Revista Recine nº 5 - 2008

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ISSN 1983-1021

Revista do Festival Internacional de Cinema de Arquivo

Ano 5

Nยบ 5

Arquivo Nacional

Outubro de 2008

Revista do Festival Internacional de Cinema de Arquivo

Ano 5

Nยบ 5

Arquivo Nacional

Outubro d e 2 0 0 8


PH.FOT.00793.060 PH.FOT.00237.009


©2008 by Arquivo Nacional do Brasil Praça da República, 173 CEP 20211-350 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil Tel. (21) 2179-1312 2179-1214 2179-1215 Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva Ministra-Chefe da Casa Civil da Presidência da República Dilma Vana Rousseff Secretária-Executiva da Casa Civil da Presidência da República Erenice Alves Guerra

Conselho Editorial Jaime Antunes da Silva, Presidente; Haroldo Mescolin Regal, Coordenação Geral de Acesso e Difusão Documental; Inez Stampa, Coordenação Geral de Processamento e Preservação do Acervo; Maria Elizabeth Brêa Monteiro, Coordenação de Pesquisa e Difusão do Acervo; Maria Esperança de Resende, Coordenação Regional no Distrito Federal; Maria Izabel de Oliveira, Coordenação Geral de Gestão de Documentos; Marilena Leite Paes, Coordenação de Apoio ao Conarq; Mauro Domingues de Sá, Coordenação de Preservação do Acervo; Mauro Lerner Markowski, Coordenação de Documentos Escritos; Renato Diniz, Coordenação Geral de Administração; Samuel Maia dos Santos, Coordenação de Atendimento a Distância; Valéria Maria Morse Alves, Coordenação de Consultas ao Acervo; Wanda Ribeiro, Coordenação de Documentos Audiovisuais e Cartográficos. Editores GABINETE DA D IREÇÃO -G ERAL Clovis Molinari Jr. e Heloisa Frossard COORDENAÇÃO DE PESQUISA E DIFUSÃO Maria Elizabeth Brêa Monteiro

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Supervisão Editorial Alba Gisele Gouget • Alzira Reis • Renata Ferreira Edição de Texto e Revisão Alba Gisele Gouget • Renata Ferreira Projeto Gráfico, Diagramação e Capa Alzira Reis COORDENAÇÃO DE D OCUMENTOS A UDIOVISUAIS Wanda Ribeiro

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Pesquisa e Elaboração de Legendas Tereza Eleutério de Sousa Pesquisa de Imagens Bruna Andrade • Rodrigo Mendes Queiroz • Sérgio Lima • Tereza Eleutério de Sousa • Renata Ferreira • Scheila Cecchetti COORDENAÇÃO DE P RESERVAÇÃO Mauro Domingues

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Digitalização de Imagens Flávio Lopes • Cícero Bispo • Adolfo Galdino • Janair Magalhães• Fábio Martins • Luiz Fernando Nascimento

Apoio Administrativo GABINETE DA D IREÇÃO -G ERAL Sônia Maria de Almeida

Agradecimentos Giselle Teixeira • João Máximo Agradecimentos Especiais O Arquivo Nacional agradece a todas as editoras, aos autores e familiares dos autores presentes nesta edição pela cessão dos direitos dos textos que compõem a Revista Recine 2008. À Biblioteca Nacional, ao Arquivo Público do Estado de São Paulo, à Confederação Brasileira de Futebol (CBF), ao Centro Brasileiro Britânico, ao Fluminense Football Club, ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC/FGV), ao fotógrafo Bruno Torturra, e aos familiares de Joaquim Pedro de Andrade, pelas imagens desta publicação.

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Diretor-Geral do Arquivo Nacional Jaime Antunes da Silva


Apresentação

Clovis Molinari Jr.

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O cinema entra em campo, o campo no cinema

12

Documentário e ficção em curtas-metragens bons de bola

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Vestígios do passado

24

Narrativas de transmissões de futebol

32

1958 – O ano em que o mundo descobriu o Brasil

34

Futebol: tema de filmes

36

O homem do futebol-arte

40

O futebol como prática desportiva

42

O jogo de elite que virou o esporte das multidões

52

Nasce o Fluminense

58

Olhem elas aí...

62

Um toque de letra

68

A prontidão para a violência

72

Da técnica à tática

80

Canto de amor e de angústia à seleção de ouro do Brasil

82

O drama das sete copas

84

As hienas contra Saldanha

90

Friedenreich, “El Tigre”

94

O maior goleiro do mundo

98

Victor Andrade de Melo

Renata dos Santos Ferreira Eduardo Escorel Ilana Feldman

Luiz Rosemberg Filho Oswaldo Caldeira Bruno Torturra

Tarcísio Serpa Normando Marco André Balloussier Mário Filho

Heloisa Frossard

Aline Camargo Torres, Leonardo Augusto Silva Fontes e Rodrigo Cavaliere Mourelle Gerson Noronha Filho Alcides Scaglia

Vinícius de Moraes Nelson Rodrigues Nelson Rodrigues João Máximo

Nelson Rodrigues

Nilton Santos, a Enciclopédia

100

Descoberta de Garrincha

108

O anjo das pernas tortas

110

Garrincha, lendas e películas desbotadas

112

Garrincha, o homem que ganhou duas copas do mundo para o Brasil

116

A realeza de Pelé

120

Os imperdoáveis ou a super-humanidade dos goleiros

122

Botafogo e seu torcedor poeta

130

Os irmãos Karamazov

134

Recordações em preto e vermelho

136

Esse cara aí

138

João Máximo e Marcos de Castro Nelson Rodrigues

Vinícius de Moraes André Andries

José Claudio Mattar Nelson Rodrigues

Alvanísio Damasceno

Paulo Mendes Campos Nelson Rodrigues

Jeferson de Andrade Aldir Blanc


PH.FOT.00811.029

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O Recine – Festival Internacional de Cinema de Arquivo – alcança a sétima edição. No aniversário de sete anos de um evento dedicado à sétima arte, nada melhor do que entrar em campo com a camisa sete de Mané Garrincha. Desta vez, o tema é o futebol. O futebol embalado pela paixão mística da torcida e pela insuficiente onda de recordações dos cinqüenta anos da conquista da primeira Copa do Mundo. Gira o mundo, rola a bola, desenrola o filme. Com essa idéia o festival de cinema de arquivo mergulha na magia lúdica da bola, nos gramados, praias e chãos de terra pisada do país. Histórias de bola serão lançadas com muita categoria, por uma semana, nas traves da tela plantada entre as palmeiras imperiais do Arquivo Nacional. É esse extraordinário mundo da bola que rola que o Recine pretende trazer para a superfície do gramado do conjunto arquitetônico da antiga Casa da Moeda, hoje sede do Arquivo Nacional. Mais do que urgente, obrigatório (para quem sabe das coisas da bola), é homenagear o eterno Mané Garrincha. Sobre o gênio de pernas tortas, Nelson Rodrigues dá o pontapé inicial com A descoberta de Garrincha; Vinicius de Moraes faz poesia em O anjo das pernas tortas; André Andries lembra os filmes que retratam Mané, no artigo Garrincha, lendas e películas desbotadas; e José Cláudio Mattar fala por toda uma geração em Garrincha, o homem que ganhou duas Copas do Mundo para o Brasil. E para celebrar de forma intensa o filme recém-restaurado Garrincha, alegria do povo, de Joaquim Pedro de Andrade, o cineasta Oswaldo Caldeira entra em campo com o ensaio Futebol: tema de filmes. Dois outros inesquecíveis heróis do passado comparecem nesta revista em textos brilhantes: Friedenreich, “El Tigre”, de João Máximo, e Nilton Santos, a Enciclopédia, de João Máximo e Marcos de Castro. O futebol é a maior paixão do povo brasileiro, e nenhuma outra seleção trouxe tantas taças e alegrias ao seu povo como a nossa. Cinqüenta anos atrás, teve início uma série de vitórias que estremeceria para sempre nossos adversários. Com grande apuro técnico e muita garra, a Copa da Suécia de 1958 foi conquistada com coragem


FUTEBOL, CINEMA E PAIXÃO

e talento, em um tempo em que os jogadores de futebol eram mal remunerados e se alimentavam com pão e mortadela. O primeiro campeonato, a glória do pioneirismo, ninguém jamais esquece. Para resgatar o feito histórico, o cineasta José Carlos Asbeg lançou o filme 1958, o ano em que o mundo descobriu o Brasil. Luiz Rosemberg Filho, também cineasta e crítico de cinema, aqui presente, anotou as suas impressões do filme que costura a história – o passado e o presente – aproveitando o que restou de imagens em um país que se esquece do que aconteceu ontem, atropelado pela avalanche dos fatos do dia-a-dia, e acometido pelo descaso em relação aos acervos públicos e privados. No Brasil, o futebol nos surpreende desde a sua origem como esporte de elite. Não demorou muito tempo para que os torcedores trocassem a casaca pela camiseta e se misturassem todos no grande caldeirão das emoções despertadas pelo clube do coração. O artigo O jogo de elite que virou o esporte das multidões, de Marco André Balloussier, dá conta dessa trajetória singular do maior evento do planeta. Tarcísio Serpa Normando aborda a evolução desse esporte desde os seus primórdios até a contemporaneidade, em O futebol como prática desportiva. Pretendemos neste número da revista Recine mostrar o caminho percorrido por um esporte que se origina nas elites e se torna uma paixão popular, capaz de reunir ricos e pobres em torno de mesas de bar e balcões de botequim para debater interesses comuns: os grandes jogadores que dão arte às jogadas; os maiores clubes e suas conquistas inesquecíveis; as torcidas que balançam os estádios fazendo vibrar corações e ameaçam rebeliões diante de insucessos e incompetências; os dirigentes e as manobras de tapetão; as falhas de arbitragem, os resultados polêmicos e os lances duvidosos que decidem uma partida; o impacto da máquina-futebol sobre o mundo político e a economia; a estética, a moda e as táticas do futebol; a presença das mulheres dentro e fora do gramado. Para além dos grandes centros do esporte, na periferia nascem craques. Vê-se nas ruas a criançada que brinca com bolas improvisadas – de meias

ou limão – cuja dificuldade adestra ainda mais a habilidade conquistada na adversidade de um mundo pobre, de chãos esburacados de ruelas íngremes. A bola às vezes cai no abismo, no mato, quando não estoura sob as rodas perigosas de um automóvel – é a rotina espalhada pelo país. Tudo acontece na tela do cinema. No futebol, o principal ocorre na grande área – dos gols de placa, aos desperdiçados. “O chute fatal, a rebatida heróica; o drible temerário de um beque; a tragédia do goleiro, em cujos pés solitários a grama não floresce. Ali nasce o gol, nasce o infarto que mata de coração o torcedor” – assim se expressou o jornalista Armando Nogueira. Sobre a solidão e a angústia dos goleiros, Alvanísio Damasceno deixa-nos um artigo instigante: Os imperdoáveis ou a super-humanidade dos goleiros. Os poucos registros sonoros existentes da era do rádio reproduzem as vozes de inesquecíveis narradores, gritos da multidão, comentaristas célebres, a opinião do povo. Muito se perdeu. Estaria seguro, em suporte duradouro, tudo o que se faz hoje para o próximo século? Das reportagens de jornal às transmissões de rádio, o futebol ganhou grande suporte tecnológico com as lentes de filmagem. Os cinejornais atualizavam as informações em seus detalhes e permitiam ao público sentir um pouco da emoção somente experimentada pelos que compareciam aos estádios. Por isso, não poderia faltar uma justa lembrança àquele que fez história na beira do campo: o cinegrafista Francisco Torturra, ‘o coração do Canal 100’, homenageado em O homem do futebol-arte, artigo assinado pelo repórter Bruno Torturra. Depois, com a TV e suas fartas câmeras distribuídas pelos estádios, uma infinidade de variantes que extrapolam o instante do jogo são incorporadas: as mesas de debates, as entrevistas, os documentários, os gols da rodada, os replays. O avanço dos meios de comunicação, o jogo intermediado pela imprensa, as semelhanças entre planos e narrativas cinematográficas e as transmissões de futebol mobilizam toda a atenção de Ilana Feldman em Narrativas de transmissões de futebol.

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Talvez seja inútil discutir as razões da obsessão pelo futebol. Mas é curioso verificar que os filmes de ficção não tenham conseguido, até agora, inflamar o espectador com o mesmo ardor dos estádios. São poucos os filmes de ficção sobre futebol no Brasil. Teriam sido eles, até agora, incapazes de dar conta de uma paixão tão popular e vibrante? No entanto, ninguém contesta que o documentário seja o gênero que se ajustou com perfeição ao futebol (e aos amantes de futebol), em suas derivações de reportagens e entrevistas. Para mostrar o espectro desse esforço dos cineastas nacionais em unir as paixões pelo cinema e o futebol, dois artigos inauguram esta revista: O cinema entra em campo, de Victor Andrade de Melo e Documentário e ficção em curtas-metragens bons de bola, de Renata dos Santos Ferreira. Reunimos também nesta edição alguns dos mestres da palavra escrita que declararam sua relação de amor pelos clubes, os grandes jogadores e a seleção nacional. Entre eles Nelson Rodrigues, que assina seis crônicas – A descoberta de Garrincha; O drama das sete Copas; As hienas contra Saldanha; O maior goleiro do mundo, sobre Marcos Carneiro de Mendonça, A realeza de Pelé e Os irmãos Karamazov, sobre Fla e Flu; Mário Filho, que faz a genealogia de uma paixão em Nasce o Fluminense; Paulo Mendes Campos, que partilha defeitos e qualidades comuns com seu time, em Botafogo e seu torcedor poeta, e Vinicius de Moraes, que celebra o escrete vitorioso de 1962, em Canto de amor e de angústia à seleção de ouro do Brasil. Entre os contemporâneos, Jeferson de Andrade incendeia a lembrança da galera flamenguista no artigo Recordações em preto e vermelho; e o Vasco da Gama marca um gol de letra com o poeta Aldir Blanc, em Esse cara aí. Com o advento do futebol de resultados, as táticas foram expostas e os retranqueiros aprenderam como tentar segurar um placar – jogar feio, mas ganhar. Os estudos podem ser matemáticos, esquemáticos, mas nunca impedirão a surpresa poética do improviso numa fração de segundo. Estudiosos levaram a sério a tática ri-

gorosa e os gritos que imitam a guerra – esta é a reflexão de Alcides Scaglia em Da técnica à tática e de Gerson Noronha Filho, no artigo A prontidão para a violência, aqui publicados. E as mulheres? Subiram mais alto no pódio nas Olimpíadas de Pequim. Esse mundo do futebol já não é o mesmo, ainda bem. Mulheres superam homens em eficiência, conhecimento e sensatez. Heloisa Frossard, por exemplo, desfila com elegância a sua visão afinada do campo de jogo no texto Olhem elas aí... Um rico acervo público concentra inúmeros elementos de um determinado universo. Por essa razão torna-se imperdível a leitura do levantamento realizado por técnicos da Coordenação de Documentos Escritos do Arquivo Nacional no artigo Um toque de letra: breve roteiro de fontes textuais sobre futebol no Arquivo Nacional. E, para encerrar, um texto de cineasta que tem os olhos voltados para o passado, o presente e o futuro. Mais do que fazer falta, seria omissão deixar de convidar à leitura de uma significativa reflexão de Eduardo Escorel, orientador da Oficina do Recine – atividade voltada para alunos que têm a chance de criar curtas com a colaboração do autor. Escorel, mestre na arte da garimpagem, promove de forma brilhante a conjugação do cinema com a história, daí publicar o seu artigo Vestígios do passado. O cinema tem o ritmo do futebol. Pode ser lento, agitado e acabar em goleada ou num chocho zero a zero. O futebol encontra no cinema um intérprete sensível e fiel, capaz de recriar, no balanço feliz de uma jogada em câmara lenta, a gingada encantadora de um drible de Mané Garrincha. O espectador não está menos sujeito à paixão do que um torturado torcedor de arquibancada, capaz de risos e lágrimas, como nos filmes de Chaplin. Futebol e cinema são expressões artísticas que nunca se repetem.

Clovis Molinari Jr. Curador do Recine


FUTEBOL, CINEMA E PAIXテグ

PH.FOT.03497.002

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Seleção Brasileira entra em campo para enfrentar o Paraguai pela Taça Oswaldo Cruz, no Maracanã. O Brasil venceu o Paraguai por 5x1. Vê-se Didi, Oreco, Dida, Dino Sani, Joel, Zózimo e De Sordi. Rio de Janeiro, 4/5/1958


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Victor Andrade de Melo Professor do Programa de Pós-Graduação em História Comparada da UFRJ. Coordenador do Sport: Laboratório de História do Esporte e do Lazer. Autor do livro Cinema e esporte: diálogos e um dos organizadores dos livros O esporte vai ao cinema (com Fábio Peres) e Futebol por todo o mundo: diálogos com o cinema (com Marcos Alvito).

O cinema entra em campo, o campo no cinema:

Filmes do Serro

esporte, futebol e cinema – uma longa relação

Em 1999, Marcelo Masagão lançou Nós que aqui estamos, por vós esperamos, um filme-memória em que procura, com base em recortes biográficos (reais e ficcionais, de personagens notórios e de pessoas pouco conhecidas), traçar uma síntese do século XX. Uma das seqüências mais bonitas da película é a que compara o movimento das pernas de Garrincha, ao driblar seus adversários, com o famoso bailado de Fred Astaire, em uma de suas performances cinematográficas. Um verdadeiro pas de deux. Não parece exagerado afirmar que o cineasta de alguma forma compara a paixão e o fascínio causados por dois expoentes de manifestações culturais de grande importância: o cinema e o esporte. Astaire, um astro dos musicais, um dos gêneros cinematográficos mais populares, e Garrincha, um ícone do futebol, sem dúvida o esporte mais difundido em todo o mundo, fazem parte do imaginário do século que passou. De certa maneira são heróis de uma época. Mesmo possuindo raízes anteriores, são fenômenos típicos da modernidade, se consolidando no âmbito da série de mudanças observáveis desde o século XVIII, crescentes no decorrer do século XIX e estabelecidas na transição e no decorrer do século XX. Devem ser compreendidos inseridos na esfera do crescimento das cidades como arenas de circulação de mercadorias e da conseqüente construção de uma cultura eminentemente urbana, onde se destacavam as buscas e vivências de lazer. Com isso, observa-se o crescimento das preocupações com o público, o consumidor, o corpo como elemento de consumo e de notável atenção e visibilidade. Há muitas semelhanças entre o cinema e o esporte, mesmo se tratando de linguagens diferentes. Podemos pensar na organização espacial de estádios e salas de projeção como locais que isolam parcial e momentaneamente os indivíduos do “mun-


www.riefenstahl.org

FUTEBOL, CINEMA E PAIXÃO

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Olympia (1938), de Leni Riefenstahl, um dos primeiros filmes sobre esportes

do real”. Podemos identificar que suas narrativas possuem, em linhas gerais, protagonistas, antagonistas, heróis, uma seqüência inesperada de ações (embora sempre haja previsões ou suposições anteriores), perdedores e ganhadores, incentivados por um público que acredita no poder de sua influência. E, fundamentalmente, cinema e esporte compartilharam símbolos de uma época. Não surpreende que no clássico A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica Walter Benjamin tenha comparado diretamente o esporte ao cinema, argumentando que construíram um sentido geral de pertencimento, de proximidade e de posicionamento do público em relação ao espetáculo: “A técnica do cinema assemelha-se à do esporte no sentido de que nos dois casos os espectadores são semi-especialistas. Basta, para nos convencermos disso, escutarmos um grupo de jovens jornaleiros, apoiados em suas bicicletas, discutindo resultados de uma competição de ciclismo. No que diz respeito ao cinema, os filmes de atualidades provam com clareza que todos têm a oportunidade de aparecer na tela. Mas isso não é tudo. Cada pessoa, hoje em dia, pode reivindicar o respeito de ser filmado.”

Cinema e esporte constituem-se em poderosas representações de valores e desejos que permearam o imaginário do século XX: a superação de limites, o extremo de determinadas situações (comuns em um momento onde a tensão e a violência foram constantes), a valorização da tecnologia, a consolidação de identidades nacionais, a busca de uma emoção controlada, o exaltar de um conceito de beleza. Juntos celebraram a modernidade e suas idéias de velocidade, eficiência, produtividade. Juntos cultivaram muitos heróis.

Ao mesmo tempo em que expressam tais dimensões, estas também foram fundamentais na sua consolidação. Isso se torna expoente quando relembramos o espaço que ocupam na vida cotidiana de grande parte da população. Cinema e esporte estão entre as linguagens mais acessadas no decorrer do século XX, não somente nos seus espaços específicos (as salas de projeção e os estádios), como também em função da ação dos meios de comunicação em geral, que nelas investiram por se tratarem de produtos de grande penetração popular. Antes mesmo do cinema moderno, já havia relações entre filmes e esporte. De acordo com os indícios históricos levantados, atletas em movimento são representados já em 1865, no estereoscópio de Jean Claudet. Eadweard Muybridge, na década de 1870, muito usou o esporte em suas experiências. Novamente vemos cenas esportivas capturadas pelas máquinas criadas por Étienne-Jules Marey e Georges Demeny, no âmbito da Station Phisiologique, na França da década de 1880. A invenção do quinetoscópio, por Thomas Edison, em 1894, oferece a possibilidade de a exibição de imagens em movimento entrar definitivamente no rumo de tornar-se um espetáculo e não mais somente uma questão puramente científica. Naquele mesmo ano, o notável inventor filmou a luta entre James Corbett e Peter Courtenay, e em 1897, o combate entre Corbett e Fitzsimmons. Nos Estados Unidos, a partir de aperfeiçoamento do aparelho criado por Edison, várias empresas foram se estabelecendo no mercado. Entre essas, vale a pena destacar a Kinestocope Exhibition Company, dirigida por Otway e Gray Latham, uma das mais profícuas nesse primeiro instante. A temática na qual era especializada? Filmes de boxe.


CINEMA ENTRA EM CAMPO

Filmes do Serro

O

Cenas de Garrincha, alegria do povo (1963), de Joaquim Pedro de Andrade

Aliás, algumas importantes inovações na linguagem cinematográfica devem-se ao desejo de melhor captar e exibir os espetáculos de boxe em sua plenitude: novos modelos de película, novos planos, novos equipamentos. Dando um salto no tempo, lembremos que isso foi um dos esforços de Leni Riefenstahl quando da realização de Olympia (1938), documentário sobre os Jogos Olímpicos de 1936, em Berlim. No decorrer dessa longa relação entre esporte e cinema, podemos identificar atores que também eram atletas e participavam de competições esportivas (como Robert Redford, Gene Hackman), atores representando papéis de atletas, técnicos e/ou dirigentes (Alain Delon, Roberto De Niro, Gary Cooper, Joe Mantegna), atletas que se tornaram atores (Johnny Weissmuller) ou representaram papéis em determinados filmes (Alfredo Di Stefano, Zico e Pelé). Alguns filmes incentivaram a população a buscar alguma prática esportiva (como as de nado sincronizado e natação de Esther Williams, nos anos 40). Muitos foram os cineastas que incorporaram o esporte em suas produções. Nesse percurso, como terá sido representado o futebol? Uma questão que sempre vem à tona é a pouca presença do velho esporte bretão nas películas produzidas por todo o mundo. Se os encontros entre cinema e esporte são constantes e profícuos, por que a mais popular das práticas esportivas está, em certo sentido, pouco representada, ainda mais quando a comparamos a outros esportes, como o boxe (este quase um gênero à parte entre os filmes esportivos)? A resposta a essa questão tem a ver com as dificuldades técnicas de recriação cênica de uma partida de futebol, com a própria dinâmica da prática (que possui uma força dramática menos explícita do que, por exemplo, o boxe) e mesmo com o menor interesse da principal indústria cinematográfica mundial, a norte-americana, por esse esporte. De qualquer forma, a despeito de todos esses fatores, não se pode dizer que o futebol não esteve presente nas telas.

Uma consulta ao banco de dados do projeto “Esporte e arte: diálogos” (www.sport.ifcs.ufrj.br) permitirá ao leitor ver a grande quantidade de filmes em que o futebol esteve presente nos países da América Latina (notadamente Brasil e Argentina), Portugal e Espanha. No que se refere a outros países, podemos dizer que nos últimos anos vimos surgir um número maior de películas onde o futebol está representado. Por exemplo, entre outros, Febre de bola (David Evans, 1997), A Copa (Khyentse Norbu, 1999), Driblando o destino (Gurinder Chadha, 2002), Football factory (Nick Love, 2004), e as animações japonesas Super campeões – volume 1 e 2 (2002), sobre um garoto que sonhava em vir para o Brasil e se tornar grande jogador. É interessante, aliás, identificar o lugar que o Brasil (sejam seus jogadores ou seus símbolos) ocupa em muitas dessas películas, ainda que de forma bastante estereotipada. Parece um mistério que alguns cineastas desejam entender: a qualidade e o vigor do futebol brasileiro; quase um ato de reverência. Essa referência aparece, por exemplo, em Meu nome é Joe (1998), do grande cineasta inglês Ken Loach. Ao dirigir seu sensível e crítico olhar para o “submundo” dos desempregados escoceses, o diretor tem como protagonista um alcoólatra que treina o pior time de futebol da região, que joga com uma camisa que faz menção à seleção brasileira. Para resumir, vale a referência a dois filmes. O medo do goleiro diante do pênalti (1971), de Wim Wenders, baseado no romance de Peter Handke, narra a história de Josef Bloch, goleiro de uma equipe da segunda divisão, expulso de uma partida por cometer uma falta. Pela noite ele mata a atendente de cinema com a qual sai e foge para a casa de uma amiga, de onde acompanha, aparentemente de maneira desinteressada, a perseguição da polícia, que o captura em um estádio de futebol. Mesmo que não haja muito do esporte na trama, vale pelo destaque que tem para desencadear o drama.


FUTEBOL, CINEMA E PAIXÃO

Já Fuga para a vitória (1981), dirigido por John Huston, estrelado por grandes nomes do cinema (como Sylvester Stallone e Michael Caine) e do futebol (como Pelé e Bobby Moore), merece destaque pela força dramática do enredo e por ser bastante interessante para discutir a presença social do futebol, a partir de suas relações com o cinema. O pano de fundo da trama é um jogo disputado, na Segunda Grande Guerra, entre o selecionado alemão e uma equipe de prisioneiros de guerra. O que era a princípio uma brincadeira (um “jogo de várzea”) vai se transformando em um evento, uma disputa simbólica de enorme vulto. Os alemães desejam vencer a todo custo para provar a supremacia do regime nazista; os presos querem aproveitar a situação para fugir. É difícil ver o filme e não lembrar da famosa frase de Bill Shankly, técnico do Liverpool nos anos 1960: “O futebol não é uma questão de vida ou morte; é muito mais do que isso”. No caso da película, isso é levado literalmente ao pé da letra. Os paralelos entre “vida” e “jogo”, entre “esporte” e “guerra”, entre “resultados” e “honra” permeiam toda a trama. No cenário internacional, há uma ressalva que deve ser feita. Normalmente, fazemos uma ligação direta entre o futebol e o jogo no qual 11 jogadores de cada lado tentam fazer a bola penetrar na meta adversária, não podendo fazer uso das mãos para tal (exceção feita ao goleiro). Mas, lembremos, existem muitos outros “futebóis” pelo mundo que também gozam de grande popularidade. Entre os mais populares temos o rúgbi e o futebol americano, que já inspiraram muitas películas. Entre as recentes podemos citar Duelo de titãs (2000, de Boaz Yakin), com Denzel Washington no papel principal; e Jerry Maguire (1996, dirigido por Cameron Crowe), estrelada por Tom Cruise. E no “país do futebol”, como esse esporte esteve presente no cinema? No Brasil freqüentemente vemos surgir a discussão de que temos poucos filmes sobre o assunto. Isso não é verdade. De fato, o que há é um desconhecimento de nossa produção cinematográfica. Segundo o levantamento que realizamos em mais de 4.500 longas brasileiros, entre os mais de 290 que, de alguma forma, representam o

esporte, cerca de 160 trazem algo relacionado ao futebol (dados de maio de 2008). Obviamente que esse grau de presença é muito variável, havendo desde breves citações (por exemplo, no recente Morro da Conceição, 2005, de Cristina Grumbach, um dos entrevistados foi jogador; em Ópera do malandro, 1985, de Ruy Guerra, há uma cena em um estádio); algum personagem da trama que é jogador (como no caso de Bossa nova, 2000, de Bruno Barreto; ou O casamento de Louise, 2001, de Betse de Paula); passando por aqueles filmes onde o futebol ocupa um espaço de relativa importância (como no fundamental Rio 40 graus, 1955, Nelson Pereira dos Santos), até aqueles em que é assunto central.1 Entre esses últimos, vários são os assuntos abordados: clubes de futebol (caso de Flamengo paixão, 1980, David Neves); Copas do Mundo (por exemplo, Brasil bom de bola, 1971, Carlos Niemeyer); jogadores de futebol (caso de Isto é Pelé, 1974, Luiz Carlos Barreto e Eduardo Escorel); loteria esportiva (por exemplo, Os treze pontos, 1985, Alonso Gonçalves); questões de gênero (Onda nova, 1983, José Antônio Garcia); dificuldades da carreira de jogador (Asa Branca, sonho brasileiro, 1981, Djalma Limongi Batista); relações com a política (Prá frente Brasil, 1982, Roberto Farias); entre muitos outros. Além de documentários, encontramos o futebol em comédias (O corintiano, 1966, de Milton Amaral, com Mazzaropi; e Os Trapalhões e o Rei do Futebol, 1986, Carlos Manga); dramas (Os trombadinhas, 1979, Anselmo Duarte); policiais (Máscara da traição, 1969, Roberto Pires); animação (A turma do gol, 2000, Paulo Mariotti) e até em filmes de sexo explícito (A pelada do sexo, 1985, Mário Lúcio). Entre os cineastas, além dos já citados: Antônio Carlos da Fontoura, Carlos Diegues, Carlos Gerbase, Carlos Hugo Christensen, Domingos de Oliveira, Fernando Cony Campos, Glauber Rocha, J. B. Tanko, João Moreira Salles, Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirszman, Luiz de Barros, Maurice Capovilla, Murilo Salles, Oswaldo Caldeira, Ugo Giorgetti, e muitos outros.

1 Todos os dados podem ser obtidos no banco do projeto “Esporte e arte: diálogos”, disponível em: www.sport.ifcs.ufrj.br.

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CINEMA ENTRA EM CAMPO

volvidos em sua produção: Joaquim Pedro de Andrade (direção e roteiro), Luiz Carlos Barreto (produção), Armando Nogueira (produção e roteiro), Mário Carneiro e David Neves (fotografia). O filme narra a trajetória do jogador, sua capacidade para encantar os fãs com sua personalidade, suas pernas tortas, seus dribles e seu extraordinário talento para surpreender os adversários. O documentário intercala depoimentos, trechos de cinejornais e algumas imagens tomadas no Maracanã, sempre procurando situar o aspecto social do futebol no Brasil. A figura de Garrincha é utilizada para traçar um retrato do povo brasileiro, aquele que nada tem para dar certo, mas, sabe-se lá como, acaba triunfando. Contudo, esta vitória é parcial, porque os usos de sua imagem tendem a incorporá-lo e apreendê-lo ao status quo, em certa medida tirando suas referências, o deslocando de seu papel original, o que deixa poucas opções de sobrevivência ativa. Se o futebol é fator de libertação e de festa, o cineasta também desconfia que possa ser de alienação e de manipulação, algo que é tematizado de forma sutil e complexa. Devemos ainda comentar, sem aprofundar por falta de espaço, que há duas facetas menos conhecidas do grande público que devem ser levantadas quando falamos da presença do futebol nas telas nacionais. Uma delas é o grande número de imagens documentais que podemos encontrar nos curtasmetragens pioneiros do cinema brasileiro e nos cinejornais, esportivos (como O Esporte em Marcha ou O Esporte na Tela) ou não (como Brasil Atualidades ou Notícias da Semana), cujo principal destaque é o louvado Canal 100. Há ainda os curtas de ficção: esses são motivo de um artigo desta mesma revista. Para encerrar, tratemos de um assunto de grande importância: o cinema (ou a imagem em um sentido mais amplo) teria influenciado na própria dinâmica do futebol? Desde o início, as relações entre arte cinematográfica e esporte tiveram uma dupla dimensão: contribuíram para ampliar o alcance dos

Filmes do Serro

Como não é possível, neste artigo, comentar todos os filmes brasileiros que têm como tema o futebol, gostaríamos de destacar alguns pelo seu pioneirismo e/ou importância. Por exemplo, em 1931, Genésio Arruda, famoso ator e humorista, dirigiu Campeão de futebol, uma homenagem aos jogadores da época. Este foi o primeiro filme nacional de ficção em que o esporte foi efetivamente o assunto central. Na película atuaram muitos atletas famosos à época, como Feitiço e Arthur Friedenreich. Já Alma e corpo de uma raça (1938), dirigido por Milton Rodrigues, produzido por Adhemar Gonzaga e pela Cinédia, foi o primeiro filme diretamente ligado a um clube esportivo. Como locação foram utilizadas as dependências do Clube de Regatas do Flamengo. Também foi utilizado o recurso de misturar atores profissionais e jogadores de futebol (entre eles Leônidas da Silva). No mesmo ano, Ruy Costa dirigiu Futebol em família, com o qual estiveram envolvidos importantes nomes do cinema brasileiro: Edgar Brasil (fotografia), Moacyr Fenelon (som) e Wallace Downey (supervisão). No elenco, a tradicional mescla de jogadores (do Fluminense Football Club), atores e cantores (como Grande Otelo e Dircinha Batista). A película narra os problemas de um jovem com os pais, por pretender ser jogador de futebol. Em 1946 é lançado Gol da vitória, dirigido por José Carlos Burle, um dos fundadores da Atlântida. Grande Otelo representou o craque Laurindo, personagem inspirado em Leônidas da Silva. A Copa do Mundo de 1950, dirigido por Milton Rodrigues e produzido por Mário Filho, busca os motivos que levaram o Brasil a ser derrotado pelo Uruguai na final daquele evento, em pleno Maracanã. Foi o primeiro documentário cujo tema era o esporte. Nesses primeiros momentos, o futebol esteve presente ainda em outros dois filmes que merecem ser destacados. O primeiro deles é Rio 40 graus (1955), de Nelson Pereira dos Santos. Ainda que não seja o assunto central da película, ocupa importante espaço em um dos marcos do cinema nacional. Já Garrincha, alegria do povo (1963) é certamente um dos principais filmes brasileiros e um dos mais importantes que têm por tema o futebol. Nomes destacados do cinema nacional estiveram en-

Filmes do Serro

O


FUTEBOL, CINEMA E PAIXÃO

espetáculos (tanto do esporte quanto do cinema) e a objetividade na análise dos resultados das competições, já que supostamente bastaria filmar as provas e partidas para que qualquer dúvida fosse sanada. Há duas questões que precisam ser encaradas. O uso de imagens é isento de dúvida? Certamente que não, e as polêmicas permanecem. Na Copa do Mundo de Futebol de 2002, por exemplo, ficou famoso o episódio em que praticamente todos os jornalistas do mundo afirmaram que o árbitro errara em uma situação polêmica de jogo, fazendo uso para tal de diversas fotografias e takes tomados aproximadamente do mesmo ponto de vista. Até que surge uma foto tirada de outro ângulo, de outro plano, demonstrando que a decisão do árbitro era perfeita. O uso das imagens para melhor observância das regras do espetáculo futebol é algo que desencadeia profícuos debates por todo o mundo. A segunda questão é que certamente a utilização de imagens, no decorrer do tempo, também trouxe modificações na postura do observador da prática esportiva. Se antes o torcedor dependia basicamente dele mesmo para se posicionar perante o que estava sendo assistido, a atual utilização de imagens acaba por, de alguma forma, retirar um pouco de seu papel definidor, diminuir um pouco o seu papel ativo. O recurso do videoteipe e seus desdobramentos (tira-teimas, programas que calculam “exatamen-

te” o que ocorreu) acabam por ser apresentados como a “verdade”, o objetivo, o “científico”, deixando a opinião do torcedor para o campo da “doxa”. Não estou afirmando que o uso de imagens “estragou” a prática esportiva, mas a chamar a atenção para as mudanças desencadeadas. Como exemplo claro, pode-se lembrar das constantes modificações nas regras de determinados esportes, como no caso do voleibol, para que o jogo se torne mais adequado à transmissão televisiva. Existe um número enorme de imagens e programas esportivos nas televisões de todo o mundo. O esporte é levado para dentro dos lares. Todos têm acesso a um discurso aproximado acerca da prática, mesmo que persistam as polêmicas. Os torcedores são, sim, ativos, porém lidam com estruturas bastante fortes de convencimento, simultaneamente e em diferentes graus rechaçadas e incorporadas. O importante é entender que a possibilidade de difusão rompeu o limite claro entre o público e o privado, envolveu ainda mais mulheres, filhos, famílias (algo que já era observável anteriormente nas instalações esportivas), mas estabeleceu um acesso mediado pelos “especialistas” a partir de uma idéia de objetividade. Enfim, como um caminho de via dupla, cinema e futebol se interinfluenciaram e dialogaram constantemente. E esse percurso nos permite vislumbrar uma possibilidade de compreender os discursos acerca da sociedade, determinadas representações, certos mitos. Estar atento a isso, como recurso de investigação, como possibilidade pedagógica ou como maneira de ampliar nosso prazer, é uma necessidade e um desafio para todos nós, pesquisadores, estudiosos, interessados ou fãs.

Cenas de Garrincha, alegria do povo (1963), de Joaquim Pedro de Andrade

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Renata dos Santos Ferreira

Jornalista, da equipe editorial do Arquivo Nacional.

Documentário e ficção

PH.FOT.03351.020

em curtas-metragens bons de bola

A paixão pelo futebol, já nos primeiros anos de vida, é retratada em vários curtas-metragens


FUTEBOL, CINEMA E PAIXÃO

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Dezenas de longas-metragens nacionais têm o futebol como tema central ou elemento de certa importância no roteiro, porém poucos conseguiram expressar com maestria a beleza e a paixão incondicional do brasileiro pelo esporte mais popular do planeta. Não se pode dizer exatamente o mesmo a respeito dos curtas e médias-metragens. Basta uma dedicada pesquisa para se descobrir que diversos cineastas brasileiros, numa lista que inclui Carlos Diegues, Rogério Sganzerla, Maurice Capovilla, David Neves, Jorge Furtado, entre outros, realizaram, cada um ao seu estilo, filmes que versavam sobre o universo do futebol, sejam documentários ou ficção. Jovens diretores, muitos egressos de escolas de cinema, também investem no argumento e são deles algumas das fitas produzidas nos últimos anos. A ousadia que falta aos longas-metragens está presente nos curtas, que surpreendem pela variedade de abordagens, confirmando assim sua vocação para experimentações e estudos da linguagem fílmica. Biografias dos campeões, dramas, romances, comédias, registros históricos valiosos, tudo está nesses filmes, prato cheio para cinéfilos e fãs do futebol. Por exemplo, Garrincha, ídolo das torcidas de todos os tempos, inspirou pelo menos quatro curtas: os documentários Voltar é conquistar duas vezes (1969), O incrível Mané Garrincha (1978), ambos de Aécio de Andrade; Mané Garrincha (1978), de Fábio Barreto; e a ficção Heleno e Garrincha, dirigida em 1987 por Ney Costa Santos. Outros jogadores foram assunto de curtas-metragens. Ana Luiza Azevedo e Jorge Furtado realizaram em 1988 o filme Barbosa, que mistura ficção e imagens de arquivo para contar a história de um homem que viaja no tempo para tentar evitar que o goleiro Barbosa sofra o gol que derrotou o Brasil na Copa de 1950, em pleno Maracanã.

Gilberto Macedo dirigiu Heleno de Freitas (1968), destacando o craque do Botafogo dos anos 50, que também é homenageado no já mencionado Heleno e Garrincha, de Ney Costa Santos; Pelé (1970), de Daniel Fernandes, documenta o dia-adia do jogador no Santos; baseado nas lembranças de um amigo de infância de Pelé, Uma história de futebol (1988), de Paulo Machline, narra as agruras do futuro rei e seus companheiros do Sete de Setembro de Bauru para vencer os mais temíveis adversários e conquistar a taça do campeonato infanto-juvenil, no ano de 1950; O caminho de Russo (1998), de Ricardo Carvalho, revela que destino levou o jogador Russo, que brilhou no Botafogo na década de 70 e hoje vive em Nova York; Memórias de um guerrilheiro (2005), de Felipe Nepomuceno, como o próprio título já diz, resgata as memórias de Adhemar Bianchini, que jogou ao lado de Pelé e Garrincha na seleção brasileira. Também de Felipe Nepomuceno, em parceria com Pedro Asbeg, O deus da raça (2003) é dedicado a Rondinelli, que marcou época no Flamengo. Em Mitos e lendas – Pelé, Garrincha e outros craques (2005), de Maurice Capovilla, o jornalista Juca Kfouri analisa os dois maiores craques brasileiros e outros jogadores importantes. Mauro Shampoo – jogador, cabeleireiro e homem (2005), de Leonardo Cunha Lima e Paulo Henrique Fontenelle, retrata o simpático ex-camisa 10 Mauro Shampoo, do considerado pior time do mundo, o Ibis Sport Club, sediado em Olinda, Pernambuco. O talento no futebol não está apenas nos pés dos jogadores. Locutor de rádio e televisão, Sílvio Luiz estrela O mundo segundo Sílvio Luiz (2000), de André Francioli, que explora a habilidade do narrador esportivo em situações que


E FICÇÃO EM CURTAS-METRAGENS BONS DE BOLA

PH.FOT.01682

DOCUMENTÁRIO

A derrota do Brasil na Copa de 1950 inspirou filmes como Barbosa (1988), Por que o Brasil perdeu a Copa? (1950) e A noite do capitão (2006)

fogem à rotina de zagueiros e atacantes dentro das quatro linhas do campo. Nem a sabedoria dos debatedores impede que uma mesa-redonda na TV termine na maior confusão por causa de um simples empate, na comédia A revolta do videotape (2001), de Rogério de Moura. As Copas do Mundo renderam documentários como As melhores jogadas dos brasileiros na Europa (1938), dos Irmãos Ponce; Por que o Brasil perdeu a Copa (1950), de Milton Rodrigues; Na Copa do Mundo (1962), de Badger Silveira; Copa do Mundo (1962), de Miguel Borges; Guadalajara 70 (2002), de Felipe Nepomuceno; O futebol no Brasil (1975), de Paulo Bastos Martins; e Itália 90 (1989), de Edu Felistoque e Nereu Cerdeira. Em A noite do capitão (2006), de Adolfo Lachtermacher, o capitão da seleção uruguaia de 1950, Obdulio Varela, passeia pela noite carioca, depois de ganhar do Brasil na final da Copa. O roteiro deste filme foi escrito a partir de depoimentos do próprio Obdulio, falecido em 1996, e em texto do escritor uruguaio Eduardo Galeano, a respeito do episódio. Política pode não combinar muito com esporte, mas no país do futebol tem tudo a ver. O período da ditadura militar no Brasil é lembrado em curtas como Liberdade Futebol Clube (2003), de Diogo Fernandes e Cláudia Cortez, que desfila na tela as adversidades enfrentadas por dois irmãos no ano de 1970. Enquanto um deles luta pela liberdade política e de expressão, o outro defende as cores do Liberdade Futebol Clube. Em Meus amigos chineses (2006), de Sérgio Sbragia, um menino apaixonado por futebol vê seus vizi-

nhos chineses, com quem partilhava a paixão pela bola, serem presos após o golpe de 1964. O uso de estádios com objetivos políticos serviu de argumento para Roberto Moura filmar Futebol 3 – Zona do agrião (1980), que faz parte de sua trilogia devotada ao esporte das multidões. Filmes com temática social não faltam. Andréa Seligmann realizou Onde São Paulo acaba (1995), ficção que procura representar o modo de vida na periferia sul de São Paulo, onde o futebol tem lugar de destaque, em meio às carências e dificuldades dos habitantes da região. Eduardo Dornelles e Jefferson Oliveira dirigiram o documentário O campim (2006), que expõe, com o olhar de quem vive na comunidade, o cotidiano dos moradores em torno de um campo de futebol do morro da Grota, no Complexo do Alemão, zona norte do Rio de Janeiro. Na categoria da ficção, Ronaldo German traz Noventa minutos (1990), em que no início de um jogo do Brasil pela Copa do Mundo, dois rapazes tentam arrombar uma loja e são alvejados por um grupo de extermínio. Um deles agoniza durante os noventa minutos do jogo sem que ninguém lhe preste socorro, embora algumas pessoas testemunhem o seu sofrimento. O futuro do futebol é abordado de diferentes maneiras, desde a constatação de como a urbanização significou a extinção dos campos de várzea (No vai da várzea, 1983, de Rodolfo Ancona Lopes), até a formação dos craques (Dente de leite, 1970, de Flávio Portho). Com o foco no futebol amador, Carlos Couto roteirizou e dirigiu Bola de meia (1971), aproveitando a despedida de Pelé da seleção brasileira para discutir a formação de novos profissionais da bola. Maurice Capovilla assina a direção do mais emblemático dos filmes do gênero, Subterrâneos do futebol (1965), um questionador estudo acerca da problemática estrutura desse esporte no país, e o sonho alimentado por jovens brasileiros de uma carreira de jogador, vista pelos mais pobres como única chance de vencer na vida. De Luiz Carlos Piá, O craque do futuro e o futuro do craque (1980) elucida a profissão de futebolista, assim como Futebol 3 – Meio de vida (1980), filme da trilogia de Roberto Moura. Anna Azevedo, em seu premiado Berlinball (2006), acompanha garotos


FUTEBOL, CINEMA E PAIXÃO

de Campina Grande, Paraíba, e seu desejo de tornarem-se craques famosos como Marcelinho Paraíba, que atuava no Hertha Berlin, na Alemanha. Rogério Sganzerla deu sua colaboração para o acervo de filmes com temática futebolística, em especial a cartolagem, com Perigo Negro (1992), um roteiro de Oswald de Andrade, escrito em 1938, que narra o sucesso e a decadência de um craque, arruinado por um cartola. Segundo Sganzerla, Oswald se baseou na trajetória do jogador Leônidas da Silva para elaborar a história. A figura do dirigente de clube aparece ainda no filme de Louis Chilson, ...E o craque marcou (1997), sempre com as piores intenções. O fanatismo do torcedor de futebol motivou brilhantes experiências audiovisuais. Na linha de homenagem aos clubes, o que não falta é emoção: Unido vencerás (2003), de Pedro Asbeg, é um documentário que deve fazer chorar os torcedores do América Futebol Clube, que mereceram um segundo filme, Unido vencerás 2 (2006). Ney Costa Santos dirigiu outra pérola do gênero, Meu glorioso São Cristóvão (1978), que não deixa passar em branco as glórias e martírios enfrentados pelo clube suburbano carioca. Em Os fiéis (2003), documentário de Danilo Solferini, três amigos relatam o que passaram durante a invasão corintiana de 1977 no Rio de Janeiro. Uma vez Flamengo, sempre Flamengo (1968), de Valquíria Salvá, mostra como dois torcedores, interpretados por Paulo José e Flávio Migliaccio, revoltados com uma derrota, combinam descontar a raiva em suas mulheres. André Klotzel dirigiu, roteirizou e montou Gaviões (1982), película na qual se juntam ficção e documentário para provar que o torcedor corintiano não mede esforços para seguir seu time. Santos Futebol Clube (1965), um documentário de Roberto Santos, foi feito na época dourada do clube. Este também é o título de uma videoanimação de Inácio Zatz, realizada em 2004. Uma partida disputada em 1924 no estádio do Fluminense pode ser relembrada graças a Propósito de futebol (1974), de Roberto Kahané, ao som de Pixinguinha, Ernesto Nazareth e Ary Barroso. Paixão pelo futebol explica Futebol 3 – Jogo dos homens (1979), mais um documentário de Roberto Moura.

Esplendor do martírio (1974), de Aloísio Déo e Sérgio C. Jucá dos Santos, é um exemplar filme sobre a atenção dedicada pelo brasileiro aos jogos de uma Copa do Mundo, no caso, a da Alemanha em 1974. Rádio Gogó (1999), de José Araripe Jr., apresenta a história fictícia de um sujeito cuja grande paixão é narrar peladas de rua, em uma rádio montada dentro de uma Kombi. Um cidadão recorda passagens de sua vida remetendo sempre a acontecimentos do futebol em Futebolisticamente (2005), de Rodolfo Pelegrin e Daniel Boesel. A rivalidade do futebol mineiro está no filme de Patrícia Moran, Perdemos de 1 a 1 (2000), muito bem representada pela torcedora do Atlético cardíaca que, em dia de jogo decisivo, precisa ser socorrida por um médico fanático pelo Cruzeiro. O português dono de um bar fatura alto nos dias de jogo, depois de instalar TV a cabo em seu estabelecimento no subúrbio carioca. Este é o enredo de O jeito brasileiro de ser português (2001), de Gustavo Melo. Thomaz Farkas filmou a participação das torcidas no campeonato brasileiro e o resultado chama-se Todo mundo (1978-1980). Farkas, que produziu alguns filmes relacionados aos esportes, finalizou pouco depois Torcida de futebol (1982). Nas imediações do estádio do Morumbi, os camelôs vendem lanches, camisas e ajudam a reforçar a torcida corintiana. O suplício desses torcedores ansiosos por um título contra o Santos contagia o espectador de Dogão calabresa (2003), de Pedro Asbeg. A comemoração da conquista da Copa do Mundo de 1970 pelas ruas do Rio de Janeiro não deixou de ser registrada, graças às lentes de José Carlos Avellar, Tereza Jorge, Iso Milan, Manfredo Caldas e Álvaro Freire, diretores de Viver é uma festa (19701972). Experiência parecida é a de Copa registrada (2007). Para fazer este filme, Daniel Ribeiro, Fábio Novello, Karla Gasparini, Valério Fonseca e Yael Hoffenreich saíram pelas ruas cariocas durante a Copa de 2006 para conhecer os torcedores enquanto a bola rolava nos gramados da Alemanha. As bandeiras das torcidas foram o mote principal do curta Bandeiras e futebol (1972), de Hugo Kusnet. As crenças religiosas e as superstições não poderiam estar fora do contexto futebolístico, se-

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DOCUMENTÁRIO

E FICÇÃO EM CURTAS-METRAGENS BONS DE BOLA

gundo o documentário Superstição e futebol (1969), de Sylvio Lanna. Além de torcedor apaixonado pelo Fluminense, Nelson Rodrigues escrevia grandes crônicas sobre futebol. No ano de 2002, centenário do clube, Sérgio Sá Leitão lançou Óbvio ululante, documentário que homenageia Nelson e seu time do coração, contando com a presença de inesquecíveis craques tricolores, como Carlos Alberto Torres, Delei, Samarone, e outras personalidades. O futebol na vida conjugal é tema recorrente nos curtas-metragens. A eterna guerra dos sexos continua estimulando a imaginação de nossos roteiristas. Por enquanto, temos filmes como Linha burra (2000), de Thiago Oliveira e Diogo Miranda, em que um rapaz pensa em futebol até quando discute com a namorada. Núpcias com futebol (1976), comédia erótica de Ary Fernandes, encena o dilema de um corintiano que se casa no dia da final entre Corinthians e Palmeiras. Equilibrar a rotina de atleta com a vida amorosa faz um candidato a goleador do Flamengo passar por maus bocados em Comprometendo a atuação (2005), de Bruno Bini. Durante a Copa de 1998, a televisão é artigo de primeira necessidade na vida de um desempregado. Mas sua mulher acha que ele deve procurar trabalho. Isto é parte do enredo de O negócio (1999), de Diego de Otero, Roberto Tietzmann e Aletéia Selonk. Futebol e balé clássico aparentemente não combinam para o jovem casal de Decisão (1997), de Leila Hipólito. A descoberta do amor acontece numa final de campeonato infantil de bairro em Como se fosse ontem (2005), de Gustavo Moraes e Roberto Seba. A paixão pelo futebol une um casal na obra de Paola Barreto Leblanc, Elemento no conjunto (2004). A separação de dois namorados é um problema e tanto para os times do torneio de solteiros contra enrolados no filme Os moralistas (2003), de André Dal Bello. Comemorar um aniversário de casamento não se trata de algo muito fácil em dia de decisão, e Adilson Bernardo Silvestre levantou a questão em Bodas de campeonato (2001). A dificuldade de diálogo num matrimônio é agravada pelo futebol na TV, no curta Sintonia fina (2001), de Renato Gagliardi Chiappetta. Laís Bodanzky, por sua vez, desvenda a discriminação contra a mulher no futebol, no caso, uma

menina de 12 anos que joga bola com os garotos do bairro, na fita Cartão vermelho (1994). Até mesmo filmes experimentais foram produzidos usando uma estética baseada no futebol. Como primeiro exemplo pode-se citar É isto aí (1979), dirigido por Rita Benchimol, uma fuga do tradicional esquema de montagem e sonorização cinematográficas, usando futebol e praia como elementos temáticos. O artista conceitual Edgar de Carvalho Júnior, usando uma peça de uniforme de cada time carioca, andou pelo centro da cidade do Rio de Janeiro jogando bola, soando um apito e conversando com as pessoas. Dessa experiência resultou o documentário Ensaio urbano (1973). Desafiando a regra, o artista plástico Luiz Alphonsus transformou o poeta em juiz de uma partida, apitando o cigarro no super-8 Chacal é o juiz (1976). No mesmo simbólico e incomparável ano de 1976, José Antônio Garcia rompeu com a linguagem vigente do cinema em Hoje tem futebol, uma interpretação diferente para a preparação de um jogo. No estádio vazio, Demerval Netto é jogador, juiz, bandeirinha e espectador, no seu filme Um jogo de futebol no Maracanã (1970). Aprender matemática parece mais interessante com o auxílio do futebol, eis a proposta de A Matemática e o futebol (1970), das artistas plásticas Lygia Pape e Frieda Dourian, e do cineasta Sanin Cherques. No circuito boêmio-cinéfilo do Rio, a regra do impedimento leva as pessoas, sob influência etílica, à reflexão acerca da condição humana, no vídeo de Philipp Hartmann, A vida não é um jogo de futebol: à procura do impedimento (2006). No campo do filme de animação há exemplos como Xadrez (1999), de Vinicius Nora, em que peças de xadrez resolvem suas diferenças num jogo de futebol; Gol (1983), de Maurício Squarisi, a propósito de violência e exploração no esporte; e A turma do gol (2000), de Paulo Mariotti e Renato Bulcão, que imagina um menino tentando criar um time de futebol para ajudar a família a sair da pobreza. Narrado em forma de cordel, Disputa entre o diabo e o padre pela posse do cênte-fór na Festa do Santo Mendigo (2006), de Eduardo Duval e Francisco Tadeu, faz graça da ambição política de um coronel do interior do Nordeste


FUTEBOL, CINEMA E PAIXÃO

rativos da seleção brasileira para a Copa Roca na Argentina, com direito a entrevistas com os principais jogadores do momento, como Tostão e Gérson. Isso sem falar de jogos de campeonatos, amistosos e comemorativos das quatro primeiras décadas do século XX, filmados por admiradores do esporte e cineastas pioneiros, muitas vezes sob encomenda. São o que não se deve chamar de relíquias, mas sim de preciosos registros de épocas passadas que guardam no tempo e no espaço a paixão que move gerações e gerações de brasileiros. Quem tem a oportunidade de assistir a esses filmes certamente há de concluir que raríssimas vezes uma modalidade esportiva foi capaz de entusiasmar e unir um povo tal como o faz no Brasil. Ainda que os curtasmetragens tenham um espaço de exibição restrito, no que se refere ao futebol são território livre para dribles, passes de bola, criatividade e muitos gols. E, claro, câmeras filmando tudo.

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PH.FOT.01573.009

que tenta promover uma partida entre a equipe local e um time grande de São Paulo. A maneira de o cinema mostrar o futebol, inclusive, já foi objeto de um média-metragem. David Neves e Chico Drumond pesquisaram obras que tratam do assunto e o resultado é Cinema e futebol (1980) que, em 48 minutos, apresenta trechos das primeiras filmagens de jogos entre Brasil e Argentina, partidas no campo do Fluminense, cinejornais, documentários sobre jogadores e filmes de ficção que tivessem futebol na trama. Junte-se a tudo isso depoimentos de Nelson Rodrigues e Alex Viany. Além de todos esses filmes citados até aqui, existem muitos outros de caráter documental, especialmente aqueles que adentram as concentrações das seleções brasileiras e dos principais times em seus tempos áureos. Um bom exemplo é Receita de futebol (1972), do cineasta Carlos Diegues, em que são observados os prepa-

As concentrações e treinamentos dos times e, principalmente, da Seleção Brasileira sempre foram alvo das câmeras dos cineastas

Fontes consultadas: Cinemateca Brasileira – www.cinemateca.com.br • Porta Curtas – www.portacurtas.com.br • Curta o Curta – www.curtaocurta.com.br Curtagora – www.curtagora.com • The Internet Movie Database – www.imdb.com * GALEANO, Eduardo. Futebol ao sol e à sombra. Porto Alegre: L&PM, 2008. • ORICCHIO, Luiz Zanin. Fome de bola: cinema e futebol no Brasil. São Paulo: Imprensa Oficial, 2006.


Eduardo Escorel

Cineasta, diretor de Lição de amor (1975), Ato de violência (1980), Vocação do poder (2005), entre outros filmes.

Na sua prática profissional, o cineasta tanto pode produzir quanto utilizar documentos audiovisuais, comumente identificados como imagens de arquivo ou, simplesmente, material de arquivo. Nos dois casos, o dos registros filmados que vêm a adquirir valor documental e o do uso de filmagens feitas por terceiros, o realizador enfrenta vicissitudes familiares a quem procura cruzar cinema e história na realização de filmes documentários. 13 de março de 1964. Uma equipe de três pessoas filma o Comício da Central do Brasil em que o presidente João Goulart anuncia as reformas de base pouco antes de ser deposto. Onde estarão essas imagens? Da última vez que as vimos, era 1970. Desde então, seu paradeiro é um mistério. Janeiro de 1966. Em São Luís, no Maranhão, outra pequena equipe filma o governador José Sarney no dia da sua posse, discursando de um palanque armado na praça pública tomada pela multidão. Onde estará o negativo original dessas imagens? Teria sido parcialmente destruído e reutilizado em outro filme? Março de 1968. Um câmera solitário filma a procissão fúnebre e o enterro do estudante Edson Luís, morto a tiros pela polícia no Centro do Rio de Janeiro – marco inicial das manifestações de protesto ocorridas naquele ano conturbado. Onde estarão essas imagens? Teriam sido enviadas para o exterior do país, na tentativa de evitar que fossem apreendidas pela polícia? Esses três exemplos e a mesma pergunta, sempre sem resposta precisa, bastam para mostrar a precariedade que há, entre nós, na preservação

PH.FOT.05610.004

Vestígios do passado

de um repertório audiovisual que possa servir de referência à memória coletiva e à realização de documentários históricos. A água, o ar, a terra e o fogo conspiram contra a preservação dos registros visuais e sonoros. Mas à ação predatória dos elementos se soma a dos seres humanos – o despreparo de indivíduos e instituições, o descaso da sociedade e a insensibilidade dos governos. O suporte material desses registros, sendo perecível por natureza, em alguns casos é sujeito à autocombustão! A guarda descuidada, o armazenamento inadequado, contribuem para a grande quantidade de perdas havida desde os primórdios do cinema. Mesmo depois de a importância da preservação ter sido reconhecida em um círculo restrito, incêndios, alagamentos, temperatura ambiente elevada, umidade do ar e bolor continuaram dilapidando o acervo brasileiro de imagens e sons. Do que deixou de ser vendido a peso para servir de matéria-prima na fabricação de esmalte, grande parte não escapou da chamada síndrome de vinagre – odor característico que indica um processo irreversível de deterioração do suporte de acetato. Esforços isolados não foram capazes de impedir essa catástrofe continuada. E a passagem da predominância da imagem fotográfica para a eletromag-


FUTEBOL, CINEMA E PAIXÃO

Publicado em CPDOC – 30 anos. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas/CPDOC, 2003, p. 45-57.

Comício da Central do Brasil, cartazes na concentração da praça Cristiano Ottoni. Rio de Janeiro, 13/3/1964

nética agravou as perdas e a má qualidade técnica do reduzido acervo que vem sendo preservado. Assim, um projeto de rever a história republicana brasileira através do cinema parece, de antemão, condenado ao fracasso. As lacunas superam, de longe, as imagens ainda existentes. O que resta são apenas tênues vestígios do passado, cuja sobrevivência, muitas vezes quase miraculosa, não temos como explicar. Em 1965, pudemos ver, pela primeira vez, as imagens de Lampião, Maria Bonita e seu bando de cangaceiros, filmadas em 1936 pelo mascate libanês Benjamin Abrahão. A verdade é que não se deu, na época, a devida atenção à excepcionalidade daquelas cenas, apreendidas em 1937 sob o pretexto de atentarem contra “os foros da nossa nacionalidade”. O fotógrafo Adhemar Albuquerque teria escondido e vendido uma cópia ao produtor e diretor Alexandre Wulfes. De alguma forma, essas imagens chegaram às mãos de Paulo Gil Soares, que as incluiu no seu Memória do cangaço. Um longo caminho, marcado por lances imprevistos e detalhes ainda desconhecidos, foi percorrido até que aquele registro filmado encontrasse guarida na Cinemateca Brasileira, onde está depositado hoje. De maneira geral, no entanto, o desfecho desses percursos acidentados costuma ser menos feliz e, muitas vezes, imagens com a mesma origem têm destinos diversos. Geraldo Sarno conta que quando passou com Thomaz Farkas por Águas Belas, em Pernambuco, em 1969, viu, na delegacia da cidade, rolos de filme 35mm, todos velados. Segundo o delegado, teriam pertencido a Benjamin Abrahão e haviam sido trazidos junto com o seu cadáver quando foi assassinado em 1938. Seriam apenas negativos virgens? Haveria imagens impressas naqueles filmes? Que imagens se-

riam essas? Passados trinta anos, continuavam ali, se deteriorando, perdidas para sempre. Em outros casos, sem que se saiba como, o decurso de períodos ainda maiores não impediu que cópias de certos filmes fossem preservadas. Foi o que ocorreu com as imagens do Padre Cícero a que recorremos em 1970. Aceitamos sua existência, na época, sem nos preocuparmos em saber quem as filmara, nem como haviam sido preservadas. Pareceu-nos perfeitamente natural que estivessem disponíveis no Instituto Nacional de Cinema e que, graças a elas, nos fosse possível traçar um paralelo entre os ritos do poder dos anos 1920 e do final dos anos 1960. Sabemos hoje que essas imagens mostram o Padre Cícero inaugurando sua própria estátua de bronze numa praça de Juazeiro do Norte, no Ceará, e teriam sido filmadas pela Aba Film de Adhemar Albuquerque, a 11 de janeiro de 1925. Documento visual precioso, preservado durante quarenta anos numa instituição pública, que resistiu à temperatura tropical apesar de ter sido conservado em condições distantes das ideais. Muitas vezes a preservação de uma filmagem valiosa deve-se ao mero acaso. Um diretor dá a um colega um rolo de filme que recebera de um produtor. Entregue o material à guarda da Cinemateca do Museu de Arte Moderna, assegura-se, assim, a preservação do que está identificado na própria película como sendo “A grande marcha pliniana”, manifestação integralista no centro do Rio de Janeiro, ocorrida provavelmente em 1937. Lá estão Plínio Salgado, líderes e militantes, no momento em que, acreditando estar às portas do poder, encontravam-se, na verdade, às vésperas da derrocada. Quem terá filmado essas imagens? Terão sido exibidas em público alguma vez? Como

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DO PASSADO

PH.FOT.00290.006

VESTÍGIOS

Desfile Integralista. s.l., 1937

foram obtidas pelo produtor e o que o levou a entregá-las ao diretor? É provável que nunca venhamos a saber as respostas a essas questões. De todo modo, casos fortuitos e de origem imprecisa como esse, mal ou bem, contribuíram para que a perda da nossa memória audiovisual não fosse completa. Atuando em sentido contrário, porém, somase à aniquilação predominante o trabalho de sapa de diversas espécies de predadores, usualmente com propósitos comerciais. Uns consideram normal se apropriar de acervos de empresas falidas; outros não se envergonham de subtrair bens públicos para formar acervos particulares. Ficam delineados, dessa forma, alguns dos fatores que configuram o quadro geral de precariedades que a Cinemateca Brasileira vem enfrentando desde o seu surgimento no final de 1956, com vinte anos de atraso em relação às instituições con-

gêneres, européias e norte-americanas. Apesar de ter iniciado suas atividades quando o grande mal já estava feito e de portar como trágica marca de nascença o incêndio que destruiu, em janeiro de 1957, grande parte do seu acervo, a Cinemateca Brasileira foi responsável, nas décadas seguintes, pela preservação e pela restauração do principal repertório de imagens cinematográficas existentes no Brasil. Mesmo assim, tendo que lidar com a continuada desatenção dos governantes, nosso centro primordial de referência de documentação filmada ainda permanece distante do padrão de excelência que suas atribuições requerem e que seus dirigentes e usuários desejam. Já na década de 1980, a Embrafilme construiu uma modesta reserva técnica onde foi depositado o acervo originário do Instituto Nacional de Cinema. As instituições de referência do setor, a Cinemateca Brasileira, e, em segundo plano, a Cinemateca do Museu de Arte Moderna, ampliaram seus acervos e procuraram aperfeiçoar seus métodos de trabalho. Apesar da relativa evolução experimentada, o quadro geral se agravara, continuando a ser desalentador. Ao iniciarmos, em 1990, o que viria a ser uma série sobre a disputa pelo poder inaugurada com a Revolução de 1930, passamos a contar com o Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil – CPDOC, da Fundação Getúlio Vargas, criado em 1973. Tendo estabelecido um alto padrão de excelência em sua área de atuação e constituído suporte decisivo para o cinema documentário de caráter histórico, quem trabalha com esse gênero de filme não pode deixar de lamentar que o CPDOC não se tenha proposto a atuar também, como uma cinemateca, na preservação e no restauro de imagens filmadas em película ou gravadas em fita magnética. A opção por um projeto de âmbito mais modesto, determinada possivelmente por restrições orçamentárias, deve ter se beneficiado das vantagens dessa prudência. Ao mesmo tempo, impôs limites notórios a quem pretenda recorrer ao CPDOC como fonte de pesquisa iconográfica exaustiva sobre a história brasileira contemporânea. Reconheça-se, no entanto, que um acervo formado pela doação de arquivos particulares não poderia mesmo ter tal ambição de abrangência.


FUTEBOL, CINEMA E PAIXÃO

Além do local, da data e da identificação dos fotografados, não teria sido necessário acentuar o que cada uma dessas fotografias revela através do enquadramento escolhido, da exposição, do diálogo silencioso dos fotografados com a câmera e entre eles próprios? O que essas imagens trazem? Analisadas a fundo, o que elas realmente mostram? Para uma análise desse teor, uma das fotografias mais interessantes a considerar teria sido a do Arquivo Pedro Ernesto Batista, publicada à página 73. Segundo a legenda, foi tirada em Gaiba, Bolívia, em 1927, e nela estão retratados Cordeiro de Farias, abraçado a um menino, moradores da região, Carlos Hansen, engenheiro da Bolívia Concessions e, na extrema direita, Luís Carlos Prestes, de braços cruzados. O que faltou mencionar foi o papel representado por essa fotografia na fabricação do mito do Cavaleiro da Esperança. Cordeiro de Farias com o corpo relaxado é o único, além de um bebê de colo, que não encara a câmera; Prestes, além dos braços cruzados, apóia as pernas com firmeza, tem o corpo retesado e olha diretamente para a lente – é a imagem da determinação. Alguém, com apurado senso de percepção, isolou sua figura do resto da fotografia, fazendo surgir a representação ideal do líder messiânico, representação essa que passou a circular como um santinho,

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CPDOC/FGV

Além da produção intelectual dos pesquisadores do CPDOC se ter tornado referência obrigatória, eles próprios passaram a colaborar na realização de filmes documentários através de depoimentos e da elaboração de argumentos e roteiros. Foi o que ocorreu, em 1990, na realização de 1930 – Tempo de revolução, para o qual contamos com a consultoria histórica de Regina da Luz Moreira, pesquisadora da instituição. O Dicionário histórico-biográfico brasileiro, por sua vez, publicado em 1984, passou a ser a fonte de consulta primordial dessa área de conhecimento e pesquisa. Finalmente, o acervo fotográfico viria a suprir, ainda que através da imagem estática, algumas das lacunas da nossa memória cinematográfica. Ao lado dessas contribuições notáveis, é uma lástima que o registro, filmado ou gravado em vídeo, da imagem dos depoentes não tenha sido incluído no Programa de História Oral, transformando-o num Programa de História Oral & Visual. Considerando a penúria do acervo brasileiro de imagens em movimento, o registro visual das centenas de testemunhos colhidos teria constituído um acervo de valor inestimável. Tendo prevalecido o mesmo procedimento nos depoimentos mais recentes que compõem a trilogia da memória militar (Visões do golpe, Os anos de chumbo e A volta aos quartéis), fomos impedidos, por exemplo, de examinar a expressão do rosto do general Carlos Alberto da Fontoura, chefe do Serviço Nacional de Informações de 1969 a 1974, no momento em que afirmou nunca ter tido “uma prova de tortura” (Os anos de chumbo, p. 97). Terá sido apenas por falta de recursos que não foram feitas essas filmagens ou gravações em vídeo? Essa possibilidade terá sido considerada? Ou terá predominado um certo menosprezo pelo valor do documento visual que parece haver por parte de alguns historiadores? É isso que poderia sugerir a coletânea de fotografias A Revolução de 1930 e seus antecedentes, publicada pelo CPDOC em 1980. Reunindo grande número de imagens do seu acervo, além de algumas de outras fontes, o álbum se limita a apresentar textos breves introdutórios aos capítulos e legendas descrevendo as fotografias. A importância da documentação visual apresentada, até então pouco conhecida em seu conjunto, não nos deve impedir, porém, de questionar a possibilidade de essas imagens falarem por si mesmas.

Luís Carlos Prestes, na extrema direita, de braços cruzados; Cordeiro de Farias, abraçado a um menino; Carlos Hansen, engenheiro da Bolívia Concessions; e moradores da região. Gaiba, Bolívia, 1927.


VESTÍGIOS

DO PASSADO

ora contra um fundo branco como se estivesse superposta a uma nuvem, ora contra um fundo escuro. E essa passaria a ser, desde então, a principal fonte de referência dos ilustradores para representar o Cavaleiro da Esperança. Manipulações dessa espécie indicam o perigo de tomar a imagem pela comprovação dos fatos. Por estar sujeita a toda espécie de adulteração, é um truísmo dizer que a imagem não pode ser tomada como a reprodução da realidade. É célebre o caso da tomada do Palácio de Inverno, encenada em 1927 por Eisenstein para seu filme Outubro, usada regularmente ainda hoje como se fosse um registro jornalístico filmado em outubro de 1917. Menos notório, mas não menos instrutivo, é o caso das mais antigas imagens de uma campanha presidencial no Brasil. Nesse filme, feito em outubro de 1921, vemos o candidato Artur Bernardes chegando ao Rio de Janeiro para apresentar sua plataforma política na capital federal, praxe da República Velha. Após recepção festiva, promovida por seus correligionários, com faixas de boas vindas estendidas na estação, está registrado o que parece ser um cortejo triunfal pelo centro da cidade. Na verdade, tem-se notícia de que, ao entrar na avenida Rio Branco, Artur Bernardes foi hostilizado pela multidão em sinal de protesto pelas ofensas aos militares contidas nas célebres cartas forjadas atribuídas a ele, publicadas dias antes pelo Correio da Manhã. Evidencia-se, dessa forma, a discrepância notável que pode existir entre o relato dos cronistas e o que inferimos do registro filmado. Mais prosaica e deliberadamente falsa foi a transformação de Getúlio Vargas em um exímio golfista, graças a artifícios da montagem. Além de filmá-lo jogando, o câmera encarregado de glorificar sua figura teria recebido instruções para filmar, também, as tacadas de um grande jogador. Reunidas com o canhestro desempenho do ditador, essas cenas fizeram a platéia aplaudir, conven-

cida de que entre as supostas virtudes de Vargas, decantadas pela propaganda do Estado Novo, estava também a de ser um excelente esportista. Outras armadilhas que comprometem a confiabilidade de documentos filmados surgem na forma de imagens resultantes de uma encenação deliberada que pretende se passar por registro documental. Por mais evidentes e malfeitas que sejam, essas dissimulações costumam ser usadas livremente, como se o responsável pela filmagem não tivesse interferido e orientado o que se passou diante da câmera. O exemplo mais conhecido do gênero, no cinema brasileiro, é o de Pátria redimida, realizado por João Batista Groff. Além dos registros de notável valor documental do movimento militar de outubro de 1930, Groff não hesitou em encenar combates que nunca ocorreram com a intenção de assegurar o sucesso do seu filme. Já em 1932, quando houve mortos e feridos na guerra civil entre São Paulo e o Governo Provisório de Getúlio Vargas, o cinegrafista que filmou as tropas mineiras na serra da Mantiqueira, não satisfeito em reencenar o tiroteio e a movimentação dos soldados, criou pequenos quadros cômicos em que os mineiros ridicularizam a ameaça de bombardeio pelos paulistas e um em que fingem terem sido atingidos nas trincheiras. Sendo pequeno o número de filmes preservados e muitas vezes questionável seu valor documental, há ainda a considerar que as filmagens, encomendadas ou não, eram feitas quase sempre para agradar quem podia pagar pelo serviço. Grande parte do restrito material existente, portanto, além de exigir um olhar atento para ser decifrado, tem também um viés de classe, trazendo, como freqüente marca de origem, o propósito de glorificar a classe dominante e os donos do poder. Alguns filmes, cuja análise fugiria do propósito deste texto, não se enquadram nessa caracterização. É o caso de No país das amazonas, feito por Silvino Santos para ser exibido na Exposição da Independência,


FUTEBOL, CINEMA E PAIXÃO

co no interior de São Paulo nos anos 1920; a multidão com a placa de identificação da delegacia do Cambuci, carregada como troféu da vitória pelas ruas do centro de São Paulo em outubro de 1930; as manifestações e quebra-quebras no centro de São Paulo em julho de 1932. Pela amostra deixada por Jaime de Salles Penteado, é possível ter uma idéia do valioso acervo de imagens que existiu e que foi perdido para sempre. A influência do poder econômico na formação de um repertório visual de referência pode ser atestada, ainda, comparando as campanhas presidenciais de Armando de Sales Oliveira e de José Américo de Almeida. Deste último, chamado pela im-

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inaugurada em 1922, e da vasta filmografia do major Luiz Thomás Reis, documentando a atividade de Cândido Rondon a partir de 1912. Do plano fugaz da visita do presidente Campos Sales a Buenos Aires, em 1900, à visita aos Estados Unidos, em junho de 1930, do presidente eleito Julio Prestes; da visita ao Brasil do ex-presidente norte-americano Theodore Roosevelt, em 1913, à visita do futuro presidente dos Estados Unidos, Herbert Hoover, em 1928, o que existe no repertório de imagens filmadas referentes ao Brasil é, em grande medida, uma sucessão de visitas presidenciais e de monarcas estrangeiros. Até o surgimento em 1938 do Cine Jornal Brasileiro, produzido pelo Departamento de Imprensa e Propaganda do Estado Novo, essa é uma das principais temáticas das filmagens que incluem também fazendas de café, vistas do Rio de Janeiro, filmes “de família”, campanhas políticas, pioneiros da aviação e, naturalmente, desfiles de miss, algum futebol e muito carnaval. São raras filmagens como a da Fábrica Votorantim, em que se pode ver o ambiente fabril e o trabalho dos operários na década de 1920. Fora isso, algumas imagens de grande interesse ainda podem ser encontradas em escassos arquivos familiares, de empresas privadas e no exterior, principalmente nos Estados Unidos, onde o caráter jornalístico de muitos dos registros os diferencia nitidamente do que foi produzido no Brasil, por encomenda, na mesma época. Que nunca se tenha feito um projeto para tornar essas imagens existentes no exterior mais acessíveis aos brasileiros é uma constatação para a qual não parece haver justificativa razoável. Entre os arquivos familiares existentes, um dos mais notáveis é o da família Salles Penteado, de São Paulo. Ao voltar dos Estados Unidos, graduado em engenharia elétrica, no final da década de 1920, Jaime de Salles Penteado trouxe consigo uma câmera de filmar 16mm. Filho do coronel Antonio Leite Penteado, fazendeiro de café em Sertãozinho, ele fez muito mais do que um álbum de família filmado. Demonstrou instinto de grande repórter ao estar com sua câmera, em várias ocasiões, no lugar certo, na hora certa. Graças a ele, podemos ver hoje, entre outras cenas de grande interesse, um comício do Partido Democráti-

prensa paulista de “candidato pobre”, não conhecemos uma única imagem filmada na campanha, apesar de se tratar, supostamente, do candidato oficial do governo federal na eleição prevista para janeiro de 1938. Já do ex-governador de São Paulo, chamada por sua riqueza de “campanha americana”, temos farto material de excelente qualidade fotográfica e em perfeito estado de conservação, preservado por uma empresa privada. O apoio financeiro que Armando de Sales teria recebido de empresas e bancos estrangeiros, além do Instituto de Café de São Paulo, teria propiciado, entre outros luxos, o de contratar profissionais competentes para filmar os eventos da sua campanha. Comparado a Getúlio Vargas, Armando de Sales é superior em ao menos um quesito: o do número de discursos filmados nos anos de 1930, com imagem e

Contingente de fuzileiros navais desembarca no Catete para a guarda do Palácio. Rio de Janeiro, 25/11/1935


VESTÍGIOS

DO PASSADO

som sincronizados, de que ainda existem cópias. Há alguns do político paulista, enquanto do gaúcho parece não haver nenhum. Pois até mesmo nas imagens do juramento à Constituição, em 1934, o som e a imagem de Vargas não estão sincronizados. Essa talvez tenha sido a única disputa entre os dois, no período anterior à existência do DIP, vencida por Armando de Sales Oliveira: a do legado que deixou para servir de referência à memória audiovisual. No caso do acervo do CPDOC, esse viés da classe dominante também resulta privilegiado. Os arquivos pessoais que a instituição se propõe receber são, de forma geral, apanágio das elites, e o ato de doá-los a uma instituição de pesquisa pressupõe a esperança de glorificação póstuma. Assim, o que resulta é um conjunto de documentos da maior importância, mas forçosamente parcial e incompleto, circunscrito a um universo limitado de atores políticos. Mais uma vez, frustra-se a expectativa, talvez descabida, de quem busca no CPDOC um thesaurus exaustivo. Foi o que pudemos constatar quando lidamos com o arquivo então recém-incorporado de Ulisses Guimarães, em 1993. Para reconstituir a trajetória biográfica e política de Ulisses, contamos com a valiosa colaboração de Dulce Pandolfi, pesquisadora do CPDOC, mas fomos obrigados a recorrer em proporção significativamente maior a outros acervos para reunir as imagens e gravações de áudio que nos eram necessárias. Pelos mesmos motivos referidos acima, não é no acervo do CPDOC que se pode encontrar parte significativa da documentação visual existente a respeito da guerra civil de 1932 e dos levantes de novembro de 1935. E é a iniciativas privadas que devemos a existência, entre outros, de depoimentos, filmados ou gravados em vídeo, de Octávio Brandão, José Américo de Almeida e Luís Carlos Prestes. Em projetos da última década, particularmente Saudades do Brasil – A era JK, de 1992, e Estado Novo – A construção de uma imagem, de 1997, o CPDOC deu orientação diversa à que prevalecera em 1980, quando da publicação de A Revolução de 1930 e seus antecedentes, conforme assinalamos acima. Recorrendo, em Saudades do Brasil, ao cinema, ao vídeo, à música e ao design, as fotografias puderam ser contextualizadas, permitindo uma apreensão da imagem mais completa do que ela por si só

evidencia. Já no caso de Estado Novo – A construção de uma imagem, o próprio título indicava a percepção de que os registros fotográficos precisavam ser decodificados para poderem ser compreendidos. Escassas, duvidosas, parciais e incompletas, ainda assim imagens documentais de arquivo têm valor inestimável por assegurarem a existência de uma memória visual. Sem elas o âmbito da representação figurativa do passado ficaria muito restrito; graças a elas é possível criar referências iconográficas concretas que, somadas à informação verbal e escrita, aumentam nossa capacidade de compreensão histórica. Até mesmo encenações explícitas podem servir de matéria-prima para o cinema documentário, desde que não se tente fazer o que é ficcional passar por realidade. A desqualificação do registro audiovisual como fonte de conhecimento incorre no equívoco de não reconhecer que ele vale tanto quanto qualquer outra fonte, primária ou não. É preciso apenas saber ler, ou melhor, ver, e não tomar o que vemos e ouvimos pelo seu valor de face. Admitidas suas limitações, é impossível negar a força do testemunho que pode ser dado por imagens em movimento. Quando George Stevens, servindo no exército dos Estados Unidos, entrou com uma câmera nos campos de extermínio no final da Segunda Guerra Mundial, as cenas que filmou contribuíram para o fracasso do projeto nazista de apagar a memória do holocausto. O extraordinário impacto daquele testemunho visual, exibido em cinejornais a partir de abril de 1945, teve influência decisiva para impedir que se concretizasse a previsão cínica dos SS, relatada por Primo Levi, de que, fosse qual fosse o desfecho da guerra, o exército nazista seria vitorioso, pois as provas do que ocorrera seriam destruídas; nenhum dos prisioneiros sobreviveria para contar a história, e mesmo que houvesse algum sobrevivente, ninguém acreditaria no seu relato. As imagens de George Stevens, e de outros cinegrafistas, ajudaram a impedir a consumação de mais essa atrocidade – a de os nazistas se tornarem detentores exclusivos da história do holocausto. Não havendo maneira de deter por completo a deterioração provocada pela ação do tempo, nem de eliminar a incidência do acaso na preservação de sons e imagens, retardar os efeitos nocivos do primeiro e reduzir a ocorrência do último é tarefa


FUTEBOL, CINEMA E PAIXÃO

se trata apenas de preservar e restaurar, mas também de enriquecer continuamente o patrimônio audiovisual, através da criação e do respeito ao depósito legal que assegure a preservação de pelo menos uma cópia de todos os filmes brasileiros e estrangeiros exibidos no Brasil. Será razoável, como ocorreu em 2002, destinar à Cinemateca Brasileira recursos equivalentes a menos de 4% do montante captado através das leis de incentivo fiscal pelos filmes brasileiros lançados nesse ano? Alocar recursos públicos para produzir sem que esteja assegurada a preservação do que é produzido equivale a queimar dinheiro, ato criminoso passível de detenção por um período de seis meses a três anos, conforme disposto no inciso IV, artigo 163, do Código Penal. Não é mais admissível haver qualquer dúvida quanto ao interesse que “terão para os brasileiros do ano 2357 a imagem e a voz de Getúlio Vargas prestando juramento a Constituições, as passeatas de Plínio Salgado, os comícios de Luís Carlos Prestes, as vistas de São Paulo ou da Central do Brasil”, questão que angustiava Paulo Emilio Sales Gomes em 1957. Graças a ele, e a alguns outros abnegados, essas imagens chegaram até nós. E quanto às imagens mais recentes? Em que estado estará o registro visual e sonoro do discurso de posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva daqui a 350 anos? Em qual instituição essa imagem poderá ser vista em bom estado de conservação no ano de 2357?

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de instituições especializadas como a Cinemateca Brasileira. Para tanto, elas precisam receber suporte financeiro proporcional às suas altas responsabilidades, o que não ocorreu no caso da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, que se viu obrigada a deixar de preservar matrizes em 2002, depois de 45 anos de atuação nessa área. Com a transferência de parte do acervo da Cinemateca do MAM para o Arquivo Nacional, resta comprovar se essa tradicional instituição federal terá os meios necessários para cumprir a tarefa que se propôs. Ou se, ao contrário, teremos regredido, salvo a atuação da Cinemateca Brasileira, ao tempo em que predominavam depósitos de filmes no lugar de centros efetivos de preservação e restauro. O padrão de excelência alcançado pelo CPDOC e, mais recentemente, pelo Instituto Moreira Salles no trato de fotografias é a meta a almejar para os acervos de filmes e gravações em vídeo do País. Mesmo quase perdido o passado, e o presente estando em condição precária, persiste o desafio de assegurar a sobrevivência do acervo brasileiro de imagens em movimento. Sem o que, em face da produção maciça e ininterrupta de imagens, em ritmo crescente e nunca antes visto, daqui a cinqüenta anos será difícil saber qual a feição do início do século XXI. Para que as futuras gerações não tenham a mesma dificuldade dos seus antepassados, é preciso resolver os impasses que conspiram contra a preservação da nossa face. Não

Enterro do estudante Edson Luís. Rio de Janeiro, 29/3/1968

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Ilana Feldman

Cineasta, escritora e crítica de cinema. Dirigiu Se tu fores (2001), com Guilherme Coelho, e Almas passantes (2007),

com Cléber Eduardo.

Narrativas

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de transmissões de futebol cinema, futebol e estranhamento

Gente estranha essa que não gosta de futebol... Gente estranha essa que, em sua experiência inaugural com o futebol, fica fazendo decupagem das imagens e discutindo a direção da transmissão. Pois bem. Eis aqui a gente estranha. Mas, um primeiro problema se coloca: mesmo para quem supostamente não gosta do jogo é impossível não ser completamente enredado por sua transmissão e ter a percepção tragada pelo movimento da bola, pois a transmissão do futebol é estruturada narrativamente – com sua linguagem, locução e rítmica – tendo em vista o controle e a manipulação da atenção do espectador. Qualquer semelhança com o cinema clássico-narrativo, portanto, não é coincidência. Ambos buscam o mesmo efeito, o enlaçamento do espectador no drama, mas partindo de pressupostos distintos. Grosso modo, são evidentes as semelhanças de linguagem a partir de uma decupagem sumária: planos próximos, planos abertos e planos gerais, estes recortados por panorâmicas (os únicos movimentos de câmera) para esquerda e direita que selecionam o campo, funcionando na dinâmica plano e contraplano; replays que, analogamente, nos remetem aos habituais flashbacks do cinema clássico-narrativo; e uma dramaturgia calcada em relações de antagonismo, em que se pressu-

põem posições e características, a princípio definidas, para os jogadorespersonagens, e curvas dramáticas intensas para o jogo-cena. Ainda em relação à linguagem, nos jogos, algumas vezes, as câmeras se posicionam em ângulos em que olhos humanos não se posicionariam, estando mais próximas de uma proposta vertoviana, de um cinema-olho, maquínico, do que da transparência narrativa tão pleiteada pelo cinema clássico. No entanto, mesmo em seus momentos referenciais – quando, por exemplo, a câmera que filma o ponto de vista do gol treme à batida da bola na trave –, a transmissão do futebol não chega a produzir reflexividade, tal o grau de envolvimento criado pelas artimanhas narrativas (que, obviamente, dependem do desenrolar dos fatos, mas não só). Nesse sentido, poderíamos dizer que a transmissão do futebol, mesmo tendo como matéria-prima um processo vivo – roteirizado enquanto estrutura dramática, mas não de todo programado –, produz uma narrativa que se quer transparente, tal como se entende e se classifica hegemonicamente o cinema clássico-narrativo. Essa idéia de transparência é produzida, basicamente, por dois fatores: uma articulação das imagens do jogo não vinculada a uma idéia de autoria (não há editores esporti-

vos reconhecidos e legitimados como tais) e um engajamento do espectador-torcedor na trama futebolística, adesão produzida não apenas por um apriorístico “amor à camisa”, mas por procedimentos narrativos que acentuarão o drama e mobilizarão o mais imaterial (e hoje capital) sentido: a atenção. Tal atenção-atenta reforça a sensação de transparência, na medida em que, tragada pela dinâmica interna do jogo, fecha os olhos para o ilusionismo presente na construção da dinâmica externa de transmissão dele. Porém, a despeito de todas as semelhanças com o cinema clássico, semelhanças, sobretudo, na construção e aspiração aos efeitos mencionados, a transmissão do futebol, ao contrário, assenta-se na mise-en-scène. Nesta, sempre processual, improvisos estão previstos, como em um roteiro não-programado, cujos sentidos são organizados na duração e contingência dos acontecimentos por meio da edição, simultânea ao jogo. Já o cinema clássico-narrativo, de modo diverso, parte de sentidos organizados previamente, roteirizados, e de uma montagem que se dará a posteriori dos fatos encenados. Nesse aspecto, a transmissão do futebol estaria mais próxima do cinema moderno e de experiências contemporâneas de dramaturgias


FUTEBOL, CINEMA E PAIXÃO

televisuais, como o Big Brother Brasil, por exemplo, no que diz respeito a uma relação cada vez mais explorada audiovisualmente (e comercialmente, sobretudo) entre drama e jogo. Tanto o futebol quanto o BBB fazem da imprevisibilidade e da improvisação um método a partir do qual a narrativa será engendrada, porém se valendo, em ambos os casos, de categorias identitárias demarcadas, socialmente tipificadas e de posições estratégicas que rendem mais quanto maior for a criação de antagonismos, sejam binários ou entre grupos. Também a presença das ações minimalistas em campo, dos tempos “mortos” e dos momentos em que a atenção, de início atenta, é relaxada e se dispersa, aproxima o futebol do cinema moderno. No entanto, a aproximação da narrativa de transmissão de futebol com o cinema clássico-narrativo é, ainda, a mais nítida, sobretudo pela pretensão, que atravessa tanto o futebol quanto esse cinema, de se construir um inequívoco sentido final – ainda mais em jogos decisivos de campeonatos ou Copas do Mundo, quando não são permitidos empates, estes tão modernos finais em aberto (que, não por acaso, representam um dos problemas dos norte-americanos em se relacionar com o soccer). Paradoxalmente, a modernidade da transmissão do futebol estaria justamente nas múltiplas possibilidades

de analogias críticas, não restritas à dobradinha cinema clássico e moderno. Os momentos dos gols, por exemplo, lembram o cinema das atrações, por funcionarem como espetáculos autônomos, puro gesto cênico, cenas que serão repetidas exaustivamente e que podem, inclusive, como “narrativas” curtas e atrativas, migrar para outras mídias, como trailers exibidos em aparelhos celulares. Os gols seriam, assim, uma espécie de formatotrailer dos jogos, fazendo a ponte entre as narrativas curtas e sensoriais dos trailers com as antigas atrações do primeiro cinema. Curioso que, para quem nunca tinha assistido a uma partida na vida, ao menos engajadamente, a transmissão do futebol possa ser no plano das imagens e sons tão interessante, especialmente rica em relação às imagens e pobre quanto ao som, cuja captação e construção restam aquém da elaboração visual. A questão do som na transmissão do futebol indica uma última analogia com o cinema: clássico e moderno, o futebol transmitido é também, e talvez mais do que tudo, um filme mudo. A associação com o cinema mudo presta-se a dois sentidos. O primeiro, potente (para o futebol) e justo (com o cinema): a despeito de toda a falação, as imagens narramse por si, de maneira autônoma, tornando a locução acessória, ou

essencial acessoriamente, como os intertítulos no cinema mudo. Já o segundo sentido deprecia o “mudo”, sendo injusto com o cinema, mas não tanto com a transmissão do futebol: o som dos estádios captado, na maior parte das vezes, de dentro dos estúdios (como um som externo que invade um ambiente interno), não funciona como um som diegético, mas como uma massa sonora, ilustrativa, homogênea, abafada e sem qualquer nitidez, sobreposta às imagens como um som produzido artificialmente. Raras vezes ouvimos com sensação de proximidade chutes na bola, ruídos vindos da arquibancada, vozes das torcidas, apelos e indignação. O que é uma pena, pois a transmissão do futebol, se bem explorasse os recursos de áudio e microfonia, poderia proporcionar uma interessante experiência de imersão – em um momento em que os Playstations, auditivamente, são mais realistas do que as partidas transmitidas –, provocando uma certa gagueira ruidosa na linguagem e fazendo dos ruídos uma potente forma de comunicação. Por ora, contento-me então com os ruídos provocados pelas imagens, repetindo-se, em uma gagueira “infinita”, até o próximo lance, que substituirá o anterior. Por ora, contento-me em deixar de ser gente estranha, ou em sê-lo ainda mais...

PH.FOT.49134.160

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Luiz Rosemberg Filho Diretor de cinema, escritor e artista plástico. Dirigiu Assuntina das Amérikas, Crônicas de um industrial e O santo e a vedete – até hoje inédito nos cinemas brasileiros. Roteirista de Adyós General e Viva a morte.

1958 O ano em que o mundo descobriu o Brasil Giuliano Sarti Vladimir Kcssarev Raymond Kopa Jogadores de seleções que enfrentaram o Brasil na Copa de 58

No passado sabíamos que o craque Zizinho era do Bangu. Leônidas e Pompéia, do América. Pelé, do Santos. Zagalo, do Flamengo. Bellini, do Vasco da Gama. Garrincha e Didi, do Botafogo... Talvez seja interessante lembrar que o futebol de ontem não tinha nada a ver com o de hoje. Ontem jogava-se pelo entusiasmo e pela paixão. Hoje é um negócio como qualquer outro. Os jogadores são mantidos por corporações e, como escravos-felizes, jogam tanto por Deus como pelo Diabo. Quem pagar mais, leva-os! Mas claro que os comentaristas esportivos nada falam. Ganham bem para vender o futebol como um grande acontecimento a cada jogo. Raros são os jogadores que, como Afonsinho (do Botafogo), pensavam e brigavam por idéias políticas para o esporte. A maioria, viciada por um sucesso passageiro e rápido, só assume a embriaguez da fama, a artificialização social de suas vidas e, por fim, o velório. O esporte, hoje, e ainda mais o futebol, serve ao poder como um espaço letárgico escapista. Escapista mas pomposo. Não deixa de ser uma forma de espetacularização e aprisionamento da pobreza, também conveniente aos negócios de um modo geral duvidosos. E, aqui, quando o poder se apequena no seu constante idiotismo, o futebol é convenientemente agigantado. Na

TV, são horas e horas de enrolação e blábláblá. Mas se é verdade que “tudo é desejo”, o delicado longa 1958 – O ano em que o mundo descobriu o Brasil é um terno agenciamento de histórias contadas e bem vividas, do Brasil aos campos da Suécia – a nossa primeira e mais importante conquista futebolista. Com o cinema, o ontem torna-se mais próximo. A elogiável montagem de Arthur Frazão dá ao afetuoso pensamento de José Carlos Asbeg a embriaguez dionisíaca da nossa grande festa esportiva. Ambos servem-se do material garimpado em arquivos pelo mundo afora para nos fazer vibrar com as chaves de decifração de uma bela conquista emocional: a Copa do Mundo de 1958. Esquecida no tempo, mas recuperada no cinema. Asbeg saiu pelo mundo em companhia de Jorge Mansur, num rico processo de interiorização conceitual de muitos passados, na Áustria, País de Gales, Inglaterra, Rússia, França e, por fim, a Suécia, dona da casa. Ora, pulsava uma receita de hábitos, táticas e espaços diferentes. Chegamos por baixo, totalmente desacreditados, e saímos por cima. Mas o filme transcende rivalidades. Não seria melhor aceitarmos o esporte como uma grande festa para todos? É por onde Asbeg, Mansur, Frazão, Branca Murat,

Just Fontaine

Patrícia Reis, Juliana Maiolino, Paulo Baiano e Pedro Segreto tentam nos levar, indefinindo satisfações. E quando se supera sem perda alguma, seja lá o que for, podese vislumbrar beleza e poesia até mesmo na escuridão. Em seu primeiro longa-metragem, José Carlos Asbeg fez uma caixinha de músicavisual para todas as gerações, dando sobriedade a um esporte hoje explorado pelas corporações. E ainda assim o seu conteúdo é a alegria de um povo muitas vezes sacrificado pela constante pilantragem dos “nossos” homens públicos. O filme, porém, desmaterializa o fechado mundo do bode, abrindo-se para o encantamento cada vez mais necessário a um país pobre e empobrecido como o nosso, onde o grande desafio é a sobrevivência dos que ainda sonham. E é justamente neste espaço dominado pela hostilidade histórica da miséria que surgem talentos como Nilton Santos, Vavá, Didi... Heróis de um país arruinado pela dependência. Ontem grandes jogadores. Hoje esquecidos na velocidade do tempo que passa, e do próprio esporte. José Carlos Asbeg os homenageia cinqüenta anos depois, num filme afetuoso, onde todos são respeitados como seres humanos. E, depois, como jogadores e heróis. O filme se nutre desse humanismo respeitoso e poético.


FUTEBOL, CINEMA E PAIXÃO

Este artigo foi publicado em Via política, livre informação e cultura, em 18 de maio de 2008. Ver www.viapolítica.com.br.

Pepe

Ora, o que se estava ganhando com o esquecimento da seleção que foi para a Suécia e conquistou, em 1958, a nossa primeira Copa do Mundo? Mas este não é um filme frágil, choroso ou nostálgico. Se fosse só isso, seria um labirinto de tempos mortos. O itinerário do realizador e sua equipe de jovens passa pela história, pela memória esportiva e, por fim, pela festa da conquista. Ou seja, 58 persiste, queiram ou não, como referência de aprendizagem dos nossos jogadores. Ali, o Brasil se tornou liberto do passado de derrotas e fracassos. O novo país surgia com a Bossa Nova, com a construção de Brasília, com o Cinema Novo e com a conquista da Copa. Intensidades e lembranças de um país que poderia ter sido diferente, criativo, ousado e melhor. O Brasil dos sonhos de muitas gerações. Ousaria também dizer que a “folha seca” de 1958 – O ano em que o mundo descobriu o Brasil não é, de forma alguma, a estetização do futebol, mas uma doce viagem do realizador ao nosso passado de sonhos e lembranças, pois nos faz reviver um país iluminado, vivo, de certo modo alegre, possível e significativo para todos. Poderia ter sido diferente, mas nosso “complexo de vira-lata” só foi superado no esporte e na música. Nas demais atividades, somos

Zito

Mazzola

Dino Sani

encobertos por um abismo sujo e opaco. Convenientemente sujo e opaco. E aí me permito ir até o genial filme O Leopardo, de Luchino Visconti, onde o príncipe Fabrizio diz: “Isto não deveria durar, mas durará sempre. O sempre humano, evidentemente, um século ou dois. Depois as coisas serão diferentes, mas piores.” Seis anos depois, cairíamos na mais profunda escuridão de nossas vidas. O país afundou na banalização, na arrogância e na mesmice. Mas José Carlos Asbeg disassocia seu longa do bode do que foi anos depois a legitimação do horror. Ou seja, não é um filme sobre a morte (e nem poderia ser), mas sobre a alegria de viver, de lutar e de ser feliz dentro do possível. O que é valorizado são os 22 jogadores que jogavam pela vontade e pela paixão. E pela paixão à leveza aristocrática do Didi. À sobriedade tática do Nilton Santos. À coreografia chapliniana do genial Garrincha... Cinqüenta e oito nos encantou a todos pela leveza e beleza. É um longo flashback na vida de todos nós que sobrevivemos ao que veio depois. É um filme pensado e construído na alegria de ainda estar vivo. De certo modo, é um trabalho que “esgota o campo do possível”, poetando vidas, palavras e espaços. E é o que faz bem José Carlos As-

Nilton Santos

Djalma Santos

Moacir

beg, com sua alegria de um sonho não vivido (o de ter sido jogador), mas criativamente superado. Pode parecer estranho um documentário sobre a saudade, a amizade e o respeito pelos primeiros heróis do realizador. Em um país tão pouco generoso com seus filhos, eis o futebol de ontem como guia do primeiro longa de um cineasta amadurecido. É um filme-festa. Um filme-homenagem. Um filme respeitoso pelo passado de alguns homens já esquecidos pelas novas gerações e pelo país desmemoriado pela velocidade e pela TV. O ano em que o mundo descobriu o Brasil é, antes de tudo, um exercício de generosidade para com o país. E se o futebol é hoje usado como propaganda de corporações, pode também servir a múltiplos atos de resistência. E de certa maneira acaba sendo, pois é oferecido neste longa numa dimensão afetiva. E hoje nada mais político que o afeto bem resolvido. O afeto como imagem de formação de um povo e de uma Nação. José Carlos Asbeg tenta, com sucesso, orquestrar uma festa-ética entre a docilidade dos 22 jogadores e a força necessária para ganhar a nossa primeira e mais importante Copa do Mundo. Todos estão de parabéns e o cinema brasileiro também! O nosso documentário segue dando ao país verdadeiras lições de história.

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Zagalo

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Oswaldo Caldeira Cineasta e professor. Coordenador do Núcleo de Cinema da Escola de Comunicação da UFRJ. Diretor de três longas sobre futebol: Passe livre, Futebol total e Brasil bom de bola – 78, além dos filmes O bom burguês, O grande mentecapto e Tiradentes.

Futebol: tema de filmes

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Garrincha, alegria do povo

Mané Garrincha é recebido em Pau Grande. Rio de Janeiro, 21/6/1962


FUTEBOL, CINEMA E PAIXÃO

Artigo editado a partir do original “Futebol: tema de filmes – Garrincha, alegria do povo e Canal 100”, publicado em Victor Andrade de Melo e Fábio de Faria Peres (orgs.). O esporte vai ao cinema. Rio de Janeiro: Senac Nacional, 2005, p. 39-51.

Ao se explorar a questão do filme documentário no futebol, pode-se dizer que Garrincha, alegria do povo é um ótimo exemplo de filme que sintetiza de forma bem-sucedida a análise social e o espetáculo de futebol. O filme foi – com o que eu absolutamente não concordo – criticado freqüentemente. Os próprios patrocinadores (um banco), segundo depoimentos de pessoas que participaram da produção, teriam ficado desolados com o seu tom final crítico. Queriam que tivesse sido um filme “para cima”, que “mostrasse o futebol como uma coisa lúdica, uma arte popular, generosa”. Joaquim Pedro tem uma visão bastante crítica desse esporte. Mesmo assim, não acredito absolutamente que ele não goste de futebol, e não concordo que o filme não tenha o espetáculo em si. Que Joaquim gostava de futebol, tenho certeza, e entendo que, por uma série de razões, o filme também privilegia esse esporte como algo “para cima”, alegre. Mas Joaquim tinha uma visão bastante voltada para questões como alienação, escapismo, de uma forma bastante explícita. Quando narra “vai esvaziando o campo, a arquibancada, vai se esvaziando a alma do torcedor, até vir novamente o ciclo, e semana que vem novamente o jogo, euforia”, tematiza a volta terrível à realidade dura do cotidiano. Creio que o filme, antes de qualquer coisa, é bem-sucedido esteticamente. É um filme poético. Um filme humano. Aquilo que costumamos chamar de obra de arte. Discordo quando dizem que ali não há nada de bom acerca do futebol. Muito pelo contrário, ele junta o lado documentário, o lado espetáculo, o lado de amor ao futebol e, ao mesmo tempo, é uma crítica social, tem preocupação estética, promove uma reflexão sobre o próprio documentário e é o encontro de muitos aspectos inovadores. Não diria que seja a principal

inovação, mas o seu ponto de partida sob esse ângulo é o fato de ser o primeiro filme a focalizar e destacar um jogador de futebol. E constitui também uma das qualidades do filme o fato de Joaquim ter escolhido exatamente Garrincha. Essa produção sofreu uma série de limitações. Joaquim queria usar som direto, não foi possível. Queria o material do Canal 100 e não foi possível ter acesso ao acervo do Carlinhos Niemeyer, o melhor material do ponto de vista do espetáculo. Mas percebo que ele soube driblar muito bem essas limitações, de forma muito expressiva. Um dos pontos positivos do filme está no fato de ser de Joaquim Pedro de Andrade. Por que isso? Só porque ele é um grande diretor? De fato, exatamente por causa disso, mas para esclarecer isso adequadamente teríamos de nos estender numa abordagem sobre a obra de Joaquim, o que não é o caso aqui. Contudo, é preciso deixar claro que o filme só pode ser avaliado plenamente dentro do contexto das obras desse diretor. É um filme importante no processo de composição desse personagem, que já se manifesta em Garrincha, esse anti-herói, esse herói meio gauche, esse herói de perna torta, quase um aleijado, esse herói inviável. Quer dizer, pela lógica, pela ciência, ele não é um atleta, não é um jogador de futebol. O que vemos na tela, no gramado, é uma ilusão, é uma coisa absurda, é um personagem que depois vai ser desenvolvido em outros filmes de Joaquim, como Macunaíma, Tiradentes e outros. Essa é também outra qualidade do filme. Por que falamos das qualidades desse personagem Garrincha? Porque é um dos maiores jogadores de futebol de todos os tempos? É, ele é um dos maiores jogadores de futebol de todos os tempos. Mais do que isso, é um personagem particularíssimo. Podemos citar muitos craques nacionais e in-

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FUTEBOL:

TEMA DE FILMES

ternacionais. Todos têm suas características próprias, suas particularidades, sua individualidade, mas quase sempre essas variações se restringem ao universo do “jogar-extraordinariamente-bem-futebol”. Garrincha, de alguma maneira, extrapola esse universo e se distingue de todos os outros. Quer dizer, ele realmente é único, com esse jeito chapliniano, esse ar de comicidade, essa união do épico e do cômico, essa desconstrução de um certo tipo de discurso a que se está acostumado. Tem o drible desconcertante, tem uma série de coisas, tem a firula, mas vai ainda mais além. Há trechos do filme em que Garrincha vai e volta, infinitas vezes, e a platéia ri, porque é um absurdo! Um “cara” vai e volta, a bola fica atrás, e o “cara” fica, ele finge que vai para lá e finge que vem para cá, e faz de conta de novo que vai por ali e finalmente vai mesmo, e o mais impressionante é que todo o mundo já sabia, desde o início, que ele iria por ali, porque já se sabe que ele vai sempre pelo mesmo lugar. Está previsto no script. E, apesar de todos saberem disso, ele consegue enganar sempre, porque se pensa: “E se hoje ele realmente resolver mudar e não for?” – sempre existe aquela dúvida. É uma forma de teatro – já com script entregue de antemão –, é uma encenação, um código de gestualidade; ele é um clown, um palhaço, algo circense. Nisso realmente ele é único, não houve outro antes e dificilmente haverá outro depois. Considera-se a capacidade de improvisar uma manifestação da genialidade própria do craque. Em Garrincha, cultua-se igualmente o que se renova (o improviso) e o que se repete, e que, portanto, é aguardado ansiosamente em todos os espetáculos, como os gestos rituais de um show de Elvis, sempre metalingüístico, como um personagem de si mesmo. Essa é uma qualidade que Garrincha traz para o filme. Joaquim, a partir do momento em que escolheu o jogador, estava realmente unindo coisas importantíssimas, porque o Garrincha, em si mesmo, já é uma forma de desconstrução. O que se espera do jogador profissional é uma postura épica de guerreiro, de competidor, de busca incessante da vitória. Então, sem deixar de ser tudo isso, Garrincha – depois de começar a desconcertar a partir de seu próprio corpo – faz de uma coisa tão séria – como o

futebol profissional – uma travessura, uma meninice, uma brincadeira, uma forma de transgressão, disseca a jogada, o drible, à exaustão, como se interrompesse a linha do enredo para se deixar levar em busca do solo, do improviso, do show de exibição, como se abrisse um parêntese para reorganizar o que seriam momentos privilegiados e momentos quaisquer daquela narrativa “jogo de futebol”. No início do filme, o uso das fotos fixas é mais do que para suprir uma falta de filmes de espetáculos sobre o futebol. Em um depoimento Joaquim alega que Garrincha já estava decadente naquele momento, não estava mais no seu apogeu. Pela minha experiência filmando futebol, eu diria que, independentemente desse fato, para se ter realmente um acervo expressivo de futebol não basta filmar dez, vinte, trinta, quarenta ou até cinqüenta jogos. É preciso ter muito material para conseguir a jogada completa, a jogada perfeita, para ter aquilo que o Canal 100 teve e tem. Não foi à toa que Joaquim tentou exaustivamente obter esse material e não conseguiu, talvez por questões financeiras, pois era muito caro. Quando trabalha aquelas fotos, o cineasta está inserindo ali o Brasil no cinema documentário contemporâneo. Está trazendo para nós, em versão rejuvenescida, o cinema de montagem documental – cujo precursor genial foi Dziga Vertov – aliado a novas formas de linguagem recém-surgidas no cinema francês – os filmes curtos de Alain Resnais (Toute la mémoire du monde, Guernica, Van Gogh, Gauguin – da década de 1950), os filmes de cineastas como Georges Franju, além de Jean Rouch, do cinéma verité, do cinéma direct – um cinema que tem a liberdade de misturar cenas filmadas atuais, cenas de arquivos, fotos etc. Ou seja, depois de reduzir a imagem filmada à sua condição inercial fotogramática, ele restaura o movimento através de um trabalho no interior do “estático”, do “imóvel”: trabalha no interior dessas fotos com table top, zoom, aproximações, afastamentos, pans, travellings, transfigurações por meio de combinações entre essas fotos, entre som e imagem, estabelecendo novas formas de compreensão do movimento e um outro tipo de sentido ou de discurso através de apropriações e transposições sucessivas. Reivindica para si – para a forma narrativa – a percepção do


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FUTEBOL, CINEMA E PAIXÃO

espectador, convertendo-se numa consciência do próprio ato de estar assistindo, de estar fazendo cinema, do ato de filmar, questionando as possibilidades do próprio cinema como ato de documentar, como ato de conhecimento, o que Joaquim Pedro vai explorar várias vezes, notadamente em Os inconfidentes, transgredindo, diluindo os limites entre documentário e ficção (como queria Godard). Ao proceder assim, fornece elementos para que o espectador possa perceber de forma crítica o veículo mediador anteposto entre ele e a “realidade”, a consciência de que está assistindo a um filme, está no cinema (a recusa ao documentário realista). A partir do homem-jogador Garrincha, Joaquim Pedro relaciona o futebol com o povão, com a sociedade de uma forma geral, com o futebol como afirmação cultural, orgulho nacional. Mas aponta também possíveis fatores de alienação, de escapismo, problemas que considerava fundamentais, sobretudo diante de seu compromisso com a revolução, com a transformação da sociedade. Exibe entre os amigos de Garrincha, na fábrica onde trabalhou, a tristeza e as limitações daqueles que não puderam escapar daquele universo melancólico e, como ele,

tornarem-se craques do futebol. Joaquim investe muito nessa problemática, um autor declaradamente marxista que trabalha freqüentemente a questão das classes trabalhadoras, do operariado. Quem vai fazer a revolução? A burguesia? As classes proletárias? E como alcançar uma consciência revolucionária? Como conscientizar as massas? Como fazer de um operário alienado um revolucionário? Burgueses podem ser revolucionários conseqüentes? Essas interrogações serão mais tarde retomadas no contexto agudo de uma conspiração, em Os inconfidentes. São questões raramente mencionadas hoje em dia, porque estão fora de moda. Joaquim era uma pessoa totalmente engajada, militante e absolutamente preocupada. Isso fica claro em vários momentos do filme. Chegando ao fim dessa discussão sobre documentário, é preciso reafirmar que o valor desse filme é inegável. Destacaríamos ainda como filmes expressivos, feitos na área documental no cinema brasileiro: Isto é Pelé, O Brasil bom de bola, de Carlinhos Niemeyer, e Tostão, fera de ouro. Devo mencionar ainda Passe livre, longa-metragem em 16mm que produzi e dirigi, focalizando, a partir da figura do jogador Afonsinho, as relações de trabalho no futebol e do passe em particular. Tendo recebido a Margarida de Prata como melhor filme brasileiro de 1974, o filme inaugurou o mercado paralelo de exibição da Federação Nacional de Cineclubes, embrião da famosa Dina Filmes e também da distribuidora para o mercado paralelo da Embrafilme. Raro caso de filme em 16mm que obteve o certificado de exibição de longa-metragem, numa iniciativa conjunta da Federação (Marco Aurélio Marcondes), da Associação Brasileira de Imprensa (Maurício Azedo), da Cinemateca do MAM (Cosme Alves Neto) e da Associação Brasileira de Documentaristas, ainda no governo Médici, foi exibido por todo o Brasil em cineclubes, fábricas, concentrações de jogadores, sindicatos etc., sempre acompanhado de debates conduzidos por figuras como o próprio Afonsinho, João Saldanha, Sandro Moreira, o cantor Fagner, o crítico de cinema Jean Claude Bernardet e outros. Curiosamente, naquele mesmo ano, codirigi (com Carlos Leonam) Futebol total, que – apesar de ser sobre a derrota do Brasil na Copa do Mundo – atingiu milhões de espectadores, meu filme de maior bilheteria até hoje.

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Bruno Torturra

Repórter e fotógrafo, neto de Francisco Torturra.

O homem do futebol-arte Uma homenagem ao coração do Canal 100 Era uma missa de sétimo dia coletiva, e o padre, um bonachão de barba grisalha, se pôs a ler uma lista de mais de 150 nomes. Lembrou-se de famílias devotas, de fiéis da paróquia, de parentes dos finados e, é claro, dos que haviam partido. Encabeçando a ladainha, um nome errado: Francisco Fortuna. Se estivesse escondido no fundo da Igreja da Ressurreição, em Copacabana, ele daria risada. Francisco Torturra passou 78 anos carregando nos documentos um nome instável. No registro, seu sobrenome era Tortura, com um erre só, versão devidamente corrompida do original italiano, Turturro, quem sabe pelo humor negro de um escrivão. Preferia assinar Torturra e foi assim que batizou as duas filhas. O segundo erre o livrou do constrangimento certo, mas abriu as comportas para outros equívocos: Tartara, Tortuga, Tertura e, por fim, Fortuna. Torturra-Fortuna foi um homem de sorte em tudo, menos no dinheiro. Quando seu coração deu sinais de fadiga, morava no bairro do Anil, subúrbio do Rio de Janeiro, equilibrado na corda bamba das contas, dívidas e juros. Gastava o que não tinha com remédios para Irene, sua mulher da vida inteira. Chico, como era conhecido, nunca recebeu mais do que o parco salário que na época se pagava a um cinegrafista – ainda que ele fosse o melhor de todos. De 1959 a 1986, foi o homem por trás

da teleobjetiva do Canal 100, o cinejornal futebolístico que abria as sessões de cinema com a trilha “Que bonito é...”. Nem antes nem depois se viu futebol tão bem filmado. Chico era “o coração do Canal 100”, nas palavras do diretor e patrão Carlos Niemeyer. Até meados dos anos 50, Torturra trabalhou como motorista da família Rodrigues, aquela do dramaturgo Nelson e do jornalista Mário Filho. Apaixonou-se por Irene, irmã dos dois, e se casaram. Milton Rodrigues, ao virar cunhado, tirou Francisco do volante e o pôs atrás de uma câmera do cinejornal O Globo Esportivo na Tela, cuja especialidade, evidentemente, era futebol. Torturra aprendeu na marra – não fazia idéia do que era um obturador ou uma lente –, mas em dois anos suas imagens começaram a chamar atenção. Foi por essa altura que Carlos Niemeyer, pândego carioca, irmão de Oscar, criou o Canal 100. Além de amigo dos Rodrigues, Niemeyer já conhecia Torturra. Chico levara de carro o arquiteto Oscar – que não voava (e não voa) por terror de avião – para conhecer o planalto vazio onde Brasília seria erguida. Niemeyer ofereceu ao ex-chofer uma câmera com lente de cem milímetros. Era o primeiro passo da revolução audiovisual promovida pelo Canal 100. Cada chassi tinha apenas quatro minutos de película. Se o

cinegrafista começasse a filmar antes da hora, perdia o chute, o drible, o pênalti, o gol. Torturra desenvolveu o talento de filmar apenas o essencial – e intuir a jogada certa e o alarme falso. Conversava com técnicos e jogadores para se antecipar às jogadas ensaiadas. Rente ao chão, com os dois olhos abertos, um no visor, outro no campo, ocupou o fosso do Maracanã como se aquilo fosse a sua terra natal. Foi o primeiro a usar câmera lenta. Walter Carvalho, fotógrafo de Lavoura arcaica, Madame Satã e Carandiru, entre outros filmes, escreveu que “Torturra posicionava sua câmera no nível da grama e dominava o percurso da bola com a destreza do seu olho e os reflexos dos seus músculos. Como Garrincha, levava a bola até o gol”. Às vezes, dava um empurrãozinho nos fatos. Em 1962, antes da final do mundial interclubes entre Santos e Benfica, foi aos vestiários e pediu um favor a Pelé. Dito e feito. Pelé marcou três dos cinco gols que deram o título ao peixe. A cada vez, disparou na direção de Torturra. Foi a grande virada. As imagens correram os cinemas e, nos jornais, o Canal 100 foi exaltado como arte. Cunhado cabotino, Nelson Rodrigues proclamou com voz de trovão que a lente de Torturra era “mais inteligente do que o olho humano”. Torturra só pediu duas regalias a Carlos Niemeyer: uma câmera Arri


FUTEBOL, CINEMA E PAIXÃO

Publicado na revista Piauí, ano 2, n. 19, abril 2008, p. 12.

2C à bateria (ficar dando corda era quase musculação) e uma lente ainda desconhecida no Brasil, a zoom de 400-600 milímetros, que permitia buscar, à distância, tanto a angústia do goleiro na hora do gol como o soco no ar do centroavante. A teleobjetiva inaugurou a era do antes e depois. “Só se filmava o campo com lentes abertas”, explicava Torturra. “Mas o que me interessava era filmar o que o pessoal não podia ver da arquibancada. A expressão do jogador, a reação do adversário, as pernas correndo...” Fosse só isso, já teríamos futebol soberbo. Mas, numa tacada de gênio, Torturra teve a idéia de virar as costas para o jogo: fechou a lente no torcedor que roía unha de radinho colado ao ouvido. De um golpe, o esporte virou drama. Torturra ensinou o Brasil a filmar futebol. Nunca se considerou artista. “Sou um estivador”, dizia. Carregava o próprio equipamento: duas câmeras, quatro chassis, dois tripés e dois jogos de lentes. Acomodava tudo em cinco malas de metal e saía pelo mundo. Carimbou o passaporte em mais de trinta países. Em 1974, recebeu a Bola de Ouro da Fifa. Nas horas vagas, corria atrás de assunto. Filmou as ruas no golpe de 64, foi o primeiro a chegar ao incêndio do prédio da UNE no Flamengo, registrou Juscelino inaugurando Brasília e Brigitte Bardot em Búzios. Apesar de ter nascido em família modesta,

de pouca instrução, foi um homem do mundo. Levava sempre na mala um black-tie para as ocasiões de gala. No seu último aniversário, rodeado pelos novos vizinhos, tomou uma rara cerveja e fez um discurso curtinho com a voz embargada: “Olha, eu já viajei pra caramba, morei na Zona Sul, na Barra... mas foi aqui no Anil que encontrei a felicidade.” A última Copa que filmou foi a de 1994, como parte da enorme equipe do documentário Todos os corações do mundo, de Murilo Salles. No último trabalho no Maracanã, um foguete estourou a seu lado e ele perdeu quase toda a audição de um ouvido. Era um FIa x Flu, e pelo menos venceu o Fluminense, o time do seu coração. Foi cinegrafista até o fim da vida. Vez por outra, ganhava um troco filmando casamentos. Nem todos os casais ficavam felizes com o resultado. Não achava noivos ajoelhados propriamente interessantes. O que mais se via no material entregue era um tio cochilando, uma sogra aos prantos, um recém-nascido babando, um adolescente com cara de tédio. Canal 100 puro. Francisco Torturra morreu de parada cardíaca na UTI de um hospital público, dormindo, horas antes de se submeter a uma ponte de safena. Era o dia 2 de março. Estava no Espírito Santo visitando sua primeira bisneta, na única viagem que fize-

ra em anos, pois se recusava a deixar a mulher sozinha. Irene foi a última sobrevivente dos catorze Rodrigues. Até o fim da vida, dormiram na mesma cama. A capelinha do Cemitério São João Batista se encheu de parentes, vizinhos e também de gente que surgia pela porta dizendo que mal o conhecia, mas o adorava. Nenhuma nota na imprensa, nenhum jogador de futebol, técnico, comentarista, árbitro. Nem um mero gandula deu as caras. Foi enterrado, sob aplausos, no jazigo de Mário Rodrigues (pai), ao lado de Nelson e Mário Filho.

Francisco Torturra conversando com Brigitte Bardot em Búzios, anos 60

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Tarcísio Serpa Normando Professor do Departamento de História da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e do Centro UniNorte. Mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia.

O futebol como prática desportiva: gênese e espraiamento mundial

do jogo de bola

with the Big Count has shoA Fifa realizou, no priwn, the figures obtained are meiro semestre de 2000, problematic – despite, or um grande censo dirigido perhaps because of – the às confederações naciomajor importance of the nais, com o objetivo de game. Exactly when the aim detectar o efetivo cresciis to make predictions about mento do futebol mundial Sátira da pré-história the numbers of occasional na última década do sécuor children players, a lack of lo XX. O Big Count disreliable data makes it necessary to make a number of tribuiu questionários às 204 confederações assoadditional assumptions. ciadas, das quais 161 os retornaram preenchidos Survey results within Europe have indicated that no tempo estabelecido. Os resultados divulgados the ‘official figures’ submitted by the associations defino ano seguinte pela entidade confirmaram o senso nitely underestimate the actual importance of the game. comum: o futebol aglutina pessoas em dimensões Therefore it would seem appropriate to collect and evaúnicas, tanto prática como espetáculo esportivo. luate the relevant information more systematically.”1 Segundo dados do censo, no mundo inteiro quase 250 milhões de pessoas jogam futebol reguPor mais abrangentes que possam parecer, os larmente de maneira profissional ou amadoristicadados colhidos não são suficientes para equaciomente como prática associada ao lazer. Os resultanar a totalidade de simpatizantes que se dispõem dos foram saudados pela entidade oficial como uma a acompanhar, a torcer, a se envolver com jogos inequívoca prova de força presencial do esporte de bola. Felizmente – ou infelizmente –, não há tanto quanto uma constatação de que este fora sunúmeros suficientes, nem em quantidade nem em bestimado nas décadas anteriores: rigor, para mensurar uma paixão. É certo, contudo, que essa paixão teve seu espraiamento, sua “The data [...] shows clearly that football is of great worldwide significance. Around 4% of the tocapacidade de inserção em sociedades de caractetal population of world play football at least occasiores ideológicos diversos, potencializada no últinally or are involved in the game as referee or in other mo quartel do século passado muito em função functions. [...] However, as experience in connection da visão estratégica da entidade mundial gestora

1 Disponível no site oficial da Fifa (www.fifa.com). Tradução: “Os dados disponíveis [...] mostram claramente que o jogo de futebol alcançou um grande significado no mundo inteiro. Cerca de 4% do total da população mundial joga futebol ao menos ocasionalmente ou, então, encontra-se envolvida no jogo como juiz ou mesmo em outras funções paralelas. [...] No entanto, como tem demonstrado a experiência relativa ao Grande Censo (contagem), os valores até agora obtidos permanecem problemáticos apesar – ou talvez até por causa disso – da grande importância deste jogo. Exatamente quando a meta é fazer previsões sobre os números, tanto de jogadores eventuais quanto de crianças que jogam, a ausência de dados confiáveis nos obriga a fazer uma série de suposições adicionais. Os resultados de uma investigação, considerando a prática existente na Europa, indicaram que os ‘números oficiais’ apresentados pelas associações locais definitivamente subestimaram a real importância do jogo de futebol. Conseqüentemente, seria mais apropriado recolher e avaliar as informações pertinentes de forma mais sistemática.”


FUTEBOL, CINEMA E PAIXÃO

Publicado originalmente na EF Desportes Revista Digital, Buenos Aires, ano 10, n. 76, set. 2004 (www.efdeportes.com). Versão resumida de um item da dissertação de mestrado do autor, intitulada Jogos de bola, projetos de sociedade – por uma história social do futebol na Belle Époque Manauara. Traduções dos textos em inglês e francês de Arnaldo Marques da Cunha.

do futebol, cujo planejamento vislumbrou, principalmente, o potencial econômico do esporte. Essa paixão, hoje mundial, já foi bastante restrita: foi identificadora de camadas socialmente segregadas e tidas como perturbadoras da ordem urbana. Mergulhar, pois, na ancestralidade do futebol e refazer seu caminho não-linear de desenvolvimento ajuda a estabelecer significados para as estatísticas contemporâneas tanto quanto possibilita um viés de entendimento da história sóciocultural dos seus agentes, uma vez que, com uma certa anterioridade temporal, a pelota acompanha o homem no seu caminhar através da história. Quaisquer objetos de configuração arredondada tendem a se adequar como instrumentos lúdicos para o homem. Vestígios arqueológicos revelam a presença de esferas ligadas a formas de passatempo nas civilizações inaugurais do Oriente Próximo e mesmo nos dias do neolítico.2 Impossível pensar que alguma sociedade desconhecesse – ou desconheça nos dias de hoje – um tipo qualquer de jogo que não envolva uma bola. Embora essas atividades simbolizem, num certo sentido, modos de compreensão de realidades específicas, nem todas, obviamente, podem ser identificadas como ancestrais diretas do futebol. Contudo, a sobrevivência de algumas fontes históricas aponta alguns caminhos com relativa plausibilidade. Pelo menos desde o século III a.C., na China, durante o império de Xeng-Ti, da duradoura

Dinastia Han (206 a.C.-220 d.C.), os soldados dispunham de um livro de instruções militares que identificava o Ts’uh Kuh como atividade de treinamento da guarda imperial e, posteriormente, de todos os soldados que se preparavam para guerra. Ts’uh Kuh ou ainda Tsu-Chu significa “golpe na bola com o pé”. A bola de 22 cm de diâmetro, feita de couro ou bexiga, recheada com plumas, pelos ou vegetais resistentes, era lançada com os pés em uma área quadrada com cerca de 14 metros de lado. Times com oito componentes promoviam uma disputa acirrada visando fazer a bola traspassar uma pequena rede de seda fixada em varas de bambu distanciadas entre si em 40 cm. Provavelmente no campo havia obstáculos entre as metas aumentando as dificuldades e exigindo dos soldados maior destreza. 3 A associação deste tipo de jogo de bola com a prática de treino militar deveu-se à violência do contato físico entre os grupos de jogadores. A rudeza das disputas serviu para o preparo de homens duros, másculos, capacitados a resistir às adversidades cotidianas trazidas no bojo dos conflitos bélicos, extravasando-as através do jogo.4 Ainda no Oriente, outra milenar tradição se identifica como espectro de ancestralidade do futebol. O Kemari, praticado no Japão, cerca de quinhentos ou seiscentos anos depois do exemplo chinês, demonstrava um acuro muito mais ritualístico que competitivo:

2 PIMENTA, Carlos Alberto Máximo. Futebol e violência entre torcidas organizadas: a busca da identidade através da violência. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1995, p. 51 e 54. 3 GERHARDT, Wilfried. More than 2000 years of football: the colourful history of a fascinating game. Disponível no site oficial da Fifa (www.fifa.com/fifa/history_S.html); PIMENTA, Carlos Alberto Máximo, op. cit.; WERNECK, J.I. (et al.) O futebol na Mirador Internacional. São Paulo: Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações, 1987. 4 Essa idéia apóia-se na perspectiva sintetizada por TUBINO, Manoel. O que é esporte. São Paulo: Ática, 1993, p. 14: “Na antiguidade, antes de surgir o esporte, existiam atividades físicas de caráter utilitário-guerreiro, higiênicas, rituais e educativas. [...] Os japoneses, chineses e hindus praticavam atividades físicas emprestando-lhes um caráter higiênico.”

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“This is a type of circular football game, far less spectacular, but, for that reason, a more dignified and ceremonious experience, requiring certain skills, but not competitive in the way the Chinese game was, nor is there the slightest sign of struggle for possession of the ball. The players had to pass the ball to each other, in a relatively small space, trying not to let it touch the ground.” 5

O Kemari, em certa instância, identificava a aristocracia nipônica e era praticado, inclusive, por imperadores. Cada disputa envolvia oito membros num campo aberto cujos elementos demarcatórios deveriam ser árvores nobres: um pinheiro a noroeste, um ácer a sudoeste, uma cerejeira a nordeste e um salgueiro a sudeste. Delicado, o jogo exigia alto grau de paciência e destreza de seus apreciadores, qualidades cultuadas entre a nobreza japonesa. O mundo ocidental conheceu um tipo de jogo de bola minimamente sistematizado primeiramente na Grécia. O mundo grego antigo foi marcado por uma fragmentação política bastante diversa dos reinos orientais a ele contemporâneos. As numerosas poleis mantiveram arraigadas, em seu ideário constituinte, desejos de independência e auto-suficiência associadas à ciosa prática de resguardar uma distância cultural dos “bárbaros” que habitavam para além dos arredores da península balcânica. Nesse sentido, os jogos – ao lado da língua e da religião –, foram eficientes elementos unificadores dessa identidade grega. Entretanto, o principal evento disputado na Hélade, em homenagem a Zeus, os Jogos Olímpicos não incluíram nenhuma sphairomakhia – nome genérico das atividades que envolviam bola –, ainda que estes gozassem de certa popularidade, como o epyskiros, o mais comum deles. 6 Poucas informações sobreviveram a respeito dessa

Grécia

Roma

Harpastum Roma

5 GERHARDT, Wilfried., op. cit. Tradução: “Este é um tipo circular de jogo de futebol, muito menos espetacular do que o original, porém, por este mesmo motivo, uma experiência mais desafiadora e cerimoniosa, que exige determinadas habilidades específicas, embora nada competitivas no sentido daquela modalidade chinesa do mesmo jogo, não aparecendo aqui (nesta ‘circularidade’) o menor sinal de disputa pela posse da bola. Os jogadores devem passar a bola uns para os outros, restritos a um espaço relativamente pequeno, sempre tentando não deixá-la cair no chão.” 6 PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Estudos de história da cultura clássica. v. I Grécia. 7. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p. 340-348. Os Jogos Olímpicos ou Pan-Helênicos ocorriam em cinco dias, nos quais disputavam-se provas que evidenciavam as necessárias qualidades para a defesa da polis: três modalidades de prova eqüestre; cinco modalidades de corrida; duas modalidades de luta; três de pugilato, uma de pancrácio e o pentatlo.


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modalidade, a não ser que, em comum com o jogo chinês, quando um grupo conseguia a ultrapassagem da bola de uma certa linha demarcatória nas extremidades do campo, conhecia-se o vencedor da contenda. O mundo antigo, depois de helenizado pelos diádocos de Alexandre Magno,7 prostrou-se ante o Império Romano. Mas o poderio militar dos itálicos não conseguiu subverter a pujança dos elementos greco-macedônios que se enraizaram por grande parte da Eurásia. Em diversos aspectos os algozes viram-se enredados pelos povos conquistados – como no caso do epyskiros exercido pelos gregos e que foi absorvido pelos romanos para posteriormente ser adaptado conforme as condições para prática. Assim nasceu a variante itálica do jogo de bola. O harpastum romano apropriou-se do cerne que constitui o jogo grego, que é, aliás, o mesmo da prática chinesa: a disputa pela posse de bola até a ultrapassagem das linhas demarcatórias de metas. Mas ampliou-o indelevelmente quando fixou certas funções aos seus praticantes. Esta transformação traçou uma inquestionável aproximação tática com o jogo contemporâneo, colocando-o como um antecessor direto do futebol de hoje: “O campo era retangular, com uma linha divisória em duas linhas de meta, devendo as duas equipes lutar pela posse da bola e tentar levá-la até a meta adversária, denominada locus santium. Essa zona do campo era protegida por jogadores lentos; quase parados e em funções defensivas como as do goleiro ou zagueiros de hoje. Os jogadores mais velozes e ofensivos atuavam por uma zona do campo chamada area pilae praetervolantis et superiectae, enquanto um terceiro tipo de jogador, o medicurrens, permanecia sobre a linha divisória do campo. Sua função não se sabe ao certo qual tenha sido, pois jogava para os dois lados ao mesmo tempo, pas-

sando a bola ora a um, ora a outro jogador de defesa ou de ataque.” 8

Claramente, a armação do “time” sujeitavase às qualidades físicas e técnicas dos jogadores e, ao que tudo indica, a brutalidade das disputas foi cedendo espaço para jogadas viabilizadas a partir de uma unidade coletiva. A bola era pequena e deveria ser lançada de trás das linhas demarcatórias. As equipes desenvolveram uma diversidade de alternativas táticas e técnicas para ludibriar os adversários nas quais os passes e dribles eram incentivados para o deleite do público que aplaudia e gritava com regozijo. Foi o Exército Romano o principal agente na introdução do harpastum na Europa. Mesmo na Gália e na Bretanha – grosso modo, os atuais territórios da França e da Inglaterra – as legiões romanas se não o introduziram, pelo menos reforçaram a prática do jogo, acompanhando o compasso da consolidação fronteiriça. O Império se esforçou em romanizar cada reentrância sob seu domínio, e como resultado – assim como aconteceu com ele próprio, quatro ou cinco séculos antes – legou experiências e tradições ao ocidente em processo de transição para o feudalismo. A Europa do Medievo e da Renascença foi marcada pela ubiqüidade da Igreja Cristã, que encaminhou uma rígida regulação do cotidiano do europeu ordinário na tentativa de expurgar hábitos e atitudes que se constituíssem profanas, uma vez que a crença reverberada nos sermões, nos elementos da cultura popular e – um pouco mais tarde – nos discursos políticos era que o cultivo de práticas indevidas atrairia a ira divina a se abater sobre a coletividade e não apenas sobre o errante herege. Assim, o clero revestiu com uma áurea de medo e culpa todas as atividades que não estivessem associadas ao trabalho

7 Os diádocos eram os generais de Alexandre, o Grande, morto em 323 a.C. Soberano do Império Macedônio, conquistou a Grécia, parte da península itálica, o Egito, a Ásia Menor, o Oriente Próximo até a Índia. Com sua morte prematura, aos 33 anos, sem ungir um herdeiro, o império foi repartido em três: 1) o Egito, sob o comando da dinastia dos Ptolomeus; 2) a península balcânica e adjacências européias, governada por Antígono e seus descendentes; 3) o Império Seleucida (as províncias orientais) sob a dinastia de Antíoco. Os diádocos deveriam implementar a política alexandrina de interação étnica que visava unir os povos conquistados sob um “nacionalismo helênico” de caráter mais cultural que racial. Ver MOMIGLIANO, Arnaldo. Os limites da helenização. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991; FERREIRA, José Ribeiro. A Grécia antiga. Lisboa: Edições 70, 1992. 8 WERNECK, J. I., op. cit., p. 5031.

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China

ou à religião.9 As únicas exceções em que a rigidez do dia-a-dia poderia ser, momentaneamente, virada de cabeça para baixo ocorria durante as festas. 10 Estas eram ocasiões propícias à alegria das músicas e representações, ao desperdício de alimentos e bebidas e ao desprendimento religioso, onde as frustrações e o peso da vida laboriosa podiam ser permutados por um segundo mundo e por uma segunda vida.11 Nesses raros dias de tolerável liberdade e libertinagem, os jogos de bola voltavam a ser disputados, contudo, em seguida aos festejos, eles retornavam à sua condição clandestina, perseguida pelo clero que costumava associá-los a diversos tipos de profanação aos dogmas cristãos. Acusavam-nos de ser instrumento para cultos pagãos. Numa dessas associações, a bola representava o sol que fertilizaria a terra pela qual rolasse, assegurando, dessa forma, um bom crescimento do cultivo, além de proteger a colheita

dos ataques da turba. E quando o jogo envolvia mulheres, o teor herético crescia exponencialmente, pois ao instrumento profanador da propalada moralidade cristã somava-se a metade subversiva da humanidade.12 “Quite apart from man’s natural impulse to demonstrate his strength and skill, even in chaotic and turbulent fashion, it is certain that many cases, pagan customs, especially fertility rites, played a major role. The ball symbolized the sun, which had to be conquered in order to secure a bountiful harvest. The ball had to be propelled around, or across, a field so that the crops would flourish and the attacks of the opponents had to be warded off. A similar significance was attached to the games between married men and bachelors that prevailed for centuries in some parts of England, and, likewise, to the famous game between married and unmarried women in the Scottish town of Inveresk at the end of the

9 Nesse sentido ver: DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1993; FRANCO JR, Hilário. Idade Média, nascimento do Ocidente. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1995; BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1995; BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. 3. ed. São Paulo/Brasília: Hucitec/EdUnb, 1996; BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália, séculos XV-XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 10 BURKE, Peter, op. cit., p. 202: “Na cultura popular européia tradicional, o tipo de cenário mais importante era a festa: festas de família, como os casamentos; festas de comunidade, como a festa do santo padroeiro de uma cidade ou paróquia (Fête Patronale, Kirchenweihtag etc.); festas anuais comuns a muitos europeus, como a Páscoa, o Primeiro de Maio, O Solstício de Verão, os doze dias de Natal, o Ano Novo, o dia de Reis e por fim o Carnaval. Eram ocasiões especiais em que as pessoas paravam de trabalhar, e comiam, bebiam e consumiam tudo o que tinham. [...] em oposição ao cotidiano, era uma época de desperdício justamente porque o cotidiano era uma época de cuidadosa economia.” 11 Cf. expressões de BAKHTIN, Mikhail, op. cit., p. 5. 12 Expressão utilizada por DELUMEAU, Jean, op. cit., p. 350. Diversas obras do período medieval e da época moderna acusam a mulher de ser agente preferencial do demônio para espalhar o mal e corromper as criaturas de Deus. Manuais escritos por membros do clero demoravam-se em explicitar quão ardilosas e dissimuladas eram as mulheres. Num dos mais famosos, o Malleus Maleficarum, escrito em 1484 pelos inquisidores Heinrich Kramer e James Sprenger, havia uma síntese das razões para a mulher ser tão desprezível para a sociedade ocidental cristã: “Mas a razão natural está em que a mulher é mais carnal que o homem, o que se evidencia pelas suas muitas abominações carnais. E convém observar que houve uma falha na formação da primeira mulher, por ter sido ela criada a partir de uma costela recurva, ou seja, uma costela do peito, cuja curvatura é, por assim dizer, contrária à retidão do homem.” (KRAMER, Heinrich e SPRENGER, James. O martelo das feiticeiras. Malleus Maleficarum. Tradução por Paulo Fróes. 13. ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Ventos, 1998, p. 116).


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17th century which, peharps by design, was regularly won by the married women [...].” 13

Não há consenso entre os pesquisadores se o futebol primitivo praticado na Inglaterra da passagem do Medievo para a Idade Moderna tenha se originado de tradições antiqüíssimas, mas autóctones, ou se tenha sido realmente introduzido pelas legiões romanas. Há ainda aqueles que defendam que o jogo chegou à ilha européia via referências normandas do norte da França. Esta dúvida resvala no orgulho britânico que, além de se considerar inventor do jogo contemporâneo, não parece gostar da idéia de ver a primazia deste ser exterior ao reino. O fato é que, segundo algumas fontes primárias, no longínquo ano de 217 os bretões comemoraram uma vitória sobre os romanos chutando o crânio de um general. Outra versão dá conta que, no século XI, após rechaçar dinamarqueses, saxões se divertiram com o crânio de um oficial morto em combate, disputando-o e arremessando-o com os

pés.14 A brutalidade congênita a este jogo de bola não se dissociaria do arquétipo inglês tão cedo. Genericamente, ludus pilae era a expressão que designava jogos de bola na Inglaterra desde, pelo menos, o século XII. Durante o Carnaval e, principalmente, nas Shrove Tuesdays – o equivalente às nossas terças-feiras gordas –, praticava-se uma disputa pela pelota bastante peculiar: cerca de quinhentas pessoas de cada lado esbofeteavam-se numa celeuma para fazer a bola traspassar a linha de meta adversária.15 Na cidade de Ashbourne, os portões norte e sul serviam como gols às equipes. A violência era tão premente que, além das brigas, seguidamente o saldo final das partidas era a morte de alguns praticantes. “No ano de 1280, em Ulgham, Northumberland, o jovem Henry Ellington, durante um jogo de bola, correu na direção de um adversário, David Le Keau, que tinha no bolso um canivete. Ao se chocarem, Henry saiu gravemente ferido, morrendo dias depois. Em 1322, um certo William of Spalding, seminarista de Norfolk, também matou acidentalmente um amigo, ao jogar futebol com um canivete no bolso. Só pôde ordenar-se depois que o papa João XXII o absolveu. Em 1303, um grupo de estudantes irlandeses atacou um aluno de Oxford, Adam of Salisbury, que jogava bola perto de sua casa. Em 1321, o mais sinistro de todos os registros: dois rapazes mataram um terceiro em Cheshire. Como que revivendo a tradição de Derby [...] os dois assassinos também jogaram futebol com a cabeça de sua vítima.” 16

13 GERHARDT, Wilfried, op. cit. Tradução: “Bem além do impulso natural do homem para demonstrar sua força e habilidade, mesmo de um modo desorganizado e truculento, em muitas ocorrências o certo é que os costumes pagãos, especialmente os que se referem aos ritos de fertilidade, sempre desempenharam um papel relevante. A bola simbolizava o sol, que teve de ser dominado a fim de que se pudesse garantir uma colheita bem-sucedida. A bola sempre tinha de ser passada para alguém ao redor, ou mesmo através de um campo previamente definido, para que as culturas pudessem florescer e os ataques dos adversários pudessem, assim, ser neutralizados. Um significado semelhante foi associado aos jogos tradicionalmente realizados entre homens casados e solteiros, o que prevaleceu durante séculos em algumas partes da Inglaterra e, igualmente, no famoso jogo realizado entre mulheres casadas e solteiras na cidade escocesa de Inveresk, no final do século XVII – talvez pela própria natureza do jogo proposto que, regularmente, era ganho pelas mulheres casadas [...].” 14 Cf. as crônicas de T.B. Trousdale e de Edward Bradley, citadas por WERNECK, J. I., op. cit., p. 5032. 15 GERHARDT, Wilfried, op. cit.: “The game that flourished in the British Isles from the 8th and 19th centuries had a considerable variety of local and regional versions – which were subsequently smoothed down and smartened up to form the present day sports of association football and rugby football. They were substantially diferent from all the previously know forms - more disorganized, more violent, more spontaneous and usually played by an indefinite number of players. Frequently, the games took the form of a heated contest between whole village communities or townships – trough streets, village squares, across fields, hedges, fences and streams. Kicking was allowed, as in fact was almost everything else. However, in some of these games kicking was out of the question due to the size and weight of the ball being used. In such cases, kicking was instead employed to fell opponents.” 16 WERNECK, J.I., op. cit., p. 5032.

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O incômodo causado ao poder público pelos distúrbios originários de partidas de futebol pode ser medido pelos decretos proibitivos que se multiplicaram entre os séculos XIV e XV. Entre os anos de 1314 e 1467, 12 decretos condenaram o jogo de bola em Londres, Perth (Escócia), Halifax e Leicester. 17 Temia-se que o interesse pelo ludus pilae desvanecesse o empenho dos homens no arco e flecha ou na esgrima – práticas de maior utilidade nos entreveros bélicos. Outra justificativa repetida para os decretos era a perturbação da ordem pública causada pela algazarra dos jogadores. Além, é claro, dos danos materiais advindos das vidraças quebradas por boladas sem direção. Na Itália do mesmo período, as formas anteriores de futebol não sofreram perseguições claras por conta do poder público. Havia, inclusive, uma certa boa vontade da nobreza para com o jogo. Esta aproximação da aristocracia com o calcio – termo ainda hoje utilizado no país como sinônimo do esporte contemporâneo – é comumente explicada por uma tradição florentina na qual, após longo período de enfrentamentos entre os exércitos da cidade italiana versus o exército de Orange, duas facções de posições políticas contrárias resolveram decidir suas diferenças numa partida. Os aristocratas arregimentaram seus iguais e, em 17 de fevereiro de 1529, na Piazza Santa Croce, agregaram ao calcio um inédito valor diplomático para dirimir suas querelas.18 Os italianos foram os primeiros a registrar a organização do jogo de bola em um conjunto de regras. Um certo Giovani Bardi recolhera depoimentos orais sobre a formatação tática do jogo disputado na década de 30 do século XVI, e escreveu, em 1580, a obra Discorso sopra il gioco del calcio fiorentino. As equipes compunham-se

de 27 indivíduos em funções específicas: dois jogavam como datori adietro, isto é, como zagueiros fixos; quatro eram datori innanzi ou zagueiros avançados; cinco jogadores faziam-se de sconciatori, meio-campo, e os 15 demais atuavam como corridori, os equivalentes a atacantes. O ápice da prática acontecia, assim como na Inglaterra, nos dias de festas. Em Florença, reuniam-se várias equipes galanteadas por trajes coloridos para passar o dia jogando bola.19 Na França, o soule ou choule tinha um antiqüíssimo caráter religioso: era praticado pelos druidas nas florestas da Normandia, em reverência a uma entidade divina solar. É provável que esta tradição celta tenha se fundido ao harspatum introduzido pelos romanos, originando, dessa forma, o jogo apreciado pelos franceses desde o século XII. “La soule se pratique à travers les prairies, les bois, les landes et même les bourgs ou les étangs. Le but était de ramener le ballon dans un edroit indiqué, le foyer d’une maison par exemple ou tout autre lieu choisi par les joueurs.Dans certains cas, il fallait même tremper la soule dans une fontaine avant de la loger dans la cendre. Le jeu n’était donc qu’une immense galopade entrecoupée de mêlées plus ou moins acharnées. L’instrument de jeu pouvait être une balle de cuir, une vessie de porc remplie de foin, une pelote de toile, une boule de bois ou même un billot de bois.” 20

O jogo fora proibido em pelo menos duas ocasiões por lei régia: em 1319, por determinação de Philippe V, e em abril de 1365, por ordem de Charles V. Ainda assim, como a aristocracia italiana, os franceses de estirpe nobre gostavam do jogo de bola tanto quanto os indivíduos provenientes das camadas sociais mais baixas.

17 PIMENTA, Carlos Alberto Máximo, op. cit., p. 58. 18 WERNECK, J.I., op. cit., p. 5032. Ainda hoje, em 24 de junho, dia de São João, padroeiro da cidade de Florença, seus habitantes encenam o histórico jogo entre os partidários de Antinori (usando camisas verdes) e os de Cantiglione (com trajes brancos). 19 WERNECK, J.I., op. cit., p. 5032 e GERHARDT, Wilfried, op. cit. 20 Disponível em http://pharouest.ac-rennes.fr. Tradução: A soule (jogo com bola) é um jogo que se pratica nas pradarias, nos descampados, nos bosques e até em terrenos baldios de vilarejos ou de pequenos lugarejos. Deve-se levar a bola a um determinado local – até a varanda de uma casa, por exemplo – ou, arbitrariamente, para qualquer outro local escolhido pelos próprios jogadores. Algumas vezes, se faz necessário molhar a bola num chafariz, antes de colocá-la entre as cinzas ainda em brasa de uma fogueira. O jogo não passa de uma imensa correria pontuada por gente amontoada, uns sobre os outros, de maneira mais ou menos obstinada. Pode-se jogar com uma bola de couro, com uma bexiga de porco repleta de feno, com uma bola de pano ou de madeira, ou mesmo com um simples toco de madeira.


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Século 18

Por um lado, sua prática diferiu da rudeza da disputa anglo-saxã, na medida em que privilegiava a habilidade dos dribles em detrimento da força dos chutões. Entretanto, em consonância com os ingleses, as partidas podiam envolver até povoados inteiros em contendas que duravam horas ou mesmo dias. A Idade Moderna foi igualmente marcada pela insurgência de uma nova realidade capaz de alterar profundamente as concepções geográficas, sociais e políticas do ocidente europeu. A América foi incorporada pelo velho mundo como uma profícua fonte de riquezas. Na verdade, para além de uma funcionalidade econômica, ela foi preparada, no decorrer da era moderna, para acomodar os europeus em suas crenças, em suas estruturas cotidianas, em seus elementos identitários.21 Obviamente, este viés do processo colonizador acarretou fortes tensões, em todos os níveis, com as populações ameríndias. Contudo, uma prática ritual denotou um mínimo de proximidade entre dois mundos opostos: na Mesoamérica também existiu uma forma específica de jogo de bola, ainda que não fique claro seu estabelecimento como um antecedente direto do futebol contemporâneo.22 Desde 1200 a.C., os olmecas, no Altiplano Central do México, praticavam um jogo cerimonial em áreas onde se encontravam grandes plantações de borracha. Já o ullamalitzi ou ainda tlachtli era praticado pelos mexicas como uma simbolização terrena da luta que os deuses do bem e do mal travaram nos campos do céu.

“Uma idéia fundamental na cosmovisão desses povos era que o céu noturno constituía o cenário da guerra eterna entre a luz e a escuridão. As estrelas tinham que morrer para que o sol pudesse se alimentar e iluminar a terra. O jogo de bola tinha um profundo sentido religioso e simbólico. Sua prática representava a luta cotidiana entre forças contrárias, conceitos antagônicos [...]. Por esse motivo há uma relação simbólica entre o jogo de bola e a guerra, já que, em ambas as atividades, há um confronto de forças antagônicas. Os mexicas representavam também os guerreiros sacrificados.” 23

A pelota utilizada, chamada ollin, era confeccionada com borracha – um padrão que a experiência americana passaria a ditar aos europeus a partir do século XIX. Os “estádios” eram os próprios templos.24 O campo de jogo era demarcado nas suas extremidades por aros nos quais a bola deveria ser encaixada; estes aros representavam o nascente e o poente. No centro, uma marca representava o lugar onde o Sol sacrificava diariamente a Lua e as estrelas: era o itzompan, ou lugar dos crânios. Cada lado do campo pertencia aos representantes dos deuses do bem (materializados na forma de luz, dia, sol etc.) e do mal (escuridão, noite, lua etc.). Nas bordas do campo, as paredes do templo eram utilizadas para rebater a bola que, de tão pesada, exigia que os jogadores usassem sobre os trajes rituais protetores de couro e algodão nos braços e na cintura.

21 Há uma vasta bibliografia concernente aos Descobrimentos, analisando desde seus móveis originários até os diversos aspectos de sua decorrência. Entretanto, para esta idéia de inserção da América na realidade européia, cita-se os artigos de Vitorino Magalhães Godinho, José V. de Pina Martins, Luiz Felipe de Alencastro, Eduardo Subirats e Jean Delumeau presentes na obra A descoberta do homem e do mundo, organizada por Adauto Novaes e publicada pela Companhia das Letras/Minc-Funarte em 1998. 22 Em que pese a análise de LEMOS, M. T. T. B. Tlachtli – O jogo de bola na Mesoamérica. In: Revista Pesquisa de Campo, Rio de Janeiro, n. 1, p. 60-61, 1995. “Observamos que, ainda hoje, o espírito de tlachtli persegue os amantes do futebol. Os estádios, verdadeiros espaços sagrados, abrigam os torcedores fanáticos, durante os noventa minutos do jogo, o cotidiano ou o profano é esquecido. A torcida grita, xinga, segura seus patuás, acena suas bandeiras, reza, espreme as mãos e sente que o coração pára. O espetáculo do sagrado domina as emoções. No final, os vencedores são aclamados e saem do estádio com a sensação do poder, cantando ou tripudiando os derrotados. Como no tlachtli, há a recompensa. A equipe vitoriosa é aclamada pela torcida e endeusada.” 23 Ibidem, p. 56. 24 Ibidem, p. 59. Reside aí uma certa controvérsia: enquanto para uns os templos erguidos aos deuses serviam de local para prática do tlachtli, outros autores identificam construções específicas para o jogo, sobretudo 26 nos Estados de Veracruz e Tabasco.


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“O tlachtli simbolizava o espetáculo do sagrado, prelúdio de um sacrifício sangrento, uma representação cosmogônica. A bola, em suas voltas no ar, representava a marcha do Sol, no Cosmo. [...] Segundo os códices náhuatl, o movimento significava jogo. E, como um jogo do tempo, enquadrava-se na engrenagem cósmica, que, concomitantemente, o sustentava e destruía. Assim, o ollin também significava terremoto, cataclismo, e suas forças podiam acabar como os impulsos da bola que os jogadores lançavam até o esgotamento [...].”25

harmoniosa entre os membros da própria comunidade e/ou entre as tribos inimigas. Não existe limitação de jogadores, jogam tantos quantos estiverem presentes, podendo os mesmos sair e entrar na partida em qualquer instante sem que outro componente seja obrigado a deixar o campo, pois o jogo prolonga-se por até 12 horas e o resultado já é, de antemão, conhecido: sempre acabam empatados (quando disputados entre “times” da mesma aldeia) ou com a vitória dos convidados.

Esta prática mesoamericana transpunha a tênue linha do simbolismo quando, ao final do jogo, faziase um sacrifício dos jogadores. Embora paire dúvidas sobre quem era efetivamente decapitado – vencedor ou perdedor –, o fato é que o jogador ajoelhava-se perante o juiz/sacerdote e tinha sua cabeça arrancada em um único golpe e, posteriormente, seu corpo era arrastado em volta do campo, ensangüentando e divinizando o espaço terreno. O tlachtli apresentava algumas variações em termos de nomenclatura de acordo com a região, mas que pouco mudava em sua exercitação. Obviamente, quando da implementação das diretrizes metropolitanas, as autoridades espanholas logo trataram de proibir o jogo tanto pelo caráter herético quanto pela necessidade de expurgar quaisquer elementos de identidade autóctone – tarefa na qual não tiveram sucesso, pois sobreviveram vários exemplos de práticas lúdicas locais que envolviam o manejo de pelotas de borracha, além desta prática mesoamericana. Entre etnias amazônicas, exemplos de jogos de bola igualmente chegaram ao tempo presente através da sua reiterada prática não só como atividade de lazer, mas também como evento ritualístico. Este é o caso do jogo ancestral que ainda é praticado nos nossos dias pelos índios Peoná, da região do alto Rio Negro.26 O jogo não tem um caráter de disputa: sua função principal é reavivar laços de convivência

“O jogo assemelha-se a uma dança, onde expressam grande alegria em estar realizando aquela atividade. A cada jogada, eles cantam, brincam, riem e dançam. O jogo tem muito mais sentido de festa do que de uma competição. Ao mesmo tempo em que eles estão motivados a jogar, saem a correr para o mato, abandonando o jogo, e isto é motivo de alegria para os que ficam em campo. Depois eles voltam do mato, incorporados na figura de um bicho, e entram na jogada como se nada tivesse acontecido.”27

Após a partida, a comemoração segue exaustivamente numa festa com fartura de alimentos, bebidas, danças e músicas. Uma leitura negativa do futebol processada pelos Estados e pelas Igrejas Cristãs da Europa Ocidental, entretanto, algo que reforçou uma idéia na qual o praticante do jogo, grosso modo, era desprovido de honra ou detinha um caráter duvidoso, era inútil e desprezível. Constituía-se, portanto, num perigo à harmonia da sociedade, que deveria ser combatido pelas autoridades espirituais e seculares: na prática, os impedimentos – e mesmo perseguições – causados pelas burocracias dos Estados nacionais seguiram, a posteriori, as admoestações religiosas. Observa-se, porém, um relaxamento na oposição ao futebol a partir do século XVII. Na medida em que o jogo atraiu mais adeptos, foi aumentando a tolerância do poder público, que diminuiu substancialmente o número de éditos e dirimiu, em seus conteúdos, a pecha preconcei-

25 Ibidem, p. 57. 26 JUREMA, Jefferson e GARCIA, Rui. Futebol indígena: jogo de (re)criação. In: _______. Amazônia: entre o esporte e a cultura. Manaus: Valer, 2002, p. 262. “Os Peona são os indígenas considerados os mais primitivos habitantes daquela região. Eles empregam várias características, como por exemplo: o seu modo de andar, quando estão na cidade, pois caminham como se estivessem dando passos dentro de uma selva íngreme. Essa é uma das qualidades que difere esses índios dos outros. Outro aspecto é o fato deles não serem afeitos com números, gêneros e graus. O uso da roupa, mesmo estando numa comunidade que adota esses costumes, constitui-se num grande problema para aquela etnia.” 27 Ibidem, p. 263.


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Início do futebol na Inglaterra

Inglaterra x Escócia, 1872

tuosa: em 1660, por exemplo, Carlos II foi o primeiro soberano inglês a autorizar o jogo de bola – e, de certa forma, incentivá-lo, ao permitir que seus criados enfrentassem os serviçais do duque de Albernale em uma animada partida. Por outro lado, a desconfiança sobre o caráter dos jogadores de futebol se prolongou no imaginário popular até, pelo menos, meados do século XX.28 Entretanto, principalmente durante o Setecentos, ao discurso religioso – imbricado, aliás, por séculos, no cerne dos discursos legitimadores do Estado – se contrapuseram conjecturas ilustradas que, aos poucos, saíram da discussão em círculos restritos para interagir de forma mais efetiva com a cultura popular. Esse espírito iluminista promovia uma crença nas potencialidades do homem como construtor de seus próprios caminhos, apoiado, sobretudo, na razão em detrimento das idéias reverberadas por déspotas monárquicos e/ou eclesiásticos.29 Assim, aos poucos, o afã por uma prática de divertimento do gosto de amplas camadas sociais foi encontrando parâmetros para suplantar sermões e procurar caminhos alternativos para não se expor ao poder público – até que este decidisse, acossado pela burla sistemática dos éditos proibitivos, amainar sua volúpia perseguidora. Talvez o mais eficiente desses caminhos alternativos que garantiram a sobrevivência do jogo de

Inglaterra séc. XIX

bola tenha sido sua esportivização, isto é, sua codificação em regras que tentaram diminuir seu acentuado tom de violência e de desordem, e que viabilizaram a sua tolerância, sobretudo nas escolas e universidades da Inglaterra do início do século XIX. “É importante sabermos que, na fase anterior à esportivização, os jogos eram regulamentados por tradições locais, sendo assim variáveis suas regras de um local para o outro, e se caracterizavam por um alto grau de violência entre seus jogadores. A normalização destes jogos na Inglaterra passou por vários estágios até se chegar ao que hoje é denominado de esporte.”30 “Na Inglaterra, o futebol sobrevive, apesar de ilegal, nas escolas secundárias e nas universidades. Sofre um refinamento e ganha contornos diferenciados, assumindo uma postura cuja prática requer o respeito às regras e aos códigos. É conferido ao futebol o título de esporte de gentleman.” 31

A partir daí, começou a ser gestado o futebol que conhecemos contemporaneamente e pelo qual, em última análise, centenas de milhões de pessoas regulam seu cotidiano. Ao assumir diversos papéis, de acordo com as percepções simbólicas das sociedades em que estava inserido, o futebol primitivo foi se perpetuando como eficiente elemento de repercussão e aproximação da cultura historicamente produzida pelo homem.

28 Refiro-me aqui a uma passagem citada recorrentemente pelos comentadores do futebol: William Shakespeare revela, ainda no século XV, o entendimento sobre o praticante do jogo. Cf. AQUINO, Rubim Santos Leão de. Futebol, uma paixão nacional. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002, p. 15: “Em sua Comédia de Erros, pergunta: ‘Tomais-me por uma bola de futebol? Vós me chutais para lá, e ele me chuta para cá. Se devo durar nesse serviço, deveis forrar-me de couro.’ Já em Rei Lear a marginalização social desse esporte fica evidente na fala insultuosa de um personagem: ‘Tu, desprezível jogador de futebol!’ Há ainda que se considerar as lembranças de ex-jogadores como Mário Jorge Lobo Zagalo que repetidas vezes em entrevistas televisivas afirmou que precisou esconder dos pais de sua futura esposa que era jogador do Botafogo F.C. para que estes permitissem o noivado.” 29 FORTES, Luís Roberto Salinas. O Iluminismo e os reis filósofos. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1989. 30 REIS, Heloisa Helena Baldy dos. Lazer e esporte, a espetacularização do futebol. In: BRUNHS, Heloisa Turini. Temas sobre o lazer. Campinas: Editora Autores Associados, 2000, p. 134. 31 PIMENTA, Carlos Alberto Máximo, op. cit., p. 60.


O Bangu Atlético Clube, fundado em 1904, foi o primeiro clube carioca a admitir jogadores negros em seu time. Rio de Janeiro, 1911

Técnico da Coordenação de Documentos Escritos do Arquivo Nacional. Bacharel em História pela UFRJ.

Arquivo Nacional/Acervo Correio da Manhã

Marco André Balloussier

Além da pólvora, da bússola e do papel, o futebol, quem diria, também foi inventado no Extremo Oriente. Assim reconheceu a Fifa, em 2004, quando o vice-secretário-geral da entidade, Jerome Champagne, declarou oficialmente: “Muito antes de o futebol surgir na Europa, a forma inicial da modalidade já era praticada na China”. O dirigente referia-se ao tsu-chu (“golpe na bola com o pé”), criado por volta de 2.500 a.C., como parte do treinamento militar da guarda do imperador Huang-ti. O objetivo do jogo era fazer a bola passar por cima de um fio esticado entre duas estacas fincadas no chão. Os militares, oito de cada lado, deveriam conduzir a bola com os pés e não podiam deixá-la tocar no solo. Apesar de ter um caráter mais ritualístico, o kemari, uma variante japonesa desenvolvida alguns séculos mais tarde, também pode ser considerado um precursor longínquo do futebol. Embora jogos com bola não estivessem incluídos nas Olimpíadas da Antiguidade, disputadas entre 776 a.C. e 394 d.C., é sabido que na Grécia também se gostava de uma “pelada”. O epyskiros, jogado pelos gregos, foi copiado pelos invasores romanos, que criaram o harpastum. Como os romanos dominaram a Bretanha, existe uma corrente que afirma terem sido eles os introdutores do “futebol” na Inglaterra. De qualquer forma, o fato é que a Inglaterra viria a ser o berço do futebol moderno. Não é à toa que ele também é conhecido como o esporte bretão. Durante a Idade Média, surgiram o soule, na França, e o gioco del calcio, termo que os italianos empregam até hoje ao se referirem ao futebol. Na cidade inglesa de Ashbourne, realizava-se anualmente um jogo nas Shrove Tuesdays (terças-feiras gordas). Duas equipes, cada qual com centenas de jogadores, disputavam a socos e pontapés a posse de

O jogo de elite que virou o esporte das multidões

uma bola de couro, fabricada pelo sapateiro local. Pancadarias à parte, o objetivo do jogo era fazer a bola passar pela meta adversária, no caso, os portões norte e sul da cidade, um para cada equipe. Uma versão bastante difundida diz que a primeira destas partidas teria sido disputada com a cabeça de um invasor viking morto em combate. Reação dos poderosos Antes de se firmar como esporte, o futebol foi combatido pelas autoridades inglesas durante vários séculos. Além da violência e dos transtornos causados nas cidades, temia-se que a popularidade do jogo desviasse a atenção dos jovens das atividades consideradas mais adequadas à formação militar, como a esgrima, a equitação, o arco e flecha, entre outros exercícios. Muitos reis publicaram atos proibindo a prática do futebol na Inglaterra. Também na Escócia o esporte era combatido. Em 1423, Jaime I decidiu que: “Por este estatuto, o rei proíbe que qualquer homem jogue futebol, sendo a pena uma multa de cinqüenta xelins, a ser paga ao senhor da terra onde ele jogou”. Aos poucos, o esporte foi se disciplinando e contando com uma maior complacência por parte das autoridades, embora os nobres puritanos continuassem a marginalizá-lo, como se evidencia no primeiro ato da peça Rei Lear (1606), de William Shakespeare, em que o personagem do conde de Kent agride um servo e o chama de “seu desprezível jogador de futebol”. A oportunidade para a afirmação definitiva chegou no século XIX, quando o pedagogo Thomas Arnold foi encarregado de reformular o ensino britânico. Interessava ao conservadorismo da época vitoriana que os jovens canalizassem suas


Centro Brasileiro Britânico

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energias para atividades físicas, e não para práticas condenáveis, como os vícios do jogo e do álcool, ou ainda o envolvimento com manifestações políticas de cunho reformista. Assim, o futebol e outros esportes começaram a fazer parte da educação regular dos jovens ingleses. Nas escolas foram codificadas as primeiras regras do jogo. A primeira regulamentação – As leis do futebol baseadas nas regras do jogo como é disputado na Escola de Rugby – foi aprovada em 1846. O esporte praticado nesta escola tinha uma particularidade: a permissão do uso das mãos por todos os jogadores. Este aspecto a diferenciava da maioria das outras instituições de ensino e acabaria dando origem a um outro tipo de futebol, o rúgbi. Na Escola de Cambridge, por exemplo, cujas regras foram publicadas em 1848, era tacitamente proibido carregar a bola com as mãos. Como as regras não eram iguais para todas as escolas, as dimensões do campo variavam muito e o número de jogadores não era fixo. Acredita-se que o futebol com 11 jogadores se firmou pelo fato de as turmas de Cambridge terem dez alunos e um bedel (inspetor de classe). As turmas da Escola de Rugby tinham 12 alunos e um bedel, o que, por sua vez, explicaria a composição de um time de rúgbi, formado por 13 jogadores. Da Inglaterra para o mundo O dia 26 de outubro de 1863 é considerado a data de nascimento do futebol moderno, quando uma reunião de dirigentes realizada em uma taverna londrina resultou na criação da The Football Association, entidade que até hoje controla o futebol inglês. Neste momento, o Império Britânico vivia o seu apogeu, abrangendo territórios na América, Áfri-

Time do São Paulo Athletic, criado por Charles Miller (sentado na primeira fila, ao centro). O time era formado por descendentes de ingleses residentes em São Paulo. São Paulo, s.d.

ca, Ásia e Oceania. Era o império onde “o sol nunca se põe”. As instituições políticas, o padrão-ouro, o vestuário, o meridiano de Greenwich e também o futebol, entre outras criações e referências britânicas, serviam de modelo e eram adotados e copiados em diversos países do mundo. No caso do Brasil, local que futuramente seria chamado de “país do futebol”, a honra de ser considerado o introdutor do esporte coube a um descendente de ingleses, o paulistano Charles Miller. É verdade que, já em meados da segunda metade do século XIX, marinheiros ingleses batiam uma bolinha nas praias do nosso imenso litoral e padres jesuítas organizavam jogos entre os alunos do Colégio São Luís, em Itu (SP). Mas até hoje se considera que a introdução do futebol no Brasil só se deu no final daquele século, mais precisamente em 1894, ano em que Miller retornou ao país, após uma longa temporada de estudos na Inglaterra, trazendo na bagagem duas bolas de couro e um jogo de uniformes. Para o historiador José Moraes dos Santos Neto, autor de Visão do jogo: primórdios do futebol no Brasil, o “pioneirismo de Miller reside no fato de ter iniciado a prática do esporte dentro de um clube, um segundo momento do processo de introdução do futebol no país”. Segundo Santos Neto, a cristalização do mito em torno da figura de Charles Miller explica-se, entre outras razões, porque “a idéia de paternidade envolvendo um membro da elite européia, como se pode imaginar, há de ter correspondido aos nossos recalques terceiro-mundistas, na época ainda mais fortes que hoje”. Tendo sido ou não o pioneiro, é inegável que Charles Miller teve um papel fundamental na introdução da prática regular e organizada do futebol no Brasil. Obcecado pelo jogo, há relatos de

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JOGO DE ELITE QUE VIROU O ESPORTE DAS MULTIDÕES

que ele passou grande parte da viagem de retorno da Inglaterra driblando adversários imaginários e tabelando com as paredes no convés do navio. Foi sob sua obstinada iniciativa que, no dia 14 de abril de 1895, em um campo na Várzea do Carmo, ocorreu a primeira partida oficial de futebol no Brasil. O time de Miller, o São Paulo Railway, venceu por 4 a 2 a equipe da Companhia de Gás. Ambas as equipes eram formadas por funcionários ingleses radicados na capital paulista. No Rio de Janeiro, o futebol chegou através de outro descendente de ingleses, Oscar Cox, responsável também pela organização da primeira partida entre cariocas e paulistas, disputada no dia 19 de outubro de 1901, no campo do São Paulo Athletic, dando início a uma rivalidade que até hoje marca o futebol brasileiro. Só que os jogadores da época não tinham as mordomias nem o prestígio atuais e tiveram que pagar as passagens do próprio bolso. Ao consultar a direção da Estrada de Ferro Central do Brasil sobre a possibilidade da delegação carioca viajar com passagens de cortesia, Cox ouviu como resposta: “A Estrada de Ferro não foi feita para passeios de malandros e desocupados”. A resposta malcriada, contudo, não foi nenhum empecilho, pois todos os jogadores eram ricos o suficiente para custear a viagem. A bem da verdade, em seus primeiros anos no Brasil, o futebol era praticado basicamente por brancos, sendo quase todos membros de famílias ilustres da sociedade. Era um esporte de elite, impregnado de preconceitos de classe e de cor.

Esporte de massa Entretanto, o futebol rapidamente caminhou no sentido da popularização. Se os negros e os brancos pobres eram proibidos de entrar nos clubes de elite, ninguém podia impedir que eles jogassem nos campos de várzea ou em terrenos baldios esburacados. Logo começaram a surgir clubes de origem popular, como o Corinthians, em São Paulo, o Vasco da Gama, no Rio de Janeiro, e o Internacional, no Rio Grande do Sul. O clube gaúcho foi fundado por imigrantes de tendência anarquista, daí a origem do nome e a cor vermelha de seu uniforme. Mas a rápida difusão do futebol não era suficiente para eliminar totalmente os preconceitos. Em 1916, ao ser indagado sobre a possibilidade da seleção brasileira embarcar no mesmo navio que o levaria a um congresso na Argentina, o conselheiro Rui Barbosa, chefe da comitiva diplomática, respondeu ao ministro do Exterior, Lauro Muller: “Pois saiba o senhor, que eu, minha família e os meus auxiliares não viajamos com essa corja de malandros! Futebolista é sinônimo de vagabundo, e pode escolher imediatamente, senhor ministro, ou eles ou eu”. A discriminação mais evidente continuava sendo a racial. Primeiro clube a admitir jogadores negros, o Bangu Atlético Clube foi obrigado a se afastar da Liga Metropolitana do Rio de Janeiro, por discordar da seguinte decisão, publicada em 14 de maio de 1907: “Comunicamo-vos que o Diretório da Liga, em sessão de hoje, resolveu por unanimidade que não sejam registradas como atletas pessoas de cor”. Em 1921, o próprio presidente da República, Epitácio Pessoa, recomendou à Confederação Brasileira de Desportos

Biblioteca Nacional/Álbum Marcos Carneiro de Mendonça

O

No estádio do Fluminense, no bairro de Laranjeiras, jogo assistido pela população no morro que circundava o campo. Pelo regulamento dos clubes cariocas só os próprios sócios eram aceitos nas arquibancadas. Rio de Janeiro, 1916

Friedenreich, o segundo jogador, da esquerda para a direita


FUTEBOL, CINEMA E PAIXÃO

Na Inglaterra do século XIX, lorde Prestwick, um dos maiores defensores do amadorismo em seu país, dizia que “não merece respeito quem faz por dinheiro o que deveria fazer por prazer”. Durante muitos anos, o futebol brasileiro permaneceu apegado aos princípios do amadorismo, mas na década de 1920 já era bastante comum os jogadores receberem prêmios em dinheiro, o chamado “bicho”, termo cuja origem provavelmente vem do jogo do bicho. Foi somente em 1933 que o profissionalismo foi oficialmente reconhecido no Brasil, e seu advento significou um passo importante na evolução técnica do nosso futebol. Na Copa de 1938, disputada na França, a seleção conquistou o terceiro lugar, e o craque Leônidas da Silva, o “Diamante Negro”, teve uma atuação deslumbrante. Faltava o título, que representa-

“O júri, além de ter em conta os méritos esportivos, levou em conta os valores de integração social que este esporte tem no Brasil, pois expressa algumas das virtudes que são parte da identidade e da formação do país. O júri considera que, tão importante quanto os cinco títulos mundiais, está o sentido de cidadania que tem o futebol no Brasil, pois, além de um esporte, é um sentimento, uma paixão compartilhada por todo o povo brasileiro.”

PH.FOT.3449.10

O advento do profissionalismo

ria a afirmação definitiva do Brasil no cenário internacional. Em virtude da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), não chegaram a ser disputadas as Copas de 1942 e 1946. A grande oportunidade veio, portanto, em 1950, sobretudo por que a Copa foi realizada em casa, experiência que iremos repetir em 2014. O país inteiro passou a viver um clima de euforia, o que tornou ainda maior a tragédia ocorrida no dia 16 de julho de 1950: o Uruguai ganhou a final por 2 a 1, quando bastava um empate para sermos campeões do mundo pela primeira vez. O reconhecimento viria com o título da Copa do Mundo de 1958, na Suécia, quando despontou para o mundo o talento genial de Didi, Nilton Santos, Garrincha e Pelé, na época ainda tão jovem que, como disse um cronista, “nem tinha idade para ver um filme de Brigitte Bardot”. O bicampeonato conquistado no Chile, em 1962, e a épica campanha do Tri, em 1970, no México, consagraram definitivamente o Brasil como o “país do futebol”. A dimensão que o futebol alcançou no país, ao longo de seus mais de cem anos de história, foi sintetizada com singular precisão pelo júri espanhol que, em 2002, concedeu à seleção brasileira o prêmio Príncipe das Astúrias:

Fluminense Futebol Clube

(CBD) que não convocasse jogadores negros e mulatos para a seleção brasileira que iria disputar o Campeonato Sul-Americano na Argentina. Ironicamente, o primeiro grande ídolo do futebol brasileiro viria a ser justamente um mulato, chamado Arthur Friedenreich. Sua projeção foi de grande importância para que o esporte começasse a vencer a barreira do preconceito racial. Foi dele o gol que deu à seleção brasileira seu primeiro título importante, o Campeonato Sul-Americano de 1919. A esta altura, o futebol já se transformava no “esporte das multidões”, pois mais de trinta mil pessoas lotaram o estádio do Fluminense, nas Laranjeiras, para assistir à final entre Brasil e Uruguai.

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Arquibancada privativa dos seletos sócios do Fluminense, no estádio das Laranjeiras. Rio de Janeiro, s.d.


O back Bellini, o técnico Vicente Feola e o goleiro Gilmar, com a Taça Jules Rimet, na comemoração da Seleção Brasileira de Futebol pela vitória na Copa do Mundo de 1958. Suécia, 29/06/1958


PH.FOT.23600.037


Mário Filho

Jornalista.

Football? Que vinha a ser “aquilo”? Oscar Cox tentava explicar. Havia um campo. Sim. O ouvinte abria os olhos, procurando ver o campo. Não era difícil imaginar o “field”. O Clube Brasileiro de Cricket tinha um. A coisa, porém, se complicava quando Oscar Cox, balançando a cabeça, dizia que, fora o verde da grama, não existia semelhança alguma entre o campo de cricket e o campo de football. O campo de cricket sendo oval, o de football sendo retangular. “Então – dizia o outro, deixando de ver o ‘field’ do Clube Brasileiro – então eu não percebo nada.” Oscar Cox fazia um gesto vago. Querendo encontrar um símile mais perfeito. O “ground” de cricket não servia. Nada servia. E ele quase embatucava, fazendo “pois é”. Abria-se uma pausa. Oscar Cox, porém, não desistia assim, sem mais nem menos. Danado para falar em bola. Ah! o assunto bola, realmente, parecia animador. Uma porção de bolas acudiria à imaginação de qualquer um. Bolas de vidro, grandes e pequenas. Umas servindo para que, através delas, se lesse o passado e o futuro, “como em um livro aberto”. Bolas de cortiça, as de cricket eram feitas de cortiça. Bolas de tênis. “Nada disso – e Oscar Cox perdia a paciência – A bola de football é completamente diferente.” Oscar Cox tinha 17 anos, e acabara de chegar da Suíça. Lá em Lausanne, ele jogara football, pelo team do Colégio de La Ville. Chegando aqui, uma das primeiras coisas que ele quis saber foi “onde se pode jogar football?” Nunca lhe passara pela cabeça que o nome de “um esporte tão conhecido” soasse aos ouvintes de todo mundo – o todo mundo da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro de 97 – como um termo misterioso. Quase indecifrável. Quem sabe se mandando buscar uma bola... A idéia encantou Oscar Cox. E ele encomendou uma bola MacGregor, número seis. Passando aguardar, com

Acervo João Máximo

Nasce o Fluminense

uma ansiedade que aumentava ao correr dos dias, a mala da Europa. “Vocês vão ver – dizia ele – Com a bola será fácil.” “É. Com a bola talvez a gente venha a compreender o tal football.” E, um dia Oscar Cox recebeu a mala da Europa. Com a bola. A bomba de bicicleta serviu para enchê-la. E o “balão de couro” passou de mão em mão. “Meta o pé! Só keeper é que pode segurar a bola com a mão.” A bola, porém, não resolvia tudo. Faltava um campo. Faltavam as balizas. Faltavam as redes. Faltavam os jogadores. E Oscar Cox começou a sentirse isolado. Mais isolado do que nunca. A bola não lhe fazia companhia. Pelo contrário. Enquanto ela não chegava, Oscar Cox tinha-a esperado como se espera um amigo. E agora a impressão que ele experimentava era a de fracasso. Às vezes apareciam curiosos. Depois de uns dois chutes, todos paravam, desanimados, achando que o football não tinha nada de engraçado. “Quer saber de uma coisa, Oscar? Desista disso. O football é pau. Cacete como ele só. Não pega. Ou você acha que é interessante a gente ficar aqui feito bobo, vendo você jogar?” Oscar Cox acabou concordando. Agarrou a bola e levou-a para casa. Atirando-a a um canto, para não pensar mais nela. Como, porém, deixar de pensar em football? O velho Emanuel Cox (Emanuel devendo pronunciar-se com acento no má) era o primeiro a animar o filho. Com um exemplo constante de entusiasmo pelo esporte. Fora ele, o velho Jorge Cox, quem tivera a idéia de fundar o Rio Cricket and Athletic Association. “Parecia impossível – eis a conclusão a que chegara Jorge Cox – que não houvesse um clube em Niterói, com tanto inglês por perto.” Em toda parte do mundo uma dúzia de ingleses juntos queria dizer um clube. Assim, nasceu o Rio Cricket. E com o Rio Cricket surgia também um campo. Às ordens de Oscar Cox. O campo era oval, lá isso era. A dificul-


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Publicado em Nelson Rodrigues e Mário Filho. Fla-Flu... e as multidões despertaram! Organização de Oscar Maron Filho e Renato Ferreira. Rio de Janeiro: Ed. Europa, 1987, p. 14-20.

Oscar Cox, responsável pelo início do futebol no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 1900

“Eu jogo de full-back-left.” O goal-keeper seria Clyto Portela. E os halves-backs Mário Frias, Oscar Cox e Max Naegelis. Wingers, right e left: Horacio Costa Santos e Felix Frias. Insiders right e left: Eurico de Moraes e Júlio de Moraes. O posto de centerforward foi logo ambicionado por Luiz da Nóbrega. Finalmente, estava tudo arranjado. Alguns tinham chuteiras, trazidas ou mandadas vir da Inglaterra. Outros tiveram que entregar botinas velhas a sapateiros. Explicando o que vinha a ser uma trava. “Quantas travas?” – perguntava o sapateiro. “Vá botando. Uma trava nunca é demais.”

Acervo Fluminense Futebol Clube

dade, contudo, não estaria aí. Um pouco de cal marcaria o “field” dando-lhe a fisionomia de um campo de football. E ainda havia o recurso das bandeirinhas. “Arranje um team – foi o conselho do velho Jorge Cox a Oscar – e o resto será fácil.” Oscar Cox levou três anos de 98 ao ano primeiro do século XX, para arranjar um team de football. Só de brasileiros. Quem vinha da Europa – de um colégio na Suíça, como Oscar Cox, ou de um colégio da Inglaterra – vinha sabendo um pouco de football. Assim, se foi juntando gente: Victor Etchegaray poderia jogar de back. Full-back right. Walter Shuback disse logo:

Delegação do do Rio Rio de de Janeiro Janeiro na na volta volta de de São São Paulo, Paulo, em em 21 21 de de outubro outubro de de 1901, 1901, após após oo primeiro primeiro jogo jogo entre entre oo Rio Rio ee São São Paulo. Paulo. A A foto foto reúne reúne Delegação jogadores cariocas cariocas ee paulistas paulistas que que foram foram àà Gare Gare se se despedir despedir de de seus seus companheiros: companheiros: Louis Louis Senin, Senin, Anthony Anthony de de S. S. Queiroz, Queiroz, sem sem identificação, identificação, Louis Louis jogadores de Nóbrega, Nóbrega, Mario Mario Rocha, Rocha, A. A. R. R. Wright, Wright, sem sem identificação, identificação, Francis Francis H. H. Walter, Walter, Horácio Horácio da da Costa Costa Santos, Santos, João João José José de de Macedo, Macedo, Mario Mario Frias, Frias, sem sem de identificação, Julio Julio Villa-Real, Villa-Real, Oscar Oscar Nobling, Nobling, George George Cox, Cox, Ibañez Ibañez Salles, Salles, Walter Walter Schuback, Schuback, Oscar Oscar Cox, Cox, Walter Walter Jeffreys, Jeffreys, Felix Felix Frias, Frias, Julio Julio de de identificação, Moraes, sem sem identificação, identificação, Charles Charles Miller, Miller, Eurico Eurico de de Moraes, Moraes, Antônio Antônio Savoy, Savoy, Antonio Antonio C. C. da da Costa. Costa. São São Paulo, Paulo, 21/10/1901 21/10/1901 Moraes,

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O

FLUMINENSE

O team dos brasileiros devia enfrentar um team de ingleses. Qual o inglês que não dera um chute em uma bola? E aí – era agosto de 1... – bem de manhã cedo, os tenistas do Rio Cricket and Athletic Association tiveram a atenção despertada por umas balizas colocadas nos extremos do campo de cricket. Eles perguntavam ainda o que era aquilo quando apareceram os jogadores. E com eles o velho Etchegaray, a senhorita Etchegaray, Mário Rocha e Domingos Coutinho. Eram eles os primeiros torcedores de football. Com a melhor boa vontade deste mundo para bater palmas, para gritar hip, hip, hurra! Os tenistas do Rio Cricket resolveram ficar. Quem sabe. Talvez fosse interessante o football. Eles tinham sabido que era football pela amabilidade do velho Etchegaray. “Toda vez que a bola entrar ali – e apontava para as balizas arranjadas à última hora – será goal.” “Ah!” – foi a resposta dos tenistas, que tinham arregalado os olhos. A camisa dos brasileiros – hoje poucos se lembram dela – era toda preta. Com o Cruzeiro do Sul, em branco, sobre o peito. Os calções, reminiscências de calças brancas e compridas, cortadas abaixo dos joelhos. E alguns jogadores nem se tinham dado ao trabalho de fazer uma bainha, optando pelo processo mais prático de uma tesourada e pronto. Assim, se poderiam ver os fios de linho caindo sobre as pernas cabeludas, mal cobertas pelas meias de colégio do tempo das calças curtas. Quando o jogo principiou, porém, a atenção foi desviada dos jogadores para a bola. Os tenistas sabiam que a bola era o mais importante. Onde ela estivesse deviam estar os jogadores. De vez em quando os espectadores deixavam de ver a bola, vendo só jogador a meter o pé. Finalmente, ela aparecia de novo. E que significava aquilo? Uma bola chutada por Caywood Robinson não fora defendida por Clyto Portela. “Foi goal – explicou o velho Etchegaray – Goal dos ingleses.” E quando Júlio de Moraes empatou, os tenistas do Rio Cricket compreenderam logo que tinha sido goal também. Agora já se podia falar em football. E o team de Oscar Cox, com a camisa preta e o Cruzeiro do Sul em branco sobre o peito, como um escudo, foi para o campo do Paissandu Cricket Clube. Empatando mais duas vezes com os ingleses. “Vê?” – dizia Victor Etchegaray a Oscar Cox – “O brasileiro dá para o football.” “Dá, sim” – respondia Oscar Cox – “E a gente só precisava de uma coisa. De disputar um

Acervo Fluminense Football Club

NASCE

match em São Paulo. Eu recebi uma carta de Antônio Costa – um bom companheiro que eu tive no Colégio de La Ville – e ele me disse que já se joga football em São Paulo.” “Então escreva a Antônio Costa” – aconselhou Victor Etchegaray – “E pergunte se é possível fazer um Rio–São Paulo.” Oscar Cox pegou em uma folha de papel, molhou a pena e escreveu a carta. “Quero que você me responda com urgência se é preciso levar barras de gol e redes. Temos tanto uma coisa como outra.” A resposta veio mais animadora do que se esperava. “Não precisamos” – escrevia René Vanorden, do Esporte Clube Internacional – “de nada”. “Temos campo. Temos barra de gol. Temos rede. Só faltam vocês para um Rio-São Paulo.” E aqui se fizeram os preparativos febris. A parte social ficou entregue a Lidgerwood e Sydney Cox, que trataram de um banquete – para depois do jogo em São Paulo – da viagem, de tudo. Metendo, de quando em quando, a mão no bolso. Eles procuraram convencer a Central do Brasil de que uma embaixada de esportistas – a primeira que se organizava aqui para uma excursão – merecia um abatimento. A Central do Brasil disse que não. E cada jogador teve que entrar com a cota de 130 mil réis, que, há 41 anos passados, era dinheiro que não acabava mais. O entusiasmo se propagara de tal jeito que, além dos jogadores, foram dois reservas: Domingos Moutinho e Mário Rocha. Era noite de 8 de outubro de 1903.


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Jogadores que foram representar o Rio de Janeiro na primeira partida contra os paulistas. De pé: Mario Frias, Walter Schuback e Louis da Nóbrega; agachados, Oscar Cox, A. R. Wright e J. McCulloch; sentados, Francis Walter, Horácio da Costa Santos, Eurico de Moraes e Felix Frias. São Paulo, 19/10/1901

Acervo Fluminense Football Club

Em São Paulo havia uma recepção preparada para eles. E quando, na manhã de 19 de outubro, o noturno paulista despejou os cariocas na “gare”, lá estavam, de braços abertos, Antônio Costa e René Vanorden, do Esporte Clube Internacional, Ibanez Sales, do Paulistano, R. Nobiling, do Germânia, Charles Muller, Fox Rule e Boyes, do São Paulo Atlético. E havia muita gente que, nunca tendo ouvido falar em football, correu ao campo do São Paulo Atlético para ver o match cariocas e paulistas. O team da camisa preta já não era mais aquele do primeiro encontro, lá no “field” do Rio Cricket. Schuback tomara conta do gol. A becança não tinha Victor Etchegaray e sim Mário Frias e Luiz da Nóbrega, Oscar Cox passara a ser half-back-right, cedendo o posto de center-half a Wright. MacGulloch completava a linha média. E no ataque estavam Francis Walter – um que mais tarde iria para o gol e seria até presidente do Fluminense – Horácio Costa Santos, Eurico de Moraes, Júlio de Moraes, e Félix Frias. O “eleven” paulista tinha Holland, Nobiling, Boyes, Ibanez Sales, Charles Muller, Geffery, Antônio Costa, Muss, René Vanorden e Savoy. E o ambiente era tão cordial – tão sem preocupação de vitória – que não houve vencidos nem vencedores. Tanto terminou empatado o primeiro jogo como o segundo, disputado no dia seguinte, porque os cariocas não podiam ficar toda vida em São Paulo. Que faltava mais? – perguntou Oscar Cox logo depois. Sim, que faltava mais? Não bastava jogar, aqui e ali, partidas de football. Era preciso mais al-

guma coisa. Um clube. A idéia do Fluminense com o nome de Rio Football Clube ainda começava a perturbar as vigílias de Oscar Cox. E ele, um dia, surpreende os amigos com um convite. Quem estivesse de acordo com a fundação de um clube brasileiro de football, deveria comparecer, a hora tal, em tal lugar. E lá compareceu um grupo que se fez de engraçadinho. Oscar Cox deu início à sessão, em tom solene, declarando que, “como todos que ali se achavam presentes estavam de acordo com a proposta apresentada”... E uma voz se fez ouvir: “Quem foi que disse que eu estava de acordo? Eu sou contra.” O Fluminense teria que esperar, por causa disso, outra oportunidade para nascer. Oscar Cox ficou zangado. Não desanimou, porém. E em um dia 21 de julho – corria o ano de 1902 – os portões da casa de Horácio Costa Santos, que ficava ali, na rua Marquês de Abrantes nº 51, se abriram para a cerimônia da fundação do Fluminense. Lá estavam Horácio Costa Santos, Mário Rocha, Walter Schuback, Félix Frias, Mário Frias, Heráclito Vasconcelos, Oscar Cox, João Carlos de Melo, Domingos Moutinho, Luiz da Nóbrega Júnior, Arthur Gibbons, Virgílio Leite de Oliveira e Silva, Manoel Rios, Américo da Silva Couto, Eurico de Moraes, A. C. Mascarenhas, Álvaro D. Costa, Júlio de Moraes, A. A. Roberts. E Manoel Rios presidiu a mesa, ladeado por Américo Couto e Oscar Cox. Oscar Cox estava com as mãos frias, de nervoso, e sentia um nó na garganta. Mas era de alegria: o Fluminense deixara de ser um sonho.

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Campo e segunda sede do Fluminense Football Club: à direita as palmeiras da rua Paissandu e ao fundo a baía de Guanabara. Rio de Janeiro, 1905


Historiadora, editora, programadora visual e servidora do Arquivo Nacional.

Olhem elas aí...

Que insistência é essa! Por que resistimos e nos inquietamos tanto com o que os outros podem ou não fazer com o seu corpo e em suas práticas sociais, religiosas, sexuais? De onde vem tamanha prepotência e intolerância? Antigos e gastos preconceitos e discriminações se acirram na mesma proporção em que aumenta o ritmo alucinado das mudanças da nossa estressada cultura. Desgastados jargões sobre negros, mulheres, judeus, gordos, gays, pobres, deficientes e uma outra seqüência infindável de características e condições humanas (a nossa diversidade poderia ser listada até incluir cada um de nós) continuam indelevelmente enraizados na sociedade e podem ser percebidos nas maiores e menores ações e atitudes que cercam nosso cotidiano. Os esvaziados conceitos de civilização e humanidade – tão arduamente construídos e conquistados pela sociedade ocidental, desde o século XVI – permanecem presentes em quase todos os discursos e críticas à sociedade contemporânea, no entanto, estão cada vez mais distantes das soluções dos conflitos desta mesma sociedade. As experiências políticas do século XX motivaram experiências e realidades de índoles diversas e contrárias: algumas autoritárias e ditatoriais, outras, utopicamente igualitárias e com perfumes de inovação e criatividade, mas todas, sem exceção, fracassaram e foram derrotadas ao esbarrar na convivência com a diversidade e com o exercício do desejo do outro. A história revela uma longa estrada percorrida. No entanto, este trajeto não deu conta de resolver a sensação de medo, desproteção, expropriação e dominação que assola o homem desde o estágio Neandertal da evolução. Todas as admiráveis características da nossa civilização (intelectual, tecnológica, artística) dizem

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Heloisa Frossard

respeito ao homem uno, solo, ego. Quando em grupo, essas admiráveis qualidades do indivíduo diluem a sua capacidade de tolerância, percepção e respeito diante da diversidade. Alguns podem argumentar que tal acuidade é atributo de uma construção de ordem lúdica, hipotética, utópica e até singela – mas isso também não responde a questão. O exercício do poder pode ser a chave que estamos procurando. A dominação de um sobre outro é o modelo de sobrevivência exercido pela humanidade desde tempos imemoriais. E ele pode ser ainda tão mais cruel e perverso quando se exerce dentro de um mesmo grupo. Quando pensamos nos papéis sociais estabelecidos para o feminino e o masculino e nas relações internas dos núcleos familiares, este exercício de poder se demonstra de forma mais intensa ainda, podendo ser representado como uma camisa de força muitas vezes transparente, ou melhor, invisível aos olhos de todo o grupo, de forma a garantir a manutenção da sua harmonia e equilíbrio, acomodando costumes e práticas de comportamento já conhecidas e pouco contestadas. E foi assim que chegamos onde estamos... Por mais que a sociedade critique, ria, negue, menospreze, ou mesmo ridicularize os movimentos feministas iniciados nos primórdios do século passado, é inegável a sua influência sobre toda a sociedade e especialmente sobre todas as mulheres. Até mesmo sobre aquelas que, quando são flagradas utilizando-se de algum discurso ou atitude feministas, proferem pérolas do tipo: “Eu sou feminina, não feminista!”, como se fosse possível abdicar das características intrínsecas à sua condição de mulher. A universidade que cursam; o voto que praticam nas urnas; o empre-


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go que crêem ter conseguido por mérito próprio; a liberdade de opinião e de tomada de decisão sobre suas vidas – desde o simples ato de escolher o que vestir até a decisão de como “ser” e como quer estar no mundo – são produto de uma antiga luta travada por bravas (no sentido italiano do termo) guerreiras e corajosas mulheres que foram para as ruas expor seus rostos na conquista de direitos e benefícios, a despeito do conceito que a sociedade fazia e que ainda faz delas. Muitos ganhos as mulheres tiveram como resultado deste movimento, mesmo que muitas delas não admitam e que nem mesmo deles se dêem conta. As gerações de mulheres pós anos 50 foram privilegiadas e beneficiárias diretas desses ganhos. Mesmo que encaremos essas árduas conquistas como uma evolução natural da sociedade, embalada por critérios impostos pelo mercado em decorrência das duas grandes guerras do século XX – que precisou contar com os até então frágeis braços femininos para alimentar não mais a família, mas as fábricas –, as mulheres ganham no conjunto uma longa série de direitos que, sem dúvida, fariam inveja às nossas avós, bisavós e a todas as nossas ancestrais. No entanto, não nos enganemos com esses avanços, a eqüidade de direitos ainda está longe de sair do campo da ficção para a realidade. De alguma forma, a desigualdade se tornou menos evidente e, portanto, mais difícil de ser percebida. A despeito de todas as conquistas, de todas as leis em defesa dos direitos das mulheres e mesmo de uma Constituição igualitária, o comportamento da sociedade ainda está impregnado de um forte cheiro de naftalina, que embora desagradável faz parte do registro dos olfatos menos e mais apurados.

63 Equipe feminina do Atlético Mineiro que venceu a equipe do América Mineiro. Belo Horizonte, 12/5/1959

Ao tratarmos da dificultosa relação do ‘futebol com as mulheres’, e não da desde sempre cordial relação das ‘mulheres com o futebol’, vejamos o que se passa e o que se passou. A despeito do interesse que o futebol despertou nas mulheres desde o início de sua implantação no Brasil (1895), 1 ele chega aqui impregnado de virilidade, para a qual a presença das mulheres nos gramados significa uma incômoda desonra à boa sociedade da época – nossos primeiros atletas eram ingleses ou descendentes deles; homens brancos, membros de uma elite econômica, e, usualmente, portadores de engomados bigodes. Era então impensável imaginar “suas” mulheres expostas em roupas inadequadas que delineassem a silhueta de seus corpos; não era de “bom-tom” vê-las se exercitando através de movimentos bruscos e grosseiros como chutes e cabeçadas, e muito menos cometendo faltas no corpoa-corpo que a prática do futebol impõe. Mesmo para os homens negros, que demonstraram desde o início inequívoco talento para a prática do esporte, a participação em jogos nos primeiros clubes paulistas e cariocas de futebol lhes foi interditada. No Brasil, o primeiro a aceitar negros em seu time foi o Bangu, clube formado pelos operários da Fábrica de Tecidos Bangu, localizada na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro, em 1911. Apesar de polêmica, a presença dos negros foi paulatinamente aceita nos clubes de futebol, que foram obrigados a se render ao talento dos craques que começaram a surgir nos jogos de várzea da periferia das cidades. Lentamente, as portas se abriram para esta outra incômoda categoria da socie-

1 A primeira partida de futebol realizada no Brasil aconteceu em São Paulo, em 15 de abril de 1895. Nela, enfrentaram-se os funcionários da Companhia de Gás e os da Companhia Ferroviária São Paulo Railway, empresa onde trabalhava Charles Miller, responsável pela implantação da modalidade no Brasil.


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dade, sem, contudo, acomodar os conflitos raciais no interior das instalações sociais dos clubes que a elite da época freqüentava. Para as mulheres, no entanto, as dificuldades pareciam ser bem maiores. No início do século XX, apesar de o tal movimento feminista já existir, ele ecoava muito pouco e estava mais preocupado com a conquista de direitos relacionados à cidadania da mulher: direito ao voto, acesso ao ensino superior, direito de escolher o marido, dentre outros, que podem parecer aos olhos das mulheres de hoje absurdos, ou mesmo engraçados. Mulheres como Bertha Lutz, Maria Lacerda de Moura, Celina Guimarães Viana ou Carlota Pereira de Queirós estavam longe de pensar no direito inequívoco de qualquer ser humano se dedicar ao esporte de sua predileção – prática até então quase que totalmente inexistente para as mulheres, devido à vigente crença na fragilidade feminina e em sua “incapacidade” de tomar decisões sem uma orientação masculina que podia ser representada pela figura do marido, do pai ou mesmo do irmão. As primeiras partidas femininas de futebol registradas aconteceram nos anos de 1908 e 1909, estas pistas foram localizadas pelo pesquisador Eriberto Lessa, da Unicamp. Em 1913, ele encontra informações sobre outro jogo feminino, desta vez beneficente, e voltado para a construção de uma casa de saúde para crianças pobres – motivo louvável o bastante para que fosse realizada a partida entre mulheres “pias e beneméritas”. Outras iniciativas de jogos de futebol de mulheres também são registradas aqui e acolá, sem, no entanto, caracterizar uma prática corrente e regular. Cabia às mulheres evitar quaisquer atividades que as tornassem “impuras”, como a prática de esportes que promovessem os contatos físicos diretos. As atividades esportivas facultadas às mulheres eram voltadas para o seu fortalecimento sem que fossem comprometidas sua reputação, saúde e higiene. As possibilidades que tinham de se exercitar estavam limitadas à prática dos esportes de caráter individual, como: tênis, natação, ginástica e atletismo, além do ballet, evidentemente. A “masculinização” da mulher era evitada a todo custo e a exposição de seu corpo idem. O fantasma que o efeito da imagem e do corpo feminino produ-

Bangu Atlético Clube

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Fundado em 1904, o time da Fábrica de Tecidos Bangu foi o primeiro escrete carioca a admitir jogadores negros em seu selecionado. Rio de Janeiro, 1911

ziria em um universo virilizado assombrava a boa ordem social. O grande pilar da sociedade era representado pela imagem da mulher presa ao lar, melhor ainda se fosse e permanecesse casada e devotada às necessidades dos filhos e do marido. Posição esta reforçada pelo Barão de Coubertin, um dos responsáveis pelos Jogos Olímpicos modernos, a partir de 1896, que apresenta sua opinião sobre o movimento feminista e a participação das mulheres em competições esportivas: “O problema dos esportes femininos complica-se com a paixão e expressões exageradas que nele põe a campanha feminista. Os dirigentes desta campanha pretendem simplesmente a anexação de tudo o que até agora era do domínio próprio do homem; daí a tendência da mulher querer mostrar-se capaz de igualar o homem em todas as atividades. [...] Tecnicamente as jogadoras de futebol ou as pugilistas que se tentou exibir aqui e ali não apresentam interesse algum; serão sempre imitações imperfeitas. Nada se aprende vendoas agir; e assim os que se reúnem para vê-las, obedecem a preocupações de outra espécie. E por isso trabalham para a corrupção do esporte, aliás, para o levantamento da moral geral. Se os esportes femininos forem cuidadosamente expurgados do elemento espetáculo, não há razão alguma para condená-los. Ver-se-á, então, o que deles resulta. Talvez as mulheres compreenderão logo que esta tentativa não é proveitosa nem para seu encanto nem mesmo para sua saúde. De outro lado, entretanto, não deixa de ser interessante que a mulher possa tomar parte, em proporção bem grande, nos prazeres esportivos do seu marido e que a mãe possa dirigir inteligentemente a educação física dos seus filhos.”

Somente nos segundos Jogos Olímpicos, realizados em Paris, em 1901, foi admitida a presença


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FUTEBOL, CINEMA E PAIXÃO

Distintas damas da sociedade entregam as faixas de campeão do Torneio Rio–São Paulo de 1957 aos jogadores do Fluminense; da esquerda para direita: Clóvis, o goleiro Vitor Gonzalez e Jair Santana. Rio de Janeiro, 2/6/1957

feminina – apenas 16 mulheres conseguiram participar em duas modalidades: tênis e golfe.2 Os argumentos do Barão reforçam a manutenção da mulher “no lar” e o seu afastamento de qualquer possibilidade de gozar dos mesmos direitos e opções que os homens. No Rio de Janeiro, em 1940, tem-se notícia dos primeiros torneios femininos realizados nos subúrbios da cidade. Eram disputados por agremiações esportivas como o Cassino de Realengo e o Eva Futebol Clube. A despeito dessas iniciativas mais organizadas de prática do esporte pelas mulheres, nesses mesmos anos 40 a eugenia ganha fôlego com a difusão das polêmicas idéias e práticas nazi-fascistas que assolavam a Europa. Elas se baseavam em preceitos voltados para a depuração da “raça”, que, além de justificar o genocídio de milhares de seres humanos durante a Segunda Guerra Mundial, estavam imbuídos da certeza de que gerações mais saudáveis e fortes precisavam de mulheres sãs e cônscias de seu compromisso para com a sua prole. No Brasil, até a década de 40, o futebol não possuía uma regulamentação que definisse claramente suas regras e normas. De verniz fascista, o governo Vargas tratou de estabelecê-las, determinando o que era ou não permitido na prática da modalidade. Esta iniciativa acabou por desembocar no artigo 54 do decreto-lei 3.199/1941, do Ministério da Educação: “Às mulheres não se permitirá a prática dos esportes incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o Conselho Nacional dos Desportos [CND] baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país…”. Isto dizia respeito diretamente aos esportes de con-

tato, entre os quais o futebol se encontrava. Ainda em 1965, o mesmo CND normaliza a prática feminina de esportes, por meio do item 2 da deliberação nº 7, que determina às entidades desportivas brasileiras: “Não é permitida [às mulheres] a prática de lutas de qualquer natureza, futebol, futebol de salão, futebol de praia, pólo, halterofilismo e baseball”. Somente em 1979 essas normas foram revogadas. Nesse largo período uma série de conquistas foi obtida pelas mulheres, no entanto, era-lhes ainda oficialmente interditada a prática, dentre outros, do dinâmico e popular esporte bretão. Isto não significa que as mulheres tenham cumprido à risca essas determinações, embora a prática do esporte acontecesse de maneira informal, quase como uma recreação ou brincadeira sem maiores conseqüências. No entanto, as escolas não podiam oferecer essa opção de modalidade esportiva para as meninas nas aulas de educação física e os clubes, da mesma forma, não permitiam a entrada de mulheres no gramado de seus estádios. A presença feminina nesses espaços masculinos era facultada às “misses”, que em diversas oportunidades serviam como “vasos de flores” para as partidas dos campeonatos estaduais e nacionais de futebol. Surgiam de maiô, roupa de gala ou trajes típicos no gramado de algum estádio, a título de entretenimento durante o intervalo das partidas, enfeitando desta forma as masculinas festas esportivas oficiais. Goool! A partir dos anos 1980, podemos dizer que iniciativas mais concretas para a prática do futebol pelas mulheres tiveram início. O clube Radar, do Rio de Janeiro, tornou-se famoso, e um dos primeiros na cidade a constituir um vigoroso time feminino de futebol; o clube Guarani de Campinas igualmente organizou um time composto de mulheres. Embora não houvesse torneios oficiais, apenas jogos amistosos nacionais e internacionais, a prática da modalidade pelas mulheres continuou crescendo. Entretanto, esses foram anos duros para as jogadoras de futebol, e ainda o são. Apesar do

2 Informações encontradas em: GOELLNER, Silvana Vilodre. O esporte e a espetacularização dos corpos femininos; disponível no site http://www.unb.br/ih/his/gefem/labrys4/textos/silvana1.htm

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reconhecimento que a atual qualificada geração de jogadoras recebe de cronistas esportivos e de profissionais do métier por ocasião das competições internacionais, durante o resto do ano a atenção dada ao futebol feminino pela imprensa esportiva do país e pelas entidades oficiais do esporte é praticamente nula, restringindo-se ao período dos jogos oficiais disputados por elas. As vitórias e os grandes resultados que elas obtiveram nas disputas mais recentes não evitam comentários preconceituosos e discriminatórios proferidos por ocasião de algum erro cometido por alguma jogadora. Comumente escutam-se nas arquibancadas pérolas de qualidade duvidosa, como: “Vai enfrentar um tanque de roupa suja!” ou “Por que é que você não vai pilotar um fogão!”. Comentários desta magnitude tratam de remeter a mulher “ao seu lugar”, numa demonstração exemplar do preconceito de gênero impregnado em nosso comportamento e cultura. Para esses senhores, os lugares ocupados por homens e mulheres na sociedade são e devem permanecer sendo diferentes, mesmo que eles estejam em um estádio pagando ingresso para assistir a uma partida de futebol feminino. Com certeza, homens e mulheres ainda possuem uma grande dificuldade em lidar com as alterações e, algumas vezes, inversões de papéis desempenhados por ambos, e que são reflexo dos novos arranjos sociais e familiares existentes na sociedade. Os dados sociais e econômicos mais recentes produzidos pelos órgãos oficiais de pesquisa no Brasil apontam uma tendência de alteração muito rápida na realidade social do país, colocando a mulher em uma posição bastante confortável em relação ao homem, quando se trata do número de anos de estudo e do grande aumento de chefes de família mulheres; embora essa tendência se inverta quando consideramos as faixas salariais, os cargos de chefia nas empresas e o tempo dispensado aos afazeres domésticos, itens que indicam uma enorme discrepância entre homens e mulheres. As mudanças dos índices são rápidas, mas lentamente acompanhadas pelas alterações necessárias nos valores e comportamento da sociedade. 3 Disponível em: http://www.sescsp.org.br/sesc/revistas/revistas

O SESC de São Paulo, em louvável iniciativa de promover o futebol feminino, publicou em seu site um artigo que nos oferece uma oportunidade perfeita de exemplificar de forma bastante didática a dificuldade exposta no parágrafo anterior. Diz a instituição: “...Quando William Shakespeare escreveu a célebre frase ‘fragilidade, teu nome é mulher’, com certeza não imaginou que as mulheres, um dia, fossem ocupar tantos espaços e até trocar os elegantes saltos altos por pesadas chuteiras ou luvas de seda por luvas de goleiro. Não é o caso, porém, de afirmar que as mulheres tenham perdido o charme [...], mas se deve reconhecer que elas demonstram cada vez mais sua habilidade para trabalhar fora, continuar cuidando dos filhos e da casa, e, ainda, arrumar tempo para bater uma bolinha nos finais de semana.”3

Se somarmos a este trecho do artigo as referências feitas pelos senhores das arquibancadas sobre o lugar da mulher junto ao tanque e ao fogão, observamos que ambas as situações não refletem as reais alterações ocorridas nos últimos dez ou quinze anos, pois suas companheiras freqüentemente contribuem de forma cada vez mais significativa para o rendimento doméstico familiar, quando não são as principais provedoras. A divisão sexual do trabalho doméstico, que seria a contrapartida masculina à participação da mulher no mercado de trabalho, não é acompanhada e, muito menos, compartilhada pelos homens. Continuam sendo responsabilidade das mulheres os cuidados com a casa, com a família, com os doentes, com as plantas, com os animais domésticos, com as crianças e os idosos. Só muito recentemente as entidades esportivas oficiais, aqui as referências são a CBF e a Fifa, começaram a dar atenção às competições femininas internacionais de futebol. O primeiro campeonato mundial feminino da modalidade foi organizado em 1991, e a Confederação Brasileira e as Federações Estaduais de Futebol em nosso país ainda desconhecem por completo seus compromissos precípuos com a participação das mulheres neste esporte. No “país do futebol” os campeonatos de futebol feminino não são divulgados: não há uma cobertura da imprensa que se possa considerar ao menos razo-


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ável; as informações sobre os campeonatos não existem e tampouco há qualquer periodicidade nessas competições. A responsabilidade pela organização dos times de mulheres é jogada no colo dos clubes, que, por sua vez, são acusados de não se interessarem e não investirem na formação de times femininos, embora isso não seja verdade. Somente para citar dois clubes de peso no futebol masculino paulista: o Santos Futebol Clube e o Guarani de Campinas possuem times femininos, embora seja pouquíssima a divulgação dada ao futebol das mulheres pela mídia, pelos clubes de futebol e pelas entidades oficiais do esporte – que deveriam zelar pelas práticas esportivas no Brasil sem diferença de gênero de qualquer espécie. Na última Copa Mundial de Futebol Feminino, realizada na China, em setembro de 2007, o credenciamento da mídia esportiva brasileira foi mínimo. A grande mídia esportiva nacional ignorou a cobertura da competição, restringindo-se à compra de imagens e informações de agências internacionais de notícias, a despeito da belíssima campanha da seleção feminina, que se sagrou vicecampeã do torneio. Cobertura semelhante seria impensável se a competição fosse masculina. Já na Olimpíada de 2008, também na China, as mulheres obtiveram um resultado melhor do que o dos homens, e mesmo assim esta vantagem continua sendo bem mais tímida do que a repercussão negativa representa pelo fracasso da seleção masculina. Nesse mesmo ano de 2007, a Fifa estima que cerca de 10 milhões de mulheres jogam futebol profissional no mundo e que em 2010 este número se

igualará ao dos homens, chegando a uma cifra em torno de 40 milhões de jogadoras – vai ficar cada vez mais difícil ignorar os escretes femininos de futebol. É possível concluir que o machismo que impregna o futebol não permite dedicar um maior investimento na prática feminina do esporte que, apesar disso, vem conseguindo excelentes performances e algumas classificações melhores do que as da equipe masculina de futebol em campeonatos pan-americanos e olímpicos. Raro é o reconhecimento dos talentos femininos do esporte, exceção feita à jogadora Marta, artilheira dos últimos Jogos Pan-americanos, com 12 gols. Ela foi a primeira mulher convidada a registrar seus pés na “Calçada da Fama” do estádio Mário Filho, o Maracanã. Uniu-se, desta forma, a outros monstros do futebol brasileiro como Romário, Pelé e Zico, para citar somente alguns dentre as centenas de outros geniais jogadores que o Brasil produziu. Há algum tempo a discussão sobre se a mulher deveria ou não jogar futebol foi ultrapassada. As mulheres se impuseram e hoje jogam bola, está feito! E mesmo que o jogo das mulheres esteja resgatando o saudoso futebol habilidoso e bonito de se ver, a totalidade dos polpudos recursos financeiros da CBF é destinada ao futebol masculino. A desigualdade do tratamento dispensado às seleções masculina e feminina de futebol é abissal. No site da CBF, pesquisado em 13 de junho de 2008, não há sequer uma referência à seleção feminina de futebol. De forma visível, o site contém unicamente informações sobre a sofrível e duvidosa seleção masculina de futebol. Embora a sociedade ainda esteja longe de se livrar do estigma da inferioridade da mulher em relação ao homem – construção acalentada com zelo por uma sociedade que firmou seus pilares na submissão feminina e que necessita repetir à exaustão essa experiência de dominação e controle permanentes para garantir o status quo do exercício do poder masculino –, a incansável tarefa das mulheres tem continuidade, sempre e pacientemente, como um exército de formiguinhas. E já que começamos o nosso raciocínio mencionando o homem de Neandertal, devido à resistência de alguns meninos que ainda não desceram das árvores, aqui vai o convite: – Desçam daí e venham bater uma bolinha com as meninas, partilhando com elas as delícias da diversidade e da igualdade!

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Aline Camargo Torres, Leonardo Augusto Silva Fontes e Rodrigo Cavaliere Mourelle T é c n i c o s d a Coordenação de Documentos Escritos do Arquivo Nacional. Colaboração de Ana Carolina Reyes, Beatriz Monteiro, Marco André Balloussier, Marcus Vinícius Alves e, especialmente, Mariza Ferreira de Sant’Ana.

Um toque de letra breve roteiro de fontes textuais sobre futebol

no Arquivo Nacional

“Sentado no meio-fio, radiozinho sobre os joelhos, o garoto chorava. Bati-lhe de leve no ombro, para consolá-lo. Ergueu os olhos marejados, disse apenas: – Mas eles vão ver, quando a gente for grande! ”

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dizer que, acondicionados verticalmente em caixas e, estas, dispostas lado a lado, os documentos escritos do Arquivo Nacional ocupariam 55 quilômetros de extensão. Estão aí registrados aspectos os mais variados da história política, social, econômica e cultural do país. O futebol, paixão nacional, também é assunto contemplado por esses documentos. No âmbito dos acervos proveEssa é uma das “imagens de nientes do Poder Executivo fedeperda” criadas por Carlos Drumral, o esporte se revela em sua dimond de Andrade ao final da Copa mensão política, seja como veícudo Mundo de Futebol de 1966, em lo de expressão popular e demosua crônica intitulada “Jogo à discrática, seja como instrumento sim1 tância”. Parte integrante do acerbólico de dominação. Encontramse nestes acervos, por exemplo, vo do Arquivo Nacional, a crônica importantes associações entre fupublicada pelo jornal Correio da Anúncio do filme O football como deve Manhã é apenas um dos inúmeros ser jogado, publicado no jornal Diário de tebol e o regime militar que vigoexemplos de documentos sobre fu- Notícias, em 1939 rou no país entre os anos de 1964 e 1985. A relação entre ambos, tebol a preencher os depósitos da com seus diferentes matizes – que instituição, que é fonte inesgotável para pesquisas sobre os mais variados variavam de acordo com os interesses “em jogo” –, é evidenciada por diversos documentos. temas, e sob diferentes recortes cronológicos. No acervo da Divisão de Segurança e InforFazem parte deste acervo, primordialmente, conjuntos documentais de natureza pública, oriunmação do Ministério da Justiça, merece destaque o clipping de notícias que integra o processo2 sobre o dos da instância federal de poder, sejam do Executivo, Legislativo, Judiciário ou extrajudicial. Soseqüestro do embaixador alemão por integrantes de mam-se a estes os documentos de natureza privamovimentos de esquerda, ocorrido no Rio de Janeida, provenientes de pessoas e entidades cujas traro durante a Copa do Mundo de 1970. Manchetes jetórias são consideradas relevantes para o estudo como “O jogo do seqüestro”, “O xeque do terror da história do Brasil. No que tange à documentação no tabuleiro da Copa” ou “Seqüestro, o jogo do terescrita, objeto deste artigo, o volume do acervo é ror” são bons exemplos do tom que dominou a imestimado em 55 mil metros lineares. Isso significa prensa no período, que em raros momentos deixava

1 BR AN,RIO PH.0.TXT.55. 2 BR AN,RIO TT.0.MCP, Subsérie Processos. Processo Secom 19.418.


BR AN,RIO TT.0.MCP, Subsérie Processos. Processo Secom 19.418

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de associar os dois eventos. Os documentos permitem entrever a apropriação, pelo regime militar, do momento de glória nacional propiciado pelo favoritismo do Brasil no campeonato, e personificado pelos jogadores-heróis da seleção. A este momento é contraposta a imagem antipatriótica dos seqüestradores, apontados então como inimigos da nação brasileira. “Pelé, Brito, Rivelino, Clodoaldo e outros craques”, conforme publicado no Diário de Notícias dois dias após o seqüestro, “lamentaram que maus brasileiros, traidores e criminosos, venham quebrar a tranqüilidade e o entusiasmo da equipe”, justamente no momento em que se deveria “congregar esforços e aproveitar o memorável trabalho que a seleção vem fazendo em nome do Brasil”. Outra fonte documental que associa futebol e política no acervo da Divisão de Segurança e Informação do Ministério da Justiça é o processo3 que trata da realização da Copa do Mundo de 1978, na Argentina. Em plena vigência da ditadura militar, o governo argentino demonstrava-se preocupado com a divulgação da imagem do país no exterior. Tendo destinado a exígua quantidade de dez mil ingressos para os torcedores do Brasil, o comitê organizador do evento pretendia angariar o apoio das autoridades brasileiras, no sentido de “desenvolver-se ampla campanha de dissuasão daqueles que não hajam ad-

Matéria publicada no Diário de Notícias, em 13 de junho de 1970, por ocasião do seqüestro do embaixador alemão no Brasil, Ehrenfried Anton Theodor Ludwig Von Holleben

quirido previamente seus ingressos”. Segundo o militar argentino Carlos Alberto Lacoste, vice-presidente daquele comitê, um “[...] número excessivo de pessoas, que pretendam ingressar nos estádios sem a necessária habilitação, certamente constituiria elemento prejudicial àquela imagem”. No acervo do Serviço de Censura de Diversões Públicas (RJ), especialmente no que se refere a televisão, peças teatrais e letras musicais, encontram-se pareceres de censores elaborados durante a vigência do regime militar no país, recomendando ou vetando obras que têm o futebol como tema. Muitas dessas obras utilizavam o esporte como metáfora do cotidiano, dele se valendo como instrumento de contestação à sociedade da época. Peças como Campeões do mundo,4 de Dias Gomes, e São Jorge no país do futebol,5 de Iremar Brito, são exemplos de textos vetados ou cortados pelo Serviço de Censura por seu conteúdo de “crítica ao sistema”. “Coloca[r] o futebol como veículo de entorpecimento”, conforme registrado em um dos pareceres, poderia resultar no veto a uma peça teatral. Dentro da maior instituição arquivística do país, a documentação sobre futebol concentra-se nos arquivos de natureza privada.6 Neste universo, além de uma imensa quantidade de exemplares e recortes de jornais, cabe ressaltar itens como relatórios de jogos,7 tabelas de campeonatos,8 cartas9 e até um exemplar do livro Na boca do túnel,10 com apresentação de João Saldanha e depoimentos de técnicos consagrados como Zagalo, Telê, Feola, Gentil Cardozo e Flávio Costa.

3 BR AN,RIO TT.0.MCP, Subsérie Processos. Processo Gab 100.519. 4 BR AN,RIO TN.0.2,PT.712. 5 BR AN,RIO TN.0.2,PT.4089. 6 Foram consultados os acervos de Afonso Vasconcelos Várzea (IW), Bernardo Fernandes de Brito (2A), Bolsa de Valores do Rio de Janeiro (P8), Célio Borja (Z1), Correio da Manhã (PH), Felisbela Pinto Correia (28), Godofredo Tinoco (TZ), Jota Efegê (TM), Marcos Carneiro de Mendonça (U0), Maria Beatriz do Nascimento (2D) e Paulo de Assis Ribeiro (S7). 7 BR AN,RIO IW.0.0.caixa 6, pacote 4 (1951). 8 BR AN,RIO IW.0.0.caixa 3, pacote 4 (1950); BR AN,RIO 2D.0.0.caixa 4, item 42 (1970). 9 BR AN,RIO IW.0.0.caixas 7, pacote 1, e 13, pacote 2. 10 BR AN,RIO IW.0.0.caixa 14, pacote 2.

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Carta de Arthur Friedenreich analisando o livro O futebol e sua técnica , de Max Valentim

TOQUE DE LETRA

Os jornais trazem uma variedade de temas importantes, como as Copas do Mundo,11 a inauguração do Maracanã,12 futebol feminino,13 racismo,14 violência dentro e fora de campo,15 escândalos de arbitragem,16 cartolas,17 filmes sobre futebol,18 e ainda reportagens sobre Pelé,19 Garrincha20 e uma série de outros jogadores, técnicos e personalidades do mundo futebolístico. Torcedores célebres também têm lugar neste time: é o caso de Tia Helena, chefe de torcida do Flamengo, que “chegava cedo e sentava na arquibancada, torcia sem parar, para escândalo de muita gente, pois naquele tempo [década de 1930-1940] mulher não ia a estádio”.21 Constam também inúmeras colunas esportivas, poemas22 e crônicas, dentre as quais merecem menção especial as de autoria de Carlos Drummond de Andrade.23 A cobertura jornalística da Copa do Mundo de 1950, realizada no Brasil, aparece com especial destaque.24 Com matérias de capa empolgantes, principalmente do Jornal dos Sports, os documentos acompanham jogo a jogo a expectativa pela conquista do primeiro título mundial brasileiro, que acabou culminando na frustração do Maracanazo. Uma análise sociolingüística dessa documentação também pode ser empreendida. No início do século XX, período de consolidação do football no Brasil, o idioma inglês imperava na cobertura jornalística dos matches realizados entre os teams – talvez devido à sua feição ainda elitista neste momento. Uma edição de 1946 do Diário de Notícias relata a luta do professor Alcides Carlos D’Aranchy “pelo triunfo de um ponto de vista brasilista, qual seja o de dar ao vocábulo ‘foot-ball’, que degenerou para ‘futebol’, um termo legítimo em face das tradições do nosso idioma”.25 As expressões relacionadas ao desporto adquirem um ar mais lusófono nas décadas seguintes, concomitantemente com a sua popularização como atividade profissional e de lazer. Tal fato aparece numa edição domingueira do Jornal dos Sports de 1966, em que

BR AN,RIO IW.0.0.caixa 13, pacote 3 p.1

UM

Felisbela Pinto Correia, sob o pseudônimo de Belisla, faz espirituosa análise sobre esta mudança: “Aportuguesou-se a terminologia futebolística, algumas vezes sem fugir do anglicismo, outras em tradução exata ou aproximada. O ‘goal’ passou a ser ‘tento’, o ‘fullback’ chama-se ‘zagueiro’ e o ‘goal-keeper’ quando não ‘goleiro’ denomina-se ‘guardião’ ou ‘guarda-vala’. Tudo na singeleza que deve ter um esporte popular que enche campos, que tem a animá-lo torcida organizada com charanga e serpentina”.26 A relação entre letras e futebol pode se revelar uma caixinha de surpresas. Quem diria que o maior goleador mundial da primeira metade do século, Arthur Friedenreich, era um craque com a caneta nas mãos? Convidado pelo Diário Carioca para criticar a película O football como deve ser jogado, em 1939, El Tigre termina por defendê-la: “A todos que amam verdadeiramente esse sport, e o

11 BR AN,RIO U0.0.0. códices 135, 154 e 155; BR AN,RIO PH.0.TXT.1051. 12 BR AN,RIO 2A.0.0.caixa 1. 13 BR AN,RIO PH.0.TXT.1947. 14 BR AN,RIO TM.0.RJO,ATI.4.1.14. 15 BR AN,RIO 2A.0.0.caixa 5 (Diário de Notícias: 18/9/1945, 27/9/ 1945, 31/10/1945, 25/7/1946, 21/11/1947). 16 BR AN,RIO 2A.0.0.caixa 5 (Diário de Notícias: 10/8/1946). 17 BR AN,RIO TM.0.RJO,ATI.4.1.435. 18 BR AN,RIO TM.0.RJO,ATI.4.1.146; BR AN,RIO PH.0.TXT.2167; BR AN,RIO PH.0.TXT.2916; BR AN,RIO IW.0.0.caixa 7, pacote 1 (26/11/1939). 19 BR AN,RIO U0.0.0. códice 135. 20 BR AN,RIO U0.0.0. códice 136. 21 BR AN,RIO PH.0.TXT.5085. 22 BR AN,RIO PH.0.TXT.8334. 23 BR AN,RIO PH.0.TXT.24; 55; 10270; 10272. 24 BR AN,RIO 2A.0.0.caixas 1, 4 e 7. 25 BR AN,RIO 2A.0.0.caixa 5. 26 BR AN,RIO 2A.0.0.caixa 1 (18/3/1966).


cultivam ou acompanham com emoção, chamo atenção para as novidades contidas nas partes relativas a movimento de defesa e de ataque, bem como naquelas referentes às táticas de conjunto e à maneira de treinar os quadros”.27 E numa carta a Max Valentim (pseudônimo de Afonso Vasconcelos Várzea), datada de 1° de maio de 1941, em que comenta o livro deste sobre futebol, Friedenreich confessa que lhe “deliciam, também, as considerações de ordem histórica, aquelas que explicam tão claramente a evolução do futebol, sem esquecer os episódios ligados à [sua] atuação nas canchas”.28 Como se vê, o artilheiro jogava nas onze. Outro jogador de talento nas letras foi Marcos Carneiro de Mendonça. Goleiro do América, do Fluminense e da primeira seleção brasileira, Marcos foi também historiador, tendo adquirido por compra, em Portugal, documentos pertencentes ao vice-rei marquês do Lavradio, e ao Gabinete de d. João VI no Rio de Janeiro. Estes, juntamente com o arquivo pessoal do goal-keeper, cons-

tituem três importantes conjuntos documentais pertencentes ao Arquivo Nacional. Em relação aos acervos oriundos do Poder Judiciário e extrajudicial, merecem destaque os registros de clubes como Vasco da Gama, Botafogo, Fluminense e Flamengo, efetuados respectivamente nos anos de 1906, 1914, 1915 e 1916 – posteriores à sua efetiva fundação.29 Os documentos relativos ao registro dessas entidades, consideradas então como de caráter “recreativo”, podem ser encontrados no acervo do Primeiro Ofício de Registro de Títulos e Documentos.30 A condição amadora do esporte em terras brasileiras modificou-se na década de 1930, primeiro em São Paulo e logo depois no Rio de Janeiro – quando houve movimentos favoráveis e contrários à sua profissionalização.31 Como se pode ver, o futebol se encontra refletido no acervo da instituição das mais diferentes maneiras. Poderia parecer curioso o fato de que não se tenham encontrado, no decorrer da pesquisa, documentos referentes à Copa do Mundo de 1958. Isso, contudo, apenas evidencia que o levantamento de fontes ora apresentado não se deu de maneira exaustiva – o que, considerando o expressivo volume do acervo, demandaria muito mais tempo que o disponível. A correspondência que integra diversos conjuntos documentais privados, por exemplo, não foi aqui analisada. Acreditase que, por seu caráter pessoal e pela multiplicidade de assuntos que comumente encerra, essa correspondência se revelaria importante fonte de investigação, merecendo assim atenção mais detida. As possibilidades de pesquisa sobre futebol no acervo documental escrito do Arquivo Nacional, portanto, não estão de forma alguma esgotadas. Afinal, no campo da história e das informações, o jogo não acaba nem quando termina...

27 BR AN,RIO IW.0.0.caixa 7, pacote 1 (26/11/1939). 28 BR AN,RIO IW.0.0.caixa 13, pacote 3. 29 Ver FONSECA, Vitor Manoel Marques da. No gozo dos direitos civis: associativismo no Rio de Janeiro, 1903-1916. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional/Muiraquitã, 2008. 30 BR AN,RIO 66. 31 BR AN,RIO 2A.0.0.caixa 5 (Diário de Notícias, 6/2/1946).

FUTEBOL, CINEMA E PAIXÃO

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Após encerrar a sua carreira como goleiro, Marcos trabalhou como historiador e foi eleito para a Academia Brasileira de Letras, mas nunca abandonou o Fluminense, tendo sido seu presidente no período do bicampeonato carioca, em 1940 e 1941. Rio de Janeiro, em 10/4/1970

PH.FOT.33764.009

BR AN,RIO IW.0.0.caixa 3, pacote 2

Medidas do campo de futebol do Porcelanas Futebol Clube, em 30 de março de 1954


Gerson Noronha Filho Pesquisador do Arquivo Nacional, escritor, diretor de teatro, psicanalista. Doutor pela Johns Hopkins University. Professor adjunto da UERJ.

A prontidão para a violência

a margem terceira do futebol “A

vitória é a prova dos nove

Gerson Noronha Filho

the blood from men’s veins and put water instead, then there will be no more war1

Guerra e paz, de Leon Tolstoi

PH.FOT.03512.020

“Drain in

“Briga entre jogadores do Santos e do Botafogo, originada pelo desentendimento entre o zagueiro botafoguense Thomé e o ponteiro santista Pepe, depois deste ter conquistado o 1º gol do Santos de pênalti e que terminou com a expulsão de Thomé e de Pelé... Torneio Rio–São Paulo. São Paulo, 4/3/1958


FUTEBOL, CINEMA E PAIXÃO

PH.CAH.92.152

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Intróito O futebol, paixão planetária e ao mesmo tempo familiar, porque descarta explicação, é um palimpsesto, uma narrativa aberta2 a muitas interpretações e leituras. Este ‘multifacetamento atrativo’, capaz de satisfazer muitas necessidades materiais, simbólicas e imaginárias tanto do mercado quanto dos consumidores, envolvidos e estudiosos, explica e impulsiona seu crescimento constante, desde a sua criação, no final do século XIX. Invenção da fase de ouro (1862) do Império Anglo-Saxônico, o futebol é, junto do escotismo, movimento de ‘recrutamento paramilitar juvenil’ criado por Baden-Powell (1857-1941), uma das mais interessantes e brilhantes encenações das saudosas épocas heróicas e épicas da expansão colonial, quando a população civil excedente da Inglaterra era obrigada a participar com suas vidas das ações militares para a implantação de um mercado capitalista em escala mundial. O palimpsesto Os estudiosos da linguagem, da narrativa e da marca internacional chamada futebol, o esporte competitivo profissional e amador mais jogado e amado no mundo, estão sempre defendendo, criticando ou desvelando novas interpretações para o lugar que este jogo ocupa no mun-

do. Podemos assinalar as seguintes leituras sem que esta lista esgote o entendimento do unheimlich (estrangeiro, estranho): (1) Esporte (2) Entretenimento (3) Religião (da classe operária inglesa [Hobsbawm])3 (4) Cidadania4 (5) Alienação5 “[...] tudo sucumbe à despolitização e à desqualificação dos conteúdos culturais, substituídos, no mundo do espetáculo massificado e mercantilizado, pelo vazio do mais difundido dos jogos de bola. Assim, o futebol, que já serviu ao populismo, ao fascismo e ao totalitarismo, serviria agora ao totalitarismo do poder econômico, que lhe dá o seu rematado alcance mundial, e presta-se a promover a aceitação conformista do trabalho alienado, a mentalidade do puro rendimento, a competição brutal, a agressão, o sexismo, o fanatismo, o bairrismo, o ativismo irracional das torcidas, o desprezo pela inteligência e pelo indivíduo, o culto dos ídolos, a massificação, o autoritarismo, a fusão mística nos coletivismos tribais [dos times], a supressão do espírito crítico e do pensamento independente.”6 (Grifos meus)

(6) Campo de aprendizado (7) Teatro profano7 (onde o coro é a platéia, os atores os jogadores, e o diretor o técnico do time)

1 Drene o sangue das veias dos homens e ponha água em vez disso, então não haverá mais guerra. 2 ECO, Umberto. Obra abierta. Tradução de Roser Berdagué. Barcelona: Ariel, 1979. 3 WISNIK, José Miguel. Veneno remédio. O futebol e o Brasil. Companhia das Letras: São Paulo, 2008, p. 55. 4 Conceito defendido por Nicolau Sevcenko, citado em WISNIK, José Miguel, p. 211. 5 SEBRELI, Juan José. La era del fútbol. Buenos Aires: Editora Sudamerica, 1998. Posição também defendida por Lima Barreto (WISNIK, José Miguel, p. 205-212), já que este foi o promotor da Liga Brasileira Contra o Futebol, em oposição aos argumentos do escritor Coelho Neto. 6 WISNIK, José Miguel, p. 43-44. Síntese feita por Wisnik do pensamento de Sebreli. 7 Realidade lembrada pela magistral frase do dramaturgo brasileiro Nelson Rodrigues: “A mais sórdida pelada é de uma complexidade shakespeariana”.


A

PRONTIDÃO PARA A VIOLÊNCIA

(8) Teatro popular8 “Com a casa cheia [estádio do Maracanã] (mais de cem mil pessoas), entraram em cena os 22 elementos (onze dos quais cedidos por produtores paraguaios) e, segundo os mais avançados preceitos do teatro épico de Brecht, toda a função gozou da mais entusiástica participação da platéia, que por vezes exultava ante a revelação de marcações inesperadas por parte de alguns atores, enquanto que por outras julgava ser capaz de superar a planificação dos diretores, sugerindo a plenos pulmões, qual deveria ser a atitude deste ou daquele intérprete [...] O elenco da CBD evidenciou as falhas que caracterizam todos os all-star casts: pouco habituados a atuarem juntos, fizeram-se notar, é preciso dizer, mais por seu valor incontestável do que pela fluidez do conjunto.”9 (Grifos meus) “O clima de uma disputa de final de campeonato de futebol traz em si qualidades dramáticas de primeira ordem para o estabelecimento de um conflito realista.”10 “O teatro [...] precisa encontrar a fórmula brasileira sem a qual nunca alcançará inteiramente o povo, e platéia de teatro tem de ser formada por muita gente, gente de todas as camadas sociais, da mesma forma que a do futebol, e, como no caso do futebol, gente que entende das regras, que reconhece o bom do mau jogo, gente a quem a “pelada” não convence e a quem, infelizmente, a “chanchada” muitas vezes engana.”11 (Grifos meus)

(9) Escrita apolínea e dionísica12 “Drama construído para estimular o coração [Pascal], o terror e a piedade [Aristóteles], o êxtase, o entusiasmo, a purgação e a purificação das mentes (kátharsis) e para reforçar a via racionalista [Descartes].”

(10) Gênero dramático 13 para as massas de espectadores regressivos 14 (11) Narrativa épica-trágica15 (12) Hubris da eufemização da barbárie da perfeição 16 (13) Celebração da Lei17 “[...] o futebol é, no fundo, a celebração da vigência da Lei humana. É o juiz quem, entre os jogadores, conduz a partida e as possibilidades que esta apresenta. [...] A vitória é buscada, mas deve ser obtida dentro da Lei.”

(14) Futebolização18 (15) Emplasto Brás Cubas19 “Para além do bem e do mal, o futebol brasileiro insiste, desafiadoramente e ironicamente, como o emplasto Brás Cubas que deu certo [como o próprio Machado de Assis, o mulato que deu certo] [...] testemunhou [...] uma das mais originais propostas do nosso esboço de civilização: a respiração fora do produtivismo sem trégua, a capacidade de comunicação entre lógicas múltiplas, e a leveza profunda.” (Grifos meus)

(16) Veneno20 (17) Guerra, briga, em que o noves fora é a operation (Bacon), o proceder eficaz, a vitória. A violentização das mentes Nesta última leitura (17), o futebol, luta entre clãs totêmicos, proporciona, simultaneamente, uma intensa descarga e sublimação das pulsões de ‘dominação e agressão’, via o gozo do usufruto de uma simulação simbólica de guerra que pode ser confirmada pelo uso extenso de termos vindos da área

8 HELIODORA, Bárbara. Escritos sobre teatro. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 259-260. Posição também defendida por Oswald de Andrade e Mário de Andrade, citados por WISNIK, José Miguel, p. 235. 9 HELIODORA, Bárbara, p. 259-260. Crônica sobre o jogo Brasil x Paraguai, publicada no Jornal do Brasil, em 24 de abril de 1962. 10 Ibidem, p. 490. 11 Ibidem, p. 642. 12 BRANDÃO, Junito de Souza. Teatro grego: tragédia e comédia. Petrópolis: Vozes, 1984, p. 11-12. Esta noção do futebol apolíneo (prosa) e dioníseo (poesia) foi trazida pelo cineasta Pier Paolo Pasolini, citado no livro de Wisnik (p. 15). 13 Conceito explicitado por Theodor W. Adorno em “O fetichismo na música e a regressão da audição” (Textos escolhidos. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 101) aplicado aos expectadores dos jogos de futebol: “Os ouvintes regressivos apresentam muitos traços em comum com o homem que precisa matar o tempo porque não tem outra coisa com que exercitar o seu instinto de agressão.” (Grifos meus). 14 ADORNO, Theodor W., p. 101. 15 Declaração do jogador turco Deivid antes de uma partida para as quartas-de-final da Liga dos Campeões da Europa 2008: “Vamos jogar até a morte e a melhor equipe vai estar nas semifinais”. 16 Expressão feliz de Eduard Steurmann citada em “O fetichismo na música e a regressão da audição”, em ADORNO, Theodor W., p. 86. 17 JORGE, Marco Antonio Coutinho. Efusiva e exemplar celebração da lei. Valor Econômico, São Paulo, 16, 17 e 18 jun. 2006. Eu & Fim de Semana, p. 13. 18 Noção introduzida por Wisnik com a globalização deste esporte patrocinada pela Fifa. WISNIK, José Miguel, p. 350. 19 Ibidem, p. 430. 20 Ibidem, p. 40.


PH.FOT.03432.117

FUTEBOL, CINEMA E PAIXÃO

Partida entre Brasil 3x1 Uruguai, pela Copa América, no Estádio Monumental de Nuñes. Ao centro, o juiz chileno Carlos Robles, o preparador físico Paulo Amaral, Bellini e Orlando Peçanha. Buenos Aires, Argentina, 26/3/1959

militar: (a) ataque, (b) defesa, (c) tática, (d) estratégia, (e) “feras”, (f) inimigo, (g) guerra, (h) treinamento, (i) tiro, (j) campo, (k) capitão, (l) artilheiro, (m) tiro de meta, (n) petardo e canhão, (o) poder de fogo do time, (p) “morte súbita”, (q) aríete (o centroavante funciona como um aríete), (r) defensor, (s) atacante. O futebol, portanto, é a encenação de uma ‘luta de tudo ou nada’, uma arena em miniatura das brigas do mundo repetida muitas vezes por ano, na forma de campeonatos (guerras) nacionais e mundiais. O que chama mais a nossa atenção é o quanto este ‘efeito’ mantém uma prontidão para a violência que facilita o recrutamento – quando se fizer necessário – de pessoas dóceis a esta opção de resolução dos conflitos internos ou externos. Percebemos, também, com nitidez a evidência dessa função quando ocorre uma prorrogação das partidas. Neste momento, há uma elevação da tensão para um limite mais alto, a ‘batalha’ se prolonga para além das expectativas dos técnicos (comandantes), jogadores (soldados) e expectadores (a população civil). A carga de prazer antecipada de usufruto (tempo de batalha = tempo de jogo) é esticada e, nesta situação tipicamente dramática, se percebe o quanto de exaustão – de descarga máxima – se exige dos envolvidos. Nessas circunstâncias, exige-se um plus dos jogadores: exige-se que sejam superhomens, que joguem além de suas forças, numa forma explícita de crueldade próxima do sadismo. Wisnik, por exemplo, defende esta ‘função’

21 Ibidem, p. 17-18. 22 Ibidem, p. 17.

do futebol aproveitando-se dos conceitos psicanalíticos (Freud, Lacan) e de uma série de autores estrangeiros: Eric Hobsbawn, Terry Eagleton, Michel Houellebecq e Augusto Comte. “Terry Eagleton, observando por sua vez a pulverização contemporânea da vida social num turbilhão anódino de culturas particulares e pontuais, diferencia desse quadro o ‘significado político extraordinário’ do esporte e, em particular, do futebol: ‘basta pensar em como seria transformada a paisagem social e política britânica se não mais existisse o futebol para fornecer às pessoas a tradição, o ritual, o espetáculo dramático, o senso de existência corporativa, a hierarquia, a lealdade, a agressividade selvagem, o combate gladiatório, o espírito de rivalidade, o panteão de heróis e a apreciação de habilidades estéticas que fazem falta tão grande ao cotidiano capitalista.’”21 “Eric Hobsbawn observou, recentemente, que o ‘futebol carrega o conflito essencial da globalização’, suportando de maneira paradoxal, talvez como nenhuma outra instância, a dialética entre as entidades transnacionais, seus empreendimentos globais e a fidelidade local dos torcedores para com uma equipe. A globalização consegue depauperar os campeonatos locais em países periféricos onde eles sempre foram fortes, como os do Brasil e da Argentina, e não consegue extinguir, até aqui, a forte demanda pela representação nacional contra a sua descaracterização globalizada.”22 “Há um ponto no qual Augusto Comte contrasta muito agradavelmente com a quase totalidade de seus contemporâneos, Hegel, é claro, mas também a maioria dos românticos: é o desprezo constante com que ele trata Napoleão. Ele o qualifica tanto de ditador retrógrado quanto de fantoche militarista. Para Comte, a epopéia napoleônica é algo sórdido, que constituiu pura e simplesmente uma perda de tempo, um retardamento da transição entre a era militar e a era industrial. Na era militar, o principal meio de que uma população dispunha para aumentar seu nível de vida era invadir o território de seus vizinhos. Na era industrial, a guerra, pensa Comte, deve normalmente tornar-se econômica. Ela deve opor empresas multinacionais puras, ou empresas menores, pelo menos em parte sustentadas pelo Estado, ao qual estão ligadas.

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A

PRONTIDÃO PARA A VIOLÊNCIA

Essa situação, supondo que esteja totalmente realizada, como é o caso na Europa há várias décadas, não pode deixar de causar frustrações. A concorrência econômica só pode na verdade ser suficientemente excitante para aqueles, forçosamente uma parte ínfima dos funcionários da empresa, que realmente participam de suas apostas. Enquanto a guerra aumenta a taxa de adrenalina não somente dos generais, mas também dos simples soldados. Arriscar a vida é excitante. Matar os outros é excitante. O homem ama o combate. [...] O desejo de violência [Freud] no homem, em particular seu desejo de violência coletiva, seu lado animal de rebanho, se satisfaz diante das revoluções e das guerras. Se as revoluções e as guerras, como previa Augusto Comte, acabassem por desaparecer totalmente, dando lugar ao consenso liberal e a guerras limitadas ao campo econômico, seria necessário encontrar um canal de escoamento para esse desejo de violência. Parece-me que esse canal já foi descoberto, na realidade. E obtém um sucesso crescente no conjunto do planeta. É o futebol. O futebol permite uma liberação de adrenalina real, embora menos poderosa que a do combate físico efetivo. Mas oferece, além disso, um espetáculo palpitante, de um suspense claramente mais forte que o de qualquer produção cinematográfica imaginável, enquanto a guerra real é na maioria das vezes relativamente entediante. Assim como na vida, há muito tempo morto [...]. O futebol permite, pelo menos na ocasião das Copas do Mundo, a reconstituição da identidade nacional lúdica, porque temporária e facultativa, portanto tem um caráter de distração, cada vez mais evidente, na medida em que continuará dissipando as identidades nacionais pesadas. Aquelas que antes serviam para iniciar e conduzir as guerras.”23

O futebol como espetáculo guerreiro e dionisíco faz – naturalmente – uma competição superior com o cinema hollywoodiano, empobrecido por sujeitar-se cada vez mais às leis do mercado (lucro) e da ditadura do melodrama, proposta estética mais conhecida pelos consumidores pela marca do “final feliz”.24

A prontidão para a violência A repetição ‘educativa e deseducativa’ dessas ‘guerras’ nacionais e mundiais, encenadas pelos jogos de futebol, mantém nas pessoas envolvidas com este esporte, a maioria jovens, – de forma consciente e inconsciente – uma prontidão para a violência: já que a narrativa exige que o ‘conflito’, ‘a luta’ entre os dois times sejam reduzidos simbolicamente à equação: ou eles ou nós. Para ‘assassinar’, ‘matar’ sem culpa este outro (o time adversário), o time “guerreiro” (vencedor) opera uma inversão simbólica: passa este “igual” para a posição de inimigo, isto é, conjunto de seres desprezíveis e desumanizados. Esta conscientização, ‘tático-simbólica’, naturalmente, facilita a ‘vitória’ sobre o outro. Desumanizando o outro posso derrotá-lo e humilhá-lo sem (muitas) culpas porque este ‘outro’ não existe como nós. Esta ‘conscientização táticosimbólica’ da narrativa do jogo, como se sabe, é um dos ingredientes essenciais para o recrutamento de pessoas violentas para participarem de instituições com o poder legal do uso da violência (forças armadas, polícia) e uma das explicações do baixo nível de ‘livre arbítrio’ que vemos nos momentos de ‘mobilização de mentes e corações’ para aceitarem a idéia de uma guerra. A ‘manipulação’ das massas, por exemplo, já foi assinalada faz tempo por Freud, em Psicologia de las masas y analisis del yo (Psicologia das massas e análise do eu). O que estamos a hipotetizar, apostar, é que esta ‘facilidade’ vem sendo ajudada na modernidade pela ‘narrativa’ do futebol: “Hemos partido del hecho fundamental de que el individuo integrado en una massa experimenta bajo la influencia de la misma, una modificación a veces muy profunda, de su actividad anímica. Su afectividade queda extraordinariamente intensificada y, en cambio, notablemente limitada su actividad intelectual. [...] Intentaremos, pues, admitir la hipótesis de que en la esencia del alma coletiva existen también relaciones amorosas.”25

23 HOUELLEBECQ, Michel. Conferência feita em Porto Alegre com o título “A nostalgia das estrelas”. Texto integral coligido pela Folha S. Paulo. Folha Online, 3 fev. 2008. 24 XAVIER, Ismail. O olhar e a cena. São Paulo: Cosac Naify, 2003. 25 FREUD, Sigmund. Obras completas. Tradução de Lopez-Ballesteros. Madrid: Biblioteca Nueva, 1973, tomo III, p. 2575-2577. Partimos do fato fundamental de que o indivíduo integrado em uma massa experimenta sob a influência desta uma modificação muito profunda de sua atividade anímica. Sua afetividade intensifica-se extraordinariamente, mas, em compensação, fica notavelmente limitada sua atividade racional. [...] Tentaremos, portanto, admitir a hipótese de que na essência da alma coletiva existem também relações amorosas.


FUTEBOL, CINEMA E PAIXテグ

PH.FOT.03144.088

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A

PRONTIDÃO PARA A VIOLÊNCIA

“Aceptamos la muerte [real, encenada ou simbólica como num jogo de futebol] cuando se trata de un extraño o un enemigo [time], y los destinamos a ella tan gustosos y tan sin escrúpulos como el hombre primordial [...] [porque] en la historia primordial de la Humanidad domina, en efecto, la muerte [vitória] violenta [...] esta tesis que el psicoanálisis formula atrae sobre ella la incredulidad de los profanos, que la rechazan como una simple calumnia insostenible.”26

Em El porque de la guerra (1932), Freud vai mais além e vaticina que “una comunidad humana se mantiene unida merced a dos factores: el imperio de la violencia y los lazos afectivos”27 numa concordância com Hobbes (1651): “So the nature of war consisteh not [only] in actual fighting, but in the known disposition”.28 Bem antes, Shiller (1792) já tinha aberto este veio da glamourização estética da violência – mantida pelos esportes competitivos como o futebol – ao escrever sobre a tragédia: “Quanto mais terrível o adversário, tanto mais gloriosa a vitória. Só a resistência pode tornar visível a força. Do que se segue que só num estado [num jogo] violento, em luta, pode se manter a suprema consciência da nossa natureza moral, e que o máximo prazer moral sempre virá acompanhado da dor.”29

Conclusões O futebol é sempre como uma promesse de bonheur (promessa de felicidade) e uma chance de have a good time (ter um bom momento) na observação de um drama circunscrito por regras (leis) e pelo “isolamento” territorial que as estruturas dos estádios realizam com o “mundo exterior” e o “palco” onde ocorre o confronto

entre dois times. No correr desta narrativa de luta colocada como espetáculo para os expectadores, vê-se uma sucessão de ações, peripécias, reviravoltas, enlaces e desenlaces que desembocam num epílogo caracterizado por uma cadeia de díades extremamente significantes e simbólicas, tanto como expressão de guerra quanto da manutenção da prontidão para a violência: (1) vencer e ser vencido, (2) vida e morte, (3) glória e desgraça, (4) apoteose e humilhação, (5) ganho (financeiro) e perda, (6) gozo e agonia, (7) decisões e indecisões, (8) completude e vazio, (9) salvação e condenação e (10) poesia e prosa.30 A assimilação, aceitação e manutenção (a-crítica) pelos expectadores (torcedores) destas bipolaridades constroem uma interessante e oportuna societária “prontidão para a violência”, tanto interna quanto externa. Assim como os ‘príncipes’ não devem ter outro objetivo nem outro pensamento, nem ter qualquer outra coisa como prática, a não ser a guerra, o seu regulamento e sua disciplina, porque essa é a única arte que se espera de quem comanda,31 uma parcela da população (principalmente torcedores na faixa etária entre 17e18 anos) está sempre à disposição (em prontidão) para um acting out violento porque já tem a sua cabeça feita pela narrativa do ou nós ou eles inculcada pelo futebol. Naturalmente, não existe nas sociedades modernas só os esportes competitivos com esta tarefa ‘secreta’ de manterem este estado psicológico de prontidão para a violência, outras instituições também realizam o mesmo (des)trabalho desumanizador: (1) as escolas segregacionistas sejam de gênero, de raça, credo, religião; (2) as religiões não ecumênicas e fundamentalistas; (3) as organizações secretas e (4) as mídias e os textos xenófobos, ‘marrons’, sectários, estimuladores de qualquer apartheid ou desumanização dos ‘diferentes’.

26 Ibidem, tomo II, p. 2112-2115. Aceitamos a morte quando se trata de um estranho ou de um inimigo [time adversário], e nos dedicamos a matar com tanto prazer e sem escrúpulos como o homem primordial [...] na história primordial da Humanidade impera, sem dúvida, o assassinato violento [...] esta tese que a psicanálise formula atrai para ela a incredibilidade dos leigos que a repudiam como uma simples calúnia insustentável. 27 Ibidem, tomo II, p. 3211, 2563-2610. Uma comunidade humana se mantém unida graças a dois fatores: o império da violência e dos laços afetivos. 28 HOBBES, Thomas. Leviathan. Chicago: Britannica Great Books, 1952, p. 85. A natureza da guerra consiste não só no próprio processo de luta, mas na sua disposição, no estar-se pronto para a guerra. 29 SCHILLER, Friedrich. Teoria da tragédia. Tradução de Flávio Meurer. São Paulo: Editora Pedagógica e Universitária, 1992, p. 21. 30 PASOLINI, Pier Paolo. O gol fatal. Folha de S. Paulo, São Paulo, 6 mar. 2005. Caderno Mais, p. 4-5. Tradução de Maurício Santana Dias. Originalmente publicado no periódico italiano Il Giorno, em 3 de janeiro de 1971. 31 MACHIAVELLI, Niccolo. O príncipe. Tradução de Lívio Xavier. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 2000, p. 97.


FUTEBOL, CINEMA E PAIXÃO

“Indeed, many of the conflicts and barbarities in the world are sustained through the illusion of a unique and choiceless identity. The art of constructing hatred takes the form of invoking the magical power of some allegedly predominant identity that drowns other affiliations, and in a conveniently bellicose form can also overpower any human sympathy or natural kindness that we may normally have. The result can be homespun elemental violence, or globally artful violence and terrorism.”33 “Despite our diverse diversities, the world is suddenly seen not as collection of people, but as a federation of religions and civilizations.”34 “The insistence, if only implicitly, on a choiceless [nós e eles] singularity of human identity not only diminishes us all, it also makes the world much more flammable.” 35

Já há algum tempo se sabe o quanto qualquer simplificação teórica (operários e não operários, pureza e impureza, útil e inútil, verdade e mentira) empobrece a análise e a solução dos nossos problemas, como nos advertiu Karl Marx em seu texto de 1875, Critique of the Gotha Programme (Crítica do Programa de Gotha). Da mesma forma, assim como ainda não surgiu no mundo rosas sem espinhos, não se pode esperar que um jogo tão multifacetado como o futebol só nos dê alegrias. Reconhecer isso, com humor e fairplay, pode nos ajudar a neutralizar seus defeitos numa manobra de ‘enamoramento’ mais adulto.

PHCAH.00092.154

Como se sabe, uma das mais antigas estratégias de ‘convencimento’ de uma pessoa para que aceite a idéia de assassinar um outro é a colocação da identidade deste outro como unidimensional, e não plural. Sua colocação na condição de ‘inimigo’, de ‘estranho’ (unheimlich). Apesar das suas retóricas pacifistas e suas apostas de solução negociada dos conflitos internacionais – exemplificadas nos documentos apresentados e defendidos pela maioria das nações nos fóruns internacionais –, os estados sabem que precisam também estar preparados para o uso da força, da violência (interna e externa). E assim, a existência de um “exército de violentos de reserva em estado de prontidão” nos países – trabalhados pelas repetidas re-encenações da narrativa do confronto existente nos jogos de futebol – é peça importante deste outro jogo político chamado guerra. A narrativa do futebol, portanto, mantém um ‘caldo’ emocional favorável à (des)lógica da destruição, do assassinato e da eliminação dos “inimigos” como a via de ouro para a solução dos conflitos. Este resultado (a prontidão para a violência), embora não tenha sido concebido pelos “criadores” e “mandatários” deste esporte, na prática mantém no futebol um contingente numeroso de pessoas receptivas a usarem (legalmente ou ilegalmente) a violência como meio para resolver conflitos ou obter riquezas, porque se acostumaram a ‘desumanizar o outro’. Para Amartya Sen32 (Prêmio Nobel de Economia) um dos carvões (entre muitos outros) que alimentam as guerras atuais é esta ‘miopia’ identitária que transforma os outros em inimigos.

32 SEN, Amartya. Identity and violence: the illusion of destiny. New York: Norton, 2007, p. 30. 33 Ibidem, p. xv. Muitos dos conflitos e das barbaridades existentes no mundo são mantidos através da ilusão da existência de uma única identidade, sem possibilidade de escolha. A arte de construir ódios assume a forma da invocação de um poder mágico de uma identidade seguramente hegemônica que afasta outras afiliações, e numa forma convenientemente belicosa pode suplantar qualquer simpatia humana ou bondade natural que possamos ter. O resultado pode ser violência familiar elementar ou a arte da violência global e do terror. 34 Ibidem, p. 13. Apesar de nossas múltiplas diversidades, o mundo está sendo apreciado não como uma constelação de pessoas, mas como uma federação de religiões e civilizações. 35 Ibidem, p. 16. A insistência, senão implícita, desta aposta numa identidade singular dada e não escolhida não só nos diminui a todos como homens, mas também torna o mundo muito mais inflamável.

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Alcides Scaglia Doutor em Pedagogia do Movimento pela Unicamp. Pró-reitor acadêmico da Universidade do Futebol, professor do Instituto Adventista de São Paulo, coordenador pedagógico do Projeto Campus Pelé, coordenador pedagógico do Paulínia F.C. e vicepresidente da Associação Futebol Arte.

Da técnica à tática uma reflexão pedagógica

Ultimamente, nos grupos de estudos que coordeno no Centro de Estudos Avançados sobre Futebol (CEAF), no Paulínia Futebol Clube e na Universidade do Futebol Corporativa do projeto Campus Pelé, estamos estudando alguns dossiês sobre treinadores, além dos princípios táticos do futebol moderno. Sobre estes assuntos mais tenho aprendido do que ensinado. Lembro-me bem de algumas decisões profissionais que tomei em minha vida, especialmente de três: a primeira, quando decidi parar de jogar futebol; a segunda, quando percebi que estudar preparação física não fazia mais sentido (pois estava totalmente contaminado pelas teorias pedagógicas/educacionais); já a terceira foi quando tomei consciência de que não deveria pensar em ser treinador. Quando ainda trabalhava com escolinhas de futebol, conseguia formar bons times, ensinar meninos a jogar bem futebol, ensinar mais que futebol... Porém, nas competições pedagógicas que desenvolvíamos, recordo-me que meus amigos, professores das outras escolinhas participantes, mesmo com times piores, conseguiam ganhar. Ou seja, mesmo tendo sido jogador de futebol profissional e me formado em Educação Física, não

aprendi nada sobre tática ou sobre como ser técnico. O problema será que estava comigo? Num primeiro momento pensei que sim, mas hoje tenho certeza que não. O problema, se assim posso dizer, estava no sistema, ou melhor, em nosso meio cultural futebolístico. O brasileiro comum se diz profundo conhecedor de futebol, sempre se arvora em criticar técnicos, chamando-os arrogantemente de burros. Reproduz-se, alienadamente, em nossa sociedade, o ditado de que no Brasil temos mais de 200 milhões de treinadores. Talvez essa máxima popular fosse correta (ou ainda é) quando se pensava (ou se pensa) o futebol do indivíduo para o coletivo. Influenciados por um entendimento de que o futebol brasileiro é feito de individualidades. Enganados de que é possível ganhar (com sustentabilidade) o jogo valorizando apenas os treinamentos técnicos. Iludidos de que o bom jogador é o malabarista com a bola nos pés... Todas essas verdades já há muito caíram por terra. Hoje, conhecer futebol é dominar alguns princípios táticos que levem a um entendimento da lógica do jogo. Aprender a ler um jogo

de futebol se aproxima das exigências, em termos de pré-requisitos, da leitura de um jogo de xadrez. Treinadores como José Pekerman, Alex Ferguson, Rafa Benitez, José Mourinho, Gus Hidding, Arsene Wenger, entre outros no exterior; Luxemburgo, Scolari, Parreira, para citar os principais nomes nacionais, fazem parte de um seleto time de ludopédicos enxadristas. Vivemos um novo período histórico na arte de jogar a bola com os pés. Exatamente por isso não é possível comparar o jogo do passado (mais individual e técnico) com o jogo do presente (mais coletivo e tático). Por analogia, seria como querer comparar uma pintura impressionista com uma cubista. Picasso era um gênio. Monet, Rembrandt, outros. Cada qual no seu estilo. Mas os três produziram o que de mais belo o homem já fez na arte do manejo do pincel em enlace com as cores. Não é possível compará-los. É possível gostar mais de um do que de outro, porém cada qual dominou sua época com seu estilo. Por este motivo, Parreira foi tão injustamente criticado na conquista de 1994. Nós brasileiros queríamos comparar um estilo de jogo, que predominou em determi-


FUTEBOL, CINEMA E PAIXÃO

nada época histórica – expressa na seleção de 1982 –, com a arte moderna apresentada pelo Zinho (inadvertidamente apelidado de enceradeira), Romário e sua turma. Nós não estávamos preparados para apreciar um novo tipo de arte. Uma arte derivada da Europa, uma tendência que aparecia com mais força na década de 70, e que ficou evidente, ironicamente, depois da Copa de 1982. Telê Santana, no livro Fio de esperança, mostra o quanto ele era um intuitivo visionário, pois foi ousado iniciando um processo de modificação em nosso estilo de jogo que culminou na conquista da Copa de 1994. Quem não se lembra das piadas da personagem Zé da Galera, interpretada pelo humorista Jô Soares, que encenava ligar para o Telê, dando-lhe conselhos técnico-táticos e terminando com o jargão: “Bota ponta Telê!!”. Uma clara alusão ao quanto não jogar com três atacantes incomodava os, na época, 180 milhões de treinadores brasileiros. Não curiosamente, no ínterim das conquistas do tri e do tetra, vivemos um momento de transição em que nosso futebol aparentemente retrocedeu no que tange à sua hegemonia.

No mesmo período começa, intensifica-se e prolifera o êxodo de nossos jogadores para o exterior. À medida que mais jogadores aprendem a arte tática, jogando segundo a tendência dominante européia, a arte do nosso selecionado vai mudando de estilo. Conversando com um dos maiores estudiosos de tática no Brasil, nosso colunista tático Rodrigo Leitão, ele me explicava que a seleção de Parreira de 1994 aplicava com maestria todos os princípios estruturais táticos defensivos do futebol moderno, além de alguns princípios de transição e ofensivos. Mas quantos brasileiros entendiam isso? Quantos aprenderam a ler esse novo estilo de arte? Esta nova forma de ler e entender o jogo? Logo, se formos contar novamente, talvez dos milhões sobre apenas cerca de uma centena de técnicos. Hoje, a beleza do jogo está na tática, e não apenas no malabarismo técnico. Continuo a gostar mais do jeito de jogar apresentado pela seleção de 1982 do que a de 1994, porém, sei que, se quero continuar assistindo futebol na atualidade, por obrigação profissional tenho que aprender a apreciar a arte do futebol tático contemporâneo.

No momento em que começo a aprender sobre como apreciar esta nova arte, e consigo encontrar no jogo de futebol princípios estruturais táticos (ofensivos, defensivos e transitórios), tais como profundidade, amplitude, mobilidade, penetração, apoio, ultrapassagem, retardamento, cobertura, basculação, compactação, equilíbrio, recuperação, bloco, direcionamento etc., também começo a imbricar as teorias pedagógicas (que transito com mais facilidade) que sustentam minhas ações como pedagogo do esporte. Portanto, vislumbro que qualquer profissional que almeje ser treinador ou trabalhar no futebol no século XXI deve dominar estes princípios. Ou seja, deve ter plena consciência de que não será por meio de uma metodologia tecnicista (que privilegia a técnica) que se adquirirá as habilidades e competências para um entendimento tático dinâmico. Formar o jogador para o futebol contemporâneo exige uma metodologia que o leve a tomar consciência de suas ações, a entender os porquês do jogo, formando não mais um jogador malabarista com a bola nos pés (técnico), mas um atleta inteligente (tático), capaz de se adaptar às diferentes exigências, advindas das incertezas sistêmicas do jogo de futebol.

PH.FOT.03479.005

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Vinicius de Moraes

Poeta.

Canto de amor e de angústia à seleção de ouro do Brasil

Minha seleçãozinha de ouro da Copa do Mundo de 1962 eu vos suplico que não jogueis mais futebol internacional não porque o ‘meu pobre coração não agüenta tanto sofrimento eu juro que prefiro ver vocês disputando só aqui dentro do gramado nacional porque aqui a gente já sabe como é e embora eu torça pelo Botafogo ninguém vai morrer mas não é mesmo a não ser talvez o meu bom Ciro Monteiro quando o Flamengo entra bem porque nós somos todos irmãos e briga entre irmãos se resolve em casa mas lá fora tudo é diferente eu quase tive um enfarte eu quase tive uma embolia tinha uma coisa que bulia dentro do meu cérebro eu acho que era o Puskas chutando minha massa cinzenta de tanta raiva filho de uma boa

senhora vocês deviam é ter lhe dado um pontapé no cóccix vá ser oriundi ele sabe onde mas você Amarildo garoto lindo do meu Botafogo você representou o Rei à altura coitado do meu Pelé com aquela distensão na virilha se estorcendo em dores para maior glória do futebol brasileiro ele é que devia ser primeiroministro do nosso Brasil trigueiro sabe Pelé eu nunca chamei ninguém de gênio porque acho besteira mas você eu chamo mesmo no duro você e o meu Garrincha que eu louvo a santa natureza lhe ter dado aquelas pernas tortas com que ele botou a Espanha entre parêntesis garoto bom passou o primeiro passou o segundo o terceiro o quarto chutou GOOOOOOOOOL DOOO BRAAAAASIL que beleza maior beleza

não tem nem pode ter toda essa raça vibrando com uma dispnéia coletiva ah que vasoconstrição mais linda o sangue entrando verde pelo ventrículo direito e saindo amarelo pelo ventrículo esquerdo e se fundindo no corpo amoroso de pobres e ricos doentes de paixão pela pátria e até a revolução social em marcha pára maravilhada para ver “seu” Mané balançar o barbante e aí ela prossegue seu caminho inflexível contente da vida de estar marchando nessa terra em que são todos irmãos até mesmo os que amanhã podem estar regando com o seu generoso sangue este solo nativo onde seremos enterrados enrolados moralmente na bandeira brasileira ao som de “Cidade Maravilhosa” mas como eu ia dizendo não me façam


FUTEBOL, CINEMA E PAIXÃO

Publicado em Vinicius de Moraes, Para viver um grande amor: crônicas e poemas. Rio de Janeiro: MEDIAfashion, 2008, p. 155-157. Disponível em www.viniciusdemoraes.com.br.

ro natal e lágrimas de amor até grãfino sofre e é capaz de não ir ao “Jirau” para ver Didi mestre sereno da arte do balipédio Einstein da folha-seca ou então os Professores Nilton e Djalma Santos que precisam ser canonizados porque nunca pensam em si mesmos só em Gilmar pobrezinho mais sozinho do que Cristo no Horto no meio daquele retângulo abstrato no vórtice do qual se esconde o hímen da pátria-menina que todos nós havemos de defender até a última gota do nosso sangue dá-lhe San Thiago porque olhe que eu sou até um cara que não é dessas coisas mas juro que estou ficando com uma xenofobia de lascar é só de me lembrar do Puskas vou até tomar um tranqüilizador senão eu dou uma bom-

ba aqui nesta máquina de escrever que vai ser fogo e aí morro porque eu não agüento mais tanta agonia por favor ganhem logo e voltem para casa com a Taça erguida bem alto para a transubstanciação do nosso e do vosso júbilo o Rio de Janeiro a vossos pés e muito papel picado caindo das sacadas da avenida Rio Branco e da cabeça dos políticos é só o que eu lhes peço voltem porque senão a revolução em marcha não caminha ela fica também encantada com a vossa divina mestria e por favor poupem o coração deste e de setenta milhões de poetas cuja vida pulsa em vossos artelhos enquanto vos dirigis para a vitória final inelutável com a ajuda de Nossa Senhora da Guia nosso pai Xangô e “seu” Mané Garrincha Olé!

PH.FOT.01561.017

mais aquilo do primeiro tempo com a Espanha porque senão vai ter um poeta a menos no mundo eu sei que poeta não resolve não dribla não encaçapa a não ser o Paulinho Mendes Campos a gente fica só mesmo é driblando a angústia o medo o amor a morte poxa eu estou agora meio doente acordo em sobressaltos eu acho que nem vou poder ouvir o jogo final senão eu faço feito aquele cara que estourou a cabeça contra um poste no fim do primeiro tempo com a Espanha porque é demais tanta ansiedade eu já não sou criança as coronárias não agüentam brasileiro é mesmo sentimental a gente chora porque a vida dói muito em nós conforme disse o Carlinhos Oliveira aqui não tem Marienbad não é tudo gleba feita do bar-

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Nelson Rodrigues

Dramaturgo, escritor e jornalista.

Confederação Brasileira de Futebol

Confederação Brasileira de Futebol

O drama das sete copas

Copa de 1930, Brasil 1 x 2 Iugoslávia Copa de 1934

Confederação Brasileira de Futebol

Copa de 1938

O primeiro Campeonato Mundial foi em 1930. Ora, naquele tempo, o brasileiro era um vira-lata entre os homens e o Brasil um vira-lata entre as nações. Tínhamos futebol, tínhamos talento, tínhamos gênio. Mas nenhum de nós acreditava em nós mesmos. Do nosso lábio, pendia a baba elástica e bovina das humildades abjetas. Lá fomos nós para Montevidéu. Eis a casta, a singela verdade: – já trazíamos a derrota encravada na alma. Ainda por cima, o Brasil não levou todo o seu poderio. Os paulistas não foram e o que se viu, na primeira Copa, foi o nosso futebol mutilado, ou, para ser mais exato, pela metade. Convém insistir no óbvio e lembrar que o futebol brasileiro é um centauro de Rio e São Paulo. Bem me lembro do nosso escrete. Dizer que era mau, não é verdade. Era bom. O brasileiro, porém, não se sabia genial. Diante do estrangeiro, tremia nos seus alicerces. De mais a mais, não tínhamos nenhuma espécie de organização. Hoje, se o craque tem uma dor de dentes, aparece o dentista; uma cólica, aparece um clínico fantástico; uma angústia, e vem o psicanalista ou o capelão. Naquela época, porém, que nos parece contemporânea de Noé, ou anterior a

Noé, havia casos de jogadores que tinham hemoptises em campo. Por exemplo: – um dos craques daquele escrete era Fausto, que os uruguaios chamariam de “A Maravilha Negra”. Poucos anos depois, ele morria com cavernas medonhas nos dois pulmões. Vejam vocês: – estava todo escavado e não sabia. Não sabia ele, nem sabia o clube, nem o público, ninguém. Um dia ele pula para cabecear uma bola. Fazia um sol de rachar catedrais. Fausto salta e sente na boca o chamado gosto esquisito. Cospe e vê a coisa escarlate. Assim começou a hemoptise. Mas voltemos ao Campeonato do Mundo de 1930. Fomos e perdemos. Perdemos em nossa primeira audição. Na realidade, ninguém esperava a vitória. Tínhamos uma longa e terna convivência com a derrota. E o pior é que éramos melhores, muito melhores do que o adversário. Mas aconteceu o que era comum e, mesmo, inevitável: – fora do Brasil, o brasileiro caía numa inibição de “Belo Antonio”. Eu me lembro da volta. Não havia nem tristeza, mas um fatalismo bovino. No fundo, no fundo, só estávamos preparados para perder. Eu era


FUTEBOL, CINEMA E PAIXÃO

Publicado em Nelson Rodrigues, A pátria em chuteiras: novas crônicas de futebol. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 112-119.

um dos poucos delirantes que dizia, pelas esquinas, apesar de os uruguaios terem sido campeões: – “O Brasil é o melhor futebol do mundo”. O segundo campeonato foi o de 1934. O ano da grande cisão entre a Confederação Brasileira de Desportos e Federação Brasileira de Futebol. Hoje, não há mais ressentimento, não há mais nada. Todavia, a implantação do profissionalismo desencadeou, entre os clubes, um ódio de guerra de secessão ou de guerra civil espanhola. Os dois lados só falavam em descascar a carótida do outro para chupá-la como laranja. Está claro que, em tal clima, que papel podíamos fazer num Campeonato do Mundo? Já em 1930, o futebol carioca vivia no caos mais frenético. Em 1934, o caos piorou e muito. Assim mesmo, tivemos o caradurismo, digamos assim, o caradurismo de ir disputar a Copa na Itália. Como da primeira vez, entramos por um cano deslumbrante. E, como sempre, a nossa velha conhecida e, eu quase diria, cupincha – a derrota – não espantou ninguém. Os campeões foram os italianos. Mais quatro anos e eis que o Brasil, pela primeira vez, teve uma chance real de vitória. E justiça seja feita: – o escrete brasileiro amadureceu e, não só isso, também a torcida. Já se insinuava uma dúvida na nossa humildade. Muita gente começava a desconfiar que talvez o futebol brasileiro fosse o melhor do mundo. E, de fato, fizemos duas seleções de altíssima categoria. Quem não se lembra de um Leônidas, de um Tim, de um Romeu? Não há a menor dúvida de que Romeu foi um dos maiores craques do Brasil e do mundo, em qualquer tempo. O tratamento quase lascivo que ele dava à bola fazia de cada lance um momento de arte. O craque autêntico não joga de primeira,

senão em circunstâncias muito especiais. E Romeu sabia cultivar a bola como uma orquídea rara. Outro era Leônidas, chamado “O Diamante Negro”. Um jogador rigorosamente brasileiro, brasileiro da cabeça aos sapatos. Tinha a fantasia, a improvisação, a molecagem, a sensualidade do nosso craque típico. Bem me lembro do dia em que Leônidas fez, pela primeira vez no mundo, um gol de bicicleta. Jogavam Brasil x Argentina, em São Januário (era tempo em que São Januário conseguia ser maior do que o Maracanã). Atacavam os brasileiros. Veio uma bola alta, lá da extrema, e Leônidas estava de costas para o gol. Sem tempo de se virar, ele deu o salto mais lindo que já se viu. Tornou-se leve, elástico, alado. Lá em cima, deitou-se e fez um maravilhoso movimento de pernas. A jogada, por si mesma, foi um deslumbramento. Mas além da beleza, da plasticidade, houve o resultado concreto: o gol. O goleiro argentino nem se mexeu, batido miseravelmente. O que houve em seguida só pode ser descrito no largo e cálido tom homérico. Sabemos que o jogador argentino, com uma vaidade de Sarah Bernhardt, não é de cumprimentar ninguém. Pois bem. Eles voaram por cima de Leônidas e quase o carregaram na bandeja, e de maçã na boca, como um leitão assado. Sim, Leônidas foi abraçado e beijado pelo companheiro e pelo inimigo. Nas gerais e arquibancadas, a multidão esteve para cantar o Hino Nacional. Outro estilista fabuloso foi Tim. Talvez tenha sido o futebol mais plástico, mais bonito, já feito por um brasileiro. Não era de marcar gols. Ele se entretinha em fazer dança ou música, sei lá. Como preservava, como protegia a bola! Amigos, a imortalidade do velho Tim está assegurada.

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DRAMA DAS SETE COPAS

PH.FOT.01682.006

O

Seleção Brasileira de Futebol na Copa do Mundo de 1950, realizada no Brasil. Time: Barbosa, Ely, Mauro, Nilton Santos, Tesourinha, Ruy, Noronha, Ademir, Zizinho, Chico e Jair. Reservas: Castilho, Augusto, Juvenal, Nena, Bauer, Danilo, Brandãosinho, Bigode, Alfredo, Friaça, Maneca, Baltazar, Adãosinho, Pinga, Ipojucan e Rodrigues. Comissão técnica: Técnico Flávio Costa, Mário, Johnson, Feola, Giffoni e Paes Barreto

Bem: – citei, ao acaso, três jogadores daquela maravilhosa representação brasileira de 1938, que foi disputar a Copa na França. E poderia lembrar outros de extraordinária classe. Mas falei também que o torcedor amadurecera. E, de fato, o homem de arquibancada começava a perceber as potencialidades do nosso futebol. Quando jogamos com a Polônia, o Brasil inteiro parou. Ganhamos, embora por um escore de bola de meia: – 6 x 5. Aconteceu um imprevisto, entretanto, que quase comprometeu o êxito inaugural: – a atuação de Batatais. Verificou-se, então, que sendo um formidável goleiro de clube, ele tremia no escrete. O jogo seguinte, com a Tcheco-Eslováquia, foi um drama. Fazia um mau tempo de quinto ato do Rigoletto. Os dois times pareciam esculpidos em água, lama, vento. O nosso escrete teve de jogar com dez durante quase todo o tempo. Aqui, numa torcida desvairada, a nação inteira pagou alguns pecados capitais. Empatamos, o que foi um resultado deslumbrante. Veio o segundo jogo com os tchecos. O treinador Pimentel pôs em campo o outro escrete, só conservando, ao que me lembro, Leônidas. Vitória linda, linda, embora por um escore sóbrio: – 2 x 1.

Quando acabou o match, houve um carnaval medonho por todo o Brasil. O brasileiro só faltou subir pelas paredes como uma lagartixa profissional. E veio o jogo com a Itália. Se a vencêssemos, era o título, era a taça. Eu me lembro do dia da batalha. Um turista que passasse pelo Rio haveria de anotar em seu caderninho: – “Esta cidade enlouqueceu”. Pela manhã, um brasileiro esfaqueou e matou um italiano. A torcida começava com sangue. O Brasil entrou com um desfalque trágico. E, com efeito, Leônidas contundido não jogou. Pode-se dizer, hoje, que a sua ausência foi fatal. Perdemos por um escore digno: – 2 x 1. Foi nesse match que Domingos, o grande Da Guia, cometeu um erro dramático. Irritado com um adversário, cometeu o mais inútil, o mais gratuito, o mais infantil dos pênaltis. Não havia perigo de gol, não havia nada. Apenas o formidável zagueiro agiu e reagiu como numa pelada, agredindo um atacante provocador. O árbitro marcou a penalidade, decidindo contra nós a peleja. Acabado o jogo, um gaiato qualquer disse, na rua, que a partida fora anulada. O Brasil inteiro se levantou. Nas esquinas, grupos cantavam o Hino Nacional. Mocinhas choravam. Mas durou pouco a euforia cívica. Logo viria a notícia definitiva: – valera mesmo a derrota brasileira. Os italianos eram de novo campeões. A frustração, todavia, não foi das piores. Afinal de contas, o Brasil oferecera um futebol admirável. Cronistas europeus pareciam impressionadíssimos com os nossos jogadores. A guerra de 1939-45 interrompeu as lutas pela Copa. Quando a disputa recomeçou, veio a grande, a inesquecível humilhação. Foi em 1950, com efeito, que cada um de nós pagou todos seus pecados nas últimas 45 encarnações. Tivemos tudo para ganhar a Copa, tudo. O nosso escrete, embora não representasse a nossa força máxima, era, nitidamente, o melhor. Fizemos uma campanha apaixonante. Não falo do tristíssimo empate com a Suíça. Nesse match fizemos um papel melancólico. Menos por culpa dos craques que pelos erros da direção técnica. Mas, a partir do jogo com a Iugoslávia, o escrete desabrochou. Hoje, fazendo uma crítica


FUTEBOL, CINEMA E PAIXÃO

o jogo final sem esse mínimo de medo que qualquer luta exige. Tivemos medo da Espanha e a massacramos. Do Uruguai, não. Nenhum medo. A saída do Maracanã, naquela tarde, oferecia um espetáculo dantesco. Milhares e milhares de automóveis, em gigantesca procissão, e nenhuma buzina. O já citado turista poderia fazer no seu caderninho esta anotação: – “Esse deve ser o acompanhamento do enterro de Inês de Castro”. Quero falar, rapidamente, de 1954. Eu diria que 1954 foi 1950 sem o consolo das maravilhosas atuações anteriores. O jogo com a Hungria foi de uma melancolia hedionda. Durante os noventa minutos, não podíamos ousar coisa alguma e por um motivo muito simples: – pertencíamos, psicologicamente, ao adversário. Contra o Uruguai, faltara-nos um mínimo de medo. Contra os húngaros tivemos, inversamente, medo demais. Há uma fotografia de nossa entrada em campo que é um lúgubre documento. O escrete está de cabeça baixa e com a cara, exatamente, a cara de derrota prévia e consentida. Perdemos e voltamos. E não sabíamos, nem desconfiamos, que o jogo com a Hungria fora o adeus à derrota. Imperceptivelmente começamos a crescer para 1958. A Copa da Suécia foi a ressurreição do futebol brasileiro. Claro que começamos a jogar, em 1958, com o escrete errado. Com Djalma Santos em plena

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PH.FOT.03577.013

retrospectiva, sabemos que a seleção tinha falhas graves. Já naquele tempo, Nilton Santos devia ser o titular. Juvenal não era o homem. Não tínhamos extremas e, sobretudo, não tínhamos ponta-direita. Em compensação, o Brasil apresentou um trio atacante como nunca se vira desde o Paraíso. Zizinho, Ademir e Jair justificavam o título. Mas como eu ia dizendo, ganhamos da Iugoslávia e não paramos mais. Contra a Suécia, foi um show encantado, com sílfides, repuxos, fundo musical, o diabo. Mas o grande momento do Brasil aconteceu contra a Espanha. Os cronistas estrangeiros, na sua admiração, davam arrancos de cachorro atropelado. E como se não bastasse o futebol em campo, houve outro espetáculo incomparável: – o da torcida. Com gente até no lustre, o Maracanã viveu a sua tarde de touros. Éramos 180 mil brasileiros cantando e dançando “Touradas em Madri”. Depois disso, quem podia duvidar, por um instante, da vitória brasileira na decisão? Na véspera da final contra o Uruguai, eu ouvi o espíquer Gagliano Netto jurar: – “O Brasil vai ganhar de 8 x 0”. Não fazia por menos. Não era, porém, um otimismo isolado, solitário. Milhões de brasileiros tinham a mesma certeza fanática. O já ganhou instalara-se na alma do povo. E não queríamos uma vitória apertada. O escore pequeno seria humilhante para o nosso orgulho. Queríamos a goleada faraônica. E, por isso, quando, diante de duzentos mil patrícios, o escrete fez 1 x 0, não bastou para a nossa sede e a nossa fome. Exigíamos quatro, cinco, meia dúzia. E aconteceu o que se sabe. Cada povo tem a sua irremediável catástrofe nacional, algo assim como uma Hiroshima. A nossa catástrofe, a nossa Hiroshima, foi a derrota frente ao Uruguai, em 1950. O adversário vinha fazendo uma campanha de evidente mediocridade. E a nossa seleção estava mais brilhante, mais incandescente que um poente de folhinha. Por que perdemos? Ainda hoje, fazemos a pergunta, sem achar a resposta. Dir-se-ia que o Brasil alcançara o seu limite, o seu teto de brilho, de talento, de imaginação, de potência criadora no jogo com a Espanha. Pode-se lembrar que entramos para

Estréia da Seleção Brasileira na Copa do Mundo de 1954, quando o Brasil venceu o México por 5x0. Na foto, os jogadores Júlio Botelho, Nilton Santos, Bauer, Baltazar e o massagista Mário Américo, no estádio de Charmilles. Genebra, Suíça, 16/6/1954


DRAMA DAS SETE COPAS

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O

Comemoração da Seleção Brasileira de Futebol pela vitória na Copa do Mundo de 1958. Suécia, 29/6/1958

forma, escalamos De Sordi. Nada de Zito, de Garrincha, de Pelé. Assim mesmo, ganhamos da Áustria por 3 x 0. Mas contra a Inglaterra, empatamos de 0 x 0 e andamos beirando o abismo. Até que veio a prova crucial, que seria o jogo com a Rússia. Na véspera perguntei a um jornalista: – “Quem ganha amanhã, Brasil ou Rússia?”. Ele me respondeu com uma dessas certezas patéticas e inapeláveis: – “Ganha a Rússia, porque brasileiro não tem caráter”. Acontecera na Suécia, porém, uma coisa maravilhosa: – o lançamento de Garrincha. Por mais estranho que pareça, a Comissão Técnica não gostava do Mané e preferia o Joel. Para Garrincha entrar houve todo um complô. Mas começa o match. A seleção estava tensa, vagamente apavorada com a Rússia. Até que Mané recebeu a primeira bola. Vejam vocês: – a primeira. E não foi preciso mais. Apanhou a bola e saiu estraçalhando russos. Driblou um, dois, três, quatro e carimbou a trave com uma bomba medonha. A escapada dionisíaca de Mané liberou os companheiros de velhas e tremendas inibições. O Brasil passou, então, a dar tudo de si. A Rússia dava pena. Ao soar o apito final, dizia o placar: – Brasil 2, Rússia 0. Foi ali, contra os russos, que a seleção começou a ser campeã do mundo. Ganhamos de 1 x 0 do País de Gales, que passou o tempo todo a fazer ferrolho. A semifinal e a final, contra a Fran-

ça e contra a Suécia, pareciam apoteoses de revista, no Teatro Recreio. Pela primeira vez, na história do campeonato, um país ousava conquistar o título com duas goleadas homéricas: 5 x 2 com a França e 5 x 2 com a Suécia. Com a vitória de 1958, o brasileiro mudou até fisicamente. Lembro-me de que, ao acabar o jogo Brasil x Suécia, eu vi uma crioulinha. Era a típica favelada. Mas o triunfo brasileiro a transfigurou. Ela andava, pela calçada, com um charme de Joana d’Arc. E assim os crioulões plásticos, lustrosos, ornamentais, pareciam fabulosos príncipes etíopes. Sim, depois de 1958, o brasileiro deixou de ser um vira-lata entre os homens e o Brasil um vira-lata entre as nações. Em 1962 foi outra doçura. Ganhamos do México. Mas logo no segundo jogo, aconteceu a catástrofe: – Pelé se contundiu e ficou fora da Copa. A nação chorou o músculo doente como se fosse um defunto. No lugar do “Divino” entrou Amarildo, que seria o “Possesso”. Depois do empate com a Tcheco-Eslováquia, passamos por uma provação só comparável à de Jó: – o jogo com a Espanha. O time jogava mal e os adversários corriam o campo como coelhinhos de desenho animado. A Espanha pôs 1 x 0 na nossa frente. Aqui, a angústia nacional era inacreditável. E, súbito, acontece o cínico, o deslavado milagre. Zagalo centra e o “Possesso” entra por uma muralha de pernas espanholas e enfia o gol do empate. Depois, Garrincha apanha a bola e sai driblando o inimigo. Os nossos locutores se esganiçavam: – “Garrincha não solta a bola! Garrincha prende a bola!”. Segundo o rádio e a televisão brasileiros, assim não era possível. Pois bem, depois de quatro defensores adversários, Mané levanta para Amarildo enfiar de cabeça. Era o segundo gol, era o triunfo dramático, suadíssimo. E a provação transformou-se, afinal, numa euforia gigantesca. Quando vencemos o Chile por 4 x 2, até os Andes dobravam os joelhos para o escrete do Brasil. Garrincha esteve apenas deslumbrante. E veio a final com a Tcheco-Eslováquia. Tivemos um susto apocalíptico. É que os tchecos fizeram o primeiro gol. Pouco depois, porém, o “Possesso” apanha a bola e corre. O goleiro adversário, considerado o melhor do torneio, afasta-se para


FUTEBOL, CINEMA E PAIXÃO

interceptar o centro provável. Com o seu movimento, abriu um corredor por onde Amarildo enfiou sua bomba mortífera. Gol, empate! Mais tarde um pouco, o mesmo “Possesso” avança. Coberto por dois adversários corta um e outro. Zito vem lá de trás, berrando: – “Passa, passa!”. Amarildo cruza na medida. Zito, na corrida, enfia de cabeça o segundo gol. E não foi só. Minutos depois, Djalma Santos levanta para a área. O goleiro tcheco quis posar para a posteridade. Larga a bola. Vavá toca para o fundo das redes. E assim se consumou a mais pura, a mais perfeita, a mais irretocável das vitórias. Assim foi em 1958, assim foi em 1962. Podese dizer que as duas vitórias se geraram da gran-

de derrota de 1950. Agora chegou a vez do formidável teste: – o tri. Se ganharmos na Inglaterra, a Copa será eternamente brasileira. E vamos admitir a santa e límpida verdade: – temos o melhor futebol do mundo. Nunca apareceu na terra nada que se comparasse a um Pelé, a um Garrincha. Qualquer brasileiro, vivo ou morto, já deu botinada. Ninguém merece mais a posse da Jules Rimet do que a seleção brasileira. E eu sei que o escrete vai jogar, na Inglaterra, de esporas e penacho como um dragão de Pedro Américo. O grande gol do tri está amadurecendo para o Brasil.

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Realidade, junho de 1966

Nilton Santos e Didi disputam a bola com Ramirez durante o jogo Brasil 4x2 Chile, pela Copa do Mundo de 1962, no Estádio Nacional. Santiago, Chile, 13/6/1962

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Nelson Rodrigues

Dramaturgo, escritor e jornalista.

As hienas contra Saldanha*

Amigos, segundo Machado de Assis, suporta-se com muita paciência a cólica alheia. Vejam o que sucede com o João Saldanha, o grande técnico do escrete. Há, contra ele, uma gigantesca pressão. Isso, dia após dia, hora após hora, minuto após minuto. Não há ninguém, no céu e na terra, que agüente. Ninguém é de ferro e tampouco o João Sem Medo. Mas, como a vítima é o Saldanha, nós exigimos dele um comportamento de estátua de Abraão Lincoln. E se ele, submetido a uma guerra de nervos e de foice, resmunga, nós os delicados, trememos de horror. Seria cômico, se não fosse odioso. Como se não bastasse tudo o mais, fingimos ignorar que circula

nas veias do João sangue e não água da bica. Não se pode tratar assim um homem e repetiria bem vezes: – não se pode tratar assim um homem. Estou batendo estas notas antes da reunião da CBD. Mas a coisa está tão clara, de uma limpidez tão cruel, que é como se tudo já tivesse acontecido. Como sentimos o cheiro do tombo, Saldanha anuncia: – “Não peço demissão”. Mas, segundo todas as indicações, não é ele que vai se demitir, são outros que querem demiti-lo. Nada se compara ao meu desolado escândalo. Imaginem vocês que, no domingo de Brasil x Argentina e antes do jogo, Havelange falou comigo. Eis as suas palavras:

– “Não adianta. João é de minha absoluta confiança. Ficará até o fim. Se ele quiser sair, eu o impedirei, fisicamente. Não o dispenso de jeito nenhum”. Assim falou João Havelange, assim falou o presidente da CBD. Ele não insinuou uma dúvida, não disse “talvez”, nem “pode ser”, nem “quem sabe”, nem “veremos”. Ninguém no mundo podia ser mais taxativo. Reparem: – N EM QUE O JOÃO PEDISSE DEMISSÃO. Ora, é Havelange quem decide. Sua palavra é inapelável como o próprio Juízo Final. Eu me pergunto: – “O presidente da CBD mudou? Suas decisões definitivas costumam ter um destino assim efêmero?”.

* Brasil 2 x 1 Argentina, 8/3/1970, no Estádio Mário Filho. Amistoso preparatório para a Copa do México. Depois desse jogo, o escrete empataria com o Bangu (1 x 1, 14/3/1970), o que precipitaria a demissão de Saldanha e sua substituição por Zagalo.


FUTEBOL, CINEMA E PAIXÃO

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Seleção brasileira de 1970 e o presidente Médici em frente ao Palácio das Laranjeiras. Rio de Janeiro, 28/4/1970

foi escolhido. Ninguém o queria porque ele não faz jogo de concessões. Só pensava no escrete. Podia o mundo vir abaixo, que ele não transigiria por medo, habilidade, falta de caráter. Não via Rio, não via São Paulo, não via ninguém, a não ser o Brasil. São Paulo sempre mandou e queria mandar. João achava que um escrete não pode ser uma composição de interesses e egoísmos. Nem se diga que a seleção não fez nada. Fez muito, fez o que devia fazer. Não estava pronta, nem era para estar pronta. O time nacional só pode chegar a seu apogeu no México. Lá, sim, é que deve alcançar o seu nível ideal, o seu rendimento absoluto. Será uma tragédia se, antes, por uma fu-

nesta antecipação, chegar à plenitude. Assim mesmo, conseguimos a classificação em goleadas flamejantes. E mais: – ganhamos dos ingleses campeões do mundo com olé. Eis a verdade: – há muito tempo que as hienas estão fazendo toda a meticulosa montagem da catástrofe. Eu sempre disse que os piores inimigos da seleção estavam aqui e não lá fora. Cada entrevista que João concedia, cavava um abismo. Cada pergunta que lhe faziam tinha o veneno da víbora que matou Cleópatra. Se derrubarem o João, teremos duas vítimas: – o próprio João e o escrete.

O Globo, 18/3/1970

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O técnico João Saldanha carregado no estádio Mário Filho, o Maracanã, após a conquista do campeonato carioca de 1957 como técnico do Botafogo. Rio de Janeiro, 22/12/1957

Não creio. E digo que não creio porque Havelange nunca foi homem de duas palavras, nem duas decisões. O que ele diz é como se fosse um documento eterno. Ao mesmo tempo, a reunião de logo mais parece ser a degola de Saldanha. Mas a vantagem de escrever antes é a seguinte: – posso acreditar em Havelange até o último momento. Ainda me lembro de sua voz, de sua inflexão, de sua ardente seriedade. Conversamos no bar da tribuna de honra. A dois passos, o presidente da República tomava um cafezinho. E Havelange falava para sempre. Volto ao Saldanha. Quando começou o complô para a sua queda? Começou no justo momento em que

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PH.FOT.03459.055

Publicado em Nelson Rodrigues, A pátria de chuteiras: novas crônicas de futebol. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 145-147.


Seleção Brasileira de Futebol, durante o Hino Nacional, na Copa do Mundo de 1958. Suécia, 1958


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João Máximo

Jornalista e escritor.

Friedenreich, PH.FOT.22645.001

“El Tigre”

Quando nos falam dos primeiros tempos do futebol brasileiro, logo imaginamos dois times, 11 jogadores de cada lado, todos eles posudos, engomados, cabelos repartidos ao meio, bigodes retorcidos nas pontas, calções a bater nos joelhos, camisas de seda e botins lustrosos, correndo atrás de uma bola de atacar num campo esburacado e sem grama. Não se trata apenas de imaginação, pois as fotografias da época são testemunho eloqüente de que os nossos primeiros craques podiam ter tudo, menos pinta de craque. É preciso lembrar, porém, que Charles Miller, um paulista do Brás, mas filho de ingleses, jeito de inglês, hábitos de inglês e até sotaque de inglês, foi o introdutor do futebol entre nós. Por volta de 1884, segundo reportagem há muito publicada no Times of Brazil, Charles Miller ingressou na Banister Court School, de Southampton, e em seguida cursou vários colégios do Condado de Hampshire, onde aprendeu a jogar futebol e ganhou duas bolas de couro. De volta a São Paulo, dez anos depois, trouxe consigo uniforme completo e as duas bolas, com as quais ele próprio organizou alguns treinos na Várzea do Carmo e as primeiras partidas na chácara da família Dulley. Foram seus companheiros, nesses primeiros bate-bolas em terra brasileira, os ingleses, os filhos de ingleses e os paulistas grã-finos que freqüentavam o São Paulo Athletic Club. Depois, então, o novo esporte transformou-se no passatempo preferido da aristocracia paulistana, ganhando nos alemães do Germânia, nos estrangeiros das grandes firmas de São Paulo, nos meninos ricos do Mackenzie College e em toda a rapaziada da elite, novos e entusiasmados adeptos. Em pouco, ninguém mais pensava no sonolento cricket ou no violento rugby,

ao mesmo tempo em que o homem do povo e a gente de cor, modestamente, quase em segredo, iam imitando os ricaços e criando os primeiros times da Várzea. O futebol brasileiro, portanto, começou dividido em dois grupos, os filhos de boa família de um lado, os varzeanos humildes do outro. É claro que aqueles, pertencendo a clubes organizados, podendo importar material da Europa e contando com o apoio dos jornais, conseguiram firmar-se primeiro: promoviam torneios, programavam amistosos com as equipes que surgiam no Rio, instituíam taças e faziam seus primeiros ídolos. Charles Miller foi um deles, criador de uma jogada que, em sua homenagem, ganhou o nome de charles. O que importa dizer, sem risco de erro, é que aquela divisão retardou o aparecimento do que já se pode chamar de estilo brasileiro de jogo. Se não tivessem os pioneiros grãfinos rompido os preconceitos e aberto as portas do nosso futebol ao homem do povo, sobretudo à gente de cor, certamente não seríamos hoje bicampeões do mundo. E como essas portas custaram um pouco a ser abertas, Artur Friedenreich teve que se camuflar e entrar pela janela. Friedenreich foi contemporâneo de Charles Miller e de todos aqueles rapazes endinheirados que bateram bola na chácara dos Dulley. Logo, se fosse ele cem por cento varzeano, cem por cento do povo, cem por cento pobre e cem por cento de cor, jamais teria passado de um obscuro jogador de pelada, sem poder ser sócio do Germânia ou aluno do Mackenzie College. Se fosse, por outro lado, cem por cento de elite, cem por cento rico e cem por cento branco, filho de europeus como os outros, talvez não tivesse sido mais do que um daqueles craques sem


FUTEBOL, CINEMA E PAIXÃO

Artigo editado a partir do original publicado no livro Gigantes do futebol brasileiro, de Marcos de Castro e João Máximo. Rio de Janeiro: Lidador, 1965, p. 11-36.

pinta que as velhas fotografias registram. Mas ele foi cinqüenta por cento em tudo isso, uma espécie de meio-termo a ter acesso à turma de cima, sem deixar de ser fiel à turma de baixo. Era filho de alemão remediado com paulista pobre, de pele escura; viveu quase toda a infância entre os meninos de rua e estudou nos melhores colégios de São Paulo, inclusive no Mackenzie; veio ao mundo no nada aristocrático Bairro da Luz e muito cedo entrou para o Germânia, clube elegante da colônia alemã; era – embora magro – alto e forte como todo bom atacante de área de estilo britânico, mas tinha um jogo fino, ágil, escorregadio dos negros da Várzea. Mulato claro, cujos olhos verdes chamavam mais atenção do que a pele morena ou o cabelo crespo, foi o introdutor da finta curta, do drible manhoso, do passe improvisado, da ginga e dos floreios barrocos, de que fala Gilberto Freyre, num futebol que até então era cópia piorada do ortodoxo jogo dos ingleses. Mas é preciso notar que Friedenreich não foi grande por ser apenas uma exceção, isto é, por possuir algumas gotas de sangue negro em suas veias de craque, ou de haver crescido entre os que amam a bola com um sentimento primitivo, qualidades que, entre os tais pioneiros sem pinta, forçosamente se acentuariam. Ele seria – como de fato foi – grande em qualquer circunstância, jogando na Várzea ou nos grandes estádios, em São Paulo ou no Rio, no Brasil ou no exterior, nos tempos distantes do amadorismo ou já em plena época de profissionalismo. Sua carreira representa nada menos de 26 anos de atividade, compreendendo, portanto, várias fases do futebol brasileiro. E ele, nesses 26 anos, foi sempre o mesmo, excepcional, único, como se toda a sua vida fosse um incessante entrar pela janela,

aqui e ali, atrás de glórias que a nenhum outro caberia conquistar. Certo é que, se há imortais no futebol, Friedenreich é um deles. De Artur Friedenreich já se disse muito, ou tudo, e ainda assim parece pouco. Tentar acrescentar-lhe algo, porém, é tão difícil quanto separar, no que foi dito, o fato da lenda, o acontecido do imaginado, a realidade da fantasia. Os que se têm ocupado dele, descrevendo-lhe os grandes feitos ou traçando-lhe o perfil de craque fabuloso, nem sempre resistem à tentação de engrandecê-lo ainda mais, criando novas lendas, narrando outros episódios fantásticos em torno do seu nome, inventando estórias de causar espanto. E ele, sofrendo de arteriosclerose cerebral, vítima de repetidos lapsos de memória – a ponto de muitas vezes não se lembrar do próprio nome – já não pode confirmar ou desmentir todas as lendas. Escutava-as, apenas, em silêncio, como se fossem passadas com outra pessoa, em outras terras, em outros tempos. Conta-se, por exemplo, que Friedenreich gostava de receber uma bola no centro do campo, sair driblando todos os marcadores, até chegar à frente do gol, para então voltar pelo mesmo caminho, driblando sempre, e começar tudo de novo, zombeteiramente; mas a verdade, certamente, está com os que afirmam que ele levava o futebol muito a sério, nunca driblava além do necessário, nunca desperdiçava um gol, nunca desrespeitava um adversário. Há, também, estórias fantásticas sobre a potência do seu chute, como aquela em que ele teria matado o irmão, na cobrança de um pênalti, ao atirar-lhe a bola de encontro ao peito; mas Fried sempre achou graça no caso, não se sabe se pelo irmão que não matou ou se pelo chute que não deu. Afinal, para quem jamais perdeu um pênalti, para quem ja-

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TIGRE”

Arquivo Nacional

FRIEDENREICH, “EL

mais deu um chute mortal – embora muitos tenham sido imortais – e para quem sempre preferiu o veneno de um efeito ao chumbo de um chute forte, a estória era engraçada. Tem-se falado do medo que ele inspirava aos jogadores de outros países, uruguaios e argentinos principalmente, que viam nele uma espécie de terrível feiticeiro; mas é bom lembrar que certa vez, na Calle Rivadávia, em Buenos Aires, foi preciso chamar a polícia para livrá-lo do violento carinho da multidão, que o rasgara todo, em poucos segundos, para guardar pedaços de sua roupa. Era ídolo onde quer que fosse, embora isso não lhe trouxesse a riqueza que muitos lhe atribuem: Fried nunca foi profissional, nem de futebol, nem de frontão, esporte que lhe valeu um quase irresistível convite para se transferir a um clube do exterior. Nem tão pouco, como se pensa, teve um fim de vida difícil: morava em casa própria, dada pelo São Paulo, em 1932, e vivia da aposentadoria a que teve direito como ex-inspetor de viagem da Companhia Antártica Paulista. Seus gols, como não podia deixar de ser, também deram origem a uma infinidade de adornos, mas só alguns, poucos, ele costumava lembrar nas conversas com os amigos, quando estes falavam dos velhos tempos: o gol da final do Campeonato Sul-Americano de 1919; os sete contra o União Lapa, dez anos mais tarde, e que se constituíram em recorde que só Pelé viria quebrar; um contra o Santos, a 12 de março de 1933, o primeiro na história do profissionalismo no Brasil; e finalmente outro, em 1934, quando o Palestra Itália viu sua longa invencibilidade quebrada, na última partida da temporada, por aquele um a zero inesquecível. Se houve estórias sobre sua vida, houve também sobre a sua morte, anunciada por várias emissoras de São Paulo, durante a Revolução de 32, e deixando de luto o país inteiro. Coube à Rádio Record desmentir o boato, informando que Fried continuava firme, mais vivo do que nunca, integrando o Batalhão Esportivo. Em realidade, ele sempre

Friendenreich homenageado pela seleção carioca de futebol, década de 1930


FUTEBOL, CINEMA E PAIXÃO

gozou boa saúde, tendo sofrido apenas três contusões de certa gravidade, em toda a sua atividade no futebol: fratura do braço direito, em 1914, fratura do maxilar, em 1921, e fratura da tíbia direita, em 1929, um ano antes da Copa do Mundo. – Duro, mesmo, foi perder dois dentes naquele jogo com os ingleses. Mas há estudos sérios feitos sobre Artur Friedenreich, como o do jornalista Adriano Neiva da Mota e Silva, o De Vaney, que conseguiu completar o levantamento de todos os títulos conquistados pelo velho tigre: sete vezes campeão paulista, quatro vezes campeão brasileiro, duas vezes campeão sul-americano, 17 vezes campeão de diferentes torneios regionais, nacionais ou internacionais, 11 vezes artilheiro de Campeonatos Brasileiros, duas vezes de Campeonatos Sul-Americanos, artilheiro do Paulistano na excursão à Europa, nove vezes artilheiro de Campeonatos Paulistas. Nenhum outro jogador no futebol sul-americano alcançou, até hoje, o número de gols por ele conquistados, desde sua primeira partida oficial: 1.329 gols registrados pela CBD, reconhecidos pela Fifa e admirados por várias gerações do futebol brasileiro. Mesmo nos dez últimos anos de seu convívio com a bola – desde que voltou da Europa com o Paulistano até embaular definitivamente as chuteiras, para então se transformar em juiz de futebol – Friedenreich não chegou a conhecer a decadência. Voltou a ser campeão pelo Paulistano em 1926 e 1927, integrou, muitas outras vezes, as seleções paulista e brasileira, desta se despedindo num amistoso com o River Plate, em 1935, aos 43 anos de idade. Foi ele um dos fundadores do atual São Paulo; resultado da fusão do antigo Palmeiras com o Paulistano, cujos dirigentes, em 1930, resolveram acabar com a seção de futebol no clube. No São Paulo, sempre se destacando como artilheiro, ajudaria o novo clube a conquistar seu primeiro título de campeão paulista, em 1931. Suas últimas partidas foram disputadas pelo Flamengo – espécie de homenagem à torcida carioca – e não passaram de três amistosos com equipes do Rio mesmo. Só depois, muito depois, quando a geração de Leônidas da Silva e Domingos da Guia ia

dando lugar à geração de Zizinho e Jair, começaram a esquecer o craque, embora seu nome perdurasse e viesse até a geração de Pelé. Tempos atrás, um jornal de São Paulo noticiou um fato ocorrido no Mercado Municipal, onde um homem de idade, alto, magro, encostado a uma pilastra, atraía a atenção de um grupo de meninos que por ali passava. – Saibam vocês, que eu, quando moço, era um craque respeitado. Os meninos não acreditavam nos dribles, nos passes, nos gols que o homem dizia haver marcado, tantos anos antes, e começaram a rir, supondo tratar-se de um velho faroleiro, caduco, tristemente abandonado pelas ruas. – Quando me viam, fosse onde fosse, logo gritavam meu nome. – E qual é o seu nome? – perguntou um dos meninos. O homem, até então falando com desembaraço, calou-se por um instante, enrugou a testa, baixou a cabeça: não se lembrava. Os meninos continuavam rindo, cada vez mais, agora provocando aquele estranho autor de dribles, passes e gols imaginários. Insistiram para que outros casos, outros feitos fossem contados. – Um dia – prosseguiu o homem – eu fiz um gol que deu ao Brasil o título de campeão sulamericano. Foi uma festa bonita, bonita... Os meninos redobraram o riso, até que apareceu outro homem, também de idade, atraído pela alegria da platéia improvisada, e reconheceu Friedenreich na figura daquele ídolo desgastado pelo tempo. – Então vocês não sabem quem é ele? É Friedenreich, o grande Friedenreich – e tratou de afastá-lo da garotada inquieta. Sim, era Friedenreich, El Tigre, o primeiro rei do nosso futebol, deus dos velhos estádios, pioneiro, ídolo de muitas gerações, homem e fábula, menino nascido na esquina das ruas Vitória e do Triunfo, craque cuja vida inteira fora um eterno fazer ponto naquela esquina – esquina da vitória e do triunfo. Os meninos sabiam, ficaram sérios, pregaram os olhos no homem que se afastava e nada mais disseram. Era como se estivessem vendo Pelé daqui a muitos anos.

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Nelson Rodrigues

Dramaturgo, escritor e jornalista.

O maior goleiro do mundo*

Amigos, cada geração devia ter um Mário Filho, ou seja, um homem de larga evocação homérica. E, então, eis o que aconteceria maravilhosamente: – a história de uma geração passaria a outra geração, assim como a chama do círio passa a outro círio. Mas Mário Filho morreu e não ouvimos mais os grandes cantos do futebol. Já não sei por que estou dizendo tudo isto. Agora me lembro: – eu ia falar de uma conversa que tive, outro dia, com uma das maiores figuras do futebol brasileiro de todos os tempos: Marcos de Mendonça. Ele deixou os clássicos e as peladas muito antes do profissionalismo. Como se sabe, o futebol amador era outro futebol, como era outro o Brasil e outro o mundo. Se não me engano, Marcos começou antes da Primeira Grande Guerra Mundial. Os táxis de Paris ganhavam a batalha do Marne, e o nosso Marcos, aqui, tornava-se o maior goleiro do Brasil. Dizer do Brasil não seria o bastante. Creio não errar afirmando que ele, em certo momento, foi o maior goleiro do mundo. En-

quanto, em Paris e outras capitais européias, Mata-Hari ia ateando paixões e suicídios, o “Fitinha Roxa” fechava o gol, no Rio. Sabem como ele treinava? Em casa, seu irmão Fábio atirava laranjas que Marcos defendia. Não passava uma. E o mundo pegando fogo. Os jornais do mundo afirmavam que os alemães tiravam os olhos dos prisioneiros, com o dedo em gancho. Apareciam, na revista Eu Sei Tudo, batalhões de cegos aliados. Foi em 17 que o Fluminense partiu para o tricampeonato. Em 18, enquanto toda a cidade morria de Espanhola, com Marcos no gol o Fluminense foi campeão pela segunda vez. Quem não morreu na peste? Em 19, foi o terceiro ano. Não havia um tricampeão no Rio. Disposto ao esforço total, o Fluminense começa vencendo. Mas enquanto o tricolor ganhava de um lado, o Flamengo ganhava de outro lado. Finalmente, o título ficou para ser decidido numa última partida entre Fluminense x Flamengo. Desta vez, toda a cidade tremeu. Era então presidente da República Epitácio Pessoa. Ninguém

* Fluminense 4 x 0 Flamengo, 21/12/1919, pelo Campeonato Carioca. Fluminense tricampeão.

com mais pose presidencial. E Epitácio era desses que nem sabem quem é a bola. Também ele foi suscetível à magia do jogo. Convidado, compareceu. Mário Filho contou isso muito melhor do que o faço aqui. Se não me engano Tota Rodrigues arranjou um canhão e o colocou na barreira tricolor. Caso o Fluminense ganhasse, o canhão daria seus tiros de pólvora seca. Mas pergunto: – sabem quem decidiu a final? Marcos de Mendonça. Explico por quê. Nos primeiros momentos, o juiz marca pênalti contra o tricolor. Vejam bem: – um pênalti que absolutamente não houve. A torcida gelou, os nossos jogadores gelaram. Se a bola entrasse, o rubro-negro ia reinar na batalha. Marcos está em cima da chamada linha fatal. Um beque rubro-negro vai cobrar a penalidade máxima. No meio de um silêncio ensurdecedor, o adversário corre e atira. Marcos defende. Larga, porém. O beque atira novamente. Nova defesa de Marcos. O mesmo adversário atira, novamente. Desta vez, o formidável goleiro defendeu e agarrou.


FUTEBOL, CINEMA E PAIXÃO

O canhão do Tota Rodrigues começou a dar tiros fora de tempo. Epitácio Pessoa vira-se e pergunta: – “Já é o Forte?”. O ajudante-de-ordens informa: – “Excelência, o Forte é em 1922”. O presidente inventa um pigarro: – “Ainda bem, ainda bem”. Fez as contas nos dedos: – faltavam dois anos e meio para os Dezoito do Forte. Mas como dizia, defendendo um pênalti indecoroso, Marcos ganhou o jogo. Depois das três defesas consecutivas, o Fluminense se tornou imbatível. Era o time dos times. Ouçam: – Marcos, Vidal e Chico Netto; Laís, Osvaldo e Fortes; Mano, Zezé, Welfare, Machado e Bacchi. Diga-se que Marcos, Vidal e Chico Netto formavam o triângulo de ouro. Era, sim, o maior time brasileiro. Eu estava falando de Marcos. Pois é. Diria eu que ele foi o primeiro jogador moderno de sua posição. Muitos outros continuavam na pré-história, ao passo que Marcos já era um goleiro histórico.

O Globo, 29/3/1975

Com 1,87m de altura, Marcos Carneiro de Mendonça foi o primeiro goleiro da Seleção Brasileira e, até os dias atuais o goleiro mais jovem da nossa Seleção. Aos 19 anos defendeu o seu primeiro jogo nesta condição, contra o Exeter City, da Inglaterra, em 21/7/1914, o que fez como goleiro titular por nove anos, conquistando os campeonatos sul-americanos de 1919 e 1922. Começou a jogar em 1908 no Hadock Lobo, que posteriomente se fundiu com o América; entre 1914 e 1922 foi goleiro do Fluminense e, neste período, sagrou-se tricampeão carioca em 1917, 1918 e 1919. Rio de Janeiro, 1920

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Biblioteca Nacional/Álbum Marcos Carneiro de Mendonça

Publicado em Nelson Rodrigues, A pátria em chuteiras: novas crônicas de futebol. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 174-176.


João Máximo e Marcos de Castro

Jornalistas.

Nilton Santos,

Nilton Santos comemora com Pelé a conquista da Copa do Mundo de 1962, na partida em que o Brasil venceu a então Tchecoslováquia por 3 x 1 no Estádio Nacional. Santiago, Chile, 17/6/1962

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a enciclopédia


FUTEBOL, CINEMA E PAIXÃO

Artigo editado a partir do original publicado no livro Gigantes do futebol brasileiro, de João Máximo e Marcos de Castro. Rio de Janeiro: Lidador, 1965, p. 251-274.

Havia terminado o primeiro tempo de uma partida que Botafogo e River Plate disputavam no México, por um daqueles pentagonais de princípio de ano, quando Nestor Rossi ficou muito impressionado com o aspecto do seu companheiro Vairo: uniforme sujo de lama, camisa molhada de suor, cabelos desgrenhados, meias arriadas, fisionomia abatida, tudo por causa dos dribles que lhe aplicara Garrincha pela lateral da área. No vestiário, Nestor Rossi ficou pensando no que poderia dizer a Vairo para devolver-lhe o fôlego, o ânimo, a coragem de voltar a medir-se com Garrincha no segundo tempo. Depois, já no campo, chamou o companheiro a um canto: – Você está vendo aquele jogador ali? Vairo pôs os olhos no zagueiro do Botafogo, um tipo alto, forte, de uniforme limpo, meias lá em cima, tranqüilo como se só agora a partida fosse começar. Enquanto Vairo olhava, Nestor Rossi prosseguiu: – Chama-se Nilton Santos e é beque esquerdo como você. Pois vá lá perto, passe a mão nas pernas dele, que o seu jogo logo melhora. Vá, ande, que o futebol de todos os beques do mundo está ali naquelas pernas. O episódio, que Armando Nogueira conta no livro Drama e glória dos bicampeões, pode parecer absurdo se lembrarmos como os argentinos são econômicos quando se trata de elogiar um brasileiro. Pode parecer absurdo, ainda, se um dia vimos jogar Nestor Rossi, dono de um futebol extraordinário e um dos maiores centromédios do mundo, em todas as épocas. Mas nada tem de absurdo e chega a ser simples fato de rotina, se guardarmos apenas que Nilton Santos, o mais perfeito jogador de defesa que o Brasil conheceu, é o seu principal personagem.

Contar a história de Nilton Santos é tão difícil quanto dar uma exata dimensão dos últimos vinte anos do futebol brasileiro, desde os últimos tempos de Leônidas da Silva ao apogeu de Pelé, que são também os vinte anos de futebol de Nilton Santos. É contar, ao mesmo tempo, a história de quatro Copas do Mundo e de tudo o que aconteceu, dentro e fora do campo, entre uma e outra. É falar um pouco de cada um dos períodos que alguém já chamou de infância, adolescência e maturidade do futebol no Brasil. É fazer, ainda, um estudo profundo de todos os estilos de zagueiro que se conhece, do nosso primeiro beque de escora, abrindo um capítulo especial para Domingos da Guia e passando pelos marcadores, apoiadores, rebatedores, dribladores e emboscadores, para se chegar, então, ao estilo que ele não criou, mas aperfeiçoou. É contar a história de um beque frustrado e temporão, que o amor à bola e a força de vontade transformaram em bicampeão mundial. E muito mais. Mas isto não é a história, e sim um pouco da história de Nilton Santos. Uma das coisas que diferem Nilton Santos dos outros é a época em que ele começou a jogar futebol. Pelo menos o futebol sério, em campo de verdade, 11 de cada lado, todo mundo de chuteira. Na Ilha do Governador, onde ele nasceu a 16 de maio de 1925, a pelada sempre foi um vício. A pelada e a praia. Natural, portanto, que se entregasse às duas coisas com entusiasmo, não se encontra, porém, fora do entusiasmo, qualquer prenúncio de craque naquela infância comum passada ao lado dos irmãos e dos pais, Pedro e Josélia dos Santos. Não era ele o primeiro a ser escolhido no par-ou-ímpar, nem era ele o responsável pela escolha. Quando mui-

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destino no futebol, destino que não adiantava contrariar, porque estava traçado antes dele vir ao mundo. Assim, foi-se aprimorando lá na frente, ganhando os elogios dos amigos e o incentivo do irmão mais moço: – Se você tiver sorte, vai acabar no Flecheiras. O Flecheiras era uma espécie de escrete da Ilha do Governador. Nilton Santos, todos os domingos, ia ver jogar aquele time afiado e cheio de gente boa, como o Ruas – um centroavante que, antes de Leônidas da Silva, fizera da bicicleta um brinquedo. Não foi preciso ter sorte para entrar no Flecheiras. Chegada a época do serviço militar, a vida de Nilton Santos mudou. Naquele tempo não havia a ponte, e a travessia de barca só compensava se fosse dia de grande jogo na cidade. Conseguiu, no entanto, ser recrutado pela Aeronáutica. Um dia, major Honório tirou-o de um aper-

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to, dava-se por satisfeito por não ganhar o meiofio. E o meio-fio, na linguagem carioca da pelada de rua, já era um sinônimo de cerca. Mas o perigo do meio-fio, Nilton Santos correu apenas no princípio, no tempo da escola pública e das calças curtas. Aos 16 anos, os amigos já lhe reconheciam a queda pelo futebol. Pena que nas peladas criasse tanto caso na hora de armar os times. Só queria jogar na frente, de atacante, driblando os beques, marcando os gols. Se concordava em ficar na defesa, era só para não discutir com o capitão do time. Começava o jogo, e logo ia avançando, avançando, até ficar onde queria. Caso, mesmo, criava quando alguém se atrevia a escalá-lo de goleiro. Aquela era uma posição destinada aos que nada sabiam fazer com os pés, e ele, bom na embaixada, no corte, no drible, não se sujeitaria ao gol. O ataque, para Nilton Santos, não era uma vocação, um temperamento – era o seu próprio

Jogadores da Seleção Brasileira, Djalma Santos, Nilton Santos, Zizinho e Didi. Rio de Janeiro, 1956


FUTEBOL, CINEMA E PAIXÃO

to e passou a torcer para que Nilton Santos se livrasse logo do cáqui e do quartel. Quando deixou a Aeronáutica, os amigos o animavam a tentar a sorte num grande clube carioca, quem sabe o Vasco, o Flamengo, o Fluminense, ou o Botafogo. Foi uma vez, num reencontro com major Honório, que Nilton Santos mudou de idéia. Major Honório conhecia o pessoal do Botafogo, era amigo de Carlito Rocha, falava das vantagens que o grande clube oferecia, dinheiro, viagens, fama, nome no jornal, possibilidade de vir a ser campeão carioca. O Botafogo era um grande clube. Nilton Santos viu isso logo no primeiro dia, quando foi apresentado a Bento Ribeiro, Carlito Rocha e Zezé Moreira. Como ele, outros, de todos os lugares, de todas as posições, de todas as idades, ali estavam para fazer experiência. Para sua surpresa, Zezé Moreira mandou-o entrar no lugar do gaúcho Ávila, centromédio titular do Botafogo. Na hora, chegou a pensar num protesto, em dizer que aquela não era a sua posição, que ele estava ali para ser experimentado como pontade-lança. Se fosse no seu tempo de pelada, criaria um caso; mas ali, num clube grande, diante de um técnico de verdade, o melhor era entrar em campo e treinar no lugar de Ávila. Depois do treino, Carlito Rocha procurou-o: – Você tem jeito, rapaz. Pode voltar amanhã. Ter jeito, para Nilton Santos, não era novidade, o que o surpreendia era ter treinado mal, fora da sua posição, quase sem passar do meio do campo, e assim mesmo ter agradado a Carlito Rocha. Assinou o seu primeiro contrato e soube que seria escalado no jogo de aspirantes com o São Cristóvão. Quando Nilton Santos soube que o técnico pretendia mantê-lo como beque esquerdo, embora como titular, sentiu-se como se estivessem querendo mudar o seu destino. Que estavam, afinal, fazendo com a sua vocação de atacante, de pontade-lança, de artilheiro? Esperou uma oportunidade para falar a sós com Carlito Rocha: – Seu Carlito, até hoje eu fiz tudo o que o senhor e seu Zezé mandaram, mas acontece que eu nunca fui jogador de defesa, não levo jeito,

não gosto. Eu queria que o senhor falasse com seu Zezé para me escalar na frente. Nilton Santos não sabia que Carlito Rocha já o considerava um dos melhores beques da cidade. Carlito Rocha tinha desses entusiasmos repentinos, mas raramente errava, sabia ver longe. Por isso, ao ouvir aquele apelo, quase protesto, resolveu usar sua autoridade de dirigente: Nilton Santos estava proibido de pensar, sequer, em trocar a defesa pelo ataque. O Botafogo foi o campeão da temporada. A dedicação de Carlito Rocha, o trabalho de Zezé Moreira, o ambiente entre os jogadores – talvez porque Heleno se fora – e até um vira-lata preto e branco, chamado Biriba, em cuja mística todos acreditavam, deram ao clube um título que ele ainda não conquistara no profissionalismo. Tudo isso no ano de estréia de Nilton Santos, já então dono de um estilo próprio. Esse estilo, que mais tarde libertaria o beque brasileiro de sua passividade, da marcação cerrada, das rebatidas a esmo, talvez tenha sido uma conseqüência do trato que desde menino ele procurou dar à bola, sonhando em ser atacante. Porque, naquele tempo, só os atacantes poderiam arriscar-se em um drible, em um passe correto, ao futebol fino e elegante, que teve em Domingos da Guia, dez anos antes de Nilton Santos, apenas uma exceção. Nilton Santos, pelo contrário, faria do seu futebol uma regra, reformularia o conceito lançado pelo velho Da Guia. E o primeiro ano de Botafogo abriu para Nilton Santos as portas da seleção brasileira, no Campeonato Sul-Americano de 1949. Depois do primeiro treino da seleção, no campo do Vasco, Flávio Costa entrou no vestiário, ar sério, pose de grande comandante. Flávio Costa aproximou-se e pegou as chuteiras de Nilton Santos. Bateu com o nó dos dedos nas travas, puxou o cadarço, pôs os olhos no bico macio. – De quem é essa chuteira, Santos? – Minha, seu Flávio. – Você, por acaso, sabe para que posição foi convocado? – Sei, seu Flávio: para beque-direito. – Pois saiba desde já que beque do meu time só usa chuteira de bico duro.

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– É o hábito, seu Flávio. Com bico duro eu não sei matar uma bola, controlar, dar um drible, um passe. Fico que nem um poste, duro também. – Olhe, Santos, é bom você ir aprendendo que beque para ser bom não precisa fazer nada disso. Basta saber marcar e rebater, mandar a bola pra frente, do jeito que ela vier. Deixe o bico macio para quem jogar no ataque e peça ao Chico outras chuteiras pra você. Nilton Santos não argumentou mais. De qualquer forma, foi mesmo com chuteiras de bico duro e alguma desconfiança que Nilton Santos estreou na seleção brasileira, a 17 de abril, no Pacaembu. O Brasil venceu a Colômbia por 5 a 0, mas Nilton Santos, embora tivesse jogado bem, não ficou satisfeito. De que adiantara anular o medíocre ponta colombiano, se ele, também ele, se anulara por marcar colado? Tinha a impressão de que a vitória era menos sua do que dos companheiros, dos dois gols de Ademir, da bicicleta que Orlando acertara em cheio, das defesas de Barbosa e até de Osvaldo Baliza, que entrara no segundo tempo. Foi a única oportunidade de Nilton Santos naquela seleção. Durante a Copa do Mundo de 1950, Nilton Santos foi apenas um torcedor privilegiado, que viu tudo de perto, na concentração, no vestiário, no fosso de um Maracanã saído da fôrma. Viu tudo sem entender nada, as vitórias tão fáceis, o fanatismo dos dirigentes, a vaidade dos cartolas, o otimismo exagerado dos companheiros e a derrota para o Uruguai. Faixas, flâmulas e medalhas fabricadas de véspera, homenagens que ele próprio recebera, sem saber porquê, como futuro campeão do mundo. Sem saber, também, que aquele fracasso livraria o futebol brasileiro de muitas coisas. A politicagem e o despotismo começariam a ceder, ninguém seria mais dono de coisa alguma. Em 1954, cheios de responsabilidade, quase com a obrigação de trazerem a Copa do Mundo para o Brasil, Nilton Santos e alguns outros jogadores embarcaram para a Suíça. O presidente da República, ao recebê-los, dias antes, no Catete, havia dito: “Se perderem, quem perderá é o Brasil; se vencerem, será do Brasil a vitória”. Portanto, não se tratava apenas de um campeonato de futebol, mas de coisa muito mais séria.

Sofrimento, mesmo, foi o adversário do Brasil nas quartas-de-final. Ele seria indicado por sorteio, talvez fosse a Hungria, que parecia dominar o mundo com o seu futebol científico, seus craques fabulosos, seus cento e tantos jogos invictos. Na Copa do Mundo mesmo, ela havia derrotado a Coréia por 9 a 0 e a Alemanha por 8 a 3; ninguém acreditava que outra equipe pudesse vencê-la. No dia em que foi feito o sorteio da Fifa, os jogadores, enquanto aguardavam, conservaram-se mudos. O exagero de alguns chega a dizer que muitos deles fizeram promessa, rezaram, pediram a ajuda dos santos: tudo, menos a Hungria. E Zezé Moreira chegou, já à noite, com a terrível notícia: – Será mesmo a Hungria. – Estamos perdidos – murmurou Rubens entre dentes. No vestiário do estádio Wankdorf, em Berna, minutos antes da partida com a Hungria, alguns bem intencionados tentaram dar coragem aos jogadores do Brasil. Sabiam que grande parte passara a noite em claro, apavorada. O Brasil fez o seu primeiro gol, tentou reagir com o coração, mas a Hungria estava firme, fez outro, mais outro, dando-nos somente a chance de um desconto, e a partida terminou com uma vitória sua por 4 a 2. Nilton Santos, também traído pelos nervos, não jogou até o fim. Havia entrado com violência em Bozsik, fora agredido por ele, revidara, seguira para o vestiário mais cedo, e o Brasil voltava pra casa. Quatro anos passariam desde a derrota na Suíça. Durante aqueles anos, Nilton Santos aprenderia a conhecer como ninguém o futebol brasileiro, os seus defeitos e qualidades, os seus segredos e absurdos, as suas possibilidades e limitações. Jogando pelo Botafogo, novamente pelas seleções carioca e brasileira e até nas peladas – as quais ele não abandonaria nunca – transformou-se, pouco a pouco, não apenas no nosso maior jogador de defesa, mas em um dos mais completos craques do futebol brasileiro. Craque no verdadeiro sentido, beirando cada vez mais a perfeição. Um locutor desportivo, numa tarde de entusiasmo pelo seu futebol, chamou-o de enciclopédia – e o termo ficou para ser usado quando se quisesse definir o futebol de Nilton Santos – beque frustrado e temporão.


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FUTEBOL, CINEMA E PAIXÃO

Da esquerda para direita: Ernani, Tomé, Nilton Santos e Servilho. Jogadores do Botafogo comemoram a vitória sobre o Fluminense por 6x2, na final do campeonato carioca de 1957. Rio de Janeiro, 22/12/1957

Durante aqueles quatro anos, ele viu, viveu e sentiu toda a evolução do futebol brasileiro – uma evolução que não bastava, porque os outros, afinal, evoluíram da mesma forma. E o futebol brasileiro, para Nilton Santos, não precisava de uma evolução dentro do campo. Que outro jogador da sua época, aqui ou lá fora, conseguira superar Zizinho? Que evolução poderia haver, em matéria de cabeça, pés e coração, depois de Zizinho? Não, também não estava ali a resposta. Faltariam técnicos? Mas, descoberto o mal, faltava o remédio. Para compensar tantas decepções, ao curso daqueles quatro anos; para amenizar um pouco o pessimismo que os insucessos seguidos fizeram nascer nele; para que aquele longo tempo não fosse um grande vazio em sua vida, Nilton Santos teria uma única alegria: voltaria a ser cam-

peão carioca, em 1957, numa partida em que o Botafogo venceu o Fluminense por 6 a 2. E aquela goleada, aquele título, aquela atuação soberba dele e de todo o time, tinham uma significação especial: reforçaram a sua crença de que o futebol brasileiro possuía uma arma capaz de superar a falta de organização e de destruir qualquer escrete húngaro – Garrincha. Talvez fosse apenas uma crença, talvez fosse mais. Assim, em 1958, a comissão técnica parecia cair do céu. Nela médico era médico; preparador físico, preparador físico; técnico, técnico. Um chefe de delegação, um supervisor, um assessor, um dentista e até um psicotécnico. Foi fácil criar o espírito de seleção, manter os jogadores unidos, treinálos, prepará-los para ganhar a Copa do Mundo. Mas tudo isso só se descobriu mais tarde. Nilton Santos, com a experiência que adquirira em dois outros mundiais, sentiu logo que as coisas estavam sendo feitas com acerto, que havia diferenças fundamentais de 1958 para 1950 e 54. Na primeira partida da Copa do Mundo, contra a Áustria, em Udevala, Nilton Santos marcou um gol. O Brasil conseguira uma vantagem de 1 a 0 no primeiro tempo e o gol de Nilton Santos, logo no princípio do segundo, deu tranqüilidade à seleção. Uma escapada pela esquerda, antes parecendo uma ousadia, seria concluída com uma tabela com Mazzola e a bola na rede. Nilton Santos sentia quando lhe era possível avançar assim, trocando a defesa pelo ataque, sem o perigo de um contragolpe. Era um modo de se ver menino novamente, um menino cheio de saúde e disposição. O Brasil venceu a Áustria por 3 a 0, mas ficou no 0 a 0 com a Inglaterra, dias depois. A seleção brasileira ainda não estava pronta para ganhar a Copa do Mundo. A partida com os ingleses mostrara que o ataque, principalmente, precisava mudar. Joel quase não avançava, preocupado com Dino, e Mazzola vivia com a cabeça cheia das liras que o Milan lhe oferecia. Nilton Santos lembrava-se do Mazzola: contra os ingleses, não fosse Bellini trazê-lo a si com dois ou três tapas, e ele teria abandonado o jogo no meio, chorando, tremendo, não se sabia por quê. Sim, a seleção precisava mudar. Mas onde? Em primeiro lugar, na pontadireita. Depois, se possível, a saída de Mazzola.

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NILTON SANTOS,

O árbitro Armando Marques em ação

Nilton Santos procurou Didi, os dois juntaram-se a Bellini e tomaram uma decisão. Pediriam a Feola para escalar Garrincha contra os soviéticos. Garrincha, quem sabe, acabaria com os soviéticos em dois tempos. Feola ouviu, paciente, a explicação de Nilton Santos. Didi e Bellini estavam ali de reforço, explicando também. Joel vinha jogando bem, tinha raça, merecia um lugar no escrete, mas não era Garrincha – Garrincha era Garrincha. Os três jogadores, vendo que Feola concordava, foram se aproveitando: Pelé também, Pelé e Garrincha, no mesmo ataque, poderiam ganhar a Copa do Mundo. Na partida com os soviéticos, entraram Garrincha e Pelé. O Brasil venceu, venceria depois o País de Gales, a França, a Suécia. Seria campeão do Mundo. O título nas mãos e no coração, já não havia perguntas a fazer, já não interessava a Nilton Santos – nem a ninguém – um estudo dos problemas do futebol brasileiro, do que faltava, do que era preciso fazer. O brasileiro sabia amar a bola. Mas era um amor que exigia equilíbrio, um certo método, um pouco de cabeça. Quando isso foi conseguido, fomos campeões do mundo. Descoberta da pólvora? Não importava mais. Em 1962, nova Copa do Mundo, nova convocação. O aparecimento do jovem Rildo e os anos que começavam a pesar-lhes nos músculos e no fôlego, haviam-no transformado em quartozagueiro do Botafogo. A seleção, porém, queriao como lateral. Para que contrariar a seleção?

Ao voltar de Santiago, como bicampeão do mundo, Nilton Santos evocou os seus 14 anos de jogador profissional: uma eternidade. Outros iam passando – como passaram aqueles meninos que torciam por ele no Flecheiras – e Nilton Santos ficava. As peladas na Ilha do Governador, o incentivo do irmão, o do major Honório, o Galeão, a bola e o mar. Carlito Rocha tirando-lhe a vocação de atacante, para fazer dele o Nilton Santos. O Botafogo. Biriba, as chuteiras de bico duro, Zizinho, a briga com Bozsik, a tarde triste da partida com a Hungria, quatro vezes campeão carioca, uma brasileiro, outra sul-americano, mais uma do RioSão Paulo, títulos aqui e ali, duas Copas do Mundo conquistadas e – acima de tudo – o amor pela bola. Não ficou triste quando a comissão técnica omitiu o seu nome numa seleção que se propunha renovar o futebol brasileiro, durante uma excursão à Europa. Não ficou triste, ainda que daquela seleção fizesse parte o Mauro, o Djalma Santos e outros veteranos. Triste ficou ao ver por terra, numa série de amistosos sem importância, tudo aquilo que ele ajudara a construir pacientemente, com sofrimento, em tantos anos de luta. Estava ficando velho. Tivera consciência disso numa partida com o Vasco, ao ver Quarentinha anulado por um beque forte, vigoroso, com futebol para qualquer preço. Ficou surpreso quando lhe disseram: – É o Brito, filho do Ruas. Ruas, o craque do Flecheiras, jogara ao seu lado. Agora, o filho era seu adversário no Maracanã. Velho ou não, era ainda um craque. O mesmo estilo elegante, a corrida firme, a perfeita noção do passe, o drible arriscado sempre executado com segurança, a bola morta mansamente entre os seus pés, a cobertura substituindo a marcação colada, os avanços arrojados em busca de um gol que faltasse. Fez muitos assim, um deles no último minuto de uma partida com o Alianza de Lima, classificando o Botafogo para a Taça Libertadores da América. E já era um velho, um velho craque. Em 16 anos, perdeu muitas vezes a cabeça, reclamou do juiz, fez faltas violentas e foi expulso de campo. Sua ficha disciplinar não serve de bom exemplo. Certa vez, no Pacaembu, reagiu contra a marcação de um pênalti contra o Bota-


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fogo. Armando Marques, o juiz, ficou furioso, ameaçou-o de expulsão, o dedo erguido, a fala de homem zangado. Nilton Santos aceitou a zanga sem aceitar o dedo: agrediu-o e saiu de campo, expulso. Naquele instante, seu único pensamento foi para o filho de nove anos, menino acostumado a ouvir dos amiguinhos coisas sobre o pai famoso. Que Carlos Eduardo jamais ouvisse alguém chamá-lo de covarde. Ia-se tornando um lugar-comum dizer que o futebol de Nilton Santos desafiava o tempo. Nada mais falso. Bem que ele, antes de o despedirem da seleção, despediu-se dela várias vezes, por conta própria, uma delas descendo de helicóptero no Maracanã, por imposição dos que queriam dar à ocasião um caráter solene. Foi obrigado, novamente, a manter entre os dentes a medalhinha de São Judas Tadeu – sua tão castigada protetora em muitos vôos para um adeus que seria apenas uma ameaça. Bem que ele, também por várias vezes, prometeu largar o futebol tão logo terminasse seu contrato com o Botafogo. Mas o clube fazia-lhe propostas excepcionais e o coração de alvinegro levava-o a adiar por mais um ou dois anos a despedida prometida. Não, o futebol de Nilton Santos não desafiava o tempo – o tempo é que desafiava o futebol de Nilton Santos e perdia para ele todos os rounds.

Um dia, porém, a vaidade de alguns dirigentes – sempre a vaidade – criou entre o craque e o Botafogo um caso sem solução: um grupo de jornalistas cariocas, a exemplo do que é feito na Europa com os velhos e eternos ídolos, idealizou uma partida em homenagem a Nilton Santos, mas o Botafogo foi contra a idéia, sem que nunca seus dirigentes conseguissem dar uma explicação convincente. Oficialmente, o clube alegava que, sendo a renda da partida para Nilton Santos, parecia que o jogador ia mal de vida, quem sabe por culpa do próprio Botafogo. A vaidade somou-se à ingratidão, não houve o tal jogo e Nilton Santos deixou o futebol para sempre. Agora, outra vez como temporão, ele pode recomeçar sua vida de atacante de área, interrompida há muitos anos, na Ilha do Governador. É um homem feliz, realizado, sem mágoas. Transformou-se em placa de bronze em Belo Horizonte, em exemplo que a Assembléia Legislativa cita para os moços de hoje, em símbolo do futebol bicampeão do mundo. É possível que, em breve, venha a dar nome a uma rua da ilha onde nasceu. No momento, de volta ao convívio com a turma do Flecheiras, pensa apenas em mostrar a Carlos Eduardo – cujo sonho de goleiro é a grande preocupação do pai – que não é preciso usar as mãos para acarinhar a bola. Os pés também servem, se forem os pés de um Nilton Santos.

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Nelson Rodrigues

Dramaturgo, escritor e jornalista.

Descoberta de Garrincha*

E eis que, pela primeira vez, um “seu” Manuel é o meu personagem da semana. Com esse nome cordial e alegre de anedota, ele tomou conta da cidade, do Brasil e, mais do que isso, da Europa. Creiam, amigos: o jogo Brasil x Rússia acabou nos três minutos iniciais. Insisto: nos primeiros três minutos da batalha, já o “seu” Manuel, já o Garrincha, tinha derrotado a colossal Rússia, com a Sibéria e tudo o mais. E notem: bastava ao Brasil um empate. Mas o meu personagem não acredita em empate e se disparou pelo campo adversário, como um tiro. Foi driblando um, driblando outro e consta inclusive que, na sua penetração fantástica, driblou até as barbas de Rasputin.

Amigos: a desintegração da defesa russa começou exatamente na primeira vez em que Garrincha tocou na bola. Eu imagino o espanto imenso dos russos diante desse garoto de pernas tortas, que vinha subverter todas as concepções do futebol europeu. Como marcar o imarcável? Como apalpar o impalpável? Na sua indignação impotente, o adversário olhava Garrincha, as pernas tortas de Garrincha e concluía: – “Isso não existe!”. E eu, como os russos, já me inclino a acreditar que, de fato, domingo Garrincha não existiu. Foi para o público internacional uma experiência inédita. Realmente, jamais se viu, num jogo de tamanha responsabilidade, um time, ou melhor, um

jogador começar a partida com um baile. Repito: – baile, sim, baile! E o que dramatiza o fato é que foi baile não contra um perna-de-pau, mas contra o time poderosíssimo da Rússia. Só um Garrincha poderia fazer isso. Porque Garrincha não acredita em ninguém e só acredita em si mesmo. Se tivesse jogado contra a Inglaterra, ele não teria dado a menor pelota para a rainha Vitória, o lord Nelson e a tradição naval do adversário. Absolutamente. Para ele, Pau Grande, que é a terra onde nasceu, vale mais do que toda a Comunidade Britânica. Com esse estado de alma, plantou-se na sua ponta para enfrentar os russos. Os outros brasileiros poderiam tremer.

* Contexto: Brasil 2 x 0 União Soviética, 15/06/1958, em Götemburgo (Suécia). A URSS era apontada como o grande fantasma da Copa por seu “futebol científico”.


FUTEBOL, CINEMA E PAIXÃO

Publicado em Nelson Rodrigues, À sombra das chuteiras imortais: crônicas de futebol. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 53-54.

dores brasileiros. Deus me livre. Por exemplo: cada gol de Vavá era um hino nacional. Na defesa, Bellini chutava até a bola. E quando, no segundo tempo, Garrincha resolveu caprichar no baile, foi um carnaval sublime. A coisa virou show de Grande Otelo. E tem razão um amigo que, ouvindo o rádio, ao meu lado, sopra-me: “Isso que o Garrincha está fazendo é pior do que xingar a mãe!”. Calculo que, a essa altura, as cinzas do czar haviam de estar humilhadíssimas. O marcador do “seu” Manuel já não era um: eram três. E, então, começou a se ouvir, aqui no Brasil, na praça da Bandeira, a gargalhada cósmica, tremenda, do público sueco. Cada vez que Garrincha pas-

sava por um, o público vinha abaixo. Mas não creiam que ele fizesse isso por mal. De modo algum. Garrincha estava ali com a mesma boafé inefável com que, em Pau Grande, vai chumbando as cambaxirras, os pardais. Via nos russos a inocência dos passarinhos. Sim: os adversários eram outros tantos passarinhos, desterrados de Pau Grande. Calculo que, lá pelas tantas, os russos, na sua raiva obtusa e inofensiva, haviam de imaginar que o único meio de destruir Garrincha era caçá-lo a pauladas. De fato, domingo, só a pauladas e talvez nem isso, amigos, talvez nem assim.

Manchete Esportiva, 21/6/1958

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Ele não e jamais. Perante a platéia internacional, era quase um menino. Tinha essa humilhante sanidade mental do garoto que caça cambaxirra com espingarda de chumbo e que, em Pau Grande, na sua cordialidade indiscriminada, cumprimenta até cachorro. Antes de começar o jogo, o seu marcador havia de olhá-lo e comentar para si mesmo, em russo: “Esse não dá pra saída!”. E, com dois minutos e meio, tínhamos enfiado na Rússia duas bolas na trave e um gol. Aqui, em toda a extensão do território nacional, começávamos a desconfiar que é bom, que é gostoso ser brasileiro. Está claro que não estou subestimando o peito dos outros joga-

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Vinicius de Moraes

Poeta.

O anjo das pernas tortas


FUTEBOL, CINEMA E PAIXÃO

Publicado em Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade (orgs.), Rio de Janeiro em prosa & verso. Rio de Janeiro: José Olympio, 1965, p. 218. Disponível em www.viniciusdemoraes.com.br.

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A um passe de Didi, Garrincha avança Colado o couro aos pés, o olhar atento Dribla um, dribla dois, depois descansa Como a medir o lance do momento.

Vem-lhe o pressentimento; ele se lança Mais rápido que o próprio pensamento Dribla mais um, mais dois; a bola trança Feliz, entre seus pés – um pé de vento!

Num só transporte a multidão contrita Em ato de morte se levanta e grita Seu uníssono canto de esperança.

Garrincha, o anjo, escuta e atende: – Goooool! É pura imagem: um G que chuta um o

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Dentro da meta, um 1. É pura dança! [1962 ]


André Andries

Jornalista e sociólogo, autor de O cinema de Humberto Mauro (Funarte, 2001).

Garrincha,

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O T .2

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.1 5 8

lendas e películas desbotadas

A história dos povos e dos indivíduos flui, muda sempre, como um curso d’água em movimento contínuo. Ninguém vive duas vezes os mesmos eventos com a mesma forma e intensidade. Por isso a imposibilidade de rever na tela e no tempo presente o legado cinebiográfico sobre Mané Garrincha, sem perceber e evidenciar as oscilações das narrativas de sua curta história esportiva, a maré que veio lentamente em contrafluxo, turvando o que ela tinha de beleza e poesia. Exatos quarenta anos separam a realização do primeiro filme de longa-metragem dedicado ao jogador, o documentário Garrincha, alegria do povo, de Joaquim Pedro de Andrade (1963) do mais recente, a ficção Garrincha, a estrela solitária, de Milton Alencar (2003). Entre os dois foi realizada quase uma dezena de curtas-metragens, que tentaram conformar a lenda de um herói que tombou combatendo nos gramados, mas cujo brilho, como numa explosão imperceptível de uma estrela nova, só chegou aos olhos dos contemporâneos quando já havia fenecido. Garrincha, alegria do povo, sendo o primeiro, fez-se um clássico e sobre ele e toda a obra documental de Joaquim Pedro, Luciana Corrêa de Araújo dedicou um alentado ensaio, “Beleza e poder: os documentários de Joaquim Pedro de Andrade”.1 Nele, confirmou a singularidade e perenidade de um filme que, à semelhança

de outros realizados pelo cineasta retratando personalidades – Manuel Bandeira, Gilberto Freyre e Antônio Francisco Lisboa –, revela um autor passional e imparcial com seus objetos de admiração e análise. A relação entre futebol e poder perpassa todo o filme. A câmera e o autor posicionam-se estrategicamente em campo. Ciente da força maior dos adversários, o cineasta veste a camisa do jogador e opta por uma tática de contra-ataques num estádio/ambiência pré-golpe militar de 1964: a meta é driblar os políticos, o clero, a polícia e os dirigentes esportivos, que representam o sistema de poder que explora à exaustão a força de trabalho do jogador-símbolo, sendo ele a personificação de um país de pernas laceradas e joelhos inchados. Joaquim Pedro, no entanto, é lírico, faz poesia nesse cenário de iniqüidades e homenageia com paixão de torcedor o ídolo que um ano antes fora consagrado como o melhor jogador da Copa do Mundo no Chile. Esse perfil de Mané Garrincha ressurge e assemelha-se ao de Antônio Francisco Lisboa, que Joaquim Pedro esculpiu para O Aleijadinho (1978), também uma homenagem a outro artista feito símbolo do afro-barroco tropical. Um e outro são focados como santos e profetas, artistas mestiçados, curvos e tortos, que espelham o drama e a emoção do (país) imperfeito. Também nessa obra o cineasta coloca-se em contra-ataque. É um inconfidente tardio quando a câmera fixa os olhos estufados dos profetas de Congonhas do Campo, perscrutando no passado possíveis respostas para as questões das inconfidências do tempo presente, alternativas ao ciclo clérigo-militar que agonizava como o Cristo cha-

1 ARAÚJO, Luciana Corrêa de. Beleza e poder: os documentários de Joaquim Pedro de Andrade. In: TEIXEIRA, Francisco Elinaldo. Documentário no Brasil: tradição e transformação. São Paulo: Summus, 2004, p. 227-259.


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gado de Aleijadinho, que o cineasta toma como símbolo do herói vitimizado. Renato Janine Ribeiro diz que na modernidade temos duas grandes versões da democracia: uma romântica e a outra marxista.2 A versão romântica do povo percebe que ele não está dado e procura criá-lo. Mesmo quando um autor de perfil romântico, como Joaquim Pedro, não pretende criar o povo, mas reconhecê-lo, o que ele se propõe a filmar é a construção de um símbolo, porque esse Garrincha/povo não existe, como todas as determinações que lhe desejamos atribuir. A lenda tem de ser inventada e capturada para que corresponda ao que conceitualmente estava predefinido. Garrincha, a estrela solitária, é uma demão que cobre com cores e cenas ainda mais dramáticas, quando não apelativas, a lenda-símbolo cuja estrela não mais reluz e o tempo desbotou. O filme de Milton Alencar não faz jus à biografia, minuciosa e solar, que Ruy Castro dedicou ao craque e sobre a qual o roteiro foi escrito. Apenas confirma uma imagem infantilizada desse Garrincha/povo que sua cinebiografia insiste em realçar, quando filma pela ponta-esquerda, e demenciar, quando ataca pela direita. Um retake lacrimogêneo e romântico do dogma rousseauniano (pureza e bondade natural) que a obra original de Joaquim Pedro pespegou à vida de Garrincha e que se estendeu e ampliou-se em outros roteiros de cineastas que lhe foram contemporâneos e se dedicaram em anos seqüentes ao mesmo personagem. Esse dogma está evidente na cena de abertura do filme de Alencar. Não é um Garrincha adulto que é posto a desfilar no carnaval sobre um carro florido, alegoria óbvia ao cortejo fúnebre que me-

ses depois o levaria em definitivo para sua Pasárgada de Pau Grande. Quem atravessa a avenida e desperta compaixão é a infância do menino-passarinho, o anjo bêbedo deambulando em campos e estádios mofinos do interior do país. É o brasileiro cordial que teve sua natureza degradada por uma sociedade formada por homens e dirigentes oportunistas, uma crônica perversa tal como a que foi descrita antes por Maurice Capovilla, em Subterrâneos do futebol (1965), em sua interpretação marxista do Garrincha/povo. O enunciado do filme é o seguinte: “o futebol faz esquecer de tudo. É o divertimento que melhor se ajusta ao brasileiro. O jogador de futebol deixa de ser um ser comum para ser um objeto de domínio público [...]. Dois jogos por semana, quatro treinos, sem descanso; quando pára é porque está doente ou machucado; a cada parada o medo aumenta, a competição é grande. Ele perde o lugar para sempre e fica esquecido...” Uma furibunda peroração a que nem os torcedores escapam: “Quanto paga o torcedor a cada jogo? Bastante, diante do pouco que ganha para enfrentar chuva e sol e derrotas. O torcedor garante o salário dos grandes artistas, sustenta os clubes e proporciona a cada jogo, renda de milhões de cruzeiros...” Aprisionado nessa gaiola, Capovilla exibe o jogador num estádio/poleiro, onde Mané Garrincha já capturado pelo alçapão da esquerda cepecista não gorjeia mais, apenas pia, é uma ave agourenta de asas, pernas e vôo curto. A glória que se proclama é uma derrota pré-anunciada. Um repertório de gols e o espasmo prazeroso dos torcedores são ali refinados numa discursiva

2 RIBEIRO, Renato Janine. Perspectivas para o Brasil. Rio de Janeiro: Fundo Nacional de Cultura, 2002.


GARRINCHA,

LENDAS E

P E L Í C U L A S. .D. E S B O T A D A S

vaniloqüência e transformados no ópio servido às massas alienadas dos estádios. Garrincha e o futebol retrancam a revolução dos aloprados de então. Garrincha, o perseguido, tomba pela marcação desleal dos adversários, e também pelo álcool, mas o bêbado é algo insuportável nesse jogo de falsas aparências e, por isso mesmo, uma realidade desprezada no roteiro. No entanto, é seu bafo de cachaça que embaça as lentes da câmera e a história, um símbolo do Brasil que o cinema da época supunha ser o de verdade. A construção e a captura de um símbolo A cinebiografia de Garrincha está vazada em fatos reais e históricos, mas foram as versões das histórias contadas pelos cronistas que o acompanharam em sua trajetória esportiva, que conformaram a lenda que suplantou a realidade. Em O homem que matou o facínora (1962), John Ford, ao fazer uma exegese sobre os heróis, mostrou que todas as lendas, todas as histórias, foram mitificadas para se tornarem parte de uma história oficial, por isto, quando a versão é mais forte que o fato, imprima-se a versão. Sandro Moreira, retratado no filme de Milton Alencar, João Saldanha, técnico do Botafogo numa época em que a equipe reunia uma constelação de estrelas, Sérgio Porto e Armando Nogueira, entre tantos outros, foram versionistas e fabulistas brilhantes em narrativas sobre a vida de Garrincha, algumas delas pontuais nessa cinebiografia do jogador. Dentre eles, Armando Nogueira se destaca, por sua colaboração em muitos roteiros, desde o filme de Joaquim Pedro até o mais recente de Milton Alencar. Na crônica “Anjo que dribla”, Garrincha “era Chaplin, esculpindo no vento uma sucessão maravilhosa de gestos cômicos; era o toureiro, inventando verônicas que a multidão saudava, cantando olé; era São Francisco de Assis, engrandecido na humildade com que sofria os pontapés do desespero”. 3

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Garrincha e Didi

Quando Garrincha abandona, enfim, o futebol e seu drama real vem à tona, o cronista e biógrafo sente que a peleja de anos para construção de um mito está perdida e, resignado, clama por penitência: “Quem sabe dele, hoje? Anda por aí acorrentado, chutando, talvez sandálias, a bola de ferro da nossa indiferença. Estátua, nome de rua, conta bancária nada lhe demos... nem uma festa para a volta olímpica no estádio que ele eternizou com a obra efêmera e imortal de seu drible pela direita. Que Deus nos perdoe o pecado de desprezar um ídolo que, pelo menos para mim, já me basta a pena de nunca mais voltar a ver nos estádios um drible de Garrincha.”

Garrincha morreu em 1983, mas Eduardo Galeano segue fabulando a versão: “Quando ele estava lá, o campo era um picadeiro de circo; a bola, um bicho amestrado; a partida, um convite à festa; incendiava os estádios louco por cachaça e por tudo que ardesse, o que fugia das concentrações, pulando pela janela, porque dos terrenos baldios longínquos o chamava alguma bola que pedia para ser jogada, alguma música que exigia ser dançada, alguma mulher que queria ser beijada.” 4

Sérgio Porto, em Bola na rede: a batalha do bi, ao descrever a campanha do Chile, faz-se de demiurgo, mas impõe restrições: “[...] não sou um locutor esportivo para ficar descrevendo o tapete verde, a tarde primaveril e outras bossas. Vou escrevendo essas páginas no correr dos jogos mesmo, na pressa de remetê-las para o Brasil. E isso é de lascar, mas a culpa é minha: não tinha nada que assinar o contrato para escrever essas páginas. Fizemos um relato que, francamente, não sabemos como saiu. Pois, como tínhamos dito, estes escritos saem diretamente da tribuna de imprensa deste estádio para o aeroporto em Santiago. E por falar em penosamente, que coisa de amargar é escrever Garriedg... isto é, Garrrinj&... não Garrincha, e sai GarR8cha.”5

3 NOGUEIRA, Armando. O homem e a bola. Porto Alegre: Globo, 1988, p. 73. 4 GALEANO, Eduardo. Futebol ao sol e à sombra. Porto Alegre: L&PM, 1995, p. 118.


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um hospital de doentes mentais, em Barbacena (MG), Garrincha partiu de Pau Grande para iniciar sua trajetória esportiva. Costa Santos, com a colaboração do escritor Lúcio Cardoso no roteiro, não sublinha, apenas sugere semelhanças no destino final desses dois personagens que tiveram origens e vidas tão distintas. É um filme sereno, disrítmico, que destoa do conjunto de filmes dedicados a Garrincha. O jogo da vida é apenas um intervalo entre o nascimento e a morte. Garrincha e Heleno dialogam nas arquibancadas vazias do antigo estádio do Botafogo, na rua General Severiano. O tema é a derrota do Brasil para o Uruguai na Copa de 1950, o futebol que se pratica nos tempos atuais:

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– Garrincha: O que houve? Morreu alguém? Onde já se viu chorar por causa de futebol? – Heleno: São uns frouxos, um bando de medrosos. Um bando de castrados. Se eu estivesse lá, o Brasil não perdia esse jogo de jeito nenhum. Eu queria ver qual era o gringo que ia gritar e dar pontapé comigo no campo. Os merdas jamais me perdoaram, tinham inveja de mim, o grande Heleno de Freitas. Porque eu era o artista do futebol, um guerreiro, o herói das tardes de domingo. – Garrincha: Meu futebol acabou e eu não posso garantir o meu sustento. Tenho de ser Garrincha até o fim.

Garrincha nasceu para o cinema num cenário de vidas secas e dragões da maldade. Adulto, foi coberto pela indumentária de um santo guerreiro. Como São Sebastião, morreu duas vezes, a derradeira num mesmo dia 20 de janeiro. Subiu aos céus, como Macunaíma, para ser uma solitária e desbotada estrela no firmamento. Mas o cinema não captou seu último drible sobre um curso d’água para alcançar a terceira margem do rio. E por lá que ele ainda vive batendo um bolão, sendo GarR8cha até um outro fim.

5 PORTO, Sérgio. Bola na rede: a batalha do bi. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1993 apud BRITO, Regina Pires de e MARQUES, José Carlos. O futebol e o riso na voz de Stanislaw: a tradição lúdica nas crônicas esportivas de Sérgio Porto. Disponível em www.heco.com.br/ensaios/o4_01, p. 27. Acesso em 29 de maio de 2008.

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Sérgio Porto escrevia filmando todos os atores daquele grandioso espetáculo e cenário, os que estavam dentro e fora da cena. O foco preferencial das narrativas de Sandro Moreira e João Saldanha era Garrincha, sendo eles os alicerces da construção e pilares que sustentaram a lenda. Sérgio vibra, mas seu alter ego, Stanislaw Ponte Preta, é um cético que glosa os colegas comunistas ao renomear o ídolo num instantâneo e primoroso poema concreto, sintético e real: GArR8cha. A festa de despedida reclamada como uma penitência por Armando Nogueira foi realizada no dia 19 de dezembro de 1973, no Maracanã, com o comparecimento de 150 mil espectadores. O jogo da gratidão (ou de expiação de culpas) foi documentado no curta O incrível Mané Garrincha, de Aécio de Andrade (1978). Tentase uma entrevista com o homenageado, mas Garrincha é tímido e apenas balbucia frases, como se lançasse passos para um ponto vazio do campo. O iluminador foca seu rosto, mas o que surge enquadrado nas telas é uma sombra mergulhada numa escuridão profunda. O narrador tenta quebrar o clima e a penumbra: “De bom temperamento, ingênuo e brincalhão, no campo Mané Garrincha se transforma no gênio do futebol. Com sua picardia, os dribles desconcertantes e os gols fantásticos, Garrincha conquistou a simpatia de todas as torcidas. Graças a Seu Mané, também conhecido como passarinho, o Brasil conquistou duas Copas do Mundo. Vítima de uma artrose no joelho, Garrincha parou de jogar há três anos.” É um melancólico final de jogo e vida. Heleno e Garrincha (1987), de Ney Costa Santos, é um curta-metragem de ficção que promove um imaginário encontro entre esses dois atletas-símbolos do Botafogo. Garrincha já está morto. Heleno também, morreu em 1958 sem saber que o Brasil se sagrara campeão na Suécia. São fantasmas que ressurgem para assombrar os vivos e chutar a memória desbotada da sociedade. Em 1954, quando Heleno de Freitas foi aprisionado numa camisa-de-força e mandado para


JosĂŠ Claudio Mattar

Editor de texto, advogado e servidor do Arquivo Nacional.

GARRINCHA, o homem que ganhou duas

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copas do mundo para o Brasil


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Em meados da década de 1960, quando eu era garoto, gostava de ficar perguntando às pessoas, aos amigos, quem era o melhor jogador de futebol do mundo, Garrincha ou Pelé? Naqueles tempos o Botafogo tinha um timaço e o Brasil vinha da conquista de duas Copas do Mundo. Essas Copas produziram dois superídolos mundiais, a ponto de se falar que eram os melhores jogadores de futebol de todos os tempos. Sobre Pelé não é preciso dizer mais nada. É consagrado o melhor do mundo, sendo confrontado atualmente apenas por Maradona. Mas, de Garrincha é preciso estar sempre lembrando, porque se não foi o melhor de todos os tempos, foi o mais fascinante jogador de futebol. E juro que não é papo de botafoguense. “Vocês se lembram de Charles Chaplin em Luzes da ribalta fazendo o número das pulgas amestradas?” Pois era assim que o cronista esportivo Nelson Rodrigues via Garrincha, um dos maiores gênios da história do futebol mundial, morto já faz 25 anos. Sua irreverência e genialidade encantam a todos até hoje. Mesmo os que confessam não gostar de futebol se dobram aos dribles do “anjo de pernas tortas”, como foi chamado pelo poeta Carlos Drummond de Andrade. Manuel Francisco dos Santos, o Mané Garrincha, nasceu em Pau Grande, no estado do Rio de Janeiro, em 1933. Antes de fascinar o mundo com seus dribles, Mané Garrincha, ou simplesmente Mané, enfrentou todas as dores da miséria. Consta que as pernas tortas foram resultado de uma poliomielite adquirida na infância. Por causa da distrofia física, os médicos acharam que ele nunca seria capaz de andar direito, tampouco jogar bola. Erraram feio. Também erraram os cartolas do Vasco e do São Cristóvão, que o dispensaram por causa das

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pernas tortas e de um desvio na coluna. Mané, então, procurou o Botafogo. Na biografia A estrela solitária, de Ruy Castro, consta que a contratação de Mané se deu por insistência do jogador Nilton Santos, que, no teste, tinha a função de marcá-lo. Tomou tanta bola entre as pernas, dribles pelo meio, por fora, que acabou saindo do campo sem entender o que estava acontecendo. “Contrata logo, pelo amor de Deus, senão eu nunca mais vou poder dormir sossegado”, disse. O já consagrado Nilton Santos foi o primeiro a sentir na pele as diabruras de Mané. Estávamos em 1953, e o sono dos marcadores de Garrincha nunca mais foi o mesmo. Logo em seguida a esse teste, o então técnico Gentil Cardoso o lançou como titular da equipe de aspirantes e Garrincha pela primeira vez vestia a camisa do Botafogo em partida oficial. Por um jogo só, porque tendo feito três gols contra o São Cristóvão foi logo promovido. Mais uma semana e estreava entre os titulares, em jogo do Botafogo contra o Bonsucesso. Botafogo 5 a 2, e Garrincha voltou a fazer três gols. Alguns dias depois, conforme relata Marcos de Castro no livro Gigantes do futebol brasileiro, uma comissão de diretores do Botafogo foi a Pau Grande convencê-lo a assinar um contrato, pois ele não quis voltar ao Rio após a primeira conversa sobre o assunto, pensando que não lhe fossem dar pelo menos o que ele ganhava na fábrica onde trabalhava: um salário mínimo. Ficou no Botafogo e não largou mais o lugar de titular da ponta-direita. Em 1956, já era famoso no país, pois seus dribles desconcertantes o transformaram numa das grandes figuras do futebol brasileiro, cujas características muito especiais e raras encantavam o torcedor, sobretudo o alegre torcedor brasileiro, que via no drible a coisa mais saborosa do futebol.


GARRINCHA,

O H O M E M Q U E G A N H O U D U A S C O P A S ...

O gramado virava o picadeiro de Mané, a bola lhe era submissa e a partida se tornava uma festa. “É aí que estava o milagre. O povo ria antes da graça, da pirueta. Ria adivinhando que Garrincha ia fazer sua grande ária, como na ópera. Como se sabe, só jogador medíocre faz futebol de primeira. O craque, o virtuoso e o estilista prendem a bola. Sim, ele cultiva a bola como uma orquídea de luxo”, afirmava Nelson Rodrigues. Os dribles de Garrincha não tomavam conhecimento do adversário. Fosse quem fosse, o marcador era sempre algum “João” parafusado na lateral. Quando a bola estava em seus pés, todos eram iguais. Muitas vezes parecia que o craque jogava sozinho contra os onze adversários. Eles o perseguiam, lutavam em vão como touros. Mas Garrincha era um matador. Depois de driblar dois, três, quatro jogadores, colocava suas mãos na cintura e esperava. O silêncio das multidões era o prelúdio das gargalhadas. O auge da glória O craque conheceu seu auge nas Copas de 1958 e 1962. Na primeira, na Suécia, dividiu as atenções com um jovem e talentoso jogador chamado Pelé. Mas foi considerado o melhor de sua posição, a ponta-direita, e um dos melhores da Copa. Na segunda, no Chile, Garrincha foi o responsável pela conquista do bicampeonato da seleção. Nessa Copa, Pelé, já consagrado, não pôde mais jogar devido a uma contusão no segundo jogo. Na Suécia, aconteceu a consagração definitiva de Garrincha, já vislumbrada por muitos com uma certeza profética. Foi somente no terceiro jogo da Copa do Mundo de 1958 que Garrincha entrou no time titular da seleção, no memorável jogo com a Rússia, quando ele teve uma atuação desconcertante. Deixou completamente tonto o russo incumbido de marcá-lo e todos os outros que foram obrigados a se dedicar à inglória tarefa de fazer a cobertura. Os dribles de Garrincha eram inacreditáveis para os europeus. Um a um iam sendo driblados, ridicularizados na verdade, pois Garrincha era um debochado eficiente. Com esse jogo, Garrincha foi consagrado e não saiu mais do time. Até o

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Alegria do povo

fim do torneio apenas vitórias e muitos, muitos dribles de Garrincha, e finalmente a tão sonhada conquista de uma Copa do Mundo, oito anos após o famoso “desastre” de 1950 no Maracanã. A história da Copa do Mundo de 1962 no Chile é a de um craque incomparável, que ficará como legenda de todos os tempos. Marcos de Castro, no já citado livro Gigantes do futebol, assim relata aquele episódio: “Foram seis jogos em que ele foi a presença incansável, elevando a alturas nunca antes atingidas a eficiência de seu drible, drible padrão da picardia do futebol brasileiro. Do segundo em diante, quando saiu Pelé para não mais voltar, vítima da mais célebre distensão na coxa dos arquivos do futebol brasileiro, Garrincha transformou-se na esperança maior de todo o país, que via nele o único homem para manter o ritmo de uma seleção até então irresistível, mas de qualquer maneira quatro anos envelhecida em relação aos campeões de 58, na Suécia, pois os homens eram quase os mesmos. E Garrincha conduziu como ninguém aquela esperança, até fazer dela o segundo título seguido do Brasil.”

Nos jogos contra o Chile e contra a Inglaterra, em especial, Garrincha foi praticamente sozinho a glória da seleção brasileira. Na final, contra a Tchecoslováquia, Garrincha em grandes lances com sua marca inconfundível dava, pela segunda vez seguida, um título mundial ao Brasil.


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Da glória à decadência A maior parte de sua carreira, Garrincha defendeu o Botafogo (1953 a 1965), sendo considerado pelos torcedores desse time o maior ídolo de todos os tempos, ao lado de Nilton Santos, a enciclopédia do futebol. No auge do Botafogo, os empresários estrangeiros pagavam mais para vê-lo: o time valia uma quantia sem ele, e o dobro com ele. Passou ainda pelo Corinthians (1966), Flamengo (1969) e também pelo Olaria, em 1972, quando já estava em fase decadente. Pela seleção atuou até 1966, ano em que a Inglaterra conquistou o mundial e o Brasil foi eliminado por Portugal. Se Garrincha foi chamado de “a alegria do povo”, sua vida foi marcada por muitas tragédias. No final dos anos de 1960, Mané entrou numa espiral de decadência. Seu casamento com a cantora Elza Soares, muito condenado na época, estava em declínio. Com a idade e a vida boêmia, Mané perdeu a agilidade para o futebol. Seus problemas se agravaram com o alcoolismo, que acabou levando-o à morte. Em 1982, depois de vários anos sem ser visto publicamente, um Garrincha catatônico, meio zumbi, surgiu em um carro alegórico da Mangueira, que lhe prestava homenagem naquele carnaval. Mané não conseguia nem ficar de pé para saudar a multidão que tanto lhe louvou. Uma tristeza. No ano seguinte, morreu pobre, bêbado e solitário.

Kerlon foi agredido com violência por seu marcador. O caso provocou polêmica e os arautos da mediocridade defenderam a agressão. O que esperar de um futebol cujos campeonatos são marcados pela corrupção, cartolagem, erros de arbitragem e a crescente mercantilização das grandes empresas que patrocinam campeonatos, clubes e jogadores? De campeonatos de fraco nível técnico? Infelizmente, no futebol dos “pernas-de-pau”, dos medíocres e dos “volantes”, há cada vez menos espaço para espetáculos de “pernas tortas”. Eternamente admirado, Garrincha foi homenageado com o poema O anjo de pernas tortas, de Vinícius de Moraes, o documentário Garrincha, alegria do povo, de Joaquim Pedro de Andrade, a biografia Estrela solitária, de Ruy Castro, e a crônica “Mané e o sonho”, de Carlos Drummond de Andrade: “Se há um deus que regula o futebol, esse deus é sobretudo irônico e farsante, e Garrincha foi um de seus delegados incumbidos de zombar de tudo e de todos, nos estádios. Mas, como é também um deus cruel, tirou do estonteante Garrincha a faculdade de perceber sua condição de agente divino. Foi um pobre e pequeno mortal que ajudou um país inteiro a sublimar suas tristezas. O pior é que as tristezas voltam, e não há outro Garrincha disponível. Precisa-se de um novo, que nos alimente o sonho.” (Trecho da crônica publicada no Jornal do Brasil, em 22/ 1/1983, dois dias após a morte de Garrincha.)

Certamente muitos dizem que Mané não teria espaço no futebol moderno. Lamentavelmente eles não deixam de ter uma certa razão. A alegria, a irreverência e o deboche de Garrincha nada têm a ver com o futebol técnico, mecânico, defensivo, atualmente apelidado de “futebol de resultado”, praticado por jogadores pagos a peso de ouro. E pior, uma mediocridade louvada por inúmeros jornalistas, jogadores e técnicos, chamados hoje em dia de “professores”. Mesmo assim, a sombra da irreverência de Mané tenta sobreviver, como, por exemplo, no drible da foca do cruzeirense Kerlon, que controla a bola na cabeça e segue em direção ao gol. Em um jogo contra o Atlético Mineiro, ao tentar a jogada

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Pernas tortas x perna-de-pau

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Dramaturgo, escritor e jornalista.

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Nelson Rodrigues

A realeza de Pelé* Didi e Pelé na concentração, 17/4/1962

* Santos 5 x 3 América, 25/2/1958, no Maracanã, pelo Torneio Rio–São Paulo. Foi a primeira crônica de Nelson sobre Pelé – e a primeira em que o jogador foi chamado de “rei”.


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Publicado em Nelson Rodrigues, À sombra das chuteiras imortais: crônicas de futebol. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 42-44.

e todos passam a admitir que ele seja, realmente, o maior de todas as posições. Nas pontas, nas meias e no centro, há de ser o mesmo, isto é, o incomparável Pelé. Vejam o que ele fez, outro dia, no já referido América x Santos. Enfiou, e quase sempre pelo esforço pessoal, quatro gols em Pompéia. Sozinho, liquidou a partida, liquidou o América, monopolizou o placar. Ao meu lado, um ameri-

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Depois do jogo América x Santos, seria um crime não fazer de Pelé o meu personagem da semana. Grande figura, que o meu confrade Albert Laurence chama de “o Domingos da Guia do ataque”. Examino a ficha de Pelé e tomo um susto: – dezessete anos! Há certas idades que são aberrantes, inverossímeis. Uma delas é a de Pelé. Eu, com mais de quarenta, custo a crer que alguém possa ter dezessete anos, jamais. Pois bem: – verdadeiro garoto, o meu personagem anda em campo com uma dessas autoridades irresistíveis e fatais. Dir-se-ia um rei, não sei se Lear, se imperador Jones, se etíope. Racialmente perfeito, do seu peito parecem pender mantos invisíveis. Em suma: – ponham-no em qualquer rancho e a sua majestade dinástica há de ofuscar toda a corte em derredor. O que nós chamamos de realeza é, acima de tudo, um estado de alma. E Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: – a de se sentir rei, da cabeça aos pés. Quando ele apanha a bola, e dribla um adversário, é como quem enxota, quem escorraça um plebeu ignaro e piolhento. E o meu personagem tem uma tal sensação de superioridade que não faz cerimônias. Já lhe perguntaram: – “Quem é o maior meia do mundo?”. Ele respondeu, com a ênfase das certezas eternas: – “Eu”. Insistiram: – “Qual é o maior ponta do mundo?”. E Pelé: – “Eu”. Em outro qualquer, esse desplante faria rir ou sorrir. Mas o fabuloso craque põe no que diz uma tal carga de convicção, que ninguém reage

cano doente estrebuchava: – “Vá jogar bem assim no diabo que o carregue!”. De certa feita, foi até desmoralizante. Ainda no primeiro tempo, ele recebe o couro no meio do campo. Outro qualquer teria despachado. Pelé, não. Olha para a frente e o caminho até o gol está entupido de adversários. Mas o homem resolve fazer tudo sozinho. Dribla o primeiro e o segundo. Vem-lhe ao encalço, ferozmente, o terceiro, que Pelé corta sensacionalmente. Numa palavra: – sem passar a ninguém e sem ajuda de ninguém, ele promoveu a destruição minuciosa e sádica da defesa rubra. Até que chegou um momento em que não havia mais ninguém para driblar. Não existia

uma defesa. Ou por outra: – a defesa estava indefesa. E, então, livre na área inimiga, Pelé achou que era demais driblar Pompéia e encaçapou de maneira genial e inapelável. Ora, para fazer um gol assim não basta apenas o simples e puro futebol. É preciso algo mais, ou seja, essa plenitude de confiança, de certeza, de otimismo, que faz de Pelé o craque imbatível. Quero crer que a sua maior virtude é, justamente, a imodéstia absoluta. Põese por cima de tudo e de todos. E acaba intimidando a própria bola, que vem aos seus pés com uma lambida docilidade de cadelinha. Hoje, até uma cambaxirra sabe que Pelé é imprescindível na formação de qualquer escrete. Na Suécia, ele não tremerá de ninguém. Há de olhar os húngaros, os ingleses, os russos de alto a baixo. Não se inferiorizará diante de ninguém. E é dessa atitude viril e mesmo insolente que precisamos. Sim, amigos: – aposto minha cabeça como Pelé vai achar todos os nossos adversários uns pernas-de-pau. Por que perdemos, na Suíça, para a Hungria? Examinem a fotografia de um e outro time entrando em campo. Enquanto os húngaros erguem o rosto, olham duro, empinam o peito, nós baixamos a cabeça e quase babamos de humildade. Esse flagrante, por si só, antecipa e elucida a derrota. Com Pelé no time, e outro como ele, ninguém irá para a Suécia com a alma dos vira-latas. Os outros é que tremerão diante de nós. Manchete Esportiva, 8/3/1958

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Alvanisio Damasceno

Jornalista, editor da Quartet Editora e torcedor do Fluminense.

Os imperdoáveis ou a super-humanidade dos goleiros

Barbosa, goleiro da Seleção Brasileira de Futebol na Copa de 1950. Estádio de São Januário, Rio de Janeiro, 22/8/1957

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No início do filme O ano em que meus pais saíram de férias, de Cao Hamburger, Mauro, um menino que tem sua vida toda alterada quando seus pais são obrigados a deixá-lo na casa do avô paterno para fugir da perseguição da ditadura militar, está brincando com seu jogo de futebol de botão quando lhe vem à mente um comentário do pai: “No futebol, o único que não pode falhar é o goleiro”. Em fuga desesperada, os pais de Mauro não chegam a entregar o menino ao avô, deixam-no na portaria do prédio, porque já haviam avisado ao velho que assim o fariam e sabiam que no bairro paulista do Bom Retiro, tradicional pela comunidade judaica que ali vive, não haveria qualquer perigo para o garoto. Era 1970, ano de Copa do Mundo. A vida nos traz muitas surpresas. A morte é apenas uma delas, talvez a definitiva. Mas, para os pais de Mauro, a morte era mais que esperada, seria iminente, se caíssem nas mãos da repressão. Por isso, nem pensaram que o coração do velho Mótel, o avô de Mauro (um dos últimos papéis de Paulo Autran no cinema), poderia falhar, como

falhou, e o menino começou a descobrir que seu destino lhe reservara a condição de goleiro: aquele que passa a maior parte do tempo só, esperando a hora em que o pior vai acontecer, como aconteceu com Barbosa, na Copa de 1950. O pai do menino Mauro provavelmente lera a crônica “A eternidade de Barbosa”, em que Nelson Rodrigues pontua: “Amigos, eis a verdade eterna do futebol: o único responsável é o goleiro, ao passo que os outros, todos os outros, são uns irresponsáveis natos e hereditários. Um atacante, um médio e mesmo um zagueiro podem falhar. Podem falhar e falham vinte, trinta vezes, num único jogo. Só o arqueiro tem que ser infalível. Um lapso do arqueiro pode significar um frango, um gol e, numa palavra, a derrota.” Quem não tinha nascido ainda no dia 16 de julho de 1950 pode tomar conhecimento da tragédia que ficou conhecida como maracanazo (uma referência ao bogotazo, revolta popular na capital colombiana pelo assassinato do líder político Jorge Eliécer Gaitán, em 9 de abril de 1948) fazendo uma pesquisa nos periódicos da época ou lendo a monografia de Paulo Perdigão Anatomia de uma derrota. Neste dia, cerca de 200 mil pessoas foram ao estádio construído para abrigar o triunfo do Brasil na copa do mundo de futebol assistir à final do torneio. O adversário do Brasil era o Uruguai, que goleara a fraquíssima Bolívia por 8 x 0, empatara com a Espanha em dois gols e vencera a Suécia pelo apertado placar de 3 x 2. Nada extraordinário comparado à campanha do Brasil: 4 x 0 no México; 2 x 2 com a Suíça; 2 x 0 na Iugoslávia; 7 x 1 na Suécia; e 6 x 1 na Espanha. (No jogo com a Espanha, ao quarto gol do Brasil, um Maracanã lotado de alegria e êxtase cantou “Touradas em Madri”, marcha de Braguinha e Alberto Ribeiro, sucesso do carnaval de 1938 na voz de Almirante. Faltavam três dias para a


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Partida pelo Campeonato Carioca, Flamengo 1x1 América no Maracanã. Rio de Janeiro, 16/8/1964

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final. Era muito cedo para cantar, mas ninguém ainda sabia.) A melhor campanha do Brasil lhe deu a vantagem de jogar a final pelo empate, o que aumentou a sensação do povo, dos governantes, dos jogadores e dirigentes esportivos, da imprensa, de todo mundo, de que aquela copa era nossa. Antes de começar o jogo, o general prefeito da então capital federal e responsável pela construção do estádio, Ângelo Mendes de Moraes, saudou os atletas brasileiros como campeões do mundo, e não é improvável que esse desrespeito tenha enchido de brios o time adversário. O fato é que o Brasil enfrentou um adversário difícil, tanto que o primeiro tempo do jogo acabou sem mudança no placar. Mas a euforia continuava: para a torcida, para os governantes, para os jogadores e dirigentes esportivos, para a imprensa, para todo mundo, o primeiro gol do Brasil, que abriria o caminho para a vitória, era apenas questão de tempo. Embora o empate sem gols nos desse o título, no primeiro minuto do segundo tempo do jogo o atacante Friaça marcou 1 x 0 para o Brasil, aumentando a certeza da vitória. O jogador uruguaio Obdulio Varela, calmamente, pegou a bola no fundo da rede e a levou até o meio do campo, incentivando os companheiros pelo caminho, enquanto na arquibancada a torcida brasileira delirava. O gesto do negro jefe, como o craque da celeste era chamado, que seria repetido pelo meio-campista brasileiro Didi, na Copa de 1958, parece ter surtido efeito, e, vinte minutos depois, Schiafino empatou o jogo. Tudo parecia ainda sob controle até que Ghiggia, aos 34 minutos do segundo tempo, recebeu uma bola pela direita, nas costas do zagueiro Bigode, entrou na área e, quando parecia

que cruzaria para algum companheiro, chutou direto para o gol, passando a bola entre o goleiro Barbosa e a trave. O Uruguai virava o jogo, e Barbosa inaugurava a galeria dos imperdoáveis. Os imperdoáveis O homem atrás do Bigode era sério, simples e forte. É improvável que Moacyr Barbosa Nascimento, quando começou a jogar futebol, no início dos anos 40, conhecesse o “Poema de sete faces”, em que um anjo torto diz a Drummond de Andrade “vai, Carlos, ser gauche na vida”. Mas a história de Barbosa sugere que o anjo não se limitou a vaticinar o destino dos poetas, andou também nas sombras vizinhas aos campos de várzea, onde os goleiros jogam entre traves separadas por pouco mais de sete metros. Barbosa não sabia que seu destino de goleiro estava escrito há dois mil anos e começou a jogar futebol como ponta-esquerda. Talvez não tenha entendido que ser gauche na vida era mais que ser canhoto, era ser diferente, era fazer parte de um grupo de desajustados, era freqüentar o pedaço do campo onde não crescia grama. Falamos em destino porque não sei o que fez Barbosa sair de um extremo a outro dos times de futebol, do onze ao um, tornando-se goleiro. (Deve ser por isso que, enquanto existiu o ponta-esquerda, sempre que um goleiro era expulso, era ele, o ponta-esquerda, que dava o lugar para que o goleiro reserva entrasse.) Especulações à parte, o que se sabe é que Barbosa se revelou um grande goleiro, seguro e elástico, com excelente senso de colocação e muita coragem: não hesitava em mergulhar nos pés dos ata-


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jada, mandando a bola numa direção imprevista até por ele, o goleiro só conta com a sorte. Quantas vezes não vemos os goleiros tentarem adivinhar onde o atacante vai bater um pênalti, voando em seguida naquela direção? Quando acertam, quase sempre evitam o gol; quando erram, oferecem ao atacante o outro lado e até o centro do gol livre para o arremate. “Não aparecem nem nas fotos do gol”, como dizem os comentaristas. Na tarde de 16 de julho de 1950, como revela Roberto Muylaert em livro dedicado ao goleiro, Barbosa apostou. E perdeu:

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“Fico esperando Ghiggia centrar, dou um passo à frente, ele com certeza vai fazer a jogada do primeiro gol, ele sente que estou fora, embora viesse de cabeça baixa como um touro miúra, mete o peito do pé na bola, eu ainda toco nela, crente de que foi para escanteio, [...] quando senti o silêncio total tomei coragem, olhei para trás e vi a bola de couro marrom lá dentro.”

Para a maior parte dos brasileiros, não importa muito se Ghiggia fez tudo fora dos padrões, tornando a direção do chute imprevisível e a bola indefensável. Também não importa que o time do Brasil tenha ficado pelo menos mais dez minutos em campo sem conseguir fazer mais um gol no Uruguai, o gol de empate salvador. Para a maior parte dos brasileiros, Barbosa falhou, e o Brasil perdeu uma Copa do Mundo que já estava ganha. A maior parte dos brasileiros nunca o perdoou. Em seu “Fragmentos

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cantes adversários quando era necessário. Não se pode dizer que era azarado, porque, só pelo Vasco da Gama, time que o contratou em 1945, ganhou os campeonatos cariocas de 1945, 1947, 1949, 1950, 1952 e 1958 e participou decisivamente, em 1948, da conquista do Campeonato Sul-Americano de Campeões, precursor da Copa Libertadores da América, ao defender um pênalti de Labruna, craque do River Plate da Argentina. Além disso, foi bicampeão brasileiro pela Seleção Carioca (1950) e sul-americano pela Seleção Brasileira (1949). Era, enfim, um goleiro vitorioso. E amado. Todas essas glórias foram esquecidas na tarde fatídica de 16 de julho de 1950, porque Barbosa era goleiro. Como observa o esquecido Roque Máspoli, goleiro da seleção que derrotou o Brasil em 1950, em entrevista a Paulo Guilherme, “os heróis do futebol são sempre aqueles que fazem os gols e dão a vitória para suas equipes. Ninguém lembra do pobre goleiro”. Vinte defesas inesquecíveis, milagrosas, se anulam ante um único frango, se este representar a vitória do adversário. Mauro, o menino-goleiro do filme de Hamburger, quando trocou a casa dos pais pela do avô, acabou esquecendo na primeira o goleiro do seu time. E olha que no time de dez botões o goleiro é uma caixa de fósforos! Como o menino Mauro, que se sentia esquecido pelos pais, Gilmar dos Santos Neves, goleiro do Santos e das seleções do Brasil campeãs do mundo em 1958 e 1962, compreendeu, e o revelou à revista Playboy de maio de 1990 (citada por Paulo Guilherme), que ser goleiro é viver numa solidão terrível: “Ele é um espetáculo à parte, como o primeiro bailarino de uma companhia. De certa forma, ele não tem nada a ver com os outros dez jogadores, que formam um conjunto à parte. Então, tudo o que o goleiro faz tem destaque multiplicado: quando ele pratica uma boa defesa, que é apenas um dever, pode estar salvando o time. E uma pequena falha pode ser a tragédia”. Barbosa falhou? Uma das principais características do goleiro é fazer apostas; sua maior virtude é ganhá-las. Quando ele antevê acertadamente a jogada do atacante, aumentam suas chances de evitar o gol; quando suas previsões não se concretizam, seja porque o atacante pensou outra coisa mesmo ou executou “erradamente” a jogada plane-


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de um evangelho apócrifo”, Jorge Luis Borges, sem nunca ter sido goleiro, ensina que “os atos dos homens não merecem nem o fogo nem os céus” e que “o esquecimento é o único perdão e a única vingança”. Prega no deserto: embora fosse excelente em sua posição, Barbosa talvez seja o único goleiro da história do futebol brasileiro que se tornou inesquecível. Infelizmente, não por suas defesas, não por ter sido considerado o melhor goleiro de uma Copa do Mundo, como ele foi em 1950, mas por uma falha. “Meu Deus, por que me abandonaste se sabias que eu não era Deus, se sabias que eu era fraco”, parece dizer Barbosa, ao se levantar após o segundo gol uruguaio, virar-se e se dirigir ao centro do gol, olhando para o nada.

Partida entre o Campo Grande e o Botafogo. Rio de Janeiro, 1963

O goleiro e a perda da condição humana Em seu livro Goleiros: heróis e anti-heróis da camisa 1, o jornalista Paulo Guilherme sustenta que o goleiro “simboliza a união de esperanças e angústias de milhões de pessoas que transferem para o gramado a fantasia de vitória e grandeza que lhes faltam no dia-a-dia. O futebol é um esporte coletivo: são onze jogadores em cada equipe, mas, no fundo, é dele, exclusivamente dele, o goleiro, a responsabilidade de manter esse sonho vivo”. Ser goleiro, para o autor, “é, acima de tudo, ser bravo, corajoso e auto-suficiente. É estar em constante desafio. É calar uma multidão que aguarda ansiosa a consolidação do objetivo máximo do futebol, o gol. É desafiar os mais consagrados rivais mostrando ser capaz de neutralizar toda a pompa que faz do outro o goleador das multidões, o matador, o gênio da bola”. Talvez por isso ele acorde mais cedo, seja o único a ter treinador específico, saia do treino mais tarde e esteja pronto para fraturar um dedo, levar uma bolada, fazer qualquer coisa para evitar o gol. “O goleiro está na contramão do futebol”, continua Paulo Guilherme. “Enquanto os outros dez jogadores da equipe andam em frente, com o objetivo máximo de marcar o gol, o goleiro vê todo o fluxo da partida seguindo em sua direção, como um gladiador acuado na arena.” Em seu Manual de treinamento do goleiro, o preparador físico Raul Alberto Carlesso relaciona os atributos que fazem um bom goleiro: peso proporcional,

estatura adequada, presença, elasticidade, saber saltar e cair, velocidade, habilidade, flexibilidade, treinamento, agilidade, coordenação, ritmo de jogo, reflexo, equilíbrio, força, resistência, firmeza, valentia, tranqüilidade, decisão, capacidade de atenção múltipla, golpe de vista, visão, confiança, força de vontade, responsabilidade, inteligência e sorte. Relaciona também o que o goleiro não pode ter: preocupação, medo, superstição, desdém, pânico, soberba, insegurança. Paulo Guilherme comenta que, se cumprir todas essas exigências, o cara pode ser muito mais do que um bom goleiro, pode ser um super-herói. Talvez por isso algumas personalidades internacionais, homens que mudaram o mundo com suas ações ou idéias foram goleiros, como João Paulo II, Ernesto Che Guevara, Albert Camus, Arthur Conan Doyle e Julio Iglesias; ou gostariam de ter sido, como Vladimir Nabokov, a quem Guilherme atribui a declaração: “Eu era louco para ser goleiro. Na Rússia e nos países latinos, esta arte altaneira sempre esteve cercada de um halo de fascínio singular. Distante, solitário, impassível, o grande goleiro é seguido nas ruas pela meninada em transe. Rivaliza com o toureiro e os aviadores como objeto de emocionada veneração. A camisa, o boné, as joelheiras, as luvas saltando dos bolsos da calça o distinguem do resto do time. É a águia solitária, o homem misterioso, o último defensor. Os fotógrafos se ajoelham com reverência para imortalizá-lo


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em pleno salto espetacular, desviando com a ponta dos dedos um fulminante chute rasteiro, e o estádio ruge de aprovação, enquanto ele permanece estendido onde caiu durante uns instantes, com a meta ainda intacta.”

Quem achar que Nabokov exagerou, deve lembrar que o goleiro é o único do time que tem um dia só para ele, o 26 de abril. Ao participar das comemorações desta data, em 2005, o ex-goleiro Zetti, que fez parte do grupo que ganhou a Copa do Mundo de 1994, declarou que sua condição é um eterno aprendizado, que passa equilíbrio, responsabilidade e ação não só para a profissão, mas para o homem, o ser humano. “Ser goleiro é uma filosofia de vida”, concluiu. Parece ter lido as palavras de Camus, que Paulo Guilherme também cita: “Ser goleiro é um dos trabalhos mais solitários que existem. Todas as defesas extraordinárias da história colocadas juntas não podem compensar um erro em um momento vital. Depois de muitos anos em que vivi numerosas experiências, seguramente tudo o que sei sobre moral e responsabilidade eu devo ao futebol. Aprendi que a bola nunca vem para a gente por onde se espera que venha. Isso me ajudou muito na vida, principalmente nas grandes cidades, onde as pessoas não costumam ser aquilo que a gente pensa que são.” Em 1958, o Brasil realizou alguns jogos amistosos como preparação para a Copa do Mundo que se realizaria na Suécia. Em um desses jogos, contra o clube italiano Fiorentina, Garrincha driblou vários zagueiros e o goleiro e, quando já estava na linha do gol, voltou com a bola e driblou novamente goleiro e zagueiros antes de marcar o gol. Foi chamado de maluco. No filme 1958: o ano em que o mundo descobriu o Brasil, de José Carlos Asbeg, o ponta-direita brasileiro recebe uma defesa inesperada: o goleiro italiano Sarti, que participou da jogada, diz que Garrincha não

fez uma maluquice total para quem compreende que, no futebol, o que vale é o gol e o goleiro que tenta evitá-lo, tudo o mais, inclusive a forma como o gol é feito, é “administração ordinária”. Titular do Bahia em 2005, o goleiro Márcio tem uma história curiosa. Ele é a terceira geração de goleiros na família: “Começou com meu avô, Esmeraldo, goleiro do Bahia na década de 60; depois com meu pai, Carlos Memera, no Vitória, nos anos 80, e agora eu, no Bahia, no século XXI. No meu caso, acho que é genética, herança de família”, lembra Márcio. As três gerações de Márcio sentiram na pele o que é perder a condição humana: errar é humano, mas ao goleiro o erro não é permitido. O complexo de vira-latas A derrota do Brasil em 1950 sepultou qualquer resquício de auto-estima dos brasileiros. Aquarela do Brasil e Carmen Miranda já haviam conquistado o mundo, projetando o nome do Brasil no cenário internacional como um país musical, alegre e hospitaleiro, de lindas praias e natureza exuberante, mas com um mistério: não conseguia distribuir renda e era sempre citado como “o país do futuro”. Nelson Rodrigues, se não desvendou, chegou muito perto de desvendar o mistério, o Brasil tinha adquirido em 1950 um complexo de vira-latas. “Por ‘complexo de vira-lata’”, dizia Rodrigues, “entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo.” “O brasileiro é um narciso às avessas”, continua, “que cospe na própria imagem. Eis a verdade: não encontramos pretextos pessoais ou históricos para a auto-estima.” O pesadelo de Artur Ramos, de um país miscigenado e inepto, se realizava. De nada adiantara o elogio à miscigenação de Gilberto Freyre em Casa-grande & senzala e de Jorge Amado em Tenda dos milagres – o mulato inzoneiro estava fadado ao fracasso na economia, no esporte, na civilização. Se o país miscigenado estava fadado ao fracasso; o negro Barbosa ao opróbrio. Ao ser acusado de responsável pela derrota do Brasil, despertou o racismo escondido em algum canto da alma dos brasileiros. A partir daquele ano, virou verdade quase científica que os negros não serviam para jogar no gol. Poderiam até completar um time sem muitas pretensões, mas

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Partida entre Vasco e América pelo campeonato carioca no Maracanã. Rio de Janeiro, s/d

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uma seleção nacional que quisesse ganhar uma Copa do Mundo não poderia entregar sua cidadela inexpugnável a um atleta de cor. Grandes goleiros negros se sucederam a Barbosa. Nenhum conseguiu ganhar a confiança dos técnicos de seleção brasileira. A exceção talvez tenha sido Nelson de Jesus Silva, o Dida, que, mesmo ganhando vários títulos e sendo eleito pela Fifa em 2006 como o melhor goleiro do mundo, nunca foi uma unanimidade. Segundo Nelson Rodrigues, o Brasil perderia seu complexo de vira-lata ao conquistar a Copa do Mundo de 1958. Barbosa nunca recuperou o respeito. Barbosa: o filme “Por instantes, tive a impressão ridícula de que estavam ali para me julgar.” Albert Camus Em site da internet dedicado ao Vasco da Gama e seus ídolos, na página reservada a Barbosa, Mauro Prais cita o jornalista Armando Nogueira, que, segundo Prais, teria sentenciado: “Certamente, a criatura mais injustiçada na história do futebol brasileiro. Era um goleiro magistral. Fazia milagres, desviando de mão trocada bolas envenenadas. O gol de Ghiggia, na final da Copa de 50, caiu-lhe como uma maldição. E quanto mais vejo o lance, mais o absolvo. Aquele jogo o Brasil perdeu na véspera.” Em um dos curtas-metragens mais criativos de nossa cinematografia, Jorge Furtado e Ana Luiza Azevedo contam a história de um homem que, em 1988, recorre a uma máquina do tempo para tentar mudar a história da final da Copa do Mundo de 1950, que assistira ao lado do pai no Maracanã. As imagens do jogo, da derrota do Brasil e o gol do Ghiggia não lhe saíam da cabeça. Título do filme: Barbosa. Baseado no conto “O dia em que o Brasil perdeu a Copa”, que Paulo Perdigão publicou inicialmente na revista Ele Ela de dezembro de 1975 e

depois incluiu no livro Anatomia de uma derrota, o filme mescla cenas reais do dia do jogo com cenas gravadas, e seu roteiro já anuncia a tragédia na epígrafe: “O homem é um ator que gagueja na sua única fala, desaparece e nunca mais é ouvido.” 11 Macbeth, Ato V, Cena 5. O filme começa com um locutor em off saudando a torcida: “Boa tarde, senhores ouvintes. Chegou o grande momento. Aqui no estádio municipal do Maracanã está reunido o maior público que já presenciou uma peleja de futebol. O empate é suficiente para o Brasil sagrar-se campeão mundial. Mas todos nós, brasileiros, duzentos mil aqui no estádio e mais de cinqüenta milhões do Oiapoque ao Xuí, esperamos coroar este título com uma grande vitória frente ao Uruguai.” Convidado a se pronunciar, o prefeito da cidade, Mendes de Moraes, segue no mesmo tom: “Brasileiros!, vós que daqui a alguns minutos sereis sagrados campeões do mundo, vós que não tendes rivais em todo o planeta, vós a quem eu já saúdo como vencedores. Cumpri minha palavra construindo este estádio. Cumpram agora o seu dever, ganhando a Copa do Mundo!” O filme tem dois protagonistas, o ex-goleiro Barbosa e o personagem vivido pelo ator Antonio Fagundes, ambos contam como viram o jogo. Comecemos pelo personagem de Fagundes: “Eu estava lá. Tinha onze anos e a certeza de que todos os meus sonhos eram possíveis. O jogo final contra o Uruguai parecia apenas uma formalidade a ser cumprida antes da festa. Não houve festa. Aos trinta e quatro minutos do segundo tempo, uma bola que partiu dos pés do ponteiro Ghiggia passou no pequeno espaço entre a trave e a mão de Moacyr Barbosa. E o mundo, que me parecia fiel e submisso, revelouse naquele instante contingente e absurdo. Guardo até hoje na memória, em agressivo preto-ebranco, a imagem de Barbosa.” “Naquela hora”, é o goleiro agora que lembra, “se tivesse uma cratera ali e eu pudesse desaparecer, eu desapareceria. Aí o estádio veio abaixo, né? O estádio desmoronou em cima de mim, porque o público se silenciou e [...] Fui, fui acusado, fui acusado, fui acusado de culpado. Não adianta que isso em nada vai mudar as coisas que já aconteceram. Nós não vamos voltar ao passado.”


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Mas o homem que estava lá, o homem que ali recebeu os únicos abraços do pai em toda a vida, não consegue conviver com aquelas lembranças e volta ao passado. “Não sei ao certo se foi para mudar o destino desse homem ou se para salvar a minha própria vida que programei a máquina para aquele dia. Minha fé e minha infância foram soterradas pelo gol de Ghiggia. Eu agora iniciava uma viagem ao centro do meu pesadelo.” Talvez o que o incomodava mais fosse a consciência do complexo de vira-latas a que se referia Nelson Rodrigues: “Nos últimos trinta e oito anos se falou tanto sobre este jogo que eu não sabia mais o que vinha de minha própria memória. O que eu via agora eram duzentas mil pessoas a caminho da tragédia, confiando numa coisa tão absurda como a justiça da história. Nos próximos trinta e oito anos, entre tragédias e vitórias, aquela derrota permaneceria, como um sinal do destino, a comprovar que neste país nada vai dar certo.” Mas o pesadelo maior e mais duradouro era o de Barbosa: “Então foi isso que aconteceu: na loja, eu tava na loja, e essa senhora entrou pra comprar uma lâmpada. E eu fui atendê-la. Ela chamou o garotinho, chamou do carro, o carro tava parado na frente da loja. Chamou o garotinho e disse: ‘Olha, meu filho, foi esse homem aí que fez o Brasil chorar.’ E eu disse: ‘Ah, fui eu, minha senhora?’” Por que esse ódio, essa perseguição eterna ao goleiro do Vasco e da seleção brasileira? Saber, como

Borges e Lúcio Cardoso, que só os que amamos podem nos ferir, não ajuda muito. Outros atletas do Brasil que participaram da peleja não foram acusados, continuaram suas carreiras normalmente. Alguns foram até esquecidos. Barbosa não. O filme continua com a volta ao passado de Fagundes para resolver o seu problema e o de Barbosa. Na hora do segundo gol do Uruguai, o homem/menino grita “Barbosa!”, tentando chamar a atenção do goleiro, mas não adianta. “Eu estava lá. Tinha 11 e 49 anos. O soco que eu daria em Ghiggia, e que ficaria na história, não aconteceu. E o meu grito de desespero mal foi ouvido em meio àquele silêncio ensurdecedor. O que ficou, para a história e para mim, foi o silêncio. E a culpa.” Devemos nos sentir culpados por não esquecer Barbosa? Em 1994, ele era um homem mais triste que revoltado, mas não se conformava: “A pena máxima para crimes no Brasil é 30 anos; eu, que não cometi crime nenhum, estou condenado há 44 anos.” Moacyr Barbosa morreu em 2000, na cidade de Santos (SP). Passou cinqüenta anos de sua vida sem experimentar “a terna indiferença do mundo” a que se referiu Mersault, personagem de Camus em O estrangeiro. Mas parece ter sido sábio o bastante para rir da super-humanidade que se esperava dele e se espera de tantos goleiros, pois vem acompanhada de um sorriso sua última fala no filme de Ana Luiza Azevedo e Jorge Furtado: “Ser artista é difícil, hein?”

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Referências Sites http://www.netvasco.com.br/mauroprais/vasco/index.html http://www.portacurtas.com.br/index.asp Filmes O ano em que meus pais saíram de férias. Longa-metragem. Ficção. Direção de Cao Hamburger. Lançamento: 2006. Barbosa . Direção de Ana Luiza Azevedo e Jorge Furtado. Ficção/ documentário. Lançamento: 1988. 1958: o ano em que o mundo descobriu o Brasil. Documentário. Direção: José Carlos Asbeg. Lançamento: 2008.

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ANDRADE, Carlos Drummond de. Poema de sete faces. In: ______. Nova reunião: 19 livros de poesia. v. 1. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília: INL, 1983, p. 3. BORGES, Jorge Luis. Fragmentos de um evangelho apócrifo. In:______. O elogio da sombra. Tradução de Carlos Nejar e Alfredo Jacques. Porto Alegre: Globo, 2001. CAMUS, Albert. Estado de sítio. O estrangeiro. Traduções de Maria Jacintha e Antônio Quadros. São Paulo: Abril Cultural, 1979. CARLESSO, Raul Alberto. Manual de treinamento do goleiro. Rio de Janeiro: Palestra Edições, 1981. GUILHERME, Paulo. Goleiro: heróis e anti-heróis da camisa 1. Ilustrações de Baptistão. São Paulo: Alameda, 2006. MUYLAERT, Roberto. Barbosa: um gol faz cinqüenta anos. São Paulo: RMC, 2000. PERDIGÃO, Paulo. Anatomia de uma derrota. Porto Alegre: L & PM, 2000. RODRIGUES, Nelson. A pátria em chuteiras: novas crônicas de futebol. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.


Partida pelo Campeonato Carioca, Fluminense 2x2 Botafogo, no Maracanã. Da esquerda para a direita: Jair Marinho, Amarildo – artilheiro do campeonato – e o goleiro Castilho. Rio de Janeiro, 15/10/1961


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Paulo Mendes Campos

Escritor, poeta e jornalista.

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Botafogo e seu torcedor poeta


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Que partilhamos defeitos e qualidades comuns, não há dúvida. Nos meus torneios, quando mais preciso manter os números do placar, bobeio num lance, faço gol contra, comprometo, tal qual o Botafogo, uma difícil campanha. A mim e a ele soem acontecer sumidouros de depressão, dos quais irrompemos eventualmente para a euforia de uma tarde luminosa. Sou preto e branco também, quero dizer, me destorço para pinçar nas pontas do mesmo compasso os dualismos do mundo, não aceito o maniqueísmo do bem e do mal, antes me obstino em admitir que no branco existe o preto e no preto, o branco. Sou um menino de rua perdido na dramaticidade existencial da poesia; pois o Botafogo é um menino de rua perdido na poética dramaticidade do futebol. Há coisas que só acontecem ao Botafogo e a mim. Também a minha cidadela pode ruir ante um chute ridículo do pé direito do Escurinho. O Botafogo tem uma sede, mas esqueceu a vida social; também eu só abro os meus salões e os meus jardins à noite silenciosa. O Botafogo é de futebol e regatas; também eu sou de bola e de penosas travessias aquáticas. O Botafogo é um clube com temperamento amadorístico, mas forçado, a fim de não ser engolido pelas feras, a profissionalizar-se ao máximo; também sou cem por cento um coração amador, compelido a viver a troco de soldo. Reagimos ambos quando menos se espera; forra-nos, sem dúvida, um

estofo neurótico. Se a vida fosse lógica, o Botafogo deixaria de levar o futebol a sério, fechando suas portas; eu, se a vida fosse lógica, deixaria de levar o mundo a sério, fechando os meus olhos. O Botafogo é capaz de quebrar lanças por um companheiro injustiçado pela Federação; eu aguardo a azagaia de uma justiça geral. O Botafogo pratica em geral o 4-3-3; como eu, que me distribuo assim em campo: no arco, as mãos, feitas para proteger minha porta; na parede defensiva meus braços, meu peito aberto, meus joelhos e meus pés; no miolo apoiador, trabalho com os pulmões e o fígado; vou à ofensiva com a cabeça, a loucura e o coração. Falta um, Zagalo. Em mim, essa energia sem colocação definida é a alma, indo e vindo, indistinta, atônita, sarrafeada, dismilingüindo-se até o minuto final. O Botafogo é capaz de cometer uma injustiça brutal a um filho seu, e rasgar as vestes com as unhas do remorso; como eu. O Botafogo põe gravata e vai à macumba cuidar de seu destino; eu meto o calção de banho e vou à praia discutir com Deus. O Botafogo não se dá bem com os limites do sistema tático; tem que ser como eu, dramaticamente inventado na hora. Miguel Ângelo é botafogo, Leonardo é flamengo, Rafael é fluminense; Stendhal é botafogo, Balzac é flamengo, Flaubert é fluminense; Bach é botafogo, Beethoven é flamengo, Mozart é fluminense. Sem desfazer nos outros, é com eles que eu fico,

Miguel, Henrique, João Sebastião. Dostoiévski é botafogo, Tolstoi é flamengo (na literatura russa não há fluminense); Baudelaire é fluminense, Verlaine é flamengo, Rimbaud é botafogo; Camões não é vasco, é flamengo, Garrett é fluminense, Fernando Pessoa é botafogo. Sim, Machado de Assis é fluminense, mas no fundo, no fundo, debaixo da capa ética, Machado, um bairrista, morava onde? Laranjeiras! O Botafogo é paixão, é Brasil, é confusão; Campos Paulo Mendes é paixão, Brasil, confusão. O Botafogo conquistou um campeonato esmagando inesperadamente o Fluminense de 6 a 2; uma vez, enfrentei um dragão enorme e entrei no castelo encantado. O Botafogo, às vezes, se maltrata, como eu; o Botafogo é meio boêmio, como eu; o Botafogo sem Garrincha seria menos Botafogo, como eu; o Botafogo tem um pé em Minas Gerais, como eu; o Botafogo tem um possesso, como eu; o Botafogo é mais surpreendente do que conseqüente, como eu; ultimamente, o Botafogo anda cheio de cobras e lagartos, como eu. O Botafogo é mais abstrato do que concreto; tem folhas-secas; alterna o fervor com a indolência; às vezes, estranhamente, sai de uma derrota feia mais orgulhoso e mais botafogo do que se houvesse vencido; tudo isso, eu também. Enfim, senhoras e senhores, o Botafogo é um tanto tantã (que nem eu). E a insígnia de meu coração é também (literatura): uma estrela solitária. [1962]

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Publicado em Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade (orgs.), Rio de Janeiro em prosa & verso. Rio de Janeiro: José Olympio, 1965, p. 218-220.


Nelson Rodrigues

Dramaturgo, escritor e jornalista.

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Os irmãos Karamazov

Começo aqui a minha grave função homérica. Minha memória é um chão todo juncado de clássicos e peladas fenecidos. Antes, porém, de exumar os velhos jogos, preciso explicar toda a minha dramática relação com o Fluminense. Sou Tricolor, sempre fui Tricolor. Eu diria que já era Fluminense em vidas passadas, antes, muito antes da presente encarnação. Vejome em Aldeia Campista, garoto de pé no chão e calça furada. Teria quatro anos, se tanto. 1916. A Primeira Grande Guerra ainda matava milhares, ainda matava milhões. E como então se promovia mundialmente o bigode do Kaiser! Esse bigode era o grande assunto da caricatura, em todos os idiomas.

Para mim, moleque da rua Alegre, havia uma relação nítida e taxativa entre a guerra e o Fluminense. Seríamos campeões em 17, 18, 19. Ainda hoje, meio século depois, tenho a sensação de que a Grande Guerra trazia no ventre o tricampeonato Tricolor. Vejamos o absurdo: – a Grande Guerra seria apenas a paisagem, apenas o fundo das nossas botinadas. Enquanto morria um mundo e começava outro, eu só via o Fluminense. Quem ia ao futebol era Milton, o meu irmão mais velho. Acompanhava o Tricolor, com uma obstinação de fanático. Quando ele chegava, de noite, eu vinha correndo perguntar: – “Quem ganhou?”. E ele, tostado pelo sol dos clássicos e das peladas: – “O Fluminense!”. Era o


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Fluminense, sempre o Fluminense. Até que, um dia, não foi o Fluminense. Imagino que o leitor esteja fazendo a impaciente pergunta: “E o Flamengo?” Hoje, o Rubro-Negro, por onde vai, arrasta multidões fanatizadas. Há quem morra com o seu nome gravado no coração, a ponta de canivete. Mas eu não falei no Flamengo e explico: – o Flamengo nem sempre foi Flamengo. Cada brasileiro, vivo ou morto, já foi Flamengo por um instante, por um dia. Vale a pena voltar a 1911, ou 12, não sei. Como eu dizia, o Flamengo ainda era Fluminense. Eu disse que o Flamengo era ainda Fluminense e já retifico. Antes do futebol, o Rubro-Negro foi remo ou, melhor dizendo, foi “domingo de regatas”.

Até que, um dia, houve uma dissidência no Fluminense. Eu gostaria de saber que gesto, ou palavra, ou ódio deflagrou a crise. Imagino batebocas homicidas. E não sei quantos Tricolores saíram para fundar o Flamengo. Hoje, nos grandes jogos, o estádio Mário Filho é inundado pela multidão rubro-negra. O Flamengo tornou-se uma força da natureza e, repito, o Flamengo venta, chove, troveja, relampeja. Eis o que eu pergunto: – os gatos pingados que se reuniram, numa salinha, imaginavam as potencialidades que estavam liberando? Há um parentesco óbvio entre o Fluminense e o Flamengo. E como este se gerou no ressentimento, eu diria que os dois são os irmãos Karamazov do futebol brasileiro.

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Publicado em Nelson Rodrigues e Mário Filho, Fla-Flu... e as multidões despertaram! Organização de Oscar Maron Filho e Renato Ferreira. Rio de Janeiro: Edição Europa, 1987, p. 11-13.


Jeferson de Andrade Escritor e jornalista. Autor de, entre outros títulos, Para sempre, Flamengo (1996), romance-reportagem vencedor na categoria romance do Prêmio Programa de Bolsas-95 da Fundação Biblioteca Nacional.

Recordações em preto e vermelho

A paixão pelo seu time cresce na derrota? Parece que sim. Quando o Flamengo foi derrotado pelo América do México por 3 a 0, em pleno Maracanã, na disputa da Copa Libertadores de 2008, em derrota classificada como tragédia, imediatamente escrevi uma carta aos meus dois filhos torcedores rubronegros, avisando que dali para frente as vitórias seriam mais comemoradas. Significariam muito mais. No mesmo palco do Maracanã, houve aquela outra trágica derrota, da seleção brasileira para o Uruguai, na Copa de 1950. E em todos os jogos contra a seleção celeste aquele 2 a 1 é relembrado. Ninguém esquece. Quando o Flamengo vencer uma Libertadores, a disputa de 2008, pela derrota inesperada, será recordada. Como torcedor do Flamengo, gosto de vencer os campeonatos estaduais. Mas nenhum é mais prazeroso do que vencer o Botafogo. Muito simples. Em 1962, aos meus 15 anos de idade, saí de minha cidade, Paraguaçu, no sul de Minas Gerais, e viajei até o Rio de Janeiro para a final do carioca contra o Botafogo. Deu Garrincha, com show, 3 a 0. Era a segunda vez que via o Flamengo e a segunda derrota. Torcia desde 1955, através do rádio, pela voz de Jorge Curi, da Nacional, ou Waldir Amaral, da Globo. E o maior medo era sair de Paraguaçu, ir ao Rio para torcer num estádio pelo Mengão e sair derrotado. Por isso, escolhi Flamengo e Olaria, jogo da última rodada do campeonato de 1960. Meu tio Abel, botafoguense como o meu pai, morava no Leme. Hospedado em sua residência, ele me levou a General Severiano, campo do Botafogo por sinal, numa noite de quarta-feira, para que conhecesse de perto os ídolos Joel, Moacyr, Henrique,

Dida e Babá, um ataque de ouro do Flamengo da década de 50. Ainda tinha Jadir, Dequinha e Jordan. O jogo não valia nada nem para o Flamengo nem para o adversário, um dos últimos da tabela. Ambos longe de Fluminense e América, que disputariam em 1960 a final, título vencido pelo América. E não é que o Flamengo perdeu de 2 a 1 para o Olaria? Vi um torcedor gordo, homenzarrão, descendo a arquibancada e chorando. Repetia, cadenciado: “Perder foi humilhação.” Se para ele o jogo foi “humilhação”, que seria para um garoto do interior mineiro, sonhando o primeiro jogo, a primeira vitória? E derrota exatamente para um dos chamados times “pequenos” do campeonato, ocupando últimas colocações na tabela de classificação? Veio o segundo jogo. Novamente, derrota para o Botafogo campeão. Em 1963, retornei ao Maracanã e, com o 0 a 0, o Flamengo foi campeão na disputa com o Fluminense. Três jogos, duas derrotas e um empate, se bem que valendo título. Busco em minha memória e não consigo encontrar o quarto jogo em que vi o Flamengo atuar num estádio e sair vitorioso. Tenho vagas lembranças, jogo no campo do Independência, em Belo Horizonte, amistoso em 1966 ou 1967. Sei que em 1969 estive no Maracanã para a final contra o Fluminense e perdemos de 3 a 2. Foi então que surgiu Zico, e as recordações daí em diante são apenas de grandes vitórias. Quando me mudei de Belo Horizonte para o Rio, em 1977, afirmo que não foi apenas por motivos profissionais, mas também para acompanhar no Maracanã a trajetória vitoriosa da carreira de Zico no Flamengo. Assim, meus filhos torcedores do Flamengo se acostumaram com vi-


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tórias, cresceram cantando títulos e glórias, e, por isso, receberam a carta de advertência sobre a derrota para o América do México. Foi o coração sofrido de pai torcedor que fez o alerta e lembrou que os próximos títulos do Flamengo serão festejados com mais paixão e ardor. Para encerrar essas confissões de torcedor, gostaria de registrar duas relações pessoais com os ídolos Dida e Zico. Primeiro, a de Zico. Em 1971, escrevi um dos meus contos mais conhecidos: um homem bebe cerveja no bar do Odilon. Na ocasião, Zico ainda era uma promessa nas divisões de base do Flamengo. Mas, pelo rádio e jornais, já acompanhava sua história e me empolgava com os seus feitos, tanto quanto os inúmeros repórteres que freqüentavam a Gávea. Pensei: talvez esse menino possa vir a ser o ídolo que falta ao Flamengo desde o fim da carreira de Dida. No meu conto, havia um menino ajudante do Odilon, o dono do bar. Batizei esse personagem: Zico. Porque em todos os bares do país, na década de 60, se havia um “crioulinho”, fatalmente era chamado para o atendimento como “Pelé”. Sonhei, em 1971, que os meninos “branquinhos” de muitos bares fossem chamados de “Zico”. Em 1985, salvo engano a data, encontrei-me com Zico num colégio na Barra da Tijuca, dei-lhe de presente o meu livro com o conto e contei essa história. Já o encontro com Dida se deu em 1990 ou 1991. Dida sofreu um aneurisma cerebral, foi operado e se restabelecia num hospital no bairro de Botafogo. Certo sábado, ouço pelo rádio o boletim médico do seu estado de saúde, passava bem, já podia receber visitas, mas reclamava da ausência de amigos e, ainda, de torcedores do Flamengo.

Compreendi a dor da alma do antigo ídolo da massa rubro-negra. Dida estava só num quarto de hospital e tinha saudades dos aplausos de um Maracanã lotado. Liguei para o hospital e pedi para falar com algum familiar de Dida. Atendeu-me a esposa do craque. Expliquei-lhe que não conhecia Dida pessoalmente, era um torcedor, desejando visitá-lo, apenas. Ela quase me disse venha imediatamente, tanta emoção colocou em sua voz para demonstrar que minha visita seria importante. O telefonema foi na manhã do sábado e pela tarde fui visitá-lo. Recebido efusivamente pela esposa de Dida, percebi que minha presença ali era realmente importante. Lá já estava, também para uma visita ao Dida, um ex-jogador de futebol. E, curiosamente, não era um ex-companheiro de clube e sim de time adversário. Não me lembro qual, mas era um ex-jogador do América, exatamente o adversário do Flamengo no tricampeonato de 1955, quando Dida fez os quatro gols do nosso time e deu a vitória de 4 a 1 sobre o América. Foi o primeiro tricampeonato carioca do Maracanã para a torcida rubro-negra. A esposa de Dida me apresentou assim para ele: – Dida, esse senhor é torcedor do Flamengo. Diz que você é o ídolo dele. Veio vê-lo. Dida estava com a cabeça totalmente raspada, alguns curativos, ainda meio imobilizado na cama hospitalar. Convalescente, falava pouco e por murmúrios. Ao ouvir a explicação sobre minha presença naquele quarto de hospital, expressou-se pelos olhos. Depois, um sorriso. Vi tanta alegria e emoção em seus olhos e naquele sorriso, que percebi imediatamente: eu era ali um Maracanã lotado, eu era ali todos os torcedores do Flamengo, uma torcida inteira.

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Aldir Blanc

Compositor.

Esse cara aí Sabe esse sujeito que sai do estádio ou desliga a televisão se perguntando: “Será que nós ganhamos mesmo? Tem alguma coisa errada! Provavelmente vão descobrir que um jogador estava sem a documentação adequada ou um caso de dopping involuntário por uso de descongestionante... Ganhamos ou já entrei na fase do delírio de tanto pagar mico?” Esse cara aí é Vasco. Manja o otário que joga todas as suas esperanças em promessas de contratações de craques que estão insatisfeitos no exterior, e que almoçaram com dirigentes, acertaram tudinho pra voltar, só falta um papel dos Emirados liberando os jogadores, e depois lê nos jornais que os cobras vão mesmo é pro Flamengo? Esse cara aí é Vasco. Já viu um sujeito dizer que prefere ser desclassificado nas semifinais de um torneio porque está farto do corinho de “vice”? Esse cara aí é Vasco. Aquele malandro no boteco, olhando a cerveja com ar meditabundo, sorumbático, desconfiado, e quando você pergunta o que é que tá pegando, responde: “Nosso próximo jogo é contra o lanterna em casa. Sei não! Sei não!” Esse cara aí é Vasco. E que, apesar de todos os vexames e escândalos, da falta de dinheiro em caixa, da sede penhorada, da zaga que lembra o filme do Fellini Os palhaços, dos oito ou nove passa-foras consecutivos dados pelo arquirival, ainda acredita que o Expresso da Vitória vai voltar, e teremos um goleraço que lembre o Barbosa, uma defesa de leões, um meio-campo que não deixará saudade do lendário trio Ely do Amparo, Danilo (O Príncipe) e Jorge, e um ataque que driblará, fará gols de bicicleta depois de lençóis e não isolará a bola lá na casa do cacete ao cobrar um pênalti? Pois é, esse cara aí também é Vasco. De coração.


FUTEBOL, A IMPRENSA NO CINEMA CINEMA E PAIXテグ

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Na minha distante infância fui um apaixonado colecionador de flâmulas. Quem me iniciou nessa paixão foi meu tio Carlos Frederico Andries, agente ferroviário, que trabalhou em dezenas de pequenas cidades mineiras. De todas elas, trazia como maior troféu e lembrança uma flâmula do time local, que afixava cuidadosamente na parede de um quarto de fundos da casa de meu avô, ao qual poucos tinham acesso – exceção para este seu sobrinho, flamenguista como ele. Eram centenas, cobrindo de alto a baixo a parede. Cada flâmula rendia uma história: da cidade, das moças e do time local. De toda a sua coleção, a de que ele mais se orgulhava era uma do São Cristóvão (RJ), de cetim brilhante e com babados nas laterais, onde se lia: “São Cristóvão campeão de 1926, breve será outra vez”. Cheguei a juntar meia centena delas para desespero dos meus pais. Tempos depois, mudei de casa várias vezes, e a cada mudança, as flâmulas iam se perdendo, até que não restou nenhuma. Minto. Quando cheguei ao Rio, em 1973, trouxe uma última na bagagem, do Sport Club Juiz de Fora, onde um dia tentei ser um craque da bola. Essas lembranças me voltaram ao ver pela TV, na Copa européia, os capitães das equipes trocando flâmulas antes do início da contenda. Coisa rara nos dias atuais. Eu fui às lágrimas: eu julgo ser esta troca um ato de grande nobreza esportiva e cultural.

Djalma Santos representa o Brasil na troca de flâmulas do jogo amistoso Brasil 5 x 0 Israel, realizado na Europa. s.l., 19/5/1963

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André Andries



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