outros. 6 La ciudad de los signos tem circulação em espaços culturais − casas de cultura, embaixadas, festivais. O filme nem sequer é registrado, e para uso dos arquivos possui autorização (apenas verbal) de Renzo Rossellini, filho de Roberto, responsável pela administração do acervo. 7 Prática mediúnica que permite a comunicação oral com um espírito por intermédio de um médium. Fenômeno paranormal cujos sons e vozes, que não se produzem em espaço real, foram registrados com magnetófano (emulsão de metal que se move com o ar).

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favorecem esses pontos de vista. As imagens de arquivo efetivamente são os personagens dos filmes (recortados), trechos dos filmes, fotografias e noticiários sobre as filmagens. Em La ciudad de los signos é o método collage que está em evidência, quando os personagens são ‘recortados’ de seus espaços de origem e colocados nas mesmas locações no presente. O efeito de ver soldados da Segunda Guerra Mundial do filme Roma, cidade aberta circulando pelas ruas e dividindo o espaço com transeuntes, seus carros e celulares etc. coloca em perspectiva a história dentro do cinema e o cinema como uma parte da história. Os sons que o personagem César Alarcón recompila nas fendas do Vesúvio são como uma espécie de prova física do passado, para além das imagens. Como coloca o historiador de arte alemão Aby Warburg,8 com os documentos de arquivo decifrados, restituímos “timbres de vozes inaudíveis, vozes de desaparecidos, vozes ocultas retiradas da simples escrita”. Há, de fato, um desejo que move o ‘curioso’ em direção a ver, ver mais, ouvir, tocar o que só existe em vestígios ou possibilidades. Um desejo de memória que o filme materializa, dando cara, feições e gestos a estes fantasmas cinematografados, problematizando na articulação que propõe formas de lidar com o passado e com a ausência do que queremos ver e já não podemos. Quando convoca as ruínas de Pompeia, Alarcón nos faz refletir sobre as ruínas do cinema, que seriam representadas pelo neorrealismo italiano.

sucedem desde 1895. Uma experiência que talvez logo tenha que se explicar às próximas gerações, a de ver um filme sem que o projetor esteja à vista; em uma tela de tamanho imponente, em uma sala escura, coletivamente, sem poder acelerar a imagem, frisá-la ou voltar a vê-la pouco depois. A era digital trouxe, primeiro, a cultura do DVD e depois um horizonte de descargas (de acesso livre ou não). Tudo isso contribuiu com a desmaterialização progressiva da noção de filme associada a um determinado suporte, à sua condição de objeto físico. A própria decadência tanto das películas como de um certo modo de acesso aos filmes, do brilho de outra forma de experimentar o cinema, coloca a “situação cinema” como ruína. O cinema passa a ganhar o estatuto de documento, como vestígio que deve ser preservado, ou mesmo como obra

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Cartaz de La ciudad de los signos (2009). Samuel Alarcón

As ‘ruínas do cinema’ vão dos destroços dos filmes ao modo de ver cinema, “a morte de uma forma de cinefilia”, como sugere Susan Sontag.9 Os novos hábitos de consumo do cinema pós-moderno centram-se em outras telas, hoje em dia se vê mais cinema em outros formatos audiovisuais do que nunca. O que está cada vez mais ameaçado de extinção é a moving image experience, segundo o autor Antonio Weinrichter,10 “a experiência da imagem em movimento em que foram criadas muitas gerações (não tanto as últimas) de espectadores que se 8 DIDI-HUBERMAN, Georges. La imagen superviviente: historia del arte y tiempo de los fantasmas según Aby Warburg. Madrid: Abada, 2009. p. 36. 9 Citada em WEINRICHTER, Antonio, op. cit., p. 12. 10 Ibidem, p. 16-17.

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de museu, cuja sobrevivência deve ser garantida. Neste contexto, a prática da apropriação ganha novos contornos. De certo modo, alguns artistas que se apropriam de filmes, de ruínas do cinema visando salvar tais imagens do silêncio eterno são como os primeiros colecionadores que queriam iluminar a vida daquelas imagens. Se já havia um elemento memória naquele início do cinema, uma ideia de documento já vinculada às imagens oficiais e de guerra, hoje a memória parece estar mais ligada a uma ideia crítica, à percepção do lugar que atribuímos às coisas do passado, à seleção do que pode ser eficaz como argumento artístico para uma posição crítica diante do fluxo acelerado de produção de informação. Genealogia da apropriação É na trajetória do documentário que o gesto de apropriação efetivamente surge, com os trabalhos da cineasta Esther Schub (1894-1959) desde os anos 20. As práticas experimentais e poéticas seguiam as artes de vanguarda, enquanto as práticas documentais de compilação seguiam o cinema construtivista e as teorias de montagem que vinham sendo desenvolvidas, principalmente pelos soviéticos Serguei Eisenstein (1898-1948) e Dziga Vertov (1896-1954). Naquele contexto surge o trabalho da soviética Esther Schub, auxiliar de Eisenstein, cuja prática só foi devidamente reconhecida e analisada pelo historiador e cineasta norte-americano Jay Leyda,11 com seu livro Films beget films – a study of the compilation film. Leyda foi quem criou a expressão ‘cinema de compilação’ para abarcar as práticas documentais com arquivo, sem estender suas análises às práticas experimentais com arquivo. Leyda analisa ainda, dentro dessa perspectiva, as séries e os documentários televisivos, os documentários de guerra e as primeiras experiências ensaísticas do alemão Hans Richter (1888-1976). Podemos dizer que

três momentos envolvem a prática de compilação: o ato em si da apropriação, o trabalho da montagem ou remontagem dos fragmentos e o efeito da recontextualização ou atribuição de novo sentido. Além do livro de Leyda, os principais estudos sobre práticas com materiais alheios são o do norte-americano Willian Wees (Recycled images: the art and politics of found footage films, 1993), o do sueco Patrik Sjöberg (The world in pieces: a study of compilation film, 2001) e o do espanhol Antonio Weinrichter (Metraje encontrado: la apropriación en el cine documental y experimental, 2009). Até os anos 1950, o uso do arquivo tinha fins majoritariamente clássicos, as imagens serviam como ilustração de determinados discursos. A partir de então, foram os cineastas Agnès Varda e Chris Marker, os primeiros a “contribuir para retirar o documentário da paralisia em que ele se encontrava”, criando “experiências subjetivas nos próprios filmes, articuladas a uma interrogação sobre o mundo e a uma reflexão sobre as imagens, por meio de uma narração em off ensaística e subjetiva”, como coloca a autora Consuelo Lins.12 Para os filmes experimentais e ensaísticos, por sua vez, o arquivo já não é tanto ‘material de arquivo’ no sentido de documento com suas origens rastreadas, mas ‘material encontrado’ ou found footage, uma espécie de segundo escalão na hierarquia das imagens de arquivo. Nas formas experimentais, como já mencionado, as imagens têm seus sentidos originais completamente alterados, ou, em alguns casos, nem sequer reconhecemos o que há nas imagens; nestas obras, as imagens praticamente ganham tempo para ‘dizer’ onde devem estar, onde devem sobreviver em nova disposição audiovisual. As obras experimentais exploram potencialmente o caráter de invenção das imagens, seus ‘valores de origem’, expandindo as possibilidades de montagem e interpretação.

11 Não saberia precisar aqui as razões que levaram Leyda a escrever sobre filmes que usam arquivo, mas suponho que, tendo sido aluno de Eisenstein nos anos 30 e dedicado boa parte de seus livros ao cinema soviético − como Eisenstein at work (Pantheon Books, 1980), Eisenstein on Disney (Methuen Paperback, 1986) e o já citado Kino: a history of the russian and soviet film (George Allen & Unwin, 1960), além de ter editado e traduzido Film form: essays in film theory (Hartcourt, 1949) e The film sense (Hartcourt, 1942), ambos de Serguei Eisenstein −, ele tenha tomado conhecimento do trabalho de Esther Schub e até mesmo possivelmente a tenha conhecido. 12 LINS, Consuelo. O ensaio no documentário e a questão da narração. Disponível em: <https://www.academia.edu/4786641/O_ensaio_ no_documentario_e_a_questao_da_narracao>. Acesso em: 23 jul. 2014.

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Ready made

O gesto de apropriação é oriundo dos experimentos vanguardistas do artista francês Marcel Duchamp (1887-1968), que efetivamente gerou o método do collage nas artes e do found footage nas práticas audiovisuais. Duchamp foi quem introduziu a denominação ready-made para designar “os objetos de consumo pré-fabricados ou produzidos industrialmente, que o artista declara obras de arte sem alterar em nada seu aspecto externo”.13 Quer dizer, Duchamp nos mostra como o objeto/mercadoria se estetiza e como a obra de arte se mercantiliza, em operação dialética única, cujas características não são opostas, mas complementares. Quando usa objetos ‘feitos’ produzindo um novo ‘objeto’, uma obra de arte; quando elimina a finalidade original da peça, retirando-a de seu contexto habitual, Duchamp está dizendo que em toda atuação artística há uma dimensão de acoplamento, de uso de materiais já existentes. É essa a noção presente nos métodos de collage e found footage. Collage

Collage designa o ato de pegar, cortar, colar e montar objetos ou materiais com tesoura e cola. No universo do audiovisual, collage significa montagem, que é também pegar materiais diversos e os unir. De um ponto de vista técnico, todos os filmes podem ser considerados formas de collage; há, contudo, que diferenciar categorias opostas que são o cinema de vanguarda e o cinema clássico e, dentro delas, os documentários e os filmes de ficção. Dito de outro modo, as relações entre collage e cinema estão efetivamente no cinema de vanguarda em que, digamos, o collage estaria para os filmes de vanguarda, assim como a compilação para os filmes documentários. Justamente porque o collage subverte o sentido original dos materiais dos quais dispõe. Por isso, a técnica vem acompanhada da ideia de rompimento do fluxo da “ilusão de continuidade”.

Ainda que o found footage utilize pedaços de material, só o collage é capaz de descontextualizar plenamente, rompendo a aparência de totalidade presente nas obras convencionais. Para o autor William Wees,14 o collage mudou as regras básicas da representação artística em que

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a questão da referencialidade, inerente ao collage, conduz a substituição dos significados − os objetos a imitar − por um novo conjunto de significantes que chamam a atenção sobre si mesmos enquanto objetos reais em um mundo real.

Collage é procedimento físico que deriva das artes e, quando aplicado ao cinema, diz respeito não à presença física de imagens alheias na obra, mas à ‘presença’ como citação e referência a objetos procedentes do mundo ‘real’ na obra de arte cinematográfica. Found footage

Um trabalho com found footage normalmente parte de um material adquirido ‘por acaso’, que pode ter sido encontrado em um sótão, na rua, em uma lata de lixo, em um mercado de pulgas ou até mesmo num arquivo. Na prática do found footage, esses materiais encontrados muitas vezes servirão como citação e como matéria-prima para novas estruturas. Se para Benjamin15 “citar um texto significa interromper seu contexto”, para os cineastas de found footage, equivale a interromper o fluxo narrativo de organização mais clássica, efetivamente interromper “o contexto no qual os materiais existem normalmente e no qual aparecem como ‘naturais’.16 O termo ‘encontrado’ é noção relativa, conceito cujo significado está muito mais perto de ‘existente’, ou da consciência de que o material já foi ‘filmado’ por outra pessoa. É “[…] uma consequência política da revolução estética chamada collage”,17

13 THOMAS, Karin. Diccionario del arte actual. Barcelona: Labor, 1978. p. 171. 14 WEES, William. Recycled images: the art and politics of found footage film. New York: Anthology Film Archives, 1993. p. 49. 15 BENJAMIN, Walter. Textos escolhidos – Walter Benjamin et al. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Abril Cultural, 1983. Col. Os Pensadores. p. 19. 16 WEES, William, op. cit. p. 39-40. 17 Ibidem, p. 41.

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portanto, uma atitude artística, ‘filiada’ ao mundo das artes e herdeira de outras vanguardas como fotomontagem, ready-made e da estética dadaísta de ‘objet trouvé ’, de onde vem a expressão found footage. Os pioneiros do found footage foram os diretores norte-americanos Joseph Cornell (1903-1972), com o filme Rose Hobart (1936), e Bruce Conner (19332008), com A movie (1958). O found footage remete quase sempre ao mundo do cinema e não ao referente, prática que traz em si a ideia de ‘dupla vida’ (ou múltiplas vidas), que toda imagem apropriada adquire: a vida do aqui e agora do filme experimental que estamos contemplando e a vida da imagem original, que depois de tudo aparece de forma tão viva diante de nossos olhos. Diferente da prática de compilação, com o found footage os sentidos originais das imagens são radicalmente modificados. Em geral, nas práticas cinematográficas que utilizam materiais alheios, a imagem apropriada não perde seu valor semântico (representacional ou referencial), o que a converte em imagem historicamente concreta; o cinema de apropriação, como dito, em geral produz uma volta ao ‘mundo histórico’, porque mantém o significado original das imagens. O que os filmes de found footage fazem é buscar a tradução de uma nova percepção do que as imagens representam através de diferentes arranjos e suportes ou, segundo Walter Benjamin,18 através da “montaje de colisión del material”, tirar o máximo proveito de suas funções e dos lugares “cômodos” que as imagens ocupam nos meios de comunicação. Imagens encontradas − sejam elas documentais ou de filmes de ficção – trazem em si o ‘carimbo’ do tempo. E é o tempo o grande tema dessa prática, em que o que mais importa é recuperar o material antigo, reciclar, interferir, liberar as imagens das funções políticas, ideológicas e estéticas que tinham em seu contexto original para lhes atribuir novo sentido. Já na produção documental nacional majoritariamente se impôs a forma clássica ou interventiva, mais próxima do cinéma verité, do método de entre-

vista, que se difunde a partir da produção crítica no final dos anos 1950. Segundo Lins, o que verificamos em muitos filmes dos anos 90 e 2000 é o privilégio à entrevista em detrimento de outros recursos estéticos e narrativos, a ponto de configurar uma espécie de senso comum documental brasileiro, como diagnosticou Jean-Claude Bernardet, em 2003, ao advertir que o crescimento da produção não correspondia a um “enriquecimento da dramaturgia e das estratégias narrativas”.19

Ao contrário, evidenciava a repetição de um único “sistema”, banalizado pelo jornalismo televisivo: “Não se pensa mais em documentário sem entrevista, e o mais das vezes dirigir uma pergunta ao entrevistado é como ligar o piloto automático.”20 Os usos mais críticos de arquivo nas obras documentais só se deram a partir dos anos 70 nos ‘antidocumentários’ de Arthur Omar, como Congo (1972) e O som, ou tratado de harmonia (1974); em Mato eles? (1982), de Sérgio Bianchi; no antológico Cabra marcado para morrer (1964-1984), de Eduardo Coutinho; em Ilha das Flores (1989), de Jorge Furtado; Rocha que voa (2002), de Erick Rocha; Serras da desordem (2007), de Andrea Tonacci; Santiago (2007), de João Moreira Salles; 500 almas (2007), de Joel Pizzini; e nos mais recentes Pacific (2009), de Marcelo Pedroso; e Um dia na vida (2010), de Eduardo Coutinho. Pacific e Um dia na vida trazem nova problemática, que é a questão dos novos arquivos. Pacific e Um dia na vida, um desafio ao arquivo Em Pacific a história é imediata, praticamente não há sequer o tempo de produzir memória, ou melhor, a memória parece ‘obrigada’ a trabalhar sob o ritmo acelerado do presente. As imagens são produzidas para recordar mais tarde, talvez selecionar lembranças “sob a pressão do esquecimento”,21 numa ação alucinada, possivelmente inconsciente, em que muitas vezes o mais impor-

18 Idem. 19 LINS, Consuelo, op. cit. 20 BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e imagens do povo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 286. 21 Berger citado em CRUZ, Manuel. Recordamos mal. In: BOURRIAUD, Nicolas (Coord.). Heterocronías − tiempo, arte y arqueologías del presente. Murcia: Cendeac, 2008. p. 231.

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found footage – e expõem as contingências dos tempos atuais, “não por falta de uma elucidação suficiente em alguns âmbitos circunscritos da arqueologia, documentação, bibliografia, historiografia”, mas pela complexidade que assume esse conceito [arquivo] no mundo contemporâneo, 23 como já colocava Jacques Derrida. 24

tante é registrar, sem que faça falta ver com os próprios olhos a situação que está sendo vivida.

Não é simples pensar sob o ponto de vista de uma perspectiva histórica imagens tão recentes e banais. O que ocorre, como lembra Weinrichter, 22 é que com os materiais fílmicos “a distância temporal que nos separa dos fragmentos apropriados apaga sua função semântica pretendida originalmente e os converte em objeto historicamente concreto, suscetível de exercício dialético”; já com fragmentos televisivos recentes essa distância praticamente inexiste, o que não quer dizer que não seja possível estabelecer uma relação dialética com os materiais; será, porém, sob novos paradigmas. Porque os novos arquivos, digitais, recentes, desestabilizam os diversos termos que manejamos aqui – arquivo, apropriação,

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A dimensão de ‘sagrado’ ou documento, normalmente atribuída aos materiais de arquivo nas formas documentais clássicas é totalmente deslocada nestes filmes. Em Pacific, o que há para ser guardado, o que corresponderia ao documento, é de ordem pessoal, afetiva e passa pelo ‘congelamento da situação’, pelo registro de algo que não voltará a acontecer. Já em Um dia na vida, o material alheio pode ser considerado ‘ruínas dos tempos atuais’, o filme faz crítica não só ao conteúdo ‘vazio’ da produção das emissoras de TV em questão, mas ao excesso de imagens produzidas diariamente. Em Um dia na vida o que está em jogo é o gesto ‘duchampiano’, a desmontagem e remontagem do material apropriado. Ao mesmo tempo não se trata de um filme de found footage como costumamos ver, mas sim do método em si, pois, no cinema de found footage, o interesse principal é o próprio “cinema” como matéria. Aqui a matéria são as imagens banais de emissoras de TV.

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O artista plástico francês Marcel Duchamp, introdutor da estética readymade, uma das modalidades de found footage nas práticas audiovisuais. Correio da Manhã

22 WEINRICHTER, Antonio. Copy is right – tres momentos fundantes de la poética de la apropriación audiovisual. In: GONZÁLEZ, Fernando E.; SANTA ANA, Mariano de (Orgs.). Memorias y olvidos del archivo. Tenerife: Lampreave, 2010. p. 75. 23 DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo. Disponível em: <http://www.jacquesderrida.com.ar/textos/mal+de+archivo.htm>. Acesso em: 30 jul. 2014. 24 Outras referências bibliográficas: BLOEMHEUVEL, Marente; FOSSATI, Giovanna; GULDEMOND, Jaap (Eds.). Found footage cinema exposed. Amsterdam: Amsterdam University Press; Eye Film Institute Netherlands, 2012; COMOLLI, Jean-Louis. Ver e poder, a inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008; RICOEUR, Paul. Imagem, memória, esquecimento. Campinas: Ed. Unicamp, 2007; ROSSET, Clément. Fantasmagorias seguido de lo real, lo imaginário y lo ilusório. Madrid: Abada Editores S.L., 2008.

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Costa Doutor em Ciência da Informação pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor adjunto da Escola Alessandro Ferreira

de Ciência da Informação da UFMG.

Gestão arquivística

na era do cinema digital:

novas possibilidades, velhos desafios

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Contrapondo o otimismo inicial expresso por Carlos Augusto Machado Calil de que até o raiar do século XXI os problemas inerentes à guarda e conservação de documentos cinematográficos seriam minimizados, e que o advento de uma tecnologia que “[...] foi desenvolvida no sentido de gravar as imagens e sons em microssulcos de um disco de metal ou vidro, os quais são lidos por um raio laser”1 poderia ser determinante na solução daqueles, o universo digital abre uma série de debates e reflexões sobre a importância e sobre a escolha de procedimentos metodológicos adequados à digitalização de filmes2 − e documentos correlatos3 − enquanto recurso estratégico para a preservação e disseminação daqueles aos mais diversos perfis de usuários (o que em muitas das vezes acaba por criar a falsa impressão de uma desnecessária ação de manutenção dos originais analógicos), assim como a guarda dos equivalentes natodigitais, suscetíveis à constante ameaça de perda pela obsolescência de hardwares e softwares. Segundo o Conselho Nacional de Arquivos (Conarq),4 “a preservação dos documentos digitais requer ações arquivísticas, a serem incorporadas em todo o seu ciclo de vida, antes mesmo de terem

sido criados, [...] a fim de que não haja perda nem adulteração dos registros”, favorecendo, assim, a recuperação e a compreensão das informações ali registradas pelo máximo possível de tempo, bem como “[...] a produção e manutenção de documentos fidedignos, autênticos, acessíveis, compreensíveis e preserváveis”.5 Em termos gerais, a guarda digital envolve a captura, o armazenamento, a preservação e o acesso digital sistemáticos, com o propósito de preservar por um longo período “objetos” digitais que contêm arquivos de dados estruturados em um formato que pode ser indexado e recuperado de alguma forma. No contexto do cinema, os objetos digitais geralmente incluem sequências de quadros de imagem digital que formam matrizes digitais, múltiplas bandas sonoras digitais, bandas de diálogos da versão estrangeira e arquivos de texto contendo legendas em diversos idiomas. Esses objetos também podem incluir os originais de câmera digital, os arquivos digitais de áudio stem, os arquivos de áudio pré-mixados ou pré-sonorizados e outros ativos digitais.6

Lembremo-nos, pois, que uma das principais diferenças entre a guarda de documentos digitais e a

1 CALIL, Carlos Augusto Machado. 30 anos depois. In: ______ et al. Cinemateca imaginária: cinema & memória. Rio de Janeiro: Embrafilme, 1981. p. 19. 2 Ressaltamos, pois, que “a migração indiscriminada de grandes depósitos de película para o armazenamento digital é um empreendimento tão vasto e tão caro que nenhum estúdio parece estar contando com essa possibilidade no momento, pelo menos não para preservação arquivística stricto sensu”. (CINEMATECA BRASILEIRA. O dilema digital: questões estratégicas na guarda e no acesso a materiais cinematográficos digitais. São Paulo: Cinemateca Brasileira, 2009. p. 18). 3 A guarda desse material deve ser entendida com a mesma relevância que é tratada a obra finalizada. Sua capacidade de informação é potencialmente ilimitada, oferecendo aos pesquisadores, artistas, técnicos e afins a oportunidade de se compreender o filme por meio de tudo aquilo que serviu de “matéria-prima” para a sua produção. 4 CONSELHO NACIONAL DE ARQUIVOS. Carta para a preservação do patrimônio arquivístico digital: preservar para garantir acesso. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005. p. 2. Disponível em: <http://www.conarq.arquivonacional.gov.br/media/carta.pdf>. Acesso em: 4 ago. 2014. 5 Ibidem, p. 4. 6 CINEMATECA BRASILEIRA, op. cit., p. 13.

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Gestão arquivística na era do cinema digital

dos formatos tradicionais de registro consiste no fato de que os primeiros não sobrevivem ao acaso. Ao contrário. Caso não se estabeleça um conjunto de ações, consubstanciadas por um pensamento lógico e pragmático, as possibilidades de perdas gradativas são consideráveis. Em um momento histórico onde a produção cinematográfica mostrase cada vez mais atrelada ou mesmo dependente dos recursos digitais, é fundamental a tomada de consciência por parte dos realizadores sobre a importância de tudo o quanto fora produzido e/ou reunido − em termos documentais − em virtude de um filme. É bem verdade que essa afirmativa é inerente a qualquer realidade de produção de cinema, analógico ou digital, contudo, a falta de materialidade deste último torna-o ainda mais suscetível à perda em virtude da facilidade com que pode ser excluído (delete) em uma base de dados qualquer. Segundo a Unesco:7

Ao inserir esta premissa no contexto nacional, o 4° Encontro Nacional de Arquivos e Acervos Audiovisuais Brasileiros considera, em sua Carta de ouro preto (Associação Brasileira de Preservação Audiovisual − ABPA, 2009),8 três pontos (dentre outros) os quais entendemos como essenciais ao tema abordado por este artigo:

As imagens em movimento são uma expressão da identidade cultural dos povos e que, devido a seu valor educativo, cultural, científico e histórico, formam parte integrante do patrimônio cultural de uma nação [...]; constituem também uma forma fundamental de registrar a sucessão dos acontecimentos e, como tal, são testemunhos importantes e muitas vezes únicos de uma nova dimensão da história, do modo de vida e da cultura dos povos e da evolução do universo (Tradução nossa).

Ironicamente, há mais de três décadas, Calil9 já expunha com muita propriedade toda a sua preocupação acerca das ações vocacionadas à salvaguarda de acervos cinematográficos em nosso país:

A urgência do reconhecimento da relevância desse Patrimônio Cultural pelos poderes públicos, pela sociedade, inclusive pelos profissionais das atividades cinematográficas e audiovisuais; a constatação do risco iminente de desaparecimento desse Patrimônio Cultural, que representa igualmente um ativo econômico e se encontra em condições desiguais de preservação nas diferentes unidades da Federação; a insuficiência de uma política pública específica e sistemática que contemple o campo da preservação audiovisual no Brasil [...].

O compromisso das cinematecas no Brasil deve-se voltar para o filme contemporâneo. Se dedicarmos dez anos à restauração do nosso passado sem atentar para o presente, esse presente seguramente desaparecerá muito antes do que o próprio passado.10

7 UNESCO. Recommendation for the safeguarding and preservation of moving images. Conferência Geral da Unesco, Belgrado, set.-out. 1980. p. 156. Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0011/001140/114029e.pdf#page=153>. Acesso em: 4 ago. 2014. 8 Disponível em: <http://abpablog.wordpress.com/>. Acesso em: 4 ago. 2014. 9 CALIL, Carlos Augusto Machado, op. cit. 10 Ibidem, p. 18.

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Três pontos nos são aqui oportunos: primeiro, qualquer tentativa de se sistematizar métodos e processos referentes à guarda e ao acesso a qualquer acervo documental de cinema estará fadada ao simples discurso teórico caso não se tenha, na prática, uma mudança do comportamento operacional dos agentes envolvidos tanto na produção como no recolhimento/manutenção daquele acervo. Isso é fato. Segundo, as dúvidas referentes à gestão de documentos em formato digital procedentes da prática cinematográfica pouco se diferem daquelas que já “habitam” as mentes dos profissionais devotados à causa da memória do cinema. O que temos aqui, na realidade, é a busca por respostas práticas que possibilitem a guarda responsável de um novo tipo de material. Por mais que enfrentemos problemas operacionais com a manutenção dos suportes tradicionais, sabemos como fazê-lo. Contudo, a fragilidade da informação digital emerge uma nova dimensão de questionamentos ainda pouco esclarecidos, mesmo considerando aqui os esforços empreendidos na busca por soluções objetivas.11 Um terceiro ponto é a necessária conscientização por parte dos profissionais de cinema de que o digital não representa “eternidade”. Durante o I Congresso Forcine − Fórum Brasileiro de Ensino de Cinema e Audiovisual, realizado na cidade de Belo Horizonte no ano de 2003, debatia-se a difícil questão da conservação dos filmes e documentos afins. Da plateia, um realizador expressou

a opinião de que aquilo era um assunto de fácil solução: digitalizar as películas e depois efetuar o seu descarte, pois, tendo uma versão digital não é necessária a cópia física. Isso é realmente verdade? Bem o sabemos que não. A conversão digital de documentos analógicos favorece a disseminação e o acesso a acervos representativos e, por isso, acaba por intervir indiretamente na preservação dos originais (que passam a ser menos utilizados). Lembremo-nos da orientação proposta pela FIAF (Fédération Internationale des Archives du Film) em seu Código de Ética,12 onde se lê: 1.4. Ao copiar o material para fins de preservação, os arquivos não irão editar ou distorcer a natureza do trabalho que está sendo copiado. Dentro das possibilidades técnicas disponíveis, as novas cópias de preservação devem ser uma réplica exata do material de origem [...] (Tradução nossa, grifo nosso).

Nos últimos dez anos, as consequências da interação cinema-digital vêm sendo matéria dos tradicionais Congressos da FIAF, em especial na sua 62º edição, realizada na cidade de São Paulo, com o tema The future of film archives in a digital cinema world: film archives in transition (2006), e na 66º edição, na cidade de Oslo/Noruega (Digital challenges and digital opportunities in audiovisual archiving, 2010); uma clara tentativa de se consolidar a importância estratégica, histórica e cultural

11 É importante considerar que “não existe hoje nenhuma mídia, hardware ou software que possa garantir razoavelmente a acessibilidade de longo prazo a bens digitais. Uma abordagem dinâmica, que antecipasse falhas e obsolescência, seria essencial”. (CINEMATECA BRASILEIRA, op. cit., p. 13). 12 Disponível em: <http://www.fiafnet.org/~fiafnet/uk/members/ethics.html>. Acesso em: 4 ago. 2014.

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Gestão arquivística na era do cinema digital

da manutenção de documentos cinematográficos digitais na sociedade contemporânea e os mecanismos de guarda a serem adotados por produtores e por arquivos. Gerenciar todo um conjunto de documentos13 resultantes para/da produção de um filme não é tarefa simples de se realizar. Para tanto, faz-se oportuno a elaboração de um plano arquivístico que não só contemple as especificidades e tipologias do material reunido, como também, o atendimento às demandas dos setores específicos de produção, garantindo assim o efetivo controle sobre a massa documental guardada e favorecendo, como o citam Rousseau e Couture:14 1. uma organização mais eficaz do acervo e, por conseguinte, a proteção da informação ali disponibilizada; 2. o acesso mais eficiente aos documentos demandados; e 3. a otimização dos recursos humanos e tecnológicos designados para a função. Os esforços dispensados para a organização de uma massa documental não devem se manifestar somente após a conclusão dos trabalhos de produção de um filme: esse é um erro a ser evitado. Como já expresso neste texto, tal esforço inicia-se no momento da concepção do documento, acompanhando todos os seus trâmites, até a sua destinação final. A isso chamamos de ciclo de vida. No contexto digital, a execução desse trabalho metódico se faz ainda mais importante dada a própria vulnerabilidade do documento. De acordo com os especialistas da área, a garantia de acesso às informações registradas neste tipo de material depende, dentre outras variáveis, do estabelecimento de rotinas que proporcionem a sua migração aos novos padrões tecnológicos que porventura surgirem. Trata-se, na verdade,

de um obrigatório e constante diálogo com o futuro. Na prática, isso significa um investimento contínuo na qualificação de pessoal, como também, no próprio aparato tecnológico onde toda essa informação será devidamente guardada. Àqueles que acreditam que o digital é o “Santo Graal” na gestão e preservação de documentos, uma sugestão: revejam os seus conceitos... Lidar com o gerenciamento de massas documentais associadas ao cinema demanda, daquele que se propõe fazê-lo, não só o comprometimento aos procedimentos técnicos e metodológicos pertinentes àquela atividade, mas também, o conhecimento sobre o próprio universo dos filmes. O tratamento das imagens em movimento requer que se esteja familiarizado com o vocabulário específico e com o processo de produção cinematográfica, e se tenha um bom conhecimento da história do cinema e da sua evolução. Os instrumentos técnicos utilizados, a forma e o gênero cinematográfico, a originalidade dos temas, e até o modo como são abordados são outros tantos elementos que podem influenciar a avaliação e a seleção.15

Para a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas dos Estados Unidos,16 “a guarda de dados digitais exige uma abordagem mais ativa de gerenciamento e uma parceria mais colaborativa entre produtores, arquivistas e usuários para explorar plenamente os seus benefícios”. Neste contexto, complementa ainda aquela instituição: Duas questões são cruciais para entender por que os arquivos digitais não podem ser preservados a longo prazo usando a filosofia de gerenciamento “armazenar e ignorar”: “há alguma maneira de armazenar um objeto digital por 100 anos sem nenhuma manuten-

13 A título de registro, evidenciamos que utilizamos aqui o conceito de documento descrito por Heloísa Liberalli Bellotto (Arquivos permanentes: tratamento documental. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2004. p. 35): “[...] é qualquer elemento gráfico, iconográfico, plástico ou fônico pelo qual o homem se expressa. É o livro, o artigo de revista ou jornal, o relatório, o processo, o dossiê, a carta, a legislação, a estampa, a tela, a escultura, a fotografia, o filme, o disco, a fita magnética, o objeto utilitário etc., enfim, tudo o que seja produzido, por motivos funcionais, jurídicos, científicos, técnicos, culturais ou artísticos, pela atividade humana.” 14 ROUSSEAU, Jean-Yves; COUTURE, Carol. Os fundamentos da disciplina arquivística. Lisboa: Dom Quixote, 1998. 15 Ibidem, p. 238. 16 CINEMATECA BRASILEIRA, op. cit., p. 31.

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ção?”; e em segundo lugar, “existe profundidade de bit suficiente para guardar aquilo que se quer preservar por um preço com o qual se possa arcar?”.17

passados sejam legados ao nosso presente. Como o expressam Rousseau e Couture:18

Pelo então exposto, podemos presumir os níveis de complexidade e de responsabilidade que se debruçam sobre os ombros de indivíduos e instituições responsáveis pela gestão e guarda de conjuntos documentais cinematográficos, principalmente, com o advento das novas tecnologias. Ações desta natureza devem ser compreendidas não apenas como um futuro a ser perseguido, mas também, como um esforço contínuo − por vezes hercúleo − em não se permitir que erros

[...] Nem sempre se apercebem [aqueles que lidam diariamente com determinadas fontes documentais] de que a informação constitui um recurso fundamental para qualquer organismo, e isso ao mesmo nível que os recursos humanos, materiais e financeiros. Nem sempre percebem que a informação deve ser cada vez mais considerada como um todo gerido sistematicamente, coordenado, harmonizado, objeto de uma política clara tal como de um programa alargado de organização e tratamento.

Com a palavra, o cinema

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Acervo de filmes do Arquivo Nacional. Foto de Daniel Santos

17 Ibidem, p. 35. 18 ROUSSEAU, Jean-Yves; COUTURE, Carol, op. cit., p. 62.

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Cartaz de O homem do pau-brasil (1981), de Joaquim Pedro de Andrade, adaptação da obra de Oswald de Andrade. Serviço de Censura de Diversões Públicas - RJ

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Entrevista com Marçal Aquino Por Renata Ferreira.

Minha casa é a literatura

Escritor, jornalista e roteirista, Marçal Aquino é um dos nomes mais destacados da literatura brasileira contemporânea. Nascido no interior de São Paulo, no município de Amparo, a 120 quilômetros da capital, teve uma infância humilde, sem grandes perspectivas. Desenvolveu, no entanto, uma fome de leitura que transformou sua vida e o levou ao topo da literatura nacional nos últimos vinte anos.

Arcervo Pessoal

A trajetória do escritor se confunde com a do jornalista – as histórias vêm do cotidiano, da vivência do profissional da informação escrita. De novelas infanto-juvenis a poesia, contos e romances, sua obra já soma quase duas dezenas livros publicados.

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Meio que por acaso, vieram o cinema e a TV, consequências naturais do texto ágil e dos personagens tão identificados com o conturbado dia a dia urbano. A fluência verbal e o talento para a construção narrativa acabaram por levar Marçal ao ofício de roteirista, adaptando para o cinema seus próprios livros e de autores como Lourenço Mutarelli (O cheiro do ralo, 2006, direção Heitor Dhalia) e Daniel Galera (Cão sem dono, 2007, direção Beto Brant).

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Com a palavra, o cinema

127 O invasor (2002), com Paulo Miklos. Direção de Beto Brant, baseado na novela de Marçal Aquino. Drama Filmes

A parceria de Marçal Aquino com o cineasta Beto Brant já rendeu cinco longas-metragens: Os matadores (1997), Ação entre amigos (1998), O invasor (2001), Crime delicado (2005, baseado no premiado romance de Sérgio Sant’Anna) e Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios (2011). Com Heitor Dhalia, escreveu os roteiros de Nina (2004), uma versão do clássico Crime e castigo, de Dostoievski; e O cheiro do ralo (2006). No momento, Marçal trabalha na adaptação de seu livro Cabeça a prêmio, para o diretor Karim Aïnouz. Na TV Globo seu trabalho pôde ser visto nas séries O caçador (2014) e Força-tarefa (exibida em três temporadas, entre 2009 e 2011), em que dividiu com Fernando Bonassi a autoria dos roteiros. Já o argumento da série O amor segundo B. Schianberg, de Beto Brant, exibida na TV Cultura, é baseado em um personagem de seu livro Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios. Seja qual for o veículo em que se desenvolvem seus enredos, o impacto é fulminante: um Brasil de desejos e instintos profundos, onde afloram as paixões e a culpa. Ficção inspirada na realidade, sem adornos. Seco e mordaz. Como a realidade retratada nos jornais, seus personagens circulam no submundo, quase uma literatura policial clássica se não fosse o conteúdo psicológico e social que transborda pelas margens das páginas. Histórias humanas, afinal. O fascínio pela leitura o levou a diversos caminhos − jornalismo, cinema e TV... mas o destino final é sempre a literatura. Nesta entrevista à Revista REcine, Marçal resume esse casamento entre a sua obra literária e a produção audiovisual nela inspirada.

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Quais são as suas maiores referências literárias? Que escritores foram importantes na sua formação?

RECINE:

MARÇAL AQUINO: São tantos que não tem nem como mensurar ou mencionar. O processo é contínuo, nunca termina, pois acredito que um escritor nunca “está pronto”. Há sempre algo por aprender. Se tivesse de citar um só, ficaria com o Monteiro Lobato, que foi minha porta de entrada para o mundo dos livros.

A sua trajetória no jornalismo abriu caminho para o escritor ou esse talento viria à tona qualquer que fosse a sua atividade profissional?

RECINE:

Me lembro de querer ser escritor muito antes de sonhar com o jornalismo, ali pelos 15 anos. Na verdade, escolhi o jornalismo como ganha-pão porque me permitiu escrever, que é a coisa que me dá mais prazer. MARÇAL:

RECINE:

O jornalismo inspira sua obra literária?

MARÇAL: Tudo contamina a literatura. O jornalis-

mo, no geral, e o ofício da reportagem, em particular, sobretudo reportagem policial, deixaram marcas naquilo que escrevo. Vários escritores, como Mário de Andrade, García Marquez, Jorge Luis Borges e Ernesto Sábato, tinham uma profunda relação com o cinema, e além de escrever críticas de filmes, escreviam também roteiros e acompanhavam as adaptações de seus livros para a tela. Escrever para cinema seria uma forma ou mesmo uma necessidade do escritor se comunicar com um público maior, que talvez não tenha a possibilidade de ler seus livros?

RECINE:

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Minha casa é a literatura

Livraria Monteiro Lobato, fundada pelo jornalista brasileiro Paulo Tardimann em Montevidéu, no Uruguai, em homenagem ao escritor que influenciou gerações de brasileiros. Junho de 1958. Correio da Manhã

MARÇAL: Na verdade, sempre gostei de cinema, mas nunca pensei em trabalhar com isso. Sempre achei que, em matéria de atividade economicamente inviável, já me bastava a literatura. Mas foi tudo acidental e maravilhoso: meu caminho no mundo cruzou com o Beto Brant e seu interesse naquilo que escrevo. Então faço cinema por puro prazer, paixão e amizade.

Em sua opinião, o cinema contribui na popularização ou difusão de obras literárias? Os livros vendem mais quando chegam às telas?

que ainda não foram escritos. Existe atualmente uma demanda muito grande de matrizes por parte do cinema, que está sendo produzido em larga escala no país. Então a relação com os autores e com os livros também está passando por modificações. A sua grande paixão é o livro. Por que enveredar pelo cinema? É um complemento ou uma forma de reafirmar a paixão pela literatura?

RECINE:

RECINE:

MARÇAL: Os filmes acabam, mal ou bem, divulgan-

do os livros, nunca na proporção que acontece, por exemplo, nos Estados Unidos, onde um filme pode determinar o sucesso de um livro. Aqui, nesse sentido, a televisão ainda tem mais poder que o cinema. Nos Estados Unidos é muito comum um livro antes mesmo de ser lançado já ter uma proposta de adaptação para o cinema. No Brasil é mais difícil isso acontecer. Seria por uma questão de mercado ou o cinema brasileiro ainda precisa descobrir ou investir no potencial cinematográfico da literatura nacional?

RECINE:

Contei acima: sempre tive grande interesse pelo cinema como espectador. Por obra e graça do Beto Brant, me envolvi com o cinema e acabei virando roteirista. É uma atividade que desenvolvo com grande prazer, mas minha casa, não tenho dúvida, é a literatura. MARÇAL:

Qual é a grande diferença entre escrever um livro e um roteiro de filme? Existe diferença entre escrever para o leitor ou para o espectador?

RECINE:

São duas linguagens completamente distintas. Um roteiro tem uma linguagem técnica específica, enquanto o enunciado de um texto literário, ao contrário, é completamente livre e individual. MARÇAL:

Que filmes adaptados de obras literárias você considera os mais importantes, seja no Brasil ou no mundo?

RECINE: MARÇAL: As coisas estão mudando no Brasil. Já ouço falar de gente querendo comprar os direitos de livros

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MARÇAL: Gosto de muita coisa. Pra citar duas adaptações muito bem-sucedidas: São Bernardo, que o Leon Hirszman adaptou do romance do Graciliano Ramos, e Lavoura arcaica, que o Luiz Fernando Carvalho extraiu da obra do Raduan Nassar. São dois trabalhos magníficos.

Na TV americana há seriados de grande sucesso, com excelentes roteiros e muitos fãs pelo mundo. A televisão brasileira vem investindo nos últimos anos em seriados de gênero policial, dramas e comédias. Com a sua experiência como roteirista de TV, você acredita que o Brasil está encontrando um caminho próprio e novo para a dramaturgia televisiva, sem ser no velho esquema das telenovelas?

RECINE:

O roteiro de um seriado guarda sempre muito parentesco com as telenovelas, pois ambos

têm como base o folhetim. Há diferenças, é claro. E graças à demanda cada vez maior por conteúdos dessa natureza, a linguagem tem sido testada constantemente e avançado em novas direções.

Com a palavra, o cinema

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Com que diretor de cinema gostaria de trabalhar como roteirista? Pode ser de qualquer nacionalidade, de qualquer época.

RECINE:

MARÇAL: Estou feliz com as oportunidades que tive até agora de trabalhar com gente que admiro, como o Beto Brant e o Heitor Dhalia.

Que conselho daria a um jovem que está começando uma carreira de escritor, o que você recomendaria: literatura, roteiros para cinema e TV ou o jornalismo?

RECINE:

MARÇAL:

MARÇAL:

Leia. Leia. Leia.

Crime delicado (2005), de Beto Brant, adaptação do livro homônimo de Sérgio Sant’Anna, com roteiro de Marçal Aquino, Marco Ricca, Beto Brant, Maurício Paroni de Castro e Luís F. Carvalho Filho. No elenco, Lilian Taublib e Marco Ricca. Foto de Priscila Prade. Drama Filmes

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Primeira adaptação do romance juvenil de José Mauro Vasconcelos, Meu pé de laranja lima (1970) foi dirigido por Aurélio Teixeira, com o ator mirim Júlio César Cruz. Correio da Manhã

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Enio Luiz de Carvalho Biaggi Doutor em Literatura Comparada e mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais. Advogado e professor na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e no Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix.

Diálogos entre literatura, vídeo e cinema: a transcriação da obra de Guimarães Rosa para o sistema audiovisual

Viver é muito perigoso!

João Guimarães Rosa

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A criação literária de João Guimarães Rosa (1969), curtametragem de Paulo Thiago. Correio da Manhã

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Com a palavra, o cinema

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A narrativa linear e descritiva adotada pela imensa maioria dos escritores no século XIX, extremamente influenciados pela pintura e pela fotografia, torna-se obsoleta com as novas técnicas narrativas que aparecem com o surgimento da sétima arte, no final desse mesmo século. No entanto, a visualidade sempre esteve fortemente presente na literatura. Essas diferentes formas de linguagem, literatura e cinema, sempre mantiveram uma intensa relação dialógica, desde o século XIX e, sobretudo, no decorrer do século XX, com o desenvolvimento de novas técnicas de filmagem. Dessa forma, a literatura passa a sofrer influência das novas técnicas imagéticas de narrativa, aprimoradas com os avanços dos recursos cinematográficos. Dentre elas podemos destacar a perspectiva ou foco narrativo, os enquadramentos, os enredos fragmentados, a montagem e a justaposição de imagens que compõem os planos-sequência das metáforas audiovisuais. A obra de Guimarães Rosa foi bastante adaptada para outro sistema de signos, principalmente para o vídeo e para o cinema. A primeira adaptação de um texto rosiano para as telas de cinema ocorreu em 1965, com o filme A hora e a vez de Augusto Matraga, digirido por Roberto Santos. Esse conto rosiano é o último de Sagarana e seu tema principal é o trajeto de vida de Augusto Estêves, o Nhô Augusto, ou Augusto Matraga, narrativa que parece aludir à Paixão de Cristo. O texto retrata tensões vivenciadas pelo protagonista em busca de redenção para seus pecados através da religiosidade, e é marcado por momentos de provação diante de

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O dragão da maldade contra o santo guerreiro (1969), de Glauber Rocha: diálogo com a obra de Guimarães Rocha. Correio da Manhã

tentações presentes no encontro de Matraga com outros personagens que, de certa forma, remetiam ao (ou faziam parte de) seu passado. Guimarães Rosa, escritor mineiro de Cordisburgo, chegou a afirmar que, se não tivesse sido escritor, teria sido cineasta. Essa afirmação revela não apenas a influência do sistema audiovisual, emergente na época, na sociedade, mas também o impacto que teve no autor, que será refletido em sua obra. Esse diálogo transemiótico entre literatura e cinema se apresenta, em especial, na novela Cara de Bronze, presente na coletânea No Urubuquaquá, no Pinhém, ex-Corpo de Baile. Nesse texto, Guimarães Rosa cria um hibridismo narrativo entre as diversas linguagens e suportes midiáticos, como o cinema, a música, a literatura e o teatro. Um dos aspectos mais intrigantes do universo rosiano, além da inovação linguística – o que levou os críticos a compará-lo com autores como James Joyce –, consiste na construção imagética de sua narrativa. A visualidade se apresenta na narrativa literária de maneira peculiar, principalmente no que diz respeito ao cenário e aos caracteres dos personagens. O sertão, as veredas e os campos constituem um espaço místico, compondo um cenário mágico, vislumbrante: “o sertão é do tamanho do mundo.” É estreita a relação que se estabelece entre a obra do autor de Sagarana e o sistema audiovisual. Sua vasta e rica narrativa deu ensejo a várias traduções e transcriações semióticas (adaptações para outros sistemas de signos, como o cinema, o vídeo, a televisão e o teatro).

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Diálogos entre literatura, vídeo e cinema

A tradução e a transcriação intersemióticas: definições teóricas A palavra tradução possui, etimologicamente, origem no vocábulo latino traductìo, ónis1, do qual se originaram, ainda, os termos italianos traduttore e traditore, em português, tradutor e traidor, respectivamente. Nesse processo tradutório, o hipertexto suplementa o texto “original”, tentando superá-lo, e não imitá-lo, podendo atribuir-lhe novos significados, o que impulsiona os cineastas e videomakers a transpor obras literárias para as telas. Os conceitos de hipertexto e hipotexto que utilizo neste estudo dizem respeito à teoria da transtextualidade, que foram extraídos do livro Palimpsestos, de Gérard Genette. Seguem-se suas definições: Entendo por hipertextualidade toda relação que une um texto B (que chamarei hipertexto) a um texto anterior A (que, naturalmente, chamarei hipotexto) do qual ele brota, de uma forma que não é a do comentário. [...] Esta derivação pode ser de ordem descritiva e intelectual, em que um metatexto [...] “fala” de um texto. Ela pode ser de uma outra ordem, em que B não fale nada de A, no entanto não poderia existir daquela forma sem A, do qual ele resulta, ao fim de uma operação que qualificarei, provisoriamente ainda, de transformação [...].2

Nesse caso, o processo tradutório abandonaria um caráter metafórico (quando o hipertexto é análogo ao seu hipotexto), assumindo um caráter metonímico (quando a tradução substitui o texto que o originou, assumindo o seu lugar). Dessa forma, como afirma Haroldo de Campos,3 a tradução abandona a antiga noção de tradução literal, subalterna, em que, ao confrontar os textos, tradução e traduzido, percebemos um apagamento da figura do tradutor. Para definir o conceito de transcriação, Campos faz

alusão à imagem de Lúcifer, como podemos perceber em passagem de um ensaio de Célia Magalhães sobre a teoria de Haroldo de Campos, intitulado “Tradução e transculturação: a teoria monstruosa de Haroldo de Campos”.4 A tradução intersemiótica é definida da seguinte maneira por Roman Jakobson: A tradução intersemiótica ou transmutação consiste na interpretação dos signos verbais por meio de sistemas de signos não verbais. [...] transposição intersemiótica – de um sistema de signos para outro, por exemplo, da arte verbal para a música, a dança, o cinema ou a pintura.5

O papel do tradutor tem sido discutido e repensado pelas teorias contemporâneas da tradução, que o concebem não mais apenas como um mediador, mas como um “coautor”. Segundo Rosemary Arrojo, aprender a traduzir, tornar-se tradutor, implica [...], em primeiro lugar, reconhecer seu papel essencialmente ativo de produtor de significados e de representante e intérprete do autor e dos textos que traduz. [...] cabe ao tradutor assumir a responsabilidade pela produção de significados que realiza e pela representação do autor a que se dedica. Ou seja, terá que estar sintonizado com o ideário de seu tempo e lugar e, consequentemente, com a visão que esse tempo e lugar lhe permitem ter do texto e do autor que interpreta.6

Quando o tradutor vai além da tradução literal do significado linguístico, ele realiza o que Haroldo de Campos chama de “tradução criativa ou transcriação”. Isso ocorre a partir de um texto de difícil tradução (como a maioria dos textos

1 HOUAISS, Antonio. Dicionário Eletrônico da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. CD Rom, v. 1.0. 2 GENETTE, Gerard. Palimpsestos: a literatura de segunda mão. Trad. Luciene Guimarães; Maria Antônia Ramos Coutinho. Belo Horizonte: FALE; UFMG, 2005. Caderno Viva-Voz. p. 19. 3 CAMPOS, Haroldo de. Da transcriação: poética e semiótica da operação tradutora. In: OLIVEIRA, Ana Cláudia de; SANTAELLA, Lúcia (Org.). Semiótica da literatura. São Paulo: Educ, 1987. p. 53-74. 4 MAGALHÃES, Célia. Tradução e transculturação: a teoria monstruosa de Haroldo de Campos. Cadernos de Tradução, UFSC, Florianópolis, Centro de Comunicação e Expressão, n. 3, p. 139-156, 1998. p. 149. 5 JACKOBSON, Roman. Aspectos linguísticos da tradução. In: ______. Linguística e comunicação. Trad. Isidoro Blikstein; José Paulo Paes. 8. ed. São Paulo: Cultrix, 1975. p. 65 e 72.

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poéticos) de uma língua para a outra – tradução interlingual; ou de um sistema de signos para outro – tradução intersemiótica.

Com a palavra, o cinema

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Júlio Plaza define a tradução intersemiótica como “prática críticocriativa” e como “leitura”: metacriação.7 Ao comentar a articulação da historicidade entre as obras envolvidas no processo de tradução, o texto alvo e o de origem, Plaza encara a tradução intersemiótica como uma forma de “descoberta de novas realidades”, tendo em vista que “na criação de uma nova linguagem não se visa simplesmente uma outra representação de realidades ou conteúdos pré-existentes em outras linguagens, mas a criação de novas realidades, de novas formas-conteúdo”.8 Sendo assim, segundo Júlio Plaza, o tradutor tem o “desejo secreto de superação do original que se manifesta em termos de complementação com ele”:

O percurso das adaptações: as principais traduções e transcriações intersemióticas que tiveram a obra rosiana como texto de partida

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É assim que, embora a tradução seja transparente, pois que não oculta o original nem lhe rouba luz, não obstante todo tradutor tem o desejo secreto de superação do original que se manifesta em termos de complementação com ele, alargando seus sentidos e/ou tocando o original num ponto tangencial do seu significado [...].9

Dentre as principais adaptações da obra de Guimarães Rosa para outros sistemas semióticos, estão os textos fílmicos Outras estórias, Sagarana: o duelo, Noites do sertão e Mutum, a minissérie Grande sertão: veredas, para a Rede Globo de Televisão (1985), o curta Rio de-Janeiro, Minas, de Marily da Cunha Bezerra (baseado em um episódio de Grande sertão: veredas).

6 ARROJO, Rosemary. O signo desconstruído: implicações para a tradução, a leitura e o ensino. 2. ed. Campinas: Pontes, 2003. p. 103-104. 7 PLAZA, Júlio. A tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 1987. p. 14. 8 Ibidem, p. 30. 9 Idem.

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Fotogramas de A terceira margem do rio (1994), dirigido por Nelson Pereira dos Santos, baseado na obra de Guimarães Rosa. Acervo Regina Filmes. Arquivo Nacional

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Diálogos entre literatura, vídeo e cinema

Este último, datado de 1993, é, sem dúvida, ao lado dos filmes A hora e a vez de Augusto Matraga e Noites do sertão, uma das melhores transposições feitas a partir do texto de Guimarães Rosa para as telas. Filmado na cidade de Três Marias, interior de Minas Gerais, este vídeo foi produzido a partir de um trecho de Grande sertão, passagem em que Riobaldo narra seu primeiro encontro com Diadorim, ainda menino, num ambiente místico repleto de surpresas, encanto e magia. Marily conseguiu, em seu vídeo, expressar a narrativa lírica de Riobaldo, que relata os seus sentimentos mais profundos neste encontro com Diadorim, além das belíssimas cenas enfocadas, cuja gravação foi feita no local exato que Guimarães Rosa escolheu para o encontro de seus personagens. Marily Bezerra filma esse belo curta nas margens e nas águas do rio São Francisco e das veredas “de-Janeiro” e “Quartel”. O curta, que tem em seu elenco os atores Nanna de Castro, Cristina Ferrantini, Evandro dos Passos Xavier e Paulo de Souza, conta com a participação especial de Manuelzão e sua esposa, D. Didi, voz em off de José Mayer, trilha musical de Badi Assad, fotografia de Kátia Coelho e montagem de Sarah Yakhni, recebeu prêmios como o Tatu de Ouro de melhor fotografia no concurso ibero-americano de filme e vídeo da XXI Jornada Internacional de Cinema da Bahia, em 1994, e o prêmio Cineclube Banco do Brasil de melhor fotografia no mesmo ano. Riobaldo conta, de maneira poética, como foi o encontro que teve, ainda na infância, no porto do rio “de-Janeiro”, com um belo e estranho menino chamado Diadorim, e a posterior travessia pelo rio São Francisco, que os levará à descoberta do amor, do medo e da coragem. Esse vídeo se apresenta como exemplo de que o transcriador intersemiótico, além de dialogar com seu hipotexto, busca inovar na linguagem semiótica de destino: enquanto que, na obra literária, Diadorim é apresentado por Riobaldo ao longo de quase toda narrativa como homem, no curta-metragem, duas atrizes atuam, desempenhando o papel de Riobaldo e de Diadorim. O segredo é revelado apenas no making of, que relata os bastidores das gravações. Em 1984, Carlos Alberto Prates Correia dirige o filme que é considerado pela crítica a melhor

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adaptação fílmica produzida de um texto rosiano: o longa Noites do sertão, filmado a partir do conto Buriti, presente em Noites do sertão, ex-Corpo de baile. O filme conta, em seu elenco, com os atores Débora Bloch, Tony Ramos, Cristina Aché, Maria Alves e a participação do cantor e compositor Milton Nascimento. Além da trilha sonora, com canções que têm Tavinho Moura na viola, Noites do sertão é consagrado por exibir belíssimas imagens do sertão, exaltando a natureza local, enfocando a flora (principalmente o buriti), a fauna e as águas locais, apresentando um lugar completamente encantador e exótico. Para isto, o cineasta abusa das panorâmicas verticais e horizontais, utilizadas em planos abertos, como os planos geral, meio conjunto ou de conjunto, de caráter descritivo. Lançado em 1991, o curta Famigerado, de Aluízio Salles Jr., conforme consta em sinopse extraída do site da Rede Minas, “é uma adaptação quase literal do conto de mesmo nome de João Guimarães Rosa”. Nesse texto, há uma cena curiosa, em que a câmera focaliza livros na estante do personagem doutor, dentre eles o clássico Humilhados e ofendidos, de Dostoiévski, relacionando a obra do personagem do texto videográfico ao escritor (médico, leitor assíduo, erudito etc.). Assim, o videomaker dialoga com a narrativa literária, ressignificando-a, permitindo nova leitura do texto literário, enquanto uma espécie de autobiografia ficcional de Guimarães Rosa. Sua proposta, portanto, não é meramente adaptar o texto literário para outro suporte, mas estabelecer uma relação dialógica com ele. Nos textos fílmicos Sagarana: o duelo, de Paulo Thiago; A terceira margem do rio, de Nelson Pereira dos Santos; e Outras estórias, de Pedro Bial, os diretores preferiram se enveredar por um caminho mais “perigoso”, construindo uma narrativa híbrida, entrelaçando vários contos da obra rosiana. Em 1970, é lançado Sagarana – o duelo, longametragem colorido de Paulo Thiago, tendo no elenco Rodolfo Arena, Joel Barcellos, Zózimo Bulbul, Jofre Soares, Paulo Villaça, Milton Moraes, entre outros. O filme, que conta com canções de Tom Jobim e de Dorival Caymmi em sua trilha sonora, dialoga com outras produções

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importantes como Vidas secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos; Deus e o diabo na terra do Sol (1964), de Glauber Rocha; e A hora e a vez de Augusto Matraga (1965), de Roberto Santos. O longa A terceira margem do rio, de Nelson Pereira dos Santos, lançado em 1994, foi produzido a partir dos contos A menina de lá, Os irmãos Dagobé, Sequência e Fatalidade, além do conto homônimo. Neste filme – que tem no elenco atores como Ilya São Paulo, Sonjia, Jofre Soares e Maria Ribeiro –, o diretor Nelson Pereira dos Santos vai além da tradução, realizando uma transcriação intersemiótica do conto homônimo e de outros contos de Primeiras estórias. O longa-metragem Outras estórias, escrito, dirigido e produzido por Pedro Bial, com roteiro dele e de Alcione Araújo, lançado em 1999, consiste

numa adaptação dos contos Famigerado, Nada e a nossa condição, Os irmãos Dagobé, Substância e Sorôco, sua mãe, sua filha, todos publicados em Primeiras estórias, entrelaçados e constituindo um enredo único. No longa, Bial mescla as linguagens do vídeo, da televisão e do cinema. Seu elenco conta com atores consagrados como Paulo José, Giulia Gam, Antonio Calloni e Marieta Severo. Assim como Nelson Pereira dos Santos, Pedro Bial não se limita a uma adaptação fílmica dos contos rosianos, mas os transcria, com o intuito de inter-relacionar o texto Famigerado aos outros contos utilizados no filme, cujo título Outras estórias já é uma reescritura de Primeiras estórias, o que sugere o seu caráter transcriador. Neste mesmo sentido, os roteiristas Pedro Bial e Alcione Araújo mudam o nome do antagonista, de Damázio para Damastor Dagobé, personagem do conto Os irmãos Dagobé.

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Guimarães Rosa. Correio da Manhã

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Diálogos entre literatura, vídeo e cinema

A minissérie Grande sertão: veredas (1985), da Rede Globo de Televisão, dirigida por Walter Avancini, privilegia alguns elementos do clássico rosiano, como o enredo (em detrimento de sua linguagem e significações). Algumas diferenças estruturais entre o romance e a série consistem em que, no romance, o interlocutor de Riobaldo é o leitor; a narrativa se dá após os acontecimentos (Riobaldo desenvolve sua narrativa sob a forma de um relato); é fragmentada, não linear; os temas predominantes são a (não) existência de Deus e do diabo, a magia e misticismo do sertão e, principalmente, o amor de Riobaldo por Reinaldo-Diadorim. A preocupação maior do autor Guimarães Rosa são os artifícios da linguagem como paradoxos, afirmações, negações, metáforas, neologismos, devido ao signo específico da literatura: a palavra. Na minissérie, o interlocutor de Riobaldo é o compadre Quelemém; o início da narrativa ocorre com a chegada de Riobaldo ao sertão; a narrativa é linear, característica da linguagem da televisão; há divisão em capítulos, numa sequência estabelecida cronologicamente; o tema predominante é a guerra; a preocupação maior do diretor Walter Avancini e do roteirista Walter George Durst é com o enredo, e não com a beleza das imagens, signo por excelência do texto televisivo. Para análises mais aprofundadas sobre a adaptação do romance Grande sertão: veredas para a televisão, duas leituras são indispensáveis: o artigo “Literatura, cinema e televisão”, de Flávio Aguiar, e o livro Grande sertão: veredas – o romance transformado, de Osvando José de Morais. Além da transposição da literatura rosiana para outros sistemas semióticos, podemos citar, como referência indireta, os filmes de Glauber Rocha Deus e o diabo na terra do sol (1964) e O dragão da maldade contra o santo guerreiro (1969), que dialogam com o clássico rosiano Grande sertão: veredas, publicado em 1956. Consideradas pela crítica como obras expressivas do chamado Cinema Novo brasileiro, estes dois filmes trazem a presença marcante do sertão como um lugar mágico, cheio de surpresas e encantos, palco mítico de forças antagônicas que se enfrentam. Entre as forças do bem e do mal, podemos ver acontecer coisas antes inimagináveis; e, em meio a esse fogo

cruzado, nessa travessia, em nenhuma dessas margens antagônicas, estamos nós: o homem. Considerações finais A ousadia dos diretores que transcriaram a literatura de Guimarães Rosa para o sistema audiovisual, no entanto, apesar de possibilitar novas leituras do texto rosiano, não buscaram inovar no suporte linguístico do texto de chegada. Conforme afirmou o poeta e tradutor Haroldo de Campos, ao definir a atividade da “transcriação” como processo tradutório criativo, apropriando-se da teoria benjaminiana da tradução, o tradutor deve priorizar o “tom” (tonus do original), a informação estética do próprio signo, sua materialidade, sua fisicalidade, em detrimento do que é comunicativo num texto (informações semânticas e documentárias).10 Quando os cineastas hibridizam as narrativas formando um enredo único, entrelaçando-os, conforme demonstrado acima, o resultado pode ficar comprometido, uma vez que as narrativas se tornam bastante fragmentadas. Isso se deve ao fato de alguns contos, em princípio, não apresentarem qualquer relação entre si, exceto no estilo linguístico do autor que os criou. No que diz respeito aos aspectos temáticos, caracteres dos personagens, formas de enredos e de composição e relação espaço-temporal, as narrativas se constituem em textos díspares, sem qualquer tipo de relação aparente entre si. Como exemplo, podemos citar as narrativas A menina de lá e Os irmãos Dagobé, ou A terceira margem do rio e Famigerado, que, apesar de pertencerem ao mesmo gênero textual, conto literário, e pertencerem à mesma obra, Primeiras estórias, os enredos não se comunicam. Inseri-las num mesmo texto fílmico, hibridizando-as numa narrativa única, portanto, só se torna possível sob a forma de transcriação, devendo o tradutor inovar no sistema linguístico, traindo-o, na expectativa de superá-lo. Do contrário, a comparação do hipertexto ao hipotexto, ainda que diferentes os suportes, será sempre inevitável.

10 CAMPOS, Haroldo de. Da tradução como criação e como crítica. In: ______. Metalinguagem e outras metas. São Paulo: Perspectiva, 1992. p. 37.

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Guimarães Rosa na cerimônia de sua posse na Academia Brasileira de Letras, em 1967, três dias antes de morrer. Correio da Manhã

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Um certo capitão Rodrigo (1971), baseado na obra imortal de Érico Veríssimo, O tempo e o vento. Direção de Anselmo Duarte. Correio da Manhã

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Fabiano Grendene de Souza Doutor em Comunicação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Cineasta, autor do livro Caio Fernando Abreu e o cinema: o eterno inquilino da sala escura (Sulina, 2011).

A perenidade de Caio Fernando Abreu:

Foto de Adriana Franciosi

um flanar entre cinema e literatura

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Foto de Adriana Franciosi

Foto de Adriana Franciosi

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Caio Fernando Abreu (1948-1996) viu poucos textos seus serem transpostos para a tela. Enquanto Nelson Rodrigues pôde se defrontar com interpretações múltiplas de suas obras, enquanto Raduan Nassar e Chico Buarque viram verdadeiros filmes autorais brotarem de suas prosódias, o escritor gaúcho assistiu apenas a um longa-metragem baseado em seus textos. Ele mesmo trabalhou no roteiro daquela que foi a única experiência de adaptação para longa-metragem que ele pôde ver em vida: Aqueles dois (1985), de Sérgio Amon. Considerado ainda hoje como um filme marcante pelo retrato sensível da homoafetividade, a transposição do conto homônimo foi a exceção que confirmou a regra. Seus textos precisariam (e ainda precisam) de tempo para chegar aos cinemas. Se posteriormente o único longa-metragem ficcional baseado no escritor foi Onde andará Dulce Veiga (2007), de Guilherme de Almeida Prado, é preciso abrir os olhos para ver como a presença do escritor anda solta pelas telas. O próprio filme de Guilherme parece ter sido descartado pelos fãs do escritor de maneira apressada. A reclamação da ausência de certos personagens, a implicância com um ator e a desconfiança com o desfecho eclipsaram uma realização prenhe de experimentações de linguagem − algo tão caro ao próprio Caio. Nisso, podemos lembrar que a obra de Caio Fernando Abreu nas telas vem aparecendo com muita constância nos curtas-metragens. Mesmo que alguns filmes desse formato tenham sido feitos quando o escritor ainda não havia feito sua passagem, é impressionante a quantidade de adaptações que surgem ano a ano. Por exemplo, existe uma quantidade enorme de curtas produzidos no ambiente universitário. Só no curso de Produção Audiovisual da PUCRS já foram

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O escritor no quarto de casa, em Porto Alegre, década de 1990. Foto de Adriana Franciosi

filmadas adaptações de Os sobreviventes, O inimigo secreto e Linda, uma história horrível. Mesmo que os resultados possam ser discutíveis, a quantidade de obras produzidas em ambientes de escola de cinema é uma afirmação de que a literatura de Caio Fernando Abreu se alimenta do tempo. Imersos na tecnologia digital, nas redes nem sempre sociais, tímidos, ansiosos, nervosos e solitários, os jovens encontram nas linhas de Caio Fernando Abreu a perfeita tradução de suas angústias. Ele escreveu para o amanhã. Dentre os curtas realizados em esquema mais profissional, podem-se destacar Dama da noite (1999), de Mario Diamante; Sargento Garcia (2000), de Tutti Gregianin; A mulher biônica (2008, a partir de Creme de alface), de Armando Praça; e Linda, uma história horrível (2013), de Bruno Gularte Barreto. Antes de analisarmos alguns destes filmes, é interessante perceber que Caio Fernando Abreu desenvolveu em sua literatura um domínio extremo do conto – algo que se explica um pouco pela necessidade permanente de “costurar para fora”, como ele dizia (ou seja, trabalhar enfurnado em uma redação, ser mercador de palavras, para garantir o vil metal). Mas tal prática exímia acabou, de certa maneira, influenciando suas adaptações. Embora muitas vezes um texto literário curto inspire um longa-metragem, como no caso já citado de Aqueles dois, existe entre o conto e o curta-metragem certa similaridade de tempo disponível para que a “história” seja contada. Ambos são propícios, por exemplo, para retratar encontros de dois personagens − e é o que fazem Sargento Garcia e Linda, uma história horrível. Em Sargento Garcia, um garoto, no dia do alistamento militar, acaba conhecendo o sargento que

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A perenidade de Caio Fernando Abreu

dá título à obra. Depois de ser dispensado de “servir à pátria”, o jovem Hermes acaba reencontrando Garcia e − com ele − perdendo a virgindade. Esse encontro, desde a sua matriz literária, traz uma série de leituras. Primeiramente, existe a afirmação de uma postura a favor da liberdade sexual, em que o caráter heteronormativo, tão defendido pelos militares, é questionado não só pela união furtiva dos personagens, mas também pelo fato de que é justamente um sargento que seduz o rapaz e leva-o a uma pensão. Nesse sentido, a cena do alistamento − cheia de jovens nus − carrega a interpretação de que o próprio espaço do quartel é um lugar velado de experiências homossexuais. Aliado a isso, o curta mostra como a indumentária militar também pode despertar um olhar (e um uso) fetichista, inspirando desejos secretos. Como produção realizada no Rio Grande do Sul, Sargento Garcia ganha até mais força, porque desafia o caráter conservador arraigado a determinados costumes tradicionalistas gaúchos. Ao mesmo tempo, o texto original de Caio Fernando Abreu traz dois aspectos que não são explorados pelo curta. É evidente que não se trata aqui de fazer uma cobrança de algo que deveria ser realizado pelo filme, mas sim de mostrar a amplitude de propostas do escritor. Um dos detalhes interessantes do conto de Caio é a quantidade de ferramentas utilizadas para povoar o conto de uma dimensão erótica. Entre elas, duas merecem destaque. Primeiramente, pode-se perceber na prosa de Caio toda uma musicalidade que embaralha significados e sentidos. No início do conto, a expressão “meu sargento” aparece porque Garcia quer respeito de Hermes. Porém, a intenção original do personagem é subvertida, porque, em pensamentos, o jovem começa a usar o pronome possessivo mais como um chamado, que envolve carinho, cumplicidade, chegando ao tesão. Isso chega a aparecer no curta, mas no conto essa forma (“meu sargento”) aparece 26 vezes, criando um ritmo alucinado, aludindo inclusive ao ato sexual. Nessa construção do erotismo, Caio Fernando Abreu também usa com grande precisão a poética dos cheiros. Por um lado, os odores podem ser evocativos do passado, como na literatura de fluxo de consciência

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de Marcel Proust,Virginia Woolf e James Joyce, todos eles inspiradores de Caio. Por outro, podem ser relevantes na construção de uma atmosfera de desejo calcada na mistura de elementos puros e impuros − o cheiro acre do corpo de Garcia e o odor das fezes de um cavalo compõem um universo em que nojo e atração parecem territórios com fronteiras abertas e grandes zonas de intersecção. Em outra esfera, o conto também traz uma dimensão alegórica. Se a união de Hermes e Garcia é política por si no que tange à defesa de uma sexualidade ampla, há também um discurso do conto que mostra que o regime militar, de certa maneira, “estuprou” o povo brasileiro. Dessa forma, Sargento Garcia é o conto que mais revela uma faceta muitas vezes esquecida da literatura de Caio Fernando Abreu. Embora taxado de lírico, juvenil, introspectivo, alienado, Clarice Lispector lisérgica, o escritor deixou na margem de muitos dos seus relatos uma compreensão profunda das alterações sociais vividas pelo Brasil, principalmente na época da ditadura e dos primeiros anos de democracia. Personagens perdidos em apartamentos vazios a um passo da loucura e do suicídio, vivendo histórias prenhes de reflexão ontológica, que disseminam ainda um olhar sobre o crescimento urbano desordenado e a modernização conservadora. Recheando o bolo, um retrato da dissociação entre a população e os políticos e uma polaróide da marginalização do artista num país de terceiro mundo. Voltando aos curtas, outro filme calcado em um encontro é Linda, uma história horrível. O filme mostra a noite em que um rapaz que mora em São Paulo visita sua mãe em Porto Alegre. O diálogo dos dois, o silêncio, o descaminho da vida, a perenidade da relação entre mãe e filho. No filme de Bruno Gularte Barreto, todos esses elementos estão articulados na criação da atmosfera da casa, através de objetos e olhares que navegam entre dois seres unidos pelo sangue, mas apartados por experiências de vida tão distintas. A mãe traz a ingenuidade provinciana, dividida entre um certo racismo inconsciente, a ignorância em relação a determinados comportamentos sexuais e sonhos tão ingênuos quanto delirantes. Além disso,

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a idade da personagem traz o tema da proximidade da morte, reiterado por certas falas.

Unidos pelo cigarro, encalacrados, emparedados em uma cozinha, os dois personagens falam muito dos outros e alguma coisa de si. A mãe fica impressionada com o isqueiro do filho, lembra de uma vez que um grande “amigo dele” a levou para jantar em São Paulo, mas em nenhum instante entende as opções dos rapazes. Ele procura forças para contar que está doente, mas acaba preferindo o silêncio. A necessidade de desabafo explode − mas ele já está sozinho, no quarto, com a cachorra Linda. Ao mostrar o personagem abrindo a camisa e exibindo

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Caio na temporada em Londres nos anos 1970. Foto de Marcos Santilli

Foto de Marcos Santilli

O filho (pródigo?) é daqueles personagens caros ao escritor, um tipo sensível que traz o peso do mundo nas costas. No caso, alguém pertencente à tradição de gaúchos que, ainda jovens, partem para o centro do país e encontram a dor e a delícia da maior cidade da América do Sul. De um lado, vivem em um lugar sem olhares próximos que cuidam, fofocam, acusam comportamentos menos padronizados. Livres de lugares pacatos onde todos se conhecem, podem finalmente viver a liberdade de suas escolhas. Por outro lado, a couraça da metrópole traz o mundo-cão, a competição desenfreada, os arranha-céus que

arranham corações, colocando uma lente de aumento na ânsia, no medo, no abandono. Cansaço e solidão, dificuldade de reacreditar na vida, ligar uma música alta e dançar − sozinho que seja.

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o dorso, o filme cria uma imagem potente. Mais do que revelar a força da doença na pele do personagem, a cena demonstra a dor da dificuldade do desnudamento sentimental, o pranto da impossibilidade de revelar verdades íntimas para familiares. O conto, publicado em 1988, na antologia Os dragões não conhecem o paraíso, era antes de tudo um retrato explosivo das consequências da Aids − vista não só como um vírus, uma doença, mas também como um carimbo, uma tatuagem feita para exposição (inclusive pela mídia). Contada em 2013, a história não deixa de trazer isso, mas parece se filiar a uma série de outras películas que têm trabalhado com uma abordagem mais direta da dificuldade de aceitação familiar e social de manifestações sexuais diversas do padrão heterossexual. De pronto, lembramos da repressão militar em Tatuagem (2013), de Hilton Lacerda; do comportamento do personagem Jesuíta Barbosa em Praia do Futuro (2014), de Karim Aïnouz; do bullying de As melhores coisas do mundo (2010), de Laís Bodanski, e Hoje eu quero voltar sozinho (2014), de Daniel Ribeiro. Por esse raciocínio, chegamos a uma ideia importante: muitos filmes brasileiros contemporâneos dialogam intensamente com o universo de Caio Fernando Abreu. É como se a literatura do escritor, mesmo quando não adaptada, soprasse em certos filmes, ocupando um lugar de destaque nas discussões audiovisuais de hoje. Até porque a sensibilidade de Caio, uma sensibilidade avant la lettre, dialoga com a maioria dos filmes citados. Sem fazer uma abordagem extensa, vale a pena pensar como os filmes de Karim Aïnouz trazem um diálogo com o universo de Caio Fernando Abreu: das personagens femininas de O céu de Suely (2006) e O abismo prateado (2011), passando pelo protagonista complexo de Madame Satã (2002), e pelo motivo da errância em Viajo porque preciso, volto porque te amo (2010, com Marcelo Gomes). Já Praia do Futuro apresenta vários pontos de toque com o universo do escritor, a começar pelo plot: um personagem masculino vivendo uma história de amor desencontrado na Europa, mais precisamente na Alemanha. Como em alguns trabalhos de Caio Fernando Abreu, o filme de Karim é preciso

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ao tocar a questão do estrangeiro, misturando questionamentos externos e internos. Em termos externos, há o deslocamento de um personagem para outro país, sua dificuldade de adaptação em relação a costumes, clima e cotidiano. Mas, ao mesmo tempo, o personagem se debate consigo mesmo – torna-se estrangeiro para si, perde-se entre razão e sensibilidade, estranha-se como ser humano, sente-se um habitante deslocado do mundo. Essas questões aparecem em toda a literatura de Caio, de contos escritos nos anos 1970, como Lixo e purpurina, calcado em uma situação de exílio no frio londrino, sem dinheiro e sem calor; até pequenas histórias dos 90, como Bem longe de Marienbad, flagrante do período de internacionalização do escritor, quando sua obra passa a ser publicada em vários países da Europa. Essa permanência de Caio Fernando Abreu, vista em curtas-metragens baseados em sua obra e em longas não necessariamente feitos a partir da matriz literária do escritor, ganha uma nova perspectiva quando lembramos que o escritor é tema de dois documentários realizados praticamente ao mesmo tempo. Mesmo ainda sem vermos o resultado de Para sempre teu, Caio F., com direção de Candé Salles e roteiro de Paula Dip, sabe-se que tal obra conta em sua elaboração com pessoas que conheceram o escritor e, de certa maneira, prestam seu tributo a ele. Ao mesmo tempo, no ano passado, veio à tona o ensaio Sobre sete ondas verdes espumantes (2013), de Cacá Nazário e Bruno Polidoro. Dividido em sete partes, o filme, mais do que traçar uma biografia do escritor, busca vestígios, lampejos, energias através da literatura de Caio. Essa literatura é lida por seus amigos, foi escrita em muitos lugares do mundo. Por isso, há algo de road movie em Sete ondas. Mais do que histórias de intimidade, bebedeiras e proximidade ao jet set televisivo e musical − muito bem retratadas na biografia Caio Fernando Abreu: inventário de um escritor irremediável (2008), de Jeanne Callegari −, Sete ondas apresenta algumas imagens paradigmáticas. Caio Fernando Abreu caminhando de sobretudo num frio gélido, com as ondas flamejantes de uma praia europeia, é a imagem de alguém deslocado, em conflito não só com aquela paisagem, mas com

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o próprio Brasil tropical que ecoa na memória. A potência do plano, cheio de ranhuras por causa da textura de vídeo analógico, é o emblema de um escritor que permaneceu inquieto, buscando seu lugar, pipocando de uma paisagem a outra. Aliás, a quantidade de locais que o filme atravessa evoca essa ideia da errância tão presente em sua obra – e aqui além do trabalho ficcional, devem-se lembrar das cartas e das crônicas, testemunhas de uma vida em movimento.

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Nunca pensei em acabar esse texto com um dos poemas mais famosos de Mário Quintana (homenageado por Caio em Pedras de Calcutá), mas é impossível não lembrar: “Todos esses aí que estão/ Atravancando meu caminho/Eles passarão.../Eu passarinho!” É isso: Caio se transformou não só num ídolo de redes sociais, num autor evocado em citações rápidas (e nem sempre verdadeiras), mas também em um criador de uma estética que tende a permanecer perene nos corações, mentes e telas do Brasil.

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Mas é através de outra imagem potente que encerramos este nosso flanar pela relação entre Caio Fernando Abreu e o cinema: já quase no fim do filme, aparecem imagens do interior da casa em que o escritor passou seus últimos dias, no bairro do Menino Deus, em Porto Alegre. A câmera que se mexe por dentro da casa está distante de um registro que busca documentar o local em que o escritor gerou seus textos derradeiros; ela parece, antes de mais nada, trazer à luz uma presença de

um ausente, ela parece berrar – em sua delicadeza – a ideia de que os escritos de Caio permanecerão na memória do mundo, vivos – enquanto o imóvel pode ser demolido para virar mais um arranha-céu. A questão se amplifica se pensarmos que este plano parece enaltecer a trajetória de um escritor que conviveu sempre com reveses financeiros, dificuldades de enfrentar a burocracia, e sofreu perseguições diversas (era criticado por correntes de direita e esquerda).

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Aníbal Machado, autor de Viagem aos seios de Duília. Na parede, um cartaz da versão cinematográfica de seu conto, dirigida por Carlos Hugo Christensen em 1964, com Rodolfo Mayer no papel principal. Correio da Manhã

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S O T NI SA O M FA LTEL; E.

24 A 28 DE NOVEMBRO DE 2014

ARQUIVO NACIONAL ENTRADA FRANCA / WWW.RECINE.COM.BR PRAÇA DA REPÚBLICA, 173 – CENTRO – RIO DE JANEIRO

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FILMES / PALESTRAS / REVISTA RECINE


Ano 11

Nº 11

Arquivo Nacional Novembro de 2014

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Revista do Festival Internacional de Cinema de Arquivo

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V ND E E R N A E D D A A S S A

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Nº 11

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Ano 11

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