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Faces de um Sonhar

Pedro Humberto

Eu me lembro como se fosse hoje de quando adquiri minha primeira edição da magnum opus de Neil Gaiman. Era 2014 e eu estava no ensino médio. Após quase 1 ano juntando moedas de um real em um cofrinho, consegui juntar o necessário para adquirir o primeiro volume encadernado da coleção, que em mais de 600 páginas compilava apenas os 19 primeiros capítulos da extensa obra. Eu já era um leitor de quadrinhos na época, entretanto minhas leituras se restringiam quase que exclusivamente ao gênero de “Super Heróis”, Sandman foi meu primeiro contato com algo que, apesar de compartilhar o mesmo veículo, possuía um escopo completamente diferente. A HQ é um misto de filosofia, poesia, ocultismo, religião, misticismo, literatura, caos, dor, melancolia e pura arte. Vocês podem imaginar como essa combinação encantou aquele jovem sonhador.

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A série em quadrinhos iniciou sua publicação originalmente nos Estado Unidos em 1988, pelo selo “Vértigo”, que era uma iniciativa da DC Comics que buscava publicar histórias voltadas a um público mais adulto, e durou até 1996, totalizando 75 edições. O Gibi conta a história de Sonho, um “Perpétuo”, uma entidade transcendental anterior aos deuses, que nasceu junto ao universo. Também chamado de Morpheus, Devaneio, Kaiku, mestre moldador, senhor do sonhar, joão pestana… Ele é a manifestação física dos sonhos, como seu nome sugere. Sandman é o irmão do meio entre os Perpétuos. Seus demais irmãos são Destino, Morte, Desejo, Destruição e Delírio. Eu pessoalmente acho uma pena que em português perca-se a aliteração de Seus nomes que no original seriam Dream, Death, Delirium, Desire, Despair, Destiny e Destruction, todos começados com D.

Em suas histórias Morpheus interage com Deuses mitológicos como Odin e Bastet, está presente em momentos como a revolução francesa, conhece figuras históricas como Shakespeare e Augustos e ocasionalmente até se encontra com personagens da própria DC comics como o Caçador de Marte (No brasil também conhecido como Ajax) e o Mago trapaceiro Jhon Constantine. E enquanto isso também vai nos contando um pouco mais sobre nós mesmos. Suas histórias são sobre identidade, sexualidade, evolução pessoal, gênero, responsabilidades, liberdade, e é claro, sobre sonhos. Todos esses assuntos são sempre trabalhados com a delicadeza e elegância típicas de Gaiman, que nunca se deixa cair no pedantismo e não tenta ser mais do que realmente é: Uma ótima história em quadrinhos.

Dando vida os roteiros do escritor Britânico, vários artistas diferentes ilustraram as páginas de Sandman, cada diferente arco possui um ou mais ilustradores com traços completamente distintos, desde os desenhos mais “sujos”, anatomicamente desproporcionais e quase surrealistas de Sam Kieth até as linhas finas e delicadas de Jill Thompson. Essa variabilidade pode desagradar alguns leitores, que podem gostar mais de um artista e desgostar de outro, entretanto cada diferente estilo de ilustração ajuda a dar o devido tom e ambientação de cada história, que também variam bastante ao longo das edições.

Além das artes, por vezes a escrita de Gaiman também apresenta seus altos e baixos. Mesmo que o material apresente uma qualidade muito acima da média como um todo, existem arcos mais arrastados e mais enfadonhos como “Um jogo de você” e arcos que são quase uma unanimidade entre os fãs, como o maravilhoso “Estação das Brumas”, onde Lúcifer desiste de governar o inferno e entrega a chave do Sheol para Sonho.

Recentemente encerrei minha leitura da saga, foi uma longa viagem pelas 75 edições, fora os spin offs e derivados, e posso dizer com certeza que durante esses nove anos Sandman se tornou um amigo querido. Sabe aquelas histórias que lhe acompanham por muito tempo e que acabam fazendo parte de você? Você cresce com elas, aprende com elas, e claro, como todo relacionamento, é possível que em alguns momentos até brigue com elas, discorde se afaste e fique até mesmo um tempo longe, mas no final vocês fazem as pazes e se reencontram; A história do Sonhar foi assim para mim.

Hoje, embora a minha jornada com os Perpétuos tenha encontrado seu fim, sei que a de muitas pessoas está apenas começando, e pelas mais variadas mídias, pois a HQ teve sua primeira adaptação para live action realizada em 2022, em formato de série com 11 episódios pela Netflix. A adaptação agradou bastante a maior parte do público e da crítica, abrindo assim a porta para uma segunda temporada que já está confirmada pelo serviço de streaming.

A série faz um trabalho de adaptação razoavelmente fiel aos dois primeiros arcos da obra original: “Prelúdios e Noturnos” e “Casa de bonecas”. Alguns fãs das HQs podem estranhar algumas mudanças em personagens, como a mudança étnica que a personagem “morte” sofreu, originalmente a personagem como todos os perpétuos possuía a pele muito alva, na série a simpática entidade recebe vida pela talentosa atriz negra Kirby Howell-Baptiste. Outros personagens ainda tiveram seu gênero trocado, como John

Constantine, que aqui é Johanna Constantine. Entretanto nenhuma dessas mudanças chega a estragar a série que conta com um elenco bem acima da média.

Ainda sobre as atuações e elenco, a maioria agrada bastante, dando destaque para Tom Sturridge que realmente encarnou o protagonista a quem deu vida de maneira espetacular; e a David Thewlis, que deu toda uma personalidade a mais a John Dee, que foi ao mesmo tempo inocente e assustadora. Uma das minhas poucas ressalvas em relação ao elenco é a Atriz Gwendoline Christie, que não transmite em sua atuação a imponência e personalidade que a personagem Lúcifer evoca na obra original.

Um fator que desagrada bem mais é uma certa “Higienização” da série em relação ao material original. Alguns personagens tiveram suas características alteradas para se tornarem mais palatáveis ao público geral, como a perpétua “Desespero” que enquanto nos quadrinhos é uma figura obesa sempre desnuda e descrita como tendo cabelo desgrenhado e úmido, dedos inchados, unhas roídas e quebradiças e dentes tortos e chanfrados, na série é representada apenas como uma moça desleixada e acima do peso, bem longe da figura capaz de evocar desespero da obra original. O próprio protagonista da série, Sandman, é uma figura que por vezes, no início da obra, tem atitudes questionáveis que podem ser consideradas cruéis, que são importantes para que possamos acompanhar o desenvolvimento da personagem, mas a série optou por amenizar ou remover isso.

Acho que posso concluir dizendo que por mais que Sandman seja uma história que fala sobre conceitos antropomorfizados (Como o Sonho, Morte, Desejo, Destino…) ela é uma história, acima de tudo, muito humana. Talvez uma das mais humanas que se pode ter contato. Acho que pela primeira vez alguém conseguiu, por exemplo, transpor o conceito da morte com algo belo, algo que seja realmente parte da sua jornada, e não como algo terrível. A morte que é representada em Sandman é uma amiga que acalenta você após sua jornada.

Sandman é um quadrinho praticamente atemporal, escrito na década de 80, mas que ainda hojeem um impacto gigantesco. Talvez ele seja um dos quadrinhos mais ousados, porque ele não se prende a conceitos como tempo e espaço, em cada uma das oníricas aventuras de Morpheus Gaiman dá um jeito de superar essa métrica.

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