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COISAS DE HUMANOS Em que momento os ofendemos?

VIRGÍLIA FERRÃO

ESCRITORA

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COISAS DE HUMANOS

Em que momento os ofendemos?

- Ninguém se move, todos para o chão, agora!

Não sabia o que aquele brado significava. Pior, desconhecia o motivo de três sujeitos terem arrombado as portas, e erguido monstruosas armas contra nós, lançando pólvora para todo o lado. Pode ter sido a minha falta de etiqueta humana, ou puro embaraço, mas a verdade é que não acatei. Enquanto o restante povo entregava-se ao pânico e deitava-se no soalho frio, permaneci em pé, sob as pernas marmorizadas, com uma trémula interrogação ensombrando-me o olhar. Os invasores perguntaram-me se eu era surdo. Se tinha de pressa de morrer. Questão um tanto peculiar, visto que não os conhecia de lado nenhum e não lhes tinha feito nada para que me propusessem a morte assim, tão gratuitamente. Tentei perceber se eu, ou os outros, tínhamos sem querer, ofendido aqueles homens. Mas em que momento? Eu pessoalmente acabo de chegar à esta terra e nem sequer consigo distinguir uma meia de um sapato, quanto mais fazer inimizades...? - Porque nos apontam essas armas? O que foi que vos fizemos nós ou em que momento os ofendemos?

Ao ouvir a metralhadora cuspir uma rajada de balas, percebi que as perguntas foram acolhidas como um acto de desafio. Respiração acelerada, cérebro anuviado e arrependimento no peito, caí de joelhos, ergui as mãos no ar e retornei a questão, com urgência vertida na voz quase muda: - Qual é o motivo? O que foi que vos fizemos? - É preciso purificar a terra, trazer justiça, em nome da fé. Cala-te ou te explodiremos já cabeça!

Fechei a boca e deitei-me amparando uma criança ferida. Confesso que apesar de eles terem dado uma resposta, a dúvida permanecia. Para bem dizer, estava mais confuso que antes. Justiça? Fé? De que espécie? Não era possível que houvesse uma fé com um ângulo tão obtuso. Isso tinha outro nome: ódio. Acabei então por compreender, que nem eu nem aquelas pessoas tínhamos feito nada. Nosso único erro, quando muito, era existir. Na hora e no lugar errado. É triste notar que este planeta está submerso em tanta incompaixão.

Eu vi, numa mesma rua, pessoas sem comida, ao relento, pedindo apoio a pessoas cobertas de ouro. Vi gente no hospital, lutando para viver mais um dia, e gente a rastejar-se exausta para cama, sem vontade de acordar mais.

E agora, esta subespécie estranha, humanos só de nome, superficiais até aos dentes, sem juízo e dessincronizados do significado da palavra vida. Porque é que existem humanos tão maus? - Baixem as armas, por favor! Não vos fizemos nada, tenham piedade!

Os meus soluços redundaram-se inúteis. E por fim, quase ninguém escapou à ira dos fulanos. Excepto eu. Aterrei de costas no solo, crivado de balas. Não obstante o braço e a barriga cheios de orifícios, continuei viva. Fiquei quieta, sentindo o morno e salgado líquido que descia dos olhos e entrava pela boca. Todo o meu ser chorava. Sorte a minha ser uma qawwi. Podia regressar ao meu corpo original, ou procurar um outro corpo para habitar. Mas a mesma condição não tinham os outros ali caídos. A única e preciosa vida que um dia haviam tido, acabava de lhes ser roubada, sem nenhuma razão.

A esperança esventrou-se das minhas veias. Afinou-se como se desbasta o carvão numa grelha, até cinza se tornar. Há milhares de habitantes e de idiomas neste planeta, mas estou longe de perceber a língua da humanidade. Na sua imensidão, a terra é pequena e carente. De amor entre irmãos. A vida vista como um brinquedo, mero utensílio descartável. Precisava de um abraço.