
8 minute read
é a resposta
Por Mikaela Ramos
Ao chegar no bairro Cerâmica Cil e perguntar para um dos moradores onde fica a Fundação Servos de Maria, a resposta é que fica próximo à Igreja Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, e ainda ao ser questionado sobre o que é tal fundação, com um sorriso no rosto, o idoso diz: “-ah, é um lugar que ajuda muita gente aqui”. Na frente do “Servos de Maria”, a aparência é de uma casa comum, se não fosse pelo muro branco estampado com o nome da fundação, porém, assim como a cada passo que se dá ao entrar no mar, entra-se cada vez mais nas profundezas, é do mesmo modo com o local, que na verdade é tudo, menos uma casa comum.
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Dirigindo-se aos fundos da propriedade, observa-se uma estrutura gigantesca, repleta de distintos e acolhedores espaços. À direita, um conglomerado de salas em que mais de 500 crianças e adolescentes frequentam quase que diariamente, diante dos projetos de música, dança, distribuição de alimentos, informática, judô, arteterapia, entre tantos outros desenvolvidos. À esquerda, um ambiente de socialização com cadeiras, em que conversam voluntários que trabalham nos projetos sociais da instituição e pessoas assistidas pelos projetos. Mais à frente, observase uma quadra semelhante a uma poliesportiva, na qual o palestrante fala para dezenas de pessoas sobre assuntos relacionados a fé.
Os trabalhos espirituais acontecem nos dias de quarta-feira. Começam com cerca de 80 médiuns rezando o tradicional terço da Igreja Católica. Depois, eles se encaminham para os espaços onde ocorrem os atendimentos com os pacientes das religiões espiritualistas. Enquanto uns médiuns ficam auxiliando a população na quadra, que assiste a palestra, outros dirigem-se para a sala de fluidoterapia, onde os pacientes receberão o passe energético deitados em uma maca, semelhante ao passe no espiritismo. Já o outro grupo de médiuns se dirige para o singelo espaço de chão batido e estrutura de taipa, chamado “Congá de Pai João”, repleto de retratos de orixás e de imagens de Jesus Cristo, de Santos da Igreja Católica e de entidades da Umbanda Sagrada. É no congá que eles vão receber os passes com as entidades pretos-velhos e a desobsessão com as entidades caboclos, da Umbanda Sagrada.
Comércio troca-troca na parte interna. Foto: Tatiele Sousa.
Os sentidos são inundados de percepções, com o cheiro da defumação com as ervas de alecrim, arruda, guiné, alfazema, benjoim, incenso e mirra, que tomam conta do ambiente e o cântico “defuma com as ervas da Jurema, defuma com arruda e guiné. Benjoim, alecrim e alfazema, vamos defumar filhos de fé” é entoado ao som da batida de tambores, maracás, instrumentos de percussão, e com a voz do pai de santo e criador da Fundação Servos de Maria, Marcos Régis, destacandose em meio aos seus filhos de fé. Marcos é um homem alto, forte e de presença absolutamente notável. Com feições simpáticas e acolhedoras, mas firmes, que logo demonstram a figura importante que ele representa para a Fundação, para os cerca de 80 filhos espirituais dele, assim como para os seus 23 filhos adotivos, concedidos a ele por Deus.
Em todos os dias da semana, todos os meses e todos os anos, o fundador Marcos Régis concilia o desenvolvimento de inúmeros projetos sociais com a paternidade de dezenas de filhos e somado ainda ao sacerdócio de distintas religiões, o que para muitas pessoas parece ser uma conciliação deveras dificultosa.
Contudo, ele atribui o decorrer do que considera ser sua missão de vida não a uma dificuldade, mas sim a uma realização possível devido a integração que tais esferas de sua vida tem, pois em seu ponto de vista, elas se complementam e a espiritualidade universalista é a liga que une todas as coisas e é, portanto, mais ampla do que somente o que pode compreender a religiosidade.
“A gente percebe que essa vivência de ordem íntima espiritual, esse despertar, potencializa também esse lado humano. Observe que as pessoas que tem esses caminhos, digamos assim, têm essa condição maior de se doar, elas têm uma base espiritual muito profunda. Eu não digo de religiosidade, eu digo de espiritualidade, porque quando a gente fala de espiritualidade é preciso que a gente dissocie de religiosidade porque é uma coisa muito mais ampla”, introduziu o sacerdote espiritualista

Mas como falar da cultura, da crença tão ampla sobre a espiritualidade universalista para crianças, adultos e idosos leigos sobre o assunto? Para o sacerdote, este é o cerne da questão. “Nós temos como princípio de trabalho a universalidade do atendimento, então, nós atendemos todas as pessoas porque nós compreendemos que o nosso papel até mesmo como uma casa que tem um cunho espiritual, é de promover uma consciência coletiva de fraternidade universal, onde a gente possa fazer com que as nossas crianças, adolescentes entendam que é preciso que ele se veja como irmão do evangélico, do umbandista, do católico... Então, em respeito às consciências que nós chamamos de consciências incipientes das crianças que estão chegando, que vem de base de formação religiosa distintas, a gente trabalha de uma forma em separado o social do espiritual, neste sentido. Então durante toda a semana temos apenas trabalhos de ordem social, com exceção de um dia em específico onde a casa inteira se volta para o atendimento espiritual. Onde se deixa à vontade a comunidade, onde se deixa à vontade as famílias para que busquem [atendimento espiritual], se assim entenderem, conforme a sua crença e a sua religiosidade. Se entenderem que nós podemos ajudar neste campo, nós estamos ali prontos para isso. Portanto, a gente procura dividir para que essa grande engrenagem que é o Servos de Maria possa funcionar de uma maneira que satisfaça a todos indistintamente”, esclareceu “Pai Marcos”, como carinhosamente o Marcos Régis é chamado por seus filhos, pelas pessoas da comunidade do bairro Cerâmica Cil e pelos seus filhos espirituais. Com esse entendimento exposto por ele, é possível compreender que justamente devido aos fundamentos da espiritualidade universalista cultivarem essa consciência de fraternidade universal, para que isso vigore na prática, todas as diferenças de credo e valores são respeitadas indistintamente.

A Alessandra é uma mulher alta, de cabelos castanhos, olhos dóceis e fala mansa. Ela é esposa, mãe, cursa enfermagem e pedagogia, estagia em uma escola com pessoas com deficiência e é voluntária nos projetos sociais desenvolvidos no Servos de Maria. Muito embora ela não seja participante dos trabalhos espirituais que acontecem nos dias de quarta-feira, Alessandra se considera espiritualista universalista e, portanto, ela simboliza o exemplo do que Marcos Régis indicou quando disse que “é preciso que a gente dissocie [a espiritualidade universalista] de religiosidade porque é uma coisa muito mais ampla”. A voluntária dos projetos sociais não se declara propriamente dita pertencente a nenhuma religião, mas se considera espiritualista porque para além do ambiente religioso, a universalidade no seu ponto de vista é uma cultura e um modo de viver a vida com base no amor e na prática da caridade, do bem servir ao próximo.
“Essa espiritualidade universalista tem muito a ver com o doar, com o se doar. As religiões têm uma função importante na sociedade e ao meu ver, cada uma delas tem um papel e importância, mas o que eu acredito é que dentro de cada religião o que a une com todas as outras é a crença em Deus e a busca por se conectar com Deus. Quando você observa a espiritualidade universalista, o que eu vejo é que ela é uma soma, não dessas várias religiões, mas uma soma de várias pessoas que tem um intuito em comum, que buscam o caminho aonde além de viver, ela possa se doar ao outro, porque nós não estamos aqui meramente por acaso, estamos aqui porque temos um papel importante. Nós estamos aqui por um motivo e o ser humano que desperta para essa realidade, começa a enxergar além dos muros das religiões, começa a comungar da universalidade da espiritualidade e o Servos de Maria é onde tem pessoas que comungam comigo desse modo de viver a espiritualidade universalista. Sobre essa espiritualidade algumas pessoas dizem assim: -’a universalidade da espiritualidade é a união das religiões’ e como eu disse, cada religião tem um contexto e tem uma opinião e a de cada pessoa vai divergir da outra. Então, não é uma união de religiões, é uma união de pessoas libertas de preceitos, dogmas, de pressões religiosas que determinam que só há um caminho. O caminho que leva ao divino é o caminho do amar, do se doar, do servir, é algo que une todos os caminhos religiosos e que transforma a vida, a sua e a do próximo. Dentro do Servos [de Maria], existem várias pessoas que independente de religião estão lá em prol de se doar e ajudar o próximo. A caridade é a minha concepção de espiritualidade universalista”, expressou Alessandra.

Por meio da Fundação Servos de Maria foi que a Alessandra Karla conheceu a Marinete Vieira, que é adepta desse modo de viver a espiritualidade há 6 anos. Para a artesã Marinete, que é filha espiritual de Marcos Régis, a espiritualidade universalista representa uma virada de chave na sua consciência, no seu modo de viver, de ver e absorver a própria vida. Ao longo de seus 46 anos de existência, ela refletiu que os últimos 6 anos em que viveu a universalidade significou um agente transformador da sua jornada. “Na minha vida quando comecei a desenvolver a minha espiritualidade, eu senti uma mudança como se eu fosse uma pessoa antes e agora sou outra depois. Buscando ser um pouquinho melhor a cada dia. Por exemplo, no meu trabalho eu busco em cada peça que faço, pensar no que aquela peça pode representar e simbolizar de positivo na vida do cliente, quais melhores intenções posso colocar durante o feitio daquela arte. Já na minha vida pessoal percebi que ganhei mais forças para compreender as coisas, mudar o que pode ser mudado, aceitar o que não posso mudar e fazer bem a quem eu puder”, refletiu Marinete.

Em outro momento, quando a artesã foi refletir sobre o que a espiritualidade universalista, segundo seu ponto de vista, representa para a coletividade, quase que instintivamente ela direcionou o olhar para a parte de fora do muro do Servos de Maria, onde é possível observar as casas que circundam a Fundação Espiritualista. Marinete direcionou a visão para lá como se buscasse olhar para os próprios moradores do local que compõem a comunidade. Foi então que ela projetou e atribuiu significado ao que acredita que a espiritualidade universalista representa para os outros. “Para mim é a esperança de dias melhores para a humanidade, porque quando você enxerga o próximo como a si mesmo, você vai buscar fazer o bem indistintamente. Não será preconceituoso com os outros, vai se colocar no lugar do outro e por meio da empatia, vai sentir a dor do outro, as alegrias também. Independente de religião, raça, credo. É a união. É a união em prol de um Deus que tem vários nomes, Deus, Oxalá, Jeová. É a consciência de que todos podem ‘sentar-se na mesma mesa e pedir pratos diferentes’”, ponderou Marinete Vieira, citando um cartum que mencionou ter visto há um tempo atrás e que a marcou profundamente.

As personalidades, vivências, credos e caminhos de Marcos Régis, Alessandra Karla e Marinete Vieira são tremendamente diferentes. Contudo, diante de seus relatos, observa-se que o que une suas histórias de vida é essa cultura que congrega para além de concepções de religiosidade, o próprio modo de ver e viver a vida.
De acordo com o sacerdote espiritualista, caso pudesse responder à pergunta sobre o que é a espiritualista universalista somente com uma frase, seria: o amor é a resposta. “Ame. Doe o seu amor, porque quem doa o amor transforma a si e ao outro. O que falta principalmente nas pessoas é só a capacidade de amar ser potencializada, ser exercida, porque muito hoje se fala em amor, mas amor não é sentimento que se engaveta no coração. Ele se materializa nas palavras e sobretudo nas ações, então, eu sempre digo isso para as pessoas, a gente tem que acreditar e se convencer de que só o amor tudo pode transformar, porque quem ama, não consegue ver limitação, quem ama não consegue se ver vencido, quem ama não consegue se ver impedido, tudo pode! Quem ama, tudo pode! Quando a humanidade compreender isso, eu sei que a gente estará vivendo uma nova era de comunhão e fraternidade, em que o amor é a resposta”.
