Literatas Exclusiva - Agosto 2020

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] 2 [ PÊNDULO COLUNALETRAS ARTES INTERCULTURALIDADES ESCAPE04 2605 27 34 35 04 Arte no quintal 04 Mural da Malhangalene 04 musicalIntercâmbio 04 IV Seminário de Jornalismo Cultural 05 SemPaulinaENTREVISTAChizianefé 14 CRÓNICA A insossegável tarefa de pensar o pós-inde pendência 16 DA FICÇÃO À AREALIDADEsorteéum campo movediço 20 ENSAIO A HORA E A VEZ DAS MULHERES EM etuane,Sebastião,nadonovasMOÇAMBIQUE:representaçõescorpofemininopoesiadeLicaSóniaSulDeusaD’áfricaMelitaMatsinhe 26 COISAS DE HUMANOS Em que momento os ofendemos? 31 PARAQUASE-VERSOSSUBVERSOSSUBVERTER O RespirarSISTEMAParte 1 33 UmQUOTIDIANOQUASEversoantes de morrer 27 NO aosCovid-19PALCOeainfecçãograndesfestivais 31 Interculturalidades 27 IvanESCAPEMazanga: um político feito de livros

Av.

quintal Mural daMalhangalene Intercâmbio musical IV

Industrial 1°

C om direito a plateia ilimitada, estudantes de música de 4 países, incluído

ASóArte Media, em parceria com a IVER CA e o Camões – Cen tro Cultural Português em Maputo, realizam dias 22 e 23 de Junho cor rente, às 17h00, a quarta edição do Seminário de Jornalismo Cultural. O evento que será integral mente online. A curador ia da presente edição está focada num debate sobre o tema dedicado à Comu nicação e as Artes, tendo em conta os desafios impostos ao sector pelos tempos exigentes que atravessamos. cilocriative@gmail.com CILOCRIATIVE 24 de Julho com esquina no Recinto da Escola de Maio Cidade de MaputoCILOCRIATIVE

Arte

PÊNDULO +258 84 49 68 367 +258 87 49 68 367

CONTACTOS:

Entrega a domicílio de diversificadas man ifestações artísticas , tendo como palco as redes sociais. “Arte no Quintal” é o projecto pensado para a redução dos impactos da Covid-19 no seio dos artistas e prevenção da inecção pelo coronavírus. O pro jecto visa garantir que a arte chegue aos seus apreciadores, já que a recomendação é ficar em casa. A iniciativa é do Ministério da Cultura e Turismo.

JORNALISTA no Semináriode Jornalismo

lutaapoiemparativalawi(Moçambique,tadosumpretadosfacebook.directocomrealizamMoçambique,umconcertotransmissãoemdaNoruega,peloForamintertemasdecadadospaísesrepresennesteintercâmbioBrasil,MaeNoruega).AiniciavisaangariarfundoqueosestudantesseuspaísesnacontraaCovid-19.

Paredes vestidas de arte também contam histórias. Agora, é possível ler a história de Moçambique e do mun do através das pinturas de João Timane. Mural da Malhangalene é uma galeria ao ar livre. Aberta a todo o tipo de público, o mural localiza-se ao longo da avenida Milagre Mabote, no bairro Mal hangalene, na cidade de Maputo.

Pub CLEIDE FILIPE

Cultural

Vladimir Lênin

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Moçambique ENDEREÇO: sessão fotográfica no studio - album - crianças - retrato- fashion - família - aniversáriosgestantes - fotos tipo passe STUDIO

É tudo Cultura!

] 4 [ EDUARDO QUIVE DIRECTOR Emtempos difíceis têm dehaver arte

Dionísio

N estes tempos de invocação da palavra “incerteza”, uma das maiores certezas que há é a fadiga de estarmos de sarmados das nossas convivências libertárias e libertinas. O que vem a propósito, a arte, descortinar o que o confinamento levou. A arte é um desses sobreviventes desta longa noite. Os artistas, quão trabalhadores precários só descobertos nestes tempos, provavelmente, são dos que se tem mostrado mais resilientes e criativos (fazendo jus à sua profissão), para não só salvar as suas almas e as dos outros, fa zendo o seu papel social, sempre à sombra do mundo, mas impor tantes para dar esperanças sobre o futuro.

PORTA

E em momentos de crises, em meio a Artes no Quintal, que é uma solução à medida das mentes inventoras, há lives, entre patrocinadas e as feitas por amor à camisola, de forma desinteressada, mas interessan tes. Nós mesmos como Literatas nos colocamos nessa linha de acontecimentos para equilibrar, levando sobretudo o conheci mento e pensamento contem porâneo sobre o essencial das nossas vidas, da ficção à ciência.

Lucas

Começamos cépticos como todos, com questões introspectivas sobre o mundo que ainda não acabou, publicamos colectâneas para que, parado, o mundo fi nalmente descubra que não pode viver sem Ler. Seguimos pelos oceanos Índico e Atlântico, para provar que nos mares africanos não cabem só peixes, cargueiros e petroleiros, até porque o nosso maior petróleo e gás está ainda por se descobrir e quem navegar pelas próximas páginas o saberá.

Celeste

Celina Martins

Jessemusse

E porque este pode ser um mo mento chave para as mulheres na literatura moçambicana, a estudiosa das literaturas africa nas da Universidade Federal da Paraíba, Brasil, Vanessa Riambau Pinheiro, escreve um Ensaio destacando quatro nomes. E pelo mar, exorcizamos A triste his tória de Barcolino nos mistérios e tragédias da Costa do Sul, que entretanto, fazem a vida. Uma revista que se quer como um prestígio ao leitor de Cultura, devia terminar envolvendo quem não faz arte ou a faz de outras formas. Ivan Mazanga é o nosso Escape para não falar de política.

Revisão: EP

L-Exclusiva I rliteratas@gmail.com I PROPRIEDADE E EDIÇÃO: I Ano: 01 I Edição no: 01 I Periodicidade: QuinzenaI Director Editorial: Eduardo Quive I Director de Arte: Mélio Tinga I Editor: Elton Pila I Colaboradores: Muaga (Redactor Cleide Filipe, Manganhela, Santos, Bahule, Vanessa Riambau Pinheiro, Cacinda, Nilton Cumbe I I Publicidade: Anastácio I Junho, 2020, Maputo Moçambique

Licínia

Virgília Ferrão,

E como aqui se trata de uma porta em que as coisas são só comentadas, mas com conheci mento de causa, estamos cer tos que Paulina Chiziane é das mais consagradas escritoras e já agora, pensadoras, dos nossos tempos em Moçambique e no continente. Prova disso está na forma como vive a sua vida de “consagrada” aos seus 65 anos de idade, e muitos outros de vida, porque há ali muitas vidas. Aqui a apresentamos sem fé, mas com certezas.

Principal),

Paulina Chiziane Semfé Viu a loucura empurrar-lhe para o limiar entre a vida e a morte. A sociedade a maltratar-lhe com os rótulos, enquanto se de batia para sobreviver. E sobreviveu. Aos 65 anos, cheia de certezas, Paulina Chiziane abre-nos a última porta da noite. Estamos no Bairro do Alba zini. O condomínio militar de um lado e a casa da escri tora do outro. Não deixa de ser irónico, que uma mulher cujas maiores experiências de morte estão associadas às guerras, tenha encontrado ali a calma. É uma casa ao fundo de um quintal cheio de árvo res e plantas, que, nos dias de loucura da escritora, transfor mou-se em um grande palco a receber para um concerto Ray Charles e Louis Amstrong. São estas as experiências que partilha nesta entrevista, que era para ser sobre a carreira literária, mas acabou sendo uma conversa de vida e como

ELTON PILA E EDUARDO QUIVE

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«éminhafilhaque foi assassinadaontem, estavagrávida, étãoparecidacontigo. Quandotevejoa andar, estouaver a minhafilhaaregressar damorte» ela, a vida, influenciou nos livros que escreveu. Não tardou a começar o diálogo, sem as formali dades de quem começa uma entrevista que se tor nará longa e exaustiva, teríamos de dar algumas pausas para que ela fumasse um cigarro e nós bebêssemos uma água. O inevitável coronavírus, que nos faz vestir as máscaras da sobrevivência, impôs-se. Guião desfeito e não podia deixar de ser este o início… É o fim do mundo? Caos sim, fim do mundo não. Eu não estou em pânico. É a vantagem da idade, já vi tanta coisa, esta é mais uma. Já viu alguma coisa perto disto? Não nesta dimensão. Mas a Guerra Civil foi uma grande escola. Eu vivi aquela Guerra. Quando vou para aqueles lugares e encontro as mesmas pessoas, os sobreviventes, Jesus, é possível reco meçar. O mundo tem os seus delírios. Foi nos tempos da Guerra Civil que escreveu “Ventos do Apocalipse”. O período influenciou para o que estava a criar? Absolutamente. Foi uma história, meu Deus, até me custa contar. Foi em Mandlakazi, estava a trabalhar lá e havia um campo de deslocados de guerra, que acabavam de chegar de Macuácua, onde tinha havido um massacre. Estou ali, no campo, a zanzar, a correr, na altura trabalhava na Cruz Vermelha e estávamos sem pre em ambientes de emergências. De repente, noto que há uma senhora, velhota já, que, quan do me vê, desaparece e se esconde. Fiz questão de a perseguir, quando ela tenta esquivar-se, ao correr, ela cai. «Mãe, o que foi?», perguntei, na altura, devia ter uns 29 ou 30 anos. E ela responde «oh, Uchenewa mina!» E eu «Uchene! Quem é?» Ela responde «é minha filha que foi assassina da ontem, estava grávida, é tão parecida contigo. Quando te vejo a andar, estou a ver a minha filha a regressar da morte». Eu abracei aquela mulher, chorei com ela e a partir daquele dia passei a prestar mais atenção nela. Fiquei ali, umas duas semanas, tivemos uma relação afectiva muito grande. Voltei, fui convivendo com aquela dor, quando ia dormir sentia os seus braços, as vezes no meio do sono, sentia aquela impressão dela no corpo. Até que um dia, acordei de madrugada e disse, não, isto é um caso que tenho de registar. E foi assim que surgiu «Ventos do Apocalipse». O

primeiro livro que escrevi, não foi «Baladas de Amor ao Vento», foi este. Fui escrevendo, mas a Associação dos Escritores tinha as suas regras ou as suas fanta sias, disseram-me que a AEMO só podia publicar um primeiro livro de até 80 páginas. Então tinha que deitar fora o texto ou então comprimir para 80 páginas, porque se tratava da colecção início. Decidi que não mexia no texto. Então, come cei a escrever um livro que iria para as 80 páginas que eles queriam. Sentei-me e, em três meses, escrevi «Balada de Amor ao Vento». Então, como segundo livro, já podia publicar «Ventos do Apocalipse». Escreveu «Ventos do Apoca lipse» para diminuir o peso da história de Uchene. Olha a escrita como espaço de exor cismo ou de livramento? Quando dizem livramento, sabem o que penso? Que uma pessoa está a cagar. Não é bem assim. Nem é exorcismo, nem é livramento, eu escrevi simples mente para colocar no papel as marcas da minha alma e dialogar com a minha alma. Era muito difícil, na altura, as pessoas compreenderem isto. A folha de papel tornou-se numa espécie de espelho onde me reflectia, não sei se isso é exor cismo. Se bem que eu reconheço que a escrita é também um lu gar de exorcismo. Não foi para me exorcizar, antes pelo contrá rio, para marcar este encontro com esta mulher. Que outras lembranças tem do trabalho na Cruz Vermelha que levou para vida? Acho que a maior escola de vida que tive, na realidade, foram aqueles momentos. Primeiro, viajei o país todo, passei por tudo que um ser humano podia passar. Passei e, em algumas vezes, fiquei. Uma coisa é ver um tiroteio no filme e outra é Eraviver.uma santinha, bebia água, um chá, uma fanta. Um dia, íamos para Chongoene, era o tempo da coluna, então tí nhamos que entrar na coluna militar. Passamos pela zona de Bobole, onde a coluna se organi zava. Militares estavam muito agitados, a beber, a fumar suru ma de qualquer maneira, era uma primeira experiência para mim. De repente, começam ti ros e estrondos por tudo que era lado. Aqueles meninos, jovens soldados, no efeito da droga, que eu nem sabia para que ser via, saltam dos carros como uns loucos, perseguem aqueles que estavam a atacar, era um grupo de nove pessoas, outros jovens

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LETRAS

] 8 [ também, perfilaram. Obrigaram a toda a gente que estava nos carros a sair para ver, começa ram a disparar, eu a olhar, a ver a morte em directo, foi um espectáculo. Um ser humano, quando leva uma bala, tem uma energia por dentro, que eu nunca tinha visto. Um tipo le vou uma rajada e, de repente, o corpo magoado dá um salto, foi quando percebi a palavra “salto mortal” e foi rolando até a vida se perder, eu a ver. No final, vem um dos milita res e diz «hei, vocês, mulheres, ponham os documentos nas mamas, preparem-se para serem cadáveres, não nos dêem trabalho», porque podia ha ver tiroteio durante a viagem. Pegamos nos documentos e metemos nos sutiãs, os homens no bolso, preparamo-nos para sermos cadáveres. Saímos e, finalmente, chegamos a Chon goene. Trabalhamos com todas as dificuldades. E, chega o dia de regresso, todos acabados, o meu colega diz «eu quero mor rer bêbado, que nem aqueles militares». Fomos à bebedeira, comecei por beber tontonto, era a única coisa que havia na al tura. Bebemos tanto, fiquei tão mal. A caravana seguiu e não houve nem um tiro. Então, essa experiência de vida e morte fez-me perceber o que é a vida, o que é um ser huma no, não importa se é homem ou mulher, se é rico ou pobre.

Aprendi que todo o ser humano é detentor de conhecimento, sa bedoria e tem um horizonte que nem imaginamos. Há lugares que pisei, neste país, que disse ram «para poder passar por este caminho de forma segura, põe uma moeda aqui, ajoelha e pede para passar». Nunca questionei, os donos da terra tem a sabedo ria do seu espaço, quem sou eu para questionar?

Foi uma infinidade de histó rias que vivi, quem me dera se tivesse 16 mãos para escrever todas as coisas, belas e más, que aprendi ao longo do percurso.

O contacto com a morte fez com que desse mais valor à vida ou que tivesse menos medo da morte?

O que aprendi é que a morte e a vida são duas faces da mesma moeda. Estou viva, mas, em ou tro instante, posso estar morta. Então temer a morte por quê? Se é uma condição humana.

O que aprendi foi a respeitar a simplicidade, a humildade, por que as coisas que aconteceram comigo, se eu não fosse uma pessoa humilde, teria desapare cido. Mas também se não estou no meu território, vou querer ser arrogante por quê? Numa terra cujos hábitos, tradições, os problemas não são meus? Aprendi a respeitar o ser hu mano na sua essência, não me interessa se é pobre ou rico, se é velho ou jovem. Deve ter sido isso que fez com uma velhota dissesse, vai cuidar dos teus filhos. Ainda me lembro, isso foi no Save, no período de seca terrível, saímos daqui de Mapu to numa missão de emergência, éramos muitos, pretos e bran cos, estrangeiros, saímos do voo DC-3, um cargueiro enorme, parecia um barco, íamos lá com os nossos víveres. A nossa equi pa moçambicana era composta por nutricionistas, médicos, en fermeiros, uma mistura. Quan do chegamos ao Save, o avião aterrou e entre nós moçambi canos a hierarquia se estabe lecia imediatamente, porque este é o Doutor fulano e esta é a enfermeira fulana, que ficam na sua, esperando que as coisas aconteçam para que exerces sem a sua profissão. De repen te, estou a ver o piloto, tirou os sapatos, usou botas, tirou a camisa, fez aquele rolo colocou na cabeça e carregou um saco de farinha, está a caminhar, o outro branco, que não sei o que ia fazer, fez o mesmo, aquilo foi uma fila deles a caminhar. A nossa função como moçam bicanos, era menor, então não me custou nada imitar aquela equipa de emergência. Só depois é que os nossos Doutores viram que emergência é emergência, não quer saber se você é doutor ou não. Move-te, reage, traga soluções. Depois de eu sair da Cruz Vermelha, continuei a fazer o meu trabalho de campo, sempre estive ligada ao campo. Eu descobri esta beleza da vida simples, caminhar descalça, comer a mão, voar como uma borboleta. Com histórias como estas é fácil ser escritora? Depende. A escrita é trabalho. Quando temos um trabalho para ganhar pão e se tem de es crever, fica complicado. Aqueles que são escritores sem histó rias para contar, vão começar a dizer o que é que ela escreve? O que ela pensa? O que ela sabe? Eu olho para o que o meu povo diz sobre o meu trabalho e fico

Por exemplo, umadasmaiores críticasquemeforamdedicadas desdelogoédequeeuescrevo sobremitos. Masqual éopovo quenãotemmitos?Qual éo povoquenãotemestórias?En tão, háindivíduosquesejulgam sabedoresdoquenãosabeme achamqueaverdadedooutro ouéumaverdademenor ouuma verdadeinsignificante.

] 9 [ muito triste. Por exemplo, uma das maiores críticas que me foram dedicadas desde logo é de que eu escrevo sobre mitos. Mas qual é o povo que não tem mi tos? Qual é o povo que não tem estórias? Então, há indivíduos que se julgam sabedores do que não sabem e acham que a ver dade do outro ou é uma verdade menor ou uma verdade insigni ficante. Mas continuei a escrever os meus mitos e tenho muita bagagem. Há muitas estórias que tenho por escrever, muitas, estórias de rir e de chorar. Por que eu vivi várias realidades. Então, vai continuar estas es tórias para que nos ajudem a pensar na vida? A vida é mais perfeita do que a literatura. Há emoções vividas, que por muito que extraordi nária escritora seja, não sou capaz de transmitir. Aprendi, a partir dessas experiências, o quão limitados nós somos, como escritores. A fotografia consegue ser um pouco melhor, regista a imagem do momento e pode até trazer alguma emoção. Mas a escrita não. É um mundo que é pouco conhecido por nós mo Osçambicanos.moçambicanos conhecem muito pouco a sua própria terra. E quando conto estas histórias dizem logo que Paulina é uma fanfarrona. Começam a julgar muito antes de compreender a razão de ser daquilo que se está a passar. A questão da competência lin LETRAS

] 10 [ guística é uma questão séria. Eu vou ser competente em que língua? Na língua portuguesa, tento, mas jamais serei. A lín gua portuguesa não tem capa cidade de transmitir a minha cultura. Quando vou escrever as plantas começa logo a difi culdade. Como escrevo «palha nkhufa»? A língua portuguesa é europeia. Uma língua que foi criada para carregar o mundo dos portugueses. Há um trabalho que vocês um dia têm de fazer, que é rever os glossários. Os glossários são outra fonte de loucura. «Massa la é uma fruta redonda, esféri ca, que parece bola, mas não é bola». O português não chega a Massala. Mas a minha língua sabe nomear cada planta e cada fruto. Vamos ver os pássaros da fauna africana. Tibokolwa, um pássaro que anuncia que o dia vai ser bom, que não faz parte da fauna europeia. Existe também a questão dos sentimentos. Falar de amor, fazer amor, fazer sexo, o que é isso? Pegar na mulher, dar um beijo. Beijo? Nós, os africanos, pensamos que isto é aldrabar as mulheres. Duma cultura para outra, a palavra amor ganha outro significado. Perde-se tanta riqueza cultural, emoções, objectos, sentimentos, que não conseguimos expres sar. A língua que nos herdamos é uma língua que não é nossa. Talvez com o andar do tempo, façamos o que o Brasil conse guiu fazer, criar a sua língua, coisas típicas do Brasil. Este é um trabalho que não vai se resolver num dia. Mas é preciso acreditar. Depois “Por quem vibram os tambores do além” e “Ngo maYethu”, os leitores come çaram a colocar em si rótulos, como espírita, curandeira, feiticeira. Todo ser humano tem espírito e quem não tem espírito é um morto. A morte é a separação do corpo da alma. Falar de espíri to é falar da vida. Em qualquer religião há a palavra espírito, Espírito Santo. Os mais espíri tas são os religiosos, que dizem espírito para cá e para lá. Me teram a palavra «Santo», que é para poder distinguir do diabo, o diabo que é o negro. Essa é uma outra história. É preciso conhecer a História da Religião, que é para poder compreender determinados fenómenos. O problema é deles, porque eu LETRAS

Eu sou de Manjacaze, graças a Deus. Quando, de vez em quan do, surgem estas querelas, le vanto-me e digo a todo mundo «Sou de Manjacaze, pertenço ao sangue azul. Os meus antepas sados eram guerreiros e vence ram todas as batalhas».

Paulina mal falada, mal com preendida, mandei-lhes pas sear. Fui. Hoje, sou a maior escritora da língua portuguesa, nem Brasil nem Portugal, com traduções em mundo fora. O meu trabalho entra na área das filosofias, antropologias. Espan ta-me ir para qualquer uni versidade de países europeus e encontrar os meus livros lá. As

] 11 [ tenho confiança. Que relação tem com a Religião? Eu não tenho relação nenhuma, sempre fugi disto. Primeiro, Deus é o pai de todas as reli giões. Todo o ser humano é re ligioso. Então, por que tenho de estar associada ao Cristianismo, Islamismo? Não preciso. Para chegar a Deus, posso estar com ele onde eu quiser. É preciso entender que Jesus Cristo não é Cristão, nunca foi. Esse é o maior crime que as igrejas cometem. Aquele moço nasceu, cresceu, fez tudo o que tinha de fazer e morreu. O Cris tianismo surge séculos depois da sua morte. Cristianismo é clube, Jesus Cristo é essência. As religiões são os clubes. Prefiro falar com Deus, com Maomé, e porque não falar comigo mes ma. Eu sou uma Religião. Deus criou o ser humano a sua ima gem e semelhança, então, Deus é mulher e é negra e chama-se Paulina. Não acredita na ideia de ateís mo? Não gosto de acreditar. Gosto de ter certeza. Minhas próprias certezas. A mim podem apedre jar, eu estou segura, sei o que digo. Sou filha de uma mãe e um pai, são a base da minha existência. Portanto, nos dias de dificuldades, quantas vezes não choro a dizer «se a minha mãe estivesse viva». Se eu estiver a adorar, qual é o problema. Ela é minha mãe. Tais espíritos des ses familiares que os africanos cultuam são família deles. Não podem cultua-los por quê? O colonialismo criou o projecto de tal maneira que até a memó ria deve ser retirada do negro para poder ser usado. Quem é Jesus? Jesus é memória. A his tória da religião é invocação da

Omemória.quesustenta os africanos são as suas raízes. Mesmo quan do a gente vai para o hospital, perguntam, dentro da família, há alguém asmático, alguém diabético, porque a raiz de um indivíduo é que constrói o ser.

Quan

] 12 [ pessoas querem perceber o que leva o meu trabalho para fora são as raízes. Porque tenho as raízes. Transmito as raízes. To dos estes que falam bem portu guês e escrevem bem chegaram onde? Recebe os direitos dos seus li vros traduzidos país afora? Se no meu país, ninguém vê a importância daquilo que eu faço, como o outro vai me olhar? Não temos um sistema de controlo, as nossas instituições não tem uma política exacta para exigir direito dos seus cidadãos. Eu não posso controlar o que se faz na França, nem em Portugal, nem nos Estados Unidos da América, não consigo. As associações precisam crescer para se defenderem e me defen derem também. Um dia recebi “O Alegre Canto da Perdiz”, que foi editado em Cuba, com uma suposta fotografia da Paulina. Mas quando vou ver a fotografia, não sou eu. São essas realidades tristes que temos. É preciso lu tarmos pelo que é nosso. Temos esta missão de fazer o registo da nossa própria história. Paulina tem noção da dimensão que tem. Não está na hora de pensar numa estrutura para salvaguardar o seu espólio? Eu penso muito. Mas algumas vezes o pensar exige recursos. Tive várias fases da minha vida. E uma das fases foi quando entrei em loucura grave. Todo mundo gritou, cada um contou a história que quis. Fui interna da, uma primeira vez, melhorei. Depois tive uma segunda crise, melhorei, mas estava a ficar um bicho-do-mato. Quem me tratou da saúde foram curandeiros, recebi um tratamento de luxo e estou aqui, as vezes sinto uma fragilidade. A minha capacidade de pensar aumentou. Mas fisi camente sinto alguma fragili dade. Numa altura muito difícil da minha, foi quando surgiram estas lamentações. Estava em dificuldade e ninguém foi ca paz de ver, como se dissessem, finalmente, vamos ver aquela figura desaparecer. A sociedade não está para ver a ascensão do outro. Mas eu superei e estou de pé. E continuo a fazer o meu trabalho. Pode ser que um dia eu consiga o básico. O que fiz por este país, em termos de escri tores, muitos poucos fizeram.

dofiquei doente,

Fui tratada por curandeiros não nego e sempre que iam buscar remédios, rezavam. Dizem que o curandeirismo é coisa do diabo, mas as igrejas evangélicas estão sempre cheias.

Fale-nos um pouco desta fase de loucura…vivi entreavida eamorte.

LETRAS

É muito desagradável, eu estou num encontro e dizem, olhem a curandeira. Ignorância. Curan deirismo é público. Uma pessoa que se forma em curandeirismo anda com aquelas vestes para ser reconhecida. Um curandeiro não aparece como um cogumelo. Curandeirismo é uma institui ção africana que tem as suas regras. Curandeirismo não é para qualquer um, é para o elei to. A eleição não é para qualquer idade. Curandeirismo começa a ser manifestado na adolescên cia. Não é uma velha como eu.

LETRAS

Quando fiquei doente, vivi entre a vida e a morte. Quando estás entre a vida e a morte, consegues ver o que se passa do outro lado. Eu enlouqueci até o extremo. Outro dia, estava sentada na mi nha varanda, num dia de muito desespero, mas o desespero era tal que não sabia se morria ou vivia no dia seguinte. De repente, comecei a ouvir vozes que cantam. E quem cantava era o Ray Charles. Eu estava sentada na varanda e o quintal era um palco universal terrível. Estou a ouvir Ray Char les, depois apareceu o Louis Amstrong. Quando dei por mim, eu já estava a cantar. Descubro o dom para o canto, a partir duma si tuação de sofrimento. O desespero era tanto que meu corpo baixou para o fundo da terra e a mi nha alma ascendeu. Come cei a perceber que o mundo não é este lugar simples. A loucura também pode sugar o corpo? Absolutamente. É uma experiência que não desejo a ninguém. As pessoas que tanto falam, se se apro ximassem, talvez teriam mais a ganhar do que estar a dizer o que não sabem. Eu estava entre a vida e a morte. Eu vi e conversei com meu pai que já tinha morrido há anos. Abri os olhos e vi meu pai a dizer «filha, tudo isto vai passar». Dêem o nome que quiserem dar. O meu medo, no meio de tudo isto, são as especulações, as emo ções, as pessoas vão dizendo o que querem dizer. Este assunto é tão apaixonante que os livros que são mais procurados são livros espíritas.

Tem dito que tem conversado com loucos. São resquícios destes tempos de loucura? Converso porque os entendo. Eu sofro. Já tive um louco que me vinha à casa todos os dias. Quando chegou, disse quer água, dei, bebeu e adorme ceu. Quando acordou, dei-lhe comida, ele olhou para mim e chorou. A partir desse dia, passou a ser meu visitante. E não me incomodava. Perce bi que não era louco, estava transtornado pela rejeição da sociedade. Ele agora está bem, voltou para casa dele. De vez em quando ele e a família vem me visitar. Não consigo ver o louco na rua e não sentir dor. O que faz o louco sair e andar à deriva é a estupidez social. Metade daqueles que estão internados na psiquiatria, não deviam, não precisam. Aos 65 anos, do que se tem medo? Por que se tem de ser medo de alguma coisa? Vivi tanta coisa. Vi tanta coisa. Vivi mais tempo que muitos moçambicanos. Entrar nesta idade, acho que sou uma mulher muito afortunada. Venho de uma família de longevidade. Meu pai morreu faltavam dois anos para completar 100. Minha mãe morreu faltavam 3 anos para completar 100. Então, vivi os meus pais. Então, não me pergunte sobre os medos, pergunte sobre certezas. Quais são as certezas que tem? Várias. A vida não é linear. É complexa. Só chegamos a compreender a complexidade da vida também com a idade. Quando somos jovens, anda mos atrás do tempo. Depois desta vida haverá outra vida? Não sei. Se for, que seja. Tive a sorte e o azar de viver experiências terríveis. Qualquer uma delas foi transformativa. Eu sou uma teimosa terrível. Quando quero uma coisa, eu vou. Podem ir todos contra mim, mas vou. Se não me entendem o problema é vosso. Mas quem me entende que me siga. Essas mi nhas convicções com o tempo se provaram ver dadeiras. Não se consegue um espaço no mundo, quando se tem fé ou se tem dúvidas. Fé é uma coisa que alguém me dá. Quando se tem dúvidas não se sabe onde se vai pisar. Paulina tem certe zas. Sou muito calminha, mas quando me levan to, ninguém me segura, para defender o meus princípios, eu vou, porque assento o meu desejo nas minhas raízes.

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Játiveumloucoquemevinha àcasatodososdias. Quando chegou, dissequer água, dei, bebeueadormeceu. Quando acordou, dei-lhecomida, ele olhouparamimechorou.

Até ao começo da última década do século passado, época em que me estreei com a Sarnau e Mwando como um discurso interro gativo sobre a hegemonia paternalista ainda acentuado na velha marcha marxista-le nenista da antiga República de Samora – as questões da racialização e do género estavam na moda», disse despistando a mão próxima a uma pequena mesa inclinada. Lá mais para o interior da casa, junto a um pequeno va ral suspenso numa esquiva extremidade da cabeceira, era ainda possível ver a neta pela encosta do reflexo embaçado pela fumaça do cigarro. Na época, o tempo – os nossos encon tros nesse caso –estavam entre um provável título sobre as nossas conversas e uma ténue embriaguez propositada. E hoje. Isso, lembra -me Hemingway na Rue de Fleurus, 27 com O Inquilino de Lowndes nas mãos. E um pouco antes do final dos apartamentos militares; numa ruela coalhada de pessoas procurando um motivo novo num carácter dramático da condição humana para o próximo amanhe cer – está a casa dela numa infinidade de pequenas metamorfoses se acumulando. «O meu café. Depois vai me comprar duas Cerve jas», gritou para Ofélio enquanto caminhava para um lado oposto da casa; inclinei a mão esquerda para acender o cachimbo. Antes de desviar para um outro lado, comentou que na altura do seu primeiro livro recebera inúme ras críticas, principalmente por ter sido uma mulher fora do círculo das mulheres de um pigmento misto, como também por ter troca do o paradigma narratológico europeu-esco lástico e, de uma certa maneira carente, para assimilar as marcas do nativismo telúrico com uma voz de sagração estética própria. Virei a cadeira e pousei sossegadamente a sa cola aos meus olhos. Tive-a depois de várias idas à Kibbelândia– um pequeno largo entre as ruelas Victor Meirelles com Nuno Macha do; ao dobrar o quinto copo com a vista a contorcer-se para o balcão, falei para a Nelita sobre Buarque; sobre como ele abre o Capítu lo nono do Leite Derramado com um recurso histórico dos turvos anos da ilegalidade no Chicago depois da lei seca e como isso deu notáveis expressões para o pensamento pos terior. Subimos depois pela Igreja; entramos por um pavimento encharcado entre a rua Deodoro com a Filipe Schmidt para desaguar mos na Catedral Metropolitana, junto à Praça 15.Enquanto repetíamos o ritual pela SC 401, por cima do Centro Integrado de Cultura para dar à Beira Mar – articulei-me nas cinzas caídas num dos bancos para depois cruzar os olhos num inconsequente disfarce de dor.

FILÓSOFO E CRÍTICO LITERÁRIO

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Ainsossegável tarefa depensar opós-independênciaCRÓNICABAHULE

DIONÍSIO

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LETRAS

Passavam-se 30 dias depois do velório que me lembra continuamente a primeira entrada a direita do primeiro piso do Bloco da Medici «Foina. assim como tudo começou, veio falando com as mãos na camisola. A neta bateu na por ta e subiu para o portão. Fitei-lhe os cabelos no mesmo instante em que Ofélio abria a garrafa de cerveja. «Chamaram isso de assalto à Institui ção Literária», tornou a falar com o pé esquerdo a puxar a cadeira. Pulou o fogão de carvão que estava ao meu lado direito e sentou-se. Alojou o cigarro entre os dedos perguntado por que razão deveria escrever o que o imperialismo colonial queria para vender se ainda o povo precisava de saber aonde estavam as suas riquezas culturais. «Na verdade, é quase isso que Appiah diz sobre os romancistas», respondi e voltei a falar. «É neles que se articulam as questões mais lúcidas da nossa identidade», tornei a comentei com as mãos esti cadas na lareira. «A questão não é sobre o autên tico, mas sobre a sinceridade. É nela onde respira o colectivo; as nossas tradições; nossas histórias; nosso povo. É isto que no período da revolução, fascinado pela cólera da modernidade – as nos sas elites políticas – proibiram para propor, por exemplo, a monogamia de teor cristão e o fim da nossa religião africana em nome dum sistema falhado. Eu voltei a escrever sobre isso em outros livros –a história que entretece Rami e Tony ou mesmo David e Clemente no Sétimo Juramento», insistiu com os lábios prendendo o cigarro num intermitente intervalo com o copo a transpirar por cima da bandeja cinza. Instou de outro lado o Ofélio para que nos deslocássemos para a sala. Não me admirou a reação da Paulina ao mandar por o jantar no lugar onde estávamos sentados. Inclinou as mãos para alcançar o fósforo que estava ligeiramente um pouco distante. Lançou o resto do cigarro comentando que ninguém aceitou por muito tempo a sua proposta estéti ca. «Havia gente até na AEMO que fazia de tudo para limitar minha circulação. Principalmente depois da minha loucura. Ninguém quis saber de mim»,disse afastando com o cotovelo uma extre midade do pano a propender-se obsessivamente para a fogueira. Recusei uma lágrima enquanto continuava, evidentemente, muito triste. Movido por uma vontade de esclarecer alguns equívocos, falou da repulsa que sofreu nos meios literários. Da varanda, seguíamos a escuridão da noite per dida no jardim do seu quintal enquanto descía mos ambos a noite abaixo. Passavam das 11hrs da noite. A relva continuava molhando de orva lho e com porções pequenas de restos de cigarros contrabandeados pela mão. Nada igualava minha tranquilidade. Sosseguei algumas outras coisas ditas. Por algum momento perguntei o que mo via sua escrita. Puxou mais um cigarro enquanto feria compassivamente a terceira colher de café em água morna. «O meu lugar de começo; esse chão que me viu nascer; me alimentou; o meu povo», respondeu levantando-se como uma aldeã a terminar o brilho das estrelas na concavidade estreitados prédios. A cozinha fica numa perspec tiva adjacente a garagem coberta por um relevo campesino de caixas e estilhaços de madeira. As vezes penso nisso numa perspectiva não somente de phatos, mas também do topos onde o conhe cimento é partilhado. Esse lugar de começo sobre o qual Paulina talha sua perspectiva estética que se anula de um modelo contrário ao identitário. Uma tecitura imersa na busca por uma respos ta ao chamado colectivo dado pelas vanguardas diaspóricas inauguradas no Harlem. Virou-se, porém, todas as vezes que sentamos com os olhos dobrados para o portão, lembra-se sempre da noite de chuva fria. Diz ter sido na mangueira à esquerda ao entrar em sua casa que teve o que escrever Na mão de Deus, um livro pós-loucura. E numa dessas noites, de outro lado da garagem – chorou. Olhei-a e, tomei-na nos meus braços ofegando a mágoa. «Calma…», eu disse.

Asorteéum campomovediço

ELTON PILA I JORNALISTA DA FICÇÃO À REALIDADE

] 16 [ LETRAS

Omar é a paisagem, personagem, vida e morte. Omnipresente em “A triste história de Barcolino”, um morto-vivo, saído da pena de Lucílio Manjate. Mas na realidade não há mortos-vivos. Há mortos e há vivos. E os vivos contam as histórias dos mortos.

Já o sol ia alto. Mas soprava um vento salgado e frio, a lembrar o inverno. As gaivotas de maré baixa e os cor vos indianos impunham-se nas margens. Debicavam o terreno enlameado, à espera de encontrar pequenos caranguejos ou restos de peixe. As senhoras vendedeiras de magumbas, que logo cedo seguem em procissão à espera que os pescadores volt em com os barcos pejados de peixes, já estão feitas um coral, cantam para celebrar o dia e a generosidade de um mar que nem sempre o é. Duas vozes, postas de forma harmoniosa. A primeira podia ser Cantarina ou Matilde, mas era Sandra Manuela Sambo, 41 anos, há catorze anos a fazer a vida a partir do mar. - A pesca tem muitas histórias. Muitas estórias e histórias. Em “A triste história de Barcolino”, de Lucílio Manjate, a realidade está sem pre a imiscuir-se na ficção, o personagem de que lhe sabemos a história triste, move-se num pêndulo, entre a vida e a morte, um morto-vivo, mas não nec

] 17 [ essariamente um zumbi. Mas a realidade é outra coisa. Não há mortos-vivos. Há mortos e há vivos. E os vivos contam as histórias dos mortos. São so bretudo histórias de sorte e da ambição que torna a sorte um campo Alexandremovediço.Salasse, 37 anos, é o nosso cicerone. Tornou-se capitão e já lá passam 20 anos desde a primeira vez que se fez ao mar como pescador. Lidera uma tripulação de mais cinco homens, cada um com tarefa específica e o objectivo comum de sobreviver até ao dia se guinte e chegar à margem com uma embarcação empeixada. O corpo franzino - coberto por um macacão azul - e o rosto com cabelos feito dreads teste munham por uma vida dedica da a pesca. Acabava de chegar do mar e para lá já regressava. -Vivo mais tempo na água do que em casa. A pesca é um jogo de paciência, como Ernest Hemingway já nos havia ensinado em “O velho e o mar”. Também por isso, Selasse LETRAS

] 18 [ e sua tripulação, mas também outras tantas que ao mar se dirigem, chegam cedo. São três horas de viagem de ida e outras três de volta e entre elas há toda uma vida que fica suspensa. Levam, além do material de tra balho, garrafas de água e tige las com mantimento. A noite à espera da magumba é sempre longa e fria. O mar ainda lhe é lugar de vida, mas também pode ser de morte. E sabe bem. Afinal, tinha um irmão que lhe era igual e que o mar levou. * A magumba impunha-se um período de veda. Embarcações se faziam ao mar, ao alto mar, cada vez mais cedo e ficavam até cada vez mais tarde. Longas horas, noites inteiras de vigília, rede entrelaçada entre os dedos, a luz da lua sobre eles, como que a abrir um portal, à espe ra de sentir ainda que um leve peso de um cardume. Mas re gressavam, ao início da manhã, na leveza da ida. Em mais um dia, o irmão gémeo de Alexandre e outros seis companheiros foram para mais longe, para onde ninguém teria ainda ido. Armaram as redes e esperaram sentir o peso do cardume. Sentiram, deix aram-na pesar ainda mais, e puxaram peixe suficiente para encher as vinte caixas que traziam no barco, o primeiro lance, na linguagem dos pesca dores. Mas decidiram tentar um segundo lance, a pensar num lucro maior e na certeza de que os peixes não os iam esperar para o dia seguinte. Devolveram a rede ao mar, puxaram-na, mais peixes, o segundo lance.

Depois de um longo tempo de estiagem, aquela era a bonança depois de uma tempestade que afinal ainda viria com requintes de tragédia.* Alexandre estava na margem e mais outros tantos barcos. Es peram sempre uns pelos outros. São competitivos na pesca e na venda, mas as vidas uns dos outros importam mais.

Já o sol anunciava a manhã e a tripulação em que estava o irmão não havia ainda re gressado. Começaram a ficar -Sabíamosapreensivos.que algo tinha acon tecido. No mar não se brinca. Logo que a manhã se impôs, voltaram a colocar os motores das embarcações a funcionar. Encontraram o barco da tripu lação que não regressara vazio, a rede sobre o mar, a flutuar, como que armada à espera de peixes, puxaram-na, estava

E puseram-se na viagem de regresso. O vento soprava na direcção norte e eles iam ao sul. Barco pesado, pejado de peixes.

] 19 [ pesada, com poucos peixes vieram dois cor pos. Lá estavam amarrados o irmão e outro companheiro, sem vida, mas ali presentes para que fossem velados. - Foram os peixes que mataram meu Airmão.embarcação cedeu ao peso dos peixes e ao vento que soprava em direcção contrária. Naufragou. Mas antes, o irmão gémeo de Alexandre e o companheiro lembraram de amarrar-se as redes, a morte era já certa, mas queriam facilitar o trabalho de quem viria para os procurar. Outros três foram encontrados a flutuar. Dois nunca foram Barcolinoencontrados.de Lucílio Manjate regressou, depois de um longo período ser dado como -Esperammorto. que isto aconteça com os outros dois que ainda não foram encontrados? - Talvez aconteça. Deus é quem sabe.

-Foramos peixes quematarammeuirmão.

Gerda Lerner (2019) endossa este pensamento na obra intitulada A criação do patriarcado: histó ria da opressão das mulheres pelos homens. A pesquisadora austríaca afirma: “Assim como a subordinação das mulheres pelos homens forneceu o modelo con ceitual para a criação da escravi dão como instituição, a família patriarcal forneceu o modelo estrutural.” (LERNER, 2019, p. 126). Enquanto princípio estrutural da sociedade, a dominação masculi na antecede a escravização e for nece subsídios para sua institu cionalização. Ou seja, ainda antes da questão racial ser considerada, como o foi durante a escravização negra ocorrida entre os séculos XV e XIX, o gênero sempre foi um fator Compreendemosdiscriminatório.que, historica mente, o corpo feminino negro foi sistematicamentecontrola do por terceiros, tendo sofrido violência dos mais diversos modos, desde a esfera laboral até a sexual. Dessa forma, im porta-nos evidenciar a mudança deste estado das coisas através de poemas que denotem liberdade e autonomia do corpo feminino, representadas a partir da dança, da vaidade, do desejo sexual e da consciência do eu. Dessa forma, a partir da tipologia de Elodia Xavier (2007), no livro Que corpo é esse?(corpo disciplinado/imobilizado/enveinvisível/subalterno/ lhecido/refletido/violento/degra dado, erotizado e liberado),privi legiaremos os corpos erotizado e liberado, únicos passíveis de res sonâncias positivas, na tessitura lírica das poetas contemporâneas moçambicanas Lica Sebastião, Sónia Sultuane,Deusa d’África e Melita ObservemosMatsinhe.inicialmente o poe ma de Lica Sebastião, poeta nas cida em Maputo que é autora de três obras poéticas: “O meu sexo é uma casa com nuvens/e finís simos cursos de água./Tu esperas à porta e és o sol./Atravessas-me e fazes uma dança frenética/E eu

] 20 [

AHORA -

VANESSA RIAMBAU PINHEIRO

EAVEZDASMUL

HERESEMMOÇAMBIQUE: novas representações docorpo femininonapoesiadeLicaSebastião, SóniaSultuane, Deusa D’áfricaeMelitaMatsinhe

LETRAS

O movimento feminista ressigni ficou os modos de se ver e per ceber o corpo feminino; actual mente, a relação corpo/mulher é um tema amplamente discutido socialmente. O corpo, outrora reduzido ao seu aspecto físico, passou a ser compreendido como um arcabouço cultural definido a partir de regras estipuladas em uma sociedade regida pela he gemonia patriarcal. Assim, não nos causa espécie compreender porque a imposição de deter minados expedientes biológicos femininos (como a maternidade, por exemplo) justificaram, por muito tempo, o papel secundário imposto socialmente à mulher e toda a espoliação que lhe foi imputada.Com o falacioso discur so da diferença biológica como critério hierárquico, os papéis sociais foram instituídos como se fossem naturais, e a mulher foi destinada à função de cuidar dos filhos e da casa. As instituições tidas como relevantes e influen ciadoras na sociedade, por seu turno, auxiliaram neste processo: a família, a Igreja e o casamento contribuíram directamente no processo que levou à desigualda de entre os géneros. Destarte, podemos verificar que a mulher foi condenada ao papel de passividade, objectificação e domesticação na História des de tempos remotos; no decorrer dos séculos, o corpo feminino foi exposto às mais diferentes formas de exploração. A mulher na sociedade patriarcal, sempre foi relegada ao papel de serviçal doméstica e/ou sexual.

Ainda que exista a alusão à consumação sexual, a erotização do corpo não se limita ao enleio físico. O eu-lírico, ao definir o objeto de desejo como “sol”, de onde se infere que dele tira o calor que neces sita, revela ser “luz” (intensidade, força, brilho), “som” (voz, importante instrumento de resistência e de visibilidade feminina) e “cor” (que nos remete alegria, poder).

Ainda na esteira do corpo erótico mas agora em sua dimensão materialista,observemos os poemas abaixo, escritos por Sónia Sultuane, polivalente artista moçambicana: A fome que te tenho, descontrolada de te ter, o de te possuir, o meu corpo, fogo ardendo, queimando, torna-se num imenso doloroso, num profun do,

O ato sexual, nestes versos, possui conotação de fusão de sentidos e experimentações que remetem à alegria, vivacidade e arrebatamento amoroso. O próprio título do poema, “Celebração” remete a este estado de êxtase. Também aqui o corpo feminino é percebido como algo de proporções cosmogônicas.

] 21 [ LETRAS desaguo,/grata.” (SEBASTIÃO, 2015, p. 23): Neste poema, o eu-lírico estabelece uma conexão transcendental entre o ato sexual e a natureza a partir da analogia com os elementos nuvem, água e sol. Se tomarmos nuvem como a representação do ar e sol como a do fogo, teremos aqui três dos quatro elementos da natureza (ar, água e fogo) metaforicamente presentes no ato sexual. A terra, elemento representativo da racionalidade, não é bem-vinda neste momento de torpor e de entrega aos sentidos sem arrefecimentos. Podemos perceber a representação do corpo deste poema, que passa pelo erotismo sem, contudo, limitar-se ao sexual, expandindo-se ao sagrado feminino, a partir do qual o corpo adquire dimensões metafísicas. (“E eu desaguo, grata”).

Também podemos associar o corpo à sexualida de, esta considerada mítica e transcendental, no poema a seguir: “Sou a ponte e tu o rio./Queria ser antes cada uma das tuas margens./Em todas as es tações, cuidares do meu solo sedento.” (SEBASTIÃO, 2015, p. 15). O signo da água surge novamente, como metafórica nutrição de um solo desidratado, que representa o corpo feminino. Novamente, o sujeito do desejo do eu-poético surge travestido de água, mas agora funde-se à terra, que imageticamente representa o eu-lírico.Entretanto, essa representa ção da terra não se relaciona com a sua concretude material, antes se relaciona com a deusa-mãe Gaia, geradora dos demais. O corpo do eu sexual feminino aqui perde sua concretude material e ganha estatu to primevo e cosmogônico. É relevante pensar como ocorre a ressignificação e expansão do corpo se xualizado feminino que, longe de reviver estigmas de objetificação ou de violência, adquire contornos sacros.Nesta mesma direção temos o poema a seguir, da jovem poeta moçambicana Melita Matsinhe: “Celebração/Te ver voltar/ em ti me fundir:/sou luz, som, cor./É teu o sol!” (MATSINHE, 2017, p. 22).

(SULTUANE,

de ventre para baixo, nua, deitada por cima de ti, embriagada pelo teu cheiro, o calor do teu cor aspo,tuas entranhas, o teu abdómen, as tuas mãos, nas minhas costas, o teu abraço guardandome profundamente, para que não fugisse, para que não quebrasse o nosso laço de cum adormecidoplicidade, estavas entregue a mim, longe de tudo e de todos, queria chamar te para que me possuísses novamente, mas o teu sono era tão profundo, em paz, que fiquei ali, somente a contemplarte como podias ser meu, sem estares ali, mas mesmo assim, fazendo parte deste meu sonho desperto. (SULTUANE, 2006, p.11)

Podemos dizer que a produção lírica de Sónia Sul tuane, publicada desde o começo dos anos 2000, inaugura a temática erótica de autoria feminina em Moçambique. A poeta encarna o corpo erotizado, em uma lírica de volúpia e sedução. No primeiro poe ma, existe a manifestação do desejo sexual, sentido de forma sensório-corporal tão fortemente expressa que provoca até mesmo sofrimento pela ausência do objeto de desejo: “o meu corpo, fogo ardendo, queimando,/torna-se num imenso doloroso, num profundo,/os meus olhos vagueiam, olho-te,/o meu pensamento voa,/os lábios incham, a face dói [...]”.

O último, de outra obra, poderia configurar-se como o desfecho das cenas evocadas nos poemas anteriores: consumado o desejo sexual (“saciada e exausta”), o eu-lírico relaxa o corpo, agora satisfeito, ainda que fantasie com novas consumações sexuais (“queria chamar-te para que me possuísses nova Nosmente”).poemas de Sultuane que destacamos, há a personificação de um eu-lírico consciente da sua própria sexualidade e legitimado em seus instintos sexuais: sem remorsos, puritanismos ou necessi dade de amor que os justifique. Este corpo erótico, assim refletido em sua plenitude, hibridiza-se com a próxima tipologia corporal que iremos observar, a do corpo liberado.O poema a seguir é de Deusa d’África, uma poeta nascida na cidade de Xai-Xai e co-fundadora de um importante grupo de poetas

Neste poema, observamos verbos que expressam o forte desejo sexual em progressão, como os gerún dios “ardendo” e “queimando”; a seguir, são revela das asconsequências físicas da não satisfação deste desejo, a partir de verbos como “inchar” e “doer”.

deiteisaciadagueEsta.....................................................................................(SULTUANE,nesseparavensverdes,nasnocarnudo,nosSaboreias................................................................................29)nomeucorpoogostodoamor,meusmamilosdou-teogostodomorangomeuventreogostodeabacaxi,minhascoxas,nessas,dou-temangasbuscarnaminhabocaoaçúcar,aprisionaresemordiscaresatuafruta,banqueteinesquecível.2009,p.17)noitedormiperdida,entrenosteusbraços,eexausta,me

os meus olhos vagueiam, olho-te, o meu pensamento voa, os lábios incham, a face dói, a língua, esculpida na tua, toca-te, engole-te, o meu corpo procura-te para o arrepiar do sangue fervendo, esta fome insaciável, o leve, o leve deste papel onde agora te sinto sem o peso que é isso. 2002, p.

A fim de suplantar o meramente carnal, a imagi nação do eu-lírico também é intensificada (“o meu pensamento voa”); entretanto, ao final, a vontade carnal não satisfeita converte-se em dor, como con firma o verso “torna-se num imenso doloroso”.

LETRAS

O segundo poema, apesar de oriundo de outro livro da autora, constitui uma possível continuidade do anterior: neste momento, o eu-lírico encontra-se em pleno deleite de coito, e compara os sabores e sensações sexuais ao degustar de frutas, consciente do poder de sua própria feminilidade: “Saboreias no meu corpo o gosto do amor,/nos meus mamilos dou-te o gosto do morango carnudo,/no meu ventre o gosto de abacaxi,/nas minhas coxas, nessas, dou -te mangas verdes”.

] 22 [

] 23 [ em Moçambique, o Xitende. Vejamos, pois,de que forma podemos perceber a transição entre o corpo erótico e o liberto:

Hoje

ComPintarapetece-meosmeuslábios,atintadaminha boca, E este pincel nela mergulhado Até ela ficar oca. Hoje

NaDesseETerSóEAoHojeComEFumarapetece-meastuasmágoasaliviarospulmõesumcharuto.apetece-mealtar,levar-te,casar-teesóporhoje,alua-de-mel,esqueceraacerbidadecoraçãofelescolhadehomem,cheio de sumptuosida Hojede. apetece-me Nas tuas entranhas, arquejar Nelas Mergulharmanejarnomar da incerteza, só para te ter. (d’ÁFRICA, 2014, pp. 22 – 23)

ComoTudoSoletrarapetece-meemsurdinaqueeuqueriaouvirosoproquedeuavida a Adão E ulteriormente tornar-me Tuas Dessevestescorpo despido Pelo meu desejo E os deuses dando-me um ensejo De alcançar a carreira de estilista Só para te vestir Com a tua nudez que almejo. Hoje apetece-me Fazer sem cunhas Mas sim, usando minhas unhas na textura da tua tez. Hoje

O eu-lírico, nesta poesia, reitera seu desejo em todas as estrofes, que pode ser verificado na re petição do verbo “apetecer”. O desejo expresso nos versos não diz respeito apenas ao sexo, antes se manifesta como consciência da sedução feminina (“Hoje apetece-me/Pintar os meus lábios,/Com a tinta da minha boca”) e de empoderamento (“E os deuses dando-me um ensejo/De alcançar a carreira de estilista/Só para te vestir/Com a tua nudez que Osalmejo.”)demais

verbos do poema, a maioria escritos no infinitivo (pintar, soletrar, tornar-me, alcançar, vestir, fazer, fumar, levar-te, casar-te, ter, esquecer, arquejar, manejar, mergulhar) são verbos indica tivos de ação, com teor performativo. Dessa forma, demonstram uma atitude anímica proativa do eu-lírico, representativa de iniciativa e dinamismo, características não comumente associadas ao femi nino na estética normativa tradicional. Outrossim, podemos perceber a reverberação deste “neofemini no” reivindicado em versos que denotam a inversão

O poema chamado “Quando estivermos vivos”, da mesma poeta, também reivindica a desconstrução da imagem tradicional da mulher submissa e casta, invocando o sexo e a liberdade como restaurado ras da energia vital: “Quando estivermos vivos/Nos amaremos e activos/Elanguesceremos outros cadá veres/Sepultados na nossa boca/Transladando uns aos intestinos delgados/E aos intestinos grossos a todos os que em vida não foram amados/E a quem os estoicos emanara.” (d’ÁFRICA, 2011, p. 63). Em momento posterior, o eu poético declara: “Quando estivermos vivos/Eu e tu seremos um/Iguais a outro casal nenhum/E em cada solo, nosso sêmen/Fecundará o alimento do povo, o pão [...].” (d’ÁFRICA, 2011, p. 63, grifos nossos).Ao proferir “Eu e tu seremos um”, não há distinção ou hierarquia de gêneros, haja vista que masculino e feminino fundem-se num só enleio amoroso. Por outro lado, ao apropriar-se do fluido seminal masculino (“E em cada solo, nos so sêmen”) e viabilizar a fecundação conjunta dos dois (“Fecundará o alimento do povo, o pão.”), o eu feminino se vale da imagética sexual para revelar a transcendência e sublimação das diferenças biológicas entre os gêneros. Mas não é apenas sexualmente que o corpo pode manifestar liberdade. Existe a poetização de um corpo em movimento, que dança sem pudores rit mos tradicionais. Observemos mais um poema da

dos papéis sociais tradicionais de homem e mu lher: “Hoje apetece-me/Ao altar, levar-te/E casar-te/ Só e só por hoje,/Ter a lua-de-mel....” Também se manifesta na ressignificação de características comumente atribuídas à mulher, como a suposta fragilidade emocional feminina. Nestes versos, o eu masculino é retratado como um ser enfraquecido diante da mulher: “Hoje apetece-me/Fumar as tuas mágoas/E aliviar os pulmões/Com um charuto”; observamos também a necessidade de liberalidade (“Hoje apetece-me/Fazer sem cunhas”) e demons tração de agressividade, em uma inversão à virili dade masculina: “Mas sim, usando minhas unhas/ na textura da tua tez.”

] 24 [

Por fim, ao assumir-se no comando do sexo (“Nas tuas entranhas, arquejar/Nelas manejar/Mergu lhar no mar da incerteza, só para te ter”) o eu-lírico reafirma a voz ativa expressa no poema pois, ainda que possa sentir-se insegura (“Mergulhar no mar da incerteza...”), é na concretude do ato sexual que o sujeito poético reafirma sua sexualidade (“só para te ter”).

autora):Abrir os Afagandomundo.clausurasentidosàpalavraemdolorosa ternura descalabrados tambores ao rubro e acordes em mim. Estender, marrom, a pele infinita feita dias sem horas tu de maresEntoarmim.sonetos,proibidos, marrabentar!

.

D’ÁFRICA,REFERÊNCIASapenastizado/liberto)séculos.envelhecido/degradadoinvisível/subalterno/disciplinado/imobilizado/estruturadonosúltimosOxaláessasversõesdecorpofeminino(erosejamcadavezmaisfrequentes.Nãonaliteratura.Deusa

] 25 [ já mencionada Melita Matsinhe (2017, p. 14, grifo da

Quebrar este paradigma de controle e dominação do corpo feminino com uma poesia de autoria africana feminina empoderada e decolonial é um elemento sintomático dessa imprescindível, ainda que gra dual, transformação do status quoatual,reminiscen te do patriarcalismo ainda vigente nos dias atuais. Sintomáticos de uma geração de ressignificação do corpo da mulher negra, estes poemas traduzem possibilidades de nuances femininas de expansão, que felizmente apontam para uma ruptura do pa drão

A Voz das Minhas Entranhas. Ma puto: Ciedima, 20114. LERNER, Gerda. A criação do patriarcado: história da opressão das mulheres pelos homens. Trad. Luiza Sellera. São Paulo: Cultrix, 2019. MATSINHE, Melita. Ignição dos Sonhos. Maputo: Fundação Fernando Leite Couto, 2017. SEBASTIÃO, Lica. De terra, vento e fogo. São Paulo: Editora Kapulana, 2015. SULTUANE, Sónia. Sonhos. Maputo: Editora da Asso ciação dos Escritores Moçambicanos, 2002. SULTUANE, Sónia. Imaginar o Poetizado. Maputo: Ndjira, SULTUANE,2006.Sónia. No colo da Lua. Maputo: Ndjira, XAVIER,2009. Elódia. Que corpo é esse? O corpo no imagi nário feminino. Florianópolis: Ed. Mulheres, 2007.

O eu-lírico manifesta-se, de antemão, predisposto à liberdade (“Abrir os sentidos//Estender, marrom, a pele infinita”). A dança tradicional moçambicanaé invocada como ícone desta libertação: amarraben ta, que em seu nome já contém a ideia de extravaso (sua origem seria da contração m’arrebenta). A dan ça aparece neste poema como signo de liberdade, tanto do corpo - a partir do movimento -, quanto da palavra (a poesia é a libertação possível da língua). Naturalmente, como o processo de libertação sig nifica ruptura, vem acompanhada de contradições (“Afagando em dolorosa ternura”) e de quebra de padrões pré-estabelecidos (“Entoar sonetos,/ mares proibidos/ marrabentar”). Temos, a partir da análise de poemas dessas cinco poetas moçambicanas contemporâneas, a exposi ção de facetas outras do eu-lírico feminino, cate gorizadas a partir da observância da presença do corpo erotizado e do corpo liberto na produção lírica dessas autoras. Entretanto, a verdade é o que nossa sociedade possui ainda escoras para a misoginia generalizada e o controle dos corpos das mulheres.

] 26 [ VIRGÍLIA FERRÃO ESCRITORA DECOISASHUMANOS

Emquemomentoos ofendemos?

tínhamos sem querer, ofendido aqueles homens. Mas em que momento? Eu pessoalmente acabo de chegar à esta terra e nem sequer consigo distinguir uma meia de um sapato, quanto mais fazer inimizades...? - Porque nos apontam essas armas? O que foi que vos fize mos nós ou em que momento os ofendemos?Aoouvira metralhadora cus pir uma rajada de balas, percebi que as perguntas foram acolhi das como um acto de desafio. Respiração acelerada, cérebro anuviado e arrependimento no peito, caí de joelhos, ergui as mãos no ar e retornei a questão, com urgência vertida na voz quase muda: - Qual é o motivo? O que foi que vos fizemos? - É preciso purificar a terra, trazer justiça, em nome da fé. Cala-te ou te explodiremos já cabeça!Fechei a boca e deitei-me amparando uma criança feri da. Confesso que apesar de eles terem dado uma resposta, a dúvida permanecia. Para bem dizer, estava mais confuso que antes. Justiça? Fé? De que espécie? Não era possível que houvesse uma fé com um ângu lo tão obtuso. Isso tinha outro nome: ódio. Acabei então por compreender, que nem eu nem aquelas pessoas tínhamos feito nada. Nosso único erro, quando muito, era existir. Na hora e no lugar errado. É triste notar que este planeta está submerso em tanta incompaixão.

A vida vista como um brinque do, mero utensílio descartável. Precisava de um abraço. - Ninguém se move, todos para o chão, agora! Não sabia o que aquele brado sig nificava. Pior, desconhecia o motivo de três sujeitos terem arrombado as portas, e erguido monstruosas armas contra nós, lançando pólvo ra para todo o lado. Pode ter sido a minha falta de etiqueta humana, ou puro embaraço, mas a verdade é que não acatei. Enquanto o restan te povo entregava-se ao pânico e deitava-se no soalho frio, perma neci em pé, sob as pernas marm orizadas, com uma trémula inter rogação ensombrando-me o olhar. Os invasores perguntaram-me se eu era surdo. Se tinha de pressa de morrer. Questão um tanto pecu liar, visto que não os conhecia de lado nenhum e não lhes tinha feito nada para que me propusessem a morte assim, tão gratuitamente. Tentei perceber se eu, ou os outros,

Eu vi, numa mesma rua, pessoas sem comida, ao relento, pedindo apoio a pessoas cober tas de ouro. Vi gente no hospital, lutando para viver mais um dia, e gente a rastejar-se exaus ta para cama, sem vontade de acordar mais. E agora, esta subespécie est ranha, humanos só de nome, superficiais até aos dentes, sem juízo e dessincronizados do significado da palavra vida. Porque é que existem humanos tão maus? - Baixem as armas, por favor! Não vos fizemos nada, tenham piedade!Osmeus soluços redunda ram-se inúteis. E por fim, quase ninguém escapou à ira dos fulanos. Excepto eu. Aterrei de costas no solo, crivado de balas. Não obstante o braço e a barri ga cheios de orifícios, continuei viva. Fiquei quieta, sentindo o morno e salgado líquido que descia dos olhos e entrava pela boca. Todo o meu ser chorava.

Sorte a minha ser uma qawwi. Podia regressar ao meu corpo original, ou procurar um out ro corpo para habitar. Mas a mesma condição não tinham os outros ali caídos. A única e pre ciosa vida que um dia haviam tido, acabava de lhes ser rouba da, sem nenhuma razão. A esperança esventrou-se das minhas veias. Afinou-se como se desbasta o carvão numa grelha, até cinza se tornar. Há milhares de habitantes e de idiomas neste planeta, mas estou longe de perceber a lín gua da humanidade. Na sua imensidão, a terra é pequena e carente. De amor entre irmãos.

Covid-19eainfecçãoaos grandes festivais

O novo coronavírus infectou alguns festivais moçambicanos, como o Azgo, o Festival Internacional de Teatro de Inverno (FITI) e o Poetas D´Alma. O Festival da Mafalala aguarda ainda sentença. São mais de 23 milhões de meticais envolvidos, cerca de 20 mil espectadores, 420 artistas e perto de 400 pessoas na produção. E não se fala aqui de todos os festivais. MUAGA I JORNALISTA

LUCAS

] 27 [ ARTES NO PALCO

Cancelar o Azgo é interromper a movimentação de mais de 18 milhões de meticais e implica a perda de 800 mil meticais em receitas, segundo o director do Festival, Paulo Chibanga. O Teatro de Inverno, feito por amor à camisola, é estimado em meio milhão de metic ais, divididos “entre serviços prestados (Produção, técnica, promoção) e (outras) despesas”, revela o coordenador deste evento até aqui anual, Joaquim OMatavel.Festival da Mafalala é orçado em 5 milhões de meticais, “dis tribuídos por artistas, comuni cação, catering, equipamentos, locações e equipa de produção”, conta o coordenador, Ivan Lar Doanjeira.Poetas D´Alma, Feling Capela não revelou os valores envolvi Sabe-se,dos. sem contar com o mes mo, que se parou com a movi mentação de mais de 23 500 000 (vinte e três milhões e quinhen tos mil) meticais em eventos Oculturais.Festival da Mafalala pretende fazer jus à tradição, levando ao palco, mais de 100 artistas, preparando o evento ao por menor, com mais de 20 profis sionais, entre “comunicadores, técnicos, pessoal de catering e a direcção do festival”, diz Laran Segundojeira. Paulo Chibanga, com o cancelamento do Azgo, foram hipotecados 300 empregos, 30 directos e 170 indirectos. Tam bém cancelou-se uma feira que contava com 20 feirantes de gastronomia e 10 de artesana to. Além disso, 10 empresas de fornecimento de serviços foram afectadas, sem contar que se hipotecou a actuação de 156 artistas, 60% destes moçambi Ocanos.FITI, por sua vez, contabiliza va 62 artistas moçambicanos e 48 estrangeiros, entre estes 20 sul-africanos, 15 angolanos, 8 brasileiros e 5 portugueses, segundo Joaquim Matavel. No total, a Covid-19 afectou 110 artistas, que actuariam graças ao empenho de 16 pessoas na produção. Das companhias, uma brasileira actuaria pela primeira vez.

Em Julho, espera-se pela se gunda edição do Poetas D´Alma e, em Novembro, pela décima terceira edição do Festival da Mafalala. O primeiro poderá ser online e o segundo espera que até Novembro, a Covid-19esteja controlada. Os quatro festivais podem resumir os outros, can celados ou adaptados às plata formas virtuais como facebook, instagram e youtube.

O FITI e o Azgo, festivais de teatro e de música, foram cancelados. É a primeira vez que isto acontece.

] 28 [ ARTES

O Poetas D´Alma é produzido por 20 pessoas. Espera que, difer ente do ano passado, ultrapasse os 60 artistas de mais de 20 países, pelo modelo online. Assim sendo, os quatro festivais envolvem mais 400 artistas e 420 pessoas na produção. Na assistência, em 5 dias, o Festival da Mafalala acumula mais 5000 espectadores, dizem

Cancelar o Azgo é interromper falalaOmaismovimentaçãoadedeFestivaldaMaéorçadoem EMPREGOS HIPOTECADOS 18MILHÕES 5MILHÕES 300 DEMETICAIS DEMETICAIS

] 29 [ estatísticas anteriores. O Azgo, em 4 dias, alcança mais de 8000 mil pessoas, o maior número, em comparação com os outros abordados, pois o FITI movimenta perto de 1000 espectadores, em mais de 15 dias de espectáculo e o Poetas D´Alma, no ano passado,alcançou 5000 pessoas. São mais de 20 mil espectadores envolvidos. Há outros sectores que saem lesados com o can celamento dos festivais ou com a sua metamor fose para o online. O turismo é um deles, afinal, o público e os artistas também são turistas. Visitam praças, museus, centros culturais, praia se outros locais de atracção turística e aproveitaram para “provar a nossa culinária”, indica Felling Capela. Com isso, o sector hoteleiro sai a perder. O FITI, considera Joaquim Matavel, arranja clientes para hotéis de até 3 estrelas. Alguns participantes do Poetas D´Alma, no ano findo, ocuparam mais de 32 quartos e o Azgo cancelou cerca de 150 noites. Fora disso, Paulo Chibanga reitera que o Estado, com o cancelamento do Azgo, perde mais de 1 500000 meticais, em impostos e licenças. o Estado, com o cancelamento do Azgo, perde mais de 1.500.000 DEMETICAIS

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balho todas as noites com medo de serem estupradas, seja pela lógica patriarcal e machista que faz as mulheres terem medo de ser agredidas dentro da própria casa, seja pela pobreza abismal e fome gerada com o capitalis mo neoliberal ou pela poluição e danos ecológicos massivos de corporações que seguem a expro priação das comunidades com autorização das elites políticas e algum “marketing verde” longe de trazer o tão publicitado “desen Évolvimento”.porqueesse acto involuntário que sustenta a nossa vida en quanto seres vivos é possível para uns e restringido para outros, que Achille Mbembe fala do direito universal de respirar, como direito originário de exist ir e habitar a Terra. Direito vital para qualquer entendimento de justiça social, racial, económica e ambiental. Não por acaso, “Não consigo respirar”, frase pronun ciada por Garner (2014) e Floyd (2020) minutos antes de morre rem por sufocamento nas mãos de polícias brancos americanos, tornou-se o slogan do movimento Vidas Negras Importam. O movi mento tem encontrado solidarie dade transnacional em várias partes do mundo e desnudado o racismo estrutural que desenha as relações assimétricas de poder a nível global. Em Moçambique, a frase “Vidas Negras Importam” foi apropriada e transformada por alguns activ istas em “Cabo Delgado Importa”.

Foi a partir deste movimento da diáspora que alguns moçambi canos conseguiram encontrar as palavras para falar nos espaços digitais, da violência armada que tem devastado a nossa província e gerado milhares de famílias e crianças deslocadas sem aces so aos serviços básicos. Usar a expressão “Cabo Delgado importa” coloca em cheque a soberania e capacidade do nosso Estado de garantir a segurança e protecção de forma inclusiva para todos os moçambicanos, mas também chama a atenção para a falta de solidariedade e negligência que se verificou, não só estatal, mas de cada moçambicano em relação ao sofrimento de outros moçambi Acanos.necessidade de dizer “Cabo Del gado importa” expõe a ilusão da identidade e “unidade nacional” num momento em que celebra mos 45 anos de independência, mas articula também a busca por uma ética de solidariedade, igual dade e conexão profunda, entre todos habitantes deste corpo-ter ritório chamado Moçambique, uma ética que reconhece que quando alguns de nós respiram mal, todo o corpo-território respi ra mal. O nosso corpo-território, forja do pela cartografia colonial, é atravessado por coaporhecemosriqueza,nessaculturalporsocioeconómicasdesigualdadesregionaiseumadiversidadenaturaleriquíssima.Sabemosquediversidadeestáanossamascadaveznosconmenosunsaosoutroseissonosconhecemosmenosnóspróprios.Oprojectopolítide“unidadenacional”acabou

servindo mais para fins de coesão e centralização administrati va do que para estabelecer um verdadeiro diálogo intercultural horizontal, que nos conecte e nos permita conhecer uns aos out ros fora dos anseios e interesses político-partidários. Subverter, do substantivo feminino subversão. Acto de revolta contra a ordem social, política e económica estabelecida. Para Fanon, a revolta acontece quando, por várias razões, já não conseguimos mais respirar. Quando a desigualdade, injustiça, opressão, exclusão e discriminação representam não apenas simboli camente, mas corporeamente, um sufoco quotidiano, um impedimento contínuo e sistémico à vida. Respirar, hoje com máscaras, man tém-se privilégio de alguns grupos, enquanto porções inteiras de pop ulações vivem submetidas a uma respiração ofegante, difícil, ameaça da, e pronta para ser cessada a qualquer momento. Seja pelas políti cas estatais racistas que orientam a brutalidade policial como no caso dos Estados Unidos da América, seja pela falta de segurança pública nos bairros periféricos de Maputo, que faz as mulheres regressarem do tra

] 30 [ TASSIANA TOMÉ ESCRITORA SUBVERSOS QUASE-VERSOS PARA SUBVERTER O SISTEMA Respirar Parte

C aros leitores interessados e, muito estimo que interessantes, Se de mim esperam uma biobibliografia, tê-la-ão, contudo, desenganem-se: não vos apresento “canudos”, nem tão pouco percursos profissionais. Consciencializemo-nos e aceite mos: de que nos serve uma colecção de certifica dos se não aprendemos nada com eles? E quantos de nós, não se acabrunhem, concretizamos há anos as mesmas práticas, porque acomodados e felizes na ilusão? Para nos vergarmos, de olhos no Pelochão…exposto, e com grande respeito pelos pouco curiosos e muito sedentários no seu dia-a-dia, desvio-me da Academia e do Mister. Por ora! Detenhamo-nos na Pessoa. Sem medos e sem ro deios. Com hombridade, autenticidade e esponta neidade (deleitem-se com o timbre da sufixação!!) Sou e Estou, no tempo e no espaço, como Pessoa: Celina. Somente assim. Sou a Celina, a extravasar de nada e de tudo. Como todos vós. Assumidamente defensora de causas, mais das minhas do que das de outros, e com valores e princípios humanistas muito vincados, confesso, demasiadamente acentuados, em prol do Outro e, acima de tudo, do Nós. Assim sou, a Pessoa. Ine gavelmente ao serviço da Educação, considerando e lutando por toda a significância que lhe atribuo, não vivo por debaixo de livros: talvez, de quando em vez, me posicione ao lado de uns quantos, rigorosamente seleccionados, porém, mais acima deles. A verdade não tem antónimo e a injustiça toca-me, de tal forma, no âmago que me armo com todas as letras e claves de sol para combater. Mais vezes sozinha do que acompanhada, sempre para o Outro. Tanta literatura vazia, urge que façamos algo! Tantas orquestras com músicos a desafinar, cada um para seu lado. Aonde foram os Maestros? É premente encontrá-los!

Sem pretensões de mudar o mundo, com a ín fima missão de abaná-lo, com forte convicção, para que não restem dúvidas da força que, mis tério, com a idade vai crescendo.Responsável por uma mente inquieta, o sem-fim de propósitos que tenho sofregamente abraçado, com as péta las bem abertas, tem contribuído sobremaneira para o que sou hoje, aqui e agora, convosco. A Pessoa a crescer impulsionada por projectos, por vezes maiores do que eu, que, de tão gratificantes, me vão tornando cada vez mais insatisfeita. A simbiose da Pessoa com a Profissional, desencon trada de quaisquer especialidades: quero mais, muito mais! Para mim, para vós, - certo, já alcan çaram! -, para Nós. A minha singela contribuição neste espaço cul tural e literário que, não tenho dúvidas, ecoará mensagens fortes, positivas e desgarradas de preconceitos, segregações, ideologias pobres e crenças provenientes de desacreditados de tudo e de nada. É com enorme gratidão e humildade que me junto a uma equipa de Pessoas, humanamen te humanizadas. Com diligência e avidez para aprender mais a ser e a estar, nesta era

dadesInterculturaliglobal,-CELINA MARTINS DOS SANTOS ESCRITORA

] 31 [ INTERCULTURALIDADES

vos trago lições de moral, não se preocupem. Todavia, não conjecturem erradamente sobre a minha literatura que de sossegada tem nada (perdoem-me os linguistas pelo desvio da dupla negação que, em casos há, só confunde). Porquê? Precisamente porque escreverei, fantasiem e muito, sobre pessoas. De lupa em punho, em confor midade com a observação e a recolha empírica, trazer-vos-ei narrativas que, se me permi tem, doravante há que come çar a prestar-me atenção, irão espoletar temáticas inesgotá veis, quer na sincronia como na cronologia. Vejamos: identida de ou identidades? Cultura ou culturas? Modelos multicultu rais ou modelos interculturais? Acolhimento ou acolhimentos? Integração ou inclusão? Globali zação ou desglobalização? Juntos, investigaremos comuni dades de prática. Juntos, obser varemos trabalho colaborativo. Há que procurar, perscrutar para alcançar. Juntos, analisaremos e avaliaremos a Humanidade com todos os binómios sobeja mente reais que, a todo o custo queremos ofuscar: igualdade vs. desigualdade; tolerância vs. intolerância; união vs. separa ção. Os binómios são tantos que até o próprio “verbo” já é anta Juntos,gónico. ascenderemos à grande questão que nos diz respeito a todos: a Educação. Que sentido tem escutar narrativas, se não for para aprender? Que sentido tem aprender com as narra tivas, se não for para dar tal e qual como recebemos; para trocar culturas? Desta vez, por ser a primeira, sem literatura por detrás da minha, avanço: a Educação é indissociável dos fenómenos interculturais. E assim se designará o espaço que me confiaram (a desconfiar, aconselho-vos, por INTERCULTURALIDADES.enquanto!):

] 32 [ cantada alegremente a uma só Voz, porém, tão pouco globaliza da. Reflictamos: como é sentida a globalização em todos os luga res do mundo? E, afinal, quem é que sente? A Humanidade tem vida provocada pelos cinco sentidos ou, com os sopros da contemporaneidade, se vai de sumanizando? A Pessoa, sempre a Amigos,Pessoa…não

] 33 [ JESSEMUSSE CACINDA JORNALISTA QUOTIDIANOQUASE Umverso antes de morrer

A minha mente é um mercado grossista, regista movimentos simultâneos e combinados e o corpo já não me pertence.

que abandonei porque queria ser aquilo que me ensinavam e diziam o que deve ser um “bomhomem”, uma vontade que perseguiu minha história nesta passagem pela terra. A rua está deserta de gente que me acuda. O universo parece não estar a meu favor. Me fiz à rua porque me dei conta que o sal acabou, justamente quando preparava o jantar. Ou servia uma comida sem sal ou me fazia a uma rua que já é famosa pela sua insegurança. Talvez seja o preço que pago por não casar. A minha avó sempre me alertou a respeito, dizia que casar é como que ter uma bengala para a vida, e se um homem ou uma mulher casa dos não sentem isso, talvez não compreenderam o sentido de uma vida conjugal. Mas sempre consegui cuidarme o suficiente a ponto de nunca ter chegado a sentir que precisasse de uma bengala para a vida. Por isso que, quando dei conta da falta do sal em minha cozinha, optei por sair de casa como tantas outras vezes. Desta, a sorte não me acompanhou. Dois homens vestidos de ninja bloqueiam-me os movimentos muito antes de chegar a banca mais próxima de casa, deixan do-me em apuros. As histórias de criminalidade que experimentámos no bairro funcionam como que uma or dem de proibição de movimento com medo de uma pandemia viral que se pega na rua.

tufo deste ar não tem melodia do amor, “vamos matar esse cabrão” é o que dizem os ninjas, “a gente deu tempo demais para o gajo aprender”, persistem na conversa ameaçadora. Ocorre-me um flashback; fotografias de gente que ma goei vêm-me à memória, as imagens rodam como se de uma apresentação se tratasse.

Perco a noção do tempo e es paço. Vejo uma noite infinita, sem estrelas e nem luar, o

Recordo-me das apresentações que fazia no serviço, sempre que tivesse um novo produto ou recebesse a visita de um novo “Achascliente.que consegues tudo o que queres? Ou que o mundo pode ser como queres? E como em vida não aprendeste a ser humilde, vamos te por esta faca para ver se és tão duro assim”, os dois homens ainda encon tram tempo para dizer algumas coisas antes de matar-me. Estou a usar, como nunca, as minhas capacidades, o que me faz compreender como as mul heres têm força para múltiplas acções. Elas beijam enquanto trabalham, namoram enquan to cozinham, amam enquanto descansam e ainda brincam en quanto conversam. Nunca achei que isso fosse possível. Os meus ouvidos captam todas as pala vras sinistras destes homens ao mesmo tempo como que outros sons passeiam o meu ouvido.

Um coração que se fechou a amores desde que inventei que me haviam magoado, na verdade, eu mes mo me havia magoado desde que cruzei os braços à espera que todas as mulheres tivessem habilidades para descobrir, por si, o que me faria feliz.

Cada rosto que visualizo apre senta os motivos de nossos desentendimentos, é muita matéria que, se os ninjas pu Acabo de urinar nas calças, tento, mas nem sequer consigo respirar fundo, seguro-me para não soltar as fezes que já sinto a tocar o al godão da roupa que me cobre. Estou desidratado e preciso de água, mas não posso falar porque estes tipos que me querem matar, nem sequer tempo têm para deixar-me beber um último gole. Fecho os olhos para sentir a faca a perfurar o lado esquerdo do meu peito.

É o corolário de uma luta renhida, uma medição de forças como as que fazia na infância, uma prática

] 34 [ dessem seguir-me para casa e beber uma taça de vinho, que lhes serviria antes de me matarem, escreveria um ensaio sobre o desentendimento huma no, onde poderia defender uma tese sobre o papel da vaidade no estado Dissertariasocial.sobre o quão es tamos fechados em nossas próprias histórias, experiências e sonhos, e alertaria da necessi dade de também compreender mos os territórios que marcam as experiências existenciais dos outros. Construiria argumentos, rebateria contra-argumentos e, no final, estaria a contra dizer-me, ao escrever contra a vaidade, estando eu mesmo a ser vaidoso. Em meio ao desespero, busco recordar-me das lições sobre a arte de conversar que, um dia, tive numa dessas aulas de Filo sofia. O meu professor, um vel ho que sempre disse ser jovem, gostava da ideia de Heidegger, segundo a qual, o ser é o seu próprio mundo e recomenda va-nos a ter em conta que uma conversa é um diálogo de mun dos particulares, “talvez tentar compreender o mundo destes homens seja um bom ponto de partida para convidá-los a uma conversa”, falo para os meus botões, que, imediatamente, me comunicam a falta de tempo.

“Parece que já não sente medo, este cabrão! o que se passa? comenta um dos homens, “per cebeu que da morte não se foge, mais dia, menos dia, ela che gará”. “Sim, mas o homem não estava preparado, quanto mais queria curtir a vida, eis que lhe acaba hoje” conversam aos sor risos de gozo. Depois de perder a esperança, porque a seguir será a vez da vida, eis que me pedem para dizer uma última frase. Neste instante, entre uma mensagem positiva e negativa, prefiro uma positiva, pois já não ten ho tempo para lamentações, o que resta é mesmo tempo para agradecer pelo dom da vida. Muito rapidamente, recito, com tanta gratidão, um verso de Pab lo Neruda, “confeço que vivi” – o meu grito soa mais alto do que o apito do comboio, “ah cabrão, então não te vamos matar para experimentar as coisas doloro sas que a vida ainda não te deu”, diz um dos ninjas enquanto escuto o som da faca ao cair so bre o chão sem asfalto e quando finalmente consigo abrir os ol hos, vejo os ninjas a desparecer entre os becos do bairro.

“Faz a tua última oração, cabrão! É o mínimo que te po demos dar para que, ao menos, tenhas paz definitiva”, ordenam os homens enquanto continuo de olhos fechados. Nesse in stante já sinto a faca quase no peito, as imagens que desfilam dentro da minha cabeça, mul tiplicam-se. Agora vejo filmes das derrotas. As vezes que tive de contentar-me por não ter o que sempre quis, consolam-me. Se nunca tive mesmo nada, parece-me não fazer senti do preocupar-me com a vida, penso, enquanto uma nuvem de paisagens lindas esconde-se entre o rosto coberto do homem que segura a faca.

LUCAS MUAGA E CELESTE MANGANHELA

Tem no político moçambicano, Fernando Mazanga, um proemi nente membro da Renamo, o seu Éprogenitor.umpolítico que também expli ca os seus caminhos, abrindo o seu o seu baú de memórias. Con fessa ser feito de livros, músicas e filmes. Afirma ter uma paixão intensa pelo desporto, com uma umbilical ligação com o Costa do Sol e o Barcelona. Ivan Mazanga encontra na lei tura, uma das soluções para os dias difíceis de quarentena e diz passar o tempo a alimentar o espírito, lendo livros, encara este acto como político e de cidadania. Daí estar na escola a sua primei ra explicação para o seu gosto pela leitura. Foi do pai que rece beu uma das obras que mais o marcaram. Chama-se “O Triunfo dos porcos”, de George Orwell. Há uma razão por detrás. “No início dos anos 90, ainda tinha muita força do pensamento socialista e comunista do povo moçambi cano, dentro da literatura. Faz (o ESCAPE

] 35 [

IvanMazanga: umpolíticofeitodelivros

Ivan Mazanga é um político e académico moçambicano for mado em Relações Internacionais, pelo Instituto Superior de Relações Internacionais (ISRI), rebaptizada como Universidade Joaquim Chissano. É como se todos os caminhos fossem dar à política. Mas não é bem assim.

Ivan Mazanga foi escolhido pela política. Podia se pensar o con trário, não fosse daqueles que ad mitem ter puxado muito do pai.

] 36 [ autor) uma sátira a esta situação”, diz Ivan Mazan ga. Mas não ficam de fora livros como “Papalagui”, de Eric Schumann. “Bastante influência teve em mim, em termos de visão, sobre quais são as plataformas que colocam a vida, em vários sentidos. Num senti do de transformar e contemplar a natureza”, conta DentroMazanga.de portas, Ivan Mazanga recomenda a leitu ra de livros considerados clássicos. Para este, vale a pena navegar na vasta obra de Paulina Chiziane e, para já, propõe a leitura de “O Sétimo Juramento”. Em tempos de crise, como a que o mundo atraves sa, o tédio não pode, segundo Mazanga, abater a humanidade. Recomenda, para o ouvido, a voz de músicos já afirmados, como António Marcos, que em “Txuvukane pambene”, traz esperança para o Podemosmundo. perceber que Mazanga faz-se de nostal gias. Todas as músicas que partilhou, como a de António Marcos, lembra-o a família. Dela, “sentia nostalgia e aquela história do meu pai”. Assim, deixa uma frase sobre “Sala nwanawamamani”, de Jeff Maluleke. “No sentido de quem está a despedir a sua família para encontrar outra forma de vida” ESCAPE

] 37 [ LOJA L No oco do mundo, Vários autores Ano de publicação: 2019 Género: Conto Editora: Trinta Zero Nove Preço: 400Mt No oco do mundo, Vários autores Ano de publicação: 2019 Género: Conto Editora: Trinta Zero Nove Preço: 450Mt Compra e venda de livros, discos, quadros, bijuterias… tudo cultura! Eu Não Tenho Medo, Niccoló Ammaniti Ano de publicação: 2019 Género: Romance Editora: Trinta Zero Nove Preço: 450Mt A Perseverança Raymond Antrobus Ano de publicação: 2019 Género: Poesia Editora: Trinta Zero Nove Preço: 450Mt A Perseverança Raymond Antrobus Ano de publicação: 2019 Género: Poesia Editora: Trinta Zero Nove Preço: 320Mt Eu Não Tenho Medo, Niccoló Ammaniti Ano de publicação: 2019 Género: Romance Editora: Trinta Zero Nove Preço: 450Mt a engenharia da morte Mélio Tinga Ano de publicação: 2020 Género: Contos Edição do autor Preço: 600MtDISCOSLIVROS & ÁUDIOLIVROS A LOJA IDEAL PARA QUEM NÃO QUER SAIR DE CASA.

] 38 [ Étudo cultura!

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