A chaga da corrupção
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Política Democrática Revista de Política e Cultura www.politicademocratica.com.br
Conselho de Redação Editor Marco Antonio T. Coelho Editor Executivo Francisco Inácio de Almeida
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Fernando Perlatto Flávio Kothe Francisco Fausto Mato Grosso Gilson Leão Gilvan Cavalcanti de Melo Hamilton Garcia José Antonio Segatto José Carlos Capinam José Cláudio Barriguelli José Monserrat Filho Lucília Garcez Luiz Carlos Azedo Luiz Carlos Bresser-Pereira Luiz Eduardo Soares Luiz Gonzaga Beluzzo Luiz Werneck Vianna Marco Aurélio Nogueira Marco Mondaini Maria Alice Rezende Martin Cézar Feijó Mércio Pereira Gomes Michel Zaidan Milton Lahuerta
Oscar D’Alva e Souza Filho Othon Jambeiro Osvaldo Evandro Carneiro Martins Paulo Afonso Francisco de Carvalho Paulo Alves de Lima Paulo Bonavides Paulo César Nascimento Paulo Fábio Dantas Neto Pedro Vicente Costa Sobrinho Ricardo Cravo Albin Ricardo Maranhão Rubem Barboza Filho Rudá Ricci Sergio Augusto de Moraes Sérgio Besserman Sinclair Mallet-Guy Guerra Socorro Ferraz Telma Lobo Ulrich Hoffmann Washington Bonfim Willame Jansen William (Billy) Mello Zander Navarro
Copyright © 2012 by Fundação Astrojildo Pereira ISSN 1518-7446 Obra da capa: Lápis de cor, 21x30cm, 1999
Ficha catalográfica Política Democrática – Revista de Política e Cultura – Brasília/DF: Fundação Astrojildo Pereira, 2012. No 33, julho/2012. 200p. CDU 32.008 (05) Os artigos publicados em Política Democrática são de responsabilidade dos respectivos autores. Podem ser livremente veiculados desde que identificada a fonte.
Política Democrática Revista de Política e Cultura Fundação Astrojildo Pereira
A chaga da corrupção
Julho/2012
Sobre a capa
O
autor das obras que compõem a capa e a contracapa desta edição é José Hamilton Suarez Claro, nascido em Salvador, Bahia, no dia 8 de outubro de 1940. Formado em Engenharia de Produção, no������������������������������������������������������ ����������������������������������������������������� Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), ��������� localiza� do na cidade paulista de São José dos Campos, considerado o mais renomado centro de referência no ensino de Engenharia do país. M�� o� rou no Recife, no início de sua vida profissional, como funcionário da Sudene, e mudou-se para São Paulo, em 1972, onde viveu até sua morte em 2001. José Hamilton, desde jovem, era um apaixonado pelas artes plás� ticas, dedicando-se integralmente à pintura e ao desenho, mas suas obras eram conhecidas apenas de seus familiares e amigos, entre os quais se encontrava Ulrich Hoffmann, um dos dirigentes da repre� sentação estadual paulista da Fundação Astrojildo Pereira. Somente no início deste novo século, é que ele – por pressão sobretudo de seus amigos – começou a planejar a sua primeira exposição, a qual foi lamentavelmente abortada com sua inesperada morte. Segundo levantamento feito, ele já havia realizado cerca de 2.300 trabalhos, entre desenhos e pinturas as mais variadas, abordando os mais diversos temas, mas se concentrando sobretudo na figura do homem, da mulher e suas várias faces. Sentimo-nos honrados pela escolha de nossa publicação, para ser o primeiro veículo a tornar pública uma pequena mostra da gi� gantesca obra deste singular homem do pincel e do lápis, acreditan� do que nossos leitores aprovarão nossa iniciativa.
Sumário
APRESENTAÇÃO
Os Editores.......................................................................................................... 07
I. TEMA DE CAPA: A CHAGA DA CORRUPÇÃO A corrupção que nos atormenta
Marco Aurélio Nogueira............................................................................................... 13
Políticos ou elites corruptas?
Luiz Carlos Bresser-Pereira........................................................................................ 23
Movimento do Ministério Público contra a corrupção
Roberto Livianu........................................................................................................... 31
Clareza e coragem contra a corrupção
Eduardo Graeff........................................................................................................... 37
O Ministério Público e a convenção da ONU de combate à corrupção
Ruszel Lima Verde Cavalcante................................................................................... 39
II. CONJUNTURA O que há de nacional na sucessão municipal
Luiz Werneck Vianna ................................................................................................. 47
As eleições de outubro: aspectos da questão municipal
Paulo Kliass................................................................................................................ 52
As mulheres e o desafio das cidades
Cleia Schiavo e Tereza Vitale...................................................................................... 58
III. OBSERVATÓRIO A esquerda petista na democracia brasileira
Luiz Sérgio Henriques................................................................................................. 69
Linguagem e história
Michel Zaidan............................................................................................................. 74
Programa Pai Presente e o ativismo judicial
Giovana Ferreira Martins Nunes Santos..................................................................... 78
IV. ECONOMIA E DESENVOLVIMENTO Onde falha o “modelo” atual?
Demetrio Carneiro da Cunha Oliveira......................................................................... 83
Combinação de esforços para o desenvolvimento econômico e social
Antonio Carlos Mendes da Rocha............................................................................... 89
Para a Economia da Cultura: foco e luz
Luiz Carlos Prestes Filho............................................................................................ 95
V. BATALHA DAS IDEIAS A mentira na política: reflexões sobre ética e ação
Edison Bariani.......................................................................................................... 103
Democracia restringida e comunicação líquida
Marco Mondaini........................................................................................................ 114
A política e sua perversão
Dimas Macedo.......................................................................................................... 123
VI. ENSAIO Razão e religião: jogos de linguagem e democracia
Rubem Barboza Filho................................................................................................ 129
VII. MUNDO Democracia na América do Sul: perguntas incômodas
Sergio Fausto............................................................................................................ 143
O imbróglio paraguaio
Marco Antonio Tavares Coelho.................................................................................. 146
VIII. VIDA CULTURAL O efeito globalizador nos horizontes da arte
Vicente de Pércia....................................................................................................... 151
Poetisas cariocas do século XXI
Maria Aparecida Rodrigues Fontes........................................................................... 157
Precisa-se de traduções
Rafael Miranda Rodrigues........................................................................................ 166
IX. MEMÓRIA A resistência política aos anos de chumbo
Armênio Guedes........................................................................................................ 175
Scliar: vida, obra e questão social
Dina Lida Kinoshita ................................................................................................. 180
XII. RESENHA Grande Sertão, segundo Dirceu Lindoso
Ivan Alves Filho........................................................................................................ 187
Bom retorno, Marx!
José Claudio Berghella............................................................................................. 190
Do PCB ao PPS, ou da renovação à nostalgia
Paulo César Nascimento........................................................................................... 196
Apresentação
E
sta edição tem, como seu tema de capa, uma das questões que hoje mais sensibilizam os chamados formadores de opinião do país. A corrupção é uma chaga antiga na vida dos povos, mas o que alenta os que a enfrentam de peito aberto é que há exemplos reais no mundo de que é possível combatê-la e derrotá-la. O crime de malversação de recurso público no Brasil se dá pelas mais diferentes formas, seja pelo contumaz desvio de dinheiro, sobretudo em obras e serviços, seja pelo empreguismo e pelo nepotismo seja pelas mais diferentes e criativas formas de usufruir benesses da máquina estatal. As principais causas da corrupção ora dominante são conheci� das: instituições frágeis, hipertrofia do Estado, burocracia e impuni� dade e, mais recentemente, a partidarização da coisa pública. O cus� to anual da corrupção brasileira, envolvendo as instâncias federal, estaduais e municipais, é estipulado em torno de R$ 82 bilhões, o que corresponde a 2,3% de todas as riquezas produzidas no país. Tais estimativas, consideradas abaixo do que efetivamente acontece, nos colocam nos primeiros lugares entre os países mais corruptos, melhor dizendo, elevam o poder público do Brasil às culminâncias entre os mais corruptos do mundo. Vejamos, rapidamente, alguns dados. Nos últimos dez anos, a Controladoria Geral da União fez auditorias em 15 mil contratos do governo federal com estados e municípios, tendo encontrado irregu� laridades em 80% deles. Nesses contratos, a cada R$ 100 roubados, apenas R$ l é descoberto e o governo conseguiu recuperar o equiva� lente a 7 centavos. Uma análise de processos por corrupção mos� trou que a probabilidade de um corrupto ser condenado é de menos de 5% e a de cumprir pena de prisão é quase zero. Outro dado es� 7
tarrecedor: o governo federal emprega 90 mil pessoas em cargos de confiança, enquanto nos Estados Unidos são 9.051 e na Grã-Breta� nha cerca de 300. Tão contemporânea e velha questão é examinada, sob seus vários ângulos, pelos cientistas políticos Marco Aurélio Nogueira e Eduardo Graeff, pelo economista e ex-ministro da República, Luiz Carlos Bresser-Pereira, assim como pelos promotores Roberto Livianu e Ruszel Lima Verde Cavalcante, o que permite ao leitor entender me� lhor essa tragédia nacional e formas de encará-la e colaborar para que ela diminua ou acabe. Mas, como é comum nesses 11 anos de atividades editoriais, te� mos também uma rica temática, nas outras seções da revista, para atender os mais diferentes gostos e exigências. Na Conjuntura, por exemplo, o cientista político Luiz Werneck Vianna nos brinda com um artigo em que identifica com argúcia e profundidade, de um lado, o conteúdo nacional da disputa municipal deste ano, e, de outro, a dialética entre forma e conteúdo na análise e deliberação do Supre� mo Tribunal Federal sobre o ‘mensalão’, segundo o ex-procurador geral da República, Antônio Fernando de Souza, “o maior caso de corrupção na história da nossa República”. Há ainda dois curiosos trabalhos, um do especialista em Políticas Públicas e Gestão Gover� namental, o economista Paulo Kliass, sobre aspectos da questão mu� nicipal a serem considerados no pleito de outubro próximo, e o outro das feministas Cleia Schiavo e Tereza Vitale a respeito das mulheres e o desafio das cidades. No Observatório, o destaque vai para o ensaísta e tradutor Luiz Sérgio Henriques que instiga os leitores a com ele polemizar em torno de “A esquerda petista na democracia brasileira”. Outras colabora� ções a suscitar interesse pelo conteúdo e pela forma de expor são a do historiador e professor Michel Zaidan que, no seu artigo “Lingua� gem e história”, faz interessante análise sobre a origem da linguagem humana nas obras de Walter Benjamin, assim como a da advogada e professora Giovana Ferreira Martins Nunes Santos, em torno do “Programa Pai Presente e o ativismo judicial”. Na Batalha das Ideias, os três estimulantes trabalhos servem tanto para reflexão individual quanto para discussões em grupos, pelo enfoque como abordam suas polêmicas teses: o sociólogo Edison Bariani disseca “A mentira na política: reflexões sobre ética e ação”; o procurador e professor de Direito Dimas Macedo escreve corajosamente sobre “A política e sua perversão” e o historiador e professor Marco Mondaini, dialogando com pensadores contemporâneos, nos provoca com “Democracia res� tringida e comunicação líquida”. 8
Na Economia e Desenvolvimento, além de uma pertinente análise do professor Demétrio Carneiro da Cunha Oliveira sobre a política econômico-financeira do governo Dilma Rousseff – em que ele põe em dúvida certas medidas operacionais da equipe do Planalto, no en� frentamento das atuais dificuldades internas e das turbulências da crise internacional – temos artigo do advogado Antonio Carlos Men� des da Rocha na defesa da combinação de esforços para o desenvol� vimento econômico e social do Brasil, bem como do pesquisador Luiz Carlos Prestes Filho a respeito da desconhecida, promissora e cres� cente Economia da Cultura. Permita-nos chamar sua atenção para o Mundo, já que ainda esta� mos vivenciando discussões constantes em torno do inesperado ato político ocorrido em nosso vizinho, o Paraguai, e que são motivo para comentários circunstanciados de Sergio Fausto, membro do Grupo de Análise de Conjuntura Internacional da USP – “Democracia na Améri� ca do Sul: perguntas incômodas”, e do advogado, escritor e ex-deputa� do federal Marco Antonio Coelho – “O imbróglio paraguaio”. Já a seção Ensaio se valoriza com o curioso trabalho do cientista político Rubem Barboza Filho, com o qual ele penetra numa área complexa e delicada “Razão e religião: jogos de linguagem e democracia”. Como estamos em processo de comemoração dos 90 anos de fun� dação do Partido Comunista no Brasil, para a seção Memória selecio� namos trecho de uma Resolução do Comitê Estadual do PCB da Gua� nabara, do ano de 1970, a respeito de momento delicado da vida brasileira, quando o regime militar implantara o AI-5, fechara o Con� gresso e aumentara a repressão sobre as forças democráticas. A pro� posta de texto do documento era do jornalista baiano e dirigente na� cional Armênio Guedes, hoje presidente de honra da nossa FAP, que, com sua conhecida lucidez, analisa os fatos e propõe rumos de ação política aberta e ampla, procurando conquistar o maior número de pessoas na busca de isolar e derrotar a ditadura, proposta bem dife� rente das forças ultraesquerdistas, que só pensavam em organizar e treinar pequenos grupos de guerrilheiros, urbanos e rurais, na pers� pectiva de derrubar o regime militar, pela força das armas, objetivan� do – quem sabe – implantar a ditadura do proletariado. Outro artigo merecedor de nossa atenção é o da professora da USP, Dina Lida Kinoshita, que nos mostra aspectos muito curiosos e desconhecidos da vida do grande escritor que foi o gaucho Moacir Scliar – morto ainda relativamente jovem, em 2011, membro de família judia, tendo como irmãos os conhecidos artista plástico Carlos e a música Esther, ambos militantes do PCB – e as relações dele com os comunistas.
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No plano mais específico da cultura, as duas seções estão domi� nadas por artigos de muita qualidade, como na Vida Cultural, o crí� tico de arte Vicente de Pércia envereda pelo polêmico caminho de discutir as implicações da globalização e da sua influência nas ma� nifestações artísticas nacionais. Já a doutora em Literatura Compa� rada, a carioca Maria Aparecida Rodrigues Fontes, faz um primeiro levantamento das poetisas que surgiram no panorama literário do Rio de Janeiro, neste início de século e de milênio, e revela algumas de suas sensibilidades. Por sua vez, o tradutor e graduado em Comu� nicação Social, Rafael Miranda Rodrigues, destaca a importância e a necessidade de tradução de obras seminais de autores clássicos lati� no-americanos, dos séculos 19 e 20 – da Argentina, Peru, Chile, Mé� xico e Cuba –, para conhecimento dos brasileiros, assim como defen� de a tradução e ampla divulgação dos nossos grandes romancistas e poetas para o castelhano. Quanto à Resenha, o historiador Ivan Al� ves Filho faz uma emocionada apreciação do estudo do nacionalmen� te conhecido intelectual alagoano Dirceu Lindoso, Grande Sertão: Os carros de boi e os índios de corso; o sociólogo e professor paulista José Cláudio Berghella, ora residindo na Itália, examina com acuida� de política a obra Bom retorno, Marx!, do professor milanês Diego Fusaro, para quem o autor de O Capital nunca esteve tão vivo com suas ideias revolucionárias como agora; e o cientista político e pro� fessor Paulo César Nascimento traça uma opinião contundente sobre a obra do historiador Ivan Alves Filho, parte dos festejos dos 90 anos do Partidão, O PCB-PPS e a cultura brasileira: Apontamentos. Boa leitura! E mande seus comentários e críticas, para melhorar� mos sempre mais nossa publicação Os Editores
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I. Tema de capa: A chaga da corrupção
Autor Marco Aurélio Nogueira
Professor de Teoria Política da Unesp, autor, dentre outros, dos livros Em defesa da política e Um Estado para a sociedade civil.
Luiz Carlos Bresser-Pereira
Professor emérito da FGV/SP, foi ministro de Ciência e Tecnologia assim como ministro da Administração e da Reforma do Estado, no governo FHC, e ministro da Fazenda, no governo Sarney. É autor, dentre outros, do livro Desenvolvimento e crise no Brasil.
Roberto Livianu
Promotor de Justiça e doutor em Direito pela USP é o vice-presidente do MPD e coordenador-geral da campanha Não Aceito Corrupção. Autor de Corrupção e Direito Penal – Um Diagnóstico da Corrupção no Brasil.
Eduardo Graeff
Cientista político e articulista de jornais e revistas de circulação nacional.
Ruszel Lima Verde Cavalcante
Promotor de Justiça do Estado do Piauí, pós-graduado em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília e mestre em Direito Internacional Econômico e Tributário pela Universidade Católica de Brasília.
A corrupção que nos atormenta
Marco Aurélio Nogueira
N
ão há dados cabais que comprovem o que quer que seja. O termo comporta significados diversos, embora esteja quase sempre reduzido à dimensão financeira. E tende a ser usado, quase como um adesivo, para qualificar (ou desqualificar) os políti� cos, sejam eles de que partido for. É assim, mas a corrupção é cada vez mais vista, pensada e per� cebida pelos cidadãos como um problema de larga escala, que não sai de cena e parece crescer a cada dia. Isso em que pesem a categó� rica condenação que sofre da opinião pública, as punições exempla� res que ocorrem e os esforços generalizados que governos, políticos e gestores fazem para debelá-la. A pergunta, portanto, que fica é: estará crescendo mesmo a cor� rupção, ou é a nossa sensibilidade diante dela que cresce? Há uma maré montante da corrupção ou o destaque que se dá aos fatos que pipocam aqui e ali é que está fazendo com que o fenômeno ultrapas� se a dimensão do razoável? Três coisas deveriam ser enfatizadas inicialmente. Primeiro, não há monopólio da corrupção por parte desse ou daquele grupo, partido político ou entidade; todos estão sujeitos a ela, passiva ou ativamente, e todos podem vir a praticá-la, ativa ou passivamente. Não reconhecer isso é partir de uma posição exclusivamente ideológica. Nada mais infenso e gratuito do que a acusação de corrupção que partidos de oposição dirigem ao governo, nada mais inconsequente do que o go� verno que acusa as oposições de desejarem inflamar a opinião pública mediante a descoberta e a publicização de irregularidades e atos de 13
corrupção. Segundo, não há prevalência de atos corruptos num dado ponto da estrutura federativa nacional; o covil, o centro dirigente, não está em Brasília ou nas capitais. Não há nenhum centro desse tipo e o fenômeno está disseminado, podendo se manifestar com força maior onde menos se espera. Terceiro, se quisermos enfrentar a sério o pro� blema, vale a pena dilatar o conceito, para nele incluir, além dos cri� mes financeiros, uma série sem-fim de procedimentos e atos que pro� duzem menos frisson, mas são igualmente graves. Ou não haveria corrupção, por exemplo, na atitude de um parlamentar que está au� sente do plenário e permite que seus assessores registrem sua presen� ça e votem em seu nome, com ou sem seu consentimento? Não seria corrupto um servidor público que exige, do usuário dos serviços, um elenco enorme de documentos e exigência só para postergar o atendi� mento, ou justificar uma falha do sistema? Um policial que achaca e humilha um suspeito só pelo prazer de vê-lo respeitar a autoridade é tão corrupto quanto o cidadão “bem intencionado” que sonega o im� posto de renda porque pensa que o governo usa mal o dinheiro que arrecada. O empresário que deixa de emitir nota fiscal para protestar contra o “custo Brasil” elevado anda de mãos dadas com o médico que sugere ao paciente que pague a consulta por um valor mais abaixo desde que abra mão do devido recibo. O corrupto não se identifica somente com aquele que se vale de artifícios e facilidades para abocanhar uma grana adicional, ou favo� recer negócios específicos, pelos quais cobra uma comissão. Tem a ver com muito mais coisas, e desse ponto de vista é que se pode dizer que a corrupção é sistêmica e está entranhada, como um componen� te oculto, não reconhecido, no imaginário e na cultura política da sociedade. A corrupção é um defeito ético, e tem múltiplas faces. Anda junto com o poder (político, econômico ou ideológico), como se fosse uma espécie de efeito colateral: onde há poder e poderosos há sempre a probabilidade de abuso, e no abuso está a raiz da corrup� ção. A humanidade de todas as épocas e de todas as culturas tem quebrado a cabeça para encontrar os meios mais adequados e efi� cientes para controlar o poder e neutralizar seus efeitos colaterais. Todo grande pensador político escreveu algumas boas páginas a res� peito. Algumas sociedades têm sido mais competentes do que outras nisso, mas nenhuma delas pode se proclamar imune ou imunizada. A questão é de grau, de escala e, evidentemente, de impacto sobre o conjunto da coletividade. Lavagem de dinheiro (dinheiro sujo que é investido em um negó� cio legal, ou para remunerar um serviço honesto), cibercrimes, sone� gações de múltipla espécie, fraudes, obtenção de vantagens financei� 14
Marco Aurélio Nogueira
ras em negócios com órgão públicos, manipulação de licitações, apropriação indébita de fundos públicos (ONGs fantasmas, por exemplo), compra de votos, operações clandestinas de financiamento de campanhas eleitorais e tráfico de influência são as práticas mais conhecidas e que chamam maior atenção. Pesquisadores, jornalis� tas, organismos de financiamento e de monitoramento vivem em busca de um índice que possa auxiliar a que se dimensione ou se meça a corrupção, tentando com isso alcançar um parâmetro razoá� vel para se dizer que um país é mais, ou menos, corrupto do que outro. O encontro de um “corruptômetro” assemelha-se à busca pelo Santo Graal. A Transparência Internacional, por exemplo, publica desde 1995 o relatório anual Índice de Percepção da Corrupção que classifica os países do mundo de acordo com o modo como a popula� ção percebe o que há de errado nos relacionamentos entre funcioná� rios públicos e políticos. Com base nele, pretende sustentar que a grande maioria dos países (e especialmente os países em desenvolvi� mento) apresenta índices alarmantes de corrupção. Rankings desse tipo, porém, são discutíveis e bastante imprecisos, além de facilita� rem manipulações várias. Podem ajudar a que se sonde o ambiente, mas têm baixo poder explicativo. Também são precárias e frágeis as tentativas de estabelecer o custo que a corrupção acarreta para as sociedades, como buscou fazer, por exemplo, o Departamento de Competitividade e Tecnologia da Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp). Em um estudo divulgado em maio de 2010, Corrupção: Custos Econômicos e Propostas de Combate, o organismo chegou a estabelecer que a corrupção no Brasil custa até R$ 69,1 bilhões por ano, algo entre 1,38% a 2,3% do Produto Interno Bruto (PIB). Uma soma astronômica, mas difícil de ser cabalmente assentada. Independentemente de cogitações, análises e dados, é evidente que, nos tempos hipermodernos em que nos encontramos, a corrup� ção se converteu num problema que desafia e surpreende. Redes, tecnologias de informação e comunicação, uso intensivo do espaço virtual, uma mentalidade que transforma tudo em mercadoria, opor� tunidade e negócio, um desejo socialmente incontido de consumir e ostentar, tudo isso exponencia a corrupção. Faz com que ela tenda a ficar fora de controle, a ultrapassar fronteiras e territórios nacionais, a invadir o terreno das relações internacionais. O crime organizado, o narcotráfico, os atentados ambientais, a luta sôfrega por mercados e por informação, tudo funciona como combustível para a corrupção. Por sorte, aquilo que a impulsiona também ajuda a freá-la: os mesmos fluxos virtuais funcionam como vitrines de atos escabrosos, A corrupção que nos atormenta
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roubando legitimidade deles. A democratização da vida social, que horizontaliza muita coisa, faz com que o poder se torne mais visível e menos onipotente. Há, ainda, os atos políticos propriamente ditos, que não são todos desvirtuados e corruptos mas, ao contrário, pro� movem muitos ataques eficientes contra os que querem fazer do po� der político uma plataforma de lançamento de malfeitos sucessivos. Apesar de tudo, a corrupção brasileira não é tão bem conhecida como se pensa e como deveria ser. Há poucos estudos a respeito, e na bibliografia existente (Ver indicações ao final) destacam-se as re� portagens do chamado jornalismo investigativo, quase sempre con� centrado no esclarecimento de episódios que ganharam grande expo� sição política. A corrupção não é tratada de forma sistemática e aprofundada. Muitas vezes, a abordagem é moralista, segue de perto a postura que demarca as relações de muitos brasileiros com a polí� tica e a gestão pública. Não é de hoje que a opinião pública contém uma vertente disposta a menosprezar e combater políticos, administradores e governantes – que, em seu entender, comporiam uma “classe” de pessoas desde logo prontas para tirar vantagens, roubar ou manipular as coisas públicas. Como tudo na vida, exemplos e provas não faltam para alimentar essa vertente. Ao menos desde o final do século XIX perambulam pelo ima� ginário nacional figuras de assessores que não assessoram e de prote� gidos que se mantêm em cargos graças à força, ao prestígio, ao canudo ou ao pistolão de seus protetores. A “teoria do medalhão”, celebrizada por Machado de Assis, por exemplo, elevou à condição estética uma fabulação que impregnava a cabeça dos brasileiros da época e que continuou a se reproduzir até os dias atuais. Protegidos, afilhados e “aspones” pertencem à pré-história da corrupção brasileira. Correspondem a uma sociedade que já não existe mais, ainda que estejam vivos alguns de seus traços e subpro� dutos. Hoje em dia, são práticas quase ingênuas quando compara� das com a complexidade e o vulto do sistema ilegal que sufoca os procedimentos sustentados pela lei. Foram engolidas pelos cargos de confiança, que não são necessariamente um recurso de corrupção. Ainda há indicações políticas e funções artificiais, evidentemente, mas o problema maior não está aí. A corrupção atual é uma empresa que se vale de mil esquemas e de poderosas redes de influência, além de movimentar somas que fazem inveja a muitas multinacionais. Não se trata de um efeito da maior circulação de informações, que ajuda a que o fenômeno fique mais visível, mas que de modo algum explica ou justifica suas proporções. 16
Marco Aurélio Nogueira
O problema é real e complicado. Não pode ser abordado com efi� ciência se o critério for moralista e não deve ser minimizado como se se tratasse simplesmente de mais uma manobra dos oposicionistas de plantão. Afinal, ninguém pode hoje, em política, dizer que dessa água não beberei, ou que dessa cachoeira não usufruí. Os malfeitos estão em todos os partidos e cobrem o espectro político da esquerda à direita, sustentados por justificativas semelhantes, invariavelmen� te voltadas para necessidades ou de governança e governabilidade, ou de financiamento de campanhas eleitorais. Culpam-se as regras em que se vive para se proclamar a inocência de práticas e condutas que trafegam na ilegalidade. Não se pode dizer que o Estado brasileiro esteja desprotegido de mecanismos de defesa. Há muitos e atualizados sistemas de contro� le internos e externos à administração pública, e eles vêm sendo aperfeiçoados ao longo do tempo. Licitações são feitas a partir de caprichadas e inflexíveis normas que buscam dar a elas o máximo de isenção e transparência. O sistema de controle interno adotado no Executivo federal é considerado um avanço institucional impor� tante, por promover incentivos à accountability e ao controle políti� co da burocracia. Todo organismo público é objeto de permanente vigilância e fiscalização. Prestam-se contas até mesmo da vida pes� soal de seus dirigentes, como se fossem suspeitos até prova em contrário. O poder público é vigiado pela sociedade civil, pela mídia, pela opinião pública, tem seus serviços avaliados cotidianamente pelos cidadãos. Apesar disso, a corrupção não sai de cena. Derrama-se pelo país como se fosse uma força da natureza, algo que os humanos não po� dem deter e que os atemoriza. Há fatos que comprovam irregularida� des de todo tipo e há também muita percepção de fatos. A imprensa escrita, falada e televisionada impulsiona o processo, espetaculariza muitas vezes aquilo que deveria ser corriqueiro, denuncia, mas nem sempre consegue desvendar as determinações decisivas do problema. De algum modo, ainda que eventualmente mal calibrada, cumpre uma função de enorme relevo, na medida mesma em que disponibiliza in� formações aos cidadãos e exerce pressão sobre o Estado e os governos, colaborando para ampliar sua transparência. O assim chamado jorna� lismo investigativo tem contribuído com muitos insights essenciais para uma melhor compreensão pública da corrupção. Seja como for, o estudo sistemático do fenômeno precisa crescer e se reforçar, pois ainda não conhecemos suficientemente seus mean� dros e suas determinações. A corrupção que nos atormenta
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Ainda não avaliamos, por exemplo, a real força que o dinheiro (a economia, os mercados) tem na modelagem do Estado e sobretudo no exercício do poder político, no funcionamento do sistema representativo e no modo de fazer política. Isso significa investigar, por exemplo, as relações entre os negócios e a democracia, tema que deixamos para trás por acreditarmos que um regime democrático está vacinado contra des� vios e defeitos. Com isso, abandonamos a discussão sobre a qualidade da democracia, tema que agora frequenta alguns núcleos acadêmicos, mas que ainda não estacionou no centro da agenda pública. Em anos eleitorais, a questão se agiganta e incentiva um sempre renovado esforço para que se dimensione o custo das campanhas, o custo dos legislativos e o custo das eleições, tudo isso embalado pelo tema do financiamento das campanhas. Reiteram-se sistematica� mente as distorções existentes nos órgãos parlamentares (federais, estaduais, municipais), que contam com estruturas pesadas e onero� sas e disponibilizam verbas bastante generosas e muitas facilidades aos representantes. Muito do que há de corrupção na vida política flui por essa via. São inúmeros os casos de deputados, senadores e vereadores que respondem na Justiça por crimes contra a adminis� tração pública ou contra o processo eleitoral, que foram cassados por irregularidades invariavelmente associadas a desvios de verbas ou a enriquecimento ilícito, que são multados pelos Tribunais de Contas por infrações cometidas no exercício de funções executivas. A ampla mobilização que resultou na aprovação da Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar nº 135/2010) é um poderoso indicador tanto da gravidade das irregularidades cometidas por políticos, quan� to da atenção que a opinião pública e a movimentação social conce� dem ao tema. O projeto de lei que serviu de base para a fixação da lei foi de iniciativa popular e reuniu cerca de 1,3 milhão de assinaturas. De sua proposição e viabilização participaram diferentes segmentos da sociedade civil, da Comissão Brasileira Justiça e Paz (CBJP), da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a associações re� presentativas de diferentes setores sociais. Ao tornar inelegível por oito anos um candidato que tiver o mandato cassado, renunciar para evitar a cassação ou for condenado por decisão de órgão colegiado, e ao proibir que políticos condenados em decisões colegiadas de se� gunda instância possam se candidatar, a Lei anunciou a abertura de uma nova etapa da democratização brasileira. Mas até hoje ainda não conseguiu se desvencilhar da polêmica e tem sua tradução prá� tica obstaculizada, travada por interpretações contraditórias, pela impunidade e pela crença social de que os corruptos jamais serão devidamente criminalizados. 18
Marco Aurélio Nogueira
O conjunto de problemas que afloram do terreno imediatamente político – do terreno da representação política democrática – faz com que o sistema representativo perca pontos preciosos e a atividade parlamentar seja vista sempre pela ótica negativa. Também não conhecemos a fundo o efeito que a falência dos par� tidos como sujeitos de programa, vontade e ação tem na maré mon� tante da corrupção. Pela lógica, pode-se dizer que quanto mais um partido abriga em seu interior pessoas que não partilham os mesmos ideais, que não têm uma filosofia de vida parecida, que usam a sigla somente como recurso para chegar ao poder ou que permitem que suas cúpulas fiquem obcecadas pela manutenção dos espaços de poder, mais esse partido funcionará como uma correia de transmis� são entre o submundo e a política. Todos os nossos partidos ficaram assim, uns mais, outros menos, o que complica dramaticamente a situação. Não são mais “escolas de quadros”, espaços privilegiados de seleção de lideranças ou organizadores de consensos sociais. São agências de agregação de alguns interesses e de gestão de recursos políticos. Passaram a potencializar os defeitos do sistema partidário, sua permissividade exagerada, sua flexibilidade e sua falta de crité� rio institucional. Colaboram, com ou sem intenção, para agravar a imagem negativa que a opinião pública tem da política. Esses dois fatores combinam-se tragicamente no “presidencialis� mo de coalizão” típico do Brasil, minando ou dificultando o que se tem em termos de avanço institucional no plano dos controles sobre o Estado, os governos e a administração pública. No presidencialismo brasileiro, dada a necessidade imperativa de que se façam acordos partidários tendo em vista a sustentação política dos governos, os cargos administrativos funcionam como moedas de troca do Executivo. Partidos que detêm posições de força no Congresso Nacional, por exemplo, passam a ter destacada participação na compo� sição dos ministérios e, por essa via, na conduta prática e operacional dos governos. Podem perfeitamente roubar-lhes coerência e impor-lhes pautas estranhas a seu almejado ou proclamado perfil político e ideoló� gico. Podem também incrementar o tráfico de influência ou fazer exi� gências descabidas ao Executivo, torpedeando diretrizes de planeja� mento, estratégias de ação e rumos programáticos. Terminam por obrigar o Executivo a despender bastante energia para monitorar as políticas públicas, com o objetivo de blindá-las e de garantir sua imple� mentação dentro dos parâmetros técnicos e orçamentários previstos. Não é por outro motivo que nos acostumamos a vincular o êxito de certas políticas ao protagonismo do Executivo – não da Presidên� A corrupção que nos atormenta
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cia da República ou do governo dos estados, mas da estrutura admi� nistrativa alojada no Poder Executivo dos diferentes âmbitos da Fe� deração. Sem executivos revestidos de poder de agenda e de poder de implementação, a ação governamental derrapa e não se completa. No caso específico da administração pública, a constituição de um amplo sistema de controles internos e externos – em que despontam, por sua incontestável relevância, a Controladoria Geral da União, os Tribunais de Contas, a Polícia Federal, o Ministério Público, as Ouvi� dorias –, nem sempre consegue ter desdobramentos efetivos, de modo a alimentar movimentos que reformem e atualizem procedimentos ad� ministrativos particularmente sensíveis a irregularidades. Apura-se, denuncia-se, eventualmente pune-se, mas no dia seguinte tudo segue como dantes. Além disso, o controle da legalidade dos atos ainda se articula precariamente com o controle da eficiência, falha que muitas vezes se combina com tensões e atritos entre gestores e controladores. Por fim, precisamos dedicar alguma atenção adicional à ideia, bastante generalizada, de que parte importante da corrupção deriva de nossa cultura política, do autoritarismo que impregnou a cons� trução do Estado entre nós e contaminou nossa estatalidade, da pri� vatização da vida pública que deita raízes no Brasil colonial e que avançou em combinação com uma sociedade de desigualdade e in� justiça social que deixou os poderosos com as mãos livres. Há nesse ponto muito de verdade e muito de exagero, de busca de explicações fáceis ou de transferência de responsabilidades. Culpar a formação nacional ou a cultura política pelo que há de corrupção na sociedade é um mau caminho, especialmente se isso for feito sem a devida con� sideração dos fatos políticos propriamente ditos, das estruturas so� ciais e do processo de construção do Estado. Não há uma maldição cultural oprimindo a sociedade, por mais que se tenha de reconhecer que nenhum povo é livre de moldes culturais e tradições, que aderem a seu corpo como uma segunda pele. O peso da cultura política e das tradições na vida política nacio� nal precisa ser adequadamente estabelecido. Para tanto, deve ser investigado de forma sistemática e, sobretudo, analisado com a con� sideração de que o legado desse Brasil tradicional, que ainda pulsa nas ruas, está inteiramente reconfigurado pelo Brasil hipermoderno movido a redes e tecnologias da informação, que turbina e ressignifi� ca a seu gosto as tradições e as práticas que vêm do passado. Cultu� ra política não é um produto definitivo, composto de uma vez por todas e que paira acima da dinâmica social. É categoricamente uma construção social, que acompanha e interage com o desenvolvimento social. Havendo, por exemplo, iniciativas de educação política em� 20
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preendidas por movimentos democráticos convencidos de sua função pedagógica, é de se esperar que a cultura política também se mova em sentido democrático. Se passarmos a juntar criticamente as pontas desse novelo, cer� tamente compreenderemos que a corrupção que nos incomoda hoje não é uma força da natureza, mas uma coisa dos homens. Em suma, algo que pode ser enfrentado e combatido, mas não definitiva e pe� remptoriamente eliminado. Referências ABRAMO, Cláudio Weber. Lula e a corrupção. Política Democrática, n. 12, 2005. AVRITZER, L.; BIGNOTTO, N. et al. Corrupção: ensaios e crítica. Belo Horizonte: UFMG, 2008. BIASON, Rita de Cássia. Novos desafios no combate à corrupção no Brasil. Intellector, Ano VI, v. VI, n. 11, jul.-dez./2009. ______. Corrupção e Relações Internacionais. In: DALLARI, P. Relações internacionais: múltiplas dimensões. São Paulo: Aduaneiras, 2004, p. 149-168. BEZERRA, Marcos Otávio. Corrupção: um estudo sobre poder público e relações pessoais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995. CARVALHOSA, Modesto. O livro negro da corrupção. São Paulo: Paz e Terra, 1995. DÓRIA, Palmério. Honoráveis Bandidos. Um Retrato do Brasil na Era Sarney. São Paulo: Geração, 2009. ELLIOTT, Kimberly Ann (org.) A corrupção e a economia global. Brasília: Universidade de Brasília, 2002. FILGUEIRAS, F. Corrupção, democracia e legitimidade. Belo Horizonte: UFMG, 2008. ______. A tolerância à corrupção no Brasil: uma antinomia entre normas morais e prática social. Opinião Pública, Campinas, v. 15, n. 2, nov./2009 . FONSECA, Francisco. A corrupção como fenômeno político. Le Monde Diplomatique Brasil, set./2011. FRANCO, Augusto de. Para entender a corrupção no Brasil atual. 2007. Disponível em: <http://www.fiepr.org.br/redeempresarial/ FreeComponent2139content30798.shtml>. Acessado em: 07/2012. A corrupção que nos atormenta
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Marco Aurélio Nogueira
Políticos ou elites corruptas? Luiz Carlos Bresser-Pereira
H
á alguns anos, em uma das reuniões da Comissão de Es� pecialistas em Administração Pública da ONU, um velho e ilustre pesquisador da administração pública alemã era um convidado especial. Em um almoço para o qual ele e eu fomos convi� dados, um dos dois técnicos da ONU perguntou se ele havia se dedi� cado ao estudo da corrupção. Sua resposta foi imediata e definitiva: “Ah, não! Corrupção não é tema para estudos; é problema de polícia”. Não posso senão concordar com ele. A filosofia moral sempre se pre� ocupou com a ética, e definir melhor os grandes problemas morais do nosso tempo é sempre um grande desafio filosófico, mas outra coisa é transformar a corrupção no grande problema das sociedades modernas, e supor que através da crítica generalizada de políticos e servidores públicos vamos torná-las mais honestas. Durante os 30 Anos Neoliberais do Capitalismo (1979-2008), um dos grandes temas que os seus intelectuais escolheram para estu� dar, ao lado das instituições, foi o da corrupção. Boas instituições que evitassem a corrupção teriam o condão de resolver todos os pro� blemas do desenvolvimento ou do progresso dos países. Segundo o novo credo, o grande problema dos países em desenvolvimento seria a corrupção não controlada por boas instituições. Bastaria mudá� -las, bastaria mudar o sistema de incentivos e punições sociais, e o problema estaria resolvido. Seria, naturalmente, conveniente, tam� bém desenvolver um discurso moral, persuadir as pessoas que o cumprimento da lei era preciso, e, em especial, afirmar que a garan� tia da propriedade e dos contratos é algo bom em si mesmo; mas, afinal – continuava o credo –, como os homens são essencialmente egoístas, como eles só consideram seus próprios interesses, o princi� pal seria mesmo montar um competente sistema institucional de in� centivos e punições. Foi essa filosofia que o Banco Mundial – a agência encarregada pelos países ricos de implementar as reformas neoliberais nos países em desenvolvimento – adotou desde os anos 1980, e para isso criou um grande departamento de pesquisas dedicado exclusivamente a es� 23
tudar e a propor soluções para os problemas da corrupção nos países retardatários. Nos países ricos, o problema “não existiria”, ou seria “menor”. Seus cidadãos já haviam aprendido a ser honestos. Essa última frase é em parte verdade. Um país desenvolvido é, por definição, um país no qual as instâncias econômica e social, a institu� cional e a cultural são correlativamente mais desenvolvidas. Por isso, o capitalismo representou um avanço ético em relação às sociedades pré-capitalistas, nas quais o Estado antigo apoiado na religião busca� va manter a ordem social de forma arbitrária e violenta, e a distinção entre a propriedade pública e a privada não existia. Mas, apesar do avanço que o capitalismo representou, sabemos quão corruptos ainda são os capitalistas e os políticos nos países ricos, quão intrínsecos ao capitalismo são a fraude, o estelionato e o roubo. O último livro que John Kenneth Galbraith escreveu denominou-se A Economia da fraude inocente (2004). Ele se referia a uma série de escândalos financei� ros, o mais famoso dos quais foi o da falência da Enron. A corrupção das elites econômicas dos países ricos ficou ainda mais clara poucos anos depois, com a Crise Global de 2008. Não há dúvida que a causa fundamental da crise foi a desregulação financeira, que permitiu aos agentes financeiros, inclusive os grandes bancos, montarem um siste� ma de securitização de títulos e de derivativos fraudulento. Mas será razoável a atitude neoliberal de explicar todos os males dos países em desenvolvimento pela corrupção e as más institui� ções? Teve algum êxito o Banco Mundial em coibir a fraude nesses países, principalmente nos países do sul do Saara? Não creio. Cor� rupção é problema de polícia, ou, mais corretamente, é problema da polícia e do Poder Judiciário. É um problema que só um Estado forte, capaz, tem condições de coibir. Ora, o que o Banco Mundial fez, sis� tematicamente, foi procurar enfraquecer o Estado de cada um dos países; isto foi especialmente claro na África subsaariana. Foi tentar transformá-los em meros Estados-polícia, no Estado liberal do sécu� lo XIX. Um Estado moderno é muito mais do que isto. É um Estado a serviço dos seus cidadãos, é um Estado que, além de garantir a ordem pública, é democrático e garante os direitos sociais e os direi� tos republicanos – o direito que cada um de nós tem que a coisa pú� blica seja usada para fins públicos. No nosso tempo, só um Estado com essas características tem legitimidade política e permite que seus governantes também a tenham. Não é impingindo reformas ins� titucionais sobre os países que esses objetivos serão alcançados. Ao invés, é preciso promover um conjunto sistemático de políticas de� senvolvimentistas – de políticas que se destinem ao desenvolvimento das três instâncias da sociedade e não a apenas uma. 24
Luiz Carlos Bresser-Pereira
E o Brasil? Não é a corrupção “o nosso principal problema”. Len� do os jornais, ouvindo as conversas dos homens e mulheres “sérios” do país, lendo as análises tanto dos intelectuais neoliberais quanto dos velhos moralistas liberais e conservadores, a conclusão é essa. A diferença está no fato de que os novos institucionalistas preten� dem construir as instituições perfeitas, enquanto a velha jeunesse dorée, de que nos falou genialmente Guerreiro Ramos nos anos 1950, alienada e cheia de boas intenções, queria reformar os ho� mens. Apesar da pobreza intelectual dos reformadores, as denún� cias em série feitas pela imprensa e a demissão de um ministro após o outro por acusação de corrupção parecem confirmar seu argumento moralista. E mais – sugerem que a corrupção é um pro� blema dos políticos, já que são eles que são sistematicamente de� nunciados. O moralismo é um velho mal. Foi o instrumento que os liberais autoritários da República Velha e os liberais golpistas da UDN sempre usaram, quando estavam fora do poder. É o argumen� to perfeito quando faltam às elites outros argumentos a apresentar à nação. E é sempre um argumento parcialmente verdadeiro, por� que a corrupção está em toda parte. Mas não está principalmente nos políticos; está antes nos capitalistas que corrompem os políti� cos de forma sistemática. Os políticos de esquerda e desenvolvimentistas sempre foram o objeto predileto da crítica moralista liberal. Na verdade, porém, os políticos corruptos por excelência são os políticos dos “partidos de negócios”, como há muitos hoje no Brasil – partidos montados por políticos sem ideias ou ideais, sempre identificados com a ordem es� tabelecida, seja qual for ela, para viabilizar seus interesses de poder e de dinheiro. São os PTBs, os PRPs, os PRs etc. Mas deixemos esses partidos de lado, e comparemos os mais sérios, os ideológicos. Quan� do comparamos o desempenho moral dos membros de um partido de direita, como o PSDB, com o dos membros de um partido de esquer� da, como o PT, o padrão ético do primeiro pode parecer ser melhor do que o do segundo, porque seus representantes pertencem a uma classe média relativamente tradicional, mas, em compensação, falta� -lhes o espírito republicano daqueles que estão mais voltados para a defesa dos pobres, de forma que, afinal, as duas vantagens se anu� lam, e temos um resultado apenas razoável para os dois partidos. Definitivamente, o problema fundamental do Brasil não é a corrup� ção. Nem são instituições ou sistemas de incentivos e punições me� lhores que “resolverão” o problema. Não porque ele não exista. A corrupção está bem viva à nossa frente. Mas porque ela é, de um lado, intrínseca ao capitalismo, e, de outro, porque ela é proporcional ao nível de desenvolvimento do Brasil. O problema fundamental do Políticos ou elites corruptas?
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Brasil é o desenvolvimento econômico e social; é alcançar taxas mais elevadas de crescimento com menos desigualdade. A sociedade brasileira não é uma sociedade especialmente corrup� ta, mas ela é corrupta como é toda sociedade gerida pelas regras do mercado. O Brasil é capitalista desde que nasceu – durante a Colônia, esteve sob a égide do capitalismo mercantil, depois, durante quase todo o século XX, sob o signo do capitalismo industrial, e, mais recen� temente, desde os anos 1990, sob a marca do capitalismo rentista e financeiro. Ora, a regra fundamental do capitalismo é a de que cada um deve buscar o seu interesse, porque o mercado cuidará do interes� se geral. Sabemos que essa tese é absurda, mas ela é inerente à visão liberal do capitalismo. Seus defensores naturalmente afirmam o Esta� do de Direito, a liberdade e o cumprimento da lei, mas, afinal, acredi� tam que o melhor instrumento de coordenação social é sempre a mão invisível do mercado, de forma que seu liberalismo facilmente se trans� forma em liberalismo econômico radical – no neoliberalismo do nosso tempo. Essa abordagem expressa-se de maneira “científica” na teoria econômica neoclássica que é ensinada nos cursos de pós-graduação em economia – cursos que formam cidadãos com baixos padrões mo� rais e com dificuldade em cooperar. As pesquisas de Robert Frank, Thomas Gilovich e Dennis Regan (1993, 1996) a esse respeito foram definitivas. Eles usaram dois testes para fazer essa avaliação e os apli� caram nos Estados Unidos em doutorandos em economia e nas de� mais ciências, e, nos dois casos, a diferença de padrões éticos foi enor� me contra os doutorandos em economia. Não poderia ter sido outro o resultado, já que a teoria econômica neoclássica ensina, ao pé da le� tra, a clássica tese de Adam Smith segundo a qual, se cada um defen� der seu próprio interesse, o interesse de todos estará garantido. Smith era um filósofo moral iluminista, e só acreditava nessa frase com um grão de sal. O neoliberalismo e a teoria econômica neoclássica acredi� tam nela como uma religião. Existe corrupção no Brasil, mas ela não é mais grave do que o nível de desenvolvimento econômico do país deixa prever. Eu sei que é difí� cil comprovar uma afirmação desse tipo, mas podemos demonstrá-la de uma forma, se não definitiva, certamente esclarecedora. Se aceitar� mos que existe uma correlação entre as três instâncias sociais – a econômica, a institucional e a cultural e moral – podemos correlacio� nar em um gráfico de dispersão duas variáveis de que dispomos: a renda por habitante dos países e o Índice de Percepção de Corrupção da ONG Transparency International especializada no combate à cor� rupção. Foi o que fiz, com a colaboração de Felipe Salto (meu excelen� te aluno, a quem agradeço), usando dados recentes de 146 países. 26
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O resultado é interessante, apesar do fato de não podermos identifi� car índice de corrupção ou sua percepção. O Brasil encontra-se exa� tamente sobre a linha de tendência: não é nem mais nem menos corrupto do que se poderia esperar. Já um país rico como são os Estados Unidos apresenta uma percepção de corrupção considera� velmente maior do que a riqueza de seus habitantes deixaria prever. Índice de percepção de corrupção (de 0 a 10) versus renda per capita (PPP) – Alguns casos – Argentina
2,9
15.250
Chile
7,2
13.900
Uruguai
6,9
13.890
Brasil
3,7
10.920
México
3,1
14.360
Estados Unidos
7,1
47.120
Rússia
2,1
19.190
India
3,3
3.560
República P. da China
3,5
7.570
África do Sul
4,5
10.280
Japão
7,8
34.780
Israel
6,1
27.630
Noruega
8,6
57.100
Singapura
9,3
55.380
Fonte: World Development Indicators do Banco Mundial e Transparency International.
Mas, poderão contra-argumentar nossa jeunesse dorée contem� porânea ou nossos neoliberais, sempre liberais e moralistas, a cor� rupção não é da sociedade, é dos políticos. Mas isto não faz sentido. Naturalmente há políticos e servidores públicos corruptos, que se apropriam do patrimônio público de forma desonesta, geralmente por meio de salários e outros rendimentos abusivos. Mas a grande corrupção dos políticos é geralmente associada à corrupção das em� presas. E é essa a corrupção que envolve milhões e milhões de reais, não os simples mil reais que caracterizam a corrupção puramente política, sem envolvimento das empresas. No caso do ‘mensalão’, por exemplo, os valores envolvidos eram pequenos, embora o escândalo fosse muito grande. Envolvia valores muito menores do que os valo� res que fazem parte das concorrências públicas e dos contratos de Políticos ou elites corruptas?
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concessão pública que estão também nos jornais, mas envolvia um comportamento ético inaceitável por parte dos políticos: comprar ou vender votos no parlamento. Por que, então, a corrupção política aparece com mais força do que a corrupção empresarial? Em primeiro lugar, porque, sociologicamen� te, a ética dos negócios é diferente da ética do serviço público. Quando avaliamos um político ou um servidor público, esperamos que ele aja de acordo com o interesse público, que ele seja dotado de éthos públi� co ou de princípios republicanos, e, portanto, esteja disposto a fazer compensações entre seus interesses legítimos e o interesse público. Já de acordo com a ética dos negócios, o que se espera é que o homem de negócios defenda sempre seus interesses, sem, naturalmente, deixar de cumprir a lei. Não se pede dele mais do que isto. E, por isso, nin� guém fica indignado quando um empresário afirma que seu objetivo fundamental é o lucro. Já em relação ao político o quadro é diferente: mais exigente do ponto de vista moral. Se um político disser que seu objetivo fundamental é o ganho pessoal, ele perderá qualquer possibi� lidade de alcançar o poder, porque deixará os eleitores indignados. Na verdade, se pensarmos em termos, não em termos normativos mas históricos, há pelo menos três éticas nas sociedades contemporâ� neas: a dos negócios, que acabei de resumir, e as duas éticas referidas por Max Weber (1919): a ética da convicção e a ética da responsabili� dade. A primeira é a ética do cidadão comum, das religiões e dos filó� sofos; é a ética simples, embora infinitamente complicada, de fazer o certo e rejeitar o errado. Já a segunda é a ética de todos os que detêm poder; é a ética de quem precisa fazer compromissos ou concessões para alcançar a maioria, é a ética que leva em consideração mais os resultados do que os meios empregados. Essa é a ética do político, e os cidadãos comuns têm enorme dificuldade de compreendê-la. Segundo, a corrupção parece mais generalizada entre os políticos porque sua vida é, por definição, pública. Está sempre e permanente� mente sob o escrutínio dos órgãos de auditoria do próprio Estado, da imprensa e das organizações de controle social da sociedade civil. Es� pera-se transparência do homem público. Já em relação aos capitalis� tas, a lógica social é diferente. Sua vida é privada, e a burguesia sem� pre tratou ciosamente de preservar sua “privacidade”, transformando-a em um direito civil. Uma privacidade que é legítima na medida em que cada um tem o direito de manter sua vida íntima; mas que se torna abusiva quando seu objetivo real é evitar a fiscalização fiscal. Terceiro, porque manter os políticos permanentemente sob acu� sação de serem corruptos é uma forma que a burguesia adota tradi� 28
Luiz Carlos Bresser-Pereira
cionalmente para neutralizar a democracia. Apenas com a emergên� cia do capitalismo foi possível haver democracia. Nas sociedades pré-capitalistas a democracia era impensável, já que a oligarquia de� pendia diretamente do controle do excedente econômico para se manter rica e poderosa, e, portanto, a alternância de poder era im� pensável para ela. Já a burguesia não precisa do controle direto do Estado para ser rica, porque se apropria do excedente através do lucro realizado no mercado. Por isso, não impõe um veto absoluto à democracia, mas isto não significa que esta lhe agrade. O governo dos pobres ou dos trabalhadores é sempre um problema para ela. No século XIX, nos quase 100 anos após os primeiros países hoje ricos completarem sua revolução capitalista, a burguesia liberal resistiu à democracia – que então dependia do sufrágio universal, já que o Es� tado de Direito havia sido implantado –, com o argumento de que a democracia levaria à “ditadura da maioria”. Afinal, quando tornou-se claro que isto não era verdade, cedeu às pressões populares, e o su� frágio universal foi garantido. Mas a burguesia continuou a temer a democracia e os políticos que a representa. Por isso, trata de com� prá-los sempre que pode, financiando suas campanhas, e, por outro lado, procura desmoralizá-los, atribuindo a eles todos os males da sociedade. Segundo o julgamento das pessoas “sérias”, todos aqueles que não se alinham docilmente seriam, senão corruptos, pelo menos “populistas”, fazendo uso dos recursos públicos de forma irresponsá� vel. Esta estratégia de poder alcançou seu auge nos 30 Anos Neolibe� rais do Capitalismo; todo problema tinha então “origem política”, e a solução era sempre transferir seu poder para agências independen� tes. Mas a desmoralização dos políticos e da política é uma estratégia permanente das classes dirigentes para limitar o poder popular. Mas, ao fazer esta defesa dos políticos e da política – a meu ver, a atividade mais nobre que um cidadão pode exercer –, não estaria eu contribuindo para a sua impunidade? Não estou negando sua corrup� ção. Estou apenas afirmando que a corrupção das elites políticas re� flete a corrupção das elites econômicas da sociedade, e que esta se correlaciona com o grau de seu desenvolvimento ou progresso. Não estou, tampouco, sugerindo que deixemos de nos indignar com o que vemos. Um dos grandes problemas de todas as sociedades é o fato de que muitos pobres não se indignam com a corrupção dos ricos; enca� ram-na como algo “natural”. O desenvolvimento social significa, entre outras coisas, deixar de considerar a corrupção natural. O surgimento de uma classe trabalhadora politizada e de setores de classe média republicanos capazes de fazer a crítica social foram avanços funda� mentais na direção da moralização social. Quando vemos algumas so� ciedades desenvolvidas, como as escandinavas, a suíça e a japonesa, Políticos ou elites corruptas?
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em que há o respeito à lei, e a identificação desta com a moral legítima, percebemos que o progresso é possível, e que podemos ter sociedades democráticas e razoavelmente honestas, ainda que capitalistas. Este, entretanto, não é o resultado de uma crítica generalizadas dos políti� cos, como vemos hoje no Brasil, mas de uma longa e difícil construção do Estado – do sistema constitucional-legal e da organização que o garante. É essa construção política do Estado que garante legitimidade à sua lei e efetividade e eficiência à sua administração pública. O mora� lismo que alimenta a crítica indiscriminada dos políticos é uma mani� festação das elites econômicas da sociedade e de seus intelectuais, que, não tendo como criticar os avanços econômicos e sociais que estão sendo alcançados por meio da construção de um Estado melhor, mais capaz e mais democrático, resolvem lançar suas armas contra os polí� ticos em geral. Dessa maneira, atingem tanto aqueles que são caso de polícia – que realmente estariam melhor em uma cadeia pública do que em um Parlamento ou em um departamento público –, quanto aqueles que estão exercendo a nobre tarefa que é a da política e, as� sim, defendendo os interesses reais da nação. Referências FRANK, Robert; GILOVICH, Thomas; REGAN, Dennis Does studying economics inhibit cooperation? Journal of Economic Perspectives, 7(2) Spring, 1993, p. 159-171. ______. Do economists make bad citizens? Journal of Economic Perspectives, 10(1) Winter, 1996, p. 187-192. GALBRAITH, John Kenneth. The Economics of Innocent Fraud, Boston: Houghton Mifflin Company. 2004. GUERREIRO RAMOS, Alberto. A ideologia da ‘jeunesse dorée’. Cadernos do Nosso Tempo, n. 4, abr.-ago./1955, p. 101-112. Disponível em: <www.bresserpereira.org.br>. WEBER, Max. A política como vocação. In: H. H. Gerth; C. Wright Mills, orgs. (1967) Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, p. 55-89. Publicação original em 1919.
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Luiz Carlos Bresser-Pereira
Movimento do Ministério Público contra a corrupção Roberto Livianu
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o primeiro filme, vemos as cores vivas de um bebê risonho e cheio de vida, deitado em seu berço esplêndido com tudo o que precisa para ser feliz: paz, carinho, conforto, brinquedos, mamadeira com o alimento, chupeta etc. Ele é a própria e perfeita representação do povo brasileiro vivendo com dignidade e respeito a seus direitos humanos, civis e sociais. Na sequência, por força da ação devastadora da corrupção, as cores se esmaecem gradualmente. Os itens que compunham a cena de existência digna e plena da criança, simbolizando o povo brasilei� ro, começam a desaparecer junto com o sorriso do rosto, e o discurso de fundo adquire tons progressivamente dramáticos. A nova cena que surge, enfim, mostra tudo em preto e branco, simbolizando o total desbotamento da cidadania pela corrupção. O bebê perdeu até o lar em que vivia e foi parar na sarjeta. Está cho� rando por se ver privado de tudo e o apelo atinge o auge do drama, chamando cada um a fazer sua parte na luta contra a corrupção. Fica clara a ideia de que a corrupção aniquila os direitos das pes� soas. E que as próximas gerações correm sério risco, se não houver um reposicionamento de todos em relação ao tema. No segundo filme, corrupto e corruptor são vistos em ação com dinheiro escorregando por todos os lados. A locução afirma que para se dar bem na vida é necessário “molhar a mão”(corromper), como se fosse algo natural e integrado à nossa essência, à nossa cultura. Fala-se da amplitude do espectro da corrupção, presente nas re� lações públicas e nas relações privadas. O jeitinho brasileiro, de que� rer sempre levar vantagem em tudo, é ilustrado com a propina para “furar” uma simples fila, o que, apesar de parecer algo inofensivo, gera e alimenta um círculo vicioso e perverso. Eis que uma menina, representando as novas gerações, assume a atitude da ética, não querendo compactuar com a corrupção, jo� gando-lhes (no corruptor e no corrupto – um homem e uma mulher) 31
um grande balde de água, simbolizando o enfrentamento, a punição e o resgate da capacidade de indignação. Estes filmes são peças-chave da campanha de comunicação Não Aceito Corrupção, assinada pelo Movimento do Ministério Público Democrático (MPD), lançada no dia 31 de maio de 2012. O MPD é fruto de um sonho de promotores idealistas que, há 21 anos, começaram uma caminhada em prol do associativismo demo� crático, da cidadania, da justiça mais aberta, acessível e humana, por um Ministério Público cada vez mais próximo da comunidade, dialogal, proativo e dotado do agir comunicativo, definido por Jurgen Habermas. Fundado em agosto de 1991, sob a forma jurídica de uma as sociação civil sem fins econômicos, o MPD nasceu para conduzir o Ministério Público a um caminho menos autoritário e burocrático, comprometido com os anseios do povo e independente em relação aos outros poderes, em especial do Executivo. O MPD sonhou, desde o início de sua existência, com mais trans� parência e que o MP, e a própria Justiça, fossem mais acessíveis a todos. Pleiteávamos que a defesa da legalidade democrática fosse atribuição constitucional da instituição. E Defensoria Pública como instrumento essencial para garantir acesso à Justiça para todos. Em 1988, veio a Constituição-Cidadã, trazendo junto com ela a complexidade de tornar concreta a mudança cultural a ela subjacen� te, de abandonar a visão de atuar apenas burocraticamente nos pro� cessos judiciais individuais e priorizar, de verdade, o plano coletivo com ações civis públicas de largo alcance, com a conscientização efetiva da importância política da prevalência de regime democrático na construção de um país mais justo e igualitário. O MPD, desde seu nascimento, buscou a sensibilização dos inte� grantes do Ministério Público para que sejam, de fato, defensores da sociedade e dos direitos humanos fundamentais, e, ao mesmo tem� po, para que compreendam os pleitos e carências da comunidade, aproximando-se mais da população e diminuindo a distância exis� tente entre o serviço público e as pessoas. É óbvio que o novo promotor de Justiça, esculpido em 1988, pre� cisa conhecer e trabalhar com a Lei e com a Constituição. Além dis� so, o MP precisa continuar investigando porque é da essência do promotor de Justiça a atividade investigativa, tanto na esfera civil como na penal. 32
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Mas isso não é suficiente. O promotor de Justiça moderno precisa saber mediar conflitos e articular termos de ajustamento de conduta. Processar e pedir punições sempre que necessário, endurecendo em prol do interesse público, sem perder a ternura, como já disse Gue� vara, requisito imprescindível para aqueles que lidam com seres hu� manos no cotidiano, como nós. Sem mordaça, com liberdade, ética e responsabilidade. Mas creio que, ao lado desse trabalho cotidiano dentro do gabine� te, para concretizarmos nossa missão constitucional de defender a ordem jurídica, o regime democrático e de proteção dos interesses difusos e coletivos, além do exercício da ação penal pública, é vital trabalharmos também fora do gabinete. É preciso se comunicar. Conversar com o povo. Explicar seus di� reitos. E deveres. Construir e consolidar uma nova cultura de respei� to aos valores humanos, éticos, sociais e democráticos. Precisamos nos comunicar com a comunidade. Um bom exemplo foi a aprovação da Lei da Ficha Limpa, de ini� ciativa popular, na qual o MPD se envolveu ao lado do MCCE – belo momento da cidadania brasileira. Outro foi a participação no fórum nacional que trabalhou pela aprovação da Lei de Acesso às Informa� ções Públicas, que entrou em vigor no mês de maio e é instrumento vital para a garantia da transparência e controle do poder. Por tudo isso, o MPD resolveu se dedicar a conversar agora com cada brasileiro sobre o tema da corrupção. E envolver todos os círcu� los sociais que gravitam em torno de nós neste debate. Por isso, em� preendemos a campanha Não Aceito Corrupção. Quisemos chamar a atenção para este assunto gravíssimo. E que fica a cada dia mais grave, parecendo não ter solução. Que não se re� sume a processos e punições. Que exige um reposicionamento na di� reção da ética, do respeito ao outro, do respeito ao que é de todos. Para que nos lembremos sempre que há 220 anos, era enforcado um dos maiores heróis da nossa História. Um dos raros ícones bra� sileiros. Morto por amar o Brasil acima de tudo e por pensar no coletivo acima de tudo. Que quando Tiradentes liderou a Inconfi� dência Mineira, durante o Brasil-Colônia, sonhava com um país li� vre da exploração econômica e da corrupção. E que seu sangue foi derramado em praça pública para reafirmar o poder da metrópole, mas acabou alavancando o movimento pela Independência, que vi� ria 30 anos depois, ainda que concretizada por integrante da famí� lia real de Portugal. Movimento do Ministério Público contra a corrupção
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Por isso que levar à prisão, pela primeira vez, um governador de Estado, ainda que por dois meses apenas, retirando-lhe o poder das mãos, sem derramar uma gota de sangue sequer, dentro dos precei� tos do Estado de Direito, é sinal claro de maturidade democrática do Brasil. Trata-se de um marco da nossa História, a privação de um políti� co de sua liberdade pela prática de atos de corrupção. Ainda mais se nos lembrarmos que, na época de Tiradentes, o Brasil já tinha cole� cionado quase 300 anos de corrupção conhecida, já que, desde o descobrimento e das capitanias, o patrimonialismo estratificou e conservou entre nós a cultura da corrupção, totalmente capilarizada e presente no nosso dia a dia. Isto nos traz a sensação de que, apesar de tudo, nas últimas dé� cadas, os donos do poder começaram a ser alcançados pela Justiça de forma mais significativa. Mas, com certeza, infelizmente ainda só se tocou na ponta do iceberg da corrupção no Brasil. Sob investigação pelo Ministério Público, há corrupção em muitos lugares porque lamentavelmente o Poder Executivo é exer� cido muitas vezes de forma hipertrofiada, cooptando os membros do Legislativo. Não faz sentido, por isso, MP sem poder de investigação. Tanto é assim que o Brasil subscreveu o Estatuto de Roma, que cria o Tribu� nal Penal Internacional, optando pelo modelo que o mundo escolheu – Ministério Público pleno, com poder investigatório penal. Assim, seria absurdo, perante o mundo, fazer-se uma escolha e internamente trilhar o caminho oposto, manietando o órgão titular da ação penal. Por isso, soa muito estranha a Proposta de Emenda Constitucional nº 37, que propõe o alijamento do MP. A quem inte� ressa isto? Ao povo é que não é. Precisamos ter coragem de expor, admitir e enfrentar nossa crise de valores éticos. É o que pretendemos fazer com a campanha Não Aceito Corrupção. Precisamos ser bem honestos e reconhecer que além do corrupto, há o corruptor! Que além da corrupção pública, política, administrativa, temos aqui muita corrupção privada, com polpudas comissões subterrâneas em micro ou megacontratos, sín� dicos que desviam recursos dos condomínios e gente que dá propina para furar fila até nos restaurantes. Não creio em fórmulas mágicas para se extinguir a corrupção. Mas acredito no seu controle, que exige planejamento estratégico e vontade política. 34
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Prevenir é fundamental para controlar a corrupção. Por isso, a opção legal pela transparência, abrindo as portas do acesso às infor� mações públicas, é vital, porque no Brasil infelizmente não tem bas� tado o princípio constitucional da publicidade. Dar ao povo instru� mentos para monitorar e fiscalizar as ações dos agentes do Estado é realmente tão importante quanto punir a corrupção. Os dois temas andam juntos, na direção da construção e consoli� dação de uma nova cultura de transparência, essencial para a não truculência, o não abuso de poder, a não corrupção. A corrupção brasileira está mais visível. Sempre existiu, aqui e no mundo inteiro. O aumento do grau de visibilidade é saudável e faz com que o tema se torne cada vez mais relevante para cada um de nós. Precisamos pensar nisso e debater este assunto. Individualmen� te, em família, na rua, com os vizinhos, no ônibus, no trabalho, levar para a escola, para a universidade... A extinção da corrupção é um mito, como o é a extinção das desi� gualdades entre as pessoas e a violência. A corrupção pode e deve ser controlada. E esse controle pressupõe vontade política e planejamen� to estratégico. E envolvimento do setor privado para defender a ética na atividade empresarial e combater a corrupção privada. O controle estatal precisa ser adotado como política pública permanente, investindo-se agentes políticos do Estado nestas fun� ções, para transversalizar esta prioridade em todas as pastas e ações governamentais. Não é por acaso que os países que investem maciçamente em educação têm menos corrupção. Precisamos educar nossas próxi� mas gerações para a cidadania, inoculando o humanismo coletivo e solidário como valores essenciais à coexistência humana, hoje mar� cada pelo individualismo materialista instantâneo. É fundamental instituir a cultura da integração de informação e usar com inteligência as bases de dados de todos os órgãos de todas as esferas de poder. O cruzamento eficiente de informações é vital para o controle da corrupção. Mostrar os dados do escândalo é essencial, mas, com o mesmo destaque, o que aconteceu depois! A investigação, o processo e a pu� nição. A mídia precisa cumprir seu papel investigativo na plenitude, não se contentando em divulgar o que gera ‘ibope’ apenas. Queremos ser um Ministério realmente Público. E precisamos e queremos cumprir nosso papel constitucional. Isto inclui chamar Movimento do Ministério Público contra a corrupção
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cada um a cumprir também o seu papel perante à sociedade. Inclu� sive denunciando. Por tudo isso, o MPD desenvolveu e publicou o site <www.nãoa� ceitocorrupção.com.br>, com o mapa do país, com links de cada Mi� nistério Público estadual, para receber denúncias e para disseminar os conteúdos da campanha! Participe! Multiplique!
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Clareza e coragem contra a corrupção Eduardo Graeff
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oposição parece assistir impotente ao espetáculo da corrup� ção. Não só os partidos de oposição: as pessoas em geral – digo, aquelas que se importam – oscilam entre a indignação e o desânimo. Mas quem se importa, afinal? A maioria parece resignada. Isso pode mudar rapidamente se a economia degringolar. Não é moralmente edificante, mas é real: inflação e desemprego baixos e renda em alta tendem a aumentar a tolerância do público aos desvios éticos dos governantes. A recíproca é verdadeira. Sarney deixou o governo desgastado e Collor foi defenestrado por causa de denúncias de corrupção – comprovadas, no caso deste – mas também pela inca� pacidade de conter a inflação. Baixo crescimento e corrupção renitente são uma mistura capaz de corroer, em pouco tempo, a popularidade de Dilma Rousseff. Os partidos de oposição não podem, contudo, esperar sentados que uma crise lhes jogue o poder no colo. Para se credenciar como alternativa de poder, eles precisam ser mais proativos, tanto na crítica como na proposição de alternativas para os erros e omissões do governo em todos os campos, das práticas políticas à condução da economia, passando pela qualidade das políticas sociais. Mais fácil de dizer do que fazer, quando o governo tem maioria folgada no Congresso Nacional e nenhum escrúpulo de usá-la para abafar a oposição, começando pela exposição dos métodos que o go� verno usa para cooptar essa mesma maioria. Pois aqui vão duas coisas que os partidos de oposição podem fa� zer, apesar disso. Primeiro, podem quebrar a rotina da oposição meramente parla� mentar. No Congresso, a política funciona de terça-feira à tarde até quinta-feira de manhã, burocraticamente. Mesmo nesses apertados três dias, o que acontece ali quase não repercute mais na mídia nem chama a atenção do país, a não ser se for alguma coisa muito vergo� nhosa ou grotesca. 37
Se quiserem ser ouvidos, os líderes da oposição precisam sair de Brasília, não só para cuidar de suas bases estaduais, como não po� dem deixar de fazer, mas para correr o país debatendo os temas na� cionais. Se nos constrange aprender com o Lula das “caravanas da cidadania”, naquela outra encarnação em que ele pregava ética e mu� danças, lembremos das andanças de Teotônio Vilela pai, nos idos de 1980, que ajudaram a apressar o fim da ditadura. A oposição de hoje precisa de um novo menestrel, ou mais de um, de preferência, que rime democracia com decência e bom governo. Quem se habilita? Segundo, os partidos de oposição precisam reforçar o discurso com ações exemplares. Não dá para hesitar em cortar na própria car� ne quando se sente cheiro de corrupção. Desde o ‘mensalão’, a tática de defesa de Lula e seu partido se baseia na velha noção de que “to� dos os políticos são iguais” – eles mais iguais que todos, aliás. Triste fim para quem entrou na política se proclamando diferente de “tudo o que está aí”. O truque é grosseiro mas tem funcionado, graças à tibieza da oposição na hora de limpar sua casa com o mesmo rigor que exige dos outros. Comissões de ética não podem ser objeto deco� rativo no organograma partidário. Nem cabe benefício da dúvida, se o que está em jogo é a credibilidade do partido. Solidariedade no “erro” é uma invenção petista. Absolvição por falta de provas é para os tribunais. Partidos que têm compromisso com a transparência devem exigir de seus representantes o que se exigia da mulher de César: ser e parecer limpo. O PT queimou sua história no altar do lulismo. A oposição que tem história para honrar não pode, por falta de clareza e coragem, cometer o mesmo desatino.
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Eduardo Graeff
O Ministério Público e a convenção da ONU de combate à corrupção Ruszel Lima Verde Cavalcante
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inda hoje os membros do Ministério Público comemoram a Constituição Federal de 1988, que alçou a instituição de órgão de combate aos crimes para órgão de defesa da sociedade. Tal defesa é multifacetada, açambarcando todos os direitos difusos e co� letivos, o que causou impacto tal a ensejar um movimento de reação aos “poderes” do Ministério Público. Todavia, o grande ensinamento de Jean Monnet é que “nada é possível sem os homens, nada é per� manente sem as instituições”1 Artigo de jornal de circulação nacional2 esteve analisando o pro� jeto de lei no 209/03, que trata de alargar o combate à lavagem de dinheiro, demonstrando preocupação com uma possibilidade de exercício direto, pelo Ministério Público, de investigação das contas das pessoas, posto que, pelo que foi já aprovado no Senado, essa importante instituição teria poderes alargados. O agente público e nem tampouco os homens de bem não devem temer essas atuações, a não ser que sua vida patrimonial deva real� mente ser encoberta por um manto de direitos individuais para fo� mentar os desmandos que prejudicam os direitos difusos e coletivos, mas o próprio veículo de informação questionava tamanho poder que poderia ser usado para fins midiáticos. O Ministério Público, porque órgão de defesa da sociedade, vem sofrendo ataques constantes por “consensos republicanos”, como o que se formou no Congresso Nacional, em ato espúrio, dentro da Re� forma do Judiciário, suprimindo direito fundamental que os promo� tores, que ingressaram no MP após a Constituição de 1988, já ti� nham, de se candidatar a mandatos eletivos, quando o próprio constituinte originário de 1988 não o fez? Pior, os delegados e defen� sores, que tanto pleiteiam a isonomia com o MP, continuam com di� reitos políticos, por quê? MONNET, Jean. Memórias: A construção da unidade europeia. Brasília: Universidade de Brasília. 1986, p. 269. 2 Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,contra-a-lavagem� -de-dinheiro-,885674,0.htm>. 1
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Mas esse movimento no sentido de apequenar o Ministério Público não para e não parou por aí. Tivemos, por exemplo, a propos� ta de Lei da Mordaça, projeto de lei que permitiria punir a divulgação de informações de investigações e a proposta do deputado federal Paulo Salim Maluf, para punir promotores que tivessem suas ações de improbidade consideradas de má-fé. Agora, temos a PEC 37 debatendo o impedimento de investi� gações criminais por parte do Ministério Público, porque isso seria atribuição exclusiva das polícias, o que revela um despreparo brasi� leiro em cumprimento de acordos que o nosso país celebra perante a sociedade internacional. Ora, estamos a falar da Convenção de Mérida, mais conheci� da como Convenção da Organização das Nações Unidas de Combate à Corrupção, que trouxe dispositivos que indicam que devemos sim aprimorar nossa legislação, como no caso da lavagem de dinheiro, que hoje é atrelada à prova e punição de um crime antecedente, quando as veias da corrupção são nutridas por brasileiros que ser� vem de “laranjas”, o mesmo que as “mulas” do tráfico. No comércio de entorpecentes, as “mulas” levam até em suas barrigas a droga de uma região para outra, enquanto que os “laran� jas” carregam os recursos e abrem empresas para os surrupiadores dos dinheiros públicos. A futura nova lei vem para tentar não só pu� nir a lavagem, apequenando a questão do crime antecedente, mas também cumprir um compromisso do Brasil com a ONU e toda a sociedade internacional, de aprimorar sua legislação penal. O mesmo não podemos afirmar da PEC 37, com o famigerado debate sobre os poderes investigatórios do Ministério Público, pois, confrontada com a Convenção de Mérida, essa discussão acalorada no Legislativo federal não leva em conta esse compromisso. Quando escrevemos “O polêmico projeto de lei do deputado Paulo Maluf, PL nº 265/2007 e a Convenção de Mérida”,3 fizemos uma análise que teve como meta a congruência entre os dispositivos a ser inseridos nas referidas legislações que o projeto visava alterar, com relação aos compromissos assumidos pela República brasileira perante a sociedade internacional, mais acuradamente o confronto entre o projeto de lei e a Convenção de Mérida, mais conhecida como Convenção das Organizações das Nações Unidas para o Combate à Corrupção. Trata-se de uma análise perfeitamente cabível a esse de� bate sobre os poderes investigatórios do Ministério Público. Vejamos: 3
Disponível em: <http://portalrevistas.ucb.br/index.php/rvmd/issue/view/177>.
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O art. 3º da Convenção de Mérida, assim se pronuncia quanto aos seus objetivos: Art. 3º Âmbito de aplicação A presente Convenção aplica-se, em conformidade com as suas disposições, à prevenção, à investigação e à repressão da corrupção bem como ao congelamento, à apreensão, à perda e à restituição do produto das infrações estabelecidas na presente Convenção. 2. Salvo disposição em contrário, para efeitos da aplicação da presente convenção, não é necessário que as infrações nela previstas causem danos ou prejuízos aos bens públicos. Sobre as medidas preventivas, assim pronuncia-se a Convenção da ONU: Capítulo II Medidas preventivas Art. 5º Políticas e práticas de prevenção e de luta contra a corrupção. 1. Cada Estado Parte deverá, em conformidade com os princípios fundamentais do seu sistema jurídico, desenvolver e implementar ou manter políticas de prevenção e de luta contra a corrupção, eficazes e coordenadas, que promovem a participação da sociedade e refletem os princípios do Estado de Direito, da boa gestão dos assuntos e bens públicos, da integridade, da transparência e da responsabilidade. 2. Cada Estado Parte deverá esforçar-se no sentido de estabelecer e promover práticas eficazes destinadas a prevenir a corrupção. 3. Cada Estado Parte deverá esforçar-se no sentido de avaliar regularmente os instrumentos jurídicos e medidas administrativas pertinentes com o fim de verificar se são adequados para prevenir e combater a corrupção. 4.Os Estados Partes deverão, quando apropriado e em conformidade com os princípios fundamentais do seu sistema jurídico, colaborar entre si e com as organizações regionais e internacionais pertinentes para promover e desenvolver as medidas referidas no presente artigo. Essa colaboração poO Ministério Público e a convenção da ONU
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derá implicar a participação em programas e projetos internacionais que visam prevenir a corrupção. Sobre os órgãos de prevenção e luta contra a corrupção, a Con� venção assim dispõe: Art. 6º Órgão ou órgãos de prevenção e luta contra a corrupção 1. Cada Estado Parte deverá, em conformidade com os prin� cípios fundamentais do seu sistema jurídico, assegurar que haja um ou mais órgãos, se for o caso, encarregados de pre� venir a corrupção através: (a) Da aplicação das políticas referidas no art. 5° da presen� te Convenção e, quando apropriado, da supervisão e coorde� nação dessa aplicação; (b) Do aumento e da divulgação dos conhecimentos sobre a prevenção da corrupção. 2. Cada Estado Parte deverá, em conformidade com os princí� pios fundamentais do seu sistema jurídico, conceder ao órgão ou órgãos referidos no n° 1 do presente art. a necessária inde� pendência, a fim de que possam, de forma eficaz e livres de quaisquer pressões ilícitas, desempenhar as suas funções. De� verão ser dotados dos recursos materiais e do pessoal especia� lizado necessários, bem como da formação que o respectivo pessoal poderá precisar para desempenhar as suas funções. Cada Estado Parte deverá comunicar ao secretário-geral das Nações Unidas o nome e endereço da autoridade ou autorida� des que podem ajudar outros Estados Partes a desenvolver e a aplicar medidas específicas para prevenir a corrupção. Mais uma vez se reportando aos órgãos de combate à corrupção, ressalta a Convenção em relato: Art. 36º Autoridades especializadas Cada Estado Parte deverá, em conformidade com os princípios fundamentais do seu sistema jurídico, assegurar que haja um ou mais órgãos ou pessoas especializadas na luta contra a cor� rupção através da aplicação da lei. Deverá ser concedida a tais pessoas ou entidades a necessária independência, em conformi� dade com os princípios fundamentais do sistema jurídico do Estado Parte em causa, a fim de que possam exercer as suas 42
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funções de forma eficiente e livre de quaisquer pressões ilícitas. Essas pessoas ou o pessoal dos referidos órgãos deverão ter a formação e os recursos materiais adequados às suas funções. Sobre a adequação das medidas legislativas em cada país signa� tário aos demais países signatários, diz a Convenção de Mérida: Capítulo VIII Disposições finais Art. 65º Aplicação da Convenção 1. Cada Estado Parte deverá adotar as medidas necessárias, incluindo legislativas e administrativas, em conformidade com os princípios fundamentais do seu direito interno, para assegurar o cumprimento das obrigações decorrentes da presente Convenção. Cada Estado Parte poderá adotar medidas mais estritas ou mais rigorosas do que as previstas na presente Convenção a fim de prevenir e combater a corrupção. O Ministério Público brasileiro, ante a publicação do decreto pro� mulgador da Convenção de Mérida (Decreto n° 5.687, de 31/01/06), tem responsabilidades internas e externas como órgão de prevenção e de efetivo combate à corrupção. Mas como prevenir a corrupção, se estivermos atados à polícia? A Convenção de Mérida fez previsão de fortalecimento das instituições e de gozo de independência por parte delas, o melhor que podemos enxergar de freios e contrapesos. Enquanto isso, devemos sugerir aos legisladores que a Conven� ção de Mérida precisa ser lembrada quando o debate referir-se ao aprimoramento da legislação penal e à exclusividade de quem possa investigar crimes. Todavia, recebemos bem a decisão do Supremo Tribunal Federal,4 que validou as investigações do Ministério Público no caso do ex-prefeito de Santo André assassinado, Celso Daniel, uma vez que a maioria dos 11 votantes, ou seja, seis ministros, já manifesta� ram voto de validade das ações ministeriais, segundo o que informou jornal de circulação nacional.
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Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/poder/1112378-supremo-validainvestigacao-da-procuradoria-em-caso-celso-daniel.shtml>.
O Ministério Público e a convenção da ONU
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II. Conjuntura
Autores Luiz Werneck Vianna
Cientista político, professor-pesquisador da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio e autor de várias e importantes obras, dentre as quais a mais recente é A modernização sem o moderno – Análises de conjuntura na Era Lula, da série Brasil e Itália, da Fundação Astrojildo Pereira, em parceria com a Editora Contraponto.
Paulo Kliass
Doutor em economia pela Universidade de Paris 10 (Nanterre) e integrante da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental, do governo federal.
Cleia Schiavo
Doutora em Comunicação e Cultura pela UFRJ, é uma das fundadoras da Coordenação Nacional das Mulheres e do Núcleo de Gênero Zuleika Alambert, ambos organismos do PPS de formulação de políticas para as mulheres.
Tereza Vitale
Educadora e editora, é uma das fundadoras da Coordenação Nacional das Mulheres e do Núcleo de Gênero Zuleika Alambert, ambos organismos do PPS de formulação de políticas para as mulheres.
O que há de nacional na sucessão municipal Luiz Werneck Vianna
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e toda parte surgem sinais que testemunham a existência de vida ativa na política brasileira em busca de mudanças e de novos repertórios. Os mais visíveis são os que apontam para o processo terminal de passagem, após longa e penosa maturação, da nossa vetusta tradição de principado para a República, exemplar na autonomia com que a sociedade e as suas instituições jurídico� -políticas se vêm conduzindo diante do poder político no chamado processo do ‘mensalão’, que leva a julgamento altos dirigentes do partido hegemônico na coalizão governamental. Em outro registro, mas igualmente importante, já se pode cons� tatar, no processo em curso das eleições municipais, que a pluralida� de efetiva reinante na sociedade vem encontrando seus caminhos ao largo do dirigismo com que a fórmula do presidencialismo de coali� zão, com seu estilo centralizador e vertical, tem esterilizado a prática política no país. Não à toa, tal pluralidade, como é da tradição brasileira, se afirma melhor quando é escorada em questões federativas, como se verifica nos estados de Pernambuco e de Minas Gerais, onde o PSB, um an� tigo esteio das candidaturas presidenciais do PT, se apresenta na competição eleitoral, que ora se abre, com candidaturas forjadas à margem do vértice que articula o sistema do presidencialismo de coa� lizão – em Minas Gerais, em aliança inusitada com o PSDB, partido de oposição. No caso, são relevantes tanto o fato de o governador Eduardo Campos (PSB-PE) como o senador Aécio Neves (PSDB-MG) serem po� 47
líticos com luz própria, netos e herdeiros de robusto capital político – de Miguel Arraes, o primeiro, e de Tancredo Neves, o segundo –, quanto o de serem aspirantes declarados à Presidência da República; Aécio, na próxima sucessão, e Campos, logo que puder. Não importa a nomenclatura, essas duas eleições (em Minas e em Pernambuco), atrás da singela fachada de locais, são, a rigor, nacio� nais, como o será, por definição, a da Prefeitura da capital de São Paulo, além de apontarem para o fato sensível de que se está diante de uma troca de gerações na política brasileira. A política – durante tanto tempo um monopólio, em estado prático, do vértice da coalizão presidencial com o ex-presidente Lula como o seu principal articula� dor – dá mostra, afinal, de que se descentra, com a emergência de focos de formação de vontade com origem em outros lugares que não os palácios do Planalto. Esse descentramento, na verdade, tem um dos seus pontos de partida na dualidade manifesta na própria natureza da investidura presidencial da presidente Dilma Rousseff, que apenas encarna a parte material do corpo do “rei”, uma vez que sua representação sim� bólica, sobretudo para o seu partido, se encontra na pessoa do seu antecessor, posto em relação metafísica com os seus militantes e a sua imensa legião de simpatizantes. A sucessão presidencial, na for� ma como foi operada, criando a expectativa de que caberia à presi� dente o exercício de um mandato-tampão, sublinhou a noção de que entre governo e poder havia uma distância que ela não poderia, ou deveria, encurtar. Os males de saúde que acometeram o ex-presidente puseram en� tre parênteses a promessa sebastianista do seu retorno triunfal em 2014, assim como já dificultam a sua comunicação com seu partido, seus quadros e simples militantes, desde sempre dependente do seu envolvimento pessoal, mais pelo exercício de seus reconhecidos dons carismáticos do que pela persuasão de um argumento logicamente articulado. O partido, uma confederação de tendências soldada por trabalhos de Hércules da sua principal liderança, à falta destes, ao menos sem a onipresença pertinaz a que estava habituado, ensaia movimentos de autonomia quanto a vigas mestras do lulismo, como o da CUT em sua adesão à reforma da legislação trabalhista, que ameaça de divisão a sólida base sindical dos dois mandatos de Lula. Assim, se Dilma, por estilo pessoal e vocação, começou o seu man� dato com o perfil de gestora do governo, apontada como uma estranha no ninho da política, viu-se movida à assunção de papéis políticos, quer na remontagem do seu governo, caso forte da indicação da enge� 48
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nheira Maria das Graças Foster para a estratégica Petrobrás, uma técnica de sua estrita confiança, quer na constituição do que já se pode designar como o núcleo duro do seu comando político, a esta altura formado por quadros de sua escolha pessoal, em geral distantes da rede paulista que antes caracterizava os mandatos de Lula. É da ocasião, até mesmo pela crise econômica que ronda o país, com independência das motivações dos atores envolvidos, que se tente encaminhar a fusão na mesma representação dos dois corpos do “rei”, a material e a simbólica, processo a que setores do partido e muitos movimentos sociais não deverão assistir com indiferença, já amargando a lenta passagem do tempo enquanto não chega a hora – talvez não chegue – de devolver o cetro a quem entendem ser o seu legítimo dono. A ambiguidade resultante dessa configuração dual na cadeia de comando, como seria de esperar, tem estimulado, no Parlamento e fora dele, uma movimentação desalinhada, especialmente no PT, quanto a tópicos importantes da política do governo, tal como ocorre na iniciativa de parlamentares petistas a fim de extinguir a cláusula do fator previdenciário. Nas bases, em particular no sindicalismo dos servidores públicos e na militância dos movimentos sociais, regis� tram-se sinais com a mesma direção – no Rio de Janeiro, desavindos com a direção do seu partido, militantes vão às ruas em apoio a um candidato de oposição à coalizão governamental. Sob esses novos augúrios, a política desmente as cassandras e se refaz para quem tem olhos para ver. O ‘mensalão’ e a dialética entre forma e conteúdo Ainda é cedo, mas marinheiros treinados em perscrutar o hori� zonte, instalados no cesto da gávea no maior mastro do navio, son� dando as proximidades do mês de agosto, data marcada para o jul� gamento do processo do ‘mensalão’ no Supremo Tribunal Federal (STF), já alardeiam mar tranquilo à frente. Não faz muito, uma reu� nião pouco republicana entre um ex-presidente da República, um membro do STF e um ex-presidente dessa alta Corte, influente ho� mem público, no escritório desse último, carregou os céus de nuvens sombrias, mas a sua rápida e surpreendente dissipação só veio con� firmar o diagnóstico de tempo benigno para os navegantes. A previsão não deixa de ser espantosa, vistas as coisas a partir do que temos experimentado ao longo da nossa história. Desde sempre, como um habitus entranhado na cultura nacional, estivemos obe� O que há de nacional na sucessão municipal
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dientes a uma regra não explícita que se traduziria no primado que as questões de conteúdo deveriam exercer sobre as de forma. Tal habitus – para continuar flertando com muita liberdade com catego� rias do sociólogo Pierre Bourdieu – como que estaria inscrito em nos� so próprio corpo, convertido, pelo uso continuado, numa espécie de ideologia natural nascida das próprias condições singulares em que se teria forjado o nosso Estado-nação, em que teria cabido ao primei� ro termo a criação demiúrgica do segundo. Essa particularíssima condição da nossa formação não escapou ao gênio de Euclides da Cunha, que a ela atribuiu, em texto de À margem da história, o caráter do excepcionalismo brasileiro, um país que teria nascido a partir de uma teoria política a ser, gradual e paulatinamente, internalizada pela sociedade em busca dos ideais civilizatórios do Ocidente. Na tradição dessa leitura, a construção da ordem no Estado nas� cente seria uma criação dos juristas imperiais, magistrados que, en� carnando os desígnios das elites à testa do Estado, imporiam verte� bração e o sentimento de unidade a uma sociedade entregue às suas paixões e ao particularismo dos potentados locais, tal como na de� monstração clássica de José Murilo de Carvalho. O conteúdo nos viria de cima e os procedimentos formais, declarados no estatuto li� beral que nos regia, deveriam ser confrontados, de um lado, com o poder discricionário dos governantes – o direito administrativo clara� mente hegemônico diante dos demais ramos do direito – e, de outro lado, com o poder de fato das elites senhoras de terras e do sistema produtivo da época. Sob esse duplo contingenciamento, os procedimentos e as formas próprias ao estatuto político liberal deveriam ceder quando impor� tassem ameaças de lesões ao plano da ordem que se queria impor ou mesmo se viessem a afetar interesses dos potentados locais em seus domínios patrimoniais. Sem um Poder Judiciário autônomo diante do Poder Executivo e na ausência de uma esfera pública, cuja forma� ção efetiva somente vai germinar com as lutas abolicionistas, a mo� delagem discricionária do direito administrativo se vai comportar como o instrumento mais adequado para que o conteúdo ideado pelo vértice político procurasse suas vias de realização. Essa dialética difícil entre forma e conteúdo se vai projetar no cenário republicano, o Estado Novo tendo significado um momento de exasperação da imposição do conteúdo sobre a forma, aí não mais orientado pelos ideais civilizatórios, e, sim, pelos da modernização do país. A Carta de 1937, em seu art. 135, comanda sem subterfúgios 50
Luiz Werneck Vianna
que a precedência “do pensamento dos interesses da nação” deveria se impor aos interesses individuais, cabendo ao Estado a leitura e vocalização desse pensamento. Na fórmula, pois, o pensamento da nação se substantiva, enquanto os procedimentos para sua realiza� ção são meramente instrumentais. O curso do processo de modernização subsequente, em boa parte cumprido em contexto mais amável às instituições do liberalismo político – salvo o hiato do regime militar –, preservou essas marcas congênitas à nossa formação, como no governo JK, em que se contor� nou o Poder Legislativo com a criação dos então chamados grupos executivos, a fim de viabilizar, pela ação discricionária da adminis� tração pública, seu programa de metas para a aceleração da indus� trialização do país. A Carta de 1988, ao instituir os termos da democracia política no país, deu início a uma mutação em nossa vida republicana, ainda em andamento e não de todo percebida, qual seja a que se expressa na tendência de converter o constitucionalismo democrático em novo paradigma dominante no sistema jurídico-político, afetando as anti� gas primazias exercidas pelo Código Civil e o poder discricionário das esferas administrativas. A emergência dessa tendência – escorada por institutos próprios, entre outros, o Ministério Público, as ações civis públicas e as de controle da constitucionalidade das leis – mo� dera, quando não inibe, o decisionismo de nossa tradição política. Pode-se entender o assim chamado processo do ‘mensalão’ como uma tentativa de reação anacrônica do conteúdo contra a forma, pois o que, na verdade, se intentava, embora por métodos nada repu� blicanos, era insular a vontade política dos governantes, no suposto de que somente deles provinha a melhor interpretação dos interesses da nação. A tentativa se frustrou, foi criminalizada e, agora, chega aos tribunais. Quanto à sorte do seu julgamento, a essa altura se trata de questão menor, confinada às artes dos especialistas em téc� nica jurídica, uma vez que, no que importa, a sociedade e suas insti� tuições já demonstraram recusar aos governantes o monopólio para decidir sobre quais são os verdadeiros interesses da nação. No mais, é como se dizia antes da invenção da ultrassonografia: nunca se sabe o que vai sair de barriga de mulher ou da cabeça de um juiz.
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As eleições de outubro: aspectos da questão municipal Paulo Kliass
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exemplo do que ocorre com os cargos semelhantes nas esfe� ras federal e estadual, os municípios realizam, a cada quatro anos, eleições para definição do chefe do Poder Executivo e dos representantes da população no Poder Legislativo. Além disso, nas cidades com mais de 200 mil habitantes, é prevista a realização de um segundo turno, caso nenhum candidato a prefeito tenha obtido mais de 50% dos votos na primeira etapa. Atualmente, o Brasil conta com 5.565 municípios, onde residem os quase 191 milhões de cidadãos. Porém, o panorama municipal reproduz um pouco o quadro de desigualdade e concentração que caracteriza uma série de outras dimensões do país. Assim, a legisla� ção trata de forma homogênea um conjunto extremamente desigual de cidades, seja em termos políticos, econômicos, sociais, populacio� nais ou territoriais. De acordo com o Censo de 2010, os dois maiores municípios bra� sileiros, em termos populacionais, são as capitais dos estados de São Paulo e do Rio de Janeiro. Elas contam, respectivamente, com 11,2 e 6,3 milhões de habitantes – ou seja, quase 10% do total da popula� ção brasileira. Mas na outra ponta do espectro, encontraremos os dois menores municípios em termos de sua população: Borá (SP), com 805, e Serra da Saudade (MG), com 815 cidadãos. Municípios: concentração e desigualdade O processo intenso de urbanização das últimas décadas combi� nou-se ao da aglomeração nos grandes polos metropolitanos, em ge� ral aglutinados em torno das capitais dos estados e regiões de maior dinâmica econômica. No entanto, o nosso desenho constitucional só prevê como entes da Federação as figuras do município e do estado, abaixo da União. As regiões metropolitanas (RMs) ainda não compor� tam a possibilidade de um tratamento particular e diferenciado. E isso contribui também para o tratamento desigual. Os municípios mais populosos concentram a grande maioria de nossos habitantes, 52
mas não contam com as condições políticas e financeiras para dar conta de suas obrigações frente a tal população. Os dez maiores municípios são representados por capitais de esta� do, aí incluído o Distrito Federal (Brasília). Juntos, apresentam um total populacional de 34,3 milhões de habitantes, ou seja, 18% da população do país. Vale lembrar que se trata tão somente de 0,2% do total de mu� nicípios. Se ampliarmos o escopo para os 55 maiores, estaríamos próxi� mos de 1% do total de cidades – nesse caso, a soma de suas populações atinge 63,4 milhões, o equivalente a 33% do total brasileiro. Caso o foco de análise seja o das regiões metropolitanas, o fenô� meno da concentração fica ainda mais evidente. Apenas as três maio� res (São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte) concentram 36,5 milhões de habitantes, equivalentes a 19% da população total. Se acrescentarmos as RMs de Porto Alegre, Recife, Fortaleza e Salvador, chegaremos a 51,3 milhões de habitantes – 27% do total. Finalmen� te, as 20 maiores RMs somadas concentram uma população de 75,8 milhões – 40% do total de nosso país. Descentralização e municipalismo Apesar dessa tendência à concentração em grandes polos urba� nos, a sociedade brasileira assistiu a um movimento em sentido con� trário, representado pela descentralização político-administrativa. A transição democrática, a partir de 1984, e a promulgação da Cons� tituição de 1988 consolidaram um sentimento generalizado de que as noções e conceitos associados à centralização eram naturalmente negativos. Concentração de poderes junto à União rimava com a épo� ca da ditadura e os ventos da democracia assobiavam ao ritmo do aprofundamento do municipalismo. É inegável a força e a importante contribuição do movimento municipalista para o sucesso da consolidação democrática. Porém, havia um certo idealismo na percepção da descentralização como uma verdadeira panaceia para todos os males derivados dos proble� mas da institucionalidade brasileira. Mas à força das ideias combi� nou-se à articulação de interesses locais e o Brasil conheceu uma onda vigorosa de emancipação de áreas espalhadas por todo o ter� ritório nacional, que se constituíam em novos municípios, logo após a consulta da população interessada, por meio de plebiscito. Para muitos observadores da cena política, esse processo era encarado como a experiência “radical” da democracia, após tantos anos de regime autoritário. As eleições de outubro: aspectos da questão municipal
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O quadro evoluiu de forma expressiva. Até 1984, contávamos com 4.102 municípios. Entre 1984 e 2000, foram criadas 1.405 no� vas cidades. Ou seja, houve um salto de 34% no total de municípios em um período bastante curto de tempo. A partir de então, foram impostas condições que tornavam mais exigentes os processos para emancipação. Assim, no período seguinte, entre 2000 e 2012, o rit� mo emancipacionista arrefeceu e foram constituídas apenas 58 no� vas cidades. Municípios e representação legislativa Outra faceta do fenômeno da centralização e da desigualdade diz respeito aos mecanismos de representação legislativa. A criação de municípios implicava a constituição de suas novas Câmaras de Verea� dores. Em 2008, foram eleitos 51 mil vereadores em todo o território nacional. Com a mudança recente nas regras de proporcionalidade, a expectativa é de que sejam eleitos por volta de 60 mil representantes no pleito de outubro. A proporcionalidade determina que o número mínimo de composição das Câmaras seja de 9 vereadores, para muni� cípios de até 15 mil habitantes. A escala cresce até o máximo de 55 vereadores para cidades com mais de 8 milhões de habitantes. Assim, fica estabelecida uma espécie de paradoxo de representa� ção. De um lado, grandes cidades, como São Paulo, em que há 1 ve� reador para cada 203 mil habitantes, ou Rio de Janeiro, onde cada vereador deverá representar 117 mil cidadãos. No outro extremo, o caso limite de cidades como Borá e Serra da Saudade, acima mencio� nadas, onde cada vereador representa por volta de 90 munícipes. Já na média da população do país, cada vereador eleito em outubro tenderá a representar 3.200 brasileiros. Por outro lado, a questão municipal apresenta a contradição entre, de um lado, as atribuições constitucionais e legais que foram atribuí� das a esse ente da Federação e, de outro lado, as fontes de recursos necessários ao cumprimento de tais mandatos. Os municípios são res� ponsáveis pelo fornecimento de serviços de saúde (no conjunto do Sis� tema Único de Saúde – SUS) e de educação fundamental, além de to� das as demais áreas como segurança, transportes, coleta de lixo, pavimentação de ruas, sinalização etc. Porém, o desenho constitucio� nal não previu adequadamente as receitas orçamentárias para o poder municipal conseguir fazer face a tal volume de despesas. As principais fontes de recursos das cidades são os tributos sobre imóveis (IPTU e ITBI) e sobre serviços de qualquer natureza (ISS), além de taxas even� tualmente constituídas para fins determinados. 54
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Muitas atribuições e poucos recursos No entanto, para a grande maioria dos municípios, esse potencial de arrecadação própria acaba não se efetivando e não consegue se converter em receita no volume necessário para a administração. As� sim, eles acabam dependendo do repasse de recursos da União para dar cabo de suas necessidades orçamentárias básicas. Trata-se das transferências previstas pelo Fundo de Participação dos Municípios (FPM), que deve distribuir por todas as 5.565 administrações munici� pais um valor equivalente a 23,5% do total arrecadado sob a forma de Imposto de Renda (IR) e Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI). De uma forma geral, a situação de penúria orçamentária e fi� nanceira dos municípios é flagrante. No entanto, a dinâmica eleito� ral existente no país dificulta o enfrentamento dessa questão de forma efetiva. As eleições municipais ocorrem justamente na meta� de do mandato dos demais poderes – governos estaduais e federal. Como existe uma forte dependência político-eleitoral daqueles que estão em contato mais direto com a população (prefeitos, vereado� res e candidatos), muito pouco se faz em termos de mudanças que se revelem sustentáveis no médio e no longo prazos. Termina preva� lecendo a lógica de se resolver questões imediatas com soluções casuísticas do aqui e agora. E isso vale principalmente pelo lado das chamadas “maldades” por parte da União. Assim, o governo federal sempre procura lançar mão de novos tributos sob a forma de “contribuições” e não IR ou IPI, para não ter que compartilhar essa arrecadação extra com estados e municípios. Ou então adia ao máximo o repasse das cotas do FPM, com o objetivo de fazer caixa no Tesouro Nacional. A capacidade econômico-financeira dos municípios vê-se ainda agravada pelas restrições impostas pela Lei Complementar n° 101/2000, a famosa Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). É ine� gável a necessidade de estabelecer regras para um maior rigor na gestão financeira dos entes da Federação. No entanto, o tratamento oferecido pela LRF acaba operando como um limitador à capacidade de investimento dos municípios, em razão do seu elevado endivida� mento e da dependência de repasses orçamentários da União. Como parcela expressiva das dívidas públicas municipais sofreu reajustes com base em indicadores financeiros perversos, sua capacidade de honrar tais compromissos no curto prazo não se viabiliza. Inclusive porque até mesmo as receitas do município tendem a se expandir a um ritmo inferior ao crescimento de suas dívidas, a maior parte delas contraídas junto à própria União. As eleições de outubro: aspectos da questão municipal
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A manutenção do equilíbrio do pacto federativo é uma tarefa difícil e de extrema sensibilidade político-administrativa. Assim, deve ser objeto de controle a conhecida tendência de nossa socieda� de em aceitar a ampliação de forma desordenada dos gastos públi� cos e não se preocupar tanto com a qualidade dos serviços ofereci� dos. No entanto, é preciso reconhecer a necessidade de recursos orçamentários para viabilizar justamente as atribuições que com� petem ao município, nessa arquitetura de repartição das responsa� bilidades federativas. Orçamento Participativo e gestão democrática Um elemento importante no debate sobre eleições e política mu� nicipal refere-se à participação da população nas decisões do poder local e as alternativas de aprofundamento da gestão democrática das cidades. As principais diretrizes a respeito da vida citadina tendem a ser consolidadas quando da elaboração e votação do orçamento mu� nicipal, processo que se realiza de forma sistemática a cada ano. Daí é que, ao longo do processo de democratização em meados da década de 1980, surgiram com grande força as ideias de ampliar a capacida� de de influência da população na definição de tais prioridades. Esse movimento se concretizava na proposta de “orçamento participativo”, em que a sociedade civil organizada atuava e operava como elemento auxiliar ao Poder Executivo e ao órgão legislativo, a Câmara Munici� pal. No entanto, as importantes mudanças político-eleitorais que o Brasil experimentou ao longo da última década não foram acompa� nhadas de uma ampliação expressiva da experiência do orçamento participativo. Repete-se o antigo fenômeno de acomodação das forças políticas que chegam ao poder e o abandono de parcela significativa das antigas bandeiras de transformação social e institucional. Além disso, há um grande espaço aberto para iniciativas que vi� sem ao aprofundamento da gestão democrática das cidades. Por um lado, medidas de estímulo à participação dos cidadãos em importan� tes espaços da vida municipal, como saúde, educação, cultura, es� portes e outros. A proximidade do indivíduo com esse tipo de serviço público permite uma maior participação nas instituições responsá� veis pelos mesmos. De outro lado, para as cidades de grande porte faz-se necessário também uma aproximação da administração públi� ca em direção aos habitantes. É o caso da criação de Administrações Regionais ou Subprefeituras, com a possibilidade de participação di� reta da população na eleição de seus representantes.
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Na verdade, trata-se da necessidade de criação de uma alternati� va à tendência de privatização das cidades. Ao longo dos últimos anos, inclusive com o apoio ideológico da ideologia neoliberal, o es� paço público passou a sofrer um processo crescente de transferência para a lógica e para o setor privados. Afinal, é sempre bom lembrar a origem histórica da palavra cidade – polis, em grego e depois em la� tim. Assim, o espaço da cidadania, da “política” em seu sentido pleno era o espaço da própria vida urbana. Ou seja, trata-se de um espaço público, por sua própria natureza. Desarmar esses e outros nós da questão municipal é essencial para qualquer projeto de desenvolvimento brasileiro. O cidadão mora no município. Seu contato político mais imediato se dá nesse primei� ro plano da ação de cidadania. O Estado se materializa no nível local, por meio de seus serviços públicos. Administrações municipais endi� vidadas e sem condições de cumprir com suas obrigações revelam-se como um atraso político-institucional e um entrave ao aprofunda� mento democrático. A proximidade das eleições de outubro pode ser um momento de avanço nesse importante debate.
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oje, nós mulheres, provamos de múltiplas formas de fazer história, de transformar nossas realidades, de lutar para con� quistar nossos direitos civis sociais e políticos. E mais: temos projetos para a melhoria da qualidade de vida das mulheres, na sua dimensão familiar e na dimensão social, urbana e rural. Também te� mos clareza para conferir e avaliar nossos avanços e precariedades, o que já conquistamos e o que ainda temos a conquistar nesse per� verso processo de desigualdade social cuja incidência é maior entre as mulheres. Na prática, somos ainda cidadãs de segunda classe, à mercê de um patriarcalismo vigoroso contra o qual precisamos estar atentas e enfrentar no nosso dia a dia. Nossa luta por afirmação é diária contra a violência que recai sobre nós seja na esfera domésti� ca, no espaço urbano, no trabalho e na esfera política. A violência fí� sica, psicológica, sexual, patrimonial e moral, mescla-se das mais variadas formas dependendo do nível de discriminação, opressão e resistência da mulher. Na prática, pagamos um alto preço pela nossa liberdade, aliás, conquistada em parte com ainda fortes obstáculos a ultrapassar; lon� go ainda é o caminho a percorrer e a política constitui-se o canal por onde nossas reivindicações poderão ecoar transformadas em atitu� des e ações, projetos tornados leis, a bem da qualidade de vida das mulheres. Por meio da política, poderemos criticar medidas governa� mentais, pressionar a favor ou contra os projetos em pauta e pelo respeito aos compromissos do Estado brasileiro com metas para a redução das desigualdades, não cumpridos. Falta implementar as políticas públicas para as mulheres, falta orçamento público para enfrentar as desigualdades. Enfim, a retórica da igualdade ainda está muito longe de sua verdade. A luta das mulheres tem sido constante, a cada ano, e mesmo assim as metas prometidas não se materializam, de que são exemplo a redução da mortalidade materna, da violência contra elas e ainda sua sub-representação. A redução da mortalidade materna em 15%, por exemplo, era uma meta dos dois Planos Nacionais de Políticas 58
para as Mulheres. Houve redução, sim, mas os índices ainda são al� tíssimos. Cerca de 90% dessas mortes poderiam ter sido evitadas com atendimento médico adequado. Um compromisso fundamental para a autonomia das mulheres é a construção de creches – a candidata Dilma prometeu, em seu Pro� grama de Governo, inaugurar uma creche por dia. No 1º ano não inaugurou nem ao menos uma. Na verdade, precisamos consolidar nosso papel de sujeito políti� co, sermos vozes femininas cada vez mais mais respeitadas do pon� to de vista social e político. Paulo Freire, na década de 1960, dizia com base no seu método de alfabetização de adultos, que o diálogo era a base do processo de conscientização sociopolítico. Declarava também ser preciso passar da consciência ingênua para a consci� ência crítica, ponto de partida para qualificar nossa intervenção sociopolítica. Embora a sociedade do século XXI tenha mudado seu formato, nesse ponto sua teoria continua legítima. Na verdade, a consciência ingênua é capturada pelos políticos populistas e pelos meios de comunicação que não primam por elevar a qualidade de suas plateias. O movimento em defesa do direito e da dignidade da mulher ini� ciou-se na Europa, mais precisamente na Rússia, Reino Unido, Fran� ça, Suécia – país onde a mulher no ano de 1862 votou pela primeira vez em eleições municipais. A luta feminista clamava por emancipa� ção e, ao mesmo tempo em que reivindicava direitos essenciais, como os de melhoria das condições de vida, brigava pela conquista do di� reito ao voto, ao trabalho, ao estudo, à livre circulação. A Revolução Industrial colocou a mulher frente aos problemas sociais e, ao tentar exercitar sua voz em prol de reivindicações coletivas, pagou caro por essa ousadia: No dia 8 de março de 1857, operárias de uma fábrica de tecidos, situada na cidade norte-americana de Nova Iorque, fize� ram uma grande greve. Ocuparam a fábrica e começaram a reivindi� car melhores condições de trabalho, tais como redução na jornada para dez horas (as fábricas exigiam 16 horas de trabalho diário), equiparação salarial (as mulheres chegavam a receber até um terço do salário de um homem, para executar o mesmo tipo de trabalho) e tratamento digno. A manifestação foi reprimida com total violência. As mulheres foram trancadas dentro da fábrica, que foi incendiada. Aproximadamente 130 tecelãs morreram carbonizadas, num ato to� talmente desumano. Em homenagem a essas mulheres, em 1910, decidiu-se, em conferência socialista na Dinamarca, que o 8 de mar� ço marcaria o Dia Internacional da Mulher, data legitimada pela ONU, em 1975. As mulheres e o desafio das cidades
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Do silêncio à voz pública Durante séculos, a mulher ocupou um papel histórico de subal� ternidade; oprimida, sexual e socialmente, viu seus direitos cercea� dos, sobretudo aqueles referentes ao seu acesso à esfera política; constituía-se, na prática, uma subcidadã isolada dos espaços le� gais de decisão. Foi nos anos 1920, período de efervescência político� -cultural, que os paradigmas conservadores passaram a ser questio� nados no campo da política (o tenentismo e a fundação do PCB), cultural (a Semana de Arte Moderna), educacionais (movimento em defesa de uma escola pública, universal e gratuita, pretendendo-se criar uma igualdade de oportunidades) e a polêmica em torno da igualdade de direitos entre os gêneros feminino e masculino Nessa década, a luta pelo direito ao voto feminino ganhou impor� tância no Brasil, seguindo as pegadas de campanhas bem sucedidas na Europa e nos Estados Unidos. Somente nos anos 1930, as mulheres garantiram seu direito ao voto por meio do novo Código Eleitoral, promulgado por Getúlio Var� gas. Em fevereiro de 2012, comemoramos 80 anos de conquista do voto feminino. Do ponto de vista retórico, a igualdade de direitos entre homens e mulheres era reconhecida em documento internacional, através da Carta das Nações Unidas, na prática, apenas um discurso. Os anos 1970 marcariam também uma década importante para o mo� vimento feminista. Fatos como o reconhecimento pela ONU do dia internacional e a luta contra a ditadura mobilizaram milhares de mulheres em movimentos como Brasil Mulher, o Nós Mulheres, o Movimento Feminino pela Anistia, para citar apenas os de São Pau� lo. O protagonismo da mulher na luta contra a ditadura fortaleceu a expansão do feminismo para além das suas fronteiras clássicas. A melhoria dos espaços urbanos (ruas, bairros) equipamentos so� ciais etc. Como resultado, na década de 1980, surgem os primeiros Conselhos Estaduais da Condição Feminina e a primeira Delegacia de Atendimento à Mulher (Deam). Nesse período, o tema da violên� cia contra a mulher ganha relevo na agenda política de nossas pou� cas representantes no Parlamento. Em 2006, é sancionada a Lei Maria da Penha. Dentre as várias mudanças, a lei aumenta o rigor nas punições das agressões contra a mulher. A cada ano galgamos mais conquistas relacionadas ao ri� gor desta lei que, se não elimina de vez esta mazela social, pelo me� nos dá maior visibilidade e consequente mobilização da sociedade. 60
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Hoje, embora insuficiente, temos muitas mulheres ocupando luga� res de destaque no Judiciário, no Legislativo e no Executivo sendo nes� te, nossa maior referência Dilma Rousseff eleita a primeira mulher pre� sidente da República Federativa do Brasil, em 31 de outubro de 2010. A luta feminista ampliou-se, volta-se também para a emancipa� ção da mulher na sociedade urbana, o que significa dizer que temas relacionados à opressão da cidade sobre o gênero humano ganharam espaço na agenda feminista. Na prática, as grandes obras assumi� ram o lugar de políticas de assentamento tão urgentes para a popu� lação das cidades. No Rio de Janeiro, comunidades são demolidas, o trânsito bloqueado em nome de eventos efêmeros como as Olimpía� das e a Copa do Mundo. O papel das mulheres na cidade O século XXI marcou a cidade como espaço de maior concentra� ção populacional no Brasil. Mais de 80% da população brasileira ha� bita o espaço urbano e as cidades tornaram-se verdadeiras armadi� lhas para sua população pobre. Enquanto o país chama atenção pelo seu crescimento econômico, ao contrário, seus índices de concentra� ção de renda (5º lugar) e Mundial de Desenvolvimento Humano (IDH) em 84º lugar são reveladores. Ao ufanismo crescente pela importân� cia econômica do país anunciam-se sucessivas catástrofes que ocor� rem como as enchentes, os desmoronamentos que recrudescem questões já conhecidas como as da precariedade dos assentamentos nos quais habita a população mais pobre das cidades. A defesa civil não pode dar conta de problemas que são de ordem estrutural. As manchetes dos jornais anunciam, dia a dia, a mazela das mulheres, enquanto a Constituição de 1988 faz crer que somos iguais perante a lei. Uma ironia, não!? Sobre nós mulheres e respectivas famílias recaem os riscos socio� ambientais de nossas cidades, sobretudo quando o recorte refere-se às camadas baixas e médias da população: as enchentes, os esgotos a céu aberto, a falta de água potável, os frequentes desmoronamen� tos dos morros, os incêndios nos guetos de pobreza dizem da vulne� rabilidade de uma parcela considerável da população que se situa nos piores territórios das cidades. Afora tudo isto, a contiguidade das residências nessas áreas onde a ventilação e a iluminação natural são precárias favorece a propagação da tuberculose e outras doenças respiratórias e afins à degradação do território. O processo de urba� nização, estimulado pela globalização, não fixou um padrão urbano As mulheres e o desafio das cidades
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de qualidade de vida que favorecesse o conjunto das famílias em que as mulheres são chefes de domicílios. Verdade é que os premiados foram os investimentos imobiliários. E como fica a mulher com sua tripla jornada ganhando menos do que os homens e carregando a família nas costas? E o que se pode falar do transporte coletivo e das condições que o mercado de trabalho oferece? Como conciliar a condição feminina e o mercado de trabalho? A luta da mulher ampliou-se, na medida em que hoje ela batalha pela democracia do espaço, por uma cidade democrática que a per� mita viver com mais qualidade cidadã, em habitação digna e condi� ções sanitárias satisfatórias para ela e sua família. Nessa direção, o poder local transformou-se em objeto de consideração quando as eleições municipais se anunciam. Queremos de fato ocupar um lugar político, exercer um papel de protagonismo sociopolítico para intervir com base na formulação de po� líticas públicas que elevem o padrão de vida das mulheres e seu entor� no. São elas quem mais de perto cuidam da formação de seus descen� dentes, enfrentando os variados percalços institucionais; creches, por exemplo, e todos os tipos de equipamentos sociais necessário a um vi� ver democrático: postos de saúde, escola, parques, clubes de vizinhan� ça, espaços de convivência de adolescente, de idosos etc. Na prática, as mulheres incorporam predominantemente os efeitos do déficit demo� crático da cidade, e muitas vezes assumem até a culpa pelos seus com� panheiros e filhos envolvidos com a contravenção... Na prática, já somos atrizes compulsórias de um perverso proces� so de desenvolvimento pouco voltado para os objetivos sociais que deveriam nortear as políticas públicas de assentamento do país. Quantas de nós dirigem suas próprias famílias, somos mães e pais, trabalhamos, educamos e corremos com nossos filhos para escolas e hospitais. Os dados dizem que mais de 18% da população brasileira são de mulheres chefes de domicílios que carregam suas famílias nas costas, sem o devido amparo institucional. Na verdade, precisamos estabelecer estratégias para atuarmos como vereadoras, prefeitas e outro qualquer cargo que exija consciência e permita ampliar nossos espaços de poder. Temos que autorizar nossas presenças, decidir o que é ou não bom para nós, aprender a formular projetos, transitar com conforto na esfera políti� ca, enfim sermos cidadãs plenas com conhecimento capaz de atuar nas prefeituras a bem da comunidade de nossos municípios.
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A mulher sempre teve poder, mas não sabia que o tinha, pois não havia consciência nem da sua potencialidade nem do seu valor nem da sua capacidade de ação, de atuação como agente político. No último quarto do século XX, o conceito de democracia ganhou força e, pouco a pouco, esvaziou a ideia que só com a revolução se chegaria à democracia e/ou ao socialismo. O conceito de vanguarda cedeu lugar ao protagonismo de forças vivas existentes dentro da sociedade civil como os movimentos étnico-raciais e de gênero (de mulheres) que, a partir da década de 1970, se fortaleceram. A voz do cidadão ampliou-se em múltiplas vozes e ao conceito de democracia moderna incorporou-se a do papel político do negro, das mulheres, dos indígenas, dos jovens, dos portadores de deficiências e outros tantos movimentos. A fim de viabilizar ganhos, reduzir as diferenças e a desigualdade, o movimento de mulheres tem que ser suprapartidário no sentido de elevar a condição feminina a patamares dignos nunca antes alcança� dos. Nessa direção, colocamos em pauta para discussão uma plata� forma elaborada pelo Núcleo de Gênero Zuleika Alambert que poderá auxiliar as futuras candidatas deste país. Plataforma feminista para democratização dos espaços das cidades A cidade constitui-se um espaço social no qual a democracia deve ser plena. Ela deve ser direito de todos como um espaço de jus� tiça social a conquistar na forma da garantia de seus direitos socio� políticos e de seus direitos urbanos. A cidade não deve constituir-se em guetos, sendo os piores destinados às famílias de baixa renda. Deve ser, isto sim, o lugar da luta democrática, na qual as mulheres sejam protagonistas de suas demandas. O agravamento da situação urbana no país (a maioria da popula� ção vive nas cidades) exige que o Movimento de Mulheres esteja de prontidão no sentido de agir em prol de uma democracia do espaço que beneficie as mulheres e suas famílias. A desigualdade social se materializa na desigualdade dos espaços, na ausência de habitações adequadas, na má circulação da cidade, no desemprego e na carên� cia de espaços de saúde, educação e lazer. Comprovadamente, na nossa sociedade, as mulheres ainda perma� necem como as principais responsáveis pela esfera da reprodução so� cial e dos cuidados, o que significa que são elas que se ocupam e res� pondem pela manutenção da casa, da comida, do cuidado com os filhos e as filhas, com os idosos, com as pessoas doentes e com deficiência. As mulheres e o desafio das cidades
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Por vivenciar de forma tão direta a falta ou insuficiência das polí� ticas, dos serviços e dos equipamentos urbanos e fiéis às diretrizes que fundamentam os valores do PPS, o Núcleo de Gênero Zuleika Alambert propõe que as candidatas e os candidatos do PPS à verean� ça e à prefeitura das pequenas, médias e grandes cidades não pou� pem esforços na tentativa de transformar a situação social das mu� lheres brasileiras. Considerando que: • com o cenário aqui apresentado, são elas que mais sofrem com a falta de moradia ou com a inadequação das suas con� dições, como a falta da água, da rede de esgotamento sanitá� rio, da coleta de lixo ou de energia elétrica; • sofrem, também, com a inexistência ou precariedade dos equipamentos públicos essenciais, tais como postos de saúde, escolas e creches; infraestrutura urbana insuficiente como a falta de pavimentação de ruas, de iluminação pública; de pra� ças, áreas e opções de lazer para ela e a família; • na esfera da produção, as mulheres cada vez mais integram o mercado de trabalho sustentando a casa com sua tripla jornada; • fazem o mesmo trabalho que os homens, mas ganham menos pelo mesmo serviço; além de enfrentarem condições desiguais em termos de oportunidades de capacitação e de chefia; • continuam sendo vítimas de assédio moral e violência física, sexual, psicológica e moral tanto em casa, como na rua, no trabalho, ou mesmo no transporte; • são afetadas diretamente pela insegurança produzida pela fal� ta do transporte próximo à moradia, pela existência de áreas ociosas e terrenos baldios a caminho de casa; • e, sobretudo, que a cidade tornou-se, praticamente, um espa� ço privado à mercê dos interesses imobiliários em detrimento dos interesses sociais da população em geral. e reconhecendo que: • as mulheres não são respeitadas, permanecendo em total in� visibilidade na cidade, não existindo políticas públicas urba� nas que deem conta da sua problemática; • a precariedade de propostas para políticas públicas urbanas voltadas para as mulheres exige que se as estimule no sentido de sua participação nas decisões sobre a cidade, seja na esfe� 64
Cleia Schiavo e Tereza Vitale
ra de seu Plano Diretor seja nas audiências públicas e junto às políticas específicas de saúde, educação etc. O Nugeza propõe o pacto d@s dirigentes, militantes e candidat@s a todos os parlamentos para: • lutar por igualdade de direitos e de oportunidades entre ho� mens e mulheres e por um Brasil justo e fraterno; • participar da luta para que os direitos das mulheres passem a ser considerados nos diagnósticos urbanos; • transformar as mulheres em população-alvo de políticas vol� tadas à superação das desigualdades sociais, econômicas, culturais e políticas que promovam boas condições de vida e de trabalho para todos, em especial, às mulheres pela preca� riedade a que estão submetidas; • transformar as mulheres em agentes de ação contra as arbi� trariedades que os governos exercem sobre a cidade como de� molições de prédios e remoções de populações de áreas caren� tes para outras para as quais não foram consultadas.
As mulheres e o desafio das cidades
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III. Observat贸rio
Autores Luiz Sérgio Henriques
Tradutor, ensaísta. É um dos organizadores das obras de Gramsci no Brasil, site: <www.gramsci.org>.
Michel Zaidan
Historiador e professor titular da Universidade Federal de Pernambuco.
Giovana Ferreira Martins Nunes Santos
Advogada e professora. Mestre e doutoranda em Políticas Públicas da Universidade Federal do Piauí.
A esquerda petista na democracia brasileira Luiz Sérgio Henriques
N
os anos 1970, Norberto Bobbio, filósofo de fina estirpe libe� ral-socialista, lançou um contundente repto ao velho PCI. Segundo Bobbio, com toda a sua sofisticação enraizada na matriz gramsciana e no conhecimento por ela proporcionado do pro� blema nacional italiano, derivado de uma reunificação tardia e “pas� siva”, sequer o PCI escapava da tradição estreita da Internacional Comunista, para a qual o objetivo central da tomada do poder levava a privilegiar o partido revolucionário e a desconhecer as mediações institucionais modernas, como, entre outras, o Estado democrático. Prevalecia, no dizer de Bobbio, uma visão instrumental do Estado e, mais em geral, das formas do processo político, o que requeria dos intelectuais comunistas uma explícita reelaboração dos temas da sua tradição. O repto de Bobbio não era pouca coisa nem estava en� dereçado a um partido intelectualmente tosco. Pelo contrário, gente como Pietro Ingrao, Giuseppe Vacca, Umberto Cerroni, Cesare Lupo� rini e outros participaram ativamente daquele debate que versava, em última instância, sobre as relações entre marxismo e Estado ou, mais precisamente, as possibilidades de mudança social num país que já não estava na periferia do capitalismo. O mundo girou, e quase meio século nos separa irreparavelmente daquelas discussões. A Itália e a Europa assistiram, se não à demo� lição, pelo menos a um forte questionamento das próprias estruturas da social-democracia, que, segundo o PCI dos anos 1970, mereciam ser oxigenadas por novos movimentos de “socialização da política” na direção de um equilíbrio mais avançado. O problema da época – que 69
parecia ser a “transição para o socialismo” em países de ponta – desa� pareceria por muitos anos diante da ofensiva das forças e das ideolo� gias de mercado, que, estas sim, por bem ou por mal, dariam à sua maneira uma resposta às dificuldades de financiamento do Estado de bem-estar social erguido no segundo pós-guerra. Nem por isso se pode dizer que aquelas preocupações suscitadas por Bobbio estejam definitivamente arquivadas num baú de ossos. Pelo contrário, os fortes abalos que têm varrido o mundo da globali� zação neoliberal repuseram ou confirmaram a esquerda no poder, inclusive no Brasil. Houve quem considerasse, nos últimos anos, que o “trem da história”, se ainda valer a velha imagem determinista, ti� vesse se recolocado em movimento a partir da América Latina. No Brasil, repito, um potente partido de esquerda, ainda que alheio em boa parte ao xadrez político que poria fim ao regime autoritário – bas� ta lembrar a abstenção no colégio eleitoral de 1984 ou o voto contrá� rio ao texto constitucional de 1988 –, beneficiar-se-ia como nenhum outro agrupamento do novo tempo democrático, conseguindo contí� nua expansão das suas bancadas legislativas e pelo menos três man� datos presidenciais sucessivos, diante de uma oposição que não dá sinais consistentes de renovação e vitalidade. Inevitável que se reatualize, na circunstância de hoje, o discurso sobre esquerda, ou esquerdas, e instituições. Ou sobre a esquerda no poder e outras figuras assumidas pela esquerda no passado, como o velho PCB. Teria o PT se afastado da virulência dos anos de origem, quando liquidava o passado do movimento operário sob o fogo cerrado da teoria do “populismo” e apregoava a ideia de um partido classista, puro e duro, que iria refundar o país longe da contaminação causada pelos partidos burgueses ou “reformistas” de um modo geral? Sua atual política de alianças – que em muitos casos abrange agrupa� mentos efetivamente conservadores e não raro, como no episódio do ‘mensalão’, parece se confundir com interferência indevida na econo� mia interna de partidos aliados e do próprio Parlamento – significaria algum tipo de retomada do aliancismo programaticamente adotado pelos comunistas do PCB a partir da crise do stalinismo, ainda antes do golpe de 1964? São perguntas que até o momento recebem respostas empíricas, quando muito. Nenhuma elaboração intelectual coerente parece fun� damentar o novo rumo, a não ser que consideremos como tal um certo apelo ultrapragmático à “governabilidade”, que justificaria a cooptação de aliados com os quais seria difícil ou impossível negociar os termos de um verdadeiro alinhamento mudancista. 70
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Nenhuma dúvida de que um grupo pode redefinir seu sistema de alianças, seus objetivos táticos ou estratégicos e até suas orientações de valor, mas é inegável que, sem uma justificação adequada, não se entende por que motivo um político como Ulysses Guimarães teve acesso vetado ao primeiro palanque de disputa presidencial de Lula e, agora, estabelece-se como que um “pacto de ferro” com o PMDB – na verdade, um pacto de baixa densidade programática. E isso justamen� te no momento em que este partido, tendo visto materializar-se o seu programa fundamental a partir da redemocratização, vê-se carente de ideias e de um grupo dirigente de âmbito nacional, como aquele outro� ra reagrupado em torno do próprio Ulysses, Tancredo e tantos outros. Não obstante a hegemonia petista neste último período, só os ideologicamente transtornados poderiam confundi-la com a antiga questão da “transição para o socialismo”. Não seria necessariamente razão para desilusão: em diferentes conjunturas, partidos de origem operária conduziram processos de expansão capitalista, encarregan� do-se, em troca, de trazer para a arena pública, com todos os títulos de legitimidade, os setores subalternos. Em cada caso, o que definiu o caráter inovador ou frustrado de tais experiências foi a relação com as instituições democráticas: também entre nós, esta relação será capaz de determinar, por décadas, a qualidade da nossa democracia política, bem como as possibilidades de crescente e continuada in� clusão social. A teoria e a prática na ação petista O episódio não é tão conhecido assim, aparece em duas ou três notas dos célebres Cadernos do cárcere e vale lembrá-lo a partir do comentário de um distante escritor italiano do século XVI, Matteo Bandello. Narrado por Bandello, envolve um dos grandes teóricos da política moderna, Nicolau Maquiavel. Autor, entre outros, de uma clássica Arte da guerra, o secretário florentino teria tido diante de si, certa vez, uma multidão de soldados, a quem lhe caberia ordenar em formação de guerra mediante os instrumentos então dispostos para tal, como tambores e cornetas. Dispensável dizer que o grande teóri� co não conseguiu o intento, desorganizando mais do que organizan� do, tendo sido socorrido por Giovanni dalle Bande Nere, condottiero treinado – praticamente – na arte militar e capaz por isso mesmo de controlar rapidamente a massa de homens e armas em dispersão. Pode-se interpretar essa pequena história como uma crítica à in� suficiência da pura teoria, mesmo representada por um homem do quilate de Maquiavel, para gerar por si só efeitos práticos imediatos. A esquerda petista na democracia brasileira
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E, de fato, não raro a teoria, desamparada de mediações, redunda em abstração distante da vida real, impotente diante da riqueza múl� tipla das suas determinações. O inverso, contudo, não raro também sucede: homens eminentemente práticos, com notável sagacidade e treino nas coisas humanas – em particular, na difícil arte da política, que alguns veem como contígua à própria guerra –, podem se atirar de corpo e alma ao mundo real, onde se cruzam incessantemente paixões e interesses, sem obter, contudo, o resultado almejado, reve� lando, antes, uma certa incapacidade de entender as mediações da política democrática. Esta última, pela sua própria natureza, impõe limites e controles, freios e contrapesos, a todos os atores e forças pre� sentes na cena pública, o que só não ocorre em indesejadas situações extremas de concentração e personalização do poder. Poderia ser interpretada assim a movimentação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e de alguns dirigentes do seu partido na imi� nência do julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), dos acon� tecimentos que passaram à recente história política como ‘mensalão’. A começar pela convocação de uma CPMI “de governo” – como aponta� do por vários analistas – que, desenvolvendo-se ao revés das comis� sões parlamentares convencionais, se limitaria a dramatizar, como num psicodrama de enredo previamente definido e pródigo em ima� gens, investigações policiais já em curso ou próximas da conclusão. E no roteiro aventuroso dessa CPMI, ao que parece, constava a colocação no banco dos réus de instituições essenciais da República, como, entre outras, o Ministério Público – para não falar da tentativa de condicionar os votos de ministros da própria Suprema Corte, se� gundo denúncia de um dos integrantes deste mesmo tribunal. Mera ação de “maquiaveis de pensão”, coadjuvada talvez por au� toridades e ex-autoridades da República pouco ciosas do que já se chamou de “liturgia do cargo”? Mais um sinal dos tempos, em que o partido hegemônico da esquerda, sem ter (ainda) desenvolvido uma cultura política democrática e reformista, se sente refém de espas� mos autoritários, de acordo com os quais, como sugeriu o sóbrio Antonio Fernando de Souza, ex-procurador-geral da República, po� deria se arvorar como a única instância definidora do que é crime e o que não é crime? É provável que haja um pouco de tudo isso, mas, antes de mais nada, a possibilidade mais forte é de que ainda estejamos a viver a tumultuada trajetória de adaptação de corações e mentes da esquer� da (das suas várias vertentes) às instituições da democracia política, necessariamente plurais e contraditórias, expressão de uma socieda� 72
Luiz Sérgio Henriques
de civil relativamente livre de constrangimentos estatais, na qual se cruzam, à moda do “Ocidente” político, as mais variadas forças e inspirações ideais. O embate entre elas é legítimo e, a depender da inteligência dos atores progressistas, pode produzir equilíbrios so� cialmente avançados e culturalmente enriquecedores. Na verdade, é isso o que torna impermeável este “Ocidente” a projetos autoritários de mudança, fortemente dependentes de personalidades carismáti� cas e da arregimentação, de cima para baixo, das instituições da sociedade, projetos que ainda incendeiam a imaginação de parte não desprezível da nossa esquerda. No “Ocidente” político, entre outras coisas, não deveria causar estranheza nem ser motivo de escândalo a existência de uma im� prensa liberal-conservadora. Em outros países e em outros momen� tos, partidos da esquerda souberam criar jornais memoráveis, com impacto duradouro na política e na própria cultura nacional, como o L’Unità italiano e o L’Humanité francês, curiosamente um caminho nunca testado, desde a hora da fundação, pelo principal partido da esquerda do Brasil redemocratizado. No “Ocidente”, instituições como a Suprema Corte não vivem no vácuo nem são uma instância neutra de poder, que decida, para citar o filósofo Ronald Dworkin, com independência das concepções de moralidade pública de cada juiz. Mas cabe esperar que suas decisões não sejam partidarizadas em sentido estrito e se revistam de um conteúdo pedagógico, ensi� nando-nos, como último recurso constitucional, o modo pelo qual se compõem as desavenças inelimináveis da vida política. No fundo, respeitado o direito sagrado de defesa, a ser exercido em sua plenitude, boa parte das lições do julgamento de agosto vai depender do comportamento da própria esquerda, atingida na figura de alguns dos seus dirigentes mais evidentes. Deveria estar excluído desse comportamento tudo aquilo que, ao longo da História e em de� trimento da grandeza de Maquiavel, tornou infames ou negativamen� te conotados os adjetivos derivados do seu nome.
A esquerda petista na democracia brasileira
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Linguagem e história
(A propósito da origem da linguagem humana nas obras de Walter Benjamin) Michel Zaidan
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Tudo seria perfeito se o homem pudesse fazer as coisas duas ve� zes”, com esse pequeno ditado de Goethe seria possível iniciar a discussão entre linguagem e história, ou a origem, a transforma� ção e as funções da linguagem humana através do tempo, na obra do filósofo alemão Walter Benjamin. O impulso ontogenético de repetir ou reconhecer as semelhanças entre as coisas está na base dos estudos benjaminianos da lingua� gem humana. A esse impulso, ele dá o nome de mímesis ou faculda� de mimética. Esta faculdade é a origem mais remota da linguagem dos homens. Ela só foi precedida pela onomatopeia e a dança. A manifestação mais antiga dessa faculdade mimética, na histó� ria biográfica do indivíduo, é o jogo e a brincadeira. Através da ativi� dade lúdica, a criança não se limita a copiar o mundo e as atitudes e gestos dos adultos, mas ela recria o mundo, ressignificando os obje� tos e as práticas culturais ao seu redor. Neste sentido, brincar é mudar o mundo por meio das palavras, dá-lhe um novo sentido. A atividade mimética do ser humano – como brincadeira – é um eterno recomeçar, recopiar, recriar a realidade. E o prazer da criança (como do adulto criador) está nesta repetição infinita, que não é mera repetição, mas recriação. Originalmente o impulso mimético se con� tenta em repetir, copiar ou reproduzir. Depois, ele passa a estabele� cer conexões e analogias entre as coisas, de uma forma ampla e apa� rentemente sem relação de semelhança entre elas. É a chamada semelhança não sensível ou mágica, ao pressupor uma rede de cor� respondências invisível – a olho nu – entre todos os seres e objetos. Essa rede de correspondências se daria tanto no micro como no ma� crocosmo. E teria sobrevivido até hoje na escrita e na fala, sendo, portanto o maior arquivo de semelhanças não sensíveis existente. A teoria benjaminiana da linguagem não se resume à faculdade mimética, por mais importante que ela seja – sobretudo em sua fase materialista. Essa teoria começa, na verdade, com as especulações religiosas e místicas sobre a origem da linguagem adamítica, a lingua� 74
gem humana antes do “pecado original”. Nesse tempo mítico, os ho� mens chamavam as coisas pelos seus verdadeiros nomes, fazendo as criaturas falarem através da designação humana, traduzindo sua es� sência espiritual em sua essência linguística. Cada nome, cada coisa. A linguagem adamítica não possuía nenhuma função comunica� tiva ou pragmática: seu fim era comunicar a si mesma. Sua função era designativa: por meio dela, eram evocadas as coisas. Só o homem tinha esse poder de fazer as coisas falarem através de sua linguagem. Isto porque a linguagem humana participava da linguagem divina, aquela que criou o mundo do nada a partir dos nomes de cada coisa. Por participar do verbo divino, o verbo humano conservou o poder de chamar cada coisa pelo seu próprio e dar voz à mudez da natureza. Mas, com “o pecado original” a função designativa da linguagem humana se perverteu e assumiu as funções comunicativas e pragmá� ticas. A linguagem dos homens perdeu a sua função mimética e nomeadora e se tornou manipuladora e falsa. É a linguagem do direi� to, da ciência e da política, que submete as coisas e as pessoas a objetivos, interesses e propósitos distintos da sua essência espiritual e linguística. Ao estabelecer “a vontade de verdade” como motivação para nomear as coisas, a linguagem humana foi submetida a uma “vontade de poder” que julga, sentencia e condena, em tudo distinta da função nomeadora e designativa da linguagem adamítica. Neste ponto, o nome não passaria de mera convenção ou código linguístico designação aleatória, acidental, sem nenhuma relação com a essência linguística ou espiritual das coisas. Cumpriria à lin� guagem da arte, da poesia, da literatura restabelecer, talvez, a fun� ção mimética perdida ao resgatar da linguagem corriqueira os ecos da linguagem adamítica. Daí a sua função lúdica ou mágica. A última fase da teoria benjaminiana da linguagem está associa� da à alegoria, “o dizer o outro”, a linguagem da alteridade semântica. Depois da fase mágica (mímesis), da fase religiosa (a linguagem dos nomes), a fase alegórica tem, na obra do autor, duas fontes de inspi� ração: a) a concepção barroca da História; b) a teoria do fetichismo da mercadoria. a) a concepção barroca da Historia (A origem do drama barroco alemão) se apresenta como a história dos vencidos, dos malogrados, dos sofridos, de “quem falhei ser”, como diz o poeta português. A vi� são barroca da História se apoia numa total depreciação física e es� piritual do mundo humano e natural, como mundo imperfeito, peca� minoso, finito e tendente a morte ou a mineralização da vida.
Linguagem e história
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Para esta visão religiosa e teocêntrica, o mundo humano – sem a graça divina – não tem sentido ou razão de existir. Sendo, dessa ma� neira, uma mera matéria-prima de um eterno processo de significa� ção nas mãos de Deus. Nada tem direito sobre si próprio. Cada pes� soa, cada coisa pode significar qualquer coisa, qualquer pessoa, como numa cadeia infinito de sentidos onde cada elo significa o elo seguinte, numa distinção entre significante e significado. Tudo morre e ressuscita na mão do alegorista divino, para expressar sempre no� vas significações. Esse é o nobre destino da criatura humana, num mundo se Deus e a graça divina. A segunda fonte (b) para o estudo da alegoria na obra de Walter Benjamin são os ensaios sobre Baudelaire ou o chamado “Trabalho das Passagens”. Este amplo painel sobre as transformações urbanís� ticas de Paris, na segunda metade do século XIX é uma análise so� ciocrítica (Pierre Zima) da poesia de Charles Baudelaire, segundo a ótica das mudanças estruturais que ocorrem na Europa, depois da Revolução de 1848. Aqui, a principal chave teórica utilizada pelo au� tor é a “Teoria do Fetichismo da Mercadoria” (Marx) tomada de em� préstimo do filósofo húngaro George Lucaks. Benjamin mostra como o valor de troca das mercadorias produzi� das pelo mercado capitalista opera uma verdadeira ressignificação das coisas e das pessoas, a partir de seu preço no mercado. O capital transforma relações sociais (assalariadas) em coisa (valor de troca) e coisas (valores de uso) em seres animados. O seu significado é dado pelo preço fixado pelas relações de troca, nivelando tudo e a todos pelo tempo de trabalho necessário (tempo médio) para sua produção. A mercadoria (valor de troca) ganha vida própria nas vitrines e maga� zines das “Passagens” parisienses e a força de trabalho (os operários) vira uma grandeza abstrata, usada como cálculo para o preço das mercadorias. O produtor só se encontra com o seu produto na quali� dade de consumidor e não de seu criador. Essa operação dá vida às fantasmagorias da modernidade, ex� pressas através das “imagens do desejo” que, ora, são a manifestação das utopias do imaginário social, ora mitos que reforçam as carên� cias do produto social. O socialismo é a utopia, ainda que misture o velho com o novo. O capitalismo é o mito que reproduz o existente e enfeitiça o consumidor, que pode ser ao mesmo tempo vendedor e mercadoria – como o flaneur e a prostituta. O papel do historiador será então psicanalisar as imagens do de� sejo, separando o mito da utopia, e despertar a sociedade para a transformação social (através da luta de classes). 76
Michel Zaidan
Referências BENJAMIN, Walter. Sobre a linguagem dos homens e a linguagem em geral. Obras Escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1985. ––––––. A teoria das semelhanças. Obras Escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1985. ––––––. A faculdade mimética. São Paulo: Brasiliense, 1985. ––––––. A origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1985. ––––––. Alguns ensaios sobre Baudelaire. Os Pensadores. São Paulo, 1974. ––––––. Sobre o jogo e a brincadeira. Obras Escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1985. ZAIDAN FILHO, Michel. A crise da razão histórica. Campinas: Papirus, 1989. ______. Ensaios de Teoria. Recife: NEEPD, 2012.
Linguagem e história
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Programa Pai Presente e o ativismo judicial Giovana Ferreira Martins Nunes Santos
S
egundo o Censo de 2009, são quase cinco milhões de “filhos da mãe” no Brasil. Esse número, que representa apenas as crianças e adolescentes matriculados nas escolas, assusta e preocupa. O Poder Público, mais uma vez, busca soluções para resol� ver ou, ao menos, amenizar o problema da falta do nome do pai nos registros de nascimento dos brasileiros. A novidade é a mobilização do Poder Judiciário para atuar em uma esfera que, precipuamente, não seria de sua competência. Maior surpresa, ainda, é verificar que essa ajuda tenha partido do Conse� lho Nacional de Justiça (CNJ), órgão administrativo vinculado ao Ju� diciário cuja função constitucional é de “controlar a atuação admi� nistrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes” (art. 103-B, § 4º). É importante deixar claro que não se pretende fazer crítica à boa vontade do Poder Judiciário, em especial, do CNJ, em conceder aos milhões de brasileiros o direito à identidade, enquanto atributo da personalidade, e a garantia de sua mantença e desenvolvimento ple� no custeado por ambos os pais, pois na maioria dos casos a respon� sabilidade recai unicamente sobre a mãe. No que tange às políticas públicas, o Judiciário apenas deveria se restringir à verificação de legalidade dos elementos vinculados ao ato administrativo. Mas diante da inaplicabilidade dos direitos funda� mentais passa, então, esse poder a intervir para garantir as deman� das sociais e legitimar o exercício do Estado democrático de Direito. Luis Roberto Barroso corrobora esse entendimento. Uma das instigantes novidades no Brasil dos últimos anos foi a virtuosa ascensão institucional do Poder Judiciário. Recuperadas as liberdades democráticas e as garantias da magistratura, juízes e tribunais deixaram de ser um depar� tamento técnico especializado e passaram a desempenhar um papel político, dividindo espaço com o Legislativo e com o Executivo. Tal circunstância acarretou uma modificação 78
substantiva na relação da sociedade com as instituições ju� diciais, impondo reformas estruturais e suscitando questões complexas acerca da extensão de seus poderes (BARROSO, 2007, p. 167). O “Programa Pai Presente”, cuja denominação assemelha-se às po� líticas públicas do Estado para a inserção social, foi criado pelo CNJ por meio do Provimento nº 12/2010, que determinava às Corregedo� rias dos Tribunais de Justiça do Estado que encaminhassem aos juízes os nomes dos alunos matriculados sem a informação do nome do pai para os procedimentos de averiguação de paternidade. O ativismo judicial não parou por aí. No dia 17 de fevereiro de 2012, o Conselho Nacional de Justiça publicou mais um provimento, de nº 16, concedendo à mãe ou ao filho maior, a faculdade de com� parecer em qualquer cartório de registro civil, para informar o nome do suposto pai. A partir dessa data, o oficial de registro lavra um termo e o encaminha ao juiz que notifica o genitor para, querendo, aceitar ou recusar a paternidade. A lei concede o prazo de 30 dias para a resposta do suposto pai e, em caso de omissão ou recusa, o juiz encaminha o caso ao Ministério Público ou Defensoria para pro� posição da Ação de Investigação de Paternidade. Ressalte-se que o legislador brasileiro já vem se cercando de inú� meras normatizações no sentido de promover o reconhecimento da paternidade. A Lei nº 8.560/92 estabeleceu que apenas durante o registro de nascimento, o oficial deveria questionar a paternidade e informar ao juiz a identidade do suposto pai, que deveria ser notifi� cado pelo magistrado. A lei admite também que o reconhecimento por parte do pai possa ocorrer a qualquer tempo, e não apenas no momento do registro de nascimento (art. 26, do Estatuto da Criança e do Adolescente, e 1.609, do Código Civil), e ainda, por meio de es� critura pública ou privada, testamento, ou mesmo perante um juiz em qualquer ação judicial (art. 1.609, do Código Civil). Para os casos mais extremos de recusa do suposto pai a se sub� meter ao exame de DNA, a Lei nº 12.004/2009 estabelece a presun� ção de paternidade e os consequentes efeitos e responsabilidades recaem sobre o investigado, inobstante a falta de confirmação. A questão que se discute é a possibilidade da edição de provimen� tos ou atos regulamentares dessa natureza pelo Conselho Nacional de Justiça. Trata-se, portanto, de averiguar acerca dos limites cons� titucionais desse conselho.
Programa Pai Presente e o ativismo judicial
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A respeito do assunto, parece um equívoco admitir que o CNJ possa, mediante expedição de atos regulamentares, substituir-se à vontade geral (Poder Legislativo), pois a leitura do texto constitucio� nal não dá azo à tese de que o constituinte derivado tenha “delegado” o poder de romper com o princípio da reserva de lei e de reserva de jurisdição (STRECK, SARLET, CLÉVE, 2005). Além de ser inimaginá� vel que o constituinte derivado tenha transformado os conselhos em órgãos com poder equiparado aos do legislador para fins de controle externo da atuação do Judiciário, mais difícil ainda é vê-lo legislando em matéria alheia à sua competência, como é o caso da inovação no procedimento de reconhecimento de paternidade. No Estado democrático de direito, é inconcebível permitir-se a um órgão administrativo expedir atos (resoluções, decretos, portarias etc.) com força de lei, cujos reflexos possam avançar sobre direitos fundamentais, circunstância que faz com que tais atos sejam ao mesmo tempo legislativos e executivos, isto é, como bem lembra Ca� notilho, a um só tempo “leis e execução de leis” (STRECK, SARLET, CLÉVE, 2005, p. 20). A permissividade concedida pelo constituinte derivado encontra limitações tanto no que tange à emissão e expedição de provimentos com caráter geral e abstrato, em face de reserva de lei, quanto no que se refere à impossibilidade de ingerência nos direitos e garantias fun� damentais dos cidadãos. Por este instrumento, no ordenamento bra� sileiro, não é possível nem substituir nem alterar dispositivo legal. O Conselho Nacional de Justiça foi criado para fiscalização adminis� trativa dos juízes e do Poder Judiciário, em casos concretos. Qual� quer regulamentação sobre o direito à identidade ou o reconheci� mento de paternidade ultrapassa a esfera de atuação dos atos regulamentares desse Conselho. Trata-se de matéria reservada à lei. O Provimento nº 16 não tem apenas o caráter de promover uma padronização do reconhecimento de paternidade. Ele altera o proce� dimento estabelecido pela lei, criando um novo mecanismo “com o escopo de sanar a lacuna” legal, como se verifica na exposição de motivos do provimento. Portanto, não desmerecendo a boa intenção do Conselho Nacional de Justiça em amenizar o número de brasileiros “filhos da mãe”, acre� dita-se que esta atuação ultrapassa os limites constitucionais, tanto pelo fato de dispor sobre matéria alheia à sua competência, quanto por ser formalizada através de um provimento que, enquanto instru� mento normativo, é incapaz de promover alteração do texto legal.
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Giovana Ferreira Martins Nunes Santos
IV. Economia e Desenvolvimento
Autores Demetrio Carneiro da Cunha Oliveira Economista, especialista em Políticas Públicas.
Antônio Carlos Mendes da Rocha
Professor universitário e mestre em Ciência Política.
Luiz Carlos Prestes Filho
Vice-presidente da Associação Brasileira de Gestão Cultural (ABGC) e autor dos livros Economia da Cultura – a força da indústria cultural do Rio de Janeiro! (2002), Cadeia Produtiva da Economia do Carnaval (2005) e Cadeia Produtiva da Economia do Carnaval (2009).
Onde falha o “modelo” atual?
Demetrio Carneiro da Cunha Oliveira
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s previsões não são apenas de recuo na economia mundial, mas também são de recuo no valor do PIB de 2012. Do otimis� mo inicial dos 4,5% de expansão, já caímos para a admissão implícita de que o PIB poderá ser menos da metade do previsto e al� guns analistas acreditam que chegue a 40%. De momento, o impacto do recuo não se fez sentir ainda nos indicadores passados da arreca� dação tributária, que continua batendo recordes, da massa salarial, que continua dando ganhos reais ou sobre o nível de emprego. Per� manecendo a tendência de queda e nada indica que venha a mudar, logo os indicadores irão sinalizar as consequências, mais cedo ou mais tarde. Sabendo disso, em véspera de eleições municipais que possuem um forte componente estratégico para o seu projeto de po� der, o governo não tem poupado o uso dos instrumentos que valoriza como os melhores para a ocasião. A ineficácia do resultado leva à indagação sobre a qualificação da equipe econômica, com questiona� mentos diretos atingindo o considerado homem forte da economia, Guido Mantega, e a própria presidente. Trata-se das pessoas erradas ou do modelo errado? Trocar Man� tega por A ou B mudará a tendência de crescimento medíocre da economia ou será necessário mudar Dilma e todo o seu arco de po� der? No primeiro caso, basta uma canetada. Supondo que o certo é a segunda possibilidade é preciso voto e, para ter voto, é preciso ter opções a apresentar. Está na hora de discutir se não é o modelo que está errado, sob o risco de continuarmos com o mesmo modelo, mas com nomes diferentes. 83
Na década de 1940, o debate entre americanos envolvia a estabili� dade geral da sua economia, que se movia em ciclos que sucediam al� tas e baixas. Até à Grande Depressão de 1929, eles já haviam passado por pelo menos outras oito fortes depressões (1780, 1810, 1830, 1850, 1870, 1890, 1907-08 e 1920-21).1 Neste sentido, a aprovação, em 1946, pela Casa dos Representantes, do Employment Act,2 de inspira� ção keynesiana, traçava, pela primeira vez, regras da intervenção do Estado na economia, criava um mecanismo institucional de controle e avaliação do desempenho geral da economia, ao tempo em que dava ao Estado a responsabilidade e a obrigação de perseguir uma meta de Pleno Emprego. Assim, mudou o quadro histórico, inaugurando o que hoje podemos chamar de Era Keynesiana. Não só a atitude americana serviu de exemplo para outros Estados-nação, principalmente nas eco� nomias mais avançadas, como a compreensão sobre o funcionamento dos ciclos econômicos e a forma de agir sobre eles fez com que os ciclos tenham sido, de alguma forma, suavizados, nas décadas seguintes. Claro que é preciso também considerar os componentes autônomos que dirigiram o fortíssimo crescimento da economia mundial nos anos que se seguiram à Segunda Grande Guerra: agregação de grandes massas de consumidores à produção industrial e a seu estilo de con� sumo com impactos que se fariam sentir principalmente na questão ambiental, tamanho o volume de recursos mobilizados. Aquela intervenção na economia, que, nos países do Centro do Sistema-Mundo Capitalista, estava voltada a procurar mantê-los sem� pre próximos à sua máxima eficiência, o Pleno Emprego, nos países da Semi-Periferia e da Periferia tomaria a forma da busca pelo emprego, reconhecendo que essas economias estavam bem longe de realizar seu potencial. Era o início da intervenção do Estado na economia com a finalidade de estimular o crescimento e buscar o Centro do sistema. Perseguir o Centro e a qualidade de vida de suas populações passou a ser a aspiração de todos os governos. Mesmo que para muitos esse Centro tivesse o nome de socialismo e que o projeto fosse que todos tivessem a mesma qualidade de vida, o que de forma evidente não ocorria nos países periféricos. 1
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Joseph Schumpeter e a destruição criativa, Thomas K. McCraw. São Paulo: Record. 2012, p. 737, nota 6. Na realidade, o Employment Act of 1946 teve sua origem no Full Employment Act de 1945, uma proposta de lei fortemente intervencionista. Entre a proposta e a lei, houve um grande debate, e a lei, por pressão dos deputados conservadores, foi bas� tante “suavizada”, mas manteve os pressupostos da lógica de intervenção estatal na economia, na intenção de estimular a demanda agregada, mantendo o nível de emprego nas proximidades do pleno emprego. Naqueles debates, Lord Keynes era visto pelos conservadores americanos como um agente comunista. Demetrio Carneiro da Cunha Oliveira
Entre nós brasileiros, tradicionalmente, modelos de crescimento es� tão embutidos nas lógicas de política pública na economia, desde Getú� lio Vargas. O invariável modelo de crescimento brasileiro tem sido sua conexão com o Centro. Em diversos formatos, diferentes historicamen� te, somos exportadores de commodities devido aos nossos amplos recur� sos naturais, renováveis ou não, e importadores de conhecimento no formato de patentes. A lógica de nossa inserção na cadeia produtiva internacional não segue outro caminho e o melhor exemplo é a “nossa” indústria automotiva, que de nossa atualmente só tem mesmo um pe� queno segmento em autopeças. Nesse sentido, nossa leitura nacionalis� ta comete vários equívocos. A começar por desconhecer a propriedade do conhecimento e seu papel dinâmico na economia moderna. Dilma Roussef não mudou a lógica histórica de dominação-subordi� nação, pelo contrário tem demonstrado, em diversas medidas destina� das a escapar da crise e retomar o crescimento, que está dentro dela, embora tenha assumido seu cargo em meio a promessas de mudanças. No terreno da política, seu governo ficou travado pela necessidade de atender as demandas complexas de uma base de governo que vai de A a Z, ao mesmo tempo que precisa se declarar fiel aos sonhos petistas mais radicais como o controle da mídia ou a bolivarização da política externa brasileira. A aliança com o neopatrimonialismo e a proatividade de setores do próprio Estado como o Ministério Público Federal, Advo� cacia Geral da União e a Polícia Federal, mas a retomada de um jorna� lismo de caráter investigativo com foco na atuação dos agentes políticos não deram liga e os escândalos foram se sucedendo de forma quase que rotineira atingindo a administração direta federal. Esse quadro político levou ao chão promessas de campanha como a revisão da forte regres� são tributária ou o debate sobre a reforma previdenciária e mesmo a reforma política. Podemos listar aí todos os diversos itens que compõem o custo-Brasil e dependem de negociações políticas. Nessa questão de avaliar o custo Brasil, um bom parâmetro é a literal falência do modelo de previdência privada dos portuários, por conta do não pagamento da parte-contribuição das Companhias de Docas, que são estatais... Na Economia, permaneceu outra invariável do modelo brasileiro de crescimento: o Estado é o único agente confiável de crescimento. Igno� rando as lições do processo histórico, o modelo de Dilma parte da premissa de que o Estado e apenas ele e seus agentes são capazes de trazer e consolidar o crescimento. Insiste em ignorar a máxima de que o progresso precisa ser socialmente desejado e que a coparticipação da sociedade e da iniciativa privada é fundamental nesse processo. Onde falha o “modelo” atual?
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Buscando-se apenas a sobrevivência política, permaneceu a es� tratégia lulista de trocar mudanças institucionais e estruturantes por atalhos. Ai se instalam outros pontos fracos do modelo de Dilma, por serem insustentáveis, principalmente na crise: Gasto público. De princípio, ninguém duvida que o gasto público estimule a demanda agregada. Mas sabemos também que a confian� ça dos agentes econômicos pode afetar essa ação de governo. Caso os agentes não acreditem no processo e não estejam dispostos a apostar junto com o governo, gastar pode não ser a solução. É um pouco o que estamos vivendo hoje em diversas economias, inclusive a nossa. Além disso, embora o gasto se constitua uma excelente oportunidade de fazer novos amigos e consolidar velhas amizades, ele não traz algo de essencial para as economias: não traz o novo. O novo só toma corpo e funciona como agente de desenvolvimento das economias com investimentos significativos. Bom anotar que investimentos em atividades já tradicionais da economia podem ser importantes, mas a dinâmica só se dá com in� vestimentos em inovações. Independentemente do fiasco administra� tivo e político é sob esse prisma que a questão do pré-sal precisaria ter sido avaliada e não pelo lado ufanista tipo “vamos detonar todos os nossos recursos naturais e todo mundo vai ficar rico...”. Economias que não investem nas inovações tecnológicas estão fadadas ao crescimento medíocre. É aonde chegaremos com nossos gastos elevadíssimos em pessoal e custeio, sem qualquer preocupa� ção com a redução de gastos para viabilizar a poupança e o conse� quente investimento. Consumo. Esse é o outro instrumento do modelo de Dilma. Não sendo o gasto suficiente para sustentar o crescimento, a decisão é por estimular o consumo das famílias. A hipótese é inicialmente cor� reta. A massa salarial vem crescendo num ritmo acima da inflação, com importantes ganhos reais. No mês de maio deste ano, por exem� plo, sobre maio de 2011, a massa salarial cresceu 3,8% em termos reais. O que a hipótese não tem em vista é a ausência da tradição de poupança entre as famílias e o peso do estímulo governamental ao consumo. Há um limite de endividamento das famílias. Andamos hoje bem próximos dele, mas o governo continua querendo estimular uma expansão de consumo que, se for além da renda, vai gerar fortes problemas às famílias, como ficou claro com as recentes medidas adotadas sobre o IPI. O efeito positivo com a redução da inflação e o fato de a renúncia não haver afetado o recorde de arrecadação tributária deveriam ter 86
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levado o governo a eliminar em definitivo o imposto de produto indus� trializado, reduzindo o preço final dos produtos e dando mais poder de arbítrio ao consumidor para aplicar a renda não apropriada. Em linhas mais gerais, o que mudou de Lula para Dilma foi a adoção do emprego na economia como referência e a relativização da meta de inflação. No modelo de Dilma, a meta deixa de ser controlar a inflação prio� ritariamente e estimular de forma permanente o nível de emprego na economia. Em tese, seria uma proposta de mirar no crescimento da economia, mesmo que à custa de um ritmo de inflação mais alto. No modelo anterior, toda vez que a inflação representasse risco de sair do centro da meta prevista pelo Conselho Monetário Nacional, a ideia era segurar o crescimento para desaquecer a economia. O for� mato tradicional era oferecer taxas mais altas de juros ao mercado por meio da taxa básica da economia, a Selic. Com taxas mais atra� tivas, os recursos seriam desaplicados da economia para o mercado financeiro, desacelerando o crescimento. A conhecida colateral era o aumento do custo da dívida pública. A estratégia adotada foi deixar de mirar no centro da meta para mirar o teto da meta, admitindo uma pequena variação em torno do teto. Essa mudança na tolerância tirou um pouco o papel restritivo da política monetária, abriu mais espaço para a política fiscal e para a queda continuada da taxa Selic até às proximidades da taxa de equi� líbrio de mercado. O efeito imediato foi na redução do custo da dívi� da, com reflexos na redução do gasto público. A crise internacional, de alguma forma, avalizou a proposta na medida em que o investi� mento na dívida pública brasileira pode hoje ser encarado como mais seguro do que em dívidas públicas de outras nações. Nesse momento, o alinhamento da inflação com a redução da ati� vidade da economia, conforme se expressa na queda da previsão do PIB para 2012, atua como uma confirmação de que o espaço para redução da taxa Selic permanece. A questão é definir o que se fará com a economia na despesa de rolagem da dívida ou de sua criação. Essa parte do modelo de Dilma, olhar para o emprego e não para a inflação e o uso do gasto público, tem dois problemas. O primeiro é que a falta generalizada de investimentos, principal� mente na infraestrutura, nos coloca sempre muito próximos da ca� pacidade potencial da economia. A redução da taxa Selic não se deu por fatores estruturais, mas por uma arriscada estratégia que só deu certo devido ao fato da atividade econômica haver caminhado no sen� Onde falha o “modelo” atual?
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tido da baixa da atividade. Uma retomada efetiva do crescimento, nos níveis ambicionados pelo governo, certamente iria forçar a alta da taxa Selic ou a necessidade de conviver com níveis inflacionários bem acima do teto da meta. De certa forma, a indexação do salário mínimo justifica outras tentativas de indexação, legitimando movi� mento por reajuste salarial, tanto no setor público quanto no setor privado. Se somarmos a isso a escassez de mão de obra mais qualifi� cada, devido ao nosso péssimo sistema de ensino/preparação técni� ca, não é difícil imaginar que o trabalhador tem hoje maiores condi� ções de demandar melhores salários. Voltando rapidamente à questão da infraestrutura, é bom ressaltar a debilidade das propostas gover� namentais nessa área. A maior parte dos recursos em infraestrutura está sendo executada naquilo que parece dar mais votos que é o Mi� nha Casa Minha Vida. No âmbito do próprio PAC, é o programa mais privilegiado. Não é preciso entender muito de custo-Brasil para saber as consequências dessa proposta de trabalho... O segundo problema está na confiança do agente econômico. O gasto público não impacta automaticamente, enquanto multiplica� dor, em favor do aumento da demanda agregada. Evidentemente in� jetar mais recursos na economia, via salários dos servidores e a com� pra de bens e serviços, tem efeito positivo. O problema é se produz efeito multiplicador. E, nesse caso, é preciso que o agente econômico esteja disposto a correr riscos. Para isso, ele precisa poder confiar nos agentes políticos e em sua capacidade de condução da economia. Não é o que vem acontecendo e nesses momentos o efeito multiplica� dor dos gastos públicos é reduzido. Por isso, as atuais medidas não dão resultado, mesmo aquelas de renúncia fiscal, que poderiam ge� rar efeitos semelhantes ao gasto. Para finalizar, outro ponto importante do modelo de Dilma é que ela não esclarece qual objetivo final se pretende. Afinal, o que quere� mos além de uma sociedade mais justa? Nossa proposta de socieda� de mira numa caminhada para o Centro onde repetiremos os mes� mos padrões de qualidade de vida das sociedades “desenvolvidas”? Num planeta onde o crescimento a qualquer custo das últimas déca� das tem pressionado intensamente os ecossistemas, prejudicando os seus serviços, tem levado ao esgotamento acelerado de recursos na� turais e mesmo ao fim da capacidade de reposição de alguns recur� sos naturais renováveis como a pesca e as florestas, afetando mesmo a capacidade natural de resiliência, questão esta que não pode ficar de fora do debate.
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Combinação de esforços para o desenvolvimento econômico e social Antonio Carlos Mendes da Rocha Introdução Observando-se as dimensões acerca do tema desenvolvimento, pode-se presumir que a história da humanidade se converte na pró� pria história do desenvolvimento. Os seres humanos ao constituir formas primitivas de comunicação e de domínio sobre a natureza e, a partir daí, instituir os primeiros esboços de vida em sociedade, tra� duzem o que pode ser apreendido como um processo natural de mu� danças e inovações. Neste sentido, parece correto associar o processo de desenvolvi� mento humano ao processo de evolução das sociedades em geral. Embora muitas vezes fatores exógenos possam exercer apreciável in� fluência, em última instância, processos de desenvolvimento estão associados, ou até subordinados, a determinadas forças de interven� ção – políticas, econômicas, sociais, que, por sua vez, correspondem a uma espécie de ato de vontade explicitada. Depende, portanto, da ação do homem, Mas não de um homem, de um indivíduo, e sim de grupos de indivíduos vivendo em sociedade. E esta ação se deu his� toricamente de maneira muito mais eficaz conforme o grau de desen� volvimento das estruturas e instituições sociais e políticas. Quando se faz referência à parceria, não significa um acordo bu� rocrático ou uma mera assinatura de carta de intenções. Pressupõe� -se, a partir de crenças, valores e visão de futuro compartilhada, um conjunto de esforços por parte das organizações governamentais, não governamentais e privadas para realização de ações conjuntas que visem a resultados coletivos. Isto é, compartilham recursos, hu� manos ou materiais, para a obtenção de resultados. 1. Ideias iniciais sobre a gênese do desenvolvimento A expansão do processo de industrialização que ocorre a partir do final da Segunda Guerra Mundial, mais precisamente na primeira metade do século XX, é marcada pela hegemonia norte-americana na 89
área que compreende os países que formaram o chamado bloco libe� ral da Guerra Fria, e pela ocorrência de um processo de desenvolvi� mento e, também, pelos pactos de segurança coletiva em torno da Organização das Nações Unidas (ONU), em contraponto à União So� viética. Nesse contexto, o tema desenvolvimento passou a ser consi� derado como parte da ordem natural das coisas. Verifica-se que a organização da atividade econômica está em função da forma de apropriação dos fatores de produção no sistema econômico. Portanto, para Furtado, sobre Marx, a apropriação priva� da dos bens de produção resulta numa sociedade dividida em classes estratificadas e possuidoras de interesses distintos e antagônicos. Em se tratando das economias contemporâneas, para Furtado (2000), o pensamento de Raúl Prebish revela que uma característica fundamental é a existência de um centro que comanda o desenvolvi� mento tecnológico global e de uma periferia comandada. Entende-se, assim, que as respostas ou explicações sobre a existência dos fatores que contribuem para o crescimento das economias modernas e a detecção dos principais obstáculos ao desenvolvimento dos países periféricos, carecem de estudos mais profundos sobre o capitalismo. 2. O desenvolvimento no Brasil Tomando-se por base essas correntes teóricas já mencionadas, no campo do desenvolvimento, em termos estratégicos e de políticas pú� blicas, o modelo de desenvolvimento adotado no Brasil a partir dos anos 50, foi tendenciado e definido pela industrialização, em uma aliança apoiada no tripé Estado, mercado (nacional e internacional) e sindicatos (representando uma parcela dos trabalhadores). Existe uma concordância em relação à tendência autoritária e, sobretudo, à importância do papel do Estado como organizador do processo de acu� mulação industrial no Brasil. Para Fiori (1994), a transformação pro� dutiva provocou mudanças radicais no Brasil, de ordem demográfica, sociológica, cultural e política, que foram responsáveis pela criação de novos padrões de comportamento e grupos de interesse. Percebe-se que o projeto de economia nacional resultou na cons� trução de uma estrutura industrial transnacionalizada, desde a dé� cada de 50, e em uma prematura ajuda financeira que forçou o país a buscar recursos através do endividamento externo, a partir da dé� cada de 70. A partir de meados da década de 80, a perda de poder do Estado passa a refletir-se na importância e na fragilidade da política econômica adotada. Nesse contexto, as principais lideranças brasi� 90
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leiras aderiram às teses do Consenso de Washington, acompanhan� do um pacote de reformas estruturais que desregulamentaram a ati� vidade econômica, privatizaram o setor público produtivo e abriram as economias à competição internacional. Cabe justificar o que, de fato, ocorreu com a tentativa desenvolvi� mentista tanto no Brasil como nas demais economias chamadas pe� riféricas. Como aponta Wallerstein (1999), em sua análise sobre o capitalismo histórico, estabeleceu-se uma relação centro-periferia à medida que mercadorias se deslocavam de uma zona para outra, fa� zendo com que se materializasse uma área chamada de zona perde� dora (periferia) e outra zona ganhadora (centro) refletindo a estrutura geográfica dos fluxos econômicos. Verifica-se, portanto, que diante dos movimentos do sistema mundo, restaria para o Brasil apenas um caminho de profunda rees� truturação produtiva e tecnológica alavancada por um Estado nacio� nal capaz de assumir o comando estratégico na construção de cená� rios e trajetórias de crescimento compatíveis com a redistribuição de riquezas e com o avanço da cidadania social e política das popula� ções até hoje marginalizadas. 3. As novas atribuições na gestão compartilhada do desenvolvimento No Brasil, a noção de que o Estado deve comandar todo o proces� so de desenvolvimento é notória. Deve-se, portanto, evidenciar que o Estado pode tomar a iniciativa da promoção do desenvolvimento. As experiências que tiveram êxito no tocante ao desenvolvimento ocor� reram através de parcerias entre Estado, mercado e sociedade. Mesmo que a participação do Estado seja necessária, o que se tem percebido é que as ações do poder público não conseguem atin� gir a todas as camadas da população. Em se tratando do desenvolvi� mento local, isso fica evidente, quando se constata que há uma ne� cessidade premente do envolvimento e da participação daqueles que vivem no território (local). Isso se justifica pela aproximação das ações com a população. A participação da comunidade local deve ocorrer com a adoção de políticas que envolvem o planejamento e estratégias de administra� ção compartilhada para o efetivo processo de desenvolvimento. Es� sas políticas devem trazer no seu bojo a identificação de oportunida� des, a experiência da vida prática e detectar os obstáculos ao processo de desenvolvimento. Por meio dessas ações é possível defi� Combinação de esforços...
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nir e estabelecer objetivos que promovam, através de ações conjun� tas, o desenvolvimento. Quando se levanta a questão que trata desse modelo de desenvol� vimento, surge o aspecto político que, para promover o desenvolvi� mento, se reveste no poder que se torna necessário para trabalhar os recursos e empregá-los de acordo com aquilo que for conveniente. Juntando-se a isso, a parceria é um fator fundamental no sentido de articular com atores locais para se efetivar um processo de desenvol� vimento. Nesse sentido, assim afirma Boisier (1996): (...) a questão chave nesse esforço é, no entanto, dispor de uma forte coalizão de atores locais, o que implica o consenso político, o pacto social. A cultura de cooperação e a capaci� dade de criar, coletivamente, um projeto de desenvolvimento (BOISIER, 1996, p. 124). O desenvolvimento local se tornou um tema importante para or� ganismos internacionais como o Banco Mundial e BID, sob a concep� ção de desenvolvimento endógeno. Para essas instituições, o que deve prevalecer é a administração voltada para a sustentabilidade, a democratização e o fortalecimento da sociedade. Isto, sem dúvidas, enfatiza a participação dos atores locais nas decisões e no acompa� nhamento de políticas que promovam o bem-estar da população. A ênfase dada aqui a essa nova forma de gestão pública sugere trilhar pelo caminho da descentralização administrativa, buscando, sobretudo, o diálogo através de habilidades para gerenciar a constru� ção de acordos consensuais e valorizar o espaço local. O processo de globalização não exclui nova forma de encarar a questão local, ao contrário abre caminhos para que isso de fato possa acontecer. Com isto, a sociedade tem a oportunidade de participar efetivamente do processo de desenvolvimento. Martinelli assim o descreve: (...) a globalização, ao contrário daquilo que se poderia pen� sar à primeira vista, vem juntamente reforçar a importância do desenvolvimento local, visto que cria a necessidade de formação de identidade de diferenciação entre regiões e co� munidades, para que possam enfrentar um mundo de extre� ma competitividade (MARTINELLI et al., 2004, p. 52). É muito oportuno observar que a ideia de liberdade de poder agir e do engajamento da sociedade no processo de desenvolvimento remete à obra de Amartya Sen (2000) Desenvolvimento como Liberdade, a qual faz referência que vivemos em um mundo de riqueza sem precedentes, onde têm ocorrido mudanças notáveis além da esfera econômica, e 92
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que foi no último século que o regime democrático e participativo se estabeleceu como principal modelo de organização política, os direitos humanos e a liberdade política passaram a fazer parte da vida de boa parte da humanidade e as regiões do globo passaram a se ligar como nunca antes fizera, não só através do comércio e das comunicações, como das ideias e ideais interativos. No que diz respeito à participação social, esta passa, na última década, a integrar quase todos os projetos de desenvolvimento, seja por exigência das agências financiadoras, seja pelo consenso de que é fundamental para garantir a estrutura democrática dos processos. O fundamental é que estas novas formas entre governo e sociedade rompam com a visão hierárquica e vertical de poder, estabelecendo uma relação em que o envolvimento da sociedade local contribua para promover o controle social das ações governamentais. Considerações finais Ao longo dessas últimas décadas, tem-se constatado que os estu� dos sobre desenvolvimento econômico tiveram grandes mudanças de visão acompanhando as evoluções tecnológicas e os resultados de políticas implementadas. É bem verdade que, por um lado, estes es� tudos contemplaram uma gama de visões restritas de intervenção direta do Estado e, por outro lado, vislumbravam uma confiança exa� gerada nas forças de mercado. Pode-se afirmar que, ao lado da necessidade de se conduzir esfor� ços na sustentação das dimensões do desenvolvimento que permi� tem a competitividade, a nova concepção de política regional deve ter um caráter nacional, potencializando as vocações econômicas locais, principalmente no caso brasileiro, por ser acima de tudo, um país de dimensões continentais e que, por sua vez, deve buscar formas des� centralizadas de enfrentar estes desafios. Constatou-se que as formas que propiciam o desenvolvimento econômico, dentro de uma visão dinâmica, devem atender aos pre� ceitos de redução das disparidades no nível de renda e da inserção competitiva do país num mundo de integração econômica e devem ser trabalhadas através de ações partilhadas com diversos órgãos nos planos federal, estadual, municipal e mesmo organizações não governamentais, no sentido de promover de forma mais estrutu� rada o desenvolvimento econômico no Brasil. A intensidade, bem como o aumento da densidade das relações entre os agentes sociais, econômicos e políticos, tende a produzir Combinação de esforços...
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experiências e sistemas territoriais mais próximos da realidade local. Neste caso, a proximidade do poder público com os atores locais, facilita a prática conjunta de ações. Evidencia-se a relevância da combinação de esforços públicos e privados, que revelam a importância, no atual cenário sociopolítico brasileiro, de eventos como a redefinição da ação estatal, a crescente mobilização da sociedade civil e o envolvimento do setor empresarial em causas sociais, endossando esta afirmação. Referências BOISIER, Sérgio. Em busca do esquivo desenvolvimento regional: entre a caixa-preta e o projeto político. In: Planejamento e políticas públicas. Rio de Janeiro, n. 13, jun./1996. FIORI, J. L. Globalização econômica e descentralização política: um primeiro balanço. Ensaios FEE. Porto Alegre, 1994. FURTADO, Celso. Teoria e política do desenvolvimento econômico. São Paulo: Paz e Terra, 2000. MARTINELLI, Dante; JOYAL, André. Desenvolvimento local e o papel das pequenas e médias empresas. Barueri, SP: Manole, 2004. SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Cia. das Letras, 2000. WALLERSTEIN, I. O. O capitalismo histórico. Porto Alegre: Editora da Universidade, 1999.
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Para a Economia da Cultura: foco e luz Luiz Carlos Prestes Filho
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ntre os anos de 1999/2002, coordenei um estudo que demons� trou que a Economia da Cultura do Rio de Janeiro contribuiu com 3,8% para a formação do PIB: cerca de R$ 5,1 bilhões, em 1999, e, contribuiria aproximadamente com R$ 18 bilhões, em 2010. Após a realização desse trabalho, avançamos na investigação so� bre o tema. Executamos, entre os anos de 2002/2005, um estudo sobre a Cadeia Produtiva da Economia da Música, e entre 2006/2009, um sobre a Cadeia Produtiva da Economia do Carnaval. A música e espetáculos são setores dinâmicos, setorialmente. A música é uma das principais plataformas para a execução do conteúdo brasileiro. A cara do Brasil não é predominante nem nas TVs abertas (apesar da produção de novelas, programas de auditório e jornalismo), nem nas TVs fechadas. No mercado de cinema e de vídeo/DVD, acontece a mesma coisa. Na indústria editorial e gráfica de livros, jornais e re� vistas não é o conteúdo Brasil que garante o faturamento. Na música, os bilhões movimentados pelo setor vêm da comercia� lização de música brasileira no mercado consumidor interno. É uma realidade que não tem paralelos na América Latina: o brasileiro ouve a música daqui. O mesmo não se verifica na Argentina, Chile, México ou Colômbia, onde o conteúdo estrangeiro é que manda nos negócios. Ao estudar as economias da música e do carnaval, verificamos que deveríamos continuar nosso trabalho no campo da Economia da Cul� tura, que é parte integrante da Economia do Entretenimento, na qual estão atividades da Economia do Turismo e da Economia do Esporte. A Economia da Cultura é o núcleo duro da Economia Criativa. Entendo que é difícil analisar o impacto setorial da cultura por meio da ampliação das suas fronteiras, abraçando de uma só vez todas as atividades econômicas situadas no campo da Economia Criativa. Fica mais claro quando estudamos as atividades da Econo� mia da Cultura Direta e da Economia da Cultura Indireta. A Indireta nos dá, inclusive, uma boa aproximação para entender o seu espaço concreto na Economia Criativa. 95
Em recente pesquisa realizada pela Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (FIRJAN, 2008), foi sugerido que a Econo� mia Criativa se estenda até a produção de sofwares, de comunicação (telefonia), de arquitetura, de design, de moda e de publicidade, se� guindo um modelo estabelecido pela Organização das Nações Unidas (ONU) e pela Organização Mundial do Comércio (OMC). No entanto, é importante lembrar que para a Organização Mun� dial de Propriedade Intelectual (Ompi), entidade da OMC, o tema en� volve a observância dos acordos internacionais, como as Convenções de Berna, de Paris e de Roma, que regem os acordos multilaterais de comércio. E, para a Conferência das Nações Unidas para o Desenvol� vimento (Unctad), entidade ligada à ONU, o tema envolve questões como a economia solidária, acessibilidade a conteúdos (obras/cria� ções) protegidos e a necessidade de revisão dos acordos internacio� nais. Todos estes temas dizem muito aos países em desenvolvimento, que têm precário arcabouço jurídico, baixos indicadores no campo da educação, frágil estrutura científica e tecnológica e dificuldade de acesso às patentes e aos direitos autorais dos países desenvolvidos. Por outro lado, ao meu ver, em qualquer atividade econômica, até mesmo na área de petróleo e gás, não se pode fazer nada hoje sem criatividade. Não podemos pensar a Economia Criativa sem incluir estes segmentos econômicos que trabalham com inovação, marcas e patentes, propriedade industrial, direitos autorais. No estado do Rio de Janeiro e na sua capital, assim como nos outros estados da Federação, por falta de padronização dos classifi� cadores de atividades econômicas – onde estão listados os códigos tributários das atividades da Economia da Cultura – é quase impra� ticável elaborar um programa consistente que possa promover a Eco� nomia da Música, a Economia do Livro, a Economia do Audiovisual ou a Economia do Carnaval, entre outras. Essas atividades não são visualizadas nas políticas fazendárias do governo do estado, da Pre� feitura, da Federação das Indústrias, da Federação do Comércio e da Associação Comercial. Tanto que um fabricante de flauta transversa (de metal) e um fabricante de penicos (de metal) são identificados como representantes de um mesmo setor: indústria de transforma� ção. A legislação tributária não leva em conta o valor agregado que surge com a fabricação de uma flauta transversa nem o impacto que a mesma provoca quando vai para as mãos de um compositor ou de um músico. Possivelmente, somente a tão esperada reforma tributária poderá modificar este quadro, nunca um programa de boas intenções. 96
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Foco para fabricação de instrumentos musicais Um dos importantes elos da cadeia produtiva da Economia da Música no Brasil, de acordo com estudo realizado, é o da fabricação de instrumentos musicais. As nossas orquestras sinfônicas e de câ� mara, os nossos quartetos e duos, assim como os grupos de choro, pagode e samba, são formados por profissionais que tocam, na sua maioria, em alguns milhões de instrumentos, muitos deles fabrica� dos fora do Brasil. Quando analisamos a infraestrutura das bandas de rock brasileiras e os grandes eventos gospel e de funk, verificamos que os equipamentos importados dos Estados Unidos são predomi� nantes. Melhor dizendo, têm a marca americana, mas foram fabrica� dos na China. No estudo Cadeia produtiva da economia do Carnaval, verifica� mos, entretanto, que a fabricação de instrumentos para o maior es� petáculo popular do mundo não tem política pública ou empresarial no país. Segmentos como os das cuícas estão absolutamente repri� midos, quase extintos. Como disse anteriormente, hoje já é de entendimento dos econo� mistas que a música brasileira é um importante ativo nacional. O Bra� sil é, ao lado dos Estados Unidos, o país que mais consome seu pró� prio conteúdo: samba, choro, pagode, bossa nova, rock, música clássica, brega, romântica, regional gaúcho, entre outros gêneros. Os números levantados demonstram que 80% do market share do merca� do interno pertence às empresas que trabalham com a música brasi� leira. Basta consultar a série histórica no site da Associação Brasileira de Produtores de Discos (ABPD) , sobre os produtos mais vendidos, ou o site do Escritório Central de Arrecadação de Direitos Autorais (Ecad), sobre as obras mais executadas que geram direitos autorais, para confirmar a importância econômica da música nacional. Portanto, existe espaço para realizar uma política estruturante, tendo em vista o fortalecimento das empresas fabricantes de instru� mentos musicais. Especialmente, neste momento, quando o Ministé� rio da Educação está realizando o planejamento para cumprir a lei de obrigatoriedade do ensino de música nas escolas públicas e priva� das. Milhares de escolas terão que ser equipadas, nos próximos anos. Não podemos impedir a importação de instrumentos – somos uma economia aberta. Muito menos, impedir a livre concorrência entre os fabricantes destes produtos, estrangeiros e nacionais. Mas, podemos elaborar um programa que permita às fábricas brasileiras consolidar seu mercado interno e avançar no mercado internacional como, por exemplo, no mercado de instrumentos musicais existente Para a Economia da Cultura: foco e luz
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no Mercosul e nos países africanos de língua portuguesa (onde nossa música é produto de mercado). Fazer com que a maioria dos instru� mentos musicais – nas mãos de músicos brasileiros – sejam os fabri� cados no Brasil. No Classificador Nacional de Atividades Econômicas (Concla), en� contramos os seguintes códigos: 3220-5/00
CORDAS PARA INSTRUMENTOS MUSICAIS; FABRICAÇÃO DE
3220-5/00
INSTRUMENTOS MUSICAIS DE CORDA; FABRICAÇÃO DE
3220-5/00
INSTRUMENTOS MUSICAIS DE PERCUSSÃO; FABRICAÇÃO DE
3220-5/00
INSTRUMENTOS MUSICAIS DE SOPRO; FABRICAÇÃO DE
3220-5/00
INSTRUMENTOS MUSICAIS DE TECLADO; FABRICAÇÃO DE
3220-5/00
INSTRUMENTOS MUSICAIS ELETRÔNICOS; FABRICAÇÃO DE
3220-5/00
ÓRGÃOS E HARMÔNICAS (INSTRUMENTOS MUSICAIS); FABRICAÇÃO DE
3220-5/00
PEÇAS E ACESSÓRIOS PARA INSTRUMENTOS MUSICAIS; FABRICAÇÃO DE
4649-4/99
ACESSÓRIOS PARA INSTRUMENTOS MUSICAIS; COMÉRCIO ATACADISTA DE
4649-4/99
INSTRUMENTOS MUSICAIS; COMÉRCIO ATACADISTA DE
4756-3/00
ACESSÓRIOS PARA INSTRUMENTOS MUSICAIS; COMÉRCIO VAREJISTA
4756-3/00
INSTRUMENTOS MUSICAIS; COMÉRCIO VAREJISTA
7729-2/02
INSTRUMENTOS MUSICAIS; ALUGUEL DE, LOCAÇÃO DE
9529-1/99
INSTRUMENTOS MUSICAIS; REPARAÇÃO DE, CONSERTO DE
Estes códigos podem orientar o Ministério de Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC) para, em conjunto com todos os agentes da cadeia produtiva da Economia da Música, elaborar um programa bem focado para fortalecer a produção industrial de ins� trumentos musicais em nosso país. Devemos nos mobilizar para im� pedir o fechamento de fábricas, por conta das importações. É bom lembrar que a fabricação de instrumentos musicais está entre aquelas atividades que promovem intensivo uso de mão de obra, garantindo emprego e renda para milhares de trabalhadores. 98
Luiz Carlos Prestes Filho
Por falar em música, entendo que é importante acabar com o mito de que nossa música é produto de exportação. Pois, entre os princi� pais produtos brasileiros mais exportados, indicados nos relatórios do MDIC, encontramos minérios, café, carnes, couros e aviões, entre outros produtos primários e industriais. E olha que são 32 mil rela� tórios todo mês, constituindo uma fonte de informação importante para as empresas e instituições que trabalham com exportação. Produtos culturais brasileiros quase não aparecem nestas listas. Nem música, nem literatura, nem dramaturgia, nem cinema ou TV. Existe a indicação somente das seguintes nomenclaturas: quadros; pinturas e desenhos feitos à mão; produções originais de arte estatu� ária ou de escultura; gravuras; estampas e litografias; e antiguidades com mais de cem anos. Os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) sobre o desempenho nacional na Economia do Turismo é processado diretamente pelo Ministério do Turismo. Economia da Cultura & Economia Criativa Como se constata, é sensato realizar mais e mais estudos sobre a Economia da Cultura: a Economia do Livro, a Economia da Música e a Economia do Audiovisual. Não estamos preparados conceitual� mente para desenvolver análises e planejamento estratégico am� pliando as fronteiras setoriais, abrangendo toda a cadeia produtiva da Economia Criativa. Facilitaria muito estabelecer fronteiras para buscar soluções para problemas que impedem o produto cultural brasileiro de ser um pro� duto de mercado ou de ser um produto de exportação, questão que deve ser encarada com inteligência e não com achismos de empresá� rios, governos e artistas. Ao realizar estudos sobre a Economia da Cultura, limitamos nos� so campo de trabalho. E isso nos ajuda a caminhar com segurança. Permite colocar a cultura de igual para igual com os produtores de softwares, de comunicação (telefonia), arquitetura, design, moda e publicidade. Trata-se de colocar a Economia da Cultura no mesmo grau de importância da economia do petróleo, do gás, da metalurgia, da indústria naval e do setor automotivo. Já é difícil no Brasil fazer avançar os setores estratégicos da Eco� nomia da Cultura. Alargando as fronteiras para o universo das ativi� dades da Economia Criativa, estaríamos nos distanciando da busca de resultados concretos na música, no audiovisual e no livro. Não
Para a Economia da Cultura: foco e luz
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podemos, num país que tem sua base exportadora sustentada por commodities, entrar num campo de abstrações. É oportuno lembrar que a dimensão econômica da cultura no Brasil (1% do PIB) foi mensurada por uma pesquisa concebida na gestão do ministro Celso Furtado (governo Sarney) e executada pelo ministro Francisco Weffort (governo Fernando Henrique Cardoso). Desde então, caminhamos às cegas. Para terminar, uma citação do economista Sérgio Cidade de Rezende: Nenhuma indústria vai ao mercado pelos belos olhos azuis do consumidor, ou melhor, até vai, porque é este o tipo físico ocular que tem renda para absorver a produção. Dizendo en� tão de outra forma, nenhuma indústria vai ao mercado pelo belo tipo faceiro brasileiro mestiço de olhos escuros; vai para vender e lucrar, pouco se importando com os olhos do com� prador. O que os compradores têm que ter, independente� mente da cor da íris, é bala na agulha, a grana. Quanto mais, melhor. Atividades da indústria cultural são, como em qual� quer indústria, atividades com fins lucrativos; são como em qualquer indústria, atividades que ao lucro atribuem a fun� ção de servir de bastião ético às unidades produtivas que for� mam o conjunto das empresas do setor. Em suma, não prega prego sem estopa, não produz coisa alguma sem a expectati� va concreta de lucro – quanto mais, melhor. Indústria cultu� ral significa produção de cultura em larga escala. Vale dizer que o produto dessa indústria para ser vendido a um elevado número de consumidores deve ser comercializado como mer� cadoria. Sob tal enfoque, cultura é um negócio como outro qualquer sem que seus produtores, comerciantes e prestado� res de serviços precisem estar atentos a outra coisa que não as condições de mercado, onde oferta e procura satisfaçam interesses da produção e desejos do consumo. O que importa ao conjunto da indústria cultural é descobrir, com o auxílio das ciências humanas do comportamento e das relações so� ciais, quais preferências e gostos culturais escondem-se no subconsciente da massa de consumidores. Pesquisando, pro� cura-se identificar a forma e o conteúdo que devem ter os produtos culturais para que sejam assimilados e adquiridos sob a roupagem de palavras, imagens, cores, sons, objetos, equipamentos mirabolantes etc. É uma indústria que, como dizem os sociólogos, nos dá satisfação e nos deixa saciados mesmo quando sabemos que se pode comprar uma sensação, mas nunca um sentimento. 100
Luiz Carlos Prestes Filho
V. Batalha das Ideias
Autores Edison Bariani
Doutor em Sociologia pela FCL/Unesp, Araraquara-SP, é autor de vários artigos e dos livros Administração Pública no Brasil (com Christina Andrews, Editora da Universidade Federal de São Paulo, Guarulhos-SP) e Guerreiro Ramos e a redenção sociológica: capitalismo e sociologia no Brasil (Editora Unesp). E-mail: edsnb@ig.com.br.
Marco Mondaini
Historiador, pós-doutorado no Departamento de Teoria e História do Direito da Università degli Studi di Firenze (Unifi), professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco, pesquisador Produtividade do CNPq e coordenador do Núcleo de Estudos Comunicação e Direitos Humanos (NCDH).
Dimas Macedo
Jurista, mestre em Direito, professor titular da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará e autor de várias obras, em que se destaca Estado de Direito e Consti� tuição – O pensamento político de Paulo Bonavides (São Paulo, Editora Malheiros, 2010).
A mentira na política: reflexões sobre ética e ação Edison Bariani
A
Fiat veritas et pereat mundus?
complexa relação entre a ética e a política é, de longa data, motivo de controvérsia. Nessa relação e suas formas possíveis, dentre os temores dos que discutem a questão, vigem, de um lado, o temor de: 1) uma política moralizante que confunda os va� lores dos governantes com os objetivos da sociedade em geral e se mostre inapta ou inábil para a ação estrategicamente considerada, detendo-se na frustração dos fins pela incompatibilidade entre os meios políticos eficazes e os valores aceitos; 2) uma ética politizada que erija valores que sirvam à transformação dos meios (necessários ou não) considerados aceitáveis ou justos com o objetivo de alcançar fins políticos próprios; 3) uma política amoral que só se mova pelo cálculo e deixe de lado a ideia da moralidade, da justiça e dos meios adequados e aceitos para alcance dos fins. De outro lado, o temor de (4) uma ética despolitizada que, por força da obsessão com os valores morais, desconsidere o aspecto político da ação e rejeite a transi� gência ao empunhar seus valores como princípios, ou pior, dogmas, da convivência social e desconsidere as circunstâncias e pluralidade entre os homens. Qualquer que seja o arranjo evitado ou perseguido, é necessário considerar a autonomia das perspectivas ética e política, sem sub� metê-las uma à outra, o que anularia suas condições de existência, todavia, o desafio é encontrar tal arranjo que preserve o sentido das decisões éticas e políticas sem destruir suas próprias formas de ser. Separá-las, simplesmente, conforme o âmbito da atuação humana, é 103
algo simultaneamente ingênuo e temerário, pois exprime uma im� possibilidade (separar a existência e ações humanas segundo cam� pos distintos) e um risco – considerar os homens segundo uma pre� tensa característica dominante e determinante (política, moral, econômica etc.) ou tomá-los como capazes de separar completamen� te os vários níveis da vida social e ajustar uma ação adequada a cada um desses níveis. A ação ética na política, no terreno das obrigações legais, não é motivo de grande controvérsia, uma vez que obedecer às leis que re� gem a própria existência do Estado e da sociedade civil é um dever básico do homem na política, o que pode ser alvo de reflexão mais aguda seria o conflito entre as leis e a ética, que ocasionassem uma escolha radical entre agir de modo legal ou moral. Todavia, embora haja aqui um desafio à ação do indivíduo na política, nesse caso, a resolução de tal conflito não pode ser objeto da ação de um homem, mas sim considerada pelas instituições e pela sociedade que, coleti� vamente, deve deliberar e tentar solver tal conflito pela (re)constru� ção da lei. No exercício da ação na política, o conflito entre ética e política, do ponto de vista dos homens em sua pluralidade, está frequentemente relacionado à mentira na política. Pode-se, deve-se ou não mentir na política? É a mentira na política aceitável ou inevitável? Ou ainda além: é aceitável mentir ainda que para salvar o mundo? Pode alguém na política mentir e condenar a alma para salvar a nação (ou mundo), como Maquiavel? O mundo pode ser salvo por uma mentira? O tema da mentira na política supõe necessariamente a questão da verdade, daí as sérias dificuldades em pleitear a mentira como negação da verdade quando a verdade não é simplesmente um dado ou um dogma, e não são poucos os problemas na identificação da verdade objetiva, relacionada à ciência, à totalidade, ao relativismo social e histórico, e, para alguns, à prova, à verificação e à possibili� dade de refutação e contestação lógico-científica. Para Hannah Arendt (1972), em “Verdade e política” só se pode cogitar da mentira na política como “falsidade deliberada”, que nega intencionalmente uma verdade racional e factual, não filosófica, que se ocupa de fatos e não de interpretações do mundo. A verdade fac� tual diferencia o erro da mentira, pois o erro não é deliberado, é ape� nas um equívoco. É essa verdade factual que informa o pensamento político e pode ser cogitada nas ações e intenções dos homens no espaço público da política. Nesse espaço, vigora a opinião e não a verdade filosófica ou científica. 104
Edison Bariani
No terreno da política, no terreno da opinião e da pluralidade, a ver� dade factual é que vige. Todavia, mesmo essa não leva em consideração nem depende da opinião dos homens, ainda assim, a verdade factual também não é autoevidente e pode ser desacreditada como mais uma opinião entre outras. Nesse terreno, mesmo a verdade filosófica, ao adentrar na praça pública, pode tornar-se opinião (ARENDT, 1972). Mas, em adição à autora, cabe observar que nada garante que, no terreno da política, a verdade filosófica torne-se opinião. Daí que a aceitação da verdade filosófica ou dogmática que esteja acima dos fatos pode inserir um perigoso componente totalitário na política, uma vez que pode tornar ‘falsa’, ‘mentirosa’, qualquer interpretação que dispute publicamente o conhecimento do mundo e governo dos homens. E pode tornar ‘inimigo’, ‘falseador’, ‘mentiroso’ o outro, o defensor dessa verdade, já que não há ponto comum entre eles, pois tais verdades necessariamente se eliminam e, talvez, nesse processo, podem ser eliminados também os derrotadas nessa disputa, instau� rando um ambiente totalitário. A verdade, ainda que factual, nos diz Arendt (1972), carrega em si um elemento de coerção e, na visão política, adquire caráter des� pótico, desafiando as opiniões e reafirmando a veracidade que está além do alcance dos homens e de suas opiniões. Então, o empenho pela verdade factual pode ser sentido nesse terreno como algo anti� político, já que essa não está sujeita à consideração ou consentimen� tos dos homens. Tal conflito, segundo uma concepção elevada da política, pode ser dirimido pela ação e compreensão pelos homens da política como um fim em si mesma. A verdade factual entra em con� flito com o político apenas no baixíssimo nível dos negócios humanos como campo de batalha dos negócios, interesses privados e antagô� nicos etc. Ainda assim, adverte Arendt (1972, p. 320): “Considerar a política da perspectiva da verdade, como fiz aqui, significa situar-se em uma posição exterior ao âmbito político”. A verdade, assim, tem um caráter coercitivo que desafia a opinião e afronta a política. “Conceitualmente, podemos chamar de verdade aquilo que não podemos modificar; metaforicamente ela é o solo so� bre o qual nos colocamos de pé e o céu que se estende acima de nós” (ARENDT, 1972, p. 325), logo, devemos compreender a natureza não política e mesmo antipolítica da verdade (ibidem, p. 321). A afirmação da verdade factual, a veracidade, nunca esteve entre as virtudes políticas. Asseverar a veracidade de algo é contestar a opinião de um ponto de vista acima das opiniões, premendo-as a aceitar algo que não podem modificar. A mentira na política...
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A verdade, posto que impotente e sempre perdedora em um cho� que frontal com o poder, possui uma força que lhe é própria: o que quer que possam idear aqueles que detêm o poder, eles são incapazes de descobrir ou excogitar um substituto viável para ela. A persuasão e a violência podem destruir a verdade, não substituí-la (ARENDT, 1972, p. 320). Estar acima das opiniões torna a verdade politicamente inconve� niente e, ao mesmo tempo, faz com que conceda estabilidade à vida pública, embora nenhuma verdade factual esteja além da dúvida (ARENDT, “A mentira na política”, 1973, p. 16-7) – caso contrário a pró� pria mentira não seria possível. Todavia, tal verdade mantém uma posi� ção que não pode ser deliberadamente elidida pela simples negação e não aceita como critérios de verificação a mera opinião, já que não está submetida ao convencimento e à divergência de interpretações. Segundo Arendt (1972, p. 310) a veracidade não pode ser incluída entre as virtudes políticas, pois ela de fato pouco contribui para tal transformação das circunstâncias e do mundo, que é uma das mais legítimas atividades políticas. O mentiroso é um homem de ação e o que fala a verdade, verdade factual ou racional, notoriamente não está preocupado com a ação, nem com a política e a mudança. O exemplo mais significativo é o de Sócrates, questionador da demo� cracia ateniense, que empenha sua vida pela verdade (ibidem, p. 306). Em Platão, em A República, a alegoria da caverna corrobora essa visão: todos vivem pacificamente até o anúncio da verdade. Cabe descobrir, para Arendt (ibidem, p. 285-7), que dano o poder político pode infligir à verdade. Cabe também, acrescentamos, assim como a figura do filósofo que retorna à caverna e traz verdade é incô� moda aos outros que ficaram e se insurgem contra a negação de suas opiniões, examinar que dano a verdade pode infligir ao poder político ou à política. “É da essência mesma da verdade o ser impotente e da essência mesma do poder o ser embusteiro?”. Então, assim como o ditado la� tino Fiat justitia, et pereat mundus (faça-se justiça, e pereça o mun� do), cabe afirmar Fiat veritas, et pereat mundus (estabeleça-se a ver� dade, e pereça o mundo)? Mas “não será a verdade impotente tão desprezível como o poder que não dá atenção à verdade?” (ARENDT, 1972, p. 283). A fragilidade – para Arendt (1972) – é uma característica dos fatos, que se perdem facilmente, daí a necessidade da memória e do teste� munho. E a mentira organizada tende a destruir aquilo que ela decidiu negar. Quanto mais bem sucedido for o mentiroso, maior a probabili� 106
Edison Bariani
dade de que ele seja vítima de suas próprias invencionices, o pior dos casos é (assinala a autora, aludindo a Dostoievski), mentir a si mes� mo. A mentira só é eficaz se o mentiroso tem clara ideia do que escon� de. Se ele próprio for vítima de sua falsificação, ela não é instrumental nem útil para ele, que se torna vítima da própria armadilha. Mas os vícios da mentira podem alicerçar uma exclusividade po� lítica da verdade, uma vez que esta, ao asseverar o que de fato é, pode servir de marco do estado de coisas e sufocar a mudança baseada no que ainda não é? Segundo Arendt (1975, p. 15), o novo e o negar o real têm ao fundo a imaginação, que é uma faculdade que propicia a mudança, forma de contestação do estado de coisas e, sem liberdade mental de negar, não haveria ação, que é a substância da política. A mentira, podemos cogitar, poderia então ser fertilizadora da novi� dade política? Se a mentira pode ser próxima da imaginação e arauto da mu� dança, podemos concluir que seria ético mentir para assegurar o bem-estar de outrem? Dificilmente, pois embora se possa auxiliar alguém por meio de uma mentira, o bem-estar de todos jamais pode� ria ser garantido pela mentira, sob pena de vivermos num mundo do qual não temos sequer noção da veracidade de nossa situação e nos� sos problemas, relegando nossa atuação a de marionetes que desem� penham papeis num mundo farsesco, no qual não temos sequer consciência de nossa condição. Do mesmo modo, seria ético dizer a verdade sobre alguém ou algo e desmascarar a mentira de outrem que visava com isso um bem maior e comum? Malgrado, seria ético dizer a verdade quando ela pode causar es� tragos irreparáveis e generalizados? Talvez não, porém, emerge daí o risco de se subscrever a posição tampouco ética de que a omissão da verdade pode ser mais nobre que a mentira, pois, nesse caso, os atos de omitir e mentir podem ser equiparados, ainda com o agravante nada nobre de que a omissão possa servir como forma de isenção da responsabilidade individual pelo ato. Se se deve revelar a verdade, haveria obrigação de revelá-la em to� dos os aspectos e momentos da vida social? Se não se pode viver num mundo de mentiras, pode-se então viver num mundo só de verdades? Na polêmica entre Kant e Benjamin Constant (LOPARIC, 2010), o filósofo francês afirma que a asserção kantiana de que dizer a verda� de é um dever tornaria impossível a sociedade, embora reconheça que se o princípio moral de dizer a verdade for rejeitado, a sociedade será destruída, assim, dizer a verdade seria ‘apenas’ um dever em relação àqueles que têm o direito à verdade, como num tribunal, por A mentira na política...
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exemplo. Entretanto, para Kant, dizer a verdade é um ato de obriga� ção, a veracidade é um dever, incondicional para com os outros, pois a mentira prejudica a outrem, não somente a outro indivíduo, mas a própria humanidade; em razão de inutilizar a fonte de direito e cre� dibilidade, mentir instaura a desconfiança e é um ato contra a pró� pria instituição da sociedade, um atentado ao contrato social, que relega os homens a um estado de natureza, um passo atrás em rela� ção à instauração da sociedade. Mentir, enganar os outros, é “matar a ideia que possibilita uma existência humana digna” (idem, p. 58). Mas e os danos que eventualmente a veracidade pode causar? Para Kant, tais danos não resultam da veracidade em si, mas de efei� tos colaterais. Segundo Loparic (2010, p. 69), para Kant, “uma decla� ração verdadeira pode resultar de fato em dano; não, porém, enquan� to declaração verdadeira e sim por acaso. Em outras circunstâncias, ela pode resultar em proveito, o que tampouco concerne diretamente ao dever de direito incondicional de dizer a verdade”. Assim, se para Kant, não há um suposto ‘direito de mentir’, tam� bém não há um ‘dever de dizer incondicionalmente’ a verdade. A mentira pode causar efeitos catastróficos socialmente, todavia, cremos que a obrigação da veracidade, incondicional e imperativa, descontextualizada e que não examina as circunstâncias, pode ser também socialmente nefasta, pois o fato de dizer a verdade não exi� me as pessoas das consequências que ela gera. Num prédio em cha� mas é mais razoável que o responsável pela segurança anuncie que há um problema e as pessoas devem deixar o prédio organizadamen� te pelas saídas de incêndio e assim poder salvar todas, várias ou al� gumas delas. Se anunciasse “O prédio está em chamas! Salvem suas vidas!” certamente o desenrolar dos fatos não seria muito agradável com todas as pessoas lutando e se acotovelando, submetendo os mais fracos na esperança de se salvarem. Estaria ele mentindo e não sendo ético se não dissesse que havia um incêndio e que as vidas das pessoas estavam em perigo? Mentiu ele quando elidiu o fato do in� cêndio e o real perigo? Se mentir não é um direito, muito menos uma virtude, a verdade irresponsável pode ser também socialmente con� denável, pois pode instaurar igualmente um estado de insegurança e enfrentamento, que fragiliza os laços sociais que tornam a vida senão agradável, ao menos suportável. Na vida privada, a verdade incondicional e imperativa, irrespon� sável, pode estilhaçar as relações entre os homens. Se mentir ou omitir algo de outrem é desprezar ao outro como sujeito capaz de pensar/agir, arremessar verdades impensadamente ao outro pode constrangê-lo a situações com as quais ele não quer, não sabe, não 108
Edison Bariani
tem condições ou não precisa lidar. O médico deve dizer a alguém que tem alguns dias de vida? Um homem armado ou trabalhando no alto de um prédio deve ser avisado imediatamente de um acidente que vitimou toda sua família? Um cônjuge deve ser informado de que o outro tem um caso amoroso com seu melhor amigo? Um marido deve ser avisado de que a vida de sua esposa em parto e de seu futu� ro filho estão em risco e os procedimentos que serão tomados vão determinar qual deles vai viver ou morrer? Para Kant todos têm direito à verdade, mas será que temos tam� bém o dever de ouvir a verdade por outro? Ou o dever de emiti-la, sejam quais forem as consequências? Na vida privada, onde cada um deve ter garantidas sua intimidade e sua privacidade, seu direito de saber ou não saber algo, tais questões éticas são bastante espinho� sas, entretanto, é necessário lembrar que ninguém tem o direito de dizer o que quiser a quem quiser sem se responsabilizar pelas conse� quências, bem como nem tudo que pensamos deve ser dito – até mesmo porque esses pensamentos não são verdades factuais, são interpretações ou possibilidades. Já na vida pública, em que os homens como cidadãos capazes de pensamento/ação com direitos e deveres determinados de modo im� pessoal e universal, com direito à opinião e à participação, as cir� cunstâncias são diferentes. Kant, na Fundamentação da metafísica dos costumes (1974, p. 224-5) cogita um acontecimento no qual al� guém, precisando de dinheiro, pede uma quantia emprestada a ou� trem, mesmo sabendo que não tem como pagar. O filósofo alerta para o fato de que o amor de si mesmo ou conveniência faz com que come� ta um ato imoral. E, acrescentamos, ao fazer uma promessa de paga� mento com a intenção de não a honrar, há aí também uma mentira, pois alega que cumprirá uma obrigação para a qual já se sabe inca� paz. Para Kant, a falsa promessa, sem intenção de cumprimento, ou, para nós, a mentira, “tornaria impossível a própria promessa e a fi� nalidade que com ela se pudesse ter em vista; ninguém acreditaria em qualquer coisa que lhe prometessem e rir-se-ia apenas de tais declarações como de vãos enganos” (ibidem, p. 225). Há, entretanto, uma articulação sensível entre vida privada e vida política/pública. Se ao nível das relações privadas na Sociedade Civil isso parece um mero engano, ao nível público, da política, isto se tornaria sério problema. Kant nos alerta para o fato de que o mal que a mentira no ambiente privado causa não é ‘apenas’ um prejuízo a outrem e a frustração de uma expectativa, é, sobretudo, uma lacera� ção no tecido social, um rompimento dos laços e possível solapamen� to das instituições e dos alicerces de sociabilidade, civilização e vida A mentira na política...
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pública por meio da política. Também o Estado que empenha sua palavra, que promete algo a outro Estado e se desfaz da obrigação, ainda que para tanto alegue que estava em risco a salvação desse Estado, estaria cometendo injustiça, pois que tal modalidade de ação frustraria o próprio sentido da política em unir os homens e promo� ver a paz (KANT, 2008, p. 80). Para o filósofo alemão, não há um ‘direito de mentir’, pois a “ação de prometer passa a ser universalmente desacreditada” (LOPARIC, 2010, p. 58). O faltar com a palavra depois de empenhá-la, de fazer uma promessa, compromete a confiança nos indivíduos e na vida pública, estremecendo as relações políticas (em sentido amplo). No espaço público, a promessa é que garante a confiabilidade na palavra e protege os indivíduos da imprevisibilidade do mundo (ARENDT, 2009a), pois, de modo contrário, faria emergir ações açodadas e dire� cionadas ao interesse, unilateralmente ligados ao que “quero para mim aqui e agora”, já que não posso confiar no outro. No caso da relação entre governantes e governados, “é a mentira dos governantes que gera o ceticismo e a impotência dos governados, que não têm base para agir sem os alicerces da verdade dos fatos” (LAFER, 2007, p. 331). Outrossim, a mentira do governado – mor� mente numa democracia – também gera problemas, incertezas e im� potência, já que, ao depositar seu voto, participar visando somente um interesse próprio e escuso, mentindo para os governantes, os governados alimentam um clima de desconfiança que enfraquece o poder da participação pela fragilidade do apoio dado quando da con� sulta ou manifestação, depreciando sua condição de sujeito político e criando condições para que sejam fortalecidos no governante os estímulos para que desconfie ou desdenhe do apoio ou da resistência oferecidos, e sinta-se mais à vontade para buscar seus próprios inte� resses em detrimento do bem-estar coletivo, uma vez que, na percep� ção do governado, ‘todos mentem e dissimulam na intenção de se locupletar com os benefícios do poder’, ou seja, repete-se a fórmula que os criminosos nazistas e outros defenderam, baseada na ideia de que se todos são culpados ninguém o é (ARENDT, 2004). Logo, nesse contexto, pode ocorrer ao governante: ‘se todos são mentirosos, dis� simulados e visam interesses mesquinhos, não só não sou o único assim como me sinto mesmo autorizado a isso, já que se todos são culpados eu, individualmente, não posso sê-lo’. Se, em termos de poder, a mentira já foi identificada como a arma do fraco, ela também pode ser usada (e com maior eficácia) pelo forte. A mentira solapa a credibilidade e elide dois aspectos essenciais à vida pública – daí, em parte, a diferença entre o mentir no espaço 110
Edison Bariani
público e no privado – a transparência e a responsabilidade. Dar vi� sibilidade e publicidade aos atos é condição inalienável da atuação política, e o direito de informação sobre esses atos é garantido ao cidadão. Mas como viabilizar uma atuação política sem manter se� gredo ou omitir certos atos ou intenções que permitem competir e disputar a hegemonia contra os adversários? Manifestar minhas in� tenções, táticas e estratégicas pode inviabilizar a participação na luta política e a publicidade nesse caso é não só ingenuidade e sim ‘suicídio político’. Obviamente, aqui é preciso fazer uma distinção não somente en� tre fatos e interpretações, também, entre motivos e ações. A mentira está relacionada a fatos e não há obrigatoriedade de publicização dos motivos atribuídos à dada ação, somente das ações que praticamos no espaço público. O governante não é obrigado a dizer se vai cons� truir uma escola, primordialmente, para se reeleger ou para atender à população, porém, deve dizer que vai construí-la e com quais meios e dotações. Os motivos que atribui ao ato não estão direta e primei� ramente em julgamento na esfera pública, uma vez que a avaliação de sua atuação e o reconhecimento não são levados em conta para a salvação de sua alma, para levá-lo ou não ao céu, mas para julgá-lo conforme os critérios do mundo dos homens, político, que pode levá� -lo à glória ou ao malogro. Kant (2008, p. 76, grifos do autor) também nos ajuda a pensar tal questão. Para ele, é injusta “uma máxima que não posso deixar tor� nar-se pública sem ao mesmo tempo frustrar minha própria intenção – que deve permanecer secreta se deve ter êxito e para a qual não posso me declarar publicamente sem que por isso seja levantada in� defectivelmente a resistência de todos contra meu propósito”. O “age de modo que a máxima de tua ação possa tornar-se uma lei univer� sal”, na esfera pública e política, torna-se um “age de modo que a máxima de tua ação possa tornar-se pública sem o escândalo dos outros cidadãos”. Eis aqui, de modo específico, uma aplicação do imperativo categórico para a ação na esfera política. Dizer a verdade a respeito dos fatos (sem necessariamente externar os motivos) é, assim, essencial à esfera pública e à atuação política. Também a responsabilidade é algo essencial à vida pública e à ação política, e a mentira pode promover a omissão, transferência espúria ou a escamoteação da responsabilidade pelas ações cometi� das. A martirização por meio da assunção pública de uma responsa� bilidade exterior ou maior que a imbricada nos atos não faz de al� guém um indivíduo politicamente superior ou um ser humano louvável, apenas o identifica como um idiota, egocêntrico e megalo� A mentira na política...
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maníaco que, certamente, não são características positivas de um agente político, seja líder ou não. Já o mentir para furtar-se a uma responsabilidade igualmente instaura uma desconfiança em relação ao cumprimento das obrigações sociais dos homens em relação às consequências de seus atos. Um estado de irresponsabilidade irres� trita e generalizada traz consigo, também, a anomia gerada pela des� confiança mútua, bem como a leviandade nas ações e a dissipação do cuidado com o mundo e seus imperativos. Embora, às vezes, desconfortável, inconveniente, a verdade deve ser preservada na esfera pública, pois a mentira pode corromper ir� remediavelmente o terreno da livre disposição das vontades e da pa� lavra, a política. A mentira na política, na vida pública, pode não só esconder a verdade, mas até mesmo tornar os indivíduos ‘surdos’ à verdade, corromper-lhes a capacidade de aceitar e distinguir a verda� de da mentira ao disseminar uma desconfiança geral que faz com que a verdade seja não só imperceptível, mas também indistinguível. A mentira não destrói a verdade, ela continua a existir, mas não pode ser percebida tão facilmente, pode ser ocultada pelo banimento no mundo ou também pela venda nos olhos dos homens. A mentira envenena as relações, mina a confiança, estabelece um estado de desconfiança e irresponsabilidade geral, um estado de na� tureza ‘hobbesiano’ da mentira, no qual o ‘homem lobo do homem’ torna-se o ‘todos mentem para todos’ e, logo, desconfiam uns dos outros inevitavelmente, sempre. Embora a verdade não seja uma bandeira da virtude (pois isto é a arrogância), nem a espada do virtuoso (pois isto é a vingança ou o sadismo oculto), um mundo en� venenado pela mentira, mormente no espaço público, é inviável para a existência humana segura e baseada no bem-estar geral. Referências ARENDT, H. Crises da república. São Paulo: Perspectiva, 1973. (Debates, 85) ______. Entre o passado e o futuro. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1972. (Debates, 64) ______. Responsabilidade e julgamento. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. ______. Compreender: formação, exílio e totalitarismo. Ensaios (19301954). São Paulo: Companhia das Letras, 2008. ______. A promessa da política. 2. ed. Rio de Janeiro: Difel, 2009a. 112
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A mentira na política...
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Democracia restringida e comunicação líquida1 Marco Mondaini A atitude crítica/ É para muitos não muito frutífera/ Isso porque com sua crítica/ Nada conseguem do Estado./Mas o que neste caso é atitude infrutífera/ É apenas uma atitude fraca. Pela crítica armada/ Estados podem ser esmagados. A canalização de um rio/ O enxerto de uma árvore/ A educação de uma pessoa/ A transformação de um Estado/ Esses são exemplos de crítica frutífera./ E são também/ Exemplos de arte.
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Bertolt Brecht2
o exato momento em que redijo a presente introdução, duas constatações auspiciosas impõem-se de modo inquestioná� vel acerca da atual conjuntura social e econômica vivida no Brasil. Com ares de uma maquiaveliana “verdade efetiva dos fatos” (la verità effettuale), somos diariamente informados de que, por um lado, o crescimento econômico brasileiro (em sintonia com o que ocorre com os países emergentes que constituem os chamados Brics – Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) encontra-se na contra� mão das tendências recessivas internacionais que assolam o mundo desde a explosão da crise de 2008, tendo levado o país a se tornar a sexta economia mais rica do planeta, superado apenas por Esta� dos Unidos, China, Japão, Alemanha e França; por outro lado, em termos sociais, durante a última década, dez milhões de pessoas te� riam saído da situação de pobreza extrema, em virtude da adoção de políticas sociais de caráter compensatório, ao mesmo tempo em que aumentou consideravelmente o contingente populacional incluído no mercado de consumo interno e que cresceu o número de postos de trabalho existentes no país, reduzindo-se, por conseguinte, as ta�
O presente texto é parte da Introdução do livro por mim organizado, e em vias de publicação, com o título Mídias, movimentos sociais e direitos humanos: o desafio democrático à comunicação.
BRECHT, B. Sobre a atitude crítica. Poemas. 1913-1956 (seleção e tradução de Pau� lo César de Souza). São Paulo: Editora 34, 2000, p. 259.
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xas de desemprego – aí, também, na contramão do que aconteceu aceleradamente nas nações mais desenvolvidas do norte do mundo, especialmente depois da crise. Porém, essas duas boas novas emergidas no decorrer da última década no país não podem e nem devem encobrir outros fatos nem um pouco auspiciosos, velando, assim, aquilo que permanece obs� truindo o processo de construção de uma sociedade fundada sob os princípios da “liberdade, com igualdade e respeito à diversidade”, ou seja, uma “sociedade dos direitos humanos”, de direito e de fato. Falo, aqui, antes de qualquer coisa, da persistência crônica dos aberrantes índices de desigualdade social, que nos fazem flanar en� tre os dez países mais desiguais do planeta – um fato que, quando associado a outras estatísticas, nos fazem questionar com severidade quais seriam, afinal de contas, os efeitos sociais positivos do nosso tão propalado crescimento econômico. Em função dos limites de espaço, farei referência aqui somente a dois dados negativamente impressionantes: 1. o Brasil tem a quarta maior população carcerária do planeta – cerca de quinhentos mil detentos, na sua quase totalidade, como é público e notório, consti� tuída por jovens negros pobres –, atrás apenas de Estados Unidos, China e Rússia; 2. o Brasil tem o maior número de homicídios por ano em termos absolutos – cerca de um milhão de assassinatos nas duas últimas décadas, o que dá uma média de cinquenta mil homi� cídios anuais, na sua maioria, como também é público e notório, de jovens negros e pobres. Por si só, tal quadro demonstra claramente a continuidade da existência de um processo seletivo de exclusão (de corte geracional, étnico e classista) de uma parcela da população brasileira da condi� ção de sujeito de direitos, processo este que nos remete historica� mente ao passado colonial/imperial escravista brasileiro. Mas, ao mesmo tempo, nos faz refletir sobre a possibilidade de o Brasil ter se tornado um “Estado penal”, sem nunca ter passado pela experiência do “Estado de Bem-Estar Social”.3 Com isso, não obstante a implementação pelo governo federal, durante os últimos dez anos, de políticas públicas voltadas para o ideal de bem-estar social, o Estado brasileiro (pensado como um fato de “longa duração”, de ordem estrutural) continuaria a tratar a po�
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Sobre a passagem do “Estado de Bem-Estar Social” para o “Estado Penal”, levada a cabo com adoção do receituário neoliberal na Inglaterra de Thatcher e nos EUA de Reagan (dos anos 1970 aos anos 1980), e, depois, expandida para países da Europa continental, ver: WACQUANT, L. As prisões da miséria. RJ: Jorge Zahar, 2001.
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breza com o seu “braço armado”, como “caso de polícia”, e não como uma “questão social”, que deve ser equacionada por intermédio de um conjunto articulado de políticas públicas direcionadas à redistri� buição da nossa concentradíssima renda nacional. Das inúmeras conclusões passíveis de serem tiradas dos dados antes elencados, aquela que, a meu ver, mais deveria alimentar preo� cupações aos que se pautam pela defesa intransigente dos direitos humanos4 em nosso país, vincula-se à constatação de que, passado mais de um quarto de século do fim da ditadura civil-militar instau� rada a partir do golpe de Estado de 1º de abril de 1964, a nossa jo� vem democracia parece ter assumido um caráter restringido. Tal “democracia restringida”,5 em estando certa a presente hipó� tese, teria sido capaz de construir um arcabouço institucional sólido o suficiente para, de acordo com o filósofo italiano Norberto Bobbio, manter intactas as “regras do jogo”, afastando os riscos de repetição dos sucessivos golpes de Estado que marcaram o nosso passado his� tórico, em função de crises institucionais reais, ou artificialmente construídas – o que não pode deixar de ser observado como um avan� ço político num país que tem a sua história republicana marcada por quarteladas de toda espécie. No entanto, para quem compreende a democracia como um sinô� nimo de “socialização de poder”, a afirmação de uma “democracia restringida”, limitada à concepção minimalista de “manutenção das regras do jogo”, reduzida a uma dimensão institucionalista, acabaria por acarretar o esgotamento das energias utópicas da nossa jovem democracia, uma democracia com “artérias entupidas”, para falar como o historiador inglês Tony Judt – uma “democracia deficitária” marcada pela “corrosão do espaço público”, pelo declínio do altruís� mo e da ação em benefício público, em proveito da noção de progres� so individual com resultados de curto prazo, isto é, a “vitória do es� pírito privatizante”, que nos transforma em consumidores, tanto na vida econômica, como na vida política (JUDT, 2011, p. 117-30). A sustentar uma democracia desse tipo estaria um sujeito de direi� tos limitado ao exercício de duas funções: a primeira, de natureza sazo� nal – o ato de votar; a segunda, de caráter diário – o ato de consumir. 4
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Seguindo as diretrizes incorporadas aos textos da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e da Declaração da Conferência Mundial sobre Direitos Huma� nos, realizada em Viena no ano de 1993, entendo que os direitos humanos são um conjunto formado pelos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais – universais, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados. O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos talvez falasse de “democracia de baixa intensidade”.
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Eis, pois, revelado por completo o ethos da “democracia restringida” – uma democracia formada por eleitores pouco mobilizados em períodos pós-eleitorais e por consumidores (ou potenciais consumidores) vorazes de mercadorias. Isso, porque esta é uma “democracia restringida à re� presentação”! Isso, porque essa é uma “democracia restringida pelo mercado”! Uma democracia deficitária quanto aos níveis de participa� ção política e ocupação/uso de espaços/serviços públicos. Em poucas palavras, as possibilidades dessa “democracia res� tringida à representação e pelo mercado” atuar de forma potente so� bre o nosso passivo de injustiças sociais são mínimas, para não se dizer, categoricamente, inviáveis. Concentração midiática e criminalização dos movimentos sociais No campo da comunicação, os efeitos negativos gerados pela pos� sível e indesejada cristalização da “democracia restringida” são múl� tiplos, a começar pelo fato de que esta alimenta e, ao mesmo tempo, é retroalimentada pela concentração dos grandes meios de comuni� cação de massa nas mãos de pouquíssimas empresas, dando forma, assim, a uma situação de monopolização extrema, produzida e re� produzida pela ausência de regulação do mercado midiático pelo po� der público. A fim de afastar o perigo da intervenção reguladora do poder pú� blico do seu caminho – o que poderia acarretar a diminuição das suas elevadas taxas de lucratividade e da sua força de controle polí� tico –, criou-se o mito de que toda e qualquer modalidade de inter� venção do Estado sobre os meios de comunicação de massa repre� sentaria uma forma de censura, um atentado à liberdade de expressão e à imprensa livre. Ora, na verdade, o que se encontra por detrás da retórica defesa dessa que é uma das mais importantes liberdades individuais nasci� das junto às revoluções burguesas dos séculos 17 e 18 (a liberdade de expressão) é a necessidade vital das grandes corporações capita� listas do campo comunicacional manterem incólume o princípio da liberdade do mercado, afastando toda e qualquer ingerência externa sobre a economia de livre mercado e demonizando a limitação, por menor que seja, da liberdade empresarial.6 6
Sobre a proposital confusão feita pelos apologistas liberais do livre-mercado e do Estado mínimo entre “liberdade de imprensa” e “liberdade de empresa”, ver: LIMA, V. Liberdade de expressão X liberdade de imprensa. Direito à comunicação e de� mocracia. São Paulo: Publisher Brasil, 2010.
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No que diz respeito à luta pela democracia (insisto: compreendida como sinônimo de “socialização do poder”) e pelos direitos humanos em nosso país, a situação de monopolização dos meios de comunicação de massa traz consigo, pelo menos, três graves consequências, em função dos interesses mercadológicos que os atravessam na sua totalidade: 1 a criminalização/o silenciamento dos sujeitos sociais historica� mente explorados e oprimidos na sociedade brasileira7 e/ou a espetacularização de suas tragédias cotidianas; 2 a criminalização/silenciamento dos movimentos sociais que lu� tam pelos direitos humanos desses sujeitos sociais; 3 a redução ao extremo dos espaços de pluralismo existentes no campo do debate intelectual. Com isso, os grandes meios de comunicação de massa, que reinam quase absolutos no Brasil, acabam por desempenhar o papel de agen� tes de legitimação do desejo (irrealizável) das elites abastadas de viverem numa sociedade livre dos indesejáveis miseráveis, apontado por Zigmunt Bauman nos seus escritos sobre a “modernidade líqui� da”: ou seja, a grande mídia enxerga a realidade com os olhos dos “turistas” (“aqueles que vivem no tempo”, num mundo onde “as fron� teiras dos Estados foram derrubadas, como o foram para as merca� dorias, o capital e as finanças”), tornando invisíveis os “vagabundos” (“aqueles que vivem no espaço”, num mundo onde “os muros consti� tuídos pelos controles de imigração, as leis de residência, a política de ‘ruas limpas’ e ‘tolerância zero’ ficaram mais altos”), para empregar a metáfora utilizada pelo sociólogo polonês a fim de compreender a nova hierarquia social da “sociedade de consumo” capitalista: E assim o vagabundo é o pesadelo do turista, o “demônio interior” do turista que precisa ser exorcizado diariamente. A simples visão do vagabundo faz o turista tremer – não pelo que o vagabundo é mas pelo que o turista pode vir a ser. Enquanto varre o vagabundo para debaixo do tapete [...] o turista busca desesperadamente, embora em última análise inutilmente, deportar seus próprios medos [...] Um mundo sem vagabundos é a utopia da sociedade dos turistas. A po� lítica da sociedade dos turistas pode ser em grande parte explicada – como a obsessão com a “lei e a ordem”, a crimi� 7
Trabalhadores pobres, sem-terra, sem-teto, mulheres, homossexuais, negros, índios, crianças e adolescentes, idosos, que formam a massa de (não) cidadãos produzidos e reproduzidos pelas particularidades do capitalismo brasileiro – um capitalismo que ainda traz em si as marcas mais profundas do patriarcado e do patrimonialismo da nossa história colonial.
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nalização da pobreza, o recorrente extermínio dos parasitas etc. – como um esforço contínuo e obstinado para elevar a realidade social, contra todas as evidências, ao nível dessa utopia (BAUMAN, 1999, p. 106). Para além da “teoria crítica”... com a “teoria crítica” Em um período histórico de “modernidade líquida” – na qual os “corpos líquidos” vivem num tempo que escorre continuamente de maneira fluida (“o mundo dos turistas”) e os “corpos sólidos” encon� tram-se fixos num espaço rigidamente limitado (“o mundo dos vaga� bundos”) (BAUMAN, 2002, p. VI) –, claro está que a comunicação, em particular os meios de comunicação de massa, não deixaria de se tornar também fluida, dando forma a uma espécie de “comunicação líquida”, que desempenha uma função ideológica muito precisa, a saber: legitimar as estruturas de poder vigentes, responsáveis pela produção e reprodução das relações de exploração econômica e opressão política do capitalismo globalizado e sua imanente aparta� ção social. Ora, já que a maior parte dos consumidores de produtos midiáti� cos não pode viver no espaço global extraterritorial habitado pelas elites cosmopolitas, lhes é oferecido, no limite, o sonho (irrealizável) de vivê-lo: As mídias fornecem “extraterritorialidade virtual”, “extrater� ritorialidade substitutiva”, “extraterritorialidade imaginada” àquela multidão de pessoas às quais são negadas o acesso à extraterritorialidade real (BAUMAN, 2003, p. 97). Os efeitos de tal processo de “extraterritorialização virtual” são obtidos por meio da sincronização planetária do deslocamento da atenção dos indivíduos para os mesmos objetos de consumo mi� diático, o que, nos tempos atuais de espetacularização, implica a fi� xação na vida das celebridades do mundo do espetáculo, com seu sucesso tão fluido e efêmero como o são os próprios fundamentos da “modernidade líquida”. Na verdade, como bem notou o historiador inglês Asa Briggs, num mundo em que “a maior parte das coisas é efêmera”, os meios de comunicação de massa concentram-se nos acontecimentos de “cur� tíssima duração” – “no dia (hoje e amanhã) e na semana, muitas ve� zes sugerindo o que irá acontecer, e não relatando o que já aconte� ceu” –, sendo as referências àquilo que é “histórico” utilizadas “mais em relação aos eventos esportivos do que para os econômicos, políti� Democracia restringida e comunicação líquida
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cos e diplomáticos”. A propósito, segundo Simon Kruger, o esporte (e a vida das suas celebridades – os atletas) acabou por se transformar numa obsessão, tendo sido utilizado de maneira recorrente como “uma forma de distração para a guerra e a política” (BRIGGS; BURKE, 2006, p. 329). Pois bem, em face disso, o que teriam a nos dizer sobre tal pro� cesso os pensadores da primeira geração da Escola de Frankfurt? As críticas à “razão iluminista” e à “indústria cultural” feitas por Theo� dor Adorno e Max Horkheimer, em 1947, no imediato pós-Segunda Guerra Mundial, são capazes de contribuir de alguma forma na cons� trução de um olhar crítico acerca da “comunicação líquida” e seus preocupantes efeitos sociais? Reconhecendo a amplitude das respostas exigidas a fim de aten� der minimamente às demandas postas por essas perguntas, limito� -me, nessa introdução, a fazer dois registros que possam servir como ponto de partida para a defesa da hipótese de que a “teoria crítica”, mesmo que nascida em meio à “modernidade sólida”, ainda pode fornecer elementos vitais para o exercício, em tempos de “mo� dernidade líquida”, da “atitude crítica” de que nos fala a poesia de Bertolt Brecht. Em primeiro lugar, imagino ser fundamental apontar que as áspe� ras críticas feitas pelos dois mestres da Escola de Frankfurt à raciona� lidade moderna assinalam uma inflexão ímpar na forma como a mo� dernidade era observada pelo pensamento ocidental, estando localizada, a meu ver, exatamente aí um dos “marcos zero” do nascimento do que se convencionou chamar de pensamento “pós-moderno”. Ora, em sendo correta tal afirmação, a própria “brecha intelec tual” explorada por Bauman – a qual o levaria à defesa da existência de uma “modernidade líquida”, depois de ter utilizado por algum tempo a expressão “pós-modernidade”8 – estaria situada neste que é um dos escritos mais importantes do pensamento filosófico do sécu� lo XX, que se inicia, de maneira bombástica, com a afirmação de que: Desde sempre o iluminismo, no sentido mais abrangente de um pensar que faz progressos, perseguiu o objetivo de livrar os homens do medo e de fazer deles senhores. Mas, completamente iluminada, a terra resplandece sob o signo do infortúnio triunfal. O programa do iluminismo era o de livrar o mundo do feitiço. Sua pretensão, a de dissolver os 8
Ver, por exemplo, os artigos que compõem o seu livro O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
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mitos e anular a imaginação, por meio do saber. [...] Entre� tanto, a credulidade, a aversão à dúvida, a precipitação nas respostas, o pedantismo cultural, o receio de contradi� zer, a parcialidade, a negligência na pesquisa pessoal, o fetichismo verbal, a tendência a dar-se por satisfeito com conhecimentos parciais, essas e outras causas semelhan� tes impediram que o entendimento humano fizesse um ca� samento feliz com a natureza das coisas e foram, em vez disso, as alcoviteiras de sua ligação a conceitos fúteis e experimentos não planejados: é fácil imaginar os frutos e a prole de uma união tão gloriosa [...] (ADORNO; HORKHEI� MER, 1980, p. 89). Em segundo lugar, penso ser não menos fundamental a indica� ção de que, sendo a “indústria cultural” um dos frutos principais do iluminismo virado às avessas, na visão desencantada da moder� nidade de Adorno e Horkheimer, esta deveria ser resgatada menos como um “conceito estático” parado na década de 1950, do que como um “princípio heurístico” a ser empregado a uma realidade em constante movimento (ainda mais em um mundo no qual a ló� gica consumista do descartável e a cultura do efêmero são hegemô� nicas), pois que, passados mais de cinquenta anos da sua formu� lação ideal, a “indústria cultural” mostrou-se dotada de uma impressionante capacidade de mutação nas suas formas de ex� pressão, da mesma maneira que se manteve vinculada material� mente aos mesmos interesses mercantis desejosos de conformismo social e pouco afeita à participação política, elemento sem o qual as democracias tendem a se esvaziar, tornando-se deficitárias em sua dinâmica transformadora. Dentro desse contexto, não me parece haver incongruência algu� ma (muito pelo contrário!) entre a argumentação de Theodor Adorno e Max Horkheimer de que “a indústria cultural continuamente priva seus consumidores do que continuamente lhe promete” (2011, p. 34) e a, citada anteriormente, afirmação de Zigmunt Bauman de que “as mídias fornecem ‘extraterritorialidade virtual’ [...] àquela multidão de pessoas às quais são negadas o acesso à extraterritorialidade real” (2003, p. 97). Referências ADORNO, T.; HORKHEIMER, M. Conceito de iluminismo. In: Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 89-116.
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A política e sua perversão
Dimas Macedo
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política, que é a latitude máxima da ação humana, em busca de um fim social, e de uma práxis civil e emancipadora, corre em todas as sociedades qual rastilho de pólvora. Não há como deter a sua força, a sua energia dadivosa, o seu poder absoluto de envolvimento e de transformação. Não podemos pensar em qualquer forma de sociedade sem que nela não esteja presente o exercício da política. A política é o que é, existe porque tem que existir. É a espinha dorsal e a coluna vertebral do Estado, do município, do poder político de uma forma geral. Claro que a política não se submete aos limites da ética, porque a conquista do poder e a sua manutenção constituem, com certeza, um campo de guerra e não tem como ser diferente. Mas é claro que ela pode ser limitada pelas regras do Direito e pelas aspirações de segurança que rondam o habitat da vida social. Em face das conquistas da técnica e da clarificação das consciên� cias, penso que, nos dias de hoje, a política poderia ser um pouco diferente. Deveria estar prioritariamente voltada para o homem, para as suas necessidades e para a superação das misérias sociais, que desafiam a paz e a busca dos direitos humanos. A política, infelizmente, virou uma grande equação capitalista: transformou-se em patrimônio material de uns e em forma de extor� são com que outros se mantêm no poder, roubando os cofres da admi� nistração, assaltando a partilha do orçamento, transformando tudo em uma mesa de jogo da corrupção e do desvio de recursos. Após os avanços da globalização econômica, especialmente a par� tir da década de 1990, o capitalismo e os seus valores de ordem fi� nanceira foram assaltando, gradativamente, a máquina do Estado. O mercado substituiu a política e os intelectuais foram expulsos do espaço público, porque a equação capitalista não precisa de ideias, mas de pessoas dóceis à sua sedução material.
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O capitalismo, como sabemos, abomina qualquer discussão de ideias que não seja em proveito da sua utilidade, e que não seja a favor dos monopólios de todos os setores da vida; e a ideologia de ordem econômica e monetária passou a ser, ao que parece, a religião oficial do planeta. A cultura, a arte e a educação, que são bases primordiais do hu� manismo, vêm sendo ultrapassadas, de último, pelos valores da tec� nologia; a preparação técnica das pessoas assumiu o lugar da sua formação, do seu aprendizado sistemático e da sua capacidade de interação com os seus semelhantes; e a defesa da ética e dos direitos humanos igualmente vem perdendo o seu lugar nessa nova forma de sociedade, calculadamente fria e esquisita. Grande parte das pessoas, hoje, sucumbiu à sedução do consu� mo, e trocou sua alma pela exibição do seu ego. Muitos não estão nos espaços midiáticos da web porque fizeram alguma coisa de proveito no mundo, mas porque desejam promover as suas fantasias. Assusta observar, por outro lado, que o homem perdeu a sua condi� ção de reagir, de se indignar, de denunciar os desmandos da classe po� lítica, e de ocupar as ruas e as praças para reivindicar os seus direitos. Os que se julgam acima do bem e da verdade decretaram a morte dos princípios, como se fosse possível convencer os semelhantes com o barulho de suas teses enfadonhas. A completa conivência de muitos chefes de Estado, e assim tam� bém do último governo do Brasil, para com a mentira e a falsifica� ção da verdade, e para com aqueles que já estão cansados de man� dar, tais os exemplos de Fernando Color, Renan Calheiros e José Sarney, são situações que estão, por outro lado, a desafiar a pa ciência das pessoas. No caso específico do Brasil, a busca da justiça social e o resgate da política enquanto vocação parece que não são, decididamente, valores que agradam aos integrantes da classe dirigente. E o povo, sempre alimentado de muitas ilusões, se acostumou demais com a mentira e com as esmolas que lhe são destinadas pelas autoridades que estão de plantão, e não desconfia sequer das inten� ções dos que estão no centro do poder. Parece ser mesmo doloroso, para os homens de boa vontade, e para os que lutam pela ética e a dignidade, assistir à ascensão de pessoas despreparadas e gananciosas para a representação parla� mentar, e para os postos de comando da máquina do Estado. 124
Dimas Macedo
A política não constitui um fim, e o exercício da política, como sabemos, é uma vocação. Não é um patrimônio que se transmite por herança para os apaniguados do poder. A política é uma missão e exige de quem a ela se entrega um compromisso integral e efetivo para com as exigências da vida coletiva. No Brasil, infelizmente, a maioria dos políticos ainda não desper� tou para a grave questão do ambiente e o povo ainda não se sente motivado para os desafios da educação ambiental, o que é lamentá� vel, e a consequência de tudo será a transmissão, para as gerações futuras, dessa conduta irresponsável. Essa perversão, em que a hegemonia da política foi transformada, é a causa da violência social e da violência simbólica que nos cercam; é a causa da proliferação das drogas e das deformações que atacam as novas gerações e entorpecem a mente dos que gravitam ao redor da máquina do poder. Parece mesmo que existe uma desordem no cosmos, causada pela perversão em que se transformou a política, pois a sinfonia pla� netária, que há séculos encantava a audiência humana, hoje se en� contra ameaçada. Empresários inescrupulosos e políticos de visão mesquinha têm feito da ganância e da especulação instrumentos de violação da paz e do equilíbrio da vida em sociedade. O meio ambiente vem perdendo a sua qualidade. Agredido pela insensatez e a irresponsabilidade de muitos, agoniza qual um animal sangrado, e pede clemência para a tragédia da degradação ambiental e cosmológica. Depois que o homem decretou a morte de Deus e do sagrado, pa� rece mesmo que tudo se tornou possível, cumprindo-se assim a pro� fecia do grande romancista russo Fiódor Dostoiévski. A degradação ambiental, que hoje se espalha pelo mundo, tem recebido respostas muito convincentes da própria natureza, que aqui e ali vai se defendendo como pode, através de vulcões e terremotos, degelo das calotas polares, tsunamis marinhos e aquecimento de to� das as regiões do planeta. O ser humano, contudo, não recua e a sociedade de consumo vai achando normal a circunstância de conviver com o lixo e com as em� balagens nunca recicláveis das mercadorias que consome, rejeitando o ciclo natural do ambiente à sua volta e substituindo-o pelo consu� mo de mercadorias e serviços provenientes da indústria do tóxico.
A política e sua perversão
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O homem que consome, de forma obsessiva, o ópio do mercado, e que sonha com o desejo do lucro, e que apoia, a seu turno, a po� luição da natureza, parece mesmo que decidiu morrer abraçado com a sua imperfeição e com a sua teimosia de viés egoísta. Parece que decidiu sufocar a natureza, almejando assim o seu poder abso� luto sobre o cosmos. É possível que a voz dos ambientalistas e daqueles que defendem a natureza continue clamando no deserto, mas aceitar as coisas de forma diferente, e não reagir contra o agravamento da crise ambien� tal, me parece o jeito mesquinho de estar no mundo e de aceitar a sua total degradação. Assim sendo, urge que as pessoas de boa vontade continuem re� sistindo ao avanço do mal e ao poder de degradação do universo, resultado da teimosia dos que não acreditam no amor e na compre� ensão, que maltratam a sensibilidade e tudo corrompem em nome dos bens materiais e dos interesses políticos inconfessos. Para além de tudo, no entanto, está a esperança, a dignidade dos que sonham com a vida, que replantam a semente do bem e a partilha da paz e da justiça, porque os frutos perenes do amor, a defesa da ética e o denodo dos que lutam pelas formas de afirmação do bem e da verdade são as nossas crenças e os nossos valores de maior valia.
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Dimas Macedo
VI. Ensaio
Autor Rubem Barboza Filho
Professor titular da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), com experiência na área de Ciência Política.
Razão e religião: jogos de linguagem e democracia Rubem Barboza Filho
A
o encerrar a introdução a uma nova edição de seu Habits of the Heart (Hábitos do Coração) e lamentando o espírito que atormen� tava os Estados Unidos na era Bush, Robert Bellah escrevia: Under the conditions of today’s America, we are tempted to ignore Winthrop’s advice, to forget our obligations of solidarity and community, to harden our hearts and look out only for ourselves. In the Hebrew Scriptures God spoke to the children of Israel throught the prophet Ezekiel, saying, “I will take out of your flesh the heart of stone and give you a heart of flesh” (Ez. 36:26). Can we pray that God do the same for us in America today?1
Duvido muito que um cientista social brasileiro seja capaz de um apelo ao sentimento religioso da sociedade, mesmo com o objetivo de fortalecer nossa democracia. O agnosticismo é uma das marcas de nossa academia, do mesmo modo que a desconfiança em relação ao papel cumprido pela religião em nossa história. Mas antes de discutir o que se passa nestes nossos trópicos, gostaria de explorar, rapida� mente, duas perspectivas que poderiam justificar esta interpelação de
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Sob as condições da América de hoje, somos tentados a ignorar os conselhos de Winthrop, para esquecer as nossas obrigações de solidariedade e comunidade, para endurecer nossos corações e olhar somente para nós mesmos. Nas Escrituras He� braicas, Deus falou aos filhos de Israel por meio do profeta Ezequiel, dizendo: "Tira� rei da vossa carne o coração de pedra, e vos darei um coração de carne" (Ez 36:26). Podemos orar para que Deus faça o mesmo para nós na América de hoje?”
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Bellah à experiência religiosa dos norte-americanos, e a sua esperan� ça de encontrar nela um antídoto à era Bush. A primeira delas seria aquela presente em O Liberalismo Político, de John Rawls, exemplar do que se costuma chamar de procedimentalis� mo democrático. Nesta perspectiva neokantiana – ou pós-kantiana –, a democracia consistiria fundamentalmente em procedimentos para a formação discursiva de vontades e opiniões livres, adotados por cida� dãos definidos como seres morais e racionais (ou razoáveis). Ela estaria desprendida de concepções fortes a respeito de um bem, ou seja, estaria desatada de quaisquer configurações éticas e atrelada à aposta ou numa razão moral universal ou na razoabilidade de seres morais concebidos de um ponto de vista universal. Seus procedimen� tos garantiriam a todos o uso público da razão, em um diálogo cujo resultado seria a elaboração de uma Constituição como o modo legíti� mo de normatização da sociedade. A teoria procedimentalista vê o seu modelo de democracia como o fruto de um aprendizado ontogenético das sociedades pós-tradicio� nais e pós-seculares, aprendizado que teria engendrado seus pró� prios fundamentos e sua própria legitimação. No entanto, dado o seu escopo, ela não pode exigir que os participantes da sociedade não estejam comprometidos com concepções morais abrangentes e for� tes, de qualquer natureza. Assim, admite e estimula o fato do pluralismo, mas endereça a estas configurações uma exigência: a de que sejam “razoáveis”, ou seja, que moderem suas ambições éticas para o fortalecimento do pró� prio pluralismo e dos procedimentos para a formação da vontade livre de cidadãos. Desse modo, as crenças e concepções morais pré-políti� cas “razoáveis” seriam ou aceitas ou convocadas como fundamentos culturais externos, adicionais e bem vindos à democracia, dela parti� cipando ativamente através de um overlapping consensus (consenso sobreposto). Contudo, esta não parece ser a real motivação de Bellah. Bellah é dos mais argutos estudiosos do que Tocqueville chamou de “religião civil” dos Estados Unidos, e acaba se reconhecendo como um “comunitarista”. Na angulação do comunitarismo, a democracia não se reduz a um módulo racional e quase abstrato da sociedade. Ao contrário, ela só pode ser postulada como expressão concreta de uma tradição ética e histórica baseada em valores de liberdade, de solida� riedade, de tolerância, de vida em comum. Longe de se abastecer ins� trumentalmente de configurações “pré-políticas”, a democracia seria a expressão política de uma configuração de valores éticos entranhados na experiência de um povo. 130
Rubem Barboza Filho
De fato, Bellah não reclama uma atividade reformista e racionalis� ta, de caráter institucional, como resposta à era Bush, mas dirige seu apelo a uma sociedade contaminada por uma desregrada linguagem dos interesses. O que lhe interessa é a reconversão de um povo aos seus valores originais e identitários – originados do protestantismo e depois laicizados –, sem os quais a democracia se transforma num mero jogo entre interesses e gangues. Por isso anima-se a dar um pas� so além da condição de cientista, assumindo, ainda que fugazmente, a identidade de um profeta que se vale do imaginário bíblico e religioso que habitaria o fundo da experiência norte-americana. A oposição entre comunitaristas e procedimentalistas foi recente� mente suavizada no que se refere às relações entre democracia e re� ligião. Depois dos atentados de 11 de setembro, dos graves proble� mas decorrentes da reação europeia à migração, sobretudo islâmica, e dos efeitos do processo de globalização, a diferença entre as duas angulações parece ter sido substituída pela percepção do mundo contemporâneo, sobretudo o ocidental, como um mundo pós-secular. Nesta sociedade pós-secular e pós-metafísica, que abandonou seus gritos de guerra contra a religião, a razão ocidental seria – ou deveria ser – mais sensível à dinâmica das religiões, dizem os proce� dimentalistas e humanistas como Habermas. Há algo além ou fora da razão que não pode ser simplesmente descartado, e que deve ser reconhecido como fonte de aprendizado para a vida em comum, para uma democracia verdadeiramente pluralista. Este movimento, de certa forma, altera a imaginação a respeito do overlapping consensus estabelecendo uma equivalência funcional entre culturas religiosas e procedimentos racionais. Não por acaso Charles Taylor, reconhecido como um dos papas do comunitarismo, também lança mão do mesmo conceito numa en� trevista concedida ao The Utopians, aproximando a imaginação prá� tica de comunitaristas e procedimentalistas no que se refere às rela� ções entre fé, razão e democracia. Razão, racionalidade, fé e religião acabam apreendidas como jogos de linguagem, sem nenhuma razão metafísica para a superioridade de uma sobre a outra, o que depen� deria de circunstâncias históricas. É por esta fresta, aberta pela reflexão da razão sobre si mesma, e que resulta no relativismo ou no procedimentalismo, que se insinua um discurso católico e crítico sobre a modernidade, ou sobre a razão ocidental e moderna, tornando ainda mais complexo o tema das re� lações entre razão – e seus frutos mais vistosos, como o procedimen� talismo ou uma ciência indiferente ao sentido – e religião no Ociden� Razão e religião: jogos...
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te, com consequências globais. A intervenção de Ratzinger no debate com Habermas é exemplar desta complexidade adquirida pelo tema. Ratzinger mostra-se disposto a aceitar Habermas como o repre� sentante da razão ocidental – e de uma vertente humanista e demo� crática da razão – apresentando-se como o emissário da religião oci� dental por excelência, o catolicismo ou o cristianismo de forma geral. Numa leitura superficial, o itinerário seguido por Ratzinger não pare� ce trazer novidades. Destaca a origem comum do cristianismo e da razão ocidental, reconhece a fratura histórica entre ambos e não se furta a denunciar as patologias tanto da razão quanto da religião, construindo assim o ambiente para um debate pós-secular entre ra� zão e religião interessado na construção de modelos de vida boa. E encerra a sua participação lembrando a necessidade de um diálogo intercultural e mundial entre experiências distintas como a chinesa, a indiana, a africana, a dos ameríndios e a ocidental europeia. Rat� zinger era um cardeal – agora é Papa –, e os cardeais aprenderam muito com os demônios em dois mil anos de história. E talvez por isso devamos rasgar a elegância diplomática de sua intervenção para capturar uma torção que tenta jogar a razão para um canto do tabla� do. Para ele, cristianismo e “razão” são produtos do Ocidente. Mas nesse diálogo intercultural necessário e urgente, a razão ocidental será uma convidada discreta, sem o protagonismo que ambiciona obter. Esta conversa entre culturas variadas só terá êxito, afirma Ratzinger, se recuperarmos “as normas e valores essenciais de alguma forma conhecidos ou pressentidos por todos os homens”. Sem dúvida, isso deve ser lido como uma defesa dos direitos hu� manos, mas é mais do que isso: é uma inflexão que a razão ocidental não pode acompanhar totalmente e que o catolicismo pode reclamar confortavelmente. Ou seja, a afirmação de uma natureza comum a todos os homens, pedra de toque das grandes religiões mundiais e das culturas não ocidentais. Natureza concebida de forma substan� tiva, eticamente enraizada, e de onde nasceriam os direitos, numa imaginação distante da natureza formal dos sujeitos morais esculpi� dos pela lâmina universalista da razão ocidental. A humanidade não se fará, parece dizer Ratzinger, a não ser pelo reconhecimento mútuo e efetivo destas configurações éticas do viver, pela “purificação” das religiões e da própria razão, termo de óbvias conotações religiosas. Trata-se de um debate radical sobre o sentido de morrer e viver, para além dos procedimentos. A hermenêutica feita por Ratzinger parece formalmente associada à reflexão de alguns acadêmicos católicos e reconhecidos. São estes autores, sem atribuir a eles nenhuma responsabilidade direta pelo 132
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pensamento de Ratzinger, que gostaria de explorar, ainda que rapida� mente. Refiro-me a Alasdair MacIntire, com o seu Depois da Virtude, e a Charles Taylor, em A Secular Age. Os dois organizam uma polêmica hermenêutica do mundo moderno a partir do catolicismo, entendido como uma perspectiva generosa do mundo, sem a tentação de justifi� cá-lo como a religião verdadeira. Esse ponto é interessantíssimo, pois envolve uma mistura de crença e fé com a consciência de que, tanto as religiões quanto a razão são invenções humanas para responder à questão do significado da vida. Ou seja, jogos de linguagem. O que leva à indagação de qual é a melhor invenção e de como explicar a fé. Em Depois da virtude, MacIntire não faz uma defesa explícita da religião em geral ou do catolicismo em particular. Mas é a estrutura de seu argumento que nos interessa aqui. Para ele, o Ocidente tornou-se, a partir do início da modernidade, incapaz de produzir juízos morais, entregando-se ao “emotivismo” como se estivesse construindo as ba� ses para a liberdade humana. O emotivismo é uma doutrina para a qual todos os juízos normativos, incluindo os juízos morais, não pas� sam de expressões de preferência, expressões emocionais ou afetivas, na medida em que são de caráter moral ou normativo. Todas as varia� das doutrinas emotivistas reconhecem a impossibilidade de padrões morais objetivos, o que acaba por significar a inexistência de justifica� tivas finais para a ação moral. Resulta disso o caráter interminável, arbitrário e fracassado do debate moral ocidental e moderno, que se alimenta na verdade de fragmentos esparsos herdados de uma visão anterior, que tem no aristotelismo a sua formulação paradigmática. A ética aristotélica é teleológica e funcional, afirma MacIntyre. Ela su� põe, em primeiro lugar, uma diferença entre o homem tal como ele é e o homem como poderia ser se descobrisse a sua natureza essencial e o seu télos. A ética quer, precisamente, capacitar o homem para esta transição, educando nossos desejos e emoções através de uma razão prática para uma vida virtuosa. Este esquema é aumentado com as crenças teístas, cristãs como as de Tomás de Aquino, judaicas como as de Maimônides, islâmicas como as de Ibn Roschd. Por outro lado, além de teleológica, a ética aristotélica seria funcional, e nasce da pergunta sobre o que o bem para o homem, concebido apenas no interior de uma trama de rela� ções que constituem a comunidade. Para Aristóteles, explica MacIn� tyre, o bem é a eudamonia, cuja difícil tradução pode ser feita como o estado de estar bem e de fazer o bem ao estar bem. As virtudes seriam as qualidades que permitiriam aos homens alcançar este bem, mas não podem ser encaradas como um meio. O que constitui o bem para os homens é uma vida completa, vivida da melhor forma Razão e religião: jogos...
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possível, e o exercício das virtudes é uma parte necessária e funda� mental dessa vida, não se reduzindo a um exercício preparatório para a obtenção da felicidade. Por outro lado, agir virtuosamente não é agir contra nossas incli� nações: é agir com base na inclinação formada pelo cultivo das virtu� des. O que é bom, portanto, exige a capacidade de discernimento, própria da razão prática, para além da mera obediência às normas e ao direito, cuja existência necessária não cobra a sua separação do reino da moralidade. Assim, uma concepção do bem, e do homem vol� tado para o bem, na sua função social específica, ofereceria à ética aristotélica a condição de se pronunciar substantivamente sobre um ato ou vontade humana do mesmo modo que uma proposição factual, organizando um ponto de vista objetivo sobre nossas ações morais. Ao afastar o aristotelismo de seu horizonte, pela adoção das va� riadas versões do emotivismo e suas sequelas burocráticas e indivi� dualistas, o Ocidente sofreu uma enorme perda. Tornou-se “weberia� no”, atravessado pelo “politeísmo de valores”, dependurado em normas pretensamente morais, como o imperativo kantiano, ou em um sistema jurídico-formal, e com o fantasma de Nietzsche a assom� brá-lo. E elegeu suas máscaras: a do esteta rico – à la Simmel –, a do terapeuta e a do administrador (entre os quais se situam os econo� mistas e os sociólogos). Nenhum destes personagens é capaz de rea� lizar um debate moral. Os conflitos, entre indivíduos ou interiores a eles, são sempre uma confrontação entre uma arbitrariedade contin� gente e outra, e esta perda da capacidade de discriminação moral foi, equivocadamente, celebrada como progresso e acréscimo de liberda� de. Ao alcançar a soberania em seu próprio domínio, o indivíduo perdeu seus limites tradicionais proporcionados por uma identidade social e uma visão da vida humana marcada por um fim determina� do, teísta ou não. Diante desse diagnóstico, cabe a pergunta: pode� mos ainda conceber a vida humana como uma unidade, as virtudes como capacitadoras para um fim? MacIntire acredita que sim, pela restauração do aristotelismo em formas locais de comunidade, ao modo das cidades italianas da Renascença. Mas avisa que isto é uma espécie de fé. Não tenho a intenção de fazer justiça a MacIntyre e ao seu livro. Meu interesse é o de ressaltar a estrutura de seu argumento, que tenta capturar o emotivismo moderno jogando-o contra mais de um milênio de história e contra um fundo comum às religiões e culturas próprias ou mais próximas do Ocidente. E, de certo modo, descre� vendo a modernidade ocidental como um processo contingente, não necessário, como um acidente no interior de toda a história da hu� 134
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manidade, que nos obriga no presente a retornar a uma fonte esque� cida de significado. Embora a solução de MacIntyre não seja a mes� ma de Ratzinger, a estrutura do argumento é semelhante. O mesmo propósito ressurge ampliado e balanceado em Charles Taylor, com o seu A Secular Age. A questão básica que Taylor se põe é a seguinte: The change I want to define and trace is one which takes us from a society in which it was virtually impossible not to believe in God, to one in which faith, even for the staunchest believer, is one human possibility among others (A mudança que eu quero definir e traçar é aquela que nos leva de uma sociedade em que era virtualmente impossível não acre� ditar em Deus àquela em que a fé, mesmo para o mais fiel crente, é uma possibilidade humana, entre outros). Taylor recusa a explicação das teorias tradicionais da secularização, com origens weberianas, que acabam por supor a existência, no Ocidente, de um processo retilíneo e crescente de desencantamento do mundo e racionalização da vida, libertando as várias dimensões públicas da vida social do império das religiões. Além de insuficiente, esta versão seria apenas a primeira de uma das três possíveis encontradas por ele. A segunda estaria fundada na hipótese da diminuição progressiva dos crentes, mesmo em sociedades que mantivessem vestígios de referência pú� blica a Deus. E, finalmente, a terceira e mais complexa, tentaria des� vendar o caminho histórico seguido pelo Ocidente para a passagem de uma forma de vida em que a crença em Deus não era ou não podia ser desafiada para uma sociedade em que esta seria apenas uma opção entre outras, e não a mais fácil de abraçar. Esta última é a perspectiva com a qual trabalha para um cuidadoso olhar sobre os cinco últimos séculos vividos pelo norte do Ocidente. As duas primei� ras perspectivas seriam extremamente restritas e duvidosas, diz Taylor. Não apenas porque o desenvolvimento da ciência não seria incompatível com a crença em Deus, como nada indica que o núme� ro de pessoas com – ou em busca de – experiências religiosas varia� das tenha diminuído no Ocidente. Como bom hegeliano, Taylor está atento ao caráter dialético, e não sagital, da secularização ocidental. Os antecedentes deste pro� cesso podem ser encontrados ainda na Idade Média, na atuação de elites – religiosas ou não – interessadas numa crescente individuação da fé, em detrimento das formas rituais e públicas da religiosidade do cristianismo. Este movimento adquire uma força contagiante na Reforma Protestante, escapando de seus limites elitistas. A Reforma Protestante constitui, para Taylor, um passo decisivo para a criação do que ele chama de “humanismo exclusivo”, próprio da seculariza� Razão e religião: jogos...
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ção, que propicia o aparecimento do Deísmo, da ética da benevolên� cia e da concepção da sociedade como uma ordem impessoal. A base antropológica deste caminho seria a construção de um buffered self (autotampão), por oposição ao self poroso do cristianismo medieval, aberto à experiência do transcendente. Mas esta sociedade da impes� soalidade, da rotina, do homem comum e da vida comum, logo pro� voca a reação em nome da “plenitude” da vida, como no Romantismo ou em Nietzsche, em busca de algo heróico diante da ausência de sentido substancial para a vida. Estas reações não mais necessitam do transcendente, desdobrando-se no interior do immanent frame (estrutura imanente) constitutivo da secularização. Tal como Elias, Taylor vê o processo civilizatório ocidental como a disseminação de comportamentos e práticas adotados inicialmente por elites ou aristocracias. Os efeitos “Nova” – termo retirado da Físi� ca – e “Super-Nova” ocorrem precisamente quando, no interior do immanent frame, multiplicam-se as possibilidades competitivas de concepções de vida boa e “plenitude” entre as elites e altera-se deci� sivamente o “imaginário social” da população europeia, em especial no século XIX. Nesse momento, materializa-se com clareza o que ele chama de secularização um – o avanço da ciência e da técnica sobre as crenças teístas tradicionais – e a secularização dois, a diminuição do número de crentes e a generalização de uma atitude, ou de incre� dulidade ou de indiferença religiosa. O desenvolvimento deste immanent frame muda inteiramente as condições para os crentes. Se no mundo medieval prevalecia uma crença naif em Deus, agora as circunstâncias da secularização a re� clamam como uma crença reflexiva, como uma opção entre outras de plenitude. Reflexividade que também aumenta as possibilidades de experiência, ou do transcendente ou de um sentido além da vida, tornando mais complexa e variada a vida religiosa dos europeus e norte-americanos. A “era das mobilizações” e a “era da autenticida� de”, em épocas recentes, teriam ampliado as possibilidades dos cam� pos dos crentes e dos não crentes, resultando no aparecimento de alternativas de experiências de plenitude que parecem se despedir daquilo que conhecemos como história cristã e ocidental. Este pálido resumo do complexo panorama desenhado por Taylor é suficiente, no momento e para os propósitos deste texto. Mas algu� mas observações merecem ser feitas. Taylor não deseja tratar a crença e a descrença como perspectivas competidoras, envolvidas num jogo de soma-zero, mas como diferen� tes formas de entender a vida e de diferentes formas de responder às 136
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nossas perguntas e desafios práticos. Assim, o panorama atual do norte do Ocidente seria composto por esta pluralidade interna dos dois campos – dos crentes e não crentes –, e atravessado por pressões cruzadas e dilemas nascidos de questões como o aborto, a eutanásia, a clonagem humana, a exploração de embriões, que afetam as pessoas tanto quanto o casamento entre homossexuais, a proximidade de ou� tras culturas trazidas pela migração e assim por diante. Pluralidade e dilemas que tendem a enfraquecer a força de todas as opções. Taylor sem dúvida reconhece os ganhos da história moderna do Ocidente, como os direitos humanos, o respeito maior à pessoa, a capacidade técnica e científica de controle da natureza, o desenvolvimento mate� rial, e não demonstra nenhuma tolerância para com as atitudes rea� cionárias do Catolicismo, a exemplo daquelas de Pio IX. Mas, ao final, mesmo com esta percepção balanceada dos ganhos e perdas do Oci� dente, não hesita em retomar o ponto de MacIntyre: tudo isso foi um grande “desvio” de um ponto original, uma torção histórica que opôs razão e fé de forma contingente e desnecessária. O retorno a esta ori� gem não equivale, para Taylor, a uma volta ao mundo medieval, mas à noção de ágape, ou seja, o amor de Deus por cada um de nós e que podemos compartilhar com os outros. De um ponto de vista prático, isso pode parecer frustrante. Na entrevista a The Utopians, Taylor é mais claro. Retoma a ideia de “ecumenismo” do Vaticano II para a con� vivência de culturas e religiões – tema a respeito do qual o Papa não sabe o que dizer, acrescenta – e sugere que, diante deste panorama de pluralidade, a esquerda ocidental deveria se orientar pelo fortaleci� mento do republicanismo, reativando a experiência do humanismo cí� vico, ponto que o aproxima mais uma vez de MacIntyre. O livro de Taylor é uma fundamentação exaustiva de um pensa� mento pós-secular, feito de um ponto de vista católico, não protestan� te e não weberiano. O protestantismo representa um afastamento da origem que Taylor quer recuperar, um passo do grande “desvio” mo� derno e ocidental, e a sociologia de tipo weberiana – em especial a sua versão da secularização – é a manifestação mais clara de uma teoria unthought, ou seja, uma teoria na qual a imaginação teorética é deter� minada por um determinado esquema de crenças e valores de um in� vestigador subsumido ao immanent frame. Surpreendentemente, o apoio a este tipo de vertente reflexiva católica vem de um marxista, Terry Eagleton, que, por várias razões, celebra a afinidade entre a teo� logia fundante do Cristianismo e as aspirações de Marx e de um socia� lismo mais aberto. Na verdade, a preocupação de Eagleton é a de con� trabalançar os efeitos do ceticismo pós-modernista, encontrando nos aspectos revolucionários originais do cristianismo e do marxismo um meio de reconstruir uma ética transformadora. Razão e religião: jogos...
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Em O debate sobre Deus Eagleton investe contra o exército dos Novos Ateus, representados por Richard Dawkins e Christopher Hitchens. O curto prefácio com que inicia seu livro já é absolutamen� te revelador. É tão verdade que a religião tem provocado um terrível sofrimento à humanidade – afirmação com a qual ele concorda – quanto a redução das escrituras judaicas e cristãs a uma caricatura, de forma especial o Novo Testamento. Contra esta indolência intelec� tual, Eagleton não convida ninguém a tornar-se um crente ou a co� nhecer melhor um oponente, mas a descobrir, no cristianismo, os: (...) insights valiosos quanto à emancipação humana, numa época em que a esquerda política carece seriamente de boas ideias... as escrituras judaicas e cristãs têm muito a dizer sobre algumas questões vitais – morte, sofrimento, amor, au� todespojamento e congêneres – a respeito das quais a esquer� da, em boa parte do tempo, tem se mantido em silêncio. Está na hora de por fim a esta timidez politicamente incapacitante. Em outro livro, O problema dos desconhecidos. Um estudo da ética, Eagleton retoma e desenvolve a mesma inspiração. Escolhe, para reunir e distinguir as grandes famílias morais do Ocidente, a trinda� de lacaniana do Imaginário, do Simbólico e do Real. Cada uma des� tas dimensões produziria um tipo de ética ou moral: a ética da bene� volência, como em Adam Smith, a moral hiper-racional ao estilo kantiano, e a ética do Real, representada por Levinas, Derrida, Badiou e Zizek. Eagleton assinala os limites de cada uma destas ver� tentes, reclamando a necessidade de um retorno à tradição judaico� -cristã, antes de sua institucionalização em Igreja, e ao marxismo de antes do stalinismo, formas de traição do significado político e liber� tário que ambos abrigavam em sua origem. Não há aqui como discutir detalhadamente o que Eagleton nos oferece, mas vale ressaltar o que ele julga ser aquilo que associa as vertentes originais do cristianismo e do marxismo, e que as torna superiores às outras éticas fundadas no imaginário, no simbólico e no real: A fé cristã, como a entendo, não é primariamente uma ques� tão de avalizar o postulado da existência de um Ser Supre� mo, mas o tipo de compromisso manifestado por um ser hu� mano no final de seus limites, de seus tropeços na escuridão, na dor e na confusão, que mesmo assim permanece fiel à promessa de um amor transformador. MacIntyre e Taylor assinariam embaixo, com reservas em relação à crença em um Ser Supremo. De toda forma, é pelo aristotelismo que 138
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também Eagleton recupera uma ideia de ética destinada a esclarecer o que é o bem para os homens, insistindo no tema do ágape cristão como o fundamento desta ética do amor transformador. A recuperação desta vertente aristotélica permite uma provocação final. O fenômeno religioso mais evidente hoje no Brasil é o aparecimento e a dissemina� ção do pentecostalismo entre os setores mais pobres e numerosos da sociedade brasileira, resultado de dois processos históricos concomi� tantes. O primeiro seria precisamente a demonização, pelas nossas elites modernizantes e pela própria cúpula do catolicismo durante os séculos 19 e 20, da religiosidade popular dos nossos três primeiros séculos de história. Na verdade, foi a linguagem religiosa destes sécu� los que se ofereceu, com seu barroquismo aristotélico, como território para a conformação de uma sociedade que, apesar do latifúndio, da escravidão e da violência, detinha um grande poder de incorporação e uma dinâmica plural e potencialmente democrática. A este desprezo por uma tradição religiosa se somou o caráter demofóbico de nosso processo de modernização, que não previa a nossa modernidade como expressão de uma construção ética democrática ou de um possível overlapping consensus interpelador das religiões ou de configurações éticas presentes na vida concreta do povo brasileiro. Se a vertente reflexiva que apresentei pode ter uma consequência, é a de nos livrar deste aparente imperativo de condenação sociológica da religiosidade original da população brasileira ou das formas atuais de experiência religiosa e éticas entre nós. E com isso abrir as portas para uma compreensão mais generosa dos sonhos que habitaram e habitam este imaginário. O pentecostalismo hoje presente no Brasil não é herdeiro da grande tradição incorporadora do catolicismo, a não ser que ele seja convencido de que pode ser. Hoje, ele pouco tem a ver com a constituição de uma sociedade capaz de compartilhar, na sua pluralidade, uma ética transformadora. A mesma coisa pode ser dita a respeito do catolicismo brasileiro, atribulado por uma clara impotên� cia teórica e prática. Sem dúvida, não cabe à academia o objetivo de fortalecer uma ou outra opção religiosa. Mas certamente, se deseja� mos ser algo mais do que um módulo autopoiético de um processo simplesmente racionalizador, no sentido weberiano, não podemos mais encarar as religiões apenas como objetos de estudo, sobre elas derramando uma concepção unthought a respeito da modernidade. Se tanto a atividade acadêmica quanto a experiência religiosa constituem jogos de linguagem, não há dúvida que esta consciência de nossa his� toricidade deve se desdobrar na persuasão de que temos – os cientis� tas, os crentes e não crentes – um desafio em comum: a construção e a consolidação de uma democracia. Sobre isto temos coisas a dizer às religiões, do mesmo modo que temos coisas a ouvir de todas elas. Razão e religião: jogos...
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Referências BELLAH, Robert et al. Habits of the heart: individualism and commitment in American life. Berkeley: University of California Press, 1996. EAGLETON, Terry. O problema dos desconhecidos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. ______. O debate sobre Deus. São Paulo: Nova Fronteira, 2010. MACINTYRE, Alasdair. Depois da virtude. Tradução de Jussara Simões. Bauru, SP: Edusc, 2001. TAYLOR, Charles. A secular age. Cambridge: Massachussets / London: The Belknap Press of Harvard University Press, 2007.
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Rubem Barboza Filho
VII. Mundo
Autores Sergio Fausto
Membro do Grupo de Análise da Conjuntura Internacional da Universidade de São Paulo e diretor executivo do Instituto Fernando Henrique Cardoso, de São Paulo.
Marco Antonio Tavares Coelho
Advogado, jornalista, ex-deputado federal, ex-editor executivo da revista do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, além de autor de vários livros, como Herança de um sonho, em que relata suas atividades de militante e dirigente comunista.
Democracia na América do Sul: perguntas incômodas Sergio Fausto
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or que a destituição do presidente Fernando Lugo mereceu res� posta tão contundente dos países da região, quando agressões, se não à lei, ao menos ao espírito da convivência democrática, foram recebidas com silêncio obsequioso por parte dos que hoje se insurgem contra “o golpe das elites paraguaias”? Seria o impeachment de Lugo mais grave do que o desrespeito de Hugo Chávez aos resultados do referendo de dezembro de 2007? Es� queceram-se de que, no ano seguinte, o presidente venezuelano pro� moveu, por decreto, parte das mudanças rejeitadas pela maioria do eleitorado do país naquela que Chávez considerou “una victoria de mierda” das oposições ao seu governo? Seria mais grave o rito sumário que marcou a destituição de Lugo do que a aprovação da nova Constituição da Bolívia, em novembro de 2007, num quartel militar cercado por tropas e militantes fiéis a Evo Morales, sem a presença dos parlamentares da oposição? Seria o ato do Congresso paraguaio mais grave do que a decisão tomada por Ra� fael Correa, no início de seu mandato, permitindo à futura Assem� bleia Constituinte, onde estava seguro de ter a maioria, dissolver o Parlamento recém-eleito, onde se encontrava em minoria? Por que tanta presteza em condenar o Paraguai, quando há anos se assiste, sem protesto algum, à sistemática deformação das insti� tuições democráticas na Venezuela sob o rolo compressor de Chávez, processo replicado em maior ou menor medida na Bolívia e no Equa� dor? O que representa maior ameaça à democracia na região, um episódio confinado às fronteiras nacionais do mais pobre país da 143
América do Sul ou a vocação expansiva da “revolução bolivariana”, cujo epicentro é um país com uma das maiores reservas de petróleo do mundo e um líder com recursos e disposição para pisotear o prin� cípio da não intervenção nos assuntos domésticos de outros países? Para justificar tão surpreendente zelo com a pureza do espírito democrático se elaborou às pressas a teoria de que a destituição de Lugo representaria o ensaio local de uma nova modalidade encontra� da pelas elites da região para se livrar de governos nacional-popula� res. A ideia de que o “neogolpismo” é uma espécie de hidra, com vá� rias cabeças, serve aos interesses maiores de Chávez, Correa e Evo. Presta-se a legitimar o acosso a que submetem os seus adversários internos, tratados como inimigos do povo e lacaios da elite, quando não fantoches do “império” (os Estados Unidos). Nada como inflar ou fabricar ameaças para justificar arbitrariedades. Não foi para se de� fender dos supostos planos de invasão americana que Chávez armou uma milícia popular sob seu comando direto, com a distribuição de milhares de fuzis, sem que tal aberração merecesse sequer um repa� ro dos zelosos democratas de hoje? Também na Argentina se vê a captura do Estado por um grupo político que atribui a si próprio um papel redentor do povo e da na� ção, confrontando adversários como quem combate inimigos. Co� mum a todos esses líderes redentores é a utilização do discurso ma� niqueísta povo versus elite, o que não os impede de ser ou pretender ser, além de heróis do povo, chefes de uma nova elite que se vai er� guendo politicamente e enriquecendo financeiramente sob as asas de seus governos. Há mais do que afinidades políticas na aliança entre esses quatro líderes políticos. Existe entre eles uma ampla zona cinzenta em que se misturam negócios, assistência governamental e financiamento de campanha. Morales financiou o programa “Bolívia Cambia, Evo Cumple” (e sabe-se lá o que mais) com recursos transferidos por Chávez sobre os quais nem este nem aquele prestam contas a nin� guém. Em meio à primeira campanha de Cristina Kirchner para a presidência, uma mala com US$ 800 mil em dinheiro vivo foi encon� trada em mãos de um empresário próximo ao governo chavista, num avião fretado em que viajavam funcionários de alto escalão da petro� leira venezuelana, PDVSA, e da estatal argentina de energia, Enarsa. Cinco anos e três juízes depois, a Justiça argentina ainda não escla� receu o caso. Que Chávez, Evo, Correia e Cristina se lancem à condenação do Paraguai não é difícil de entender. Mais complicado é compreender a 144
Sergio Fausto
posição do Brasil. Marcamos diferença importante ao não embarcar na canoa das sanções econômicas. Mas patrocinamos a manobra oportunista que permitiu incorporar a Venezuela ao Mercosul na es� teira da suspensão do Paraguai. O Brasil perdeu uma oportunidade para marcar, sem alarde, fi� sionomia própria em matéria de compromisso com a democracia na região. Bastava não aceitar o ingresso da Venezuela nessas circuns� tâncias. De pouco vale ter mais da metade do PIB da região se na hora de exercer liderança política nos apequenamos. Presidentes deixam sua marca na política externa em horas as� sim. Dilma poderia ter-se diferenciado de seu antecessor, sempre solícito no apoio político aos companheiros da vizinhança. Mas isso suscitaria comparações com Lula e irritaria o PT. A questão não é só de política externa. Vale ler o artigo assinado pelo secretário-geral do partido, Elói Pietá, publicado no site oficial da legenda logo após o impeachment de Lugo. A chamada do artigo é eloquente: “Mesmo com toda a sua força e grandeza, o Brasil também sofreu as tentações de um golpe do Congresso Nacional contra o pre� sidente Lula”. Sobre o “neogolpismo das elites” o secretário-geral ex� plica: “As elites ricas, onde hoje não controlam o Executivo, voltaram a ter no Parlamento Nacional seu principal ponto de sustentação institucional. Além disso, através da poderosa mídia privada, seu principal guia ideológico e voz junto ao povo, elas continuamente instigam a opinião pública contra os governos populares”. A decisão brasileira de punir o Paraguai para premiar a Venezue� la é tributária dessa visão de mundo. Uma é inseparável da outra.
Democracia na América do Sul: perguntas incômodas
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O imbróglio paraguaio
Marco Antonio Tavares Coelho
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affaire Paraguai nasceu e vicejou no país mais atrasado da América do Sul, num mediterrâneo como seus habitantes modestamente se apresentam. Vejamos a evolução da novela. Primeiramente, aconteceu num país manietado por uma ditadura de décadas – a de Stroessner e seu partido, o Colorado. Nas relações in� ternacionais, depois de um infausto conflito com a Bolívia, na guerra do Chaco, tornou-se fiel amigo da Argentina, devido aos migrantes portenhos que subiam o caudaloso rio. Mais recentemente, ligou-se ao Brasil, que o inundou com centenas de agricultores e um acordo em torno de Itaipu, numa binacional que nos fornece energia e pro� veitos para o sócio. Com a derrota dos seguidores de Stroessner, o ex-bispo católico Fernando Lugo assumiu o palácio presidencial sem aglutinar apoio político consistente. Sacudido pela controvérsia ideológica e política que balança todo o globo, o governo de Assunção resolveu enfrentar desafios internos, inclusive a estrutura fundiária com poucos proprie� tários dominando terras férteis no interfluxo dos formadores do Prata. Deu cobertura à luta dos “sem terra”, seguindo o modelo do MST brasileiro. Porém, no Paraguai essa questão possui uma característi� ca particular, porque uma boa parcela dos “latifundiários” são pro� dutores brasileiros que conseguiram aquelas terras de forma legal ou por “grilo” (uma questão em aberto). Com isso, quando foi desmoronando o apoio a Lugo pelas forças tradicionais paraguaias (colorados e “blancos”), sobreveio o pedido de impeachment do presidente. O resultado foi uma derrota acacha� pante dele na Câmara dos Deputados e no Senado, endossada por um pronunciamento da Corte Constitucional. Assim, a deposição de Lugo – mesmo sendo feita em apenas 36 horas e com um tempo ínfi� mo para sua defesa – não violou a legislação do país. Como o povo paraguaio reagiu diante dessa crise? O país não foi sacudido por movimentos populares de protesto e não houve nenhu� ma insubordinação dos militares. A resposta de Lugo, inicialmente, 146
foi uma aceitação tácita de sua derrocada. E dele não se ouviu de� núncia veemente desse impeachment e nenhum chamamento à resis� tência de seus patrícios. No entanto, surgiu no exterior um movimento de apoio ao ex� -bispo, promovido por forças na Venezuela, na Argentina, no Brasil e em outros países sul-americanos, estimulando um repúdio ao cha� mado “golpe de Estado”, que acarretaria uma violação do regime de� mocrático hoje defendido por acordos assinados pelos países da América do Sul. Para tanto, apresenta-se como argumento a rapidez em que foi votado na Câmara dos Deputados e no Senado o pedido de impeachment, o que teria impossibilitado a defesa de Lugo. A improcedência de que teria havido no Paraguai um golpe de Esta� do é ressaltada por um dos mais conceituados juristas da Universidade de São Paulo – o professor Celso Lafer, ex-ministro das Relações Exte� riores do Brasil – ao afirmar que a medida aprovada pelo Congresso do país vizinho foi adotada seguindo os preceitos de sua Constituição. Os que afirmam ter havido um golpe de Estado apresentam como justificativa a inconstitucionalidade da medida contra Lugo. Assim, na verdade, essa análise do affaire procura encobrir divergências que se aguçaram nos países situados na parte meridional do Novo Mun� do e por suas lideranças maiores que, em razão de sua concepção e postura populistas e por suas atitudes pouco democráticas, não se� riam as mais indicadas para levantar sua voz de protesto e condenar o acontecido. Essa pressão internacional tem raízes curiosas. Para Chávez, seu apoio enfático ao ex-bispo derivou do fato de pretender eliminar a resistência do Paraguai à participação da Venezuela no Mercosul. A posição da Argentina deriva de contradições internas do embate direto de sua presidente com a oposição em seu país. No Brasil, de saída houve cautela, porém, depois, a presidente Dilma Rousseff resolveu encampar a tese de que no país vizinho aconteceu um golpe de Estado. Com isso, para ela ali teria ocorrido a violação do princípio que assegura o regime democrático nos países da América do Sul. Tudo isso porque o lulo-petismo estimula posições internacio� nais, que, usando a bandeira dos interesses populares e da luta con� tra o imperialismo, articula a superação dos regimes democráticos, com o total desrespeito aos direitos civis e políticos, notadamente a liberdade de imprensa.
O imbróglio paraguaio
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Ademais, é patente o esforço do ex-presidente Lula em ajudar Chávez a sair de suas dificuldades resultantes de graves erros na economia venezuelana. Não foi Lula o patrono de um acordo da Petro� bras com o governo de Caracas a fim de participar na construção de uma refinaria em Pernambuco, acordo que tem dado sérios prejuízos à estatal brasileira e ao Brasil em razão do não cumprimento dos compromissos da Venezuela? Para espanto geral, a controvérsia com o Paraguai evoluiu consi� deravelmente chegando-se ao ponto de medidas serem tomadas pe� las autoridades do Brasil, da Argentina e do Uruguai contra o gover� no paraguaio, sem ouvir suas razões, suspendendo sua participação nas reuniões e decisões do Mercosul. E estabelecendo que tais medi� das punitivas somente serão suspensas depois das eleições presi� denciais no país vizinho, previstas para abril de 2013. Uma das razões dessa interferência nas questões internas do Pa� raguai foi comprovada pelo imediato estabelecimento da participação da Venezuela no Mercosul, sem a concordância de um dos membros afastados do bloco, no caso próprio Paraguai. Afinal, até agora o saldo é lamentável para o governo de Brasília. Do ponto de vista diplomático, houve uma violação de tradicionais princípios proclamados pelo Itamaraty. Com toda razão, afirmou Ál� varo Dias, historiador e líder do PSDB no Senado, que o governo brasileiro fez coro ao equívoco de impor sanções à nação vizinha, numa postura que “atenta contra nossa Lei Maior, que preceitua que o Brasil rege suas relações internacionais pelos princípios, entre ou� tros, da não intervenção e da autodeterminação dos povos” (Folha de S. Paulo, 30/6/12). Como a presidente Dilma Rousseff e o Itamaraty vão sair desse imbróglio? No momento em que se esforçam para o Brasil ser admi� tido como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, perderam uma boa oportunidade para nosso país se prestigiar na política internacional e perderam preciosos pontos por terem interfe� rido claramente em assuntos domésticos de outro país. Ademais, agravou uma profunda crise no Mercosul pois o Para� guai dificilmente se curvará diante de intervenções de governos es� trangeiros em seus problemas internos nacionais. E Dilma assumiu um relacionamento difícil com o povo daquele país, que não esquece os sofrimentos na guerra contra a Tríplice Aliança, enfrentando o Brasil, a Argentina e o Uruguai. A maioria dos paraguaios recorda que naquele lamentável conflito houve a perda de 75% da sua popu� lação masculina e 40% de seu território. 148
Marco Antonio Tavares Coelho
VIII. Vida Cultural
Autor Vicente de Pércia
Crítico de arte, membro da Associação Internacional de Críticos de Arte e da Bow Art International. Presidente do CEAQ-Brasil (Centre d’Étude sur l’Actuel et le Quotidien). Como escritor é Prêmio Master de Literatura, ensaista, poeta e contista. Nas artes plásticas, assinou colunas em vários jornais e revistas no Brasil e exterior. Artista e curador, lecionou Plástica I na Universidade Federal Fluminense. Júri de Salões, Bienais e Mostras. Formado em Letras, e Direito pela Universidade Federal Fluminense, seus últimos livros são Vertentes do Amor e Morte sobre a obra Tristão e Isolda, de Richard Wagner, e antologias envolvendo as ciências especulativas.
Maria Aparecida Rodrigues Fontes Doutora em Literatura Comparada.
Rafael Miranda Rodrigues
Tradutor e graduado em Comunicação Social.
O efeito globalizador nos horizontes da arte Vicente de Pércia
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m todo fim de ano, é de praxe os meios de comunicação fazerem reprises dos acontecimentos. Publicar os fatos que se repetiram por mais tempo nas manchetes, torna-se habitual àqueles que prendem a opinião pública. Os argumentos utilizados das mensagens não se fixam em aspectos formativos ou em notícias que tendem a implantar o hábito de um senso crítico. Tal fato ocorre porque diante de um receptor acostumado a engolir o que lhe é imposto, ele aceita a informação com passividade e atende ao imediatismo do consumo. O elemento emotivo e “sensacional” torna-se o preferido, sempre reali� zado através de discursos repetitivos, praticamente inclusos em todos os meios de comunicação. Em verdade, esta postura adotada só vinga porque a generaliza� ção da imagem e da informação não foge ao imediatismo e adere ao acúmulo de notícias que devem ser mostradas, sendo a grande maio� ria delas irrelevante. De fato, não propicia atitudes que deveriam criar métodos para educar e servir como estratégia motivadora, in� dispensável para despertar a reflexão questionadora. Estes discursos passam, então, a ser, com frequência, pertinentes com todos os seus atributos de linguagem reiteradas. Consequentemente, nisso já se denuncia o efeito globalizador repleto de “normas” que transformam o texto em um produto de ganho fácil, supérfluo, utilizado, normal� mente por um longo período pelos tentáculos da mídia para unifor� mizar consciências. Tem-se, desde aí, uma propaganda direcionada com intenções pragmáticas, objetivando o consumo e o “convenci� mento da coletividade”. 151
A axiologia de “valores” volta-se apenas para atrair o espectador e este posicionamento é adotado sem restrições, não visa a liberar novas inserções de aprendizagem, pois criar uma notícia, mesmo consistente, é um risco. Vê-se, também, que isso ocorre em outros segmentos da cultura. No caso específico da Arte, nota-se esta mes� ma “unanimidade” , impositiva e massificadora, que impede que a expressão artística surja fora de uma sistematização dominadora. Portanto, que sua existência deva passar pelo cotidiano, engajada aos fatos do mundo e traga um somatório de informações capazes de identificar pretensas rupturas ou o olhar seja voltado para um indi� vidual consistente. Em outros momentos do julgamento crítico os parâmetros estavam voltados para certos elementos formais tais como a própria natureza e o conceito tradicional do belo. Portanto, é necessário observar o mundo, de forma diferente atra� vés de opiniões que ressaltem particularidades, a fim de que sejam visualizadas outras janelas através das quais os assuntos insiram sobre a sociedade na sua estrutura orgânica e sensível, buscando-se o diálogo e a reflexão sem massificações sociais. Este processo de globalização representa a castração brusca em relação ao desenvolvimento desejado – intuição e trajetória cultiva� das são postas de lado. Apesar das crises nos relacionamentos do Homem com o Homem e com a organicidade do mundo, desejamos um futuro melhor. Temos acesso somente às poucas formas de co� municação que ressaltem um olhar diferenciado que emirjam advin� do de tentativas com erros e acertos. Contudo, o oposto deve ser observado, também como alertam as notícias herméticas e pretensio� sas que colocam o leitor contra a parede ao conferirem à obra de arte o status quo de também consentir em entrar “no jogo” para não se sentir excluída. Estes argumentos comprometidos, buscam criar mitos, persona� lidades e uma qualificação quantitativa profissional que afasta a pos� sibilidade de se fazer uma investigação coerente. Com isto, o receptor sente-se aprisionado e, para não ser minimizado, consente e aceita a informação, mesmo que ele não a compreenda. Ativar um novo expe� rimento que mexa com valores e que componha um corpo em um processo de criação e torna-se um instrumento de sedução para aproximar o público. Afinal, parece-me ser este o significado verda� deiro da cultura. A estratégia discursiva globalizante produz uma falsa verdade, visto que a relação entre realidade e linguagem não condiz com a essência da Arte, tão relevante como a própria vida. Calcar só sobre 152
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um aspecto com funções conotativas estabelece uma dicotomia e de� nuncia os interesses que estão por detrás da dinâmica deles. “A Arte nasce do novo” constitui um chavão acadêmico, pois este “novo” é repetitivo e não dá chance para que o indivíduo use a sua sedução para expandir livremente sua sensibilidade em múltiplos sentidos. Segundo penso, existe um magicísmo, por intermédio do qual os impulsos do artista possam exteriorizar suas peculiares diferenças, E, inclusive traduzir o que o Homem pensa ser uma obra estética, assim como a questão do Belo entre vários tópicos em torno da Arte diante das coerções e ditames planetários. Pontuações sobre a ima� gem artística não podem ser decididas por meio de “acordos” prag� máticos. Sem dúvida, o que importa é que a ideia do valor pessoal, intrínseco, se presentifique, em liberdade, mediante os mais variados segmentos da natureza humana. A busca de identidades pós-modernas Contradições existem e tendem a fomentar o diálogo que permita a existência de uma nova identidade, ao definir novas posturas, con� ceitos e padrões até então desconhecidos. A ideia de “universalidade” é um dos tópicos que movem a condição necessária para definir as tendências pós-modernas. Não se trata apenas de sugerir temas, mas mostrar um vasto panorama acessando possibilidades que tra� gam respostas suficientes para desenvolver um estudo, afastando-se de improvisações. A sociedade possui uma pluralidade de pontos de vista que por si abrem pensamentos distintos e forma núcleos co� muns ou diferenciados. Por mais que nos queiramos desvencilhar da ética e da moral, fi� camos presos a crenças e costumes que precisam ser revistos, com� preendidos, isso para que tenhamos a certeza de que, no sentido sociológico, movem-se segmentos que contribuíram para legitimar a identidade, mesmo que esta vá de encontro aos valores obtidos ao lon� go dos anos. Valores estes que agora se confrontam com individuali� dades dispostas a mostrar um universo de particularidades, de pen� samentos e atitudes semelhantes ou diversificadas. Portanto, que não sejam posições unificadoras, universalizantes, segundo a dinâ� mica planetária. Ressalte-se, também, por outro lado, que o fato político não pode ser esquecido, que o socialismo buscou formar novas práticas cultu� rais e que elas tiveram variados suportes. No campo das Artes Visuais tenderam para criar possibilidade de novas construções ou deram O efeito globalizador nos horizontes da arte
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continuidade a realizações abstratas ou concretas que denunciam a fragilidade da tarefa artística e colocam o Homem com o direito de transitar pelas particularidades existentes. As constantes afirmações de que o mundo está se tornando global podem ser constatadas nas semelhanças existentes da produção ar� tística que reúne pouca qualificação e formulações estéticas visuais que não absorvem ou denunciam um objetivo maior e mais a ele pe� culiar. Com isto, cria-se um impasse e certa incoerência, pois vão de encontro à decisão de ter um descompromisso e não demonstrar a inconformidade com as tendências manietadoras do presente. Diante destes aspectos complexos e intermináveis, não sabemos se a individualidade resistiu a uma desconstrução ou à desterritorili� zação “libertária”. O conservadorismo tende a ser hierárquico. Ignora que cada um sofre influências formativas ao longo da vida, já que as diferenças só aparecem quando há o surgimento de um pensamento diferenciado, instrumento de uma liderança nata, Isso porque as inatas podem ser taxadas de ímpeto ou de improvisação. A questão política que assinala a liderança está presente em toda a nossa exis� tência. Mesmo quando supomos omitir uma opinião ou nos ausenta� mos, estamos decidindo em favor de alguma causa. Assim, uma das “saídas” é a conciliação por meio das nossas crenças, desejos, frustrações. O pós-modernismo mostra-se contro� verso, quando se percebe que o desejo “liberal” não é fácil de ser co� locado em prática. Ele está aprisionado às desigualdades sociais existentes no mundo. Em geral, dizer-se que todas as pessoas pos� suem as mesmas chances que as outras reforça a presença de um conservadorismo que impede o surgimento de uma profusão produ� tiva do florescimento da individualidade. Tribos urbanas – variantes – aldeias As grandes metrópoles viraram um campo de batalha. Sua com� plexidade aponta para um cenário de constantes mudanças. Sem soluções conclusivas, não há, por mais que se queira, tomar decisões que durem por um período considerável para tornar a vida saudável e segura. Paga-se o alto tributo por um progresso que acena para novas possibilidades e esperanças. Tudo isso, a fim de aliviar o caos existente, a insatisfação e a certeza de que outros desafios virão. Os custos são altos e diferenciados. Eles se assemelham, com maior intensidade, ao que vimos em relação aos guetos surgidos nos tem� pos modernos. 154
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Outras regiões menos populosas, também são afetadas pela al� deia global, forçadas a arcar com as decisões e os tributos impostos. Os sinais são fáceis de serem vistos, dentre eles a inabilidade de lidar com a natureza e julgar que o Homem seja o grande proprietário do seu planeta, sem notar os limites para refletir. Assim, ele segue, sem nada perceber e continua, apesar de estas decisões constituírem um risco suicida. O ritual midiático referenda várias conquistas, é certo, esquecendo-se, contudo, de que o seu amplo território do planeta agoniza, varrido por decisões de uma propriedade remarcada e de supostas identidades diferentes. cujos limites são imprevisíveis. A ordem urbana concentra-se ou surge após a desordem. Toda� via, quando já existem sinais de um descontrole em relação ao Esta� do ou à iniciativa privada. O indivíduo não sofre, ou melhor, não percebe a coerção que o levaria a educar-se fora dos padrões globali� zadores. Não se dá conta de que sua individualidade está sendo im� placavelmente posta de lado, para que se cumpram normas agressivas eniveladoras, para que o poder público ponha em prática sua nova experiência de domínio coletivo. As fronteiras não estão mais abertas a individualidades. Apenas, elas fazem parte de uma simulação que visa a conquistar territórios. Porém, para isto regras foram e serão ainda mais criadas, Nem que seja necessário formular novas expectativas com anúncios fulguran� tes que quebrem as éticas sociais condizentes e, que de maneira sen� sata, promovam, como nos classificados tecnológicos em terceira dimensão, o novo aporte que faz parte do jogo. Como lidar com a sociedade e principalmente transpor a cerca das diferentes culturas existentes? Como possibilitar a formação de times que, a qualquer custo, sejam vencedores ou pelo menos fiquem entre os primeiros? Como romper tais padrões, implantando estraté� gias para obter a estabilidade do poder e os objetivos, mais altos e diferenciados, serem alcançados? No que se refere ao território peculiar à Arte, o comportamento A, B, C, D faz parte de um desafio. Urge ser vigiado para que o “inte� resse” de uma comunidade,seja mantido no seu núcleo gerador. A visão de neutralidade, que seria a ideal para a criação artística, não atende aos comportamentos desejados e ao “sucesso”, pois desa� celeram o modelo teórico criado que, a todo custo, deveria ser colo� cado em prática. A questão dos padrões vai de encontro à intenção de implantar um comportamento de consentimento coletivo, sem que a mídia cer� ceadora utilize instrumentos de submissão. Em verdade, eles são O efeito globalizador nos horizontes da arte
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capazes de neutralizar todas as possibilidades de questionamentos e com isto levam à ruptura de todo um sistema. Estas são afirmações colocadas ao pé do ouvido num processo que objetiva refrear seg� mentos, alternativas e valores existentes, de certa forma, possíveis sem serem padronizados. E, por conseguinte, evitar o embate que fatalmente acontecerá mediante qualquer intuito de fragmentação. O instante e o consumo não podem ser descartados para que se possa fazer, no mínimo, uma análise da produção atual da Arte. Cria-se uma expectativa em relação ao consumo e indaga-se sobre o ingresso de uma produção incontrolada que não resista à banaliza� ção do “mercado”. A relação com o consumo é uma das explicações para denunciar a precariedade relativa ao estudo da Arte nos tempos atuais. Como, então, resistir a uma praticidade que atinja a todos os setores da informação e instaure uma temporalidade transitória em que o presente não se atualize e o futuro não implique em incerteza? Eis, pois, um dos grandes desafios contemporâneos. De fato, os dispositivos da mídia não oferecem a possibilidade para o salto qua� litativo que diferencie, em cada passo, o criador em sua busca do Belo. Em tal conjuntura, devem-se, pois, evitar aqueles dogmas uni� ficadores que transitam pelos estudos e análises culturais, com ter� mos pomposos e vazios, a exemplo do incorreto sentido de “universa� lismo”, agora tão usado neste pletórico contexto da globalização.
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Poetisas cariocas do século XXI Maria Aparecida Rodrigues Fontes
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estudo da produção poética de autoria feminina dos anos 1990 e início do novo milênio envolve a reconstrução das con� dições sociais e histórico-políticas das quais emergem esses sujeitos plurais comprometidos com a “elaboração das representa� ções culturais” de nossa época. Mas envolve, sobretudo, uma revisão do aparato crítico, um molde vazado, que circunscreva, ainda que de modo parcial, essa multiplicidade, essas vozes dispersas, afastando a criação de novos “cânones literários”. Desse molde vazado, começa a surgir uma paisagem cujos planos e cores se multiplicavam, evi� denciando uma pluralidade de temas, formas e conteúdos. Observo que essa heterogeneidade, esse hibridismo da dicção poética femi� nina, é, ela mesma, a caligrafia literária dos anos 1990 e início do milênio no Rio de Janeiro. Dos inúmeros livros de poesia que li desse período, observei que a dicção poética dessas mulheres se aproxima do discurso da prosa, especificamente da fala. Laura Esteves, Helena Ortiz, Glenda Maier, Cristina Ferreira-Pinto, Marcia Leite, Ana Cruz, Flora Furtado e Sil� vana Salles são autoras que exploraram, de modo diverso, esse re� curso técnico. É da oralização da escrita poética e das suas represen� tações como figuras, que compõem o mosaico da produção de autoria feminina desse período, que nasce a figura da Torre de Babel como metáfora das várias vozes e da oralidade que imprime aos sujeitos dispersos a sua identidade “híbrida”. Babel é a figura que resume a criação de uma linguagem baseada na variedade da fala por meio da qual essas poetisas constroem a sua própria história, sua identidade e a sua caligrafia poética. Um dos eixos de análise utilizados para definir a oralização da produção poética dessas autoras partiu da diferença que se estabe� lece entre “língua” e “fala”. O conceito de língua é bastante amplo e engloba todas as manifestações da fala e suas variações que podem ser geográficas, sociais, profissionais, situacionais. O que é específi� co da língua falada é o fato de ela manter uma profunda vinculação com as situações em que é usada. A poesia dessas mulheres mantém 157
esse vínculo com as situações que descrevem, com o aqui e agora. A poesia retoma a sua função declamatória. As performances poéti� cas tão propaladas na década de 1990 refletem a tendência de sub� trair a distância entre voz e escrita. Isto porque a comunicação oral se desenvolve em situações em que o “contato” entre os interlocuto� res é direto: na maioria dos casos eles estão em presença um do ou� tro e elaboram um discurso marcados por fatos da língua falada. Na verdade, o discurso poético dessas autoras está, sobretudo, comprometido com uma militância poética: uma poesia feita para ser recitada, lida, que pressupõe a interação direta com o público, uma poesia para ser falada e cantada, uma poesia de viés político, aquela que está nas ruas, nos bares, que mistura os vários médias, o teatro, a música, a mímica a máscara. Uma poesia do cotidiano, dos frag� mentos, da memória que dialoga com o presente através de flashs. Uma poesia que encarna a fala de diversos atores sociais: o menino de rua, o policial, a prostituta, a dona de casa, a avó. Para dar voz a essa diversidade foi necessário romper com a escrita, com a lingua� gem formal, com a sintaxe e criar uma outra linguagem poética ba� seada na discursividade, na hibridação dos idiomas, na velocidade da fala compatível com o ritmo urbano, com a nossa época. Tornou� -se necessário, então, reproduzir a fala. Para essas poetisas a consciência de uma pluralidade de tempos e espaços é inevitável diante das experiências do cotidiano na moder� nidade tardia. Isso cria uma heterogeneidade de temas e registros poéticos. Portanto, entre símbolos e alegorias, a produção poética dessas escritoras não possui uma unicidade. Convivem, no interior de um mesmo período, os tempos diversos, os estilos e a multiplici� dade de ritmos e temas, afinal, característicos da história literária brasileira. Trata-se de uma espécie de “descompasso constitutivo” que marcaria a poesia desde o Romantismo. A qualidade híbrida que define a “construção” poética, sobretudo nos anos 1990 e início do novo milênio, demonstra a convivência de sistemas culturais distin� tos em meio às tensões e discordâncias entre movimentos literários diversos que surgiram nesse período. A heterogeneidade e a plurali� dade vocálica são em si a sua caligrafia, mas também o seu leitmotiv, pois se tornam as bases de uma atopia, constitutiva de um conjun� to formado por dois ou três sistemas literários diferentes, segundo regiões, linguagens e outros, correspondentes ao capital cultural acumulado. É por meio desse confronto de realidades distintas, das atopias vocálicas, que se podem compreender as relações entre a forma literária e o processo social, e estabelecer o momento histórico da enunciação poética. 158
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O engenho de Helena Ortiz, por exemplo, realiza a construção gradativa da cidade, o seu cotidiano constituído de vícios, futilida� des, estranhezas, extraídos das rotinas do trabalhador (construtor) “transcendente/inútil”. Trata-se da afirmação de uma unidade trans� cendente, mas inútil, e de uma multiplicidade de vozes que parecem confundir-se como em Babel, porém estão em par. Uma duplicidade de registro que mantém uma certa instabilidade entre descrição e re� lato, um tom expositivo e um andamento narrativo na composição do poema. Misturam-se as funções poética e referencial como no poema “Motim”, do livro Em par (2001). Helena, preferindo a concisão das formas, as metonímias, a si� multaneidade temporal e mantendo, em geral, o verbo no presente, evidencia a heterogeneidade de segmentação dentro de cada comuni� dade. Trata-se de uma poética “vista de baixo”, uma espécie de “mi� cro-história”, não linear, de vozes variadas e opostas, que misturam as suas lembranças, valores morais e religiosos ao espaço culturais descontínuos das grandes metrópoles. Nos poemas de Helena, os pontos de vista são sempre descentrados, dobrados. A poetisa procu� ra ângulos novos, moldes vazados, para extrair do cotidiano, da me� mória, do amor e da morte o sentido inusitado (e efêmero) da vida. Do cotidiano essas mulheres extraem a “palavra-não-poética”, re� curso praticado pelos modernistas como uma afronta ao academicis� mo, especificamente à poesia parnasiana. Assim, as poetisas aproxi� mam o discurso poético do prosaico, diluindo as fronteiras entre verso e prosa, e introduzem os elementos da linguagem falada: o discurso direto, conversações, interjeições, provérbios, onomato� peias, e uma sintaxe característica da fala popular. É curioso obser� var a construção dos versos em Helena Ortiz e Laura Esteves. Ambas as escritoras abolem os excessos da sintaxe, utilizam-se, sobretudo, os substantivos, os verbos no infinitivo e as orações coordenadas, uma das formas de se obter a concisão do poema, a justaposição das imagens, e de se aproximar do discurso oral. Mas o que se quer é a construção perfeita do poema, da escritura que se traduz em corpo e palavra, em carne e osso. Trata-se então de erguer o edifício estético da humanidade a partir da palavra. Por isso refiro-me nesse texto à Torre de Babel. Recordando o mito de Babel, sabemos que a verticalidade domina todo texto. Alguns arquétipos ascensionais estruturam o relato. A sucessão dos fatos que abre o livro do Gênesis evoca uma cosmogonia hierárquica, quando o ho� mem do alto de uma pirâmide domina as criaturas terrenas e de onde mantém uma relação estreita com Deus. A partir daí, formam� -se núcleos metafóricos, campos de imagens, figuras, através das Poetisas cariocas do século XXI
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quais a ideia de verticalidade e ascensão se irradia por todo o texto. É assim que, após a Torre de Babel, surge também a imagem da “es� cada de Jacó”, cuja verticalidade e função mediadora ilustram, de algum modo, o segredo de Babel. Na verdade, é uma metáfora assio� mática, realizada de mito em mito como a “montanha sagrada”, a “pirâmide”, a “Torre”, o “campanário” ou o “voo de Ícaro”. Do simbolismo “espetacular” do olhar, a leitura dos poemas de Helena, como no texto babélico, escorrega para o simbolismo ascen� sional: da luz ao verbo, da afirmação da unidade à multiplicidade, encarnada pelos pelegrinos e construtores da Torre ou pelo poeta que inaugura o fazer poético como quem sobrevoa uma cidade poli� fônica/invisível ainda por ser conquistada, a exemplo o poema “pri� meira migração”. A verticalidade e a mediação são o esquema arquetípico do axis mundi, eixo universal a partir do qual, na intenção dos construtores, se edifica a Torre, enquanto aos olhos de Javé ela se constituía na “paródia demoníaca”. Assim, dentre os livros da bíblia, é Babel que anuncia um dos temas capitais das vicissitudes humanas, isto é, a oposição entre os “sedentários” e os “sem lugar”, entre a fixação e a dispersão. Isso aponta não apenas para um espaço de desdobramen� to, mas também para um tempo cíclico dos impérios e das revolu� ções. Como se observa hoje um tema comum em nossas vidas: emi� gração, desterritorialização, dispersão e fixação, transnacionalização, hibridação e tantos outros ligados à globalização. Habitar essa “cidade polifônica e invisível”, porque nada se fixa, ou construir uma Torre significa, para essas poetisas, edificar a palavra poética através da qual elas podem tocar o céu, comungar com Deus, significa fazer-se um nome. No poema “Limiar absoluto”, de Helena Ortiz, o eu lírico alcança essa “síntese das manhãs”, dizendo o que está para além do nome, o “corpo que enfim retorna/do exílio o sal nas mãos a terra fértil” (2001, p. 51). Corpo, casa, Torre exaltam os con� trastes implícitos na verticalidade de suas linhas, a oposição assim desenhada entre uma transcendência estática e um devir temporal indefinido, senão indeterminado, constitui a tensão entre “querer-ser” e um “querer-fazer”, o que move a história humana. A poesia de Laura Esteves recupera a espessura existencial da vida cotidiana. No seu primeiro livro de poemas, Transgressão, a es� critora demonstra o seu ecletismo e a sua irreverência, através de um tom irônico e rebelde, abordando temas sociais polêmicos. Laura é lírica, erótica, nostálgica, política e social. Em Como água que brota na fonte (2000), ela mesma afirma, ser “transbordamento, torrente e 160
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travessia” – momento em que passado, presente e futuro se tocam: a aldeia dos ancestrais, a fala da avó, as cantigas de roda, o suicídio das mulheres, a infância, a cidade, “a esperança revolucionária”. Nos poemas de Laura Esteves, a memória é o leitmotiv que propi� cia a combinação de elementos tradicionais locais aos urbanos. Veri� fica-se a interpenetração de planos, não apenas espaciais, mas tem� porais: passado e presente ajustam-se num tempo mágico, correspondente a momentos diferentes da sociedade. Os espaços multiplicam-se, tornam-se atópicos, disseminados. Laura constrói, em seu livro Como água que brota na fonte, sua torre de lembranças. A metáfora da tecelã que costura passado ao presente não é sem ra� zão. Trata-se de buscar no passado a própria identidade, um nome, uma estirpe, uma caligrafia coletiva. Em “Tecelãs da vida”, a poetisa atribui às mulheres o papel de artífice da História. A produção poética de autoria feminina aqui examinada também aponta para esse processo de exclusão e testemunha, por um lado, o movimento de dispersão desses sujeitos em busca do próprio nome e de seu espaço; e, por outro, se impõe como uma outra voz. Esta voz desenha uma geografia diferencial, com níveis diversos de existência e zonas concêntricas das quais emerge uma “fala” modulada pelos planos diversos da história. No poema “Uma Luz sobre nós”, de Lau� ra Esteves, os estratos culturais superpostos correspondem a mo� mentos diferentes da sociedade brasileira. O assassinato do índio Galdino é particularmente exemplar não apenas para a compreensão do processo de aculturação, da violência dos encontros culturais e da diferenciação do Brasil, mas porque promove uma reflexão sobre o desdobramento de planos culturais híbridos decorrentes da disper� são humana, da pluralidade e diversidade, e das injustiças sociais, além de ser uma resposta às tensões culturais resultantes da urba� nização e modernização do país. Se a ideia inicial da construção da Torre baseava-se na manuten� ção da unidade do povo e da língua, no momento em que é erguida se concebe a História, faz-se um nome, e multiplicam-se as línguas, a fala, o murmúrio de vozes. A cidade e a Torre deixam de ser um centro de conciliação e comunhão e tornam-se figuras da dispersão, da incomunicabilidade, da perdição e da errância. Assim como em Babel, não há uma unicidade, uma homogeneidade, e nem pode ha� ver, na construção da caligrafia poética dessas mulheres. Ao contrá� rio, torna-se visível a coexistência de vários códigos simbólicos num mesmo grupo e até mesmo num mesmo sujeito, assim como os em� préstimos e transações interculturais. Cada um constrói a própria Torre, tenta tocar o céu, descobre que Deus está pronto para nos Poetisas cariocas do século XXI
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confundir, descobre a Lei, a palavra e a história. Depois, destrói a Torre, desconstrói a Lei, a palavra e a história, e (re)faz-se um nome. Ao aproximar a poesia da fala, Glenda Maier desequilibra o sen� tido do poema em direção à prosa, através de um discurso no qual prevalece a função referencial. Jakobson já havia assinalado que a poesia se concentrava no signo de função poética e emotiva, enquanto a prosa, sendo pragmática, no de função referencial, o que possibilita a abertura para a poesia discursiva, consequentemente para a orali� dade. A negação da função poética e o investimento nas funções re� ferencial, metalinguística e conativa da linguagem revelam também a dissociação entre poesia e discurso do ser, evidenciando que a poesia converte sua função ontológica em uma função social. De fato, a po� esia de Glenda Maier assume em tom coloquial o caráter de denúncia e uma perspectiva política. Assim em Poesia etc. & tal (2002), diz ela: “Que sintam, diariamente, em suas narinas emproadas/ o cheiro nauseabundo das carnes putrefatas/ dos que morreram, sem socor� ro, dentro de públicos.../ hospitais!, diz Glenda em “Poesia maldita” (2002, p. 98). Glenda não rasura apenas os limites entre língua e fala, prosa e poesia, mas também entre sujeito e objeto, realidade e imagem, pú� blico e privado. Glenda aponta para essa nova forma de comunicação através dos meios eletrônicos que fizeram irromper as massas popu� lares na esfera pública e deslocaram o desempenho da cidadania em direção às práticas de consumo. Com isso Glenda registra em seus poemas como as identidades na modernidade tardia são transterrito� riais e multilinguísticas. Da mesma forma que essas poetisas aboliam a distância entre língua e fala, em geral, aboliam também os liames que separam o poeta do seu “eu-lírico”. Desse modo, a dicção poética transforma-se na fala da própria autora. Trata-se de uma “fala” livre, sem a másca� ra que já não encobre mais o rosto do eu lírico, aquele que dissimu� lava seus desejos e que elaborava um outro eu para edificar o seu lirismo. Embora encarne as vozes de vários atores sociais, o pseudo eu lírico (que não existe) não se transforma em o Outro , mas assume a sua própria identidade e surpresa diante da dor, diante do Outro e da vida pós-moderna. Nos poemas de Marcia Leite vislumbram-se reinvenções frag� mentárias de bairros, ruas, ou zonas, superações pontuais do anoni� mato e da desordem, é o que testemunha de modo prosaico o eu líri� co em “Van”, do livro Curtos & Definitivos (2000). Em “Latinidade”, uma história do cotidiano, voltada para a oralidade, atópica, que pro� 162
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blematiza a diferença, os conceitos de identidade e da experiência. Em Curtos & Definitivos, Marcia traduz o ritmo urbano, a velocidade, a fala das minorias sociais, a realidade cruel que nos faz reféns, o erotismo que se mistura ao cotidiano de uma urbs em ruína. A poesia de Ana Cruz também aponta para esse processo de ex� clusão e testemunha, por um lado, o movimento de dispersão desses sujeitos em busca do próprio nome e de seu espaço; e, por outro, se impõe como uma outra voz. Esta voz desenha uma geografia diferen� cial, com níveis diversos de existência e zonas concêntricas das quais emerge uma “fala” modulada pelos planos diversos da história. Em Com perdão da palavra (1999), Ana diz “abrir o verbo”, através de uma poesia discursiva e combativa; engajada nas reivindicações do movimento em defesa dos direitos dos afro-brasileiros. O poema “Fala Preta” torna-se a voz do outro excluído, da mulher simples, dona-de-casa, reprimida pelos preconceitos morais, religiosos e esté� ticos, da prostituta, do indivíduo drogado, do mendigo, do “menino de rua”, das negras. Todavia, em Mulheres Q’rezam (2001), a poetisa abandona o tom combativo, alimentado por ideais de rupturas com o sistema social e falocêntrico, e cria uma poesia reflexiva, voltada para o passado, o amor e os problemas conjugais. A poesia de Flora Furtado (Laura Esteves) refaz o caminho da memória e o registro poético também passa a operar a partir de ora� lização da linguagem. Em A morosa caligrafia (2003), Flora observa que as “Lembranças migram, gestos minguam/ palavras trancadas em chaves secretas”. Já em “O fuso da Língua”, do livro Navegações do sentido (1997), Flora Furtado traz para a cena poética o seu diário de bordo. Nele ressoa a vivência do sertão, que “é agrura e gáudio” (amargura e alegria), e a voz das “pedras cabralinas”, metáfora da incomunicabilidade, misturando-se à opacidade de outras paisagens e à “voz extinta fogo-fátuo” de outras histórias além mar. Isso nos remete a uma outra característica da memória: a de operar uma con� tínua reconstrução de si mesma; isto é, a recordação do passado a partir do fluxo dos eventos do presente, é como “segurar o fio das palavras que socorrem/não se preparam despedidas”. A língua e a fala tornam-se o instrumento que assegura a cons� trução identitária. A linguagem é a mediação que nos permite estar no mundo e criar um espaço de racionalidade, isto é, o logos. Atra� vés da multiplicidade da linguagem que as escritoras recolhem as vozes dispersas. Uma “escrita da fala” que mistura as formas elo� quentes da palavra à verbosidade letrada. Ao incorporar as vozes dos excluídos, a poesia dessas mulheres volta-se para a multiplici� dade da realidade do quotidiano e administra recursos estilísticos Poetisas cariocas do século XXI
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mesclados como alteração do modo de composição para aproximar a escrita da fala. O que significa a oralização da escrita poética. A combinação de registros culturais diversos e a capacidade da ma� terialização dessas vozes, que encarnam os repertórios folclóricos, ligados às festas populares, à infância, aos cultos e rituais, à fé, aos santos, e os elementos urbanos, os shoppings, criam intertextuali� dades e dão à linguagem uma aparência de espontaneidade, em meio a muitas aspas e fala alheia, reforçando o efeito da oralização, que às vezes soa como um jogo pueril. Esse efeito atópico, a partir da memória, somente é possível devido ao registro informal da lin� guagem, isto é, da oralização da escrita. Trata-se de um arranjo formal no qual a potência da voz é sincronizada, através de um ritmo oratório que tenta mimetizar a fala, os gestos, as impressões, enfim, os sentidos. Se, por um lado, as expressões coloquiais determinam alguns segmentos e atores sociais, como no poema “Quase mulher”, de Lau� ra Esteves, por outro, elas também ampliam a percepção de contem� poraneidade das populações urbanas marginalizadas que se multi� plicaram, nas cidades brasileiras, na segunda metade do século XX. Somam-se a esse léxico “transgressor” da vivência urbana expres� sões populares regionais, características de um tempo e de um espa� ço específico: “mula-sem-cabeça”, “homem da meia-noite”, “mulher de branco”, “cavalo de fogo”, “corisco”, “jagunço”, “danação”. Trata� -se de uma convergência temporal que, embora aproxime elementos díspares, evidencia uma atopia significativa. Na produção poética dessas escritoras, as figuras de linguagem sonoras, tais como a aliteração, a assonância, as onomatopeias e o eco, colaboram para intensificar o processo de oralidade: o “tilintar das tigelas de louça”, do “pinga-pinga na pia”, “bate bate enxada”, “planc planc planc”, o som do líquido passando entre as brasas “tchii tchii tchii”. Silvana Salles explora essa possibilidade na sonoridade dos ver� sos “Leio, releio, volto e leio”, em “Relendo”, poema do livro Coincidências (2000), “Se eu pudesse dizer tudo que sei/ Seria mais fácil saber o que não sei”. Aqui a repetição dos fonemas /r/ e /v/ /s/ intensifica ainda mais a ideia de continuidade. A poetisa celebra as pequenas coisas da vida, os relatos do cotidiano, a experiência da memória, e reúne não apenas a técnica, mas a intuição e a sensibili� dade marcada pelo som, a cor, a luz, enfim pelo canto. Para Cristina Ferreira-Pinto, em Poemas da vida meia (2002), confundir as línguas é um dos meios para expor a dispersão humana 164
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e para resumir o mal-estar desse sujeito múltiplo e em movimento que se perde no labirinto da cidade e da linguagem. A produção poética dos anos 1990 e início do século XXI retoma a figura de Babel: as aporias de um espaço “atópico”, a multiplicida� de dos estilos, a confusão das línguas e da fala, a dispersão da hu� manidade, a necessidade de construir um nome e uma história, ba� seada sobretudo na voz feminina; de superar a fome, o preconceito, os traumas, a angústia, a solidão, as fraturas temporais. Ela traz o sinal, a palavra, o Verbo com o qual se tecem os versos além do câ� none, como água que brota na fonte, buscando a irrecuperável in� completude, e a “Porta de Deus”. Referências CRUZ, Ana. Com Perdão da palavra. Rio de Janeiro: Edição Ana Cruz, 1999. ______. Mulheres Q’rezam. Rio de Janeiro: Edição Ana Cruz, 2003. ESTEVES, Laura. Transgressão. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1997. ______. Como água que brota na fonte. São Paulo: Barcelona, 2000. FERREIRA-PINTO. Cristina. Poemas da vida meia. Rio de Janeiro: Sette Letras, 2002. FURTADO, Flora. Navegação dos sentidos. Rio de Janeiro: F. Furtado/Grupo Letra Itinerante – Poesias, 1997. ______. A morosa caligrafia. Rio de Janeiro: F. Furtado/Grupo Letra Itinerante-Poesias, 2003. LEITE, Marcia. Curtos & Definitivos. Rio de Janeiro: Oficina, 2000. MAIER, Glenda. Poesia etc. & tal. Rio de Janeiro: Oficinas, 2002. ORTIZ, Helena. Pedaços de mim. Porto Alegre: Eletrônica Luís Carlos Passuelo, 1995. ______. Margaridas. Rio de Janeiro: Blocos, 1997. ______. Azul e sem sapatos. Rio de Janeiro: Blocos, 1997. ______. Em Par. Rio de Janeiro: Editora da Palavra, 2001. SALLES, Silvana. Coincidências. São Paulo: Massao Ohno, 2000.
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Precisa-se de traduções
Rafael Miranda Rodrigues
O
s leitores brasileiros, principalmente os apreciadores de li� teratura hispano-americana, devem ter passado todo o ano 2011 comemorando o lançamento no mercado nacional de Facundo, ou Civilização e Barbárie, de Domingos Faustino Sarmiento (1811-1888), ocorrido ainda nos últimos dias de 2010. Escrita em 1845, a obra faz parte do cânone literário argentino e caracteriza� -se como um texto que praticamente “inventa” o país vizinho, ainda que não se trate de literatura propriamente dita, já que se configura mais como uma espécie de biografia romanceada do caudilho Juan Facundo Quiroga concebida como ataque ao populista Juan Manuel de Rosas, homem a quem o próprio Sarmiento sucederia como pre� sidente da República. Se não bastasse ser uma das mais importan� tes páginas das letras da América Latina – o que por si só já seria motivo de sobra para um olhar mais cuidadoso por parte de nossos editores –, o até então ineditismo de uma tradução brasileira para o livro era algo ainda mais constrangedor pelo fato de a obra abordar temas que perpassam não apenas a história argentina, mas também a história de todo o continente, incluindo aí a nossa própria histó� ria: o caudilhismo populista, a idealização de um projeto nacional, o ‘gauchismo’ e a sociedade dos pampas, o antagonismo entre um olhar europeu e a visão local, e todo um panorama sobre o desenvolvimen� to político, social, econômico e cultural da América do Sul de então. Seguramente, ler Facundo ou Civilização e Barbárie significa entender um pouco mais não só a Argentina, mas toda a porção sul do conti� nente – da qual, irremediavelmente, fazemos parte. Mal chegado às lojas esse indiscutível clássico e, logo a seguir, em fevereiro do ano passado, outro título seminal das letras argentinas, também anteriormente inédito em tradução brasileira, foi lançado no Brasil. Trata-se de Museu do Romance da Eterna, de Macedonio Fer� nández (1874-1952), considerado por muitos como um dos melhores – e, certamente, um dos mais inventivos e originais – livros de todos os tempos, em todos os idiomas. Escrito desde 1904 até o fim da vida de Fernández, que não chegou a ver a obra publicada – o livro só chegaria 166
ao público 15 anos depois –, o romance é uma espécie de prólogo sem fim para uma história que parece nunca começar e que traria um ho� mem abandonando a vida urbana para buscar refúgio no campo após a morte de sua esposa. Repleto de recortes, idas e vindas, digressões e devaneios, Museu do Romance da Eterna tem tudo para ser confun� dido com uma obra inacabada e, por vezes, dotada de alguma falta de sentido, não fosse o fato de ser, exatamente por conta da forma como foi concebida, um espetacular sopro de modernidade protagonizado por um autor que influenciaria toda a literatura argentina que o se� guiu, incluindo aqui seus maiores nomes do século passado, como Ernesto Sábato, Júlio Cortázar e Jorge Luís Borges – de cujo pai, diga� -se, Fernández foi amigo íntimo. Antes de estas duas obras indispensáveis serem lançadas por aqui, os leitores brasileiros não tinham outra escolha senão lê-las em seu espanhol original ou, pior ainda, em traduções para outros idiomas – infelizmente, qualquer que fosse a opção, coisa para pouquíssimos em nossa população. Se durante todo esse tempo as livrarias e bibliotecas brasileiras ficaram órfãs de duas obras de tamanha envergadura – e provenientes de um país como a Argentina, seguramente nosso vizi� nho mais “pesado” não apenas no campo literário –, é de se supor que haja tantos outros casos similares de importantes obras latino-ameri� canas ainda sem tradução em português brasileiro. E como há... Publicado em folhetins entre 1816 e 1831, durante o período da Guerra de Independência do México, El Periquillo Sarniento, obra� -prima do mexicaníssimo José Joaquín Fernández de Lizardi (17761827), tem todos os elementos de um livro clássico. Inspirado no gênero picaresco da célebre obra espanhola Lazarillo de Tormes, a obra é tida como o primeiro ‘romance’ propriamente dito escrito em toda a América Latina, que viu o gênero despertar tardiamente em suas letras, já que muito pouco foi feito no período que corresponde ao barroco europeu. Nascido com clara intenção de educar as mas� sas mexicanas, o romance de Fernández de Lizardi conta a história bem-humorada do personagem-título, cuja vida transcorre exata� mente durante o apogeu da colonização espanhola em terras mexica� nas, culminando com seus últimos anos. Além dos processos de in� dependência latino-americanos terem ocorrido de forma concomitante, permitindo-nos traçar um rico paralelo entre as duas realidades, de cá e de lá, outro ponto interessante em torno do livro é perceber como Fernández de Lizardi se valeu da sátira para expor sua visão particular não apenas das tradições folclóricas mexicanas, como também a respeito da colonização, revelando-se, por exemplo, um crítico mordaz da escravidão. Precisa-se de traduções
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Aliás, esses mesmos movimentos de independência nos diferen� tes países latino-americanos foram a grande força motriz de um “americanismo literário” que irrompeu no século XIX como forma de dar vazão, através da poesia, a um ‘discurso próprio’ que também fosse capaz de servir às intensas questões políticas que se viviam à época. Foi esse contexto que fez desabrochar os versos românticos de uma série de nomes importantes ligados, direta ou indiretamente, à luta contra os dominadores espanhóis. Entre esses nomes ainda não traduzidos/editados por aqui, destaque para o fundamental huma� nista venezuelano Andrés Bello (1781-1865), que lutou ao lado de Simón Bolívar pela independência de seu país e que, em Alocución a la Poesía, de 1823, ou no poema La Agricultura de la Zona Tórrida, de 1826, derrama-se de amores pela natureza exuberante de sua terra natal – Bello chega a “propor” à musa da poesia que desista da Europa e inspire-se unicamente no Novo Mundo. O poeta cubano José María Heredia (1803-1839), considerado por muitos como o pri� meiro poeta romântico da América Espanhola, é ainda mais inflama� do do que o próprio Bello ao falar da beleza nativa de nosso continen� te desde seu exílio nos Estados Unidos. Os versos de Heredia merecem um olhar carinhoso, bem como os do equatoriano José Joaquín de Olmedo (1780-1847), poeta intimamente ligado ao contexto político de seu país e que, em La Victoria de Junín, poema de 1825 encomen� dado pelo próprio Bolívar, fez alusão a uma das derrotas espanholas no Peru que marcaram o início da libertação do continente. Muito além das indispensáveis tintas sentimentais e patrióticas, a potência lírica de Olmedo também é notável. Gregorio Gutiérrez González (1826-1872), grande expoente da poesia clássica colombiana, é o au� tor do célebre poema Memoria del Cultivo del Maíz en Antioquia, no qual aborda apaixonadamente o processo de plantio e colheita do milho nas terras de sua região natal. González chegou a ser chamado pelo crítico e intelectual espanhol Marcelino Menéndez Pelayo de “um dos poetas mais americanos que já houve”. Há ainda Esteban Echeverría (1805-1851), poeta precursor do romantismo argentino e célebre não apenas por seu poema La Cautiva, publicado em 1837, mas também pelo conto El Matadero (escrito no mesmo período, mas lançado apenas em 1871, postumamente), considerado o primeiro conto realista escrito na porção sul do continente e um dos pilares da narrativa curta em toda a história da literatura hispano-americana. Afora a poesia, também na prosa do século XIX há muitas lacu� nas importantes a se preencher com obras fundamentais do período ainda não traduzidas para o português brasileiro. Novela única e um clássico do colombiano Jorge Isaacs (1837-1895), María, publicada em 1867, é provavelmente o primeiro romance sentimental latino� 168
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-americano, obra inicial de um gênero que se tornou extremamente popular na Europa – em especial na França – dos anos 1820/30. Tradiciones Peruanas, compilação da coleção dos escritos curtos do peruano Ricardo Palma (1833-1919), publicados entre 1889 e 1908 em jornais e revistas da época, é outra obra de valor literário inesti� mável dentro do romantismo por abordar costumes e tradições que se iniciam no período inca e chegam até os primeiros anos da eman� cipação. O livro foi escrito em uma linguagem informal e temperada pelo popular, ainda que carregada de dramaticidade. Ainda que me� nor sob o ponto de vista de produção literária, outra obra importante para a apreciação das tradições culturais locais em contraste com os hábitos dos colonizadores europeus e também como bandeira na luta contra a opressão imposta aos indígenas é Cumandá, publicada em 1879 pelo equatoriano Juan León Mera (1832-1894). Em meio aos confrontos entre colonizadores e indígenas, Mera conta a história do romance entre a índia Cumandá e seu amante Carlos – impossível não traçar imediatamente um paralelo com Iracema, clássico de nos� sa literatura escrito por José de Alencar e publicado em 1865. Ainda dentro do indigenismo, outro nome fundamental é o da peruana Clo� rinda Matto de Turner (1852-1909), mulher de destacada atuação na cena literária de seu país à época e autora de Aves Sin Nido, publica� da em 1889, obra precursora do movimento indigenista peruano. Chegando ao século XX, uma quantidade bem maior de nomes e obras hispano-americanas já tem tradução em português brasileiro, mas as lacunas ainda são enormes. O mui modernista Leopoldo Lu� gones (1874-1938), um dos pilares das letras argentinas, tem peque� na parte de sua vasta e plural obra já traduzida por aqui. Precursor da narrativa curta, que acabou tornando-se uma forte tradição da Argentina no século passado, se Lugones tem alguns de seus contos traduzidos para o português, sua poesia ainda permanece inacessí� vel no Brasil. Bebendo no simbolismo francês, o ousado Lunario Sentimental, de 1909, é apenas uma de suas obras do gênero que mere� cem atenção. Outro poeta indispensável, e ainda desconhecido de nossos leitores, é o grande peruano César Vallejo (1892-1938). Autor de versos crepusculares e tristes, é através desses sentimentos que estabelece a ponte entre seu intenso regionalismo e sua capacidade de alcançar-nos a todos de forma universal. Sua obra-prima, Trilce, publicada em 1922 – coincidindo com nossa Semana de Arte Moder� na, é bom que se diga – é peça-chave na vanguarda poética em espa� nhol, verdadeira erupção desse subgênero em terras latino-america� nas. Nela, um revolucionário Vallejo pulveriza padrões estéticos/ retóricos e cria um fazer poético muito particular, todo seu. Precisa-se de traduções
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Ainda na poesia, como não falar do tão pouco que temos de Ga� briela Mistral (1888-1957), primeira pessoa latino-americana – e única poetisa de qualquer nacionalidade – a ganhar um Prêmio Nobel de Literatura, em 1945. Versificando sofrimento e beleza por meio da natureza de sua terra natal e de seu povo, Gabriela se nutre da dor para falar da vida. Entre suas obras mais destacadas estão Desolación (1922), Tala (1938) e Lagar (1954). Não apenas por sua qualidade lírica, mas também por tratar da cultura negra, da mestiçagem como elemento definidor da personalidade latino-americana e por escrever privilegiando som, ritmo e cadência em uma poesia extremamente musical e muito identificada com a alma de seu país, o cubano Nico� lás Guillén (1902-1990) é outro poeta que merece ter sua obra desa� fiada por nossos tradutores e editores. Na prosa, entre as obras latino-americanas importantes produzi� das antes da explosão do realismo mágico – ocorrida principalmente entre as décadas de 1960 e 1970 – e que permanecem sem tradução no Brasil, vale destacar algumas. Se Os Sete Loucos (1929) e Os Lança-Chamas (1930) já foram editados no nosso português – em edição que reúne os dois títulos, inclusive –, o romance de formação do ar� gentino Roberto Arlt (1900-1948) é El Juguete Rabioso (1924), ainda inédito por aqui, que conta as desventuras da iniciação amorosa de um simpático anti-herói. Primeiro autor moderno portenho, o estilo limpo de Arlt foi considerado um tanto “descuidado” por seus con� temporâneos à época da publicação de seus livros, em uma caracte� rística que, hoje, influencia diretamente muitos escritores contempo� râneos – e não apenas argentinos – que se posicionam esteticamente como herdeiros diretos da mesma busca literária de Arlt. No mesmo ano de 1924, mas na Colômbia, José Eustasio Rivera (1888-1928) publicava La Vorágine, novela de selva considerada uma das mais importantes obras da literatura colombiana. Nela, Rivera se faz valer de uma escrita bem cadenciada, encharcada de caracterís� ticas da poesia, para elaborar uma apaixonada saga tropical que re� gistra o contexto social de seu tempo. Também muito realista, quem também constrói um interessante retrato da situação de seu país, mas com tintas mais melodramáticas, é o venezuelano Rómulo Gal� legos (1884-1969), que, no clássico Doña Bárbara (1929), expõe a face mais cruel, opressora e corrupta de uma Venezuela latifundiária na qual, mesmo com todo o cenário adverso, vivem pessoas boas que amam, sofrem e lutam contra a ditadura. Por meio do choque entre civilização e barbárie, Gallegos propõe sua solução particular ao cau� dilhismo. Era um realismo brutal, impactante e indignado, que aca� bou por oferecer o contraponto proposto pelas alegorias que tão for� 170
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temente marcariam o realismo mágico. Numa dessas obras, a densa Hombres de Maíz (1949), do guatemalteco Miguel Ángel Asturias (1899-1974), ganhador do Nobel de 1967, o autor, habilmente, faz uso de tons surrealistas e lança mão de elementos oriundos das len� das e mitos indígenas pré-colombianos, principalmente maias – o título da obra, por exemplo, é uma referência ao Popol Vuh, um dos livros sagrados dos maias – para falar do choque entre culturas a partir do contraste entre aqueles que veem o milho como um alimen� to sagrado e aqueles que o tratam apenas como um produto a ser comercializado. No fundo, Asturias estabelece um paralelo entre o homem americano, ligado à sua terra, e o homem europeu, urbano, em um choque que é ainda mais evidente em Los Ríos Profundos (1956) e El Zorro de Arriba y el Zorro de Abajo (1970), do peruano José María Arguedas (1913-1969), que, se expõe claramente essas dife� renças, também propõe para ambos uma integração harmônica, de caráter mestiço, mas sem se esquecer de expor os dilemas e atrope� los de seu projeto de “convivência”. É uma espécie de “neoindigenis� mo andino”, no qual o acompanham nomes como o também peruano Ciro Alegría (1909-1967) – já traduzido no Brasil em Grande e Estranho Mundo e Os Cães Famintos –; o boliviano Alcides Arguedas (18791946), que ainda dialoga com o indigenismo do século XIX em obras como Raza de Bronce (1919); e o equatoriano Jorge Icaza (19061978), autor de Huasipungo (1934), também já editado no Brasil, mas há muito tempo, em 1978. Severo Sarduy (1937-1993) é um escritor que merece ser traduzi� do e incorporado ao time de grandes romancistas cubanos do século XX já disponíveis em tradução brasileira, como José Lezama Lima, Alejo Carpentier, Pedro Juan Gutiérrez, Tomás Eloy Martínez e Guillermo Cabrera Infante. Se Escrito Sobre um Corpo (1969) – de ensaios –, Colibri (1984) e Pássaros da Praia (1993) já foram editados por aqui, vale muito a pena aventurar-se por De Donde Son Los Cantantes (1967), seu segundo romance, belo livro ainda inédito em por� tuguês brasileiro. Quem também merece ser visitado em seu Los Convidados de Piedra (1978) é o chileno Jorge Edwards (1931). Ro� mance mais importante de sua carreira, a obra é ambientada duran� te o golpe de Estado de 1973, com trama girando em torno de uma festa de aniversário em que a essência dos seres humanos é exami� nada a partir do ponto de vista dos diferentes convidados. Entre tantos escritores produzindo literatura no universo riquís� simo e plural da América Latina, que tem tanto a se comunicar co� nosco e com a nossa realidade, todas as obras mencionadas aqui são apenas sugestões dentro de um continente – literalmente – de possibi� Precisa-se de traduções
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lidades. Já temos muitos autores hispano-americanos traduzidos re� cheando nossas prateleiras, mas precisamos de mais. Muito já se falou sobre não sermos um país de leitores, sobre nossos índices educacionais serem um completo desastre, sobre termos tão poucas livrarias e bibliotecas para atender a vastidão de nosso território, ou sobre estarmos muito atrás até mesmo de alguns de nossos próprios vizinhos sul-americanos nesses quesitos – tudo verdade, diga-se. Porém, transportando o problema para além dessas constata� ções, a questão que se propõe aqui para reflexão é: caso queiramos, de fato, dar o salto que esperamos dar como nação, é urgente a ne� cessidade, entre tantas outras pendências, de preencher as lacunas que ainda há em nossas livrarias e bibliotecas com alguns títulos indispensáveis que merecem ser traduzidos para o nosso português. Seria essa proposta, esse convite, uma utopia? Se quisermos mesmo nos tornar esse outro Brasil, melhor pensar que não. Pensando bem, melhor mesmo seria pensar que essa parece ser mais uma entre nossas tarefas inadiáveis, assim como é inadiável aumentar a difusão e penetração de nossos autores em outros paí� ses por meio do incremento de iniciativas e políticas de incentivo à tradução de obras brasileiras junto a editores estrangeiros – o que já seria assunto para uma outra longa conversa... No momento, fi� quemos apenas com a constatação de que é indispensável conhecer e ler os grandes autores do cânone latino-americano e conhecer melhor suas obras. E para que mais brasileiros os leiam e os conhe� çam, é preciso traduzi-los.
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IX. Mem贸ria
Autores Armênio Guedes
Jornalista, ex-dirigente nacional do PCB e atual presidente de honra da Fundação Astrojildo Pereira (FAP).
Dina Lida Kinoshita
Professora doutora da USP e membro da Cátedra Unesco de Educação para a Paz, Direitos Humanos, Democracia e Tolerância; do Instituto de Estudos Avançados da USP; e do Amigos Brasileiros do Paz Agora.
A resistência política aos anos de chumbo1 Armênio Guedes
O
AI-5 foi um rude golpe contra a oposição. A resistência ao processo de fascistização do país se faz agora de posições mais difíceis, em virtude do recuo do movimento de massas, em 1969. As medidas de repressão, depois de 13 de dezembro de 1968, atingiram particularmente a luta dos trabalhadores, dos estu� dantes e da Igreja Católica. Essa retração do movimento de massas influiu negativamente em toda a oposição e aumentou a sua dispersão: as correntes burguesas e pequeno-burguesas, principalmente as suas cúpulas, se retraíram. Os focos de resistência criados na ascensão de 1968 (nos sindicatos, nas escolas, na imprensa e no parlamento), em defesa da liberdade de manifestação, contra a censura e o terror cultural, em defesa das rique� zas naturais do país, contra a desnacionalização da indústria etc. foram 1
Poucos meses depois do AI-5, em agosto de 1969, a Junta Militar afastou o ge� neral Costa e Silva da Presidência da República e indicou o general Garrastazu Médici para substituí-lo, dando início aos piores anos de chumbo. Como resistir ao acirramento do caráter reacionário do regime de 1964? Num momento de grande repressão e desencanto, o dirigente comunista Armênio Guedes propôs um texto de resolução ao PCB da Guanabara (março de 1970) que foi aprovado pelo seu Comitê Estadual. Neste seu texto, o analista daquela conjuntura de acirramento do auto� ritarismo (um “avanço do processo de fascistização” da ditadura de 1964, como ele dizia) busca delinear cenários de ação. Argumentava que a tendência reacionária, no entanto, vista em perspectiva, desde a caracterização do regime e a partir da política, podia ser barrada. Neste ponto-chave, ele se colocava, em 1970, na contra� corrente das teses que davam como consumado o fechamento completo do sistema político, incluídas as dos grupos radicalizados, principalmente jovens que, então, protagonizavam ações armadas.
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praticamente liquidados ou reduzidos a um mínimo. O movimento de resistência ainda busca, neste momento, novas formas e caminhos para se expressar, para criar, enfim, os seus novos focos de irradiação. Cabe aqui, finalmente, uma observação especial sobre a situa� ção das esquerdas dentro da oposição. Para essas forças, a pior consequência da inflexão do movimento de massas foi o rápido in� cremento das posições radicais. Não foram poucos os grupos revo� lucionários pequeno-burgueses que não souberam recuar ante o avanço da contrarrevolução, passando do radicalismo verbal às po� sições de desespero e aventura. Iniciaram essas correntes uma sé� rie de atos que se explicam, antes de tudo, pela sua incapacidade para enfrentar a tarefa de reestruturar o movimento de massas nas condições difíceis criadas pelo avanço da repressão fascista. Os as� saltos a bancos, os golpes de mão e outras formas de ação postas em prática por pequenos grupos desligados das massas, enfim, o emprego indiscriminado da violência, embora compondo objetiva� mente o quadro da oposição, não deixam, apesar de seu suposto caráter revolucionário, de desservir à resistência e de dificultar a organização da frente única de massas contra a ditadura. Em uma palavra, enfraquecem a oposição. O trabalho paciente, cauteloso e demorado de organização da classe operária e do povo, de sua preparação para enfrentar uma luta prolongada, se assim for preciso, que constitui para o nosso Partido uma alta virtude revolucionária, não passa, para aqueles grupos, de um pecado mortal oportunista. É esse o quadro da oposição. Quadro que explica porque a dita� dura, apesar de suas fraturas e instabilidade, ainda encontra meios e formas para avançar no processo de fascistização. Quadro que se modificará, com maior ou menor ritmo, a partir do momento em que o processo político, permitindo uma reflexão mais profunda da opo� sição sobre sua experiência, indique-lhe a maneira de usar sua imen� sa potencialidade para organizar os combates e a batalha final con� tra a ditadura. O exame até aqui feito sobre as forças presentes e em conflito na sociedade brasileira induz a um otimismo realista em relação à for� mação de uma frente antiditatorial. Essa conclusão, juntamente com a de que não é fácil a consolida� ção do regime atual, não autoriza, porém, qualquer atitude política alicerçada na subestimação dos suportes da ditadura. Quando dize� mos que a ditadura se isola de determinadas forças políticas, não estamos, ipso facto, prevendo a sua queda imediata. 176
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Queremos tão somente significar que surgiram novas dificulda� des para o regime, que podem aumentar ou desaparecer, em depen� dência dos erros ou acertos de seus opositores. O dimensionamento das dificuldades atuais do regime, em con� fronto com a capacidade de ação da oposição, indica que elas não são de natureza a prever a derrocada da ditadura em curto prazo. E os fatos decisivos que conduzem a tal conclusão são o retraimento do movimento de massas e a dispersão da oposição. Usando uma outra fórmula, diremos o seguinte: se os fatores temporários ainda favore� cem o processo de fascistização, a nossa tática só pode necessaria� mente ser defensiva, de resistência tenaz e, se preciso, prolongada. Temos, portanto, que trabalhar com essa perspectiva, afastando de nosso Partido e, se possível, das demais forças da oposição, quaisquer ilusões sobre uma vitória fácil sobre a ditadura. Os dados de que dispomos não nos autorizam a prever o tempo de duração do regime atual. É claro que o nosso problema não é ficar especulando abstrata� mente sobre a vida mais curta ou mais longa da ditadura, não é su� bordinar nossa luta de resistência aos resultados dessa indagação. Mas a especulação é válida, desde que dê à oposição um elemen� to de referência – as probabilidades de maior ou menor duração da ditadura – para que ela possa determinar o ritmo e a intensidade de sua ação. Se não prevemos uma queda fácil e imediata da ditadura, temos, como Partido revolucionário, de subordinar nossa ação política e o trabalho de organização a uma tal realidade. A perspectiva é a de nos prepararmos, tanto no plano da ativida� de política como no da organização, para um trabalho em profundi� dade, cujos resultados só serão colhidos depois de um período de maturação. Um trabalho adaptado a uma situação de violenta reação política, em que a luta de resistência surgiu como decorrência de uma série de derrotas e desgastes impostos ao movimento revolucio� nário, nacional e democrático. Nossa ideia de resistência apoia-se no fato de existir no Brasil um sentimento generalizado de repulsa à ditadura, abrangendo as mais diversas classes e camadas sociais, mas disperso e desorganizado. Devemos partir de ações parciais, em todos os níveis do movimen� to de massas ou dos acordos de cúpula, a fim de conseguir que aque� le sentimento passivo vá tomando forma, pouco a pouco, até se trans� A resistência política aos anos de chumbo
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formar num grande movimento nacional, em frente única, que englobe os sindicatos, o movimento estudantil, a Igreja Católica, os partidos e os políticos da oposição – um movimento que expresse, em nível supe� rior, a rebeldia brasileira contra o processo de fascistização do país. Cabe salientar, em relação ao esforço destinado a impulsionar a luta de resistência, nas condições atuais, a valorização a ser dada às pe� quenas ações, mesmo nos casos em que estas só indiretamente se oponham às medidas da ditadura. O que não podemos é condenar a oposição ao imobilismo, na espera das grandes tarefas ou do dia su� premo. A constante preocupação em descobrir e organizar a resistên� cia concreta das massas contra determinados atos do regime ditatorial é o melhor antídoto para evitar os apelos à luta abstrata ou à resistên� cia indeterminada. Desses apelos ao palavrório radical desligado de qualquer objetivo real, basta apenas dar um passo. Os protestos contra o ato do governo que instituiu a censura pré� via à publicação de livros e periódicos são um exemplo atual e palpi� tante de resistência concreta. Há, na luta de resistência limitada da fase atual, o risco de o Par� tido desprezar sua estratégia. Mas isto será evitado desde que subor� dinemos as ações de resistência ao objetivo central de formação de uma frente única nacional antiditatorial. Assim, o Partido será res� guardado e não incorrerá no erro de minimizar sua ideia estratégica, “diluindo-a em uma tática quase cotidiana”. Trata-se, agora, de incrementar e multiplicar o aparecimento de focos políticos de resistência, a fim de romper com a passividade das massas e passar da defensiva à ofensiva, até atingir o ponto em que se coloque, na ordem do dia, o ataque geral contra a ditadura. É nesse momento que se dará o fim do processo de fascistização, com a liquidação da ditadura: 1) ou através de um movimento irresistível que mobilize a opinião pública, atraia para o seu lado uma parte das Forças Armadas e organize um levantamento nacional (com maior ou menor emprego da violência); 2) ou através da desagregação interna do poder, sob o impacto do movimento de massas e depois de crises sucessivas, forçando uma parte do governo a facilitar a abertura democrática; 3) ou pela predominância e vitória, nas Forças Armadas, da cor� rente nacionalista, capaz de superar e liquidar o conteúdo entre� guista do regime, nos moldes concebidos pela ESG e aplicados pelos altos chefes militares no mando do país, a partir de 1964. 178
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Em relação à terceira hipótese, cabe um esclarecimento. No caso de surgir uma situação semelhante, é de se prever que a corrente nacionalista vitoriosa, mesmo negando o traço fundamental do regi� me atual – sua subordinação à estratégia americana de controle do mundo capitalista –, tentará manter o poder militar autoritário, como instrumento para a realização de seu projeto de afirmação nacional. Mas esse poder, penetrado de um novo conteúdo, na medida em que aguce seu confronto com o imperialismo, tornar-se-á carente de am� plo apoio popular e permeável, por isso mesmo, às reivindicações de ordem democrática. É claro que as saídas acima apontadas são, como não poderiam deixar de ser, bastante esquemáticas. São hipóteses para o trabalho político, tanto mais úteis quanto expressem com maior rigor as ten� dências reais do processo político em curso. De qualquer forma, a queda do regime atual poderá assumir o caráter de uma verdadeira revolução antifascista, com a derrota e afastamento do poder das forças e camadas políticas e sociais mais reacionárias do país. Referências (Cf. Resolução Política do CE da Guanabara, março de 1970, in PENNA, Lincoln de Abreu (Org.). Manifestos políticos do Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: E-Papers, 2008.
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Scliar: vida, obra e questão social
Dina Lida Kinoshita
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oacyr Scliar (1937-2011) nasceu em Porto Alegre, no seio de uma família judaica “progressista” cujos expoentes eram o pintor Carlos Scliar, combatente da Força Expedicionária Brasileira; Esther Scliar, musicóloga da fase nacionalista da músi� ca clássica brasileira, ambos militantes do PCB; e seu tio Henrique Scliar, imigrante que fazia parte dos círculos de simpatizantes do PCB descritos por Leôncio Basbaum no livro Uma vida em seis tempos. Para estes judeus “progressistas” pertencentes aos estratos popu� lares, a questão cultural era central na medida em que era considera� da indispensável para orientar uma prática transformadora da reali� dade. Havia fome de cultura e forjavam-se verdadeiros autodidatas eruditos, para os quais nada do que é humano era indiferente. Pos� suíam uma presença ativa e militante, adotando uma atitude de en� trega às melhores aspirações populares. Num caminho de vaivém, abraçavam todas as causas condutoras ao arraigamento à nova terra e, ao mesmo tempo, preservavam os valores político-sociais, humanis� tas e literários adquiridos em suas terras natais da Europa Oriental. Moacyr Scliar bebeu ainda menino nestas fontes, mas, sob o im� pacto do Holocausto, como muitos jovens de sua geração, se dividia entre o nacional e o social. Isto é, construir o socialismo num “lar na� cional judeu” ou fazer a revolução no Brasil. Acabou optando por uma militância no movimento juvenil da esquerda sionista que se conside� rava marxista, o Hashomer Hatzair (Guarda Jovem), sem nunca ter deixado de ter vínculos muito afetivos com a esquerda não sionista. Formado em medicina, não por acaso escolheu a docência e o exercício da saúde pública como sanitarista. A solidariedade, o pen� sar no coletivo falaram mais alto que uma brilhante carreira de pres� tígio. Mas acabou se notabilizando como escritor e foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras. Moacyr Scliar foi um dos mais prolíficos escritores brasileiros con� temporâneos e, aparentemente, escrevia a respeito de assuntos muito díspares. No entanto, pode-se vislumbrar um fio condutor em toda a 180
sua obra. Dedicou uma parte expressiva de sua produção à literatura infanto-juvenil, o que se coaduna com seu interesse pela educação. Escreveu obras sobre saúde pública, entre as quais se destaca a bio� grafia de Oswaldo Cruz. Mas as obras mais conhecidas são os seus romances, contos e crônicas. E neles perpassa a busca pelas origens, reminiscências de infância, a questão ética e o ser político e social. Não cabe fazer neste espaço um resumo de toda a sua obra e mui� to menos fazer análise literária. Destacar-se-ão as obras mais repre� sentativas desta busca definida acima. Seu romance de estreia, com cunho autobiográfico, A guerra no Bom Fim (1972), relembra a vida de um menino que vivia com a famí� lia na Porto Alegre dos anos 40, no bairro Bom Fim, onde viviam os imigrantes judeus vindos do Leste Europeu. Ao mesmo tempo em que ia aprendendo as coisas da vida nas ruas do bairro, também iam chegando as notícias angustiantes da II Guerra Mundial no cenário europeu, no qual a maioria havia deixado parentes e amigos. Os voluntários (1979) reúnem como personagens um grupo qui� xotesco que busca o inatingível. E sua incrível armada está metida numa empreitada desastrada para levar um moribundo a Israel. O objetivo da viagem é permitir ao moribundo conhecer a cidade de Jerusalém antes de falecer. Mas no fundo a história reproduz o con� flito do Oriente Médio sob a ótica da rua Voluntários da Pátria, cen� tro comercial de Porto Alegre. Em A estranha nação de Rafael Mendes (1983), conta a tumultua� da história dos cristãos-novos vindos ao Brasil, através dos tempos, e n’O ciclo das águas (1975) Moacyr Scliar tem a coragem de abordar pela primeira vez um assunto tabu na comunidade judaica, até en� tão: trata-se da história das “polacas”, meninas judias trazidas da Europa sob vários pretextos pela máfia judaica, Tzvi Migdal, para, na verdade, serem forçadas a se prostituir nos cabarés e nos bordéis da América, terra esta que constituía o sonho dourado das comunida� des pobres do Leste Europeu. O exército de um homem só (1973) é um preito ao Tio Henrique, que na juventude foi o único propagandista do projeto stalinista de transformar a região autônoma do Birobidjan (URSS) num lar nacio� nal dos judeus. Mas, num belo texto publicado no jornal Zero Hora, edição de 2 de junho de 1990, Moacyr Scliar afirma que, entre os que fundaram o Clube de Cultura de Porto Alegre, (...) se destacava a figura lendária de Henrique Scliar, meu tio. O tio Henrique, como todos o conheciam, construiu o Scliar: vida, obra e questão social
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clube com suas mãos. Literalmente: muitas vezes o vi no meio dos operários, carregando tábuas ou baldes de cimen� to. E o fazia, em primeiro lugar, pela fé que depositava no empreendimento; depois, pela veneração com que os velhos militantes encaravam o trabalho dos obreiros; e por último, porque cultura era sua vida. Cultura foi, numa época, a re� ligião da esquerda. O Clube de Cultura representava um ca� pítulo da longa e tormentosa história das relações entre es� querda e judaísmo. Uma história que começou cheia de esperanças – a Revolução Russa prometia aos judeus uma completa emancipação – entrou num período sombrio com o stalinismo e chega agora a uma fase indefinida, em que a tolerância da perestroika convive com o velho antissemitis� mo eslavo. A URSS emergia da II Guerra como a força que havia derrotado os nazistas, e os crimes de Stalin não ha� viam sido divulgados. O fim do sonho comunista foi um gol� pe, mas o sonho que ela representava permanece vivo.1 Em outro depoimento, Moacyr Scliar, mesmo que de forma gene� ralizante, ao comentar o grupo progressista gaúcho do qual fazia parte seu tio Henrique Scliar, entende “que a perspectiva de militân� cia de grandes parcelas judaicas europeias dentro de ideais socialis� tas” era feita “não da maneira maquiavélica que daria origem ao sta� linismo, mas à luz de uma tradição ética que, vinda dos profetas bíblicos, pode ser ainda detectada na obra do jovem Marx”. É bem provável que esta seja a fonte dos livros que ele escreveu sobre ética judaica, entre os quais se destaca o premiado O centauro no jardim. Uma narrativa ao mesmo tempo realista e fantástica, onde o protagonista busca a verdadeira natureza do ser humano e sua luta contra a alienação. Mas o autor não esquece a temática brasileira, representada por Uma história farroupilha (2004), em que o mais longo conflito interno da nossa história serve de palco para a conquista e colonização de áreas ainda pouco exploradas do território gaúcho, com ênfase para a decisiva contribuição dos povos imigrantes para a riqueza cultural e socioeconômica do Brasil. Em Mês de cães danados (1977), narra a saga de um estancieiro dos pampas cuja vida atribulada o leva à sarjeta de Porto Alegre. O pano de fundo são os dias tensos da renúncia do presidente Jânio
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Meus agradecimentos a Airan M. Aguiar por ter me fornecido este texto de Moacyr Scliar.
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Dina Lida Kinoshita
Quadros, a crise institucional instalada e o papel de Leonel Brizola nos dias que antecedem a posse de João Goulart na Presidência. Os vendilhões do templo (2006) tem início com a parábola cristã da antiguidade que trata das relações entre crença e poder, interesses e ideais. Mas de forma emblemática a história culmina no Brasil dos pri� meiros anos do século XXI. Embora seja denunciada a corrupção numa pequena cidade gaúcha, o livro vem à tona em tempos de ‘mensalão’. A majestade do Xingu (1997) talvez seja a síntese de tudo o que tocava mais de perto o coração de Scliar. É uma homenagem a Noel Nutels, imigrante judeu, grande sanitarista, vinculado ao PCB, que consagrou sua vida a cuidar dos indígenas brasileiros. Mas a grande surpresa é seu último romance, de temática genui� namente brasileira, Eu vos abraço, milhões (2010). O texto envolve di� reta e indiretamente, personagens e delírios da cultura política comu� nista no Brasil, e um deles, em especial: Astrojildo Pereira. Apesar disso, o livro é construído à maneira da maioria das obras de escrito� res judeus que se expressavam em iídiche, constituídas de narrativas centradas num único personagem, na forma de monólogos. Scholem Aleichem é o grande mestre do gênero. Têvie, o leiteiro é composto por vários contos concebidos como monólogos, em que o personagem Tê� vie se dirige a Scholem Aleichem para narrar-lhe todas as suas atribu� lações ao longo da vida e se inicia com uma carta do personagem ao escritor. E o personagem de Scliar escreve uma carta para o neto rela� tando episódios de sua longa vida num monólogo. Levando-se em conta que Scholem Aleichem escreveu um conto chamado “Se eu fosse Rotshild” e Scliar tem um conto com o mesmo nome e o mesmo humor em meio à desgraça dos seus personagens preferidos – os gauches da vida —, vislumbra-se assim a tradição do conto judaico na literatura brasileira.
Scliar: vida, obra e questão social
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X. Resenha
Autores Ivan Alves Filho
Jornalista, historiador, autor de mais de uma dezena de importantes obras, com destaque para Memorial dos Palmares.
José Cláudio Berghella
PhD em Sociologia, pela Universidade de São Paulo (1972), e professor aposentado da Universidade Federal de São Carlos (SP). Professor da Università Vita-Salute San Raffaele di Milano é autor de inúmeras obras, entre as quais Filosofia e speranza (2005), Marx e l´atomismo greco (2007), Karl Marx e la schiavitù salariata (2007).
Paulo César Nascimento
Professor de Ciência Política, do Instituto de Política da Universidade de Brasília.
Grande Sertão, segundo Dirceu Lindoso Ivan Alves Filho
C
omo sabemos, o conceito é um instrumento formidável de aproximação do estudioso com a realidade objetiva que ele busca apreender em profundidade. Dir-se-ia que esse vaivém alicerça o conhecimento. Existe até mesmo, no campo da ciência so� cial, que nos interessa mais de perto compreender aqui, uma espécie de hierarquia entre os conceitos. Processo civilizatório e modo de produção, por exemplo, são con� ceitos-bondes. E há os chamados conceitos intermediários – e esse é o caso de nação, dependência, desenvolvimento. Todos têm por fina� lidade nos ajudar entender o mundo real, classificando-o aos nossos olhos. Acredito que, se não fosse pelos conceitos, nós nos perdería� mos em um emaranhado tremendo de fatos e informações de toda natureza. O conceito explica. Nesse sentido, talvez não seja um exa� gero afirmar que ele tem para a História o valor que o sonho possui para a terapia de base psicanalítica. Ferramenta, portanto, indispensável à gestação do conhecimen� to, o conceito varia historicamente, como tudo nessa vida, aliás. Ve� jamos a noção de sertão, uma corruptela do latim desertum. Lá atrás, no século XVI, o termo sertão designava os arredores de Lisboa, en� tão uma cidade acanhada, mas em pleno crescimento. Com a expan� são da urbanização (pelos padrões da época, naturalmente) para além dos muros da capital, o vocábulo sertão passaria a denominar algo como os confins de Portugal. Com a consolidação da expansão marítima, por seu turno, o sertão como que viaja junto, tornando-se sinônimo de mundo não ocidental. 187
Como o colonialismo europeu, por sua vez, avança resolutamente na África, reproduz-se, em colônias como Angola, aquilo que já havia ocorrido antes com o termo sertão na velha capital portuguesa. Ou seja, ele passa a significar tudo que se encontra fora da cidade de Luanda, a nova capital angolana. Sertão abarca então os territórios localizados no interior, o que se convencionou chamar por hinterland. No Brasil, ocupado de fato a partir da terceira década do século XVI, não seria muito diferente. E é isso que o cientista social alagoa� no Dirceu Lindoso demonstra em seu livro Grande Sertão. Diríamos que tudo se encontra lá. A labuta diária pela sobrevivência. O sebas� tianismo. As lutas sociais todas. Os quilombos. O cangaço. Os ne� gros, os brancos e os índios. Em relato histórico que fascina, sem dúvida. Mais: trata-se de um livro estupendo, que transborda os li� mites da ciência social, desembocando em literatura de altíssima qualidade e vigor. É um prazer ler Grande Sertão. A Fundação Astrojildo Pereira, uma vez mais, está de parabéns. A própria capa do livro é um convite à leitura. Ademais, a obra faz lembrar os escritos de Sérgio Buarque de Holanda, um pesquisador que sabia, como poucos, quebrar a aridez da matéria histórica, nar� rando com talento de ficcionista quase. Em tempo: história, em gre� go, significa narrativa, justamente. Seja como for, por intermédio dessa obra singular de Dirceu Lin� doso, percebemos que o entendimento do sertão é, ao mesmo tempo, histórico e geográfico. Mais histórico, até: ou um documento da ad� ministração portuguesa não aludia, no século XVIII, que seria neces� sário levar “o litoral para o sertão” do Brasil? Isto é, a civilização para as terras ignotas. Creio não ser preciso dizer mais. Grande Sertão é um livro absolutamente apaixonado e apaixo� nante. E, também, uma obra irretocável sob a ótica da pesquisa e do minucioso trabalho de reconstituição histórica. Caminhamos pelas veredas desta obra – pois se trata de um verdadeiro passeio pela His� tória do nosso país, e isso desde os seus primórdios – como quem vai ao encontro da mulher amada, isto é, com o coração na mão. O que não exclui a reflexão e o recurso à palavra mais justa. Pelo contrário. Não há contradição alguma nisso – uma atitude válida tanto para os estudos sociais quanto para o amor entre duas pessoas. O velho Antonio Gramsci, pensador e homem de ação marxista, já nos alertava para o fato de que o intelectual sabia mas não sentia e que o povo sentia mas não sabia. Ora, Dirceu Lindoso – como o pró� prio Gramsci, por sinal – soube romper de forma magistral com essa dicotomia, escrevendo um livro de paixão e um livro de razão. Em um 188
Ivan Alves Filho
tour de force dialético, o autor demonstrou que litoral e sertão com� põem o modelo de desenvolvimento desigual em um país sofrido como o Brasil. Sofrido e, mesmo assim, belo, muito belo. Como o corpo da mu� lher amada – ou a paisagem áspera, igualmente nua, dos nossos sertões e seus inconfundíveis tipos humanos. Ao encerrar a leitura dos originais deste livro, fiquei com a im� pressão de que Capistrano de Abreu, Euclides da Cunha, Jorge Ama� do, Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, José Lins do Rego e Gui� marães Rosa adorariam ler Grande Sertão. Todos temos agora a oportunidade de fazer isso por eles. Sobre a obra: Grande Sertão – Os currais de boi e os índios de corso. Dirceu Lindoso. Brasília: Edições FAP, 2011, 232 p.
Grande Sertão, segundo Dirceu Lindoso
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Bom retorno, Marx!
José Claudio Berghella
A
densa obra Bentornato Marx! Rinascita di un pensiero rivoluzionario (Bom retorno Marx! Renascimento de um pensamento revolucionário), de Diego Fusaro, é, sem dúvida, ousada na me� dida em que se propõe fustigar os pensadores atuais quanto à atua� lidade de Marx. É um esforço de leitura integral da obra de Marx na melhor tradição teórica de pensadores como E. Balibar, L. Althusser, G. Lukács, J. P. Sartre, E. Hobsbawn, H. Lefebvre e tantos outros. Esforça-se em manter-se fiel ao seu método de leitura, distinguindo, mesmo criticando este tipo de postura analítica, Marx dos marxis� mos. Afirma que, ao criticar aqueles que pensam Marx morto com o fim do socialismo real soviético, “sem operar qualquer distinção en� tre o pensamento originário de Marx e o marxismo sucessivo, (estes) limitam-se quase sempre a assumir ideologicamente a falência do segundo como prova irrefutável da falência do primeiro, consideran� do Marx ora como “inimigo da sociedade aberta” e “falso profeta”, ora como fundador teórico do “totalitarismo”.1 Nessa linha de raciocínio, preocupa-se o tempo todo em separar Marx como marxiano do marxismo, com o cuidado, sempre, de não separar Marx dos seus intérpretes, procurando, porém, explicitar as condições históricas do surgimento do segundo. Isto posto define seu objetivo de leitura dizendo que “é em torno do duplo foco prospectivo da esperança (dialeticamente declinada em uma filosofia da história “futuro-centrica”) e da crítica radical, havendo por corolário uma éti� ca da libertação do indivíduo (da alienação, do fetichismo, da escra� vidão da fábrica etc.), que queremos construir nossa tentativa de aproximação a Marx (sic)”.2 Seu esboço analítico toca em questões difíceis e complexas que nem sempre as resolve com tranquilidade. Além da questão da rela� 1
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Professor da Università Vita-Salute San Raffaele di Milano é autor de inúmeras obras, entre as quais: Filosofia e speranza (2005), Marx e l´atomismo greco (2007), Karl Marx e la schiavitù salariata (2007). FUSARO, Diego. Bentornato Marx! Rinascita di un pensiero rivoluzionario. Saggi, Tascabili Bompiani, Milano, nov./2009, p. 9.
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ção entre Marx marxiano e o marxismo3 também critica o dogmatis� mo das leituras que seccionam Marx entre um Marx jovem e o da maturidade, sem, contudo, fugir desta esparrela e, os autores que vêm Marx ora como economista,4 ora como filósofo, ora como histo� riador, não deixando, porém, de observar Marx como um filósofo da história.5 Não se limita a essas questões como, inclusive, aquelas que observam a utopia em Marx (nem sempre o marxismo segundo Fusa� ro) como expressão de um certo “messianismo”.6 Sua mais impor� tante afirmação, que não se desenvolve plenamente na interioridade da riquíssima obra, talvez seja a que diz que “não se pode compreen� der a época moderna – esta é a consequência – sem passar por Marx”.7 Fusaro recupera três grandes questões na aproximação com Marx. Primeiro a percepção de Marx como crítica. Segundo como de� vir histórico. Finalmente, sua obra como um canteiro aberto. A obra divide-se em cinco grandes capítulos todos, invariavel� mente, percorrendo cronologicamente a produção de Marx, presente 3 4
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Ibidem, p. 11 (grifos nossos). “(...) enfim, a natural continuidade subexistente – para Lênin como para Engels e para Kautsky – entre pensamento marxiano e pensamento marxista. Operando esta distinção, para nós fundamental, entre o pensamento de Marx e o marxismo cremos haver respondido a uma questão diversa mas complementar àquela (como ler Marx) que faz da estrela polar a nossa navegação: procurando compreender de imediato como não ler Marx, somos próximos à primeira conclusão que Marx não vai ser lido como o provável fundador do marxismo” p. 39. “(...) porque o método marxiano, ainda que sem se constituir em um sistema fecha� do, se configura essencialmente como um padrão largamente unitário, interdiscipli� nar e pluridisciplinar. Assim compreendido, não se presta a ser facilmente compre� endido e estudado pelo especialismo de hoje que caracteriza sobretudo a “divisão universitária do trabalho...(sic)” p. 22. “(...) procuraremos delinear uma aproximação filosófica a Marx, fixando nossa atenção sobretudo na sua antifilosofia (sic) mas tentando, assim posto, traçar uma aproximação escandida nos três momentos da crítica, da filosofia da história e da denúncia do sistema de fábrica como local privilegiado para captar a contradição da modernidade” p. 29. “Corroborado com esta aguda observação marxiana, nos parece em suma poder-se admitir, com boa razão, que Marx, ainda que haja outras suas intenções e suas convicções, foi um filósofo da história em sentido pleno...(sic)” p. 98. “É que a reflexão de Marx dá seu resultado mais apreciável, em um equilíbrio virtuoso do qual vimos ser os dois componentes essenciais de seu pensamento: a instância crítica e a filosofia da história. No sentido de nossa tratativa buscaremos então fazer emergir a principal descoberta de O Capital seguindo o fio condutor da exploração do trabalhador na fábrica e procurando colocar em evidência o implante da filosofia da história que faz fundo a tal descoberta” p. 196. “(...) Marx não faz ou� tra coisa que conferir dignidade dialética, inserindo-a no quadro de uma filosofia da história da transição obrigatória à própria esperança do devir (...)” p. 279. “Fará parte dos nossos parágrafos sucessivos mostrar a centralidade, em Marx, da filosofia da história como dialetização da esperança messiânica no devir e seu entrelaçamento fecundante com a crítica e com a descoberta científica adquirida nos Grundrisse e em O Capital” p. 106.
Bom retorno, Marx!
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em quase todos a preocupação com a filosofia e sua relação com a herança hegeliana. O primeiro capítulo, Bom retorno, Marx! (Bentornato, Marx!),8 esforça-se em demonstrar que Marx não sucumbiu como pensador revolucionário com a falência do socialismo soviético e que, por esta razão, “não é por certo difícil compreender que distinguir Marx das ocorrências dos eventos modernos, como se tratasse de uma longín� qua “voz do passado” em tudo inadaptada para iluminar o hoje, será declará-lo morto e paralisar a força crítica de seu pensamento.”9 Fusaro toca profundamente nas razões que levaram o mundo global “vencedor” a declarar Marx definitivamente morto e dobrar os sinos de seu féretro. “Agora que o modo de produção capitalista tornou-se o protagonista inquestionável no cenário histórico, domina um sen� timento muito difundido, de contornos ambíguos e esfumaçados: a percepção de que o modo de produzir e de viver seja o destino trans� cendente do nosso tempo e que, isto não menos, qualquer coisa con� tinua a faltar”.10 Neste preâmbulo, enfatiza a importância e a excep� cionalidade do pensamento de Marx como filosofia da práxis destacando-o como crítico da filosofia e filósofo da história e essen� cialmente como um autor cuja obra não pode ser interpretada como um sistema fechado e acabado, mas sim como um canteiro aberto. Ao afirmar, enfaticamente, que “fingir que Marx não existe (mais), ou que seja um autor como todos os outros, significa no fundo, faltar com honestidade intelectual, evitar o problema antes mesmo de en� frentá-lo (...) e é por isso urgente, hoje, um renovado confronto com Marx”,11 aponta, assim, quatro razões para este confronto. Primeiro, diante do fato de que Marx é visto como autor amplamente conheci� do. Segundo, a tese de que cada época interpreta de maneira diversa as formas culturais e de produção precedentes. Em terceiro, que com a queda do muro de Berlim Marx não é a verdade infalível. Por ulti� mo, “não só é necessário voltar a medir-se criticamente com Marx, mas é bom que se realize uma verdadeira e própria proliferação her� menêutica, que é um positivo “politeísmo” da interpretação do pen� samento de Marx, pois reside no fato que é a natureza mesma da reflexão marxiana que o possível, para não dizer necessário”.12 FUSARO, Diego, p. 16. O capítulo Bom retorno, Marx!, p. 7 a 44, é composto por quatro sub itens intitu� lados 1. Prólogo. Perseguindo um espectro obsessionante; 2. Um pensador fora do comum?; 3. Enfrentar Marx hoje. Variação sobre o tema; e, 4. O “canteiro aberto” de Marx e o “edifício acabado” de Engels e do marxismo. 10 FUSARO, Diego, p. 9. 11 Ibidem, p. 13. 12 Ibidem, p. 25. 8 9
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Marx pensador da crítica13 é o título geral do segundo capítulo onde Fusaro traça o caminho do pensamento de Marx, seu percurso intelectual, do hegelianismo de esquerda, passando pela crítica da religião até à crítica da filosofia e à práxis demolidora. Dá ênfase à herança hegeliana no pensamento de Marx e antecipa algumas con� siderações sobre suas reflexões na maturidade, em especial os Grundrisse e em O Capital.14 No capítulo Um filósofo da história disfarçado,15 Fusaro dedica grande parte de sua reflexão em formatar sua tese sobre Marx filóso� fo da história procurando sistematicamente as conexões com a filo� sofia e a tradição hegeliana, porém tecendo duras críticas aos auto� res que operam uma divisão na evolução do pensamento de Marx separando-o entre um Marx jovem àquele da maturidade, em espe� cial o crítico da economia política, transformando O Capital em uma obra científica acabada.16 O fio condutor do pensamento de Marx é a crítica que resulta numa esperança – o devir histórico, ou, mais pre� cisamente como chama, a dialetização da esperança. Para funda� mentar essa concepção refaz o percurso teórico sobre o materialismo histórico, a questão da ideologia, do Estado e da superestrutura, para concluir na sua tese sobre a filosofia da história futurocêntrica,17 sem contudo deixar de lado a importante questão do método, em es� pecial na crítica da economia política, e, as classes e o papel da luta de classes. Fugindo da velha tradição eurocêntrica faz uma ousada análise crítica da contribuição de Marx na questão colonial assumin� do, em parte, a tese do pensador alemão de que o colonialismo é um processo civilizatório, ao tempo em que recupera importante consi� Ibidem, p. 29. Marx pensador da crítica é estruturado em cinco subitens a saber: 1. O cérebro da paixão; 2. O exórdio crítico; 3. O dogma dos dois mundos: o Estado e a emancipação real; 4. A religião, ópio do povo; 5. A crítica da filosofia e a práxis demolidora, p. 45 a 96. 15 “Na prospectiva que será própria de Marx de O Capital e dos Grundrisse, a economia vem a ser o sucessor lógico e histórico da teologia: o Absoluto, quer dizer a totalidade das relações sociais entre os homens, se transfere de uma unidade externa (que deve legitimar de maneira transcendente uma certa hierarquização da sociedade) para uma unidade interna que deve legitimar de modo imanente a acumulação ilimitada do capital”. Ibidem, p. 89. 16 Um filósofo da história disfarçado, capítulo terceiro, p.97 a 194, compõe-se de: 1. Uma filosofia da história a serviço da esperança; 2. A concepção materialista da his� tória; 3. Ideologia, ideia dominante e superestrutura; 4. Hegel de cabeça para baixo: uma filosofia da história “futurocêntrica”; 5. Escravos, servos e operários assalaria� dos: o problema da classe social; 6. Uma radiografia do capitalismo: 7. Marx frente ao colonialismo. 17 “(...) torna-se verdadeiramente difícil imaginar que O Capital seja uma obra exclusi� vamente científica (...)”. Ibidem, p.104. 13 14
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deração de Marx, já no final da vida, de que a revolução social pode� ria realizar-se no capitalismo periférico,18 em particular na Rússia.19 O capítulo quarto O mal sobre a terra: a vida da fábrica20 é o ápi� ce de seu trabalho na medida em que dá grande importância à ques� tão do despotismo de fábrica, a alienação, o fetichismo e a consciên� cia, em si e para si, de classe, bem como a função e o papel do Estado. Fixa-se, para tanto, numa acurada leitura dos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, que, segundo ele, é a gênese do pensa� mento da maturidade marxiana, nos Grundrisse, em O Capital21 e, por fim, na Crítica ao Programa de Gotha. Finalmente, em A aventura do materialismo histórico: Marx no novecento22 Fusaro procura, ao mesmo que exercer a crítica ao marxismo do século XX, resgatar a importância da esperança marxiana num mundo melhor. Ao dizer que “a ironia da história quis que o sonho marxiano de um mundo sem classes, sem servos nem patrões e sob o manto de relações transparentes, se revertesse dialeticamente no pe� sadelo orweliano de uma realidade despótica e ditatorial, que, longe de promover a emancipação do homem, o sucumbiu sob novas e não menos opressoras correntes”,23 tem a ousadia de reafirmar sua profis� são de fé no pensamento de Marx ao vaticinar que “a falência de suas profecias não afeta a exatidão de suas denúncias: Marx pode dar voz “Esta última (a pré-história) poderá dizer-se concluída somente no momento em que terminam os antagonismos que animam o mundo moderno, desaparecendo as clas� ses, e a sociedade assumirá uma atitude comunista, garantindo aquela liberdade e aquela igualdade que, no presente, têm uma cidadania meramente formal”. Ibidem, p. 130. 19 “Na perspectiva eurocêntrica de Marx “nenhuma sociedade poderia pegar o trem em movimento, mas nenhuma deveria percorrer toda a série necessária do modo de produção regulamentar”, parando em todas as estações já passadas pela Europa evoluída.” Ibidem, p. 190. 20 “(...) Marx, ao estudar a situação da realidade russa, hipotetizou a possibilidade de uma transição direta da comuna rural russa para o comunismo, “saltando” a etapa do capitalismo”. Ibidem, p. 192. 21 O mal sobre a terra: a vida da fábrica, p. 195 a 307, subdivide-se em: 1. A esfera da circulação: a compra-venda da força de trabalho e a forma deslumbrante do dinhei� ro; 2. Alienação e escravização: os Manuscritos econômico-filosóficos de 1844; 3. Mais trabalho e mais valor: a crítica da economia política e o despotismo de fábrica; 4. O mundo à mercê das coisas: o fetichismo da mercadoria: 5. O reino da liberdade, fim da pré-história. 22 “Neste sentido, os estudos sobre o modo de produção capitalista conduzidos em O Capital e nos Grundrisse assumem a forma de um atento estudo dos motivos e das contradições que, “como muitas minas”, fazem explodir o capitalismo, tornando possível a transição para uma superior forma de existência e de produção, que é a passagem para o comunismo, já assumido nos Manuscritos de 1844 como a solução do “enigma da história”. Ibidem, p. 278. 18
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A aventura do materialismo histórico: Marx no novecento, p. 308 a 327.
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à sensação difusíssima que, no nosso mundo (sempre tão frequente� mente apresentado como intransponível, em uma inquietante deserti� ficação do devir), apesar de tudo, qualquer coisa continua a faltar”.24 É sempre um agradável prazer a leitura de uma obra assim tão densa e de viva reflexão, em especial suas polêmicas questões sobre a atualidade de Marx e a crítica aos marxistas. Seu acurado senso crítico sobre a conversão da crítica radical da ideologia que se trans� forma em nova ideologia não escapa, contudo, de certo ahistoricismo na medida mesma que, quando Marx falava da possibilidade do ca� pitalismo periférico queimar etapas, de certo modo, já prenunciava uma interpretação teórica e, consequentemente, uma práxis a partir da periferia, ou seja, Lênin e a revolução russa. Em outros termos, a crítica da nova ideologia não pode ser eurocêntrica, portanto tem que qualificar-se baseada no método de Marx, no sentido de apreender o real significado da transição direta da comuna rural para o comunis� mo em realizando a crítica por dentro, qual seja como se processou a construção do Estado socialista, baseado na ditadura do proletaria� do e em suas circunstâncias históricas. O que continua a faltar? Infelizmente, Fusaro não se aventura a teorizar e problematizar o que falta e para estarmos al di là de Marx o começo é aqui. Sobre a obra: Bentornato Marx! Rinascita di un pensiero rivoluzionario. Saggi, Tascabili Bompiani. Diego Fusaro, Milano, nov./2009, 374p.
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FUSARO, Diego, p. 308.
Bom retorno, Marx!
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Do PCB ao PPS, ou da renovação à nostalgia Paulo César Nascimento
O
livro O PCB/PPS e a Cultura Brasileira: Apontamentos, de Ivan Alves Filho, é um dos últimos ecos nostálgicos sobre um par� tido que, nascido e ligado umbilicalmente a uma perspectiva internacionalista, foi uma das agremiações políticas mais enraiza� das na cultura nacional do nosso país. Ensaios como este são muito bem-vindos, porque se Ferreira Gullar está certo em dizer que não se pode conhecer a história do Brasil ignorando o PCB, então Ivan está contribuindo para suprir essa lacuna. O autor fala com conhecimento de causa tanto do PCB como da cultura brasileira: membro histórico do Partidão e do Diretório Na� cional do PPS, responsável pela autoria de vários artigos e ensaios sobre diversos temas culturais brasileiros, Ivan Alves Filho navega com facilidade pela história da realização cultural de artistas vincu� lados ao Partido Comunista. Apesar de seu texto não ter maior pre� tensão do que fazer um mapeamento da ligação entre comunistas e cultura nacional – e daí o modesto título de apontamentos –, o leitor certamente concordará que Ivan argumenta convincentemente, enu� merando diversos fatos e citando vários intelectuais, artistas e escri� tores, a favor da estreita ligação entre o PCB e a cultura brasileira. Este enraizamento merece um estudo mais profundo, pois há algo enigmático nessa relação entre cultura brasileira e PCB. O inter� nacionalismo do partido, e a fidelidade irrestrita ao socialismo sovié� tico, muitas vezes, o levou a adotar mecanicamente políticas geradas em outros contextos e que visivelmente não se adequavam à nossa realidade. O levante de 1935 e a perspectiva de “classe contra classe” do Manifesto de Agosto de 1950 são dois exemplos desse tipo de po� lítica. Além disso, a visão dos comunistas sobre cultura, principal� mente durante o stalinismo, era instrumental e tosca, e p ouquíssimos intelectuais, militantes ou simpatizantes do PCB suportaram, por muito tempo as amarras ideológicas que lhes eram impostas sobre suas atividades artísticas. Mas apesar de o PCB ter se tornado uma porta giratória para o entra-e-sai de intelectuais e artistas, o fato de seu apelo ter atraído 196
tantas figuras de proa das letras e das artes brasileiras, durante muitas décadas, não pode ser menosprezado. Como explicar este aparente paradoxo? Talvez uma primeira tentativa de explicação possa ser encontra� da no contexto social, político e histórico do surgimento do PCB. O ano de 1922 está situado no final da chamada “República Velha”, que se caracterizou por um predomínio político das oligarquias de São Paulo e Minas, no vácuo de uma perspectiva nacional, antes refletida na pessoa do imperador, mas que a república não soube substituir. A fundação do PCB ocorre justamente no centenário da independência, quando o Brasil é repensado, processo este que se inaugura com a Semana da Arte Moderna e se prolonga pela década de 30, quando obras como Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, e Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, questionam os pressupostos da formação nacional brasileira. O PCB se insere neste contexto de reflexão sobre o Brasil, colo� cando-se de imediato como um partido nacional. Aliás, não seria exagero afirmar que o Partido Comunista foi a primeira agremiação política com vocação nacional, já que os partidos da República Velha representavam oligarquias regionais, ficando o governo central de� pendente de “costuras políticas” entre as diversas facções políticas estaduais para assegurar-se no poder. Em seus anos de formação, a filiação à Internacional Comunista e a defesa da União Soviética não afastaram o PCB da intelectualidade brasileira, pois era enorme a simpatia e a atração que o primeiro Es� tado socialista exercia entre as forças progressistas e os intelectuais em todo o mundo. Já a partir da década de 30 do século passado, quando o stalinismo chega ao PCB na forma do “mandonismo” de di� rigentes como Diógenes Arruda e posteriormente no culto à personali� dade de Luiz Carlos Prestes, seu efeito embrutecedor logo se faz sen� tir: a cultura passa a ser vista como um mero instrumento da revolução, o que enfraquece os vínculos do PCB com a intelectualidade do país. Ainda assim, é inegável que o PCB conheceu um segundo mo� mento de empatia com os intelectuais brasileiros, quando a crítica ao stalinismo na URSS e a Declaração de Março de 1958 recolocaram o Partido Comunista Brasileiro nos trilhos da realidade política e da cultura nacionais. Embora a fidelidade ao modelo soviético permane� cesse, a dissolução da IC libertou o partido de qualquer ingerência direta em sua estratégia política. Como Ivan Alves Filho assinalou, o jornal Novos Rumos, a revista Para Todos, e o movimento do Cinema Novo foram manifestações impor� Do PCB ao PPS, ou da renovação à nostalgia
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tantes no campo cultural que contaram com a participação decisiva de intelectuais e artistas do PCB ou a ele ligados. Mas também foi impor� tante a postura anti-imperialista assumida pelo Partidão, não só no que tange ao campo econômico e político, mas também contra a crescente influência da ideologia da cultura de massas norte-americana no Brasil. Desgraçadamente, o golpe militar de 1964 interrompeu a cres� cente relação do PCB com a intelectualidade brasileira. Não somente as perseguições, prisões, torturas, assassinatos e exílio, mas tam� bém o fortalecimento da cultura da clandestinidade são fatores que, além de outros, iriam marcar o futuro político do PCB e suas relações com a intelectualidade brasileira. Se há uma crítica a ser feita ao ensaio de Ivan Alves Filho, certa� mente ela se refere à lacuna de registro mais detalhado em torno de alguns complexos e delicados momentos vividos pelo PCB após a con� quista da anistia, mesmo parcial, em 1979, ausências que poderão ser eliminadas na próxima edição, que não deve tardar, tal o êxito deste seu livro. O primeiro desses momentos se refere ao retorno dos princi� pais dirigentes comunistas do exílio a que foram obrigados e trazendo consigo o “racha” de Prestes e de outros dirigentes, como Gregório Bezerra e Renato Guimarães, com a maioria do Comitê Central. Outro é o que envolve a revista Presença, surgida no inicio dos anos 80, e que Ivan Alves Filho coloca como pertencente à tendência “eurocomunis� ta” dentro do partido, mas que, na realidade, foi uma publicação dissidente do PCB, criada por intelectuais da qualidade de Armênio Guedes, Luiz Werneck Vianna, Gildo Marçal Brandão, Marco Aurélio Nogueira, Carlos Nelson Coutinho, Leandro Konder, Luiz Sergio Hen� riques, dentre outros, que tinham acabado de deixar o partido. Além do mais, não se pode deixar de considerar que, a partir de 1979, surgiu, no cenário nacional, o Partido dos Trabalhadores, reu� nindo lideranças religiosas católicas, intelectuais de peso da velha e nova geração, líderes sindicais surgidos na resistência democrática, e ex-dirigentes e militantes da luta armada. E com um agravante: o PT se apresentava como algo novo e diferente na vida política brasi� leira, além do que se tratava de uma organização legal e sem contes� tação e/ou perseguição por parte do governo autoritário. Criou-se, assim, desde aquele então, um espaço novo e atrativo para a intelec� tualidade contestadora. Outro momento a enfatizar foi o da ampliação e do aprofundamen� to das divergências internas no partido, após a queda do Muro de Berlin, por ocasião do IX Congresso, realizado em julho de 1991, no Rio de Janeiro, quando se chocaram as teses congressuais dos três 198
Paulo César Nascimento
grupos em que se dividiu o encontro, culminando com a disputa de três chapas, comandadas respectivamente por Roberto Freire (PE), Oscar Niemeyer (RJ) e Lauro Hagemann (RS), vencida pelo primeiro. A Resolução Política, aprovada por ampla maioria, faz uma correta aná� lise das realidades internacional e brasileira, à época, e propõe um esforço coletivo de homens e mulheres, independente de filiação parti� dária, no sentido de se construir no país uma nova formação política e uma nova forma-partido. O primeiro passo, nesse sentido, deu-se, em janeiro de 1992, com a mudança do nome de PCB para PPS. Não se pode deixar de considerar também duas outras realidades muito adversas surgidas para a atividade partidária. A primeira delas, existente no Brasil e em qualquer parte do planeta, está ligada à repre� sentação social, cujos instrumentos típicos da sociedade industrial – sindicatos, associações, partidos políticos etc. – entraram em declínio com os primeiros passos da “sociedade do conhecimento” e seus meios revolucionários de intercomunicação. A segunda, mais tipicamente brasileira, decorre do modus operandi de se fazer política no país e so� bretudo de se disputar eleições, o que desenvolveu uma cultura do vale tudo, e os pretensos representantes do povo ao invés de se preocupa� rem em servir à sociedade nada mais fazem que servir-se dela, e os partidos se tornam simples guarda-chuva para enfrentar a chuva elei� toral e que, de imediato, são jogados fora, por falta de utilidade. Temos, por conta disso e pela falta de perspectiva de materializar sonho e uto� pia, como antigamente, partidos de fraca ou nenhuma identidade polí� tica, que acolhem pessoas em busca de um espaço de atuação públi� ca, sem quaisquer compromissos com programas ou ideologias. A tradição pecebista só não desapareceu por completo graças ao trabalho da Fundação Astrojildo Pereira, que tenta manter viva a cul� tura construída pelo antigo PCB e dar-lhe continuidade. Se a ideia da Fundação é ajudar na construção de uma nova perspectiva para a esquerda brasileira, então é preciso ampliar o número dos intelectuais que aglutina – tanto os que foram ligados ao PCB como outros que buscam uma opção política –, em torno de um projeto de esquerda democrática e reformista, enraizada novamente na cultura brasileira. É somente assim que poderemos resgatar a experiência do velho Partidão, transformando-a de história nostálgica em presença viva. Sobre a obra: O PCB-PPS e a cultura brasileira: apontamentos. Ivan Alves Filho. Brasília: FAP, 2012, 110p.
Do PCB ao PPS, ou da renovação à nostalgia
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