Revista meiaum Nº 24

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RETRATO

Isabel Calaf não se importa com a falta de esquinas

BRASÍLIA

Jovem e moderna, mas também muito nostálgica

24

Ano 3 | maio 2013

U

www. meiaum. com. br

O CONTO

DO BAIRRO

VERDE

1


Anunciar na meiaum é associar sua imagem a uma revista independente, séria e de qualidade. Não dá direito de publicar fotos de suas festinhas, receber elogios nas matérias ou ser entrevistado por nossos repórteres. Se fizéssemos isso não seríamos nem independentes, nem sérios nem de qualidade, não é mesmo?

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NEM TUDO QUE VOCÊ


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í n d i c e

38 – 40 Papos da Cidade Reflexões, análises e resmungos de quem vive em Brasília

Fora do Plano Quem mente na história do Balão do Aeroporto?

Brasília 61 visões A cidade pela alma de seus habitantes

Capa O conto do primeiro bairro verde do Brasil

Charges do Gougon Juquinha descreve a flora de Brasília

Crônica Zelão só queria ir de carro da 415 para a 309 Norte

Brasífra-me Os poemas-enigmas de Nicolas Behr

Perfil Kathia Pinheiro só ficaria em Brasília por dois anos. Já são 33

Artigo E o mau atendimento nos restaurantes, como fica?

Crônica Brasília e sua nostalgia juvenil

8 12 13 14 23 24 26

38 Opinião Santa Maria ainda parece adormecida

41

Caixa-Preta As distorções do imposto de renda

e Botecos 42 Banquetes Em cada edição, Marcela

Benet visita um restaurante. E ninguém sabe quem ela é

28 – 33

28 34 36

36 – 37


C a r t a

d a

e d i t o r a

Me engana que eu gosto

P

romessas não cumpridas, prazos constantemente desrespeitados, números maquiados, tudo isso parece ser aceitável na política. Evocam-se Platão e Maquiavel para justificar a mentira nesse meio. Os que não a toleram são logo classificados de ingênuos. Os que a toleram parecem se esquecer de que também são prejudicados por elas. E os que mentem tratam logo de inventar outra mentira para consertar a que veio a público. Uma bem tradicional é culpar outras instâncias de poder. Mas há também os políticos mais tarimbados, com cara de pau suficiente para não admitir a mentira nem para a própria mãe. O Setor Habitacional Noroeste é só mais um exemplo dessas mentiras, nesse caso de muitos autores, uma vez que foram anos até o projeto ser colocado em prática. É claro que ficava difícil acreditar que seria aquilo tudo que se prometeu em termos de modernidade, uma vez que a cidade nem estrutura tem para isso. Também não deu para comprar a ideia de que os preços seriam razoáveis, pois se tratava da última área para habitação perto do Plano Piloto. Mas a história de “primeiro bairro verde do Brasil” foi demais. Panfleto divulgado pela Terracap em 2009 anunciava que,

finalmente, o projeto de Brasília estava completo, do jeito que pensou Lucio Costa. Prometia energia solar, gás natural, sistema ultramoderno de coleta de lixo. Dizia que o grande desafio seria “construir prédios sem demolir a natureza”. O desafio era tão grande que, claro, não foi superado. Cidadãos que compraram essa mentira agora têm de lidar com a falta de tudo e precisam ser muito compreensivos. “É preciso entender que o bairro é o nosso grande laboratório e que esse processo de implantações de inovações tecnológicas demanda tempo”, explicou o gerente de Projeto do Noroeste na Terracap, Albatênio Granja, à repórter Paula Oliveira, que assina a matéria de capa. A mentira também é tema da coluna Fora do Plano, que a partir desta edição fica sob responsabilidade do jornalista Chico Sant´Anna, no lugar de Noelle Oliveira. O assunto é o Balão do Aeroporto. Na coluna Caixa-Preta, Miguel Oliveira discorre sobre a enganação que é o imposto de renda. Como disse Platão, “a mentira é perdoável quando atende a interesses do Estado”. Anna Halley


(Kátia Marsicano) Carioca e herdeira da desastrada espontaneidade italiana, é viciada numa boa roda de samba e na doçura musical da bossa nova. Convicta da teoria da conspiração divina, é ambientalista xiita confessa, filha de São Jorge e São Francisco e “mãe” de três gatos e um cachorro. Im-

m e i a u m

paciente com a tecnologia, mas será sempre – irremediavelmente – apaixonada por livros. Ah! É jornalista, graças a Deus!

em

Fe de ão da rsi lizaç ive a i io ec Un iár er la z esp o D órt pe e s) smo de f ou n i rep com mo ali , on alh . Fo ha puLe jorn aria Trab ora abal De a ra em a M sil. ro H . Tr dos com (Ia rmada Sant o Bra na Ze rasília mara 008, terre- a, 2 â d e ir o e B Fo ia ld ia a C , em briu choe m ra istór ar a 1e so o an de s s H a M do G ren io E i”. C do C 13. em ant 20 mp êm ait PI ca S i i Pr lít de de o H a C s, em po ria u o ão d 10, is ce de so ç 20 aK ses . Ven ora as em dio d C s , o i o ait ncên tad “N H i ie sér to no , e o 2 mo 201

Leonardo Arruda

+

u m

n a

pág. 34

8

.3

g pá

E mais... Mateus Zanon pág. 8 Luiz Martins da Silva pág. 8 Cíntya Feitosa pág. 8 Eleonora Vieira de Mello pág. 10 Miguel Oliveira págs. 9 e 41 Gougon págs. 12, 23 e 41 Bruno bravo pág. 13 Daniel Cariello pág. 24 Nicolas Behr pág. 26 Lucas Muniz pág. 34 André Giusti pág. 36 Francisco Bronze pág. 38 Marcela Benet pág. 42 Rômulo Geraldino pág. 42


(meiaum)

Nina Quintana

é uma publicação mensal da editora meiaum de circulação digital conselho editorial: Anna Halley, Carlos Drumond, Hélio Doyle (coordenador) e Paula Oliveira diretora de redação: Anna Halley fotografia: Nina Quintana projeto gráfico e diagramação: Carlos Drumond Publicidade: Sucesso Mídia Comunicações (61) 3328-8046 – barroncas@sucessototal.com.br

(Chico Sant’Anna)

Os textos assinados não expressam, necessariamente, a opinião da Editora Meiaum. Contato: editora@meiaum.com.br

Jornalista, residente em Brasília desde 1958, edita o Blog Brasília por Chico Sant’Anna. Atuou em importantes veículos da cidade, como as TVs Globo e

Acompanhe nossa página Siga @revistameiaum www.meiaum.com.br

g ya Th

SBT, a Folha de S. Paulo, as

o

Rádios Manchete e Capital.

ru

Ar da

Presidiu o Sindicato dos Jornalistas do DF.

págs. 9 e 12

Anna Halley e Hélio Doyle (sócios) SHIN CA 1 Lote A Sala 351 – Deck Norte Shopping Lago Norte | Brasília-DF | (61) 3468-1466 www.editorameiaum.com.br ISSN 2236-2274

Nina Quintana

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rn

a m d pá s vag ar se des ndo i as g. u g 24 , pin ped n na POM al ta Un B) mu diá B, r ro i o sa e lea , na s tór ios .

24

CAPA | Por Ico Oliveira Ilustração em nanquim

É designer gráfico, ilustrador y otras cositas más. Curte navegar pelos mares de concreto da capital, pra talvez descobrir o que vai ser quando crescer.


P a p o s Ilustrações

d a

Mateus Zanon

c i d a d e | moncaiozanon@gmail.com

o que é importante para você é

Folhas urbanas

E as cigarras? Ah! serei vivo

importante para todo o resto e

Agora, úmidas,

Para escutar tão estúrdio trino

nem se importa com o que eu

Monturos sépia

Das goelas secas encantando a

acho. Eu acho mesmo que você

Exalando fartum.

Groelândia,

é uma pessoa legal, mas, se está

Em breve, ocluída

Esse silvo, esse sotaque

tão preocupado em melhorar

A missão do tempo

candango,

a vida dos outros, me dá uma

O silêncio dos vermes:

Enquanto, por aqui, derretendo

ajuda?

Na alquimia dos húmus.

casquinha esquimó

Tem como fazer um cartaz

Clicando no teclado metavocá-

dizendo que o ônibus que atrasa

Veio a cidade

bulos em MSN,

e vem muito cheio todo dia

E seus bueiros.

Metassorisos, tipo: He he he! Ka

não me representa? Rapaz, está

E as folhas secas,

Ka Ka Ka!

uma situação bem complicada

A caminho do mundo,

Luiz Martins da Silva

mesmo. Todo dia é essa história.

Na vocação do estrume,

Se quiser um vazio, tenho que

A entupir bocas

chegar à parada bem antes.

Não representa ninguém

Tem como falar que essa

Ou a cidade se naturaliza

Sou brasiliense, ocupado, tenho

saúde melhorou muito não me

Ou hora dessas o sabiá

um monte de coisas para fazer

representa? Outro dia mesmo

Assoviará faceiro na varanda.

durante o dia e esse seu cartaz

tive que ir às pressas para o Hran

Ou, quando menos se se der

aí não me representa. Aqui no

com minha filha e estava cheio

aroma

Conic os cartazes de “compro

do mesmo jeito, uma confusão.

Sairá da tevê o lobo-guará

ouro”, “chip da TIM”, “atestado

Qualquer hora dessas você pode

querendo,

admissional” me representam

vir aqui almoçar comigo. Não

Invejando dolce vita, almofadas,

muito mais que seu protesto no

repara, não, que a comida é

Enlatados, rações vitaminadas.

Facebook.

simples, mas é uma delícia. Se

Espero que não se incomode,

você não comer muito, fica bem

E ‘tá pensando o quê?

nem sou muito ligado nessas

baratinho. Eu divido a marmita

Que não lhe pegará

coisas de internet, não. Mas

com o meu amigo ali, e dá

N’hora dessas um bicho-de-pé?

como você diz que se preocupa

menos de 8 reais para cada um.

É que não se sabe sabedoria

comigo se a gente nem tem as-

Isso, sim, me representa demais.

Da terra que foi emprestada

sunto pra conversar? Você acha

Não dá para ficar gastando o que

Daí, nas primeiras chuvas,

que todo mundo tem as mesmas

eu ganho com café, sorvete e

Nas ruas, tanajuras ofuscadas.

conversas que o seu grupo, que

internet.

De lobos imaginários.

propaganda dizendo que a


Mas parabéns mesmo pelo

ano da Copa, mas sim estabele-

que trabalha com alguém muito

lotadas.

protesto e por se importar com

cer um patamar, para dele não

importante para que as portas se

Mas tem uma classe em especial

quem mais precisa. Acho que

baixar mais.

abram. E há as variantes, muito

que é tão importante que não

as pessoas têm que se respeitar

Mas onde estão os turistas

usadas pelos adolescentes, como

sabe mais a hora de dar cartei-

mais. Eu sou de Deus, mas con-

estrangeiros?

deixar escapar onde mora ou

rada. Na fila do supermercado,

cordo que ninguém tem nada

Em 2012, recebemos 5,68

onde estuda, desde que seja na

quando faltam caixas abertos,

a ver com as escolhas do outro.

milhões de visitantes externos,

American School of Brasilia.

alguém ameaça o gerente: “Sou

Até fiquei impressionado, por-

4,5% a mais do que em 2011.

Os brasilienses que não têm

advogado”. Na discussão na

que ouvi dizer que essa comissão

Faltam semanas para a Copa das

carteira para esfregar na cara

assembleia do condomínio, a

aí do Feliciano é pras minorias

Confederações e cerca de dois

de alguém parecem já ter se

orgulhosa mamãe enche a boca:

também. Me confundi um pou-

anos para o Mundial. Estamos

acostumado a isso. Nem sempre

“Meu filho é advogado”. Aquela

co, porque o que vocês chamam

30% aquém da meta projetada.

porque são facilmente intimi-

arranhadinha no carro da vaga

de minoria é maioria lá onde eu

A Copa das Confederações mos-

dados, mas porque preferem

ao lado na garagem, antes um

moro, que é bem pertinho de

tra-se mais vantajosa ao caixa da

não comprar a briga. Seria uma

mal-estar entre vizinhos, ganha

onde você mora. Você conhece?

Fifa do que aos cofres nacionais.

briga por dia, não compensa. E a

grandes proporções quando uma

Depois a gente conversa direito,

A plateia será brasileira – 98%

corda arrebenta para o lado mais

das partes afirma que exerce a

que se eu demorar mais aqui

dos ingressos comprados foram

fraco mesmo, para que tornar as

nobre profissão.

perco esse, e o outro só passa

para a torcida verde-amarela. Os

coisas piores?

Nem todo advogado banaliza o

daqui a uns 40 minutos.

dólares vão sair, e não entrar.

E assim senhoras que não sabem

ofício dessa forma, mas tem sido

Cíntya Feitosa

Poucos serão os turistas que

quando parar com o botox e

tão frequente que ajuda a crista-

virão ao Brasil para assistir a tal

com o laquê mandam e des-

lizar a imagem de prepotência.

Cadê os gringos?

preliminar. E nós, contribuintes,

mandam. Policiais abusam da

Quer saber? Quase todo mundo

As Copas do Mundo e das

pagamos a conta.

autoridade mesmo quando não

em Brasília é advogado, é o que

Chico Sant’Anna

estão trabalhando. Jornalistas

mais tem nesta cidade. No dia

se valem do poder da imprensa

em que você for juiz e decidir

para resolver problemas pessoais.

alguma coisa, aí, sim, venha tirar

Assessores de parlamentares

onda para cima de mim.

entrada de turistas estrangeiros.

Pare o mundo porque sou importante

comportam-se de forma mais

Eleonora Vieira de Mello

O Brasil não consegue mudar

A cultura da carteirada faz mes-

arrogante que os próprios. Desse

muito o perfil e a quantidade

mo parte da realidade de Brasí-

jeito vai faltar espaço para tanta

de estrangeiros que nos visitam.

lia. Se você não é alguém muito

gente importante numa cidade

A DERRAMA

A meta é alcançar 8 milhões

importante, é filho de alguém

só. Deve ser por isso que nos

Ninguém pode alegar o desco-

de turistas por ano, segundo o

muito importante ou é casado

eventos brasilienses as áreas VIP

nhecimento da lei. É o que diz

planejamento do governo Lula.

com alguém muito importante.

(já foi o tempo em que havia

a lei, e lei é lei. Mas o cidadão

Não são 8 milhões apenas no

Em alguns casos, basta informar

só uma) estão cada vez mais

comum não tem o hábito de ler

Confederações estão inseridas na criação de uma nova imagem internacional do Brasil. Visam ainda a mudar o patamar de

9


o Diário Oficial, apenas as leis

2008. No ano passado, cobrou o

com as obras do governo. Depois,

e Norte. Com a contribuição de

com grande repercussão social

referente a 2007. É a lei, alegam

teria de considerar que o cidadão

jornalistas e políticos mal-infor-

são divulgadas pela imprensa

sorridentes os tecnocratas que

não tem culpa – além daquela de

mados, Brasília passou a ser, para

e só contadores e tributaristas

vibram a cada real arrecadado,

desconhecer a lei -- por não ter

muitos, apenas a área central do

conhecem o emaranhado que

como vibravam os portugueses

pagado o imposto no ano devido.

Distrito Federal.

é a legislação tributária, feita

que faziam a derrama e provo-

A Secretaria de Fazenda é que

Até hoje há os que pensam assim,

para que poucos a entendam.

caram a chamada inconfidência

deveria ter cobrado no devido

por desinformação ou por achar

Ninguém sabia, pois, que doa-

mineira.

tempo, para evitar ao contribuin-

que limitando Brasília ao Plano

ções estão sujeitas a imposto no

É a lei, tudo bem, e impostos

te os ônus das multas e dos juros.

Piloto estão valorizando as cida-

Distrito Federal. Azar de quem

têm de ser pagos, especialmente

E, finalmente, o governo poderia

des-satélites. Pois é o contrário:

não sabia, dirão os tecnocratas

pelos mais abonados, para, em

fazer a cobrança ano a ano.

restringindo a denominação de

da tecnocrática Secretaria de

tese – e só em tese mesmo e na

Ah, e quem já conhecia a lei,

Brasília ao Plano Piloto, estão é

Fazenda do governo do Distrito

propaganda governamental –

por ter contadores e advogados

discriminando as populações das

Federal. Ninguém pode alegar o

reverterem em benefício da po-

à disposição, escapou do ITCD

cidades-satélites, como se não mo-

desconhecimento da lei...

pulação, especialmente a mais

facilmente: declarou doações

rassem na capital da República.

E é com base no artigo 142

pobre. Mas um governo que se

como se fossem empréstimos e

Brasília é todo o Distrito Federal,

do Código Tributário e na Lei

diz democrático e popular tinha

transferiu imóveis por valores

brasilienses são todos os nascidos

3.804/2006 que a Secretaria de

a obrigação de tratar o assunto

baixos e fictícios.

no Plano Piloto, nas cidades-

Fazenda está agora cobrando o

de outra forma, e não pensando

Miguel Oliveira

satélites e em cada pedaço do

ITCD, a sigla (tecnocrata adora

exclusivamente em encher os

sigla) do Imposto sobre Trans-

cofres para, quem sabe, diminuir o

da República. Faz falta um políti-

impacto da absurda e lesa-Brasília

Tudo é Brasília

construção de um estádio (arena,

Os políticos têm medo de

DF de Brasília e acabar com essa

corrigirão os modernosos tecno-

chamar o Distrito Federal de

bobagem.

cratas rindo de nossa ignorância

Brasília. Acham que, se falarem

Hélio Doyle

não pagaram nos últimos cinco

sobre a diferença entre uma coisa

em Brasília, parecerá que estão

anos, acumuladamente mesmo.

e outra) que custa mais de R$ 1,2

se restringindo ao Plano Piloto,

O pai que doou dinheiro aos

bilhão aos cofres públicos.

excluindo as cidades-satélites de

filhos, a avó que colocou a casa

Um governo realmente preocu-

suas palavras e promessas. Essa

Notícias do paraíso

em nome dos netos, enfim,

pado em ser transparente peran-

distorção começou quando o go-

Sempre que acordo com o

quem doou “bens e direitos”

te a população teria, primeiro,

verno do DF, em uma gestão de

humor piorado, indignada com

tem de pagar o imposto. E

anunciado que o imposto ape-

Joaquim Roriz, resolveu chamar

o que tem sido feito da cidade

com enormes juros e multas,

lidado de ITCD passaria a ser

de Brasília a região administra-

que escolhi para viver, triste

pois a Secretaria de Fazenda

cobrado. Anunciado amplamen-

tiva que engloba parte do Plano

com a prevalência da sacana-

está cobrando o devido desde

te, em todos os meios, como faz

Piloto, especialmente as Asas Sul

gem, da violência e da incúria,

missões Causa Mortis (o latim é essencial, para passar seriedade) ou Doações de Bens e Direitos. E cobrando o que os cidadãos

10

retângulo que conforma a capital co que perca o medo de chamar o


recorro a um segredinho que é

meses o lixão da Estrutural

de. O texto ganhou destaque

tiro e queda. Poderia meditar

será história. Se até o Banco

no site da Agência Brasília.

na Ermida, mas não é seguro.

Interamericano de Desenvolvi-

Descreve o momento em que

Poderia caminhar perto de

mento, segundo um dos textos

uma das artistas contratadas

casa, mas é perigoso também.

da agência, está empolgado

para se apresentar na festa de

Quando quero fugir um pouco

com os projetos, por que você

aniversário na Esplanada não

da realidade, digito o endereço

não pode dar crédito a Agnelo

se contém diante da beleza de

eletrônico da Agência Brasília,

Queiroz e companhia? Tenha

“balões cruzando docemente o

o portal oficial de notícias do

paciência, ele já explicou que

céu de Brasília ao alvorecer”.

governo do Distrito Federal.

quando assumiu “a situação

No texto, Agnelo reconhece

Ah, como me traz paz ler as

era de caos” e que teve de colo-

haver “inegáveis problemas em

novidades do dia, ver as fotos

car “a casa em ordem”.

vários setores”, mas explica que

do nosso sorridente chefe do

E como me acalma ler que “a

“as melhorias em muitos deles

Executivo posando de jaleco

integração das forças de Segu-

já se fazem sentir concreta-

para resolver os problemas da

rança Pública no DF, organi-

mente”. Ele poderia discorrer

saúde pública ou apertando a

zada pelo governador Agnelo

sobre elas, mas preferiu se

mão de gente importante para

Queiroz, reduziu os índices de

concentrar no fato de “nosso

mostrar como tem prestígio!

criminalidade nos últimos 12

bom Deus” ter feito com que

Sabia que somos líderes em

meses”. Caíram sequestros-re-

todos esses “projetos estrutu-

transplantes de coração? E

lâmpago, latrocínios, estupros.

rantes” tenham coincidido

penso como somos injustos

E o melhor: “a maioria dos

com a realização das Copas

com esta gestão, que tanto tem

assassinatos tinha conexões

das Confederações, no mês

feito por nós, ingratos cidadãos

criminais e não foi de cidadãos

que vem, e do Mundo, no ano

que não sabemos nem dar

vitimados por infortúnios, o

que vem. Teremos “muitos

valor a uma arena de uso múl-

que reforça que a qualidade da

legados desses dois grandes

tiplo que insistimos em chamar

segurança no DF é uma das

eventos”, segundo ele nas áreas

de estádio.

maiores do país”. Que alívio.

de mobilidade, segurança e

Poxa, este governo nos devol-

Na semana seguinte ao aniver-

infraestrutura. Eu sei que você

verá o Planetário de Brasília,

sário de 53 anos de Brasília,

duvida disso, mas entenda

fechado há mais de 15 anos,

me emocionei com o artigo

que legado é aquilo que vem

e promete que será “um dos

assinado pelo governador

depois. Enquanto espera, abra

mais modernos do mundo”.

publicado no jornal preferido

o coração e relaxe com uma

O lendário aterro sanitário

dos brasilienses, que sempre

boa leitura:

vai ficar pronto, sim, deixe

traz boas notícias e lindas fotos

www.df.gov.br.

de ser agourento. Em poucos

das flores que enfeitam a cida-

Anna Halley

11


p o r

ch i c o

F o r a

d o

s a n t ’ a nn a

c hic osa nta nna @h otmail.com

P l a n o

Sem respostas O triste fim do Bambolê da Dona Sarah coloca em xeque a credibilidade do GDF diante da opinião pública. Quem fala a verdade, quem mente nos informes do GDF? A Comunicação da Copa, que diz haver autorização do Ibram, ou este, que nega? Mais grave do que isso: quem determinou o abate das árvores foi punido? Abriram sindicância para apurar responsabilidades? Houve queixa por crime ambiental? A multa do Ibram será paga por quem cometeu o erro ou pelo contribuinte? É cobrada ainda do governo a falta de debate prévio com a comunidade sobre tal destruição, classificada na nota do GDF de “legado à cidade”. Enquanto não há as respostas, o Balão do Aeroporto vira o Embolado do Aeroporto. Quilométricos engarrafamentos aporrinham os moradores do Entorno Sul, do Gama, de Santa Maria e do Park Way. Todos ainda convivem

Balão do Aeroporto: quem mentiu?

com as obras do Expresso DF, pelo menos seis

Árvores cortadas, terra arrasada. O estrago está feito. Um caos viário e a desilusão tomam conta do Balão do Aeroporto, outrora cartão-postal da capital. Ali surgirá um mergulhão, dividindo em dois o Bambolê da Dona Sarah. Por não ser obra para a Copa das Confederações, pergunta-se por que não ter se esperado até 15 de junho, data do único jogo na cidade. Mais grave é a troca de informações desencontradas no GDF. Quando da derrubada das árvores, em 8 de abril, a Comunicação para a Copa se apressou em afirmar que tudo acontecia “com base nas regras impostas pela legislação ambiental. A ampliação da via conta com estudo de impacto ambiental e licenciamento ambiental emitido pelo Instituto Brasília Ambiental – Ibram”. No Ibram, a história é outra. Em 16 de abril, anunciou multa de R$ 150 mil ao DER pela “supressão não autorizada das árvores do Balão do Aeroporto”. À mídia, o secretário de Meio Ambiente, Eduardo Brandão, afirmou que o certo teria sido solicitar antes a licença de obras e a autorização do corte das árvores.

gem de hecatombe ambiental.

meses atrasadas. Para os turistas que vierem assistir à abertura da Copa das Confederações, restou a paisa-

De olho no trânsito Existe um aplicativo de GPS social para telefones e tablets chamado Waze, que informa como anda o trânsito. Em tempos de Lei Seca, a garotada o usa para ser alertada de blitze. O mais novo usuário do Waze é o deputado distrital e corregedor da Câmara Legislativa Cabo Patrício, ex-policial militar. O GDF já teve seu secretário da Juventude, Fernando Neto, exonerado por divulgar no Twitter as ações do Detran-DF. Mas pode ser que Patrício só deseje usar o Waze para saber quais são as melhores rotas para chegar ao poder.


Brasília 61 visões

Bruno Bravo bruno.recife@gmail.com

V

I s a b e l C a l a f, 9 0 a n o s

enceslau Calaf e Isabel Calaf Clariana eram apenas

Chegam por fim à 103 Sul. Os meninos jogam bola nos canteiros

crianças quando a irmã dele e o irmão dela ficaram

das obras dos prédios residenciais. Os peões compartilham o

noivos. Os irmãos mais novos receberam dos pais o

racha com os irmãos Calaf.

dever de acompanhar o casal nos passeios pelas praças e ruas de

A situação vai melhorando. Venceslau Calaf chega a trabalhar

Barcelona, na Catalunha. “E, acompanhando os noivos nos seus

na cozinha para Kubitschek. Os filhos entram na UnB, Isabel

encontros amorosos, acabamos também nós nos apaixonando”,

se encontra por fim apaixonada por Brasília, e o destino de

Isabel conta com seu sotaque catalão, pouco afetado pela língua

Venceslau Calaf parece se cumprir.

portuguesa, embora já esteja no Brasil há 60 anos.

Isabel Calaf Clariana de Calaf tem 90 anos. Está sentada à mesa

Venceslau Calaf alimentava o sonho de morar no Brasil.

do restaurante do filho caçula. Vem todos os dias. Prepara até

Acompanhava as notícias do País pelos jornais de domingo.

oitenta cafés nos almoços mais movimentados. Às vezes serve

Depois da Guerra Civil Espanhola, com o fascismo de Franco, a

um biscoito de acompanhamento, às vezes dois. Mas não explica

família se muda.

por quê. Diz que viu Brasília nascer, crescer e envelhecer, e por

Um dia, já em Bento Gonçalves (RS), Venceslau entra em casa

causa disso se sente um pouco mãe da cidade também.

com a boa-nova: seria construída a nova capital do Brasil. Os

“Dizem que Brasília não tem esquinas. Mas quem nesse mundo

Calaf se mudam mais uma vez.

precisa de esquinas? As pessoas precisam de amigos.” Este retrato é parte do projeto Brasília 61 visões. A intenção do fotógrafo é revelar a cidade pela cara das pessoas, anônimas ou não, e relatar sua relação com a capital.

13



TEXTO Paula Oliveira pa u l a o l i v e i r a @ m e i a u m . c o m . b r

Era uma vez

o Cerrado Brasília ganhou um setor habitacional ecológico e moderno. O Noroeste é arborizado, o tratamento do lixo é revolucionário e as ruas são iluminadas e cheias de calçadas e ciclovias. Parece irreal? É mesmo

15


O

Setor Habitacional Noroeste foi vendido à sociedade como o primeiro bairro ecológico do Brasil. Os catálogos e os vídeos divulgados pelo governo, mais precisamente pela Companhia Imobiliária de Brasília (Terracap), e pelas construtoras propõem cenário arborizado, com espaço para pedestres e ciclistas circularem à vontade – e vista para o Parque Burle Marx. “Um privilégio para poucos”, dizia um panfleto da Terracap. Prometeu-se uma região sustentável e em harmonia com o meio ambiente. A coleta de lixo seletiva e a vácuo tiraria das ruas os incômodos caminhões. A rede elétrica subterrânea evitaria a poluição visual. O Cerrado seria preservado e integrado às construções. A Terracap lançou até mesmo o Manual Verde do Noroeste, em 2009, ano da licitação do primeiro lote de terrenos, com exigências para as construtoras. Janelas grandes, para potencializar o uso da luz natural, sistema de aquecimento dos chuveiros por energia solar e complementado por gás natural. Cada prédio deve dispor de sistema próprio de coleta de água da chuva para irrigar os jardins. Seguir o manual não deveria ser opcional, mas construtoras procuradas pela meiaum reclamaram da impossibilidade de cumprir à risca todos os itens do documento por falta de infraestrutura básica. É o caso do método de coleta de lixo – uma das promessas do governo do Distrito Federal era a instalação de um sistema pneumático. As construtoras reclamam, mas não topam se pronunciar oficialmente sobre a inércia do poder público. Talvez se expuserem os problemas se deixe de fazer vista grossa para, por exemplo, as coberturas. Os edifícios deveriam ter seis andares, e a cober-

tura poderia ser parcialmente explorada, mas o que se vê nas plantas dos empreendimentos é o sétimo andar quase totalmente aproveitado, seja com coberturas privadas, seja com áreas coletivas para lazer. De qualquer forma, a Terracap reconheceu o atraso e condicionou o prazo das construtoras para construir à sua obrigação de fornecer a infraestrutura básica. A decisão foi publicada na edição de 13 de março do Diário Oficial do Distrito Federal. Em abril, cerca de 40 apartamentos estavam ocupados, três prédios prontos para morar e quatro em fase de acabamento. Três edifícios comerciais também estavam em obras. Na primeira etapa do Noroeste, prevista para ficar pronta em 2014, estão sendo erguidos prédios de cinco quadras – da 107 até a 111. Em todo o setor, serão 20 quadras. A veterinária Larissa Vasconcelos Pereira é proprietária de um apartamento de três quartos no Noroeste. “Só gostaria de me mudar com a minha família quando houver condição mínima para a gente morar lá, mas também não vale a pena ficar pagando aluguel enquanto tenho um apartamento meu e novo para viver”, pondera. A grande chateação é por se sentir enganada e abandonada. “Paguei caro pelo imóvel, vou pagar caro também para morar em um bairro tão moderno e quero, no mínimo, ter retorno à altura.” Apesar da revolta, está ansiosa para se mudar. “O fato de ser um sonho ter um apartamento tão bom ofusca esses problemas.” O advogado Antônio Custódio Neto mudou-se da Asa Sul para o Noroeste em janeiro e está frustrado. Comprou o imóvel atraído pela proximidade com o Plano Piloto e pela proposta de ser ecológico. “O Noroeste nasceu com o selo ecológico,


mas terminou com o estigma de um bairro poluidor”, lamenta. Diz que quase nada do que viu nos anúncios é realidade. Mesmo sem calçadas, ciclovias, transporte público, escolas, o tempo para o pagamento do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) já está correndo. Os proprietários pagam ainda a Taxa de Iluminação Pública, apesar de não receberem o serviço. Os moradores dos primeiros apartamentos entregues queriam viver em uma cidade-parque, mas por enquanto estão em um canteiro de obras. É natural que haja alguns transtornos em um setor ainda em fase de construção. Porém, a ordem dos fatores, aqui, altera muito o resultado. A Terracap deveria ter providenciado a infraestrutura básica para depois as construtoras entregarem os prédios, como prometido. O

250 hectares

de área rica em lençóis freáticos e em fauna e flora virarão 20 quadras nada sustentáveis. compromisso era ter toda a infraestrutura pronta quando o primeiro morador estivesse instalado, declarou o então governador José Roberto Arruda, em setembro de 2009. “As obras começam hoje e não param mais. Aqui não teremos os mesmos problemas verificados no Sudoeste e em Águas Claras.” Só uma das mentiras que compõem a história do setor habitacional que serviria de “modelo para o País”.

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Nobre para uns, valiosa para outros

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O Noroeste está em uma área de 250 hectares que antes abrigava um grande pedaço de Cerrado intacto. Lucio Costa, urbanista que desenhou o Plano Piloto, abriu a possibilidade, no documento Brasília Revisitada (1987), de se construir na área um conjunto habitacional para a classe média, perto da Asa Norte, desde que não interferisse no desenho da cruz. Ali era uma zona de amortecimento do Parque Nacional de Brasília, pertencente à Área de Preservação do Planalto Central. A zona de amortecimento é o entorno de uma unidade de conservação. As atividades humanas ficam sujeitas a restrições para minimizar os impactos sobre a unidade. O novo setor fica entre o Parque Burle Marx e a Área de Relevante Interesse Ecológico Cruls. A Arie Cruls, com 55 hectares entre a Epia e o Noroeste, foi criada para atender a uma das exigências do Termo de Ajustamento de Conduta 6, de 2008, firmado entre o governo do DF, a Terracap e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).

Era condição deste último para liberar a licença de instalação do setor habitacional. O terreno servia como amortecedor das águas pluviais que naturalmente desembocariam no Lago Paranoá. As obras provocaram o assoreamento do lago e o afugentamento de animais. A instalação do setor habitacional deve, futuramente, sobrecarregar as galerias de águas pluviais e o trânsito na Asa Norte e ajudar na degradação da vegetação que restar. Começou-se a falar no Noroeste ainda na década de 1980, durante o governo de José Aparecido. Dois projetos para o setor chegaram a ser apresentados quando Cristovam Buarque governava o DF (1994 a 1998). O primeiro não passou pelo crivo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), e o segundo teve resistência de órgãos ambientais, que queriam a redução do número de habitantes. Previa 80 mil moradores. A Terracap queria lucrar com a venda das terras. O setor imobiliário poderia jogar os preços lá em cima, por ser a última área própria para habitação próxima ao Plano Piloto. Em 1999, a própria

Associação de Empreendedores do Mercado Imobiliário (Ademi) contratou o arquiteto Paulo Zimbres, o mesmo que havia projetado Águas Claras, para redesenhar a proposta para a exploração da região. Doou o projeto à Terracap pelas mãos de Paulo Octávio, dono da construtora que leva seu nome e agora ex-vice-governador do DF. A gentileza foi aceita pelo então governador Joaquim Roriz, mas não era sua prioridade, tanto que só lançou o projeto da “ecovila”em 2005. Era prioridade, no entanto, para José Roberto Arruda, então secretário de Obras. Em 2006, Arruda foi eleito governador e Paulo Octávio, o seu vice, e o novo bairro sairia do papel de qualquer jeito. Era promessa de campanha. O projeto foi adaptado para reduzir a quantidade de habitantes – de 80 mil para 40 mil. Posteriormente, foram acrescentadas novas questões ecológicas, como o aumento do Parque Burle Marx de 250 para 280 hectares. Para justificar a exploração de uma área que ainda mantinha o Cerrado intocado, Arruda prometeu tudo o que podia e o que não podia. Funcionou. Na prática, po-

rém, o Noroeste, já habitado, está longe, muito longe de ser verde, ecológico, sustentável ou seja lá qual for a expressão mais apropriada. “O plano era garantir tudo isso antes de abrir para os moradores. Pena que não foi feito conforme previsto”, afirma Cassio Taniguchi, que era secretário de Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente no governo Arruda. Ficou com ele a missão de convencer a sociedade de que tudo daria certo. No fim de 2009, ele deixou o cargo por causa do escândalo da operação da Polícia Federal Caixa de Pandora, que posteriormente abreviou a gestão de Arruda. Quando este deixou o DEM, Taniguchi, eleito deputado federal pelo mesmo partido, voltou à Câmara dos Deputados. Hoje é secretário de Planejamento e Coordenação Geral do Paraná. A destruição do Cerrado em uma área rica em lençóis freáticos, fauna e flora parecia compensar. Arruda, Paulo Octávio e companhia sabiam que a venda das projeções encheria os olhos das construtoras, tão sedentas por liberação de qualquer área dentro do Plano Piloto ou próxima a ele. A arrecadação da Terracap com o primeiro


lote de vendas – as projeções das cinco primeiras quadras –, em 2009, foi de R$ 1,7 bilhão. A Terracap informa que cerca de R$ 400 milhões foram investidos em infraestrutura básica e viabilização do bairro.

Índios ainda brigam na Justiça Além de desmatar uma área de vegetação nativa, a construção do Noroeste tem outro estigma. Grupos indígenas – fulni-ô tapuya, tuxá e kariri-xocó – se recusaram a deixar a terra por várias vezes, sob o argumento de que lá viviam havia mais de 30 anos e de que a área lhes é sagrada. Nem a Fundação Nacional do Índio nem o governo local reconheceram o lugar como território indígena, uma vez que as comunidades vieram de outras partes do Brasil, não eram nativas. Ainda no primeiro semestre de 2009, o Ministério Público Federal chegou a recomendar a suspensão da licença para construção, uma vez que a Terracap não havia cumprido o compromisso de solucionar a questão fundiária da comunidade indígena – estabelecido no Termo de Ajustamento de Conduta 6, de 2008. Com o reforço de apoiadores, na maioria estudantes, os índios entraram em conflito com trabalhadores das construtoras em 2011, quando começaram as obras na área do chamado Santuário dos Pajés, já no governo de Agnelo Queiroz. As construtoras só conseguiram tocar as obras após decisão judicial. O MPF, por meio de ação civil pública, recomendou, no segundo semestre de 2011, que a área a ser reservada até decisão judicial para os grupos indígenas fosse de 50 hectares – as quadras 307, 507, 707, 108, 308 e 508, além das comerciais 8 e 9. O Tribunal Regional Federal da 1ª Região estipulou que o terre-

no preservado temporariamente fosse de 4,1 hectares – parte da quadra 108. Nessa área, as construtoras estão proibidas de vender, construir e desmatar. O processo está em andamento na 2ª Vara da Seção Judiciária do DF. Os integrantes da tribo kariri-xocó fizeram acordo com o governo local para serem trans-

R$ 400 milhões

foi o investimento na infraestrutura básica, ainda muito precária. feridos para os 12 hectares que lhes foram reservados no Parque Burle Marx para moradia – de acordo com o termo de 2008 –, mas isso ainda não ocorreu por embargos jurídicos. Eles lutam por moradia. Já os outros querem a preservação da área de 50 hectares por questões religiosas. Segundo o TRF, há outra ação em andamento: o Conselho Indigenista Missionário quer anular a licença ambiental para a construção do bairro. Os grupos querem manter intacto apenas o Santuário dos Pajés. “São áreas insubstituíveis e o que a Constituição Federal manda, no caso de ser terra indígena, é que se retire tudo o que foi construído”, diz Ariel Foina, advogado do grupo fulni-ô tapuya. Na quadra 108, há prédios em construção e isso aproxima muito os índios das obras. “É complicado porque estão a 10 metros dos canteiros”, diz Foina.

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Da propaganda à realidade

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O governo de Joaquim Roriz foi bastante criticado por ambientalistas por ter anunciado o Noroeste como ecovila. “Realmente não era bem isso. Na verdade, o bairro é sustentável”, classifica Albatênio Granja, gerente de Projeto do Noroeste da Terracap. Entende-se por sustentabilidade o equilíbrio entre o avanço econômico, o atendimento às necessidades da população e a preservação do meio ambiente. Para os mais radicais, é preciso ainda reaproveitar o lixo, cultivar o próprio alimento e trabalhar em comunidade. O Noroeste não será autossuficiente em nada. Não há, por exemplo, previsão de hortas comunitárias nem do envolvimento dos moradores em ações sustentáveis, como compostagem do lixo orgânico. “Há vários níveis de mensuração da sustentabilidade e estamos trabalhando com o mais baixo”, justifica Granja. O modelo de sustentabilidade eleito pela Terracap é o Leadership in Energy and Environmental Design (Leed), certificação concedida por uma organização norte-americana. Para conse-

gui-la, o Noroeste precisaria atender a algumas exigências. A primeira, registrada no Manual Verde do Noroeste, é de que o projeto seja elaborado para uma comunidade já desenvolvida e com transporte público. No Noroeste, não há nem um nem outro. É necessário haver coleta seletiva de lixo. Também não tem. Os prédios precisam estar equipados com mecanismos que ajudem os moradores a economizar água e luz. Isso existe. A distribuição de energia elétrica, no entanto, é improvisada – instalada para abastecer as construções, quebra o galho dos prédios já prontos. O uso do automóvel deve ser desestimulado. Em prédios que têm, no mínimo, duas vagas na garagem para cada apartamento, fica complicado. Além das garagens subterrâneas, cada edifício tem estacionamento amplo. Existem outras certificações para construções verdes. Consideram a quantidade de gás carbônico que os materiais utilizados nas obras produziram ao serem fabricados. São avaliados, ainda, o impacto social e econômico do empreendimento na região. “O Leed é muito bom e muito moderno, mas leva em conta

só a questão verde, o social e o econômico ficam de fora”, diz Sibylle Muller, engenheira civil e empresária da área de certificação da construção civil em São Paulo. Sibylle afirma que, para ter qualquer certificado verde na construção civil no Brasil ou em qualquer lugar do mundo, a comunidade precisa participar e o poder público precisa providenciar a infraestrutura. “É um contrassenso ecológico, por exemplo, retirar a mata nativa para colocar outra no lugar. Ou prometer sistema pneumático de coleta de lixo sem aterro sanitário”, analisa. Para ela, esse sistema é luxo desnecessário, visto que, se houver cultura de seleção de lixo entre os moradores e destinação por parte do órgão público responsável, o processo é bastante eficaz. A coleta de lixo pelo sistema pneumático, subterrâneo e a vácuo funcionaria assim: em cada prédio, seriam instaladas três entradas para os dutos de sucção – um para lixo seco, outro para orgânico e o terceiro para material não identificado. Os sacos de lixo seriam sugados tão velozmente para essa tubulação que não ficaria nem mesmo o cheiro. Todo o material de-

sembocaria em contêineres nas duas estações previstas para o bairro e de lá seguiria para o aterro sanitário – projeto que se arrasta por mais de uma década e que otimistas achavam que estaria pronto antes da instalação do novo setor. Essa é uma realidade na Europa e o assunto é discutido em Brasília desde o lançamento do bairro, há oito anos. “Foi um delírio, um modismo, e não daria certo adotar esse sistema aqui em Brasília. E outra, não excluiria a necessidade de caminhões circulando pelo bairro”, diz Francisco Palhares, que era superintendente do Ibama no DF na época da concessão da licença, em 2007, e hoje é assistente da direção-geral do Serviço de Limpeza Urbana (SLU). Ele confirma que hoje Brasília não tem estrutura para abrigar um sistema como esse. Primeiro, o governo errou na modalidade jurídica para a adoção do sistema. Pensavase em parceria público-privada e chegou-se à conclusão de que o ideal é concessão pública. Decidida essa questão, o governo começou a elaborar o edital para selecionar a empresa que ficará responsável pela instalação da estru-


tura e da coleta. Segundo, os prédios estão tão perto das ruas que isso inviabilizou o planejamento inicial do espaço que os dutos ocupariam. Um novo projeto precisou ser feito. E, em terceiro lugar, o sistema não faz sentido se o DF não tem aterro sanitário. “Mas vai ter”, diz o gerente de Projeto do Noroeste na Terracap, Albatênio Granja. Em janeiro, o Tribunal de Contas do DF suspendeu a licitação do SLU para implementação do aterro sanitário em Samambaia. O SLU prestou esclarecimentos e aguarda a votação em plenário. O sistema pneumático seria a tecnologia mais exclu-

siva do Noroeste. Ainda não existe no Brasil. “O Noroeste não tem nada de novo. O que venderam como grande avanço nas construções são tecnologias que existem há 20 anos”, critica a doutora em geologia e especialista em urbanismo e meio ambiente da UnB Mônica Veríssimo.

Desmatar para preservar Ainda em 2007, o Ibama emitiu parecer para alterar a licença ambiental para a construção dos prédios e da infraestrutura do Noroeste. Estabeleceu 43 condições para o início das obras, como implementar o Parque Burle Marx – que deixa de ser par-

que ecológico para se tornar de uso múltiplo – concomitantemente com o parcelamento urbano e garantir que fossem desmatadas apenas as áreas das projeções. A responsabilidade foi posteriormente passada ao Instituto Brasília Ambiental. O parque, programado para ter pistas de ciclismo, de corrida e áreas de convivência, ainda não saiu do papel. Foram feitas duas lagoas para escoamento de água. Não é difícil perceber que o desmatamento para a construção do bairro verde não é diferente do que é feito para erguer qualquer outra coisa. As últimas quadras, as pri-

meiras que estão sendo construídas, já estão com cara de quase bairro. Entre um prédio e outro, grama dos jardins de cada condomínio, calçadas e estacionamento. Tudo isso extrapola a área da projeção, que seria a única desmatada. “Se queriam preservar, tinham de deixar a vegetação natural, e não fazer paisagismo”, critica Mônica. Para ela, não faz sentido a captação de água de chuva para irrigar a vegetação. Se fosse para a descarga dos vasos sanitários, por exemplo, valeria. “Além da gastança de água e energia com piscinas e saunas, querem irrigar o Cerrado, que sobrevive bem

O segundo plano O pretexto para a construção do Noroeste é o documento finalizado em 1987 chamado Brasília Revisitada, assinado por Lucio Costa. O urbanista estabeleceu novos setores habitacionais para Brasília, que poderiam ser construídos se necessário: Asa Nova Norte (onde está o Taquari), Asa Nova Sul (Jardim Botânico), Oeste Sul (Sudoeste) e Oeste Norte (Noroeste). Para este último, programou dez quadras residenciais e prédios com três pavimentos. Nada comparado ao que está sendo construído. De três pavimentos, os prédios passaram para seis. Com a cobertura, sete. Albatênio Granja, da Terracap, diz que a exploração do sétimo pavimento é permitida em parte e que está tudo conforme o planejado. O que Lucio Costa programou como um bairro econômico hoje tem o metro quadrado avaliado em R$ 9 mil. O que pensou para dez quadras terminou com 20. A preocupação do urbanista era de que o novo bairro não chegasse à beira do Eixo Monumental e desfigurasse o formato de cruz do Plano Piloto. O Sudoeste chegou na calada e está quase lá, mas o Noroeste, não. Cresceu para o outro lado. O terreno em que estão sendo construídas as últimas quadras do setor era, originalmente, para a construção de um cemitério. Mas agora não vai ter mais jeito de atender a essa especificação do projeto do Plano Piloto. O negócio já está feito.


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ao clima de Brasília?” Aqui há outra contradição. O paisagismo dos prédios deveria ser feito com espécies nativas. Os jardins, no entanto, estão gramados. Uma ou outra muda de planta nativa está sendo usada. “O Cerrado cresce muito lentamente. Foi falta de inteligência e de vontade das construtoras retirarem toda a vegetação. Cabia ao engenheiro, por exemplo, dizer ao tratorista assim: não derrube esta e aquela árvore”, raciocina Nicolas Behr, poeta, ambientalista e dono de um viveiro especializado em espécies do Cerrado. “O poder público tem de fiscalizar se o desmatamento está sendo feito corretamente e cabe ao morador cobrar por isso também.” A cada 15 dias, os síndicos dos prédios das primeiras quadras do Noroeste têm reuniões com a equipe da Terracap. “Cobramos tudo o que prometeram e tentamos entender, na base da conversa e da compreensão, mas estamos sendo lesados como consumidores”, diz Antônio Custódio Neto. Logo que as obras começaram, em 2011, ficou constatado pela Caesb que o Lago Paranoá já começava a sofrer

com os efeitos do Noroeste. O escoamento das águas pluviais da região foi direto para o lago e em menos de um ano foi detectado o seu assoreamento. A Terracap se defende dizendo que resolveu a questão com a construção dos dois lagos no Parque Burle Marx para conter as águas. O solo do Noroeste será quase totalmente impermeabilizado. “Na verdade, o parque será o grande lixão do Noroeste. Os lagos que foram feitos lá não serão para o lazer da população, mas para abrigar toda a sujeira que vier do bairro”, conclui Nicolas Behr. A impermeabilização do solo vai se tornar um grande problema ambiental conforme as obras avançarem. As garagens ultrapassam a área da projeção com tutela do Estado. São duas, três e até quatro vagas por apartamento. O subsolo que não for ocupado por carros será utilizado para a instalação dos dutos do sistema de coleta de lixo a vácuo, de energia elétrica, do esgoto.

Outras mentirinhas Enquanto as construtoras correm para entregar as chaves, o ritmo do governo é diferente. Não parece haver pressa em instalar ilumina-

ção pública ou rede de energia própria. De acordo com o projeto aprovado, a fiação deverá ser totalmente subterrânea. Não há postes de luz. Há dois anos, o governo do DF, já sob o comando de Agnelo Queiroz, se encantou pela ideia de adotar lâmpadas sódio, projeto aprovado pela Agência Nacional de Energia Elétrica, e decidiu mudar o planejamento de iluminação do Noroeste, que seria de LED. As duas são econômicas, mas a de sódio é mais moderna e eficiente. A compra foi feita por meio de convênio entre a Terracap e a Companhia Energética de Brasília. Só que as lâmpadas não chegaram e, em novembro passado, o governo retomou a ideia do LED e reiniciou o processo de compra. A promessa é de que a iluminação pública comece a ser instalada em maio. “Chegamos a pensar em adotar iluminação provisória, mas, entre oferecer algo precário e não oferecer nada, optamos por esperar”, explica Granja. Em setembro do ano passado, ele deu a seguinte declaração ao Correio Braziliense: “Queremos terminar as obras básicas de infraestrutura antes

do período de chuvas. Em dezembro, só o sistema de drenagem não estará concluído”. Enquanto o governo espera, quem tem apartamento pronto que se vire. “De dia tem muita movimentação por causa das obras, mas à noite é deserto. Só não ficamos no breu porque as luzes dos canteiros ficam acesas”, descreve o pioneiro Antônio Custódio Neto. Não existe transporte público. Também não há comércio. A sorte é que ambulantes já se instalaram lá para vender marmita e lanche. Água e esgoto há, mas o gás natural está longe de chegar. Por enquanto, o aquecimento de água do chuveiro e o abastecimento dos fogões são feitos por gás de cozinha, o GLP, derivado do petróleo. O desempenho é o mesmo do natural e a produção de gás carbônico também é pequena, mas, por ser mais pesado, é mais difícil de ser dissipado. “É preciso entender que o bairro é o nosso grande laboratório e que esse processo de implantações de inovações tecnológicas demanda tempo. Não se deve esperar nada de uma hora para outra”, diz Granja. No entanto, todo esse planejamento tem, no mínimo, oito anos.


C H AR G ES hgou gon@gm a il . c om

DO

G OU G ON


C r 么 n i c a


Como

Zelão

perdeu

a

sanidade

Tesouras e agulhas TEXTO Daniel Cariello d a n ie l c a r ie l l o @ gm a i l . c o m

i l u s t r a ç ã o T H ALE S F ERNAN D O thalesfernandob@gmail.com

Parece que o Zelão, que não é de Brasília, perdeu a sanidade

passei. Aí disse pra pegar agulha e tesoura, e eu peguei. Então

quando tentou ir de carro da 415 para a 309 Norte, passou 11

virei na entrada à esquerda do comércio de balões pra buscar o

horas rodando em uma tesourinha e só foi salvo porque a ga-

W, que estava parado na quadra.

solina do seu carro acabou. No dia seguinte o Tadeu quis saber

– Parece que você se confundiu aí, Zelão.

o que havia acontecido.

– De jeito nenhum. Eu cheguei do sul, entrei pela saída e

– Zelão, você seguiu minhas instruções? Eu disse: “Não vai por dentro, que é bloqueado tanto nas 200 quanto nas 100. O

parei pra indicar as 200 rodas, à esquerda da placa. Aí subi reto e desci de balão...

melhor é fazer a tesourinha e pegar o Eixinho W. Não entra de

– Zelão, por que você está babando?

jeito nenhum na agulhinha, senão você vai acabar parando na

– ... e foi então que eu fiz um comercial de tesoura, incitado

Saída Sul. Depois, segue reto e vira quando vir a placa indica-

por um cara da esquerda que queria bloquear o eixo com qua-

tiva. Aí sobe a comercial, roda à esquerda no balão e chega à

dros de agulhas.

quadra”.

– Zelão, Zelão, olha pra mim.

– Segui.

– Não há saída! Tragam 100 comerciantes. Não há saída!

– E o que deu errado?

– Zelão!!!

– Sei não. Fiz exatamente isso. Não fui por dentro e bloqueei o carro em 100. Depois, agulhei o balão e rodei o eixo indicado na placa. E aí tesourei à esquerda e enquadrei o cara do sul.

***

O Zelão passou uma temporada no hospital e então pôde voltar à sua cidade. Depois do período de recuperação, voltou

– Como é que é?

a ficar bem. Seus amigos é que até hoje não entenderam de

– Não, lembrei. Você falou pra passar de 100 pra 200, e eu

onde veio essa fobia repentina a agulhas.

25


BraSífra-me por Nicolas Behr

PAUBRASILIA @ PAUBRASILIA . COM . BR

1*

o rbitam entre vá rios anéis viários satu rados d e d is tantes satu rnos en g arr afamentos d e foguetes a pa c iência co mo combus tível

2*

o p o e m a ap re se nta as c re de nc iais p ara t e re p re se nta r no re ino das p al av ras só não é t o rre de b a b e l p o rq ue a av e nida é l o ng a

3*

t inha p re ssa e m v irar m it o

a n o s-l uz de es pera v iro u a d istância é mesmo u m m uro in t rans ponível

f il ho da re v o l u ç ã o g e raç ão p e p si se rá?


Pe r s on a gens, lug ares e episó dios m arc ante s d a h i s t ó ri a d a no s s a capital. De sv en de este s p oem as -eni g mas .

4*

o rio nil o d esá gua n o la go pa ra n oá co mu m l á mais comum aq ui q u a l peixe o fa raó jotakamon f o i p e sc ar? e se o pescou co mo o pr epar ou? e se o pr epar ou co mo o ingeriu?

5*

ENTRE A CRUZ E O CARIM BO – A NOVA ESPADA – A MEMÓRIA SECA E O TURISTA FUTURISTA COLHE A FLOR QUE AINDA VAI SER INVENTADA PELO SOL

e se o ingeriu co mo o expel iu?

27

e se o expel iu po lu iu o pr ópr io l ago d e o n de o consumiu? Respostas: 1 Cidades-satélites *2 Avenida das Nações *3 Renato Russo 4 Tilápia *5 Flores secas da Catedral


Nina Quintana

p e r f i l

Kathia Pinheiro


A spalla da Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional conta como veio parar em Brasília e revela que o violino não era seu instrumento favorito. TEXTo Anna Halley annahalley@meiaum.com.br


E

studar piano era obrigatório na casa da pequena Kathia, no Rio de Janeiro. O pai era cantor do Theatro Municipal, mas quem exigia mesmo

dos três filhos era a mãe, enfermeira. Ela amava música e decidiu fazer aulas com as crianças para delas poder exigir. Era rigorosa. Quando já sabiam tocar piano, conquistaram o direito de escolher o instrumento que queriam estudar. O irmão optou pelo oboé, a irmã ficou com o violoncelo. Aos 11 anos, Kathia resolveu que aprenderia o instrumento pelo qual havia se encantado em uma série de TV: a harpa. A escolha inesperada da filha levou a enfermeira a procurar uma harpista do Theatro Municipal. Em uma conversa rápida, a mãe viu que seria complicado não só pelo tamanho, mas porque uma harpa custa muito, muito caro. Voltou para casa com um violino. A princípio, a menina não

Beto Monteiro

viu a menor graça. “Achei que era coisa de velho”,


Beto Monteiro

conta. No piano, diz ela, as notas

queridinha do professor, perdeu

foram convidados pelo maes-

malizava a Orquestra Sinfônica

estão prontas. Mas quem já ou-

parte da atenção para um jovem

tro Levino para lecionar. “Meu

do Teatro Nacional, e Kathia e o

viu alguém começando a tentar

aprendiz do violino. A implicân-

professor no Rio, José Alves, me

então marido foram chamados

tirar som de um violino sabe que

cia virou romance. E o violino já

disse para ficar dois anos no má-

para integrá-la. “Sempre tive a

o efeito é de aflição. E a menina

não era tão chato assim.

ximo, porque Brasília era fraca

vontade de fazer parte de uma

na área de música”, diz.

orquestra, meu sonho nunca foi

sonhava com a harpa, delicada e feminina. Perguntava à mãe

Dois anos viraram 33

Antes de voltar definitiva-

ser solista, sou muito carente”,

quando poderia parar de estudar

Como tanta gente que se es-

mente ao Planalto Central, Ka-

brinca. Kathia deu aulas na Es-

o estridente violino: “Ela dizia

tabeleceu em Brasília, o jovem

thia resolveu levar os violinos

cola de Música de Brasília até

que só quando eu estivesse mui-

casal não pensava em ficar. Os

ao luthier Luciano Rolla para

meados dos anos 90, quando os

to boa no instrumento”.

dois estudavam na Escola de

limpá-los e colocar novos cava-

compromissos com a orques-

Quando esse dia chegou,

Música da Lapa, subordinada à

letes. “Eu disse que ia morar em

tra tornaram difícil conciliar as

Kathia já fazia parte de uma or-

Universidade Federal do Rio de

Brasília e coincidentemente ele

duas atividades.

questra jovem no Rio. Vira que

Janeiro. Souberam do Curso de

tinha um amigo piloto que tinha

A menina que odiava o vio-

não havia apenas violinistas ve-

Verão de Brasília, na verdade

de levar um ministro ao Pará e

lino tornou-se uma mulher

lhos por aí. Tinha 14 anos quan-

um festival criado pelo primeiro

depois viria para Brasília. Che-

apaixonada pelo instrumento.

do a mãe se foi. “Ela sabia que

diretor da Escola de Música, ma-

gamos à cidade de bimotor, em

Não consegue nem viajar sem

morreria cedo, queria nos deixar

estro Levino de Alcântara. Como

grande estilo”, conta.

ele. “Faz parte do meu corpo.”

encaminhados na vida.” De fato

não conseguiram informações a

Era março quando vieram de

Entusiasma-se ao falar sobre as

o instrumento escolhido pela

distância, vieram. “Cheguei em

vez. “Dois anos viraram 33, fui

peças. Conta que certa vez na-

mãe deu rumo à vida de Kathia.

7 de janeiro de 1980.” E aí foram

ficando e tive meus cinco filhos

morou uma por um longo tempo

O que ninguém imaginava era

atrás de bolsa para estudar aqui.

aqui.” Naquele início de década,

e acabou a levando para casa. Ex-

que a levaria tão longe. Antes a

Quando terminaram o curso,

o maestro Claudio Santoro for-

plica que, para músicos profis-

31


sionais como ela, que tem 42 anos de prática, um bom instrumento faz toda a diferença para responder a tanta técnica e precisão. Em 2000, Kathia Pinheiro tornou-se spalla da Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional Claudio Santoro, posição que deixou de ocupar apenas de 2007 a 2010. Na prática, é a segunda na hierarquia do conjunto de músicos, cujo maestro é Claudio Cohen, violinista Nina Quintana

como ela. Fica à esquerda dele e é o último músico a entrar no palco. O spalla é responsável pela afinação do grupo e sempre tem um solo nos concertos. Quando pergunto como é fazer parte de uma orquestra, a resposta vem fácil. A carioca explica que é mesmo como uma grande família. Os integrantes passam muito tempo juntos, há grandes amizades e, claro, desavenças. “Veja o filme Ensaio de orquestra, de Fellini, é aquilo ali”, resume, citando a comédia de 1978. Os músicos da Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional Claudio Santoro são servidores públicos (no fim do ano passado o governo abriu concurso para preencher 20 vagas). Ensaiam juntos todos os dias da semana, na sala Villa-Lobos do Teatro Nacional. “O mágico da orquestra é que, apesar das diferenças, quando fazemos música é uma coisa só. Parece que você está no céu”, define a spalla.

Dedicação diária Uma das palavras que Kathia mais usa ao falar do ofício é estudo. “O músico é como um atleta de alta performance. Violino se estuda todos os dias”, afirma. Mesmo com mais de 40 anos de experiência? “Claro, ainda mais quando é uma peça nova”, diz, acrescentando que a última que teve de aprender lhe exigiu 35 horas de estudo. Ela conta que são muitos livros, muitos cursos, muitas referências. Pergunto se há algum músico que a inspire. Imediatamente cita o tecladista e maestro grego Yanni, “porque ele cria música”. O grego

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se apresentou pela segunda vez no Brasil no ano passado e esteve em Brasília, mas justo em um dia que a admiradora tinha concerto. Nossa primeira conversa foi no começo de abril, no dia seguinte à apresentação da Orquestra Sinfônica Simón Bolívar, da Venezuela, no mesmo palco em que Kathia se apresenta toda terça-feira. Ela ainda estava sob efeito do que presenciou, admirada com o que viu. “Foi uma aula.” Kathia tem muito orgulho de falar da profissão. “Tudo o que consegui na vida foi com a música. Dá para viver de música”, diz ela. Na-


instrumento. Kathia lhe contou

a quem faz parte da Orquestra

que queria muito ter aprendido

Sinfônica do Teatro Nacional

a tocar harpa. “Aí ela me disse:

Claudio Santoro. E a violinista

‘Você já conhece música, já sabe

também investiu no próprio ne-

ler partituras, devia aprender a

gócio. É sócia da Toccata Produ-

tocar então’.”

ções e Locações, criada em 2001.

Aquilo ficou na cabeça da vio-

“Meu pai me ensinou que o que

linista, que em seguida foi lan-

se faz benfeito sempre dá certo.

char em um shopping. Encon-

Não falta trabalho, sempre apa-

trou lá um amigo que há muito

rece muita coisa”, diz.

morava no Rio e era justamente

Ela deve se aposentar da or-

professor de harpa. Ela falou da

questra no fim do ano. E o que

conversa com a cliente, e ele dis-

não lhe faltam são planos. Um

se que ficaria por um tempo em

deles é estudar culinária, que ela

Brasília e poderiam começar as

adora. Também tem interesse

aulas no dia seguinte, antes que

em psicologia e quer se dedicar

Kathia mudasse de ideia. O pro-

a projetos sociais mais de per-

fessor depois ganhou uma bolsa

to, além de cuidar da produto-

para estudar em Washington

ra. “Tenho muito tempo pela

(EUA) e disse que lhe venderia

frente, só quero morrer aos 126

a harpa. “Eu falei que era muito

anos. Então há muito que fazer”,

caro, o preço de um flat, não da-

planeja, lembrando que Roberto

ria para comprar”, conta.

Marinho passava dos 60 quando criou a TV Globo.

No dia da proposta, chegou em casa e assistiu à entrevista de um violinista francês. O

E a harpa?

programa se encerrou com a

Era só paixão de menina?

imagem fechada em uma har-

Que nada. Ela continua encanta-

pa. Aí não teve jeito. Pergun-

da pelo instrumento. Conta que,

tou ao professor se ele dividi-

em 2009, uma cliente lhe des-

ria o pagamento em três anos.

crevia como seria o casamento

Negócio fechado. A harpa fica

para que definissem o estilo

à esquerda de sua mesa de tra-

musical. Kathia disse que deve-

balho na produtora, no mes-

ria ter harpa de qualquer jeito,

mo prédio em que sua nova

que “ficaria lindo”. A cliente –

professora tem um compro-

que acabou virando amiga – ob-

misso semanal. “Não é incrí-

servou que os olhos da violinis-

vel como as coisas dão certo

ta brilhavam quando falava do

quando têm de ser?”

Nina Quintana

turalmente as portas se abrem

“O mágico da orquestra é que, apesar das diferenças, quando fazemos música é uma coisa só.”

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AR T I G O

Imagina na Copa É evidente o mau atendimento nos restaurantes de Brasília. Mas não há explicação ou pedido de desculpas

TEXTO Kátia Marsicano k at i a m a r s i c a n o @ g m a i l . c o m

ilustração lucas muniz LUCASMUNI Z . ARTS @ GMAIL . COM


D

ias desses na mesa da praça de alimentação do Boulevard Shopping, lá estava eu revivendo uma cena recorrente pelo menos em quatro dos cinco dias da semana em que almoço lá. Por ser mais perto do meu trabalho e sob medida para os parcos 60 minutos que tenho para me alimentar, é a alternativa que me resta. Enfim, procuro variar de restaurante, afinal ninguém merece o mesmo prato fast ser repetido como uma monótona ladainha

gastronômica. Bem, mas deixemos de delongas e vamos ao lead. Mesmo sendo mais conhecida do que bolacha cream cracker pelos aten-

dentes, raramente consigo que o meu pedido venha igual ao prometido na foto do cardápio e, pior, mesmo sendo o mais simplesinho. Dentro das limitadíssimas opções light, minha escolha é sempre uma saladinha básica com peixe grelhado. Resumo da ópera: um dia o peixe vem cru, no outro faltam folhas, no outro o tomate seco está em falta, no seguinte, o cozinheiro é novato, depois, a desculpa é a quantidade de pedidos e por aí vai... Quem me acompanha nesta saga diária já aposta no problema da vez... Mas, para não ficar só com os exemplos do Boulevard e para provar que isso também acontece com os outros, fomos comemorar o aniversário de uma colega no Deck Norte. No restaurante (por sinal, vazio), fizemos nossos pedidos à la carte e quem acabou chegando à mesa foi a decepção. Dez minutos depois, a mocinha avisou: “O brócolis está em falta para o arroz”. Era o prato que meu amigo tinha pedido. Naquele dia, até a aniversariante saiu com gostinho de falafel torrado (bolinho árabe de grão-de-bico) e uma berinjela tão amarga quanto a conta. O engraçado é que isso tudo acontece sem qualquer explicação ou pedido de desculpas ao consumidor. E o que fica patente é o despreparo, não por culpa dos funcionários (talvez), mas de alguém acima deles que desconsidera o fato de que a atividade transcende o lado comercial: envolve relações humanas. Pode significar um cliente que nunca mais volta. E aí, não há como evitar o bordão que está na boca do povo: “Imagina na Copa!” No caso de Brasília, a capital do País e uma das 12 cidades-sede dos jogos, além das melhorias que estão sendo feitas no Aeroporto JK, nas vias de acesso ao terminal e no estádio Mané Garrincha – grandes focos do investimento –, é preciso dar um zoom nos detalhes que não custam tantos bilhões. Por exemplo, o atendimento nos restaurantes. Afinal é para lá que vão correr os milhares de turistas brasileiros e estrangeiros na hora da fome e, claro, nos momentos de comemoração. Pesquisa da Fundação Getulio Vargas encomendada pelo Ministério do Turismo estima que 600 mil turistas virão ao Brasil no ano que vem e Brasília é a cidade que receberá o terceiro maior número. Serão nada menos que 207 mil pessoas não acostumadas com a rotina brasiliense. Pessoas que vão enveredar perdidas pelos imensos gramadões, que vão querer pegar um táxi (inexistente) na rua, que vão esperar pelo transporte coletivo escasso e vão contar com a hospitalidade do cidadão local, a exemplo de outras capitais habituadas a eventos de grande público. Na Copa das Confederações da Fifa, que começa em Brasília em 15 de junho, a cidade vai ter uma prévia do que está por vir no ano que vem, em proporções muito maiores, claro. E que haja tempo para corrigir o que for preciso, pelo menos, até o dia 23 de junho de 2014, no jogo decisivo da Seleção Brasileira, quando vai ter gente chegando aqui até a nado pelo Lago Paranoá.

A atividade transcende o lado comercial: envolve relações humanas. Pode significar um cliente que nunca mais volta.

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C r 么 n i c a


Debaixo

do

bloco

A nostalgia juvenil de Brasília T E X T O A n d r é G i u st i

gi u s t i a n d r e @ h o t m a i l . c o m

f oto n i n a q u i n t a n a

fotografia@meiaum.com.br

Há uma nostalgia em Brasília nada condizente com sua moderni-

exatamente onde fincaram o bloco em que moramos poderia haver,

dade, menos ainda com seus 53 anos, tão poucos perto dos mais de

cento e tantos anos atrás, a humilde choupana de um caboclo ou preto

quatro séculos atravessados por Salvador, São Paulo e Rio.

velho que vivia solitário em meio ao nada do Cerrado quase virgem.

Mas, repare se a cidade em forma de avião (borboleta! corrigiria

Na cidade que abriu mão dos pés para se mover sobre pneus, re-

Lucio Costa) não se assemelha a um jovem ainda imberbe que sus-

pare bem se em cada eixo ou em cada avenida W ou L não há um vul-

pira de saudades de um tempo que não viveu.

to colorido de um simpático Fusquinha ou de um imponente Opala

Tente encontrar um prédio da época da construção que ainda

levando toda a família para passear.

mantenha seus pilotis no formato original. Encoste em um deles

E nesta época em que estão pondo abaixo os antigos hotéis da

numa tarde ensolarada e silenciosa de domingo. É nessa hora sono-

zona central, para que comece uma espécie de segundo tempo da

lenta que uma porta do passado se abre e por ela passam apressadas

modernidade, há um interminável suspiro dos velhos colunistas

as sombras dos candangos de braços fortes, erguendo a toque de

sociais pelos bailes e pelas boates de uma época em que a elite do

caixa a capital do País.

Planalto buscava o glamour dos seus semelhantes paulistas, cariocas

Gire de costas em torno da pilastra redonda, pressione levemen-

e mineiros.

te o corpo no concreto viril. Gire, feito uma criança que tem a liber-

Por fim, ainda aproveitando o silêncio, ouça na caixa de som do

dade dos movimentos, proibida aos adultos. Nesse momento, pas-

tempo: é o Aborto Elétrico se apresentando no gramado de alguma

sarão, barulhentos e em correria, meninos e meninas, um atrás do

quadra da Asa Sul.

outro ou de mãos dadas. São amizades para a vida inteira, namoros,

A nostalgia juvenil de Brasília é a mesma de um país inteligente

casamentos ou mesmo amores eternos que nasceram debaixo do

que existiu nas letras, na música, na arquitetura, e que deixamos es-

bloco, quando Brasília era livre feito suas primeiras crianças, sem

correr pelas mãos, que emburreceu com a anuência da nossa omis-

grades, sem cercas, sem câmeras.

são. É a nostalgia do seu próprio projeto original de cidade, que hoje

Mesmo sem qualquer registro histórico, não é difícil imaginar que

parece nada mais do que uma ideia perdida no passado.

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o p i n i 達 o


nevoeiro

na

cidade

universitária

Muita gente vem e vai T E X T O I a r a L e mos

ILUS T RAÇÃ O F r a n c i sco B r o n z e

l em o s i a r a @ h o t m a i l . c o m

bronze@grandecircular.com

A névoa escura da fumaça que dizimou a vida repleta de sonhos

público jovem em funcionamento em Santa Maria. As casas no-

de 241 jovens que estavam na boate Kiss na madrugada de 27 de

turnas deram a Mauro o título de homem da noite da cidade. Era

janeiro ainda torna denso o clima em Santa Maria. A cidade, co-

a ele que os estudantes recorriam para organizar as festas que

nhecida como “universitária”, agora tem na sua história a marca

resultavam na captação de recursos usados pelos universitários

de uma das mais grandiosas tragédias que atingiram o País. Por

para auxiliar nas festas de formatura, que costumam ter orça-

mais que os dias passem, Santa Maria parece ainda adormecida

mento além do que os estudantes têm condições de arcar.

em um sonho triste. Acordar para a dolorida realidade, em que centenas de universitários não vão mais transpirar a alegria típica da juventude, é uma tarefa que os moradores têm se empenhado em cumprir.

***

Ao desembarcar em Santa Maria na tarde daquele domingo nebuloso, mais do que cobrir a tragédia, revivi de perto o que

A tragédia que atingiu a boate Kiss nada mais foi que o resulta-

aqueles estudantes buscavam em uma festa universitária. Senti

do de um acúmulo de imprudências típicas do conhecido “jeiti-

que toda aquela tragédia poderia ter acontecido comigo também.

nho brasileiro” de organizar tudo da forma mais simples e rápida

Entre meados de 1999 e 2003, período em que estudei jornalismo

possível. A boate era uma das mais novas da cidade e pertencia a

na Universidade Federal de Santa Maria, muito conversei com

um empresário tradicional do ramo, muito conhecido pelo meio

Mauro Hoffmann para organizar festas semelhantes à Agrome-

universitário. Mauro Hoffmann era dono não somente da Kiss

rados, que acontecia na Kiss no momento da tragédia. Como te-

como também do Absinto Hall, a mais antiga boate destinada ao

soureira da minha turma, precisava auxiliar futuros diplomados

39


***

como eu na captação de recursos para a formatura. A Agromerados, assim como muitas das festas que fiz há anos sob a organização de Mauro, tinha o objetivo principal de captar recursos. Por esse motivo, as longas filas em frente à boate. Se festa boa é festa cheia, a Kiss costumava lotar suas dependências e fazer eventos em que os estudantes mal tinham espaço para dançar. A regra da superlotação não era aplicada somente por Mauro Hoffmann. Qualquer empresário sabe que, quanto mais cheia sua festa, mais badalada ela será. Mas, ao abrir mão dos limites de capacidade interna, é preciso saber que os riscos são iminentes. Na Kiss, a lotação permitida da boate, em torno de 600 pessoas, estaria estourada em pelo menos 300 indivíduos na noite da tragédia. O número real de quantas pessoas estavam na boate ainda é uma incógnita. Não bastasse a superlotação, a parte interna da casa noturna era um verdadeiro labirinto para aqueles que não a conheciam com precisão. O próprio DJ Lucas Calduro Peranzoni, o Bolinha, que tocava na Kiss na noite do incêndio, afirmou que só conseguiu sair da boate porque a conhecia. “Eu saí porque conhecia a casa [...] Eu sabia que tinha uma porta, mesmo sem enxergar. Para quem não conhecia ficava bem mais difícil sair. Ficou extremamente escuro”, contou o DJ dias após o incêndio. Quem estava lá pela primeira vez ou ficou na parte lateral da pista dificilmente conseguiu escapar da tragédia. Extintores de incêndio também eram uma lacuna a ser preenchida na casa noturna. Embora fossem obrigatórios, eles não estavam funcionando, segundo comprovou a polícia nas investigações. E mesmo que estivessem, diante da tragédia, fiquei perguntando-me se teriam condições de apagar o incêndio que rapidamente tomou conta da espuma altamente infla-

40

mável que revestia a boate. A imprudência dos integrantes da banda Gurizada Fandangueira ao lançar um sinalizador dentro da casa noturna foi um triste fator aliado a outra irresponsabilidade: o fato de a espuma de revestimento acústico nada mais ser do que uma espuma usada para amenizar o desconforto de pacientes que precisam ficar muito tempo deitados. Era mais acessível financeiramente, mas não tinha de estar nas paredes da Kiss, ocupando um espaço que não lhes pertencia e aumentando os riscos de uma tragédia anunciada.

A soma dessa série de irresponsabilidades resultou na morte dos jovens que apenas queriam se divertir. Mas, afinal, quem pode e deve ser responsabilizado pela tragédia que tirou a vida de tantos jovens? O inquérito policial da Kiss, apresentado em 22 de março, apontou 35 responsabilizações, sendo que 16 pessoas foram indiciadas criminalmente pelo fato. Entre os indiciados por homicídio doloso qualificado estão os sócios-proprietários da casa noturna e os músicos do grupo Gurizada Fandangueira, que atearam fogo no sinalizador. Os bombeiros que realizaram a vistoria na boate e permitiram o funcionamento do local mesmo sem que estivessem cumpridas todas as regras de segurança também foram responsabilizados. Além disso, secretários da prefeitura de Santa Maria, que liberaram o funcionamento da Kiss mesmo com o alvará de combate a incêndio vencido, vão responder na Justiça pelas mortes dos jovens. Se algum dia vão cumprir penas pelas vidas que se foram, ainda é algo a se questionar. Sem esquecer suas dores, aos poucos a cidade que viveu em minutos sua maior tragédia tenta se reerguer e voltar a sorrir. O clipe de uma das músicas mais tradicionais da cidade, Santa Maria, gravado em pleno Calçadão, ponto de encontro e de comércio, traz no sorriso dos músicos e dos moradores a esperança em dias melhores. Embora os habitantes tentem voltar à rotina que existia antes do incêndio, a tragédia da boate Kiss ainda é assunto principal nas rodas de chimarrão. Ao passar de mão em mão, a bebida, típica dos gaúchos, leva consigo as perguntas sem resposta e a indignação de uma cidade inteira que só tem um sentimento além de orar pelos seus mortos: a busca pela justiça, seja ela a quem tiver de ser cobrada. Logo um novo semestre escolar terá início na cidade e, como de costume, já registrado na letra da música mais tradicional de Santa Maria, muita gente “vem e vai”. Vem para a cidade trazendo sonhos e esperanças em dias melhores. Vai levando conhecimento adquirido para outros locais, depois de uma passagem pela cidade universitária. No entanto, uma realidade não mais deixará aqueles que passarem por Santa Maria. A saudade dos que perderam a vida na maior tragédia do País registrada nos últimos anos. Santa Maria, por mais que passe o tempo, será sempre lembrada como a cidade do incêndio da boate Kiss.


p o r

m i g u e l

o l i v e i r a

c a rl osm igu el deol iv eira@gmail.com

C a i x a - p r e t a

Inteligência burra Além disso, embora o formulário eletrônico venha evoluindo e facilitando o trabalho dos contribuintes, para muita gente é difícil preenchê-lo, pela dispensável complexidade. Muita gente é obrigada a pagar a alguém para fazer o imposto. O serviço de atendimento da Receita é precário e o cidadão é forçado a ler os jornais, todos os dias, para tentar tirar suas dúvidas. A “inteligência” que define quem vai para a malha fina é burra. Sabe como pegar tentativas de sonegação, claro, mas muitas vezes não diferencia erros técnicos, irrelevantes, e comete alguns absurdos que custam caro. Coitado de quem cai na malha fina, pois terá muito trabalho, perderá tempo e tem boa probabilidade de ser mal atendido em agências que fecham 15 minutos antes da hora marcada. Há casos de

A ignorância do Leão O imposto de renda é uma das grandes enganações do absurdo, burocrático, irracional e elitista sistema tributário brasileiro. Esse imposto tem um conceito errado, pois salário não é renda. É justo que quem recebe rendimentos de negócios e aplicações financeiras pague imposto, mas é injusto que assalariados sejam taxados. Quem pode, e quem pode é geralmente um profissional liberal, com curso superior e mais dinheiro, trabalha como pessoa jurídica e paga menos impostos do que quem tem a carteira assinada. Outra distorção são as deduções para despesas com saúde e educação, tão simpáticas para muitos (que ainda querem aumentá-las), mas que beneficiam os mais ricos e incentivam a medicina e a educação privada. Quem tem dinheiro para pagar médicos e escolas particulares paga menos imposto, proporcionalmente e às vezes até em números absolutos, do que quem recebe salário, é atendido em hospitais públicos e tem filhos em escolas do Estado. As deduções são recursos que o governo deixa de arrecadar e que poderiam ser investidos na medicina e na educação públicas.

informações diferentes dadas por atendentes em uma mesma agência.

Bom para ricos Uma senhora de 90 anos que mora em bairro “nobre” e pagou mais de R$ 6 mil de imposto de renda teve colocados em dúvida seus recibos médicos, pois a “inteligência” não pensou que é normal uma mulher com essa idade e com boa renda frequentar médicos particulares e pagar muito pelo plano de saúde. Virou suspeita e intimada a comparecer à Receita para apresentar os recibos. Pior: por ordem da “inteligência”, os recibos colocados em dúvida só poderiam ser entregues por ela mesma (90 anos...) ou por procurador, o que a obrigaria a ir a um cartório. Imposto de renda, do jeito que é, é bom para burocratas da Receita, contadores e tributaristas. Os ricos o ignoram, a classe média e os pobres penam – e pagam


P o r

M a r c e l a

B e n e t

|

B a n q u e t e s Ilustração

marcela.benet@gmail.com

b o t e c o s

Rômulo Geraldino

| romulog2000@yahoo.com.br

Nota

1 2 3,5 4 5

Quer comer um crepe no Sudoeste?

Vá ao Camon Creperia

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Vale a pena conhecer o novo estabelecimento gastronômico do Sudoeste, que ocupa duas lojas com letreiro ilegível na 302. Um investimento familiar: o marido na administração e a esposa como chef. Ana Beatriz é autodidata e tanto foi elogiada por seus crepes que resolveu montar seu próprio negócio. Melhorou desde a inauguração, principalmente o atendimento e a organização da fila de espera – a casa é bem pequena e anda lotada. Da última vez, porém, o pedido

da minha mesa demorou e, depois de muito tempo, quando questionamos, informaram que foi devido ao aquecimento da máquina de crepe. Imperdoável! O ambiente é meio americanoide, despojado. Se tem intenção de namorar, pode esquecer. As mesas ficam superpróximas. A iluminação muda de intensidade. Perguntei à hostess se era um mecanismo automatizado e ela me disse que o dono controla o dimmer. Fantástico! As combinações são

surpreendentes. De entrada há um waffle com foie gras e maple syrup bem interessante com um vinhozinho. Como prato principal, opções de crepes tradicionais, mas os especiais... hummmmmm. O de camarão Thai é um espetáculo. Temperado com curry, é de comer gemendo. Experimentei o de vitela com manteiga de ervas e alho-poró, outro espetáculo. Não gostei muito do de espinafre, achei sem graça. As crianças se deliciaram com o waffle de pão de queijo.

De sobremesa, o crepe simples de creme de avelã, o de chocolate belga com morango e sorvete, o de queijo coalho com calda de goiaba, muito gostosos. A carta de vinhos é legal. Há cervejas importadas, mas bem caras, e uma nacional, a Heineken. Poderia haver opções mais em conta. O Sudoeste carece de ambientes gostosos, e o Camon veio para preencher um pouco essa lacuna. Então, se tiver vontade de comer um crepe gostoso, vá ao Camon.

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