Revista meiaum Nº 19

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Estava tudo diferente. As árvores altas pareciam ansiosas por algo. Pôde perceber que a mata respirava. As orquídeas a olharam com desconfiança. Teve medo. Lembrou-se de Avó e de sua proibição. Quis voltar pra cama. A terra sob seus pés se movia lentamente, como um grande lençol balançado a quatro mãos. Equilibrou-se. Olhou para as trepadeiras que pareciam cobrir toda a casa, rastejando parede acima. A casa estava mesmo viva, toda ela. Ouviu chamarem seu nome. Era Avó, estava sentada no banco de pedra perto do portão. Tinha sido descoberta. Caminhou

cabisbaixa em direção ao banco enquanto pensava em alguma desculpa. Avó lhe sorriu. Estava também diferente, assim como a casa, estava mais viva. Soninha notou em seus olhos uma doçura que nunca tinha reparado. Parecia mais leve. Pediu que a menina sentasse e começou a lhe contar sua história enquanto lhe afagava os cabelos. Tinha fugido de casa, ainda bem nova, para casar. Sua família não gostava do avô de Soninha. Era uma estória linda, de romance de livro – pensou a menina. Pela primeira vez imaginou que Avó não tinha nascido velha. Durante os anos seguintes viveram muitas coisas naquela casa, que era também ela mesma. Disso a menina já sabia, sentia. Nesse momento Avó fitou-a longamente e com uma delicadeza emocionada pediu a Soninha que cuidasse dos cristais, quando ela não pudesse mais fazê-lo. A menina sentiu um arrepio estranho. Nada daquilo podia ser. No meio da mata respirante, entre orquídeas desafiadoras, Avó a adulava e pedia que cuidasse dos cristais? Não se lembrava de já ter recebido carinhos de Avó. Olhou mais uma vez pra velha. Achou-a bonita. Seus olhos passavam uma tranquilidade fúnebre. Teve medo, muito medo, aquela não podia ser Avó. Correu o máximo que pôde, deixando a velha pra trás. Ofegante, passou pelo quintal e subiu os degraus até a sala da cristaleira. Quando entrou viu Avó, no chão. Seu corpo ressecado e mais velho do que nunca. Suas mãos em forma de gancho seguravam a cristaleira, endurecidas. Avó, ou o que restava dela, parecia agarrar-se àquele móvel com todas as forças que lhe sobravam. Levava no rosto uma expressão de pavor intenso, que fazia com que suas bochechas entrassem cara adentro. A menina tremeu. Pé ante pé, caminhou para seu quarto, abriu a porta e deitou-se. Olhou o relógio do quarto, ainda era cedo. Cobriu-se e es) perou dar oito horas. )

o próprio tempo, faziam Soninha pensar quantos anos Avó teria. Tinha ainda a sala da cristaleira. Uma sala pequena, quando comparada aos outros cômodos. As crianças não podiam entrar lá. A cristaleira era o xodó de Avó, que a mantinha sempre brilhante. Pelo menos era o que diziam os adultos. Nesses momentos do início da manhã era quando a menina podia melhor escutar a casa. Naquela manhã Soninha decidiu que não ficaria na cama até a hora estabelecida. Pisou o mais leve que pôde no chão. Sabia que Avó não estava por perto. Tocou seu pezinho de menina no chão frio de azulejos verdes e sentiu-se levada por eles. Enquanto os azulejos corriam sob seus pés sentiu um frio no estômago. Entrou na sala da cristaleira. Seus olhos esbugalhados quase cegaram com a luz que vinha dos cristais. Entendeu por que Avó não deixava que as crianças olhassem aquilo. Eram muito novos para tanta beleza. O sol que entrava pela janela grande de madeira se refletia nos cristais rosados criando cores indescritíveis. Foi possível ouvir o som das cores fluorescentes. Paralisada, talvez tenha chegado a sorrir. Ouviu alguma coisa e chispou escada abaixo, rumo ao pomar.


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