REVISTA LITERÁRIA MACONDO #2

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MACONDO revista literária

N.º 2 TRIMESTRAL

maio junho julho 2011

apresenta ari marinho bueno, barbarella braga, christian botelho borges, constança lucas, cristina desouza, davino ribeiro de sena, edson bueno de camargo, eduardo afonso, elisa t. campos, enrique bóveda, everaldo ygor, fernanda botta, fernando melo, gabriel innocentini, geraldo lima, joão felinto neto, juliana bernardo, julio saraiva, leda cartum, letícia fontoura da silva, mariana turow, priscila miraz, rodrigo alves barretos, rodrigo marçal santos, thiago de melo barbosa, venes caitano marques, victor eustáquio

POESIAS POESIA VISUAL RESENHA CHARGE CONTOS FOTOGRAFIAS HAICAIS ENSAIO


expediente

EDITORES

francisco mariani casadore marcos mariani casadore COLABORADORES

os autores dos textos publicados na presente edilçao estão listados, por ordem alfabética, nas páginas finais da revista. não nos responsabilizamos por ideias e demais conceitos expostos pelos autores, bem como pela autoria dos textos. CRÍTICAS | DÚVIDAS | SUGESTÕES

Escreva para contatomacondo@yahoo.com.br Revista disponibilizada gratuitamente pelo site www.revistamacondo.co.cc APOIO À PAGINAÇÃO

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revista.macondo@yahoo.com.br


Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda é num ponto muito mais embaixo, bem diverso do em que primeiro se pensou. Viver nem não é muito perigoso?

João Guimarães Rosa


editorial E eis que, finalmente, vem ao ar nossa segunda edição da Revista literária Macondo! Já notaram algo de diferente? A novidade da vez fica por conta da total reformulação – uma verdadeira “repaginação”, literalmente falando – do design da edição. Com estilo sólido e conciso, simples e bastante coerente, desta vez a edição da Revista Macondo traz consigo um trabalho de excelência também no que concerne ao seu visual! Os méritos deste excelente trabalho de estilo pertencem a uma empresa de serviços

editoriais cujo trabalho vem diretamente de terras portuguesas do alémmar. Foi por intermédio da própria edição de estreia da Macondo que conhecemos Jorge Colaço (da www.acentografico. net, organização que trabalha com editoração e paginação de livros, catálogos, revistas e afins) – na ocasião, apresentado a nós enquanto poeta cujos trabalhos foram publicados no primeiro número. A sua atividade, no entanto, não se limita às letras – as linhas gerais da paginação que nos apresentou, depois adaptado livremente por

nós – agradou não só a nós, editores, e aos autores colaboradores, como a todos os leitores que prestigiarem a maravilhosa “conclusão” do nosso segundo número. E, é claro, pela enorme felicidade e satisfação com a finalização da edição, não poderíamos deixar de indicar, aqui, o apoio – ainda que à distância – oferecido pela “acentografico.net”. Vale, ainda, adiantar a você, leitor, que encontrará pela frente, no seguir das páginas da presente edição, literatura de primeiríssima qualidade. Tentamos, mais uma vez, variar bastante os estilos

POESIA

RESENHA

PÁGINA 36

página 6

página 30

HAICAIS

CHARGE

CONTOS

página 24

página 36

página 38


literários, a partir de todo o material (muito material, diga-se de passagem) que recebemos nesses meses que intercalaram o lançamento dos dois primeiros números da Macondo. Poderíamos repetir aqui a velha discussão sobre a dificuldade em selecionar material para compor o número de uma revista, e o quão subjetivo pode ser o processo de avaliação e seleção, mas reservemos o espaço para reforçar o argumento de que não necessariamente tivemos como resultado a publicação do que de

melhor recebemos; muita coisa interessante ficou de fora, por uma razão ou outra que nos obriga a limitar o número de textos selecionados. O reforço, portanto, também vale para o convite: continuem nos enviando seus trabalhos, sejam estes textos, fotos ou cartuns. Será sempre um prazer receber, ler, avaliar e editar material com o interesse de publicação pela Macondo. No mais, sem sermos exaustivos, pedimos desculpas pela ausência de uma entrevista nesta edição, torcendo para que esse deslize não tire

os outros méritos que poderão ser encontrados nas páginas que se seguem; aproveitamos, então, para damos as boas-vindas a você, leitor, e desejamos que goste tanto da revista quanto nós gostamos de prepará-la.

POESIA VISUAL

CARICATURA

DOMÍNIO

página 51

página 61

PÚBLICO

ENSAIO

COLABORA-

página 67

página 52

DORES

FOTOGRAFIAS

página 62

página 70


poesia


era uma vez um choro depois da insolação o sol queimou meus olhos. não sabia ele que estes chorariam mais tarde? agora arde e o sal alardeia sua presença mesmo tendo ido o dilúvio e o sequer molhado ter secado

tantos dias de vida-reza (à minha avó)

esses olhos verdes mergulhados em lacrimejos não descidos brilho espesso, esmeralda cozida coseu sua vida com as linhas contas dos terços dos peços e agradeços dos tem misericórdias e dos eu mereços com sua fé garante meu bem: pedindo a Ele que me abençoe guarde e proteja e eu, de amor, amém segundo trimestre 2011

7


poesia

engarrafamento parado encadeado ao automóvel em que eu me encontro trancafiado mais imóvel ainda em relação ao chão: são as engarrafas descasuais tão pontuais que me irrito mas será o benedito? há quanto tempo? que horas são? veja só, um catavento! - um passatempo a girar antihorário... seria as antihoras melhores que esse tempo? desgirou o catavento fazendo um quase parar até pairar em favor horário e que favor... gira depressa! ah! fosse assim o meu relógio estaria eu noutro lugar melhor... ou pior! já cansada a retornar pr’essas engarrafas retornáveis

letícia fontoura da silva

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MACONDO revista literária


a hora da onça Nunca entendi o que ele queria dizer quando dizia que estava na hora da onça beber água... Estávamos em casa, fazendo, cada um na sua, o que cada um fazia, súbito ele vinha com a frase vazia sobre a onça, impertinente animal da selva, ali, cercado de arranha-céus de concreto, sob um azul de alumínio. Sem árvores, era estúpido falar assim, mas eu o adorava como a um deus e a frase tinha algo misterioso. Ele gostava de chamar “cacique cotovelo preto” o menino que apenas lia e chamava de “bacurau” o menino que não dormia apelidos que pais não diziam a filhos e eram engraçados... Na época eu não entendia e ele não explicava nada e calçava aqueles sapatos enormes, gastos na sola, quando eu o observava saindo de casa, perfume e bata, indo ao trabalho.

segundo trimestre 2011

9


poesia

perto da estação Perto da estação de trem suspira um riacho, sob o verde telhado onde zangões zumbiam sobre zínias, quando os dias belos acumulavam-se em potes de mel. Ali, um cardeal traz no bico o afogueado sonho derradeiro. O velho inclina-se ao bosque sem acreditar no verde rubor das folhas, impermeável a rugas, na benevolência do olhar azul. Foi-se o sonho no apito mas o verde ficou, avesso, no discurso azul do trem que atravessará este dia e o seguinte dia, o rubor, mais verdadeiro que antes quando ainda eras jovem. Agora retornas à estação que vela o segredo, indolente, entre os zangões que zombam das zínias – e temes, avaro, um dia vir a perdê-lo...

davino ribeiro de sena 10 MACONDO revista literária


lâminas ancoro estas utopias em asas de borboleta hastes duplas delicadas e precisas como lâminas de cortadeiras meus olhos já foram inundação e secaram tantas outras vezes (e medraram nos esquecimentos) açude pisado no barro das estrelas desta noite respire o frio possível no ar da alunagem (as rãs em concerto vigiam a nova prole)

segundo trimestre 2011 11


poesia

lento incenso as rosas apendoam no jardim grandes buquês brancos anunciam o fim do verão tempestades de fim de março a entoar hinos à gravidade são sinos a tinir todos com o som de trovões de carvão ardente este pedaço de mundo é a paz perdida cela de monges montanheses em pérfida misantropia as dores do luto não abandonaram o choro convulsivo de grandes cinzeiros cheios precipita a fina garoa e o cigarro queima lento incenso o poema não se conjumina à xícara abandonada que faz aniversário de uma semana onde está

edson bueno de camargo

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inventário acabar de transar beber coca cola dissimular rir abrir a janela contar as horas num relógio de aço deitar os pratos e deixar que anoiteçam sem lavar escrever no escuro um poema incorruptível pensar os santos como pássaros histéricos dizer: estranha, senta nesta mesa perdoa as mentiras o canário morto e outros requintes dessa paz corrosiva que nos persegue outro copo e não ouso penetrar no milagre que assombrou o pássaro a enumeração tremulando ninguém falou de amor

referências uma árvore fina se balança aos pés dos edifícios

não suponham reverências na sua grande ironia: ter os pés no chão não a impede de se sacudir na ventania

segundo trimestre 2011 13


poesia

sinais gritos na lanchonete chinesa cafés sílabas eletrocardiogramas rubor no céu o rádio que ouviu a guerra resmunga horóscopos lâmpada para meus pés, tua palavra amanhece comigo digo amém ao telefone ok no escuro no alcatrão trêmulo dos sonhos uma palavra tua na minha boca versículo impenetrável substância escura no dicionário digo now digo adeus

juliana bernardo

movediço meu jazz é azul baixo no compasso guitarra no blues ávida de estrelas procuro a luz é noite a lua é cheia pés na areia enquanto meus olhos passeiam no escuro nus

cristina desouza 14 MACONDO revista literária


se eu morrer ontem se eu morrer ontem e você por acaso acordar hoje cedo com vontade de chorar não chore não esquece não vou estar por perto e nem ninguém vai reparar ponha um vestido indiano ouça um samba do adoniran ou do paulo vanzolini não passe de 2 dry martinis pra coisa não desandar pense que vivi o bastante pra quem viveu por engano como um sincero farsante poeta não fui dos piores menos príncipe mais sapo alaranjei meus horrores se eu morrer ontem diga aos interessados que os convites para o enterro estão todos esgotados

julio saraiva segundo trimestre 2011 15


poesia

os dias curtos São minutos que se seguem obedientes como se guiados por um pastor imaginário ou se mantivessem a fila das formigas. Não se completam mas passam, e quando engolidos pela superfície então côncava ou esgotada daquilo que chamávamos dia, é como se não tivessem acontecido. Também não cabem em nenhum espaço, porque não conquistaram peso suficiente; não esvoaçam nem ficam, e de tão curtos esses dias têm a potência ou a tentação de se repetirem – talvez para se prolongarem ou simplesmente porque foram tão rápido que lentamente se vão.

os dias longos Os dias longos lamentam quando terminam. Eles se remoem porque foram esticados e duraram até depois do seu fim; quando terminam, derramam um choro que escorre pelo ar. Os dias longos passam pelas janelas, atravessam a rotina e por vezes explodem para se comemorar. São dias em que a vida se levanta e chacoalha como o cachorro que saiu da água, dias quando o tempo é consistente e nos envolve como uma segunda pele. A passagem dos dias longos marca e continua sobre o corpo, então sabemos que iremos carregá-los por ainda muitos dias. Não arrastá-los, nem empurrá-los, mas conduzi-los e consolá-los. Quando terminam, é preciso explicar com paciência para eles que realmente terminaram, pois relutam em nos deixar e quando finalmente vão, sobram nas pontas e nos cheiros. Se não tivessem sido tão longos assim, poderíamos guardá-los nas gavetas ou armários: mas eles não cabem.

leda cartum

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...A escrita torna-nos selvagens. Regressamos a uma selvajaria de antes da vida. E reconhecêmo-la sempre, é a das florestas, tão velha como o tempo. A do medo de tudo, distinta e inseparável da própria vida. Ficamos obstinados. Não podemos escrever sem a força do corpo. É preciso sermos mais fortes que nós para abordar a escrita, é preciso ser-se mais forte do que aquilo que se escreve. É uma coisa estranha, sim. Não é apenas a escrita, o escrito, são os gritos dos animais da noite, os de todos, os vossos e os meus, os dos cães. É a vulgaridade maciça, desesperante, da sociedade. A dor é, também, Cristo e Moisés e os faraós e todos os judeus e todas as crianças judias e é, também, o lado mais violento da felicidade. Acredito nisso, sempre... Marguerite Duras, in “Escrever”

A palavra é segredo Reproduz sons e vibrações inaudíveis O desaparecimento da expressão do corpo Faz da solidão um riso barroco A suposição maléfica, errante – faz da fumaça um excesso vulgar Na ausência da água insinua-se o sinônimo da sede Na surda causa do Tempo, a palavra consolida consoantes acalentadas Perturbada já a serenidade – linhas não são caminhos Nem revoluções, apenas silenciosas cascas quebradas Na ausência do rosto insinua-se o antônimo da suavidade E assim o som se fez segredo No coração inconstante dos dias – da idade vácua visual Subverte-se o verbo diminuto, a escrita não representa – ela acontece Evidente terrível de isolamento incompreensível – indelével Da árvore cai o fruto que virou pedra, atônito olhar frígido Vai pontuando com cravos enferrujados, vital sentido do clamor no exílio Arde o corpo com dor imprecisa – interior - facial Agora a face vira palavra.

everaldo ygor

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poesia

zapping eu espero a sua volta crente como os doentes na fila dos transplantes roberto bolaño esperou esperou por um fígado chamado godot na madrugada de sábado só tem filme pornô

a última conversa o rosto repleto de estrelas sem brilho, o céu inundado de lágrimas esqueci de levar o guarda-chuva

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johnny cash: nickajack, tennessee, outubro de 1967 aqui nesta caverna espero a morte cercado por pedras, ossos e pó a escuridão é o meu passaporte para um reino de silêncio (sem dó nem sol): a solidão é a única que resta, amiga, não pergunta nem responde, uma cruz que vai devassando as frestas tão visível que até se esconde a luz que busco nunca vacila: pulula e brilha, sua melodia nem mil mortes podem destruí-la pois vive de si e a si se irradia somos apenas eu e ela: no fim, june – tudo que importa – é dizer sim

gabriel innocentini

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poesia

cego, vejo e ergo Cego Vejo e Ergo da lama do presente o seco barro da criação o pó retórico dos meus dias levado pelos ventos lavado pelo sol lavrado na cidade: a corpulenta massa comprimida dizendo-me dizendo-me nada (só me guia o apocalíptico mendigo e as musas das calçadas)

com as luzes da cidade com as luzes da cidade te sonhava revertida, cinza e branco não filmados, na lembrança do teu corpo que mesmo nu não te nua silhueta seios duvidosos como ângulos de sobrados declinados pela luz da serena madrugada que a cidade sitiava

thiago de melo barbosa 20 MACONDO revista literária


liame (cabaz)

Sou livro intitulado. Um desabafo. Sou todo em parte. Um lacre violado. Sou tudo num nada dissipado. És flor dissecada na mão aberta em palma. És colo e calma na casa onde cresci; moeda encontrada que perdi; o berço em que nasceu minh’alma.

sombra da nanquim (pax-vóbis)

Que a vida, Mesmo frágil, continue. Que perdure Meu amor, além de mim. Que não tenham fim, Meus passos pela rua. Que dissipe sob a lua, Minha sombra de nanquim. segundo trimestre 2011 21


poesia

se fossem sãos A rima É mera aflição Dos versos que me espelham Naquilo que são. De forma nenhuma dirão Do que são feitos. Meus versos Seriam perfeitos Se fossem sãos. Mas nada são, Senão Defeitos.

joão felinto neto

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gigolô poético! Escrever sem sentir É prostituir Seu eu lírico.

inutensílio A poesia É a maestria de ludificar O que é inútil.

fernando melo

segundo trimestre 2011 23


haicais


o silêncio cai em gotas de orvalho serena o céu noite escura pirilampos arteiros pintam o sete chove saudade infinita espera olhos nublados pungente rosa em silêncio rubro olha-me triste só silêncio as rosas sem pétalas mudos espinhos a noite caiu o céu abriu-se negro chovem estrelas chove a noite estrelas caem do céu em pingos azuis suado o sol derrete-se em ouro sobre o sertão floco de neve silencioso e só paira no branco

cristina desouza segundo trimestre 2011 25


haicais

É a minha alma que ocupa espaço onde sou feliz. Mana Elisa, infância em dupla alma gêmea. Em algum jardim pequena flor psicodélica acha-se em mim A poesia, sufocada de amor: epitáfio! Eu apanhei-te no poço de minh’alma bela bartok!

barbarella braga

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3 BRINDES PARA CELEBRAR A MEMÓRIA DE LEMINSKI “Viver de noite Me fez senhor do fogo. A vocês eu deixo o sono. O sonho, não. Esse eu mesmo carrego.” - p. leminski 1. deve ser mesmo o fim : bebi a estrela da manhã com muito gelo e gim

2. de cartola e fraque uma rã mergulha num tanque de conhaque

3. 1 litro de saquê : bashô baixou em mim ou terá sido você?

julio saraiva

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haicais

fio de cabelo: o fio de cabelo

perdido no travesseiro

-traço- cheio de ausência

a chuva cai forte: a chuva cai forte e os ruídos que sobem corroem meus olvidos

Da janela do ônibus, por entre fendas de casas: um brilhante rio

max-rio (a max martins): Em teu nome guardas a corrente desse rio que não tem corrente

thiago de melo barbosa 28 MACONDO revista literária


no rio de invern desce solitĂĄrio canoeiro removagueando

*haicai e pintura sĂŁo de autoria de

elisa t. campos

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resenha

resenha

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As penas do rei de Espanha Considerações sobre o “Diário de um louco”, de Gógol “Tudo o que há de melhor no mundo fica sempre para um cadete ou um general,” exclama, num momento de contrariedade, o narrador do “Diário de um louco”. A fala sintetiza a crítica a um só tempo cômica e dramática que Nicolai Vassílievitch Gógol (1809-1852) faz nesse conto à organização social da Rússia czarista do século XIX, ou seja, às relações vazias, regidas meramente por títulos, cargos e patentes, e também à futilidade e aos despropósitos da burocracia, cuja sede e símbolo maior é a cidade de Petersburgo. É lá que reside o conselheiro titular Popríshin, protagonista e narrador da história. A crítica é tanto mais contundente e interessante porque se dá por um espelhamento inusitado: o despropósito (“loucura”) de semelhante organização social é revelado justamente pelo relato

de um louco, cujo ensandecimento gradual podemos acompanhar ao longo da narrativa em primeira pessoa, como se estivéssemos em sua mente, vendo o mundo segundo seu ponto de vista. Logo à primeira entrada do diário, desconfiamos de que algo deve estar fora de ordem com Popríshin, pois ele escreve que seu chefe de repartição vem dizendo há tempos que “sua cabeça era uma eterna barafunda. Ora parece ter um faniquito de tão agitado, ora mistura as coisas de tal modo que nem satanás entende, escreve títulos com minúsculas, não põe data nem número.” O relato no diário, entretanto, é coerente e concatenado nesse primeiro momento, as digressões parecem fazer sentido e todas as entradas são devidamente datadas. Isso até 8 de dezembro de 1833, pois a partir de então, as datas passam a refletir seu enlouquecimento: “Ano 2000, 43 de abril”; “Martubro, dia 86”; Di 34 a, Ms oan’ Fevereiro 349”. Porém podemos dizer que a confissão (indireta) de loucura surge bem antes do embaralhamento das datas. Ocorre ao fim da primeira entrada (3 de outubro), quando o narr Porém podemos dizer que a confissão (indireta) de loucura surge bem antes do embaralhamento das datas. Ocorre ao fim da primeira segundo trimestre 2011 31


resenha

entrada (3 de outubro), quando o narrador finalmente relata o “incidente fora do comum” que havia anunciado já na frase de abertura do conto: ele reproduz em discurso direto a conversa que acredita ter ouvido entre duas cadelinhas que – ele descobre ao fim do diálogo – trocam correspondência entre si. Em vez de desconfiar da própria sanidade mental ao se ver diante de tão assombrosa revelação, o conselheiro procura antes justificá-la como normal, como mais um dos episódios estranhos que lhe têm ocorrido ultimamente. E o faz lançando mão de um comentário que para o leitor tem efeito inverso, pois ratifica a declaração de loucura: “Confesso que há algum tempo venho ouvindo e vendo coisas que ninguém jamais viu nem ouviu.” As supostas cartas lhe despertam particular interesse, pois o funcionário cultiva uma paixão platônica por Sofia, dona de uma das cachorrinhas (Medji), e resolve descobrir na correspondência canina mais informações sobre a moça, uma vez que a timidez e sobretudo as rígidas normas de conduta social da época impedem um simples conselheiro titular de se dirigir a uma pessoa de grau hierárquico bem mais elevado como Sofia, filha do diretor do departamento onde Popríshin – 32 MACONDO revista literária

quando resolve trabalhar um pouco – desempenha serviços modestos como consertar penas, copiar documentos e, sobretudo, reverenciar os superiores. A história transcorre em 1833, dois anos antes da publicação do conto, ocorrida a despeito da rígida censura do reinado conservador de Nicolau I (1825-1855). A burocracia em questão é, portanto, herança das reformas de Pedro, O Grande (1672-1725), que fundara Petersburgo em 1703 na região pantanosa do Golfo da Finlândia. Tal hierarquia possuía quatorze níveis. Conselheiro titular era o sexto e conferia ao funcionário título de nobreza (enquanto o décimo primeiro nível, conselheiro de estado, tornava o título hereditário). De acordo com semelhante estrutura, portanto, um plebeu, desde que tivesse instrução e fosse sucessivamente promovido, podia chegar à condição de nobre mesmo que permanecesse rude e ignorante sobre quase tudo, exceto as funções específicas de seu posto. Tal é a condição de Popríshin (e do funcionalismo criticado por Gógol). Ele se considera ilustrado apenas por frequentar o teatro de quando em quando e está sempre a emitir julgamento sobre a qualidade literária do que lê. Suas opiniões são contraditórias e risíveis. Em um momento afirma


que “escrever corretamente é coisa que só um nobre pode fazer”, para logo em seguida aceitar que os cães também teriam semelhante habilidade e finalmente, mais adiante, considerar que “os fazendeiros de Kursk escrevem bem.” O paralelo entre nobres e cães é fonte de muitos espelhamentos e críticas, pois tudo o que Popríshin classifica como “cachorrada” nas cartas de Medji nada mais é do que o correspondente canino, por assim dizer, de seu próprio relato: questões corriqueiras do dia a dia, opiniões acerca de comportamento social, preocupações amorosas. Tudo amesquinhado às últimas consequências. Mais do que isso, tudo o que ele mesmo critica e qualifica como “cachorrada” é na realidade fruto de sua própria imaginação. Mesmo na peça de teatro que ele menciona existe um espelhamento interessante do qual ele não se dá conta, apesar de narrá-lo para nós. Por meio desse episódio, além da velada crítica aos rigores da censura (“O estilo era tão livre que não sei como a censura deixou passar”), Gógol também ataca, de maneira oblíqua, a ignorância e a condição de Popríshin (e por extensão de todo o funcionalismo), que ri da sátira ao funcionário e aos comerciantes

que “fazem qualquer coisa para obter o título de nobre”, sem perceber que está exatamente na mesma condição. Essa, aliás, é uma das grandes ironias do conto. O protagonista esbraveja muitas vezes contra sua situação, em alguns casos com rasgos de grande lucidez, como na frase que destacamos no primeiro parágrafo, sobre cadetes e generais. Porém sua motivação interna é das mais mesquinhas. O que ele de fato ambiciona não é uma mudança na ordem social, claramente injusta e despropositada, mas apenas a mudança de seu posto dentro da hierarquia social, o que por fim acaba conseguindo, ao menos em seu delírio, no qual está convencido de ser D. Fernando VII, rei de Espanha. que “escrever corretamente é coisa que só um nobre pode fazer”, para logo em seguida aceitar que os cães também teriam semelhante habilidade e finalmente, mais adiante, considerar que “os fazendeiros de Kursk escrevem bem.” É interessante acompanhar, a partir de sua própria visão, o que lhe acontece. A lógica interna da linguagem se quebra, ele perde grande parte do contato com a realidade. Acredita, por exemplo, que a Terra vai pousar na Lua, e preocupa-se sinceramente com os segundo trimestre 2011 33


resenha

efeitos catastróficos do pouso; julga que os outros internos do hospício para onde é levado seriam capuchinhos por terem a cabeça raspada; e imagina que as vigorosas bastonadas e os baldes de água fria que recebe dos funcionários são parte de um costume tradicional da Espanha, onde pensa estar. No prefácio de O capote e outras novelas de Gógol, Paulo Bezerra afirma que “o Diário de um louco se constitui certamente na maior contribuição formal do autor à literatura.” O tradutor não chega a fundamentar sua opinião com uma análise mais detida desse conto clássico, mas acreditamos que boa parte da mencionada contribuição formal deriva diretamente da escolha do foco narrativo, pois a loucura é do protagonista, sem dúvida, mas é também, e ironicamente, de toda a sociedade. Loucura revelada pela loucura, diretamente, sem intermediação de um narrador onisciente. Desse modo, o fantástico, presença tão marcante na obra gogoliana, configura-se aqui como delírio, em decorrência do ponto de vista adotado. Pela mesma razão, o leitor nunca pode ter certeza de nada neste relato, uma vez que Popríshin já não estava em seu perfeito juízo quando começou a escrevê-lo, conforme procuramos demonstrar. 34 MACONDO revista literária

Assim, como saber o que de fato aconteceu na hilariante cena em que o funcionário resolve interrogar a segunda cadelinha, Fidel, a respeito das cartas de Medji, e, diante da atônita moça que lhe abre a porta, o conselheiro tenta agarrar a cachorrinha (que corre em sua direção e por pouco não lhe morde o nariz) e finalmente invade a casa às carreiras, revira a cesta de dormir do animal e julga tirar do meio da palha o ambicionado maço das cartas de Medji, enquanto Fidel abocanha-lhe a perna, obrigando-o a retirar-se aos trambolhões. A cena é retratada de maneira incrivelmente vívida. O protagonistanarrador descreve inclusive as reações das outras personagens com uma acuidade de percepção que impressiona e faz pensar que Popríshin não tem exatamente um problema de assimilação da realidade, mas sim de interpretação. Ele percebe que sua atitude pareceu a de um doido aos olhos da moça, só não desconfia que pode de fato ser a de um doido, pois pondera: “Acho que a mocinha pensou que eu fosse um louco, porque ficou extremamente amedrontada.” Por outro lado há trechos que desafiam nossa imaginação e poderiam gerar horas e horas de discussões


inconclusivas sobre o ocorrido, pois, sendo claramente um delírio, nada se pode afirmar sobre eles: o que Popríshin pegou na cesta, se é que pegou alguma coisa? Era um tufo de palha ou um maço de jornal picado, usado para manter a cachorrinha aquecida? De onde tirou o teor das “cartas”? Seria um discurso inventado no vazio ou diante de um pedaço de papel amarrotado? A cena é instigante. As observações desabonadoras sobre si mesmo, que parecem tomá-lo de surpresa e indignálo, teriam quem sabe fundamento em algum comentário entreouvido no passado sobre seus cabelos que “se parecem muito com palha”? Impossível saber. O que podemos afirmar é que a personagem, se por um lado nos desperta o riso, também nos comove em seus delírios – provavelmente agravados pelos maus tratos habituais em uma instituição psiquiátrica do século XIX, que mais se assemelha a uma penitenciária do que a uma casa de saúde. E nos compadecemos desse consertador de penas que acaba entrevado em um hospício, “cumprindo pena” por acreditar-se rei de Espanha.

christian botelho borges segundo trimestre 2011 35


charge

enrique b贸veda


caro leitor, antes de prosseguir, coloque uma mĂşsica e aumente [muito] o volume! afinal, quem canta...


contos


Partir Sentia vontade de voltar. Mas não. Os pés autômatos iam em frente. E confiou o caminho, apesar de relutante. O corpo mais estranho. Menos seu. Seguiu pelas pedras da rua. Virou a esquina e uma ladeira lhe inclinou pro equilíbrio. As árvores da alameda que beirava o rio, conforme se moviam, aumentavam. Sombreavam a vista. Um banco de praça quebrado estava vazio. Mal sentou escondeu o rosto nas mãos. Mas não conseguiu. Só um ganido. Teria que voltar ao quarto da pensão. Voltar e levar embora o resto. Embora. Súbito, entendeu o que ouvia: a água descendo pelas pedras. Sua mãe lavando a roupa. Seu choro de cara vermelha e boca escancarada na margem. O tombo nas pedras e o ser puxado pela correnteza. As músicas depois que aprendeu a falar. Os gritos do pai no começo da noite. Depois desapareceu. Depois a quietude. Todos os dias em silêncio. Envelhecendo muda, a mãe. Então, o trem no fim da infância. Sozinho. Embora. E já outra vez ia embora. Com o que tinha ficado daquela vida: a foto, a fita branca de cetim. As roupas deixaria pra dona da pensão.

Tentativa de carta ao moço sério Não tenho outra ponte. Nada mais que me leve. Que me conduza. E eu quero chegar. Eu tenho que ir. Assim como estou agora. Plena em meus andrajos. Porque é assim que estou. Os andrajos não me comprimem. Expandem. Não sou definitiva. Sou todo um baile de máscaras que o ser andrajosa me permite. Posso arriscar direções. O movimento conduz a identidade. O sufoco agora é que o único movimento que corre essa distância é a palavra. Minha oferenda. Minha dádiva. Meu desespero. Minha. Leva até aí o esvoaçar dos meus contornos para que eu continue sendo. É o tormento consentido. Uma busca que supera a mim e a você porque destroça e cria. Desaprendemos pra continuar. Assim, devidamente tomada, nenhuma palavra é gasta demais.

priscila miraz segundo trimestre 2011 39


contos

Honorável Guy “HONORÁVEL GUY”. Era assim que o Gordo Mário o chamava. “O esquisitão do 301”, maldiziam os vizinhos. Nome emprestado de contista francês, Guy era mesmo um tipo estranho. Só uma mecha preta sob a testa sobressaía no rosto imberbe, cuidadosamente afeitado. Cabelos repuxados para trás com gel, terno cinza perfeitamente passado, sapato polido, ele desfilava com o Gordo a tarde inteira, pelo viaduto, buscando o balanço das saias com o rabo do olho, com o pretexto de garimpar discos antigos. Mas saia não havia. As raparigas, que corriam a passos miúdos nos dias de chuva para pegar o seu ônibus no corredor, usavam sempre jeans muito justos, botas grosseiras acima da panturrilha e casacos de capuz. Nos dias mais quentes, observava com relativa tristeza as peles à mostra, as bundinhas bem-feitas em saias tão curtas quanto vulgares. Tempo que corre. Jamais ouvira, e, lamentava, possivelmente jamais ouviria, o farfalhar de um tafetá vaporoso, subindo ligeiro por pernas incautas. Tempos que 40 MACONDO revista literária

mudam. Ele não mudava. Tradicional, ia sempre ao mesmo barbeiro, que às vezes servia de terapeuta. Entre uma navalhada e outra, contava-lhe sobre a sua mais nova jóia. Porque às vezes, dizia, “Tão improvável quanto ouro no lixo, é encontrar uma que se sobressai a essas tipinhas comuns”. “E então”, continuou, “apareceu a Margarida”. Não sabia se ela se chamava mesmo assim, mas foi assim que decidiu apelidá-la. “Poético, não achas?”. O barbeiro acenou com a cabeça. Homem simples, cansava rápido dos longos relatos do cliente, cheio de palavras difíceis. “Cansa-me agora até a ópera, acredita? Até os concertos me enfastiam!”. Pele queimada, flor na cabeça, barriga de fora, Margarida sempre passava tão rápido, mas ele não se importava. Gostava de estudá-la. Conferiu-lhe ares de Jorge Amado, inventou-lhe histórias, imaginou mil vezes o dia em que finalmente lhe entregaria um bilhete furtivo, com os mais ardentes versos. Mas o tal dia nunca chegava. A Margarida nunca ao menos o olhava. Guy discutia longamente com o Gordo um plano de ação, mas sempre travava. Quando finalmente conseguiu um olhar, desviou o seu. Nervoso, fingiu conferir mais um disco na banca, coçou


as pernas devagar. Tarde demais. E assim os dias passavam. E então veio a febre. A fúria, o desejo, tudo misturado. As roupas no chão, rasgadas às pressas. Os empurrões, os gritos, as unhadas. As mãos por todos os lados, a posse forçada contra a parede. Margarida lívida, descorada do sol. Guy finalmente satisfeito, os dedos gordos envolvendo o pescoço esguio, para abafar os sons daquela invasão. E então o silêncio. Margarida muda. Margarida como morta. Deitada inerte, no canto do depósito. O dono da loja, recém-chegado do almoço, incrédulo. E então as sirenes. Guy ainda teve tempo de conferir longamente os sapatos, sujos e arranhados da luta. “ E agora”, pensou, dedos torcidos sobre as costas, “ e agora?”.

fernanda botta

Morte na rua Piratinins Acordei de repente às três da manhã. Tinha ido me deitar por volta da meianoite, mas só consegui adormecer por volta das duas. Não dormi nada. Faz muitos anos que não durmo nada. Levantei e fui até a pia da improvisada cozinha daquele apertado quarto de pensão na Rua Piratinins, num bairro sujo da cidade dos desesperados. Em baixo dela, peguei a garrafa de cachaça e um saquinho de suco de limão em pó. Misturei o pó com um pouco d’água e enchi o resto com cachaça. Tomei tudo de uma vez. É mais fácil assim. Me ajuda a dormir. Fui até a janela e olhei a rua pela única fresta que a cortina fazia. Lá fora as pessoas já haviam parado de passar. Só restavam os loucos, os sujos, os malvados, os deteriorados. Voltei até a pia da cozinha improvisada e me servi de mais um trago, mas dessa vez emendei um cigarro no final. Não existe nada como fumar um cigarro depois de virar um copo da cachaça mais forte da região. Dá uma sensação de alívio – quase como me sentia quando era criança e abraçava um de meus segundo trimestre 2011 41


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cachorros. É engraçado como a gente força o encontro com a nostalgia em qualquer detalhe da vida. Depois de quatro doses, me deitei com mais um cigarro aceso. O sono não aparecia. Ele nunca aparecia. Acho que todos aqueles meses com drogas pesadas na madrugada o deixaram triste e ele se foi pra sempre. Abri um livro em qualquer página e li qualquer parágrafo. Nada me interessava. Folheava tudo sem destino nem origem. Foi quando eu o ouvi pela primeira vez, do lado de fora. Era um som estridente e pausado. Parecia que ele estava dentro do quarto, mas eu sabia que não era o caso. Eu não abria a porta nem a janela já há alguns dias. O que me mantinha refrescado era o ventilador de teto, que girava num ritmo louco e frenético por semanas a fio. Levantei-me pra tomar mais um trago e percebi que a cachaça tinha acabado. O dinheiro no bolso só dava pra um sanduíche ou outra garrafa. Era comer ou me embebedar. Geralmente a segunda opção prevalecia. Decidi então que era hora de deitar de vez. Forçar o desligamento da mente. Fechei os olhos e tentei clarear os pensamentos. O barulho lá fora parecia ter ficado mais alto. Comecei a pensar no barulho. Imaginei que fosse um grilo ou qualquer inseto parecido. Pensei em como seria 42 MACONDO revista literária

gratificante pisar nele. Fiquei alguns segundos sentado na cama, mexendo no cabelo, no rosto sujo e com a barba mal feita. Em seguida levantei e fui em direção da porta. Percebi que vestia apenas uma cueca e uma velha regata branca. A cueca estava furada. Não me importei – já me sentia um pouco bêbado. Abri a porta e me pus pro lado de fora. Não havia ninguém na rua. Na frente do quarto, um arbusto de plantas horríveis. Quase mortas. Fedidas. O barulho vinha de lá. Fucei um pouco nas plantas e o bicho saltou pro meio fio. Não existia água correndo lá. “Que merda”, pensei. “Poderia a água suja dos esgotos levar esse infeliz pra deixar outro pobre coitado acordado”. Avancei de uma vez pra cima dele. Era um grilo. Ele pulava alto. Foi pro meio da rua. Corri com voracidade e logo meti o pé em cima de seu frágil corpo. O som irritante parou num segundo. Tirei o pé e o vi lá, deitado, deformado, derrotado. Cheguei perto com o rosto e disse: “Te vejo no inferno”. Não se preocupem, é pra lá que vamos todos nós. Virei as costas e abri a porta do quarto sem olhar pra trás. Aos fundos, um fusca branco passou por cima do grilo. Acho incrível como encontro paz nas coisas pequenas. Como senti prazer em ouvir o barulho daquele ser insignificante se


A despedida

destruindo em baixo de meu pé. Juntei as moedas do bolso da calça jogada em qualquer canto, peguei um cigarro e saí de novo pra rua. Voltaria mais tarde com Há algum tempo eu percebia que o seu mais uma garrafa de cachaça e nenhum costumeiro silêncio - próprio de uma sono. personalidade senhora de si, daquelas que simplesmente prescindem de palavras -, tornara-se especial. eduardo afonso Havia algo mais pungente, qualquer coisa próxima de uma sensação aguda, porém aveludada, que me alcançava por dentro, intimamente. Essas coisas que a gente simplesmente sente. Os espaços entre os raros momentos em que eu podia vê-lo caminhando pelas calçadas do bairro foram se dilatando a tal ponto que eu já mal conseguia prestigiar aqueles passos desengonçados, típicos dos de uma criatura saída de um livro de fábulas a caminho de canto algum! Seu olhar tornara-se intrigante, carregado da mesma generosidade que sempre lhe fora peculiar, mas agora mais compreensivo e tocado daquele tipo de amor devotado aos imperfeitos – àqueles que protagonizam suas vilanices pelas esquinas sombrias do tempo. Olhos tradutores da percepção de que tudo cumpre seu devido papel imprescindível no tabuleiro da vida, olhos sabedores de que o homem que julga o homem arrisca-se a condenar a segundo trimestre 2011 43


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própria alma. Ontem, ao passar, um pequeno sorriso tremeu em seu rosto, e me foi, propositadamente, ofertado Soube. Senti meu coração ungido como por um bálsamo de afeto ao ouvir o mais inesperado dos sussurros: - “Adieux ma petite!”. Ah, deuses! Por que me proíbem de correr e enlaçar o meu mais ilustre e desconhecido predileto? Só pude permitir que uma lágrima escapasse do lado mais abandonado do meu coração, entendendo que o tempo de estar num mundo ainda mais desabitado de seres cativantes era chegado iminente. Hoje, notas fixadas nos armazéns e bares das esquinas me informavam dele detalhes irrelevantes, desnecessários: nome, idade... Convocando pessoas para cerimônia de orações e louvores – essas coisas banais em despedidas ditas honrosas aos mortos – como se por elas os desencarnados as suplicassem fervorosamente... Não! A minha criatura? O senhor daquela alma suave? Não! Claro que não! Ele pertence agora a todo lugar, voa como um passarinho à la Quintana, alcança pois as tardes que se escondem nos limites de horizontes desconhecidos... E de tudo restou a gente deixada aqui, buscando pra sempre alguma coisa pra preencher a lacuna da saudade. 44 MACONDO revista literária

barbarella braga

Festa pós prêmio Para Marcelo Rubens Paiva Daí ela me liga, diz que não vai. Pergunto o porquê e ganho trinta desculpas capazes de sensibilizar qualquer ummenos a mim. Ela percebe que não houve hesitação da minha parte, então na trigésima primeira ela diz a verdade: está aos prantos, como previ (o que ela diz vem em partes, entre


chiados e barulhos ao fundo escuto ela respirando forte, se eu fechar os olhos e me concentrar ouvem as lágrimas rolarem por seu rosto. Telefone velho pra caralho). Mas a minha menina tem essa faceta: voz extremamente sedutora convidativa para o perigo e o coração de uma criança pronta para ir brincar na rua com os outros. Me fez querer ter força o suficiente para andar e enfrentar aquela chuva para vê-la e pô-la em meu colo, dizer que está tudo bem. Havia um evento para homenagear músicos ganhadores entre indicações diversas e todos aqueles que se sobressaem durante o ano. Ela foi indicada para um bocado de categorias e tinha grandes chances de sair carregando troféus, talvez eu a ajudasse. E mesmo assim ela insistia em não ir, foi isso que ela quis dizer durante aquele silêncio vago durante a ligação que já durava meia hora. Ela simplesmente não queria sair de casa. Era aquilo nela que me intrigava e excitava tanto: sempre imprevisível. Eu era produtor musical e músico frustrado. Frustrado porque eu me deixei chegar a esse ponto. A depressão que me alcançou depois de um acidente terrível não me deixou mais sentir a grama molhada com os pés que agora estão apoiados na cadeira de rodas. Ok,

os tempos mudaram e é uma luta diária, embora sigilosa, de dores e infinito pessimismo. A conheci num programa de televisão. Cabelos longos pretos, calça jeans, tênis vermelhos, camiseta do Mötley Crüe por baixo de uma camisa xadrez. Singela, simples, singular. Bastava sorrir para que fosse vista como deusa por quem a rodeava. Ela cantava e conseguia atingir notas difíceis e corações brutos. Dizia que precisava melhorar, tinha que ir além. Após a gravação veio me cumprimentar. Viramos amigos e depois de um tempo, amantes. Ela riu quando disse que haveria uma festa após o prêmio, e que era conhecida pelo ambiente vintage e bebidas fortes. Aquele risinho pelo telefone significava seu sim, eu conhecia e podia até ver seus olhos espremidos e os dentes querendo aparecer. Pela minha dificuldade de locomoção acabei chegando mais cedo. Fiz o social, falei com uns velhos amigos, cedi entrevistas chatas e repetitivas. É claro que eu não sabia explicar a minha roupa nem o nome do estilista. Cocei os olhos e então a vi. Delicadamente posta em um vestido preto justo. Não era curto, tinha vergonha de mostrar suas pernas. Até nos shows em pubs e cidades mais segundo trimestre 2011 45


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quentes se mantinha (decentemente, como diria) vestida. Eu sabia como eram brancas suas pernas, coxas, e. Mas aquele mistério mantinha a graça daquela nossa relação intensa, mas tão dispersa. E, vista de fora, era uma coisa estranha entre duas pessoas que não sabem se querer, não sabem se querem ou não. Com o cabelo preso e batom vermelho vinha até a mim carregando dois copos de uísque. Falei algumas palavras para encorajá-la e elogiei sua beleza. Ela ficou vermelha em questão de segundos, uma mulher desconsertada em minha frente: não perdi o jeito com elas. Algumas reações infantis apareciam, mas aqueles olhos me pediam novas situações. Nos dirigimos ao salão principal e ela estava desanimada, era visível. Não era surpresa para ninguém, se sentia a vontade nos palcos, onde era impulsiva e descontrolada, e em seu altar maior, que era um apartamento minúsculo num bairro podre e pobre de SP. Ganhou mais um quarto depois de uma relutante reforma, sala, banheiro, cozinha. Um quarto reservado aos livros, muitos, Fernando Pessoa a Oscar Wilde, Leminski a Kafka, Martha Medeiros a Virginia Woolf. Tinha paredes pretas rabiscadas e outras com quadros que 46 MACONDO revista literária

ela pintava durante as noites de insônia que costumavam ser cotidianas. Ela saia com cara de paisagem em todas as fotos, confirmando o desconforto. Anunciaram os prêmios e ganhadores e ela parou de me contar sobre a história do vestido que era emprestado de alguém, acho que da vizinha que cuidava de seus gatos enquanto estava fora, quando chamaram seu nome. -Porra. O que eu vou falar lá? Ficou parada, calada, com medo. Ouviamse aplausos, gritos, estavam chamando e ela continuava imóvel. Falei para ela ir até lá, lhe beijei e então foi buscar o primeiro dos sete bichos estranhos, que eram os benditos troféus. Em todos os discursos de agradecimento as palavras vinham miúdas e tímidas, alguns nomes e tentava fugir de clichês e palavrões. Na última vez, deu um suspiro. Com tudo isso, foi alvo de jornalistas e admiradores na entrada da festa. Fiquei a sua espera perto do balcão do bar- ela apareceria ali de qualquer jeito. Não demorou muito e pediu uísque, depois conhaque, depois vodka. Apesar de conhecê-la bem e por muito tempo, já não sabia identificar o que era ela na minha frente, na minha vida: euforia, pressão, alívio, desespero. Sei que me senti bem quando a vi, bem pra caralho- quando o coração bate tão sem


vergonha dentro do peito que chega a doer. É, desespero. Essa foi a trigésima desculpa no telefone, lembrei. Depois vieram as lágrimas. Enquanto isso, dálhe álcool em nossos infinitos copos e corpos. Saímos de lá na manhã do dia seguinte. Os companheiros de banda da minha doce e instável menina-furacão-mulher estavam há tempo organizando uma viagem de quase três semanas para o mato. Recusei o convite, pois sabia que não teria rampas de acesso e nem paciência para mim. Na verdade era algo maior me dizendo para deixar de ir. Mas ela foi. As semanas que se seguiram foram suaves comigo. Sentia sua falta, mas era um sentimento controlado. Me faltavam as palavras amigas me dando conselhos impossíveis com aquela voz poderosa. Me faltava aquela visão de seus seios fartos quando se abaixava e vinha até a mim para me abraçar, apertar minhas bochecha murchas e afagar meu cabelo. Me recebia daquela forma desde a primeira vez. Era um de nossos rituais. No segundo dia da quarta semana ela aparece na minha casa com um capacete em uma mão e na outra um cigarro. Estava elétrica, agoniada. Deitou no

meu sofá, começou a falar coisas sem sentido sabendo que eu não entendia e aqueles olhares me agradeciam pela companhia e tolerância. Tentei falar algo antes que ela fosse subir em sua moto e rodar por aí, correndo risco, mas não deu tempo. E eu, merda, não poderia correr atrás dela. Mais tarde naquele dia –que já era noite- ela volta. Uma perna com aquela bota ortopédica horrorosa quase até a virilha; a outra exposta e suja de sangue. Tinha retocado a tatuagem de caveira mexicana na canela esquerda, eu amava aquele desenho. Os braços cheios de arranhões. Eu sabia que ia dar merda, eu sabia. O sorriso era o mais calmo do mundo. Como se estivesse satisfeita com a própria desgraça. Cheirava a álcool, hospital e a perigo. Tirou sua blusa quando me explicou que veio um louco em sua direção e não pôde desviar. A moto caiu em sua perna e pelo que entendi, foram três lugares fodidos no osso, o joelho podre. Ela estava bem, me garantiu, só doía quando respirava. Havia um curativo enorme envolvendo sua costela. Ficou de sutiã e calça jeans rasgada no tamanho de shorts usado por funkeiras depravadas. Apesar da cena, havia ternura e fervor por ela da minha parte. Chamei-a para perto de mim, ajeitei o segundo trimestre 2011 47


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o tripé e registrei aquele momento. Nosso bloco carnavalesco de dois integrantes: Os pernetas. A gente não podia correr, sambar e nem oferecer nada mais que intimidade entre nós e respostas secas e grossas a terceiros. Revelada, em preto e branco, o contraste exposto entre meu prazer em tê-la em cima de mim, enquanto eu a envolvia num abraço e seu olhar de desconhecida. Em um papel de boa qualidade, duas cópias, em um tamanho bom e numa moldura simples. Estava em sua biblioteca amadora e em minha mesa de trabalho. Eu e ela: o meu maior e melhor prêmio.

mariana turow

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A menina do lápis preto A menina pegou no lápis e quis saber. Para que serve? Com bonomia, a mãe explicou. Para pintares o mundo. Mas a criança ficou intrigada. A preto? Gostava mais de ter um lápis de cor. O meu pai fez anos ontem. Poucas horas depois, a meio da madrugada, deu entrada no hospital. Com lágrimas nos olhos. E o pavor da morte galopante a assaltar-lhe o espírito. Afinal, não está a morrer. Porque a dor é tão arrasadora quanto lenta. E isso basta para apaziguar o medo. Há tempo demais para o digerir. É isso que faz um homem chorar? Ter tempo de sobra para consumir o destino? A menina pegou no lápis e tentou. Esborratar uma folha de papel em branco com o seu mundo a preto. Mas permaneceu inquieta. Mãe, por que não posso usar outras cores? Porque tens apenas esse lápis. E não posso ter uns coloridos?, insistiu a criança. Podes, prosseguiu a mãe, mas se não


consegues usar esse para que precisas dos outros? O meu pai tenta acordar. Insiste em sacudir do corpo aquele torpor da inconsciência que o abraça na maca, perdida num corredor de um hospital. Já não chora, porque teve tempo de digerir a dor. Mas sente-se inquieto, porque nasceu o dia e ainda não está certo quanto ao que tem de pôr em ordem, na desordem que pressente. Se ao menos o meu pai tivesse um lápis, um qualquer, talvez pudesse esboçar um plano. Um simples lápis. E uma folha de papel em branco. É que ele bem sabe que o seu mundo vai perder a cor a qualquer momento.

victor eustáquio

Zezão A figura atravessou a ponte e veio no rumo de casa. Menos que um homem visto assim mais de perto: um espantalho, um bicho. Corremos pra dentro de casa. De lá, espiando pela greta da janela o ser desgrenhado especado ali no terreiro. Nosso pai veio lá do curral e se aproximou dele. Com certa alegria, a voz do nosso pai: Ora, mas se não é o Zezão de guerra! Quem é vivo sempre aparece... Abrimos então a janela: ali, à nossa frente, no ser maltrapilho, a lendária figura de Zezão. Com quantas festas acabara? Havia roubado a mulher de quem? Duas mortes nas costas, nenhum peso na consciência. Louco. Andara pelas estradas e pelos ermos. Nos campos, entre o gado, roendo coco e chupando ingá — João Batista, no deserto, sobrevivendo com quase nada. Noção nenhuma de vida e morte. De cócoras, quase nu diante da nossa casa. Por pudor, as mulheres lá na cozinha. Em troca da roupa limpa, a mão suja estendida cheia de coco indaiá. Um quase sorriso em meio à barba cerrada. Ruína de dentes. Tudo o que lhe restara: o silêncio e uma generosidade insana.

geraldo lima segundo trimestre 2011 49


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Asilo Suportou por cento e dois anos. Foi apontado como um homem de fé, “um dos nossos”. Soube por estranhos, dias atrás, que a morte tem dessas coisas.

O procurado Quando parou de chover, o sol forte fez o cheiro invadir todas as casas, corações e mentes. O morto tinha passagem pela polícia, era temido como o desemprego. Estava tão injuriado com as coisas, o estado delas, que se deixou levar pelo clima.

ari marinho bueno 50 MACONDO revista literária


poesia visual

constanรงa lucas

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O rondó do narrador-personagem peito do caráter testemunhal dessa narde Lavoura Arcaica, de Raduan rativa ficcional publicada em 1975, que, Nassar devido à elaboração da linguagem e à profundidade dedicada à subjetividade do narrador, pode ser considerada Introdução de grande importância para a literatura brasileira contemporânea.

Ao longo do século XX, temas relacionados às vítimas da agressão, da violência, da tortura tornaram-se recorrentes na literatura. Os períodos de guerras com seus respectivos sobreviventes, torturados, refugiados, ex-combatentes, impõem desafios tanto para as práticas clínicas destinadas a minimizar os danos causados pelos traumas dos remanescentes quanto para as teorias relacionadas à recepção crítica dos “vestígios” desses eventos. A literatura de testemunho afirma-se como terreno de expressão da subjetividade marcada pela violência, pela invasão, pela transformação do corpo em algo manipulável (SELIGMANN-SILVA, 2005). Na esfera privada, os segredos silenciados pelos limites da família marcam os sujeitos da dor, portadores de dores insuportáveis, paralisados no momento do choque. Este artigo consiste em um estudo sobre o atormentado narrador-personagem André, de Lavoura Arcaica (NASSAR, 1989) e da desagregação de sua família. Trata-se de observações a res-

Fantasmas da Infância A estória de André, narrador-protagonista do romance de Raduan Nassar, remonta a parábola bíblica do filho pródigo: refugiado em um quarto de pensão sem ter dado explicação por sua partida, ele inicia a narração a partir do encontro com seu irmão mais velho, Pedro, incumbido de resgatá-lo e reconduzi-lo à família. Lavoura Arcaica consiste na narrativa da volta de André para casa de sua família, onde passou a infância e a adolescência, lugar que “guarda” a memória sob a forma de segredos tragicamente persistentes. Dividida em duas partes, “A partida” e “O retorno”, a narrativa em Lavoura Arcaica gira em torno da constância de aspectos da infância na vida adulta. Como epígrafe à primeira parte, há uma interrogação de autoria do poeta Jorge de Lima: “Que culpa temos nós dessa planta da infância, de sua sedução, de seu viço e constância?” Ao longo do romansegundo trimestre 2011 53


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ce, André vai aos poucos semeando pistas de que é assombrado, pela memória confusa de um segredo de infância: (...) caí pensando nos seus olhos, nos olhos de minha mãe nas horas mais silenciosas da tarde, ali onde o carinho e as apreensões de uma família inteira se escondiam por trás, e pensei quando se abria em vago instante a porta do meu quarto ressurgindo um vulto maternal e quase aflito “não fique assim na cama, coração, não deixe sua mãe sofrer, fale comigo” e surpreso e assustado, senti que a qualquer momento eu poderia também explodir em choro me ocorrendo que seria bom aproveitar um resto de embriaguez que não se deixara espantar para confessar, quem sabe piedosamente, “é o meu delírio, Pedro, é o meu delírio, se você quer saber”, mas isso foi só um passar pela cabeça um tanto tumultuado que me fez virar o copo em dois goles rápidos, e eu que achava inútil dizer fosse o que fosse passei a ouvir (...) (NASSAR, 1989, p. 1718). 54 MACONDO revista literária

André considera inútil dizer. Diante do irmão mais velho, nega-se à possibilidade de falar a respeito de seu “delírio”. A narração transcorre num fluxo turbulento, expresso numa sintaxe convulsa, que refuta a interrupção e a ordenação pelo ponto final. Os diálogos são precariamente orientados pelo filtro de André, que se policia constantemente sobre o que pode ser revelado ao seu interlocutor. A compreensão das ações e reações de André, suas atitudes agressivas, sua voz revoltada, diz respeito também à falta de um interlocutor solidário, disposto a ouvir suas reflexões mais íntimas sem censurá-lo ou repreendê-lo: “essas as perguntas que vou perguntando em ordem e sem saber a quem pergunto” (NASSAR, 1989, p. 51). Os segredos guardados, as “coisas nunca antes suspeitadas nos limites da nossa casa”, registrados em seu corpo, em sua memória, são responsáveis pela tensão na voz de André, personagem que precisa falar, mas foi emudecido por suas experiências: (...) e pensando também em como Deus me acordava às cinco todos os dias pr’ eu comungar na primeira missa e em como eu ficava acordado na cama vendo


de um jeito triste meus irmãos nas outras camas, eles que dormindo não gozavam da minha bem-aventurança, e me distraindo na penumbra que brotava da aurora, e redescobrindo a cada lance da claridade do dia, ressurgindo através das frinchas, a fantasia mágica das pequenas figuras pintadas no alto da parede como cercadura, e só esperando que ela entrasse no quarto e me dissesse muitas vezes “acorda, coração” e me tocasse muitas vezes suavemente o corpo até que eu, que fingia dormir, agarrasse suas mãos num estremecimento, e era então um jogo sutil que nossas mãos compunham embaixo do lençol, e eu ria e ela cheia de amor me asseverava num cicio “não acorda teus irmãos, coração”, e ela depois erguia minha cabeça contra a almofada quente do seu ventre, e curvando o corpo grosso, beijava muitas vezes meus cabelos, e assim que eu me levantava Deus estava do meu lado em cima do criado mudo, e era um deus que eu podia pegar com as mãos e que eu punha no pescoço e me enchia o peito e eu menino eu

entrava na igreja feito um balão, era boa a luz doméstica da nossa infância, o pão caseiro sobre a mesa, o café com leite e a manteigueira, essa claridade luminosa da nossa casa e que parecia sempre mais clara quando a gente vinha de volta lá da vila, essa claridade que mais tarde passou a me perturbar me pondo estranho e mudo, me prostrando desde a puberdade na cama como um convalescente, “essas coisas nunca suspeitadas nos limites da nossa casa” eu quase deixei escapar mas ainda uma vez achei que teria sido inútil dizer qualquer coisa, na verdade eu me sentia incapaz de dizer fosse o que fosse (NASSAR, 1989, p. 26-28). André, na pensão, estava protegido de sua família pelo quarto. Depois de abertas as venezianas a pedido do irmão, visualiza “um fim de tarde tenro e quase frio”, momento de indefinição, de transição. A visão do “sol fibroso e alaranjado” faz percorrer no personagem “uma primeira crise” (NASSAR, 1989, p. 16-17). André estava guardando a si mesmo dos turvos “segredos” de sua infância. Fechado no quarto, mantinha-se distante da família, “tresmalhado” das pessegundo trimestre 2011 55


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soas com quem não deveria conviver. A presença de Pedro obriga André a encarar a luminosidade alaranjada da passagem entre a tarde e a noite. O momento do diálogo com Pedro recria, à revelia do desejo de André, as circunstâncias dos acontecimentos sombrios escondidos na memória de André, revelando, tal como reflete Halbwachs, o caráter involuntário da memória: “Nem sempre encontramos as lembranças que procuramos, porque temos de esperar que as circunstâncias, sobre as quais nossas vontades não têm muita influência, as despertem e as representem para nós” (HALBWACHS, 2004, p. 53). A “cena” do encontro com Pedro perturba André. Recompõe, de certa forma, a invasão de seu quarto de criança. O girar da maçaneta dispara a crise do narrador-personagem, que não consegue continuar exilado, livrarse dos episódios sombrios da infância: “meus olhos depois viram a maçaneta que girava, mas ela em movimento se esquecia na retina como um objeto sem vida, um som sem vibração, ou um sopro escuro no porão da memória” (NASSAR, 1989, p. 10).

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Silêncio e imobilidade André fugiu da fazenda, dos limites geográficos e afetivos da família, para tentar fugir de suas angústias, de suas perturbações. A casa da família constitui-se para ele como o lugar onde aconteceram eventos sombrios, que resistem à representação. Estar em casa é insuportável para ele. Por isso, o narrador-personagem “tresmalhase” na intenção de obter momentos de tranqüilidade: não importava que eu, erguendo os olhos, alcançasse paisagens muito novas, quem sabe menos ásperas, não importava que eu, caminhando, me conduzisse para regiões cada vez mais afastadas, pois haveria de ouvir claramente de meus anseios um juízo rígido, era um cascalho, um osso rigoroso, desprovido de qualquer dúvida: “estamos sempre indo para casa” (NASSAR, 1989, p. 35-36). O movimento de André para fora da família é inútil: ele consegue apenas uma espécie de anestesia, breve intervalo entre suas agitações psíquicas mais agudas. Mas, ao encontrar-


se com Pedro, sucessor do pai pela primogenitura, a frágil alienação a que havia tentado se entregar cessa e a crise de André retorna à flor da pele, a ferida mal cicatrizada abre-se novamente: tem início a lavoura arcaica, uma narração que intercala o diálogo entre os dois irmãos com e a memória da infância e da adolescência de André. No cenário do quarto de pensão está de um lado o narrador-personagem obrigado a se erguer de seu torpor, de outro, seu irmão mais velho, disposto a restituir à família o filho desgarrado. Como combustível para ambos, o vinho. Nessa circunstância extremamente tensa, o signo “arcaico” adquire sentido temporal (como algo tão difícil de ser digerido que parece ancestral e interminável) e sentido “crítico” (como estágio que antecede a maturidade, a estabilidade, momento de gestação). Para Walter Benjamin, “quando surgiram os elementos favoráveis ao florescimento do romance, a narrativa começou pouco a pouco a se tornar arcaica” (BENJAMIN, 1994, p. 202). No romance de Raduan Nassar, ao contrário, o signo “arcaica” está relacionado a um período de atribulação. André é o protagonista de uma lavoura conturbada, tentativa de estabelecimento de uma ordem, superação de um

período de indistinção: “estou cansado, quero fazer parte e estar com todos, eu, o filho arredio, o eterno convalescente, o filho sobre o qual pesa na família a suspeita de ser um fruto diferente” (NASSAR, 1989, p. 126). O jovem rebelde que se julga apto a fundar sua própria igreja, que altera de maneira agressiva o final da história do faminto contada pelo pai (NASSAR, 1989, p. 79-86), encontra-se tão paralisado no momento e no lugar do acontecimento sombrio responsável pela sua mudez quanto sua irmã Ana no momento do encontro de seus corpos: (...) “agarrei-lhe a mão num ímpeto ousado, mas a mão que eu amassava dentro da minha estava em repouso, não tinha verbo naquela palma, nenhuma inquietação, não tinha alma naquela asa, era um pássaro morto que eu apertava na mão” (NASSAR, 1989, p. 104). A falta de movimento da irmã sugere o espanto pela relação que se consumava e André recorre a Deus para que algo confira alguma legitimidade a suas ações: “[meu Deus] me concede viver esta paixão singular fui suplicando enquanto a polpa feroz dos meus dedos tentava revitalizar a polpa fria dos dedos dela, que esta mão respire como a minha, ó Deus” (NASSAR, 1898, p. 104). A evocação de Deus no momento da relação incestuosa revela a personalidade segundo trimestre 2011 57


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transtornada de André: o narrador não consegue discernir o sagrado do profano e convoca Deus para perto de si novamente, tal qual o deus que jazia a seu lado, sobre o criado, sugestivamente, mudo. Essa indistinção entre sagrado e profano diz respeito ao arcaico presente na narração: há uma mistura de elementos sombrios no ambiente psíquico do protagonista. Na lavoura da narração, apresentam-se os sermões do pai, a reivindicação de sentar-se à mesa da família, a intenção de evitar que Ana fale sobre o que houve, a desesperada tentativa de se eximir de culpa: “estava claro também que eu esgotava todos os recursos com um propósito suspeito: ficar com a alma leve, disponível, que ameaças, quantos perigos!” (NASSAR, 1989, p. 131). Ana, depois do encontro de corpos proibido, dirige-se para a capela e se atira ao exercício de rezar incessantemente orientada pelas contas do terço. André não consegue interromper o “tenso formigamento” dos lábios da irmã (NASSAR, 1989, p. 118). Ao pronunciar maquinalmente as orações ordenadas pelo terço sem dar resposta à fala convulsa e perturbada de André, Ana sugere a intenção de se alienar da experiência com o irmão. O fato de não responder a André demonstra 58 MACONDO revista literária

incapacidade de falar a respeito do que acabou de acontecer. Continua rezando, pronunciando automaticamente as orações, mesmo depois da partida do irmão: paralisado na memória obscura de sua infância, André parece retornar sempre a esses eventos confusos através dos corpos de seus irmãos: “alguém mais forte do que eu é que puxava a linha e, menino esperto e sagaz, eu tinha caído na propalada armadilha do destino: enfiou seus longos braços nos frutos do meu saco, pinçou nos finos dedos o fundo, e, súbito, num fechar d’ olhos, virou meu doce mundo pelo avesso” (NASSAR, 1989, p. 116). André pamanece congelado, fotografado na “cena” embaçada da “invasão” do seu quarto, que, para ele, não pode ser colocada no álbum da família, deve ser escondida, esquecida. Ao longo de sua narração e de sua trajetória psíquica de volta do quarto de pensão à fazenda, o que acontecia nessa cena retorna como algo resistente à narração, escondida no “porão da memória” de André, reprimido (FREUD, 1919) e, estendendo a mudez e a imobilidade à Ana, André continua (re) produzindo vítimas da memória que carrega dolorasamente: “e meu corpo, eu não tinha dúvida, fora talhado sob medida para receber o demo” (NASSAR,


, 1989, p. 16). Conclusão André, sem dispor de um interlocutor solidário, sufoca o relato sobre o afeto que o transformou numa pessoa capaz de afastar o discernimento a qualquer preço. O silêncio perdura nele como impossibilidade de evitar o trágico. Na segunda parte do romance, “O retorno”, ele narra os momentos em que as conseqüências de suas ações destroem a aparente solidez de sua família, até então representadas pela força religiosa do patriarca. Há uma duplicação de cenas da primeira parte do romance na segunda: o diálogo com Pedro é duplicado na conversa com o pai; o afeto entre a mãe e André, no afeto entre André e Lula; a coreografia de Ana, na segunda parte do romance, com o corpo enfeitado pelos adereços da caixa André. Andando em círculo, André, ao conversar com seu pai, mais uma vez expõe a inutilidade das palavras: “– Admito que se pense o contrário, mas ainda que eu vivesse dez vidas, os resultados de um diálogo para mim seriam sempre frutos tardios, quando colhidos” (NASSAR, 1989, p. 162). A colheita da lavoura de quem julga inférteis as palavras que ouve e que

pronuncia é a destruição. A interrupção das repetições dá-se pela atitude violenta e desesperada do patriarca: durante a comemoração pela volta de André, composta a tradicional roda dos momentos festivos, Iohána assassinou Ana com um golpe de alfanje, interrompendo os passos sensuais da filha. Diante da desagregação violenta e abrupta da família, André limita-se a narrar a partir de seus olhar frio a reação passional de seu pai. O “arcaico” como estágio de indistinção e de promiscuidade invade o tronco da família e constitui-se como signo central para esta leitura do romance: depois da partida de André, a frágil estabilidade da família perde-se irremediavelmente; com sua volta, a família começa a se destruir. André é um narrador-personagem que sofre de reminiscências da infância. Perdido entre os sermões do pai e os transbordamentos de afeto reprimidos pela recomendação da mãe (“não acorde seus irmãos, coração”), sua trajetória de vida é destrutiva em relação à família. Por fim, recorro às considerações de Freud para lançar um último olhar ao poder aniquilador dos afetos e das repressões experienciados por André na infância: “Quando o estranho origina-se de complexos infantis, a questão da realidade material não surge; o seu lugar é segundo trimestre 2011 59


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tomado pela realidade psíquica, implica numa repressão real de algum conteúdo de pensamento e no retorno desse conteúdo reprimido, não no cessar da crença da realidade de tal conteúdo” (FREUD, 1976, p. 309).

rodrigo marçal santos

Referências Bibliográficas BENJAMIN, Walter. “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Rouanet. 7ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 197-221. FREUD, Sigmund. “O estranho”. In: ______. Obras psicológicas completas: edição standart brasileira. Trad. Jaime Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v. 17, p. 273-318. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Ed. Centauro, 2004. NASSAR, Raduan. Lavoura Arcaica. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 1989, p. 16). SELIGMANN-SILVA, Márcio. “Literatura e trauma: um novo paradigma”. In: SELIGMANN-SILVA, Márcio. O local da diferença: ensaios sobre memória, arte, literatura e tradução. São Paulo: Editora 34, 2005, p. 63-80.

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caricatura

venes caitano marques segundo trimestre 2011 61


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Ari Marinho Bueno ::: natural de Ourinhos, SP. Autor. Mantém o blog http:// vacasnoceu.blogspot.com/; contato: arimabueno@hotmail.com. Barbarella Braga ::: Maria Augusta Braga, pseudônimo: Barbarella Braga, artista plástica, revisora, redatora, e produtora gráfica, residente em São Paulo, Capital. Blog: http://barbarellabraga.blogspot.com Christian Botelho Borges ::: nasci em São Paulo, em 1974, e aqui vivo desde então. Estou no último ano do bacharelado em Letras pela Universidade de São Paulo, e também sou formado em Engenharia Civil pela Escola Politécnica da mesma universidade. Blog: http://christianbotelhoborges.blogspot.com;Site: http://www. viagemdeletras.com.br/; E-mail: christian.b.borges@gmail.com Constança Lucas ::: caixa postal 1599, 01031-970 São Paulo SP - http:// constancalucas.blogspot.com/; http://postaiscompoemasvisuais.blogspot.com/; http://artepostaloslivros.blogspot.com/. E-mail: constancalucas@gmail.com Cristina DeSouza ::: Nascida e criada no Rio de Janeiro, mudou-se para Phoenix, Arizona, Estados Unidos, ainda na década de 1990. Lá pratica medicina e escreve. Mantém um blog – mix-tura http://prismaticblue-mix-tura.blogspot.com/. Contato: prismaticblue@cox.net Davino Ribeiro de Sena ::: é diplomata e poeta. Viveu na Espanha, Austrália, Japão, Estados Unidos e Arábia Saudita. Atualmente mora em Londres. Tem 8 livros publicados. Seu primeiro livro venceu o concurso nacional promovido pela Fundação Nestlé de Cultura, em 1991. Em 2009, participou de antologia organizada pela revista Poesia Sempre, da Fundação Biblioteca Nacional. 62 MACONDO revista literária


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Edson Bueno de Camargo ::: Santo André/SP, em 1962, mora em Mauá/SP. Publicou “cabalísticos”Orpheu – Ed. Multifoco/RJ/2010;“De Lembranças & Fórmulas Mágicas”, Tigre Azul/ FAC Mauá-2007; ”O Mapa do Abismo e Outros Poemas”, Tigre Azul/ FAC Mauá-2006, “Poemas do Século Passado-1982-2000”; participou de algumas antologias poéticas e publicação literárias diversas. http://umalagartadefogo. blogspot.com Eduardo Afonso (por Barbarella Braga) ::: é vendedor em uma empresa metalúrgica, músico autodidata, futuro estudante de cinema, aspirante a escritor e possuidor de olhos e alma de um fotógrafo. Elisa T. Campos ::: “Sou uma aprendiz fazendo estágio no universo dos Haicais”. Blog: http://pintandohaikai.blogspot.com/; E-mail: elisayokocampos@hotmail. com Enrique Bóveda ::: Enrique Freire Bóveda. Nasci em 1984 e sou “brasiguayo”, ou seja, levo no coração o Paraguay e o Brasil. Blogue dedicado à exposição dos textos, ilustrações, poemas, quadros, fotografias, charges e outras formas de arte que produzo, assim como reflexões, novidades e trabalhos alheios interessantes. http://enriqueboveda.com.br/ Everaldo Ygor ::: é Sociólogo e Poeta, nasceu em Sampa no verão de Fevereiro. É autor do livro Estação Liberdade da Existência do Ser; o poema é retirado desta obra. Blog: http://outrasandancas.blogspot.com/ Fernanda Botta ::: é jornalista e escritora de ocasião. Quando dá na telha, publica seus textos no blog http://8linepoem.wordpress.com. segundo trimestre 2011 63


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Fernando Melo ::: Sou estudante de Serviço Social da Universidade Estadual de Londrina. Blog: http://rascunhandoeponto.blogspot.com/ e email: fernandodalton@hotmail.com.br. Gabriel Innocentini ::: é jornalista. Numa existência ideal, foi rockstar na década de 60, leitor de Borges quando ele estava cego e marinheiro nas horas vagas. Contato: eduardomarciano@gmail.com. Geraldo Lima ::: é professor, escritor e dramaturgo. Publicou alguns livros, entre eles Um (romance, LGE Ed., 2009), Tesselário (minicontos, Selo 3 x 4, Ed. Multifoco) e Trinta gatos e um cão envenenado (peça de teatro, Ponteio Edições, 2011). É colunista dos sites O BULE www.o-bule.com e Portalentretextos www. portalentretextos.com.br, e do Jornal Opção e do Jornal de Sobradinho. Bloga em www.baque-blogdogeraldolima.blogspot.com. João Felinto Neto ::: Nascido aos 04 de outubro de 1966, em Apodi/RN, ingressa no serviço publico aos 19 anos e aos 25 anos torna-se bacharel em Ciências Econômicas pela UERN. Casado, pai de dois filhos, somente aos trinta e quatro anos, começa escrever e catalogar poemas e crônicas. Já têm 35 livros publicados. Mais em http://www.joaofelintoneto.xpg.com.br/ Juliana Bernardo ::: nasceu no dia dos namorados de 1989. Graduanda em Filosofia pela Universidade de São Paulo, foi publicada nas revistas Germina, Zunái, Diversos Afins, Nikkei Bungaku (nº 25 e nº 37), Ventos do Sul, Cabeça Ativa e Originais Reprovados. É autora do livro Carta Branca, publicado em 2011 pela Editora Patuá. Julio Saraiva ::: poeta, cronista e jornalista, Júlio Saraiva nasceu em São Paulo 64 MACONDO revista literária


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em 6 de agosto de 1956. Publicou A Mímica do Vento (Edigrax, São Paulo, 1990) e Liturgia dos Náufragos (RG Editores, São Paulo, 2002). Por opção, nunca tomou parte de movimentos literários. http://currupiao.blogspot.com/ Leda Cartum ::: é escritora e finaliza o curso de Letras na USP. Passou o ano de 2010 em Paris, onde cursou a Sorbonne e compôs seu primeiro livro inédito, As horas do dia – pequeno dicionário calendário. Revisora e preparadora, é co-roteirista do curta-metragem Estação (concorrente da competição oficial de Cannes em 2010). Letícia Fontoura ::: uma mageense nascida em 92, que atualmente cursa História da Arte na UFRJ mas tem a Literatura como amante feroz. Blog: http://tidosentido. blogspot.com/. E-mail: leticia_fontoura12@hotmail.com Mariana Turow ::: 17 anos. Psicóloga de bar, escritora de paredes, amante das letras. Atualmente desempregada devido a burocracias, mas mantém o equilíbrio com a cara nos livros. Ninguém publicou nada feito por mim, ainda. http://www. marianaanm.blogspot.com. Priscila Miraz ::: teve contos publicados pelo jornal literário Rascunho, pelas revistas eletrônicas Germina e Caderno Literário. Mantém o blog Descontínuo Reverso: http://descontinuoreverso.blogspot.com Rodrigo Alves Barreto ::: comecei por volta de 2007; peguei gosto pelo fotojornalismo em São Paulo, que é a minha maior Musa, os personagens e a frieza do concreto me instigam; as muitas coisas acontecendo em todo canto da cidade, a correria da busca de sossego nas horas de rush, essas pequenas ironias são muito boas de fotografar. São Paulo realmente me ‘Ins_Pira’. Viajante de mochilão nas costas com segundo trimestre 2011 65


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espaço pra levar o equipamento fotográfico pra todos os lugares, construí laços de amizades pelos caminhos trilhados. Meus mantras: Pedro Martinelli, “Fotografia só existe quando você mete a cara no mundo”. E José Saramago, “É ainda possível chorar sobre as páginas de um livro, mas não se pode derramar lágrimas sobre um disco-rígido”. Rodrigo Marçal Santos ::: Licenciado em Letras (FALE/UFMG - 1999). Mestre em Teoria da Literatura (FALE/UFMG - 2007), dissertação “A identidade cultural no romance ‘A majestade do Xingu’, de Moacyr Scliar” (disponível na Biblioteca Digital da UFMG). Professor de Língua Portuguesa da Rede Municipal de Ensino de Belo Horizonte. Contato: rodrimarcal@yahoo.com.br Thiago de Melo Barbosa ::: nasceu no dia 02 de julho de 1988, em Castanhal-PA, onde viveu até os 20 anos, quando se mudou para Belém. Há muito tenta atingir a poesia, mas apenas há uns três anos dedica-se com mais afinco a este duro ofício; dedicação esta que culminou na produção de dois livros ainda não publicados: “Liberdade Naufragável” e “Som em Miragem”. Venes Caitano Marques ::: caricaturas - descubra o seu lado engraçado agora mesmo! http://venescomw.blogspot.com; http://www.worldcartoonists.blogspot. com/; http://www.brazilcartoon.com/blog/venes/; Victor Eustáquio ::: Foi jornalista durante 15 anos. Em 2002, tornou-se empresário na área dos media ao mesmo tempo que decidiu seguir a carreira académica. É docente do ensino superior e doutorando em Estudos Africanos e Ciências da Comunicação e Informação. Estreou-se como romancista em 2008 ao publicar em Portugal «O Carrossel de Lúcifer» pela Bertrand Editora. 66 MACONDO revista literária


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Raul Pompéia ... nasceu em Angra dos Reis (Estado do Rio) a 12 de abril de 1863 e morreu no Rio de Janeiro a 25 de dezembro de 1895. Bacharelado em Letras, pelo Colégio D. Pedro II, em 1880, e formado em Direito, pela Faculdade do Recife, em 1886, exerceu vários cargos públicos, entre eles o de Diretor da Biblioteca Nacional. Os seus artigos de crítica literária e diversos contos, folhetins e crônicas, ficaram espalhados pela imprensa da época. Escritor pouco fecundo, Raul Pompéia deixou escritos romances de boa qualidade, onde se nota a influência da escola realista e a marca indelével de um profundo espírito de observação, que fez dele um dos melhores escritores psicólogos da literatura brasileira. Dotado de rara habilidade para o desenho, ilustrou alguns livros seus e de outros autores, tendo feito também magistrais caricaturas de diversas personalidades da vida pública. Por motivos ainda mal esclarecidos, suicidou-se com um tiro, aos trinta e dois anos. Em 1880, publicou o primeiro livro, o ensaio literário Uma Tragédia

no Amazonas e um ano mais tarde lançou Canções Sem Metro, poesias. O romance O Ateneu, publicado em 1888, popularizou o nome do autor, por ter sido considerado um admirável estudo psicológico, onde ele demonstrou a sua excepcional capacidade de análise do comportamento psíquico de seus semelhantes. No mesmo ano de 1888, publicou ainda, em folhetins na Gazeta da Tarde, o romance Alma Morta. Em 1892, por questões de honra, trava duelo com Olavo Bilac. Já nesta altura começam a manifestar-se os sintomas da perturbação mental que o empurrariam ao suicídio, cometido a 25 de dezembro de 1895. Raul Pompéia é o patrono da Cadeira N.4 33 da Academia Brasileira de Letras. (Fonte: bookstore.uol.com.br)

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Um vizinho original Eu tive um vizinho original. Era magro, comprido, poeta e tísico, tudo em grande dose. Poeta da velha idolatria das brisas, tísico do terceiro grau. Quem o visse, à rua, enfiado no velho croisé como num tubo, espirrando para baixo as mirradas canelas, para cima, um pescoço de garça, nodoso e interminável, frágil apoio da cabecinha viva e inquieta, projetada para a frente, com o longo cavaignac de poucos cabelos e os olhos fúlgidos arregalados, quem o encontrasse hesitaria em tomá-lo por um oficial de justiça, por causa do olhar extraordinário, e ver-se-ia reduzido a não formar opinião sobre aquele estranho transeunte, malvestido, delgado, célere, como se tivesse medo de chamar atenção, fugitivo, quase fantástico. O nosso poeta tinha uma filha moça, digna filha! Alta como o pai, como ele magra, alvíssima, talvez tuberculosa, provavelmente poetisa. Representava os restos de uns amores do poeta que deram em casamento, de um casamento que dera em droga. 68 MACONDO revista literária

Vivia das esperanças fugazes de uma cadeira de professora pública que lhe prometiam, havia anos, e que lhe não davam nunca. Além disso, tocava piano. Tocava piano não exprime bem. A donzela, repetia, várias vezes ao dia, repisava, remola, uma certa e determinada música, invariável, pertinaz, uma espécie de balada, lânguida, desafinada, medonha! O piano era um memorável tacho, de não sei que fabricante, diabólico. Produzia sons novos, inauditos, fenomenais, que davam idéia de fabuloso armazém de ferros velhos em revolução, harmonias assombrosas, não sonhadas por Wagner. Por um efeito incrível de contágio, parece que a enfermidade dos donos se comunicara ao piano. Eu era capaz de jurar que aquele piano estava tísico, tão perfeitamente ético como o magro vizinho. Havia notas tossidas, havia escalas escarradas... Ninguém imagina! Deste monte de horrores, o pianista tinha a habilidade de extrair a sua música, a tal peça eterna e desesperadora. Era um prodígio desafinado de doçuras, enxame de moscas sonoras zumbindo na clave de fá sobre pieguices requebradas e sentidas da clave de sol, como sobre compotas. Via-se na música da filha, o gênio do pai. Estava presente todo o alfenim da magra sentimentalidade dos


domínio público

vates da antiga escola. Era uma melodia a pingar melado; a enjoar de doçura. O poeta adorava essa música. Alimentava o seu estro na beterraba e na cana daquele açúcar. Fecundada por essa inspiração de confeitaria, o referido estro dava à luz estrofes idiliais, onde o leite e o mel corriam pelos regatos e as cordilheiras eram legítimos pães de açúcar alinhados como na Serra dos Órgãos. Estas obras-primas de lirismo lacrimejante e apaixonado apareciam, como sonâmbulas, a bracejar desvairadas, pelas colunas ineditoriais das folhas. Não se calcula o sacrifício que se impunha o trovador para exalar em público, por glória de seu nome, os suspiros de sua alma a seis vinténs a linha. Um belo dia o piano calou-se. Mau agouro! E o poeta não saía à rua... Quando já a vizinhança se dava parabéns, pelo feliz desaparecimento do tal piano e da tal música, eis que de novo ressurge a melodia! Desta vez, custava-se a ouvir. As janelas fechadas da casinha do poeta cobriam a música com o abafador de uma espessa surdina. Nunca me pareceram tão profundamente irritantes aqueles sons.

Possuíam, então, uma ternura estranha, pungente, revoltante! As notas não cantavam mais nem suspiravam estertoravam. Era como uma série arquejante de derradeiros suspiros, ao longe. Uma agonia longínqua e interminável. Fazia raiva aquilo! Terrível conspiração daquela pianista com aquele piano, daquela música com aquelas vidraças descidas... para me darem cabo dos nervos naquele dia! Felizmente, a agonia acabou. A música subiu, num crescendo de círio expirante e morreu de chofre, como se lhe houvessem faltado as cordas do piano. .................................................................. No dia seguinte, me explicaram o significativo da casa fechada e do reaparecimento da música. Adoecera e morrera o poeta lírico. Adivinhando a morte, mandara a filha ao piano tocar a melodia querida. E adormecera o grande sono, ninado por aquela música, a dulçurosa irmã do seu estro. Lirismo e tísica, escreveu o médico na certidão de óbito. VISITE: http://www.dominiopublico.gov.br/ segundo trimestre 2011 69


fotografias

As imagens que você conferiu na seção “contos” são fotografias que compõem a série P&B&L - PRETO & BRANCO & LINHAS, de

rodrigo alves barreto. Aqui, você pode apreciá-las melhor.

Porto de Breves: Pausa durante o trajéto na viajem entre Santarém e Belém no porto da cidade de Breves - margem direita do rio Amazonas.

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fotografias

Ladeira da Memória: Como se caísse num paradoxo temporal, o mais antigo monumento da Cidade de São Paulo - a Ladeira da Memória. Esquecida pela ironia do nome, hoje desativada é habituè sanitário de moradores de rua.

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fotografias

Tres Ventanas: Muita movimentação de turistas por entre as ruelas das hoje ruínas do último refúgio do Império Inka contra os exploradores espanhóis. Este é o monumento Tres Ventanas por onde os incas se orientavam pelas projeções do sol dependendo da época do ano.

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fotografias

Copan: As inconfundĂ­veis linhas que amolecem o concreto deste artista/arquiteto Oscar Niemeyer, marcam horizontes de cidades como SĂŁo Paulo em suas formas.

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Revista Macondo, segunda edição; distribuição gratuita. Envie seu material para revista.macondo@yahoo.com.br!

Agradecimento:

+ informação em: www.acentografico.net


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