Revista GEMInIS | ano 4 | n. 1 • jan./jun. 2013

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E x p e d i e nte Revista GEMInIS | ano 4 | n. 1 • jan./jun. 2013 Universidade Federal de São Carlos ISSN: 2179-1465 www.revistageminis.ufscar.br revista.geminisufscar@gmail.com Política Editorial Editor Responsável João Carlos Massarolo Universidade Federal de São Carlos - UFSCar Editor Executivo Dario Mesquita Universidade Federal de São Carlos - UFSCar Conselho Editorial (Copo de Pareceristas): André Lemos Universidade Federal da Bahia – UFBA Antônio Carlos Amâncio Universidade Federal Fluminense – UFF Arthur Autran Universidade Federal de São Carlos - UFSCar Carlos A. Scolari Universitat Pompeu Fabra – Espanha Bruno Campanella Universidade Federal Fluminense – UFF Derek Johnson University of Wisconsin-Madison – Estados Unidos Erick Felinto Universidade Estadual do Rio de Janeiro - UERJ Francisco Belda Universidade Estadual Paulista - UNESP Gilberto Alexandre Sobrinho Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP Héctor Navarro Güere Universidade de Vic – Espanha Hermes Renato Hildebrand Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP João de Lima Gomes Universidade Federal da Paraíba - UFPB Maira Gregolin Universidade Federal de São Carlos - UFSCar Marcos “Tuca” Américo Universidade Estadual Paulista - UNESP Maria Immacolata Vassalo Lopes Universidade de São Paulo - USP Maria Dora Mourão Universidade de São Paulo - USP Pedro Nunes Filhos Universidade Federal da Paraíba - UFPB Pedro Varoni de Carvalho Laboratório de Estudos do Discurso (Labor) - UFSCar Ruth S. Contreras Espinosa Universidade de Vic – Espanha Sheron Neves Escola Superior de Publicidade e Marketing - ESPM Pareceristas ad-hoc: Alessandro Gamo Universidade Federal de São Carlos - UFSCar Débora Burini Universidade Federal de São Carlos - UFSCar Márcia Gomes Marques Universidade Federal do Mato Grosso do Sul - UFMG Paulo Fernando Lopes Universidade Federal do Piauí - UFPI Capa Original Gi Milanetto


Sumário

Apresentação.................................................................................................................................................. 4

D ossiê - TV Pós D igital Quando a TV vai além da Sala de Estar: por uma análise cultural dos usos de novos dispositivos tecnológicos Carlos Eduardo Marquioni ...................................................................................................... 6 A Televisão no Ciberespaço: reformulações da televisão na internet e na tv digital Letícia Capanema • Renné Oliveira França ................................................................... 20 Interatividade como Categoria de Análise sobre Convergência entre Televisão e Web Maria Clara Aquino Bittencourt .......................................................................................... 37 Internet ou TV? Novas estratégias de lançamento para “De Volta” Vera Bungarten ........................................................................................................................... 57 Webséries: narrativas seriadas em ambientes virtuais Daniela Zanetti .......................................................................................................................... 69 Conversando com uma API: um estudo exploratório sobre TV social a partir da relação entre o twitter e a programação da televisão Márcio Carneiro dos Santos ................................................................................................. 89


Problemas na Definição Legal Brasileira de Tv Sob Demanda Via Internet Wiliam Machado de Andrade • Glauco Madeira de Toledo • Dalila Alves Corrêa ............................................................................................................... 108 Dispositivos Móveis como Potencializadores da Televisão Digital Interativa: desafios e usos da segunda tela no telejornalismo Elane Gomes da Silva • Ed Porto Bezerra ................................................................... 127 A b o r d a g e n s M u lt i p l a t a f o r m a s Favela: narrativas migrantes e perspectivas de futuro em cinco produções audiovisuais Daniele Gross • Paula Paschoalick .................................................................................. 145 O culto à Imagem em Game of Thrones: experiência estética e recepção dos fãs Adriana Corrêa Silva Porto • Fernando Gonçalves ................................................... 159 A Linguagem Motion Graphics nos Videoclipes Brasileiros Herom Vargas • Luciano de Souza .................................................................................. 176 The Last Silent Movie: escritura e desaparição na obra de Susan Hiller Angie Biondi • Paulo Bernardo Vaz ................................................................................ 198 A Música Clássica como Elemento Narrativo Produtor de Sentido em Cartoons Marina La Rocca Cóser • Rogério Koff .......................................................................... 206 Imagem-vestígio: do relance à resistência Siomara Faria ............................................................................................................................ 219 E s p a ço C o n ve r g e n t e resenha

A Experiência Lean Forward da Tv Social Sharon Neves ........................................................................................................................... 244


A p r ese n t a ç ã o

E

stá nas nuvens a sexta edição da Revista GEMInIS, uma publicação do “Grupo de Estudos sobre Mídias Interativas em Imagem e Som” – PPGIS/UFSCar. Este número é dedicado ao debate de um tema crucial para o entendimento dos

novos espaços sociais que surgem com o advento da TV Pós Digital. O dossiê temático desta edição traz reflexões sobre esse novo ecossistema midiático, compreendido pelas comunidades online que compartilham experiências no espaço social gerado pelos novos canais de reassistência. Neste ambiente a noção de TV Social promove mudanças no modelo de televisão de fluxo que o público estava acostumado a assistir, criando novos desafios para a produção e distribuição de conteúdo televisivo. Os oito artigos reunidos para o dossiê analisam de diferentes ângulos a questão da TV Pós Digital: Carlos Eduardo Marquioni (UTP) analisa as práticas culturais discursos em torno da tecnologia da televisão conectada; Letícia Capanema (PUC-SP) e Renné Oliveira França (UFMG) investigam os processos de expansão da televisão para outras plataformas, como o Youtube; Maria Clara Aquino (UNISINOS) Bittencourt trata das relações teóricas entre os conceitos de interatividade e convergência midiática; enquanto Vera Bungarten (PUC-Rio) observa novas estratégias de divulgação de produtos audiovisuais na rede; Daniela Zanetti (UFES) examina a migração das teleficções seriadas da televisão para a web e Márcio Carneiro dos Santos (PUC-SP) discorre sobre técnicas de mineração de dados como metodologias de análise da produção dos usuários e da televisão social no Twitter. Glauco Madeira de Toledo (UFSCar), Wiliam Machado de Andrade (Unimep) e Dalila Alves Corrêa (USP), problematizam a relação entre a legislação brasileira e os serviços de televisão via web, através dos protocolos de IPTV e OTTtv. Por fim, Eliana Gomes da Silva (UFPB) e Ed Porto Bezerra (UFPB), fazem um panorama das possibilidades de convergência no telejornalismo através de extensões para segunda tela. A seção “Abordagens Multiplataformas” reúne artigos atuais sobre a produção para cinema e televisão: Daniele Gross e Paula Paschoalick (ECA/USP) discorrem sobre


a questão da favela e as narrativas migrantes; Adriana Corrêa Silva Porto e Fernando Gonçalves (UERJ), analisam a estética do seriado Game of Thrones, enquanto que Herom Vargas e Luciano de Souza (USCS), discorrem sobre a linguagem motion graphics nos videoclipes brasileiros e Angie Biondi e Paulo Bernardo (UFMG) apresentam uma análise da obra de Susan Hiller. Por fim, na seção “espaço convergente”, a pesquisadora Sharon Neves (PUC-RS) apresenta uma resenha imperdível sobre a experiência lean forward da TV social. Esta edição está nas nuvens graças ao trabalho generoso e árduo realizado pela Equipe de Editores. O agradecimento é extensivo a todos os autores que participaram deste número e também aos pareceristas, pela leitura atenta e minuciosa, ajudando-nos na seleção dos artigos a serem publicados, e aos colaboradores Analú Bernasconi Arab, André Sanches, Felipe Rossit, Gabriel Correia, Francisco Trento e Paula Toledo Palomino pela assistência para publicação e divulgação dessa edição. A equipe editorial deseja a todos uma boa leitura!

João Massarolo – Editor Responsável

Expediente


Quando a TV Vai A lém S ala de Estar:

da

por uma análise cultural dos usos de novos dispositivos tecnológicos Carlos E duardo M arquioni Professor do programa de pós-graduação em Comunicação e Linguagens da Universidade Tuiuti do Paraná (UTP). Doutor (2012) e Mestre (2008) em Comunicação e Linguagens pela mesma instituição. É ainda membro do grupo de pesquisa Imagens, sentidos e regimes de interação/CNPQ da UTP. E-mail: cemarquioni@uol.com.br

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ano

4 - n . 1 | p. 6 - 19


Resumo Em um momento quando são frequentemente disponibilizadas atualizações das tecnologias da informação e comunicação, há risco de ser atribuída aos dispositivos tecnológicos per se a responsabilidade por transformações sociais: trata-se de simplificação que caracteriza determinismo tecnológico. O artigo apresenta a noção de cultura como alternativa para minimizar esse risco, utilizando uma propaganda de televisão conectada veiculada na TV brasileira como objeto empírico para exemplificar e analisar dois contextos em que novos dispositivos tecnológicos são apresentados como responsáveis por determinar mudanças no comportamento social (tanto afastamento quanto aproximação pessoal). Palavras-Chave: Determinismo tecnológico, Televisão conectada, Cultura, Pós-modernidade.

Abstract In a moment when the information and communication technologies are being frequently updated, there is a risk of considering the technological artifacts itself the cause of social transformations: this kind of simplification characterizes technological determinism. The paper presents the notion of culture as an alternative to minimize this risk, using a connected TV advertisement broadcasted in Brazilian television as empirical object to analyze two contexts on which technological devices are presented as responsible for changes in social behavior (both personal distance and personal approximation). Keywords: Technological determinism, Connected television, Culture, Post-modernity.


1 – Introdução

U

m dos principais riscos a que estão expostas as análises relacionadas ao uso de dispositivos tecnológicos é o de incorrer em determinismo tecnológico (particularmente quando abordado o uso desses aparatos enquanto media-

dores do processo comunicacional em um momento quando há disponibilidade e acesso crescente de dispositivos que se conectam entre si e conectam pessoas). O conceito é associado a “abstrair as mudanças técnicas e tecnológicas e explicar de modo geral as mudanças sociais, econômicas e culturais como determinadas por estas mudanças” (WILLIAMS, 1983, p. 84). Uma vez em determinismo tecnológico, considera-se que as novas tecnologias “estabelecem as condições para a mudança social e o progresso [...] [e] são inventadas como se estivessem em uma esfera independente, a partir da qual são criadas novas sociedades ou novas condições humanas” (WILLIAMS, 2005, p. 5-6): a tecnologia “‘emerge’ de estudo técnico e experimentos [...] [e, como consequência,] muda a sociedade ou o setor no qual ela ‘surgiu’. ‘Nós’ nos adaptamos a ela” (WILLIAMS, 1983, p. 84). Vale complementar que as simplificações relacionadas a um contexto de deter-

minismo tecnológico trazem em si o risco de anacronismo, pois ao omitirem aspectos de ordem social, econômica ou cultural do processo de análise (privilegiando a técnica) aumenta a probabilidade de o contexto histórico que envolve o objeto analisado não ser considerado em toda sua complexidade. Desta forma, as análises tendem a ser executadas com os aparatos descolados do momento em que são disponibilizados e utilizados. As análises propostas neste artigo consideram que o fator determinante para equacionar reflexões relacionadas ao uso de tecnologias deve ser a noção de cultura: defende-se que via o conceito de cultura o risco de determinismo tecnológico é minimizado e, por extensão, também o risco de incorrer em incorrer em análises anacrônicas. O trabalho utiliza uma propaganda de televisão conectada1 divulgada no Brasil no ano de 2012 como objeto empírico para demonstrar uma situação que caracteriza um exem1 Televisão conectada é um tipo de aparelho televisor que possibilita conexão entre a TV e a Internet, e também entre a TV e outros dispositivos tecnológicos.


plo do que poderia ser classificado como um duplo determinismo tecnológico. Trata-se do comercial do aparelho de TV Panasonic da linha SmarTViera (SMARTVIERA, 2013). mes, apresentados nas Figuras 1, 2, 3 e 4 (em dois grupos principais). O primeiro grupo (composto pelas Figuras 1 e 2) apresenta cenários em que os membros de uma família nuclear seriam alvo de um afastamento pessoal motivado pelo uso de tecnologias (no

Figuras 1 e 2 – Afastamento pessoal motivado pelo uso de tecnologias Fonte – SMARTVIERA, 2013.

Figuras 3 e 4 – Afastamento familiar motivado pelo uso de tecnologias Fonte – SMARTVIERA, 2013.

Ainda que apenas a imagem dos frames e os dois grupos sugeridos possibilitem ao leitor compreender o contexto geral e a ideia central da propaganda, o texto que é narrado pelo jogador de futebol Neymar – ídolo do Santos Futebol Clube quando a propaganda foi veiculada – reforça o papel da tecnologia como responsável pelo cenário apresentado na peça publicitária (foram adicionadas referências às figuras selecionadas ao longo da transcrição do texto narrado, para que o leitor sincronize mentalmente o conteúdo textual narrado à imagem apresentada no momento correspondente):

4 - n. 1

sugere a tecnologia como responsável pela reunião familiar.

ano

caso, dispositivos móveis de uso pessoal). O segundo grupo (relativo às Figuras 3 e 4)

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Para transpor para este artigo a propaganda analisada, foram selecionados quatro fra-

9


10 Q uando a

Já parou para pensar que às vezes mesmo com todo mundo em casa parece que a gente tá [sic] sozinho? [Figura 1] Repense. Linha 2012 com SmarTViera [Figura 2]: seu smartphone vira [atua como] um controle remoto [Figura 3] e passa filmes e fotos para a TV. Totalmente interativa; e ainda ajuda o planeta. Reúna a família novamente [Figura 4]: repense sua TV (SMARTVIERA, 2013).

lógico citado: inicialmente é sugerido que, no momento em que a peça foi veiculada

TV Vai A lém

(meados do ano de 2012), as famílias nucleares (em formato pai, mãe e um casal de fi-

da

lhos em idade escolar) teriam seus membros isolados em função do uso de dispositivos

S ala

A sincronização mental auxilia na compreensão do duplo determinismo tecno-

pela propaganda, no sentido em que o aparato manuseado por cada membro da família, por si só, seria o responsável por seu afastamento em relação aos outros familiares (proporcionando isolamento individual, apesar de dividirem o mesmo ambiente físico). A partir do uso do novo aparelho de televisão (a TV conectada) haveria o rompimento, uma a uma, das bolhas nas quais cada membro da família estaria confinado (Figura 2) em função da possibilidade de compartilhar, via o monitor do televisor, conteúdos que antes eram acessados de modo individualizado nos dispositivos móveis de cada membro da família; dispositivos para uso individuais esses que seriam, inclusive, o meio para o controle e compartilhamento dos conteúdos via TV conectada (no caso, através do aparelho smartphone do pai, conforme apresentado na Figura 3). Caracteriza-se, então, o que se considera o segundo determinismo tecnológico da propaganda: a tecnologia, per se, se redime, possibilitando a reunião das pessoas da família para assistir televisão (Figura 4) e reestabelecendo o papel de agente aglutinador associado à TV desde as primeiras transmissões. Neste artigo procura-se evidenciar o nível de simplificações que pode ser associado a situações de determinismo tecnológico, quando são omitidos aspectos de ordem

é organizado em duas seções, além desta Introdução e das Considerações Finais. Em A sala de estar e a família reunida o conceito de cultura utilizado é apresentado e o cenário abordado na propaganda é analisado (utilizando perspectiva crítica) como relacionado diretamente a duas características centrais da contemporaneidade: a busca por liberdades individuais e a noção de moda da nostalgia. A seção Da emergência de uma nova sala de estar apresenta as redes sociais, os dispositivos móveis e a Internet (abordados em um

Carlos E duardo M arquioni

ras) as análises relacionadas ao oferecimento de novas tecnologias. O presente trabalho

cultural, econômica e social. Esse tipo de omissão pode comprometer (tornando reduto-

por uma análise cultural dos usos de novos dispositivos tecnológicos

se considera como estabelecendo o primeiro determinismo tecnológico proporcionado

Estar:

tablet, o pai e seu aparelho celular smartphone – Figura 1). Esse contexto caracteriza o que

de

móveis individuais (o jovem e seu player musical, a mãe e seu notebook, a jovem e seu


contexto cultural) como associados à definição potencial de uma nova sala de estar, que teria seus limites expandidos para além dos domínios das residências.

Diferente do que sugere a propaganda comercial apresentada, neste artigo se

devem ser abordados de forma descolada dos contextos históricos e social nos quais os dispositivos são utilizados. Para que seja possível contextualizar os dispositivos, englobando o cenário histórico e social, sugere-se o uso da noção de cultura como um conceito chave nas reflexões; particularmente a definição de cultura como “significados comuns, produto de todo um povo [...] [. Significados esses que] se constituem na vida, são feitos e refeitos” (WILLIAMS, 1989, p. 8). Ora, ocorre que se a cultura é constituída na duração (ao longo da vida) ela tende a trazer em si o contexto social a partir do qual é estabelecida (feita e refeita). Ainda, por ser feita e refeita – também na duração –, a cultura acompanha as mudanças sociais (inclusive aquelas relacionadas a tecnologias). Considera-se então como premissa que as análises necessitam ser realizadas culturalmente para que os fenômenos do afastamento e aproximação sugeridos na propaganda sejam compreendidos e possam ser abordados de modo complexo, além do determinismo. Se as análises em perspectiva cultural tendem a ser associadas ao momento histórico em que são estabelecidos os significados culturais em relação aos aparatos tecnológicos, é interessante iniciar as reflexões apresentando características do período histórico contemporâneo (referenciado a partir deste ponto no presente artigo como pós-modernidade) que possibilitam compreender o enclausuramento individual (Figura 1) de modo complexo, considerando a tecnologia importante, mas não necessariamente a determinante independente deste cenário social. A primeira dessas características é a liberdade individual, em função da qual o isolamento seria, em certa medida, voluntário (ainda que não necessariamente haja percepção, planejamento ou mesmo consciência disso) porque ele ocorreria exatamente durante a busca por alcançar o “direito à individualidade” (BAUMAN, 1998, p. 48), em uma tentativa de “se despojar de toda interferência coletiva no destino individual” (BAUMAN, 1998, p. 26). Considerando essas liberdade e individualização, Zygmunt Bauman realiza uma comparação com aquela que ele define como sendo a situação típica de um turista: trata-se de uma metáfora particularmente interessante no caso deste artigo por conta da possibilidade de relação (inclusive de ordem visual) que pode ser

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facilitar a reaproximação pessoal, por se considerar que os aparatos tecnológicos não

ano

defende que não são as tecnologias per se que proporcionam o afastamento ou podem

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2 – A sala de estar e a família reunida

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estabelecida com os frames selecionados da propaganda. Ocorre que a individualização, no caso do turista, estaria associada ao fato de ele não pertencer ao lugar visitado – fatempo” (1998, p. 114): por ele estar no lugar, mas não ser do lugar (não pertencer ao lu-

sugeriria, nessa perspectiva, que o uso das tecnologias móveis estabeleceria – antes do

ser associado a um anacronismo, em função da perda de referência entre o aspecto da que os aparatos tecnológicos possuem papel central: para exercer a liberdade mais plenamente os indivíduos necessitam de dispositivos tecnológicos pessoais, e desconsiderar o fato da proliferação de dispositivos tecnológicos para uso pessoal constitui remover o momento histórico do cenário analisado. Também não se deve abstrair o fato que os aparatos tecnológicos de uso individual constituem tipicamente um sonho de consumo do ator social pós-moderno. O isolamento pode ser pensado então como efeito da liberdade individual mencionada anteriormente, vinculado à materialização de um sonho de consumo. Em relação à remoção do momento histórico, é importante destacar que a própria demarcação do tempo e o estabelecimento de referências históricas tem complexidade aumentada na pós-modernidade, particularmente quando observado que o “ritmo cada vez mais rápido de mudanças” (JAMESON, 1993, p. 25) proporciona a sensação que se vive “num presente perpétuo e numa perpétua mudança” (JAMESON, 1993, p. 43). Estas sensações de perpétuos presente e mudança são chave para as análises em perspectiva cultural: a perda da referência do passado (em função da aceleração e mudança

eram, até há pouco tempo, ficção – mas que, em breve, serão substituídos por outros, ainda mais atuais) parecem estender o presente. A complexidade na demarcação do tempo é associada ao fato que esse cenário proporciona eventualmente a sensação que o mesmo presente parece estar sendo também comprimido entre um passado e um futuro que se tornam mais próximos a cada dia: em oposição à prolongação/dilatação do presente, há também uma sensação de compressão do presente. O ator pós-moderno vive, assim,

Carlos E duardo M arquioni

do futuro (em função da contínua disponibilização de novos aparatos tecnológicos que

que proporcionam passados frequentes, sempre mais recentes) e a constante chegada

por uma análise cultural dos usos de novos dispositivos tecnológicos

liberdade individual da pós-modernidade e o caráter de consumo do período. Ocorre

Estar:

Aprofundando pouco mais a análise, o frame inicial apresentado (Figura 1) pode

de

suas próprias casas.

S ala

duos estariam, simultaneamente, dentro e fora da sala de estar: seriam estrangeiros em

da

uso da TV conectada – uma espécie de turistas familiares domésticos, pois os indiví-

TV Vai A lém

Dentro da bola o turista pode sentir-se seguro” (BAUMAN, 1998, p. 114). A propaganda

a

gar). Cada turista estaria “trancado numa bolha de osmose firmemente controlada [...].

Q uando

zendo com que ele esteja, enquanto pratica turismo, “dentro e fora do lugar ao mesmo

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uma espécie de perda de referências entre passado, presente e futuro; resta então, ao indivíduo, procurar por alternativas para que possa se orientar. Essa busca por uma ser apresentado e analisado a partir da propaganda apresentada no artigo: a re-união familiar sugerida remete à noção nomeada “moda da nostalgia” (JAMESON, 1993, p. 31). Trata-se de conceito segundo o qual seria possível – particularmente no caso dos

artefatos estéticos” (JAMESON, 1993, p. 31). No caso, o período quando a família se reunia na sala de estar para assistir TV. A moda da nostalgia se estabelece ao acoplar o estranho e antigo artefato (que é a TV) a um novo dispositivo (o smartphone), habilitando um suposto retorno da família reunida. A propaganda sugere então a necessidade de um reestabelecimento da ordem que não apenas remete a determinismo tecnológico como é, novamente, anacrônico, uma vez que reunir a família presencialmente na sala de estar para assistir TV não constitui necessariamente o padrão cultural vigente em meados da segunda década dos anos 2000 – ao menos o fenômeno não é mais observado como nas primeiras décadas da televisão no Brasil; o próprio modelo da família nuclear vem sendo adaptado. Inclusive porque a complexidade do período contemporâneo (envolvendo – por exemplo – os congestionamentos de tráfego nos grandes centros urbanos ou a definição de jornadas de trabalho em horários alternativos para sincronização dos relógios entre países com fusos horários distintos para que seja possível trabalhar com pares globalizados) dificulta essa reunião em um mesmo ambiente. Ocorre que é possível enumerar fatores que potencialmente dificultam a disponibilidade do indivíduo para estar defronte a TV na sala de estar para assistir televisão no horário em que o conteúdo é veiculado pela emissora em formato broadcasting e em conjunto com seus familiares. Mas é fato que os indivíduos contemporâneos não deixaram simplesmente de se reunir. De fato, reuniões (inclusive para assistir TV) continuam ocorrendo, e eventualmente podem ser proporcionados encontros entre indivíduos geograficamente distantes ou mesmo não simultaneamente, conforme abordado em seguida. 3 – Da emergência de uma nova sala de estar Nessa seção as reflexões são conduzidas no sentido de argumentar que as apropriações culturais estabelecidas em relação aos artefatos tecnológicos podem proporcionar aproximação pessoal – sempre observando que a própria noção de proximidade deve levar em consideração as características culturais do período analisado.

4 - n. 1

gico de retornar àquele antigo período e vivenciar novamente seus estranhos e antigos

ano

indivíduos adultos – “satisfazer um desejo mais profundo e mais propriamente nostál-

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orientação temporal é equacionada analiticamente através de outro conceito que pode

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Assim, os dispositivos móveis que são apresentados inicialmente na propaganda como proporcionando afastamento podem, eles próprios, ao inserir o momento hisafirmação pode ainda ser associada a outra, que dá conta que o “outro lado da moeda

de aparatos tecnológicos pode viabilizar reuniões. Particularmente entre indivíduos

dade precisa ser analisada considerando o momento cultural vivido; ao considerar os que eles vão (e se vão) efetivamente proporcionar – e essa análise não pode ser realizada de forma apressada. Uma alternativa para compreender a afirmação é recorrer a um exemplo de uso de novas tecnologias do passado: é razoável supor que alguma sensação de distanciamento pessoal deva ter sido observada por volta do século V a.C., quando da invenção e disponibilização da tecnologia da escrita na Grécia Clássica (MARQUIONI, 2012, p. 156-160). Particularmente porque as reduções da audiência nas seções públicas de poesia épica, que ocorriam para que instruções e normas sociais fossem decoradas pelos cidadãos (e a escrita reduziu a necessidade de manter na memória pessoal essas instruções) (HAVELOCK, 1994, p. 124-125) (ONG, 1988, p. 31) pois poderiam ser lidas (acessadas) a qualquer momento e em qualquer lugar (como, por exemplo, no interior das residências) – devem ter propiciado a quem notava essa redução de público nas seções orais a sensação de que a tecnologia da escrita estaria promovendo afastamento das pessoas de seu convívio social. Foram necessários séculos de uso da tecnologia para se constatar que não era o caso. Retornando ao século XXI (e ao distanciamento sugerido em relação aos dispo-

fisicamente, quanto aqueles que não estão em situação de contiguidade física, podem estar em contato (eventualmente visual). Mas vale a ressalva que não se afirma aqui que os softwares do tipo rede social, per se, realizam aproximação pessoal: o cenário é mais complexo. Inclusive porque existem as chamadas “‘comunidades de ocasião’, [...] autoconstruídas em torno de eventos, ídolos, pânicos ou modas” (BAUMAN, 2003, p.

Carlos E duardo M arquioni

sível afirmar que em um ambiente social virtual tanto os indivíduos que estão próximos

sitivos móveis), quando consideradas as redes sociais como locais de encontro, é pos-

por uma análise cultural dos usos de novos dispositivos tecnológicos

dispositivos móveis, por exemplo, há que se avaliar, na duração, o nível de afastamento

Estar:

lham o mesmo ambiente físico no mesmo momento. Em todos esses casos, a proximi-

de

paganda analisada – estabelecer contatos virtuais mesmo entre pessoas que comparti-

S ala

dificuldades em estabelecer contato presencial ou – para retornar ao contexto da pro-

da

distantes geograficamente, mas também entre pessoas que, embora próximas, tenham

TV Vai A lém

razoável considerar que em função da complexidade da vida contemporânea, o uso

a

da proximidade virtual [seria] [...] a distância virtual” (BAUMAN, 2003, p. 81): de fato, é

Q uando

tórico, ser analisados como associados à aproximação pessoal. E vale observar que essa

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51) que proliferaram no ambiente da Internet2. De fato, considera-se neste artigo que esse tipo de associação tem desde sua origem uma característica fugaz associada à acenidades parecem pertencer “à conversa, mas não àquilo sobre o que se conversa” (BAUMAN, 2003, p. 52). E para haver aproximação entende-se como premissa neste trabalho ser necessário haver uma sensação de pertencimento que é alcançada culturalmente (e

rar cultura como “significados comuns, produto de todo um povo” (WILLIAMS, 1989, p. 8) possibilita-se que sejam estabelecidas “relações entre desenvolvimento humano geral e um modo específico de vida” (WILLIAMS, 2007, p. 122). Em função de a cultura ser associada ao produto de um povo e a um modo de vida, culturalmente os indivíduos tendem a estar frequentemente à procura de um enquadramento, de uma classificação cultural à qual filiar-se (para pertencer a um grupo). O próprio desejo de consumo dos dispositivos tecnológicos pode ser relacionado a essa busca por pertencer a um grupo3. No caso do Brasil, uma das formas de pertencimento cultural é materializada indubitavelmente através do ato de assistir televisão. Mais especificamente, a assistir uma TV comum (no limite, ao ato de assistir TV com outras pessoas: trata-se, evidentemente, do objetivo final apresentado na propaganda do aparelho televisor SmarTViera). O ato cultural de assistir a uma TV comum remete à noção de convenção, que por sua vez engloba tanto o “consentimento tácito quanto os padrões aceitos” (WILLIAMS, 1971, p. 13) e estabelece o que podem ser considerados acordos definidos entre os participantes de um ato comunicacional. Destaque-se, contudo, que esses acordos, vinculados a aspectos tácitos e relativos a uma parte inconsciente da cultura podem não ser – tal como as “estruturas de sentimentos”4 relacionadas – claramente e formalmente percebidos: são simplesmente vividos, experimentados (MARQUIONI, 2012, p. 58). Estabelece-se, assim, culturalmente – ao assistir TV –, uma experiência compartilhada, que gera

2 Como exemplos podem ser citados os casos das comunidades criadas na Internet para acompanhar programas de telerealidade, mas que encerram com o término do programa (JENKINS, 2008, p. 54-92). Em função do vínculo cultural limitado – conforme desenvolvido em seguida –, considera-se que nesse tipo de comunidade “a união só se mantém na medida em que sintonizamos, conversamos, enviamos mensagens” (BAUMAN, 2003, p. 52). 3 Um exemplo – para permanecer no âmbito de novos dispositivos tecnológicos – envolve as comunidades que se formam entre proprietários de aparatos fornecidos por alguns fabricantes de hardware. No momento em que esse artigo é escrito, esse fenômeno pode ser observado especialmente em relação a produtos da marca de equipamentos Apple: alguns usuários dos produtos desse fabricante costumam inclusive fixar adesivos em seus veículos para demonstrar sua preferência pela marca (e pertencimento a um grupo de usuários). 4 As “estruturas de sentimentos” constituem uma noção chave desenvolvida ao longo da produção científica de Raymond Williams, e correspondem à cultura de um período. Uma explicação geral do conceito (com as referências correspondentes às obras do pesquisador inglês para aprofundamento teórico) pode ser consultada na tese de doutorado do autor do artigo – cotada nas referências bibliográficas –, particularmente no trecho entre as páginas 57 e 73.

4 - n. 1

Retomando e expandindo definição apresentada na seção anterior, ao conside-

ano

desenvolvida em seguida).

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leração da pós-modernidade abordada na seção anterior: os participantes dessas comu-

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uma espécie de comunhão, um padrão cultural geral. Tacitamente definido. E que não necessita ocorrer, necessariamente, no mesmo ambiente ou no mesmo horário. associado a todo um povo, tem relacionado ainda um aspecto de pertencimento a um

afirmar utilizando uma perspectiva cultural de análise que a família contemporânea

na TV, de fato a reunião merece ser analisada enquanto associada ao compartilhamento a comunhão é relativa ao aspecto doméstico (a localização espacial), para este artigo, culturalmente, ela é mais ampla e engloba a comunidade que compartilha o conteúdo televisual: “o espectador pertence a uma comunidade de espectadores que se identifica com certos valores culturais” (VILCHES, 2003, p. 120). Culturalmente, não são as tecnologias que provocam a individualização física ou a dispersão da família (ou, ainda, um desaparecimento da sala de estar – ou da reunião das pessoas na sala de estar para assistir TV). O contexto que leva ao fenômeno vai muito além dos dispositivos tecnológicos. Ainda seria simplificador afirmar que os dispositivos móveis contribuem para eliminar a convenção de assistir TV em conjunto: ao “tratar comunicação como experiência compartilhada, minimiza-se o fato de o conteúdo assistido ser gravado, estar disponível no celular ou no televisor, na sala de estar, no quarto ou na cozinha. Ou na Internet” (MARQUIONI, 2012, p. 111). Na pós-modernidade, a experiência compartilhada não necessita ser física, simultânea ou através do mesmo dispositivo (como sugere a propaganda): culturalmente pode-se estar “junto (mesmo que em horários, suportes ou lugares diferentes)” (MARQUIONI, 2012, p. 111).

emissoras ou sites de compartilhamento de vídeo na Internet) em certa medida podem ser apontados – associados às redes sociais – como estabelecendo a emergência de uma nova sala de estar: “as redes sociais mudaram a experiência de ver televisão [...] [:] 43% [dos espectadores] já usaram as mídias sociais para recomendar um programa a outra pessoa” (MOTOROLA, 2012). O ambiente doméstico/familiar pode ser (e tem sido) ampliado, expandido via uma co-presença virtual – que tem ainda como possibilidade não

Carlos E duardo M arquioni

sibilidade de assistir TV no celular (ou em horários alternativos utilizando os sites das

Ainda, a miniaturização dos dispositivos e a mobilidade habilitada com a pos-

por uma análise cultural dos usos de novos dispositivos tecnológicos

de um conteúdo cultural. Em outros termos, enquanto na perspectiva da propaganda

Estar:

simplesmente compartilhar “filmes e fotos” (SMARTVIERA, 2013) de modo interativo

de

(única) residência e em um cômodo específico (a sala de estar). Também, mais do que

S ala

posição vai além da antiga família nuclear cujos membros conviviam em uma mesma

da

(pós-moderna), de fato, pode ultrapassar os limites domésticos, e tipicamente sua com-

TV Vai A lém

(ou por assistir TV com, em conjunto – mesmo que não simultaneamente). É possível

a

grupo que se materializa através do compartilhamento do conteúdo veiculado na TV

Q uando

Ou seja, o ato de assistir TV constitui um fenômeno cultural e que, por ser

16


ser, necessariamente, simultânea. Considera-se então que o compartilhamento cultural e a sensação de pertenatravés da qual esse conteúdo é acessado, da presença física ou do acesso simultâneo) e o sentimento de comunhão permanece (apenas migra entre plataformas). Finalmente, há que se destacar que “comunicação é o processo de tornar compartilhada a experiên-

LIAMS, 2001, p. 55). Para encerrar a seção é relevante reforçar que a miniaturização dos dispositivos, a captação do sinal de TV em dispositivos móveis e a Internet (com as redes sociais) não devem ser consideradas, per se, responsáveis por viabilizar a expansão da sala de estar sugerida. Inclusive porque não há evidências que possibilitem afirmar que quando os dispositivos foram criados essas formas de uso foram consideradas. De fato, a expansão da sala de estar pode ser relacionada aos fatores de complexificação da vida contemporânea apresentados anteriormente e associada ainda a aspectos de ordem econômica (o aumento do poder aquisitivo da população brasileira – que tem possibilitado a compra dos equipamentos – é obviamente relevante: o contexto seria outro se as tecnologias existissem, a possibilidade de transmissão existisse, a Web e as redes sociais existissem, mas o público não tivesse acesso aos dispositivos por não conseguir adquirí-los). 4 – Considerações Finais Atribuir às tecnologias a responsabilidade pelo afastamento ou aproximação das pessoas na contemporaneidade definitivamente constitui uma simplificação. De fato, é necessário observar que as tecnologias mudaram e novas versões dos dispositivos são fornecidas em uma base quase diária. Mas as famílias e as formas de relacionamento também mudaram, e a sociedade de forma geral está significativamente diferente dos tempos quando era possível a reunião dos membros de uma família na sala de estar de suas residências em um horário definido para acompanharem, juntos, à grade de programação veiculada pelas emissoras. Ou para verem, coletivamente, um álbum de fotografias ou registros realizados em vídeo compartilhando um mesmo ambiente físico. A complexidade da contemporaneidade e a reconfiguração da estrutura familiar requerem que formas alternativas de reunião ocorram. As formas de convívio (e a própria noção de ambiente doméstico) estão em adaptação; a sociedade tem equacio-

4 - n. 1

modo de viver, o processo de comunicação é, de fato, o processo de comunidade” (WIL-

ano

cia individual. [...] Uma vez que a nossa maneira de ver as coisas é, literalmente, nosso

Revista GEMI n IS |

cimento se dão pelo compartilhamento dos conteúdos (independente da plataforma

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nado essa adaptação, utilizando os artefatos tecnológicos individuais em conjunto com outras tecnologias que possibilitam organizar encontros e gerenciar convívios – ainda possibilitam acesso e convívio em ambientes sociais virtuais) – como alternativas que

Vale ressaltar que ao analisar o contexto apresentado na propaganda em pers-

culturais dos aparatos podem ser (e efetivamente são) revistos/redefinidos na duração. em relação a outras tecnologias (além do caso da TV e dos dispositivos móveis que podem ser conectados a ela). O fato é que ao invés de se pensar no fim da família reunida para assistir TV, ver fotos ou filmes a partir da disponibilização dos dispositivos móveis, parece mais razoável analisar a emergência de uma sala de estar expandida para além dos limites domésticos (que possibilita novas formas de convívio), na qual se reuniriam pessoas que podem estar fisicamente em locais distantes, que se reuniriam virtualmente em horários distintos ou que, mesmo que compartilhando o mesmo ambiente físico, efetivamente compartilham uma materialidade cultural que proporciona comunhão. Para pensar essa expansão da sala da estar à noção de cultura é particularmente relevante, especialmente para que seja possível avançar no entendimento dos usos e complexificar as análises relacionadas a mudanças na sociedade associadas a (mas não determinadas pelas) novas tecnologias.

Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. HAVELOCK, Erick A. A revolução da escrita na Grécia e suas consequências culturais. São Paulo: Editora UNESP/Paz e Terra, [1982] 1994.

Carlos E duardo M arquioni

BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade.

Referências bibliográficas

por uma análise cultural dos usos de novos dispositivos tecnológicos

Reforce-se, ainda, que a abordagem em perspectiva cultural sugerida pode ser aplicada

Estar:

tecnológicos ultrapassa a disponibilidade e a tecnologia per se. Afinal de contas, os usos

de

víduos para viabilizar sua aproximação: definitivamente, analisar novos dispositivos

S ala

lizar os mesmos dispositivos que potencialmente provocariam afastamento dos indi-

da

pectiva cultural, não apenas o risco de anacronismo é reduzido como é possível uti-

TV Vai A lém

vida contemporânea.

a

podem reduzir o afastamento associado à distância geográfica ou à complexidade da

Q uando

que não presencial ou simultâneo (via dispositivos que se conectam com a Internet e

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JAMESON, Fredric. O pós-modernismo e a sociedade de consumo. In: KAPLAN, E. Ann (org.). O mal-estar no pós-modernismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993.

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4 - n. 1

Comunicação e Linguagens, Universidade Tuiuti do Paraná, Curitiba, 2012.

ano

Tese (Doutorado em Comunicação e Linguagens) – Programa de Pós-graduação em

Revista GEMI n IS |

JENKINS, Henry. Cultura da Convergência. São Paulo: Aleph, 2008.

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A Televisão no Ciberespaço: Reformulações da televisão na internet e na TV D igital Letícia Capanema Formada em Comunicação Social, com habilitação em Rádio/TV e Publicidade e Propaganda pela UFMG, mestre e doutoranda pelo Programa de Estudos Pósgraduados em Comunicação e Semiótica da PUCSP; professora do curso de graduação em Rádio e Televisão do Fiam-Faam - Centro Universitário, São Paulo. E-mail: capanema.leticia@gmail.com

Renné O liveira França Doutor em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais. Mestre em Comunicação Social pela UFMG, Pós-doutorando junto ao Programa de Pós Graduação em Comunicação Social - Fafich/UFMG e pesquisador do Grupo de Pesquisa em Imagem e Sociabilidade (Gris). E-mail: renneof@gmail.com

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ano

4 - n . 1 | p. 20 - 36


Resumo O estudo objetiva investigar as manifestações da televisão no ciberespaço para compreender a reformulação do universo televisivo nesse ambiente. Para tanto, são analisados: webtv DNAStream; YouTube; portal de interatividade do canal SBT. A investigação se ampara no método de análise sistematizado no livro Laws of Media (1988), de Marshal e Eric McLuhan. O estudo também se fundamenta na teoria da re-midiação, de Jay Bolter e Richard Grusin (2000) e nos conceitos de forma aditiva e expressiva, de Janet Murray (2003). Os resultados da pesquisa evidenciam o processo de expansão da televisão em seus diversos aspectos, físicos, econômicos, culturais e estéticos. Palavras-Chave: televisão, ciberespaço, webtv; youtube, tvdigital.

Abstract This study investigates the television manifestations in cyberspace in order to understand the reformulation of the television universe. Will be considered: the webtv DNAStream; the YouTube and the interactivity channel SBT. The investigation is based on the analytical method of the book Laws of Media (1988) by Marshall and Eric McLuhan. The study also uses the theory of re-mediation, Jay Bolter and Richard Grusin (2000), and the concepts additively and expressive media, Janet Murray (2003). The results of this research demonstrate evidences of the television expansion in its several aspects: physical, economic, cultural and aesthetic. Keywords: television, cyberspace, webtv, youtube, digitaltv.


I. Introdução

P

ara tratar da televisão, hoje, é necessário reconhecer que seu universo, em comparação com a televisão de décadas atrás, está acrescido de inúmeros outros significados. Como um signo que se expande, a televisão ganha um corpo, ma-

terial e abstrato, cada vez mais complexo e instável. A intensa mutabilidade da televisão evidencia seu caráter diagramático, já que ela é composta por relações que se reconfiguram constantemente. Vale lembrar que o diagrama do universo televisivo sempre foi flexível, e que nele se podem identificar, além dos elementos técnicos, aspectos imateriais que lhe são relacionados, tais como práticas, hábitos, processos, linguagens e relações cognitivas. Félix Guatarri (1992), em sua teoria da subjetividade maquínica, afirma que a máquina (em seus aspectos abstratos) é anterior à técnica. Possibilidades, imaginários, lógicas, funções, afetividades relacionadas à máquina se desenvolvem antes de sua materialização técnica, como bem demonstram as obras de ficção científica. É certo que a máquina precede a técnica, mas é também verdade que a máquina sucede a técnica. Afinal, o abandono de certas técnicas não representa, necessariamente, o desaparecimento de práticas e linguagens que lhes são relativas. Assim, a máquina televisiva, antes encarnada de forma exclusiva no tradicional aparelho televisivo, atualmente perpassa vários outros suportes e processos, adquire novas funções, resgata práticas e, principalmente, expande o sentido da televisão. No fim do século XIX, as atividades televisivas se iniciam regidas por um ob-

jetivo específico: transmitir imagens à distância. Suas primeiras denominações, como Elektrische Teleskop (Paul Nipkow, 1884) e La Photographie Électrique à Distance (Georges Méliès, 1908), evidenciam a imaturidade do meio que nascia e necessitava do amparo de formas expressivas anteriores para se firmar. Nipkow concebeu uma das primeiras formas técnicas da televisão, baseada na fragmentação da imagens para transmissão eletrônica, ou seja, um processo eletrônico de telescopia. No filme que pode ser considerado uma das mais remotas abordagens ficcionais da ideia de televisão, Méliès apresenta uma máquina mágica, capaz não somente de transmitir eletricamente fotografias à distância, como também de torná-las vivas.


Com o decorrer do tempo, recursos outros vão se somando à capacidade de transmissão de imagens, como, por exemplo, as imagens em cores, o registro em fitas a crescente rede televisiva, o controle remoto. Dessa forma, a televisão se consolidou como forma expressiva de aspectos próprios. Hoje, ao adentrar o ciberespaço, a televisão potencializa a expansão de seus significados, através de hibridizações de carac-

eficiente transmissão de informações à distância, as do século XXI se identificam por almejar uma comunicação ubíqua, em rede e interativa. Na esteira desse raciocínio, o presente estudo tem como alvo as formas televisivas que encontram no ciberespaço seu meio de expressão. Trata-se aqui de televisões no plural, pois não correspondem a um único modelo, mas a inúmeros e instáveis modelos. Cada qual é regido por incontáveis combinações de processos e linguagens, pois, ao habitar o ciberespaço, a televisão e todo seu universo se complexificam. A inserção da televisão num contexto de convergência tecnológica e cultural desencadeia o aparecimento de novas práticas e o resgate de antigas, bem como uma produtiva mistura de propriedades televisivas e computacionais. Todavia, vale registrar que a televisão sempre absorveu, de bom grado, elementos e aspectos de diversos outros objetos da cultura. Porém, o que ocorre agora é que o contexto digital no qual está inserida a televisão potencializa e acelera seu processo de hibridização, alargando consideravelmente os significados e as possibilidades do universo televisivo. A partir da observação de novas manifestações televisivas – tais como webtvs, o YouTube, e a TV Digital - o estudo visa encontrar respostas para as seguintes indagações: O que há de televisão em tais objetos midiáticos presentes no ciberespaço? Como esses objetos reformulam a televisão? Que práticas resgatam? Que práticas se tornam obsoletas? Que recursos expressivos lhes são próprios? Enfim, que características lhes são únicas no processo de mediação? Para responder às perguntas, o estudo busca auxílio no método de análise dos meios, novos ou antigos, sistematizado no livro Laws of Media (1988). A metodologia proposta no livro, uma compilação de textos de Marshal McLuhan organizada por seu filho, Eric McLuhan, deriva da teoria das quatro causas da ação humana, de Aristóteles, e consiste em examinar produtos da cultura pelos ângulos de quatro efeitos, quais sejam: [1] A recuperação: tudo o que é novo resgata algo anterior que, por qualquer motivo, foi esquecido. [2] O aprimoramento: toda novidade estende ou aprimora uma forma anterior.

4 - n. 1

em rede. Se as invenções da comunicação do século XIX se caracterizam por buscar a

ano

terísticas próprias, já consolidadas, com outras, adquiridas de um universo digital e

Revista GEMI n IS |

magnéticas, a formação da linguagem videográfica, os vários formatos de programas,

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[3] A obsolescência: novos elementos tornam obsoletos os mais antigos. [4] A reversão: em que se transforma o novo se levado ao limite de seu potencial.

mond Bellour (1997), consistente no estudo dos meios através das passagens que se

xiliará o estudo das reformulações que se operam no universo televisivo. Os conceitos de forma aditiva e expressiva, das quais fala Janet Murray (2003), serão imprescindíveis para o estudo das reformulações que decorrem da junção da televisão com elementos do ciberespaço. Tais conceitos distinguem as mídias em seus primeiros anos de atividade daquelas que já consolidaram formas expressivas próprias. em detrimento de outros. O termo “interator” é escolhido para se referir ao indivíduo que lida com a televisão ciberespacial. Tal termo, criado por Janet Murray (2003), nomeia o sujeito, antes espectador, que passa a atuar nos processos de comunicação, pois é solicitado a tomar decisões e convidado a participar ativamente, interferindo no processo. A expressão “novas mídias”, recorrente no trabalho, refere-se a qualquer forma de expressão que tenha como base o código digital, aí incluídas, portanto, as televisões sua vez, é aqui entendido como a rede de telecomunicações mediada pelo computador, que inclui a internet, mas não se resume a ela.

anteriores. Acredita-se na possibilidade de produção criativa e inteligente a partir de qualquer suporte tecnológico, sejam novos ou antigos, analógicos ou digitais. Contudo, parte-se do pressuposto de que existem recursos expressivos próprios a cada forma expressiva, buscando assim identificar os que são intrínsecos à condição digital das novas televisões, para melhor compreender as possibilidades expressivas da televisão no ciberespaço. Como sabido, a convergência da televisão com o meio digital passa por um essencial período de experimentações. Nesse período, inúmeros formatos televisivos são formulados. O objetivo deste estudo é, portanto, investigar como a televisão é reformulada no universo ciberespacial.

Letícia Capanema - Renné O liveira França

De fato, não se pretende eleger as novas televisões como melhores, se comparadas às

O estudo não procura endossar a concepção evolucionista das comunicações.

TV D igital

digitalizadas, assim como toda e qualquer mídia digital. O ciberespaço (Lévy, 1999), por

da televisão na internet e na

Para viabilizar as análises, foi preciso, preliminarmente, eleger alguns termos

Ciberespaço: Reformulações

presentes em outro. A teoria da re-midiação de Jay Bolter e Richard Grusin (2000) au-

no

operam entre eles, ou seja, buscando identificar os elementos de um meio que estão

A Televisão

Também perpassa as investigações que se seguem a estratégia analítica de Ray-

24


II. Reformulações televisivas

ambientação digital, destacam-se dois grandes movimentos: [1] a introdução de elementos da televisão no computador, cujos modelos mais evidentes são as televisões na internet e no celular;

Naturalmente, a nascente lógica midiática, de ambos movimentos, vale-se de apropriações de processos, práticas e linguagens de meios já consolidados, para, a partir deles, esboçar seus primeiros passos e erigir características e formas expressivas próprias. Examinando a história das artes e comunicações, vê-se que o processo de constituição de um meio expressivo é semelhante ao que ocorre, hoje, com as chamadas novas mídias. O cinema, por exemplo, em seus primeiros anos de atividade, é descrito como “foto-teatro” (Murray, 2003). Isto é, ele é considerado uma forma de arte aditiva, através da junção de elementos de duas artes já consolidadas, a fotografia e o teatro. Através de experimentações com a nascente técnica cinematográfica, foi possível conhecer e desenvolver o potencial expressivo do cinema, até que ele se firmou como uma arte de características próprias. O mesmo ocorreu no início das atividades televisivas, que eram descritas, primeiramente, como fotografias transmitidas à distância1. As novas mídias - e nelas incluídas as manifestações televisivas no ciberespaço - encontram-se em momento inicial semelhante aos acima descritos, ao qual Murray (2003) denomina de período incunábulo2. Nesse período as novas mídias se valem de apropriações e reformulações de outros meios expressivos, para assim se projetarem, até que suas propriedades intrínsecas sejam identificadas e exploradas. Assim é que referências ao universo tradicionalmente reconhecido da televisão são bastante comuns na Internet. Por outro lado, aspectos do universo da internet se fazem presentes na televisão tradicional. Investiga-se, portanto, como ocorrem as reformulações televisivas no ciberespaço, com fundamento na teoria da re-midiação (remediation), de Bolter e Grusin (2000). Para esses autores, a ecologia dos meios de comunicação não ocorre através de eliminação ou substituição de um meio antigo por outro novo, fenômeno equivocadamente alarmado nos últimos tempos. Os meios se recombinam de forma a gerar outros, que se somam aos primeiros. Tal processo, de1 Como no filme de Georges Meliés “La photographie Électrique à Distance”, de 1908 2 O termo incunábulo deriva do latim e se refere às faixas com as quais os bebês eram envolvidos. Janet Murray utiliza a expressão “período incunábulo” para denominar o período de infância de um meio de expressão. Murray. 2003 p.41

4 - n. 1

como seu maior exemplo a TV digital.

ano

[2] a introdução de elementos do universo computacional na televisão, que tem

Revista GEMI n IS |

Dentre as atuais reconfigurações do universo televisivo, decorrentes de sua

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nominado pelos autores de re-midiação, é constante, porém se torna evidente no início das atividades de uma nova forma expressiva, como se buscará demonstrar a seguir,

III. A televisão na internet

A Televisão

através do exame de novos formatos televisivos.

26

no

nominal: o nome do País, assim como o seu ccTLD (internet country code top-level domain), abreviam-se com a grafia “tv”, sigla que, coincidentemente, é mundialmente reconhecida como a abreviação da palavra “televisão”. O pequeno arquipélago, localizada na Polinésia, soube aproveitar o acaso e, em 2000, negociou, com a companhia VerySign3, o direito de administração e exploração do domínio “.tv” por algumas dezenas de miduas letras juntas e sua legitimação cultural em todo o mundo. Com efeito, a abreviação da palavra “televisão”, que é identificada e validada pela cultura mundial, ganha um espaço economicamente disputado na internet e nos faz refletir sobre a força de um signo mundialmente reconhecido que ganha outros territórios de atuação. A “tv” na internet é parte do encontro da televisão com o computador, encontro esse que, parece ter a internet como costura dessa nova lógica televisual. rísticas do universo televisivo. Muitos se denominam e se anunciam como televisão. Questiona-se, pois, o que há de televisão nesses sites e como eles a reformulam. Ao in-

ários, jogos interativos, portfolios e exibições particulares, canais de vídeos educativos, galerias de fotos, galerias de música, rádios e jornais. Percebe-se que nem tudo o que está sob o domínio “.tv” é estritamente ligado à idéia tradicional de televisão. Porém, em todos os casos, encontra-se a oferta de uma miscelânea de conteúdos. A lógica televisiva que une todos esses sites, sob o domínio “.tv”, está mais relacionada à variedade de oferta de conteúdos do que propriamente à capacidade de ser “ao vivo”, ou à exibição audiovisual. Afinal, como afirma Santaella (2007, p. 210 ), “onde quer que um carnaval de gêneros esteja, ele será filho da televisão.”

3 http://www.verisign.com/

Letícia Capanema - Renné O liveira França

como televisão na internet, mas também bancos de filmes, conteúdos gerados por usu-

vestigar os sites sob o domínio “.tv”, encontram-se não apenas aqueles que se anunciam

TV D igital

Os inúmeros sites sob o domínio “.tv” evocam, cada qual a seu modo, caracte-

da televisão na internet e na

lhões de dólares. O fato chama a atenção para a importância e para o valor daquelas

Ciberespaço: Reformulações

Tuvalu, um dos menores países do mundo, possui uma oportuna coincidência


1. web + TV

27

mínio “.tv” ou não, tais sites experimentam adaptações de lógicas próprias da televisão em um ambiente digital e em rede. Um exemplo disso é a DNAStream4, uma webtv que, conforme suas próprias palavras, objetiva oferecer uma “experiência de televisão na

(se possuir banda larga) e reproduzir mídias protegidas por direitos autorais, sem violação desses direitos, já que elas não são descarregadas no computador. A DNAStream, fundada por Paul Yanez em 2007, integra um grupo de webtvs que oferece um sistema de canais televisivos na internet muito semelhante à TV por assinatura, porém de uso gratuito. Os conteúdos da DNAStream são os mesmos veiculados nas televisões por assinatura, com exceção dos inseridos na categoria “vídeos da internet”. Seus fornecedores são grandes empresas, como a MTV, Sony, Warner, Reutres, MGM, entre outras. A organização de canais se faz por temas, alguns próprios da TV à Cabo, como filmes, esportes, videoclipes, pornografia e outros comuns na internet, como trailers, videogames e vídeos de internet. A reformulação da televisão pelas webtvs, em especial pela DNAStream, ocorre em vários aspectos. Do ponto de vista da apresentação visual do site, identificam-se algumas referências ao universo da televisão tradicional, como a programação visual – logomarca e imagens de suporte - composta de cores iluminadas semelhantes a pontos eletrônicos, apresentando uma fisionomia similar à computação gráfica aplicada em vinhetas televisivas. A tela de exibição dos vídeos ocupa toda a tela do computador, transformando-o, dessa maneira, em um verdadeiro aparelho de televisão.

Figura 1 – Página de Abertura da webtv DNAStream 4 www.dnastream.tv

4 - n. 1

de dados empacotados, o que permite ao interator receber o conteúdo em tempo real

ano

internet”. Ela funciona por meio da tecnologia streaming, isto é, por fluxo de distribuição

Revista GEMI n IS |

As webtvs são recorrentes tentativas de se fazer televisão na internet. Sob o do-


No site, o conceito de grade de programação televisiva é transformado e torna-se praticamente obsoleto. No lugar de programas com exibições vinculadas a horáa qualquer momento. Porém, há de se ressaltar, como nos lembra Machado (2009, p. 2), que esta autonomia do espectador em relação à programação televisiva “já vem acon-

programas em qualquer horário para serem vistos depois.” Dessa maneira, se na televisão analógica já era possível subverter a grade de programação fixa e pré-determinada. Na webtv a programação torna-se extremamente flexível e, no caso da DNAStream, personalizada. No site, o slogan - “a sua televisão mutante” - não deixa dúvidas quanto à principal característica dessa webtv: a capaci- “your own TV DNA”-, isto é, uma televisão via streaming que proporciona ao interator experiências personalizadas. A adaptação desse sistema computacional/televisivo se dá através de agentes inteligentes artificiais, que “aprendem” quais são as preferências do interator e, assim, oferecem outros conteúdos que possam lhe interessar. De acordo com Costa (2002, p. 44), “os agentes inteligentes são, na verdade, facilitadores invisíveis, softwares que cada vez mais estarão presentes nas vidas das pessoas, desempenhando sobre algo que aguardam ou de que gostam”. São mecanismos muito usados na internet com o objetivo, questionável, de facilitar a navegação do interator. São ambivalentes,

linguagem dos hiperlinks – o acaso, a descoberta e a diversidade. A reformulação da tela televisiva na DNAStream se dá de forma hipermediada. De fato, a tela da televisão tradicional que já era opaca – sem profundidade, de baixa resolução, pouco realista e de precário poder ilusionista – tende a se tornar ainda mais hipermediada no ciberespaço. Assim é que no site - apesar de exibir os vídeos em tela cheia - abas translúcidas, que podem ser reveladas ou escondidas, disponibilizam, de um lado, os canais temáticos, de outro, os vídeos sugeridos pelo sistema e, em baixo, as ferramentas de navegação. Além disso, no alto da tela se posiciona um cabeçalho com botões de controle do vídeo e links para ações, como criar uma conta, trocar o idioma, enviar para amigos, entre outros.

Letícia Capanema - Renné O liveira França

que certamente podem lhe interessar, eliminam as características mais sedutoras da

pois, ao mesmo tempo em que facilitam os percursos do interator, oferecendo opções

TV D igital

o papel do assistente que assume as tarefas repetitivas, trazendo avisos ou sugestões

da televisão na internet e na

dade de se adaptar ao interator. Daí seu nome - DNAStream - e seu texto de abertura

Ciberespaço: Reformulações

(VHS e Betamax), que permitia, já naquela época, programar o aparelho para gravar

no

tecendo desde o final da década de 1970, quando surgiu o gravador de vídeo caseiro

A Televisão

rios específicos, tem-se um banco de conteúdos audiovisuais disponíveis para acesso

28


29 Revista GEMI n IS | ano

A imagem resultante é uma tela composta de abas e botões, próprios da internet, sobrepostos a um conteúdo tipicamente televisivo. Tal composição evidencia o caráter aditivo das webtvs, na medida em que elas são claramente formuladas a partir da soma de propriedades da televisão com as da internet e, não, a partir de elementos intrínsecos a uma nova forma expressiva. Todavia, outros aspectos da televisão na internet apontam para caminhos inovadores, rumo a uma forma expressiva eminentemente ciberespacial. O tradicional controle remoto, por exemplo, torna-se obsoleto como objeto midiático e como regime de interface. De fato, após cumprir seu papel durante um longo período – o primeiro aparelho foi criado em 1950, pela Zenith Radio Corporation –, o tradicional controle remoto perde cada vez mais seu sentido. A interface utilizada nas novas televisões - não só na internet, mas também na TV digital e TVs para dispositivos móveis – operam pelo sistema de navegação. O novo regime de interface que se instaura segue a lógica dos hyperlinks, que é significativamente mais rica em possibilidades e associações do que as operações do controle remoto. Portanto, a tendência vigente é a total supressão desse dispositivo, para se utilizarem controles mais simplificados, ou mesmo o sistema de toque para telas, o touch screen. Apesar de inovar em relação a alguns processos próprios da televisão tradicional - como a substituição da grade de programação fixa e única por um banco de conteúdos acessíveis por diversos caminhos e o uso de sistemas rizomáticos de busca e navegação, em substituição ao controle remoto - a DNAStream, bem como outras webtvs, são experimentos iniciais de um universo de possibilidades das comunicações digitais. Assim, a webtv ainda é concebida como uma soma da televisão com a internet, isto é, ainda não apresenta formas expressivas que lhe sejam próprias. Como explica Janet Murray (2003, p.74):

4 - n. 1

Figura 2 – Tela da webtv DNAStream com todas as abas de recursos ativadas


televisiva, com exceção dos vídeos armazenados na categoria “vídeos de internet”, que realmente usam uma linguagem diferente, na qual imperam o amadorismo, a brevidade de duração e a exploração de personagens não famosos (pessoas comuns). O fato é que, em seus primeiros anos de existência, as inovações tecnológicas das imagens sempre foram recebidas como novidade, porém, como argumenta Philippe Dubois (2004 chegando necessariamente ao terreno estético”. 2. A Televisão e as redes sociais online Outro exemplo do processo de reformulação da televisão na internet é sua junção com as redes sociais online. E, sem dúvida, o modelo mais expressivo desse formato Youtube foi fundado em 2005 pelos jovens Chad Hurley, Steve Chen e Jawed Karim e rapidamente popularizou o compartilhamento de vídeo, tornando-o um dos elementos

televisivo é evocado a partir do próprio nome do site: YouTube - o seu tubo (televisivo); pelo desenho de sua logomarca - a palavra tube se encontra inscrita em um retângulo de bordas abauladas que faz alusão à tela televisiva; e é reforçado pelo slogan - broadcast yourself - divulgue-se, transmita-se, televisione-se. O site de compartilhamento de vídeos encoraja o interator a ser tornar um broadcaster, ou seja, um produtor e divulgador de conteúdo audiovisual. Nesse sentido, o Youtube reformula a televisão sob a lógica das redes sociais, do vídeo amador, da personalização, isto é, de uma televisão que seja efetivamente feita pelo indivíduo.

5 http://www.youtube.com

Letícia Capanema - Renné O liveira França

lação de certos elementos da televisão e sua junção com a internet. Nele, o universo

mais importantes da cultura da internet. O YouTube é outro exemplo claro de reformu-

TV D igital

é o YouTube5, o site de compartilhamento de vídeos mais acessado da atualidade. O

da televisão na internet e na

p.33), novidade “que se revela pelo menos relativa, restrita à dimensão técnica e não

Ciberespaço: Reformulações

aberta e por cabo. Sua linguagem não apresenta grandes rupturas com a linguagem

no

Os conteúdos veiculados nas webtvs pouco se diferem dos exibidos na televisão

30 A Televisão

Uma das lições que se pode tirar da história do cinema é que formulações aditivas, como “fototeatro” ou o contemporâneo e demasiado abrangente termo “multimídia” são uma sinal de que o meio está ainda nos estágios iniciais de desenvolvimento e continua a depender de formatos derivados de tecnologias anteriores, ao invés de explorar sua própria capacidade expressiva.


31

Há ainda outras adaptações do universo da televisão identificáveis no YouTube,

São canais que reúnem os conteúdos audiovisuais produzidos por seus titulares junto a seus dados pessoais, como o nome, foto, contatos, idade e país de origem. Desse modo, todo usuário cadastrado no site possui seu próprio canal, totalizando um número de canais inimaginável em qualquer rede de televisão aberta ou por assinatura. Entre outras distinções, aqui o YouTube se difere da televisão tradicional por disponibilizar, em um único banco de dados, uma enorme variedade de conteúdos publicados por milhares de usuários, pelo que não se limita a uma única programação produzida por uma ou poucas corporações. O conteúdo audiovisual veiculado no site é extremamente variado, compreendendo desde vídeos caseiros, registro de eventos e telas de apresentações, até programas televisivos, traillers e filmes. Trata-se de um verdadeiro carnaval de gêneros. Por ser uma plataforma que tudo aceita, a autenticidade no Youtube é bastante questionável e pouco confiável, se comparada à sensação de “credibilidade” e “verdade inquestionável” da televisão tradicional. O ato de assistir a seus vídeos é contaminado pela suspeição constante, em relação à procedência e à veracidade do conteúdo. Afinal, o site não se responsabiliza pela autenticidade do que veicula, ao contrário do que ocorre nas emissoras de televisão. No entanto, o compromisso com a verdade não é exigido pelo público do YouTube, que procura, justamente, uma fruição audiovisual leve e despretensiosa. Como nas webtvs, as páginas do YouTube são extremamente hipermediadas, operando assim a lógica da opacidade. A pequena tela de exibição se encontra inserida em páginas repletas de outras telas e links que disputam a atenção do interator. Tal configuração complexifica a recepção do conteúdo que, apesar de hipermediado, é naturalmente assimilado pelo interator. Contudo, sem dúvida, o fator mais interessante do fenômeno Youtube consiste nas práticas sociais que se instauram a partir dele. Práticas essas que serão melhor exploradas em outro estudo.

4 - n. 1

com o de perfil - sistema de identificação de usuários bastante comum em redes sociais.

ano

como a estruturação de um sistema de canais. No site, o conceito de canal se confunde

Revista GEMI n IS |

Figura 3 – Logomarca do site YouTube


IV. O computador na televisão

sentam reformulações da televisão, a TV digital constitui-se de um processo originalmente televisivo que se adapta à condição digital e, assim, adquire linguagens e proces-

meçam a ser delineados já na década de 1970, quando é proposto, pela rede televisiva japonesa NHK, o primeiro modelo de TV de alta definição, chamado HDTV (ou Hi-Vision), com 1125 linhas e proporção de tela 16 x 9. A partir de então, experiências para elaboração de padrões digitais televisivos são desenvolvidas em diversos países e, dentre os padrões criados, três se consolidaram. São eles:

- ATSC: Advanced Televison System Commitee, desenvolvido nos EUA; - ISDV-T: Integrated Services Digital Broadcasting – Terrestrial, desenvolvido no Japão. Cada um desses padrões prioriza aspectos específicos da condição digital da são em alta definição, mas é o menos desenvolvido no quesito mobilidade. O europeu caracteriza-se por ser mais versátil, facilitando a transmissão de múltiplos canais na

O Brasil, após período de avaliação dos padrões acima mencionados, adotou o modelo japonês (ISDV-T). A primeira transmissão oficial do sinal digital de televisão no Brasil ocorreu em dezembro de 2007, na cidade de São Paulo. Desde então o Governo vem implantando, gradativamente, o sistema digital de televisão, sendo que, até o momento, o processo ainda não alcançou todo o país. Em decorrência da digitalização são procedidas adaptações em várias instâncias da televisão, tais como as áreas técnica, política, processual, econômica, estética, entre outras. Do ponto de vista técnico dos aparelhos domésticos de recepção, tem-se que esses são acrescidos de um set-top box - conversor usado para que a televisão receba o sinal digital. No caso dos aparelhos mais novos, o sistema de recepção já é originalmente digital. Agora digitalizado, o sinal enviado pela emissora de televisão, além de oferecer imagem e som de alta definição, possibilita a transmissão de outros tipos de

Letícia Capanema - Renné O liveira França

tabilidade, beneficiando a transmissão para celulares e computadores de mão.

mesma freqüência. O japonês, por sua vez, prioriza a alta definição da imagem e a por-

TV D igital

televisão. O padrão norte-americano, considerado o mais robusto, beneficia a transmis-

da televisão na internet e na

- DVB-T: Digital Vídeo Broadcasting – Terrestrial, desenvolvido na Europa;

Ciberespaço: Reformulações

Como lembra Rosa (2005), os projetos da televisão digital de alta definição co-

no

sos do universo computacional.

A Televisão

Ao contrário das televisões na internet, que são eminentemente digitais e apre-

32


dados, que são responsáveis pela interatividade do aparelho. A transformação do sinal de transmissão televisiva em um tipo de informação computadorizada potencializa a net e passa a operar através de processos próprios do universo do computador. Dessa maneira, os processos televisivos começam a absorver propriedades computacionais. As emissoras passam a se estruturar e a praticar rotinas próprias

em banco de dados organizados por metadados. A organização das máquinas e dos processos televisivos (captação, edição, pós-produção) passa a se desenvolver em rede. O software dos aparelhos domésticos televisivos começa a ser atualizado automaticamente, através da emissão do plug in de atualização pelas emissoras. Enfim, toda uma cultura procedimental e organizacional do universo binário passa a ser assimilada e adaptada pelas empresas de televisão. Há, ainda, outras propriedades do universo computacional que começam a ser absorvidas pela televisão tradicional, como a interatividade que, de forma ainda precária, esboça suas primeiras experiências. Vale registrar que o acesso à interatividade na TV digital depende da disponibilização do recurso pela emissora e que, até o presente momento, grande parte dos programas da televisão digital brasileira não inclui ações interativas. Quando disponível, a interatividade dos programas é anunciada através da presença do ícone da letra “i” na tela televisiva. Quando se acessa um desses portais de interatividade, aparece uma tela muito semelhante às páginas online. Botões, caixas de textos e banners publicitários dividem o espaço com a exibição do programa, tornando a tela televisiva extremamente hipermediada. Os recursos interativos presentes em tais telas ainda são escassos e se restringem a serviços, como informações sobre o tempo, grade de programação, sinopses dos programas, agendamento de gravações, entre outros.

4 - n. 1

dados armazenados em computadores e servidores. Arquivos de fitas transformam-se

ano

de empresas de TI (tecnologia da informação). Fitas magnéticas são substituídas por

Revista GEMI n IS |

reformulação da televisão que, assim, adquire fisionomia muito semelhante à da inter-

33


34 A Televisão no

muito se assemelha à fisionomia da internet e, em conseqüência, segue a lógica de navegação própria dos hyperlinks. Portanto, a interação por controle remoto na TV digital, ainda vigente, representa um dos grandes desafios para seus designers de interface. Como ressalta Rosa (2005, p.196), “além da funcionalidade do controle remoto, especificamente, deve-se pensar na funcionalidade e navegabilidade da tela da televisão digital interativa”. Com efeito, o controle remoto é adequado para passagem de canais, links na tela televisiva e o uso do controle remoto evidencia a imaturidade da TV digital. Com efeito, ao mesmo tempo em que adquire uma tela cada vez mais parecida com a

dicionalmente televisiva, pois seus conteúdos são exatamente os mesmos exibidos na TV analógica. Atualmente, uma das mais celebradas propriedades da TV digital é sua capacidade de oferecer VODs6 ou vídeos sob demanda. Tal recurso possibilita que o interator requisite a exibição, a qualquer momento, de filmes e outros conteúdos audiovisuais, independentemente da grade de programação. Como já comentado anteriormente, a subversão da grade de programação televisiva é um movimento que se inicia no final da década de 1970, com o uso dos vídeo tapes e videocassetes. Mas o certo é que a computadorizacão dos conteúdos televisivos possibilita sua organização em bancos de dados e potencializa o desprendimento da grade fixa de programação. Porém, como ressalta Costa (2002, p. 26), “há aqui uma certa ilusão sobre os hábitos televisivos e sobre o pró6 vídeo on demand.

Letícia Capanema - Renné O liveira França

tradicional. Além disso, as TVs digitais não apresentam rupturas com a linguagem tra-

internet, a TV digital ainda utiliza um mecanismo de interação pertencente à televisão

TV D igital

porém, precário para a navegação por links. O descompasso entre as lógicas dos hyper-

da televisão na internet e na

Como se pode perceber pela FIGURA 4, a hipermediada tela da TV digital

Ciberespaço: Reformulações

Figura 4 – portal de interatividade da emissora SBT, 2011


prio futuro evolutivo da TV. (...). Será que o futuro da TV digital é ser simplesmente um depósito infinito de filmes?” dor, um período intermediário, caracterizado pelos primeiros diálogos que a televisão estabelece com a internet e as mídias digitais. Tal período tem início com ações de fãs, que criam sites, blogs e comunidades virtuais dedicados a programas, seriados e per-

são passam a enxergar os novos meios digitais não mais como usurpadores de público e, sim, como extensões, complementos lucrativos para seus conteúdos. Como mostra Costa (2002, p.19) “só há pouco tempo a parceria com a rede mundial de computadores se consolidou e ganhou a adesão da maioria das emissoras. Enquanto aguardam a tecnologia para TV digital amadurecer por aqui (tecnologia que na Europa já é realidade), elas têm encontrado na Internet um excelente canal der retorno para sua programação.” V. Considerações finais Por fim observa-se, a partir dos exemplos citados, que o processo inserção da televisão no ciberespaço é marcado por um período inicial ou incunábulo (MURRAY, 2003), caracterizado por experimentações diversas. Tais experiências, apesar de distintas, refletem a expansão da televisão para além de seus limites técnicos, físicos, econômicos, culturais e estéticos. O atual ecossistema midiático, no qual está inserida a televisão, promove transformações no modelo tradicional da TV: fragmenta a tela televisiva, liberta-a da sala de estar, segmenta o público, relativiza a grade de programação, demanda novos regimes de interação e formatos de negócio. Seja pela presença de aspectos televisivos na internet, seja através da aquisição de propriedades computacionais pela televisão tradicional, as experiências são feitas com o intuito de explorar formatos, linguagens e processos que melhor se adaptem à nova lógica digital. Portanto, ao se misturar com o computador e se relacionar com as mídias digitais, a televisão insere-se em um processo de transformações que caminha para uma melhor definição daquilo que hoje chamamos, genericamente, de cultura digital.

4 - n. 1

hegemonia das emissoras, passa a ser vista como grande aliada. As emissoras de televi-

ano

sonagens televisivos. A internet, que a princípio era entendida como uma ameaça à

Revista GEMI n IS |

É importante destacar, nesse processo de junção da televisão com o computa-

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Referências bibliográficas

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Letícia Capanema - Renné O liveira França

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no

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Interatividade como Categoria de A nálise sobre Convergência entre Televisão e Web M aria Clara A quino B ittencourt Jornalista pela Universidade Católica de Pelotas (UCPEL), mestre e doutora em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e pós-doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). E-mail: aquino.mariaclara@gmail.com

Revista GEMI n IS

ano

4 - n . 1 | p. 37 - 56


Resumo Diante da pluralidade teórica e a partir de uma crítica sobre a abrangência do conceito de convergência, elaborou-se uma solução conceitual estruturada em categorias analíticas para o estudo da relação entre televisão e web, contemplando os âmbitos técnico, social e cultural. Neste trabalho, o objetivo é abordar a interatividade como uma dessas categorias, e porque ela atua como pressuposto da convergência, ao mesmo tempo em que se trabalha com as subcategorias de participação e compartilhamento para entender nuances técnicas, sociais e culturais de trocas estabelecidas na produção, circulação e consumo midiáticos da televisão e da web. Palavras-Chave: interatividade, convergência, televisão, web.

Abstract Given the theoretical plurality and from a review of the scope of the concept of convergence, it was developed a conceptual solution structured through analytical categories for the study of the relationship between television and the web, contemplating the technical, social and cultural levels. In this paper, the goal is to address interactivity, as one of these categories, and how it serves as the convergence presupposition, while it works with the subcategories of participation and sharing to understand technical, social and cultural exchanges established in production, circulation and consumption of television and web. Keywords: interactivity, convergence, television, web.


Introdução

O

s processos de produção, circulação e consumo de conteúdos midiáticos ultrapassam os espaços das mídias consideradas oficiais, de modo que é necessário repensar tais processos dentro de uma nova dinâmica na qual, de

acordo com Jenkins, Ford e Green (2013), é preciso entender como as indústrias midiáti-

cas e a cultura das sociedades sofrem transformações em função de constantes práticas de criação e compartilhamento de um conteúdo que hoje circula de baixo para cima, de cima para baixo, do alternativo ao comercial. Martín-Barbero (2007) reflete sobre a reformulação desses processos, afirmando que a revolução tecnológica insere nas sociedades não apenas novos instrumentos técnicos, mas é responsável por reconfigurar relações entre processos simbólicos e formas de produção e distribuição, criando um novo modo de produção associado a um novo modo de comunicar. Os impactos da digitalização de conteúdos, do surgimento e popularização da Internet e da web são sentidos em diversos setores das sociedades, mas é nos meios de comunicação e processos comunicacionais que imprimem as maiores transformações. Além disso, características de meios analógicos e digitais se misturam e se torna necessário prestar a atenção às interferências dessas relações não apenas no âmbito técnico, mas em termos sociais e culturais, diante da adoção de novos comportamentos relacionados à produção e ao consumo de conteúdos midiáticos. Neste contexto, marcado pela digitalização de processos e conteúdos, a expressão convergência midiática aparece com frequência na produção acadêmica. Esforços conceituais proliferam no espaço acadêmico considerando apenas aspectos técnicos, entendendo o fenômeno como a reunião de diversas mídias em um único ambiente ou dispositivo, descartando questões sociais e culturais. Outras argumentações, no entanto, abordam o envolvimento dos indivíduos na constituição da convergência, sem privilegiar o elemento tecnológico. Diante desta dicotomia e a partir de uma crítica sobre a abrangência do conceito, elaborou-se uma solução conceitual estruturada em categorias analíticas (AQUINO, 2012) para o estudo da relação entre TV e web, contemplando os âmbitos técnico, social


e cultural. Neste trabalho, o objetivo é abordar a interatividade como uma dessas categorias, e porque ela atua como pressuposto da convergência, ao mesmo tempo em que nuances técnicas, sociais e culturais de trocas estabelecidas na produção, circulação e consumo midiáticos da TV e da web. A metodologia baseou-se em um movimento teórico-epistemológico elabora-

necessária ao indivíduo e aplicação de um conhecimento a uma situação nova, tudo aliado ao engajamento de fatores como percepção, atenção e memória no esforço de conferir sentido ao que se consome. Ela aponta a importância da realização de exercícios de compreensão e interpretação, além da simples manipulação mecanicista de sequências discretas de sentenças para que se depreenda um significado global do texto. O movimento epistemológico mapeou a pesquisa sobre convergência entre TV e web, situando o leitor historicamente e questionando a produção teórica nos níveis técnico, social e cultural. Foram identificados vários ângulos de estudo da convergência, o que permite o desdobramento da pesquisa em diversas vertentes e amplia o âmbito conceitual. O movimento teórico mapeou a noção de convergência, apresentando diversas perspectivas sob as quais é estudada, categorizando o conceito, indicando a interatividade como seu pressuposto e apresentando o compartilhamento e a participação como ramificações desta categoria. Após esta introdução, a estrutura do paper expõe a metodologia utilizada para a exploração sobre a evolução e o atual estado das relações entre televisão e web e para o levantamento acerca da produção conceitual sobre convergência. Em seguida, são apresentados as relações entre televisão e web e os diferentes aspectos sob os quais a evolução tecnológica de aproximação entre os dois meios vem acontecendo. A interatividade como categoria de análise entre a convergência entre televisão e web é o foco do terceiro item do texto, que subdivide-se para abordar a participação e o compartilhamento como subcategorias da interatividade. Por fim, são tecidas as considerações finais. 2. Relações entre televisão e web É incontestável que, ainda que com o crescente desenvolvimento da web e do aumento das condições de acesso à Internet, a televisão ainda possui um papel de peso nas sociedades. Ribeiro, Sacramento e Roxo (2010, p. 7) falam sobre a “onipresença” desse meio e consideram a televisão como a “mídia de maior impacto na sociedade bra-

4 - n. 1

fas cognitivas como resolução de problemas, introdução na mente de uma informação

ano

do a partir da metodologia de leitura de Kleiman (1989), que equipara a leitura a tare-

Revista GEMI n IS |

se trabalha com as subcategorias de participação e compartilhamento para entender

40


sileira”, além de “principal opção de entretenimento e de informação da grande maioria da população do país. Para muitos, a única”. do preço dos primeiros aparelhos, a televisão hoje está presente em quase todas as casas, ao contrário dos computadores e do acesso à Internet, segundo Cannito (2010). Diante desse

assistir ao conteúdo televisivo, ainda que também passem a usar o aparelho para navegar online. É fato que, ainda que com menos alcance do que a televisão, a Internet têm provoca-

de conteúdos para a televisão é uma prática que se realiza a partir do próprio meio e nele in-

televisão e web, referente aos papeis desempenhados por produtores e consumidores de conteúdos quanto aos processos de produção e consumo. mento de aproximação do meio com a web, foram recuperadas periodizações de autores diturais, políticas, técnicas e econômicas encontram-se nas classificações de Berger (APUD

e

MACHADO, 1990), Galperin (2004, online), Capparelli e Lima, 2004) e Ribeiro, Sacramento

Televisão

versos que, abordam essa trajetória sob diferentes enfoques. Critérios como questões estru-

entre

Ao traçar-se uma trajetória histórica da televisão na tentativa de identificar o movi-

Convergência

entreter, convencer, etc.”, o que já aponta uma das alterações decorrentes da relação entre

sobre

tervêm os sujeitos produtores e destinatários, com determinadas intenções, como informar,

A nálise

produtores dos conteúdos veiculados na televisão. Fantinatti (2009, p. 11) diz que “a produção

de

do alterações não só no comportamento dos consumidores de informação mas também nos

Categoria

crença não nega tal prática, porém afirma que isso não significa que as pessoas deixarão de

como

cenário, o autor discorre sobre a possibilidade futura de acesso à Internet por esse meio. Sua

Interatividade

Inicialmente tratada como um meio de comunicação direcionado à elite, em função

41

e Roxo (2010). Aspectos estéticos figuram nas classificações de Berger (APUD MACHADO,

Web

1990) e Ribeiro, Sacramento e Roxo (2010), enquanto que apenas Galperin (2004, online)

Lemos (1997, online) e Kieling (2009, online) traçam uma breve linha evolutiva da televisão focando-se apenas no caminho traçado pela interatividade no meio. Apontamentos culturais, discursivos, produtivos, profissionais e tecnológicos são mencionados na periodização de Ribeiro, Sacramento e Roxo (2010), no entanto, é importante salientar que são explicitamente descritos pelos autores, porém, é possível perceber, quando da leitura de seus textos, menções a outros tipos de critérios. Assim que, dos autores mencionados acerca desse resgate histórico sobre a trajetória da televisão, somente Lemos (1997, online) e Kieling (2009, online) detêm-se apenas em um critério, que se refere ao tema da interatividade no meio. No caso da obra de Ribeiro, Sacramento e Roxo (2010), por exemplo, a diversidade de temáticas abordadas é ampla e a forma com que os autores periodizam a história da

M aria Clara A quino B ittencourt

trata sobre serviços, modelos de regulação, modelos de negócios e estratégias de negócios.


televisão fragmenta o processo, de modo que diversos contextos de observação podem ser considerados para se retomar o histórico do meio, ainda que a temática dos gêneros figuafirmam inserir questões referentes a tecnologia em sua periodização sobre a trajetória da televisão, mas em todos os autores citados a referência ao tema é realizada, sendo o ponto que, juntamente com questões sociais e culturais, interessa para a configuração teórica

autores aqui mencionados e, no contexto desse trabalho, são de forte relevância, já que se trata de um tópico ligado à questão da convergência de mídias ao tratar da relação entre emissores e receptores. Um outro fator a ser destacado são as imbricações da televisão com outros meios de comunicação, citadas por Machado (1990), Capperelli e Lima (2004) e Ribeiro, Sacramento e Roxo (2010). Ainda que Capparelli e Lima (2004) apresentem um posicionamento de caráter tecnicista a respeito dessa relação da televisão com outros meios de comunicação, digitais ou analógicos, é imprescindível referenciar suas argumentações sobre essas misturas e recorrências de um meio a outro. No caso da obra de Ribeiro, Sacramento e Roxo (2010), a relação do meio com outros aparece muito através de estudos sobre gêneros e conteúdos televisivos. Essas aproximações fizeram com que a televisão sentisse a influência do uso da Internet, da web e das tecnologias digitais por seu público e em função do impacto da liberdade de emissão e da diversidade de conteúdo produzido pelos indivíduos, o meio iniciou uma nova fase. Frente à liberdade de produção de conteúdo, Miller (2009) não acredita que a televisão esteja sendo esquecida. O autor considera que vídeos online do YouTube ao invés de substituírem determinados programas televisivos, os promovem, pois acredita que apesar da maior parte do conteúdo do YouTube ser amadora, tal conteúdo não é tão assistido em comparação com o conteúdos das indústrias culturais. Para Miller (2009, p. 22), “imaginar a Internet em oposição à televisão é bobagem; ao contrário, ela é apenas mais uma forma de enviar e receber a televisão. E a TV está se tornando mais popular, não menos. Suspeito que estamos testemunhando uma transformação da TV, ao invés do seu falecimento”. Diante desse panorama sobre a evolução tecnológica da televisão e de sua aproximação com a web, percebe-se que o estudo sobre convergência não atinge legitimidade com base num enfoque puramente tecnicista, desconsiderando aspectos sociais e culturais. É fato que a web vem potencializando práticas anteriormente existentes, facilitando atividades e contribuindo para alterações nos comportamentos dos indivíduos, mas não foi a responsável, assim como também não o foram os processos de digitalização, pelo início da conver-

4 - n. 1

Alterações no modelo de comunicação figuram nas argumentações de todos os

ano

desse trabalho.

Revista GEMI n IS |

re em diversos textos da obra. Explicitamente, apenas Ribeiro, Sacramento e Roxo (2010)

42


gência entre elementos e linguagens de comunicação. Essas interligações iniciaram antes da configuração desse cenário digital, e o que mudou, e vem mudando, são os comportamenTrata-se de um processo de mudança que se dá de maneira conjunta, num movimento de reciprocidade entre as transformações técnicas, sociais e culturais, já que decorrem das ações variados tipos de comportamentos a partir de usos diversos.

Categoria

3. Interatividade: o papel das trocas técnicas, sociais e culturais na convergência

como

e apropriações dos indivíduos em torno de instrumentos técnicos e pelo desempenho de

Interatividade

tos dos indivíduos em torno dos conteúdos midiáticos que circulam por diferentes meios.

43

de

no que se refere a apropriação social dos computadores, segundo Lemos (2002). Tal afir-

várias outras foram possibilitadas pelo uso dos computadores, de modo que é possível inferir que implementações técnicas vêm sendo responsáveis, ao longos dos séculos, por contrário também é verificável. “The ideia of interactivity derives from the sociological concept structure”1 ( JENSEN, 2010, p 53).

e

Sobre interatividade, Jensen (2010) diz que a ideia é hoje frequentemente asso-

Televisão

of interaction between human agents – face-to-face, but also indirectly at various levels of the social

entre

transformações sociais e culturais em termos de interatividade. No entanto, o movimento

Convergência

so de interação entre um ser humano e uma máquina, mas é a partir dessa interação que

sobre

mação logo de início já traspassa um caráter puramente técnico, ao incorporar no proces-

A nálise

As novas formas de interação homem-máquina foram um dos fatores decisivos

ciada com a computação, mas que deriva do conceito sociológico de interação face a face

Web

entre agentes humanos, e indiretamente, de vários níveis da estrutura social. Para ele, a

quinas de maneira sequencialmente estruturada e que, quando importado para o âmbito dos meios de comunicação, o conceito se torna ambíguo pois pode ser pensado do ponto de vista da interatividade das pessoas com o meio e também entre as pessoas através de um meio, mesclando assim interações de níveis técnico e social. Para superar essa ambiguidade, o autor recorre a Giddens (1984), trazendo os conceitos de agência e estrutura, propondo uma interdependência entre esses dois conceitos com o meio e sugerindo assim três tipos de interatividade decorrentes dessas inter-relações. A interatividade 1 se refere ao tipo de interatividade estabelecida entre a agência e o meio, quando se clica em um link na web, por exemplo. Nesse caso, a interatividade consiste na escolha de uma ação dentre uma quantidade pré-determinadas de opções. Na interatividade 2, as relações se dão entre o meio e a estrutura, entre o meio e outras instituições, dentro da estrutura 1 Tradução da autora: A ideia de interatividade deriva do conceito sociológico de interação entre agentes humanos – face a face, mas também indiretamente em vários níveis da estrutura social.

M aria Clara A quino B ittencourt

interatividade se refere ao modo como os usuários de computadores operam essas má-


social. Aqui, percebe-se como a sociedade e a cultura são influenciadas pela tecnologia e vice-versa. Na interatividade 3 é estabelecida a relação entre a estrutura social e os interesglobais. O exemplo é o envolvimento dos cidadãos na democracia política e nos movimentos populares através dos meios da esfera pública. Para Lemos (2002), a interatividade é interação técnica e interação social, ao

interage com os outros motoristas. Para interagir com outros seres humanos através de um computador, antes de qualquer coisa o homem precisa saber manuseá-lo, por isso Lemos (2002, p. 117) alia a ideia de interatividade com a de interface, afirmando que “a interatividade (a conexão, a conversação) precisa de um ambiente que a proporcione e por isso não podemos defini-la sem a ideia de interface”. Como pensar então a interface e a interação entre os produtores e os consumidores de conteúdo televisivo e sua relação com a web? Originalmente, a televisão é um meio de massa que não permite uma interação direta entre emissores e receptores, de forma que, no atual contexto surgem questões que implicam na reflexão acerca da interatividade através do meio. Seriam as cartas, os telefonemas e hoje a própria web as interfaces que possibilitam diferentes tipos de interação entre esses atores? Quando há interação técnica e quando há interação social em termos de televisão e web? Seria a interação técnica aquela que o indivíduo estabelece, por exemplo, com o controle remoto? Seria a interação social aquela que o indivíduo estabelece com outros indivíduos quando conversa sobre o conteúdo consumido na televisão, ou então quando envia um e-mail ou participa de um chat no site da emissora? E o nível cultural dessa interatividade? Qual o impacto dessas interatividades técnica e social no âmbito da cultura estabelecida no consumo da televisão e da web pelos indivíduos? Utilizando a televisão como exemplo, Lemos (2002, p. 121) menciona outros dois tipos de interação, do tipo analógico digital com a máquina, e do tipo eletrônico digital com o conteúdo televisivo. Assim, ele considera que a interatividade se situa em três níveis, que não são excludentes entre si: técnico analógico mecânico; técnico eletrônico digital, e social. Lemos (2002) considera a interatividade digital como um tipo de relação tecno social e acredita no potencial da tecnologia digital de possibilitar não apenas a interação do indivíduo com o objeto técnico, mas com o conteúdo e também com outros indivíduos, de modo que a classificação proposta pelo autor se encaixa nos níveis técnico e social aqui propostos. Ele não desconsidera o aspecto técnico envolvido nas interações que se estabelecem entre os indivíduos com a televisão, nem mesmo entre os indivíduos

4 - n. 1

quando o motorista interage com seu carro, ao dirigir, e a interação social quando ele

ano

mesmo tempo, e ele utiliza o trânsito como exemplo, colocando a interação técnica

Revista GEMI n IS |

ses individuais dos cidadãos com os interesses nacionais e políticos e com as corporações

44


entre si através da televisão. O elemento técnico é colocado destaque, quando se trata sobre as interações com a máquina e com o conteúdo, mas não é desconsiderado quando da televisão. Sobre a interatividade na televisão, Primo (2007) faz uma crítica a Lemos, diestudos sobre televisão no atual cenário digital. Primo (2007) defende seu ponto de cabo garante ao telespectador mais opções, mas lembra que a transmissão das men-

os apresentadores dos programas. Para ele, o que se considera como nível mais alto

exclusiva da técnica. A oferta de conteúdo televisivo hoje, e isso já não é novidade, não mais se resdesses canais estão disponíveis online, seja através dos sites oficiais dos próprios cana web. O telespectador possui, além da televisão, um outro espaço no qual navegar em

programas como o Você Decide, característicos de uma fase intermediária entre a televisão de caráter unidirecional e um outro formato mais permissivo a relacionamentos interpessoais. No entanto, questiona o nível dessa interatividade, apontando as limitações dos espectadores em escolher entre opções previamente definidas, sem poder manifestar qualquer outro tipo de interferência ou argumentação. No entanto, não menciona a interação do indivíduo com o conteúdo televisivo publicado na web, limitando-se apenas ao suporte televisivo. Diante dessas considerações acerca da interação via televisão, Primo (2007) afirma que a maioria dos recursos tidos como interativos em termos de televisão, são, na verdade reativos, pois se limitam a oferecer opções predeterminadas para os telespectadores. No entanto, não descarta esse caráter reativo como um tipo de interação. Sua perspectiva sobre interatividade volta-se para o que acontece entre os participantes

M aria Clara A quino B ittencourt

Primo (2007), no uso do controle remoto e a programas pay-per-view, o autor considera

No Brasil, além das interações no contexto televisivo basearem-se, de acordo com

Web

lhe interessa assistir, a qualquer hora e lugar.

e

busca de conteúdo, estabelecendo assim um novo fluxo de pesquisa em busca do que

Televisão

nais, seja através de uploads realizados pelos telespectadores que inserem esse conteúdo

entre

tringe aos canais de televisão, sejam esses canais abertos ou fechados. Os conteúdos

Convergência

mente disponibilizadas, resumindo-se a interação a reação, além de uma valorização

sobre

de interação é a simples escolha, por parte do telespectador, entre alternativas previa-

A nálise

telespectadores manifestem qualquer tipo de opinião e/ou interajam diretamente com

de

sagens acontece através de um fluxo sequencial e unilateral, sem permitir que seus

Categoria

vista com alguns exemplos, como o fato de que a oferta de diversos canais pela TV a

como

zendo que a relação tecno social mencionada por ele não se configura plenamente nos

Interatividade

a socialidade é tomada como foco ao se tratar das interações entre os indivíduos através

45


de um processo interativo, seja qual for o nível de interatividade estabelecido em tal processo. Seu objetivo é estudar o relacionamento entre os interagentes sem distinguir mento mantido entre os interagentes. Ele destaca que em muitos dos relacionamentos entre os interagentes a comunicação é estabelecida através não só de um único canal, mas de vários, o que ele chama de multiinteração, de modo que podem ocorrer diversas

dessas multiinterações quando os consumidores do conteúdo televisivo interagem com esse conteúdo, com os produtores e com outros consumidores através das ferramentas de comunicação digital disponíveis no ambiente online, no caso dos produtos transmidiáticos2. Há nesses casos que se perceber que tipos de interação aí se estabelecem: Mútuas? Reativas? Entre produtores e consumidores? Entre consumidores e dispositivos e interfaces? Entre consumidores e conteúdos? Apenas entre consumidores? Certamente múltiplas, assim como o próprio produto. Enquanto Lemos (2002), para definir os tipos de interatividade, leva em consideração com o que o indivíduo interage, se com uma máquina, com o conteúdo ou com outros indivíduos, e Primo (2007) detêm-se no grau de interatividade estabelecido entre pessoas, meios e dispositivos, Thompson (1998) aborda a questão da interação a partir de critérios como a relação espaço-tempo, as possibilidades de deixas simbólicas, a orientação da atividade e o fato da interação ser dialógica ou monológica. O autor aborda a interação através dos meios de comunicação, tendo a televisão como principal parâmetro, classificando o conceito em interação face a face; interação mediada e interação quase mediada. A interação face a face é descrita por Thompson (1998) como aquela que acontece num contexto de co-presença, na qual os participantes compartilham do mesmo referencial de espaço e tempo. Esse tipo de interação possui um caráter dialógico, implicando um fluxo de comunicação bilateral, marcado pelas diversas possibilidades do uso de deixas simbólicas, como gestos, mudanças no tom de voz, expressões faciais, etc. A interação mediada é aquele tipo de interação que ocorre através de cartas e conversas telefônicas, exemplifica o autor. Trata-se de uma interação estabelecida através do uso de um instrumento técnico capaz de permitir a transmissão de conteúdo a indivíduos situados no tempo e/ou no espaço de maneira remota. Não há o compartilhamento do referencial de tempo e espaço entre os participantes dessa interação, de modo que nenhum dos participantes podem presumir o entendimento de expressões denotativas. 2 Sobre transmídia ver Jenkins (2008).

4 - n. 1

No caso da televisão, ao se pensar sua relação com a web se percebe a ocorrência

ano

interações simultâneas, tanto reativas quanto mútuas.

Revista GEMI n IS |

o que é ou não interação, mas distinguindo a interação no que se refere ao relaciona-

46


Por fim, a interação quase-interação mediada é designada por Thompson (1998, p. 79) para se referir as relações sociais estabelecidas via meios de comunicação de masteração “se dissemina no espaço e no tempo”. Ao contrário dos outros dois tipos de interação, na quase-interação mediada o conteúdo, as formas simbólicas são dirigidos contrário das duas outras interações, a quase-interação mediada é monológica, sendo o Especificamente sobre a televisão, Thompson (1998, p. 85) afirma que, assim

das mensagens transmitidas por esse meio é dilatada no tempo e no espaço. Segundo o

de espaço e tempo que devem ser manejadas pelos receptores do conteúdo televisivo. Thompson (1998) chama a atenção para o caráter monológico da televisão, referindo-se mas de quase-interação mediada. O autor não nega algumas possibilidades de intervenprática, são poucos os indivíduos que se aproveitam dessas possibilidades.

e

Thompson (1998) também aponta como consequência do caráter monológico

Televisão

ção por parte dos receptores, como cartas e telefonemas, por exemplo, mas afirma que, na

entre

ao seu fluxo de mensagens predominantemente unilateral, característico de todas as for-

Convergência

coordenadas, na quase-interação televisiva há um diferente conjunto de coordenadas

sobre

autor, ao contrário da interação face a face, na qual os participantes possuem as mesmas

A nálise

separação dos contextos de produção e de recepção”, de maneira que a disponibilidade

de

“como todas as formas de interação e quase-interação mediadas, a televisão implica a

Categoria

fluxo da comunicação que se estabelece nesse tipo de interação unilateral.

como

para um número indefinido de receptores potenciais, explica o autor. Além disso, ao

Interatividade

sa, e é nesse tipo de interação que ele enquadra a televisão. Para ele, esse tipo de in-

47

da televisão a ausência da monitorização reflexiva das respostas alheias na quase-inte-

Web

ração televisiva, presente nas interações face a face. Essa ausência de monitorização re-

e imediato, causando-lhes preocupação e incerteza quanto à recepção dos conteúdos. No contexto digital presente, há que se repensar alguns apontamentos feitos por Thompson (1998), quando ele fala do caráter unilateral do fluxo de mensagens televisivas, bem como sobre essa questão da monitorização reflexiva. Hoje, essas questões são reconfiguradas na medida em que mais e mais consumidores não só atuam no ambiente online produzindo conteúdo como também esse ambiente online passa a ser propício para a televisão, como meio produtor de conteúdo, monitorar a recepção de suas mensagens. Nesse sentido, é a reconfiguração do modelo de comunicação passando de um-todos para todos-todos que suscita o repensar de diversas considerações acerca do fluxo midiático televisivo, e a interatividade sofre um impacto imediato dessa reconfiguração tanto no que se refere a produção, quanto a recepção de conteúdos. Há que se pensar

M aria Clara A quino B ittencourt

flexiva priva, de acordo com o autor, os produtores dos conteúdos do feedback contínuo


hoje na realização de um processo encadeado de produção de conteúdo que inicia na formulação técnica de produtos midiáticos que potencialmente ofereçam possibilidades um planejamento focado em níveis de interatividade que envolvam produtores, conteúdo e consumidores. O foco desse planejamento já deve estar direcionado para levar em conta modificações de âmbito social e, consequentemente, cultural, já que mudanças de

As transformações em relação a interatividade atingem tamanha proporção de modo a chegar ao ponto de que, em tempos de vídeo online, Pavlik (2008, p. 56), considera necessário repensar até mesmo a denominação dos receptores de conteúdo. O autor questiona o termo audiência, usado para descrever aquele que lia um jornal ou consumia outros tipos de conteúdos de massa, como revistas, livros e filmes. “Audiences suggests a passive receiver of mediated messages”3, diz o autor ao clamar pela necessidade de uma alteração na forma de chamar o receptor dos conteúdos midiáticos inseridos no contexto digital, já que, como ele menciona, não apenas mais se assiste a um vídeo, assim como não mais apenas se lê um jornal. Quanto aos receptores, Pavlik (2008, p. 56) é incisivo: “they are no longer passive couch potatoes at least not much of the time”4. A sugestão de Pavlik (2008) é pelo uso dos termos usuário e produtor, já que o vídeo tem se tornado um produto mais ativo e interativo. Video is downloaded, accessed on demand, stored or saved for later viewing, fast-forwarded through, searched, sorted, edited, redistributed, uploaded, clicked on or otherwise manipulated in videogames, and subject to a host of rapidly evolving interactive features. Only occasionally is it just watched (PAVLIK, 2008, P. 56).5

Diante das modificações permitidas pela interatividade são diversas e diferenciadas as possibilidades oferecidas na web. Estas se ampliam em relação ao conteúdo oferecido pela televisão em termos de interatividade, ao menos teoricamente, o que faz com que se questione ainda mais o teor dessa categoria. Nesse sentido, pode-se resgatar a diferenciação que Jenkins (2008) faz entre interatividade e participação.

3 Tradução da autora: Audiências sugere um receptor passivo de mensagens mediadas. 4 Tradução da autora: Eles já não são mais como parasitas de sofá, pelo menos não a maior parte do tempo. 5 Tradução da autora: O vídeo é baixado, acessado sob demanda, armazenado ou salvo para visualização posterior, avançado, pesquisado, classificado, editado, redistribuído, transferido, clicado ou, em outros casos, manipulado em videogames, e sujeito a uma série de evoluções rápidas de recursos interativos. Apenas, ocasionalmente, é somente assistido.

4 - n. 1

das maneiras como esses produtos irão circular.

ano

comportamento podem ocorrer em função de novas práticas impostas ou decorrentes

Revista GEMI n IS |

interativas aos futuros consumidores desse conteúdo, o que pressupõe a estruturação de

48


autorizadas e previstas pelos produtores desses conteúdos. Assim, afirma que permitir

distribuição desses conteúdos. Essa diferenciação feita pelo autor carrega um caráter fortemente social, pois ainda que dependente de alterações técnicas, interfere na definição do modelo comunicacional que se estabelece a partir no nível de atividade do indivíduo

Dessa forma, fica evidente que, como explica Jensen (2010), a ideia de interatividade

se origina dessa interligação entre comunicação e ação e quando Jenkins (2008) fala em participação, pode-se relacionar sua argumentação com esse caráter ativo da interatividade indicado por Jensen (2010) para indicar aqui o entendimento dessa categoria como componente essencial do conceito de convergência midiática. 3.1. A participação e o compartilhamento como subcategorias da interatividade Segundo essa diferenciação apresentada por Jenkins (2008) entre interatividade e participação, pela observação da trajetória dos meios de comunicação nesse contexto digital e a partir do desenvolvimento da web e das tecnologias digitais, pode-se considerar a participação como uma subcategoria da interatividade. É fato que sem a interatividade a participação não se concretiza, no entanto, não é imprescindível a ocorrência da participação para que se verifique a efetivação da interatividade. No caso de um pro-

M aria Clara A quino B ittencourt

comunicação é uma forma de ação e toda a comunicação antecipa uma ação. A interatividade

-versa. Segundo ele, toda ação humana pode ser considerada comunicação, assim como toda

Web

de modo que o autor condiciona o processo de comunicação com a ação do indivíduo, e vice-

e

tem um papel importante para auxiliar no entendimento da relação entre comunicação e ação,

Televisão

rações de âmbitos social e cultural.

entre

em determinado processo comunicacional, o que consequentemente carrega reconfigu-

Convergência

diferente no qual está a permissão para os consumidores participarem na produção e na

sobre

a interação dos consumidores com os conteúdos midiáticos é algo que está em um nível

A nálise

parte dos consumidores nos conteúdos midiáticos, formas que muitas vezes não foram

de

porém destaca o uso cada vez mais intenso da web como forma de participação por

Categoria

ção com o conteúdo das mídias, enfatizando o caráter técnico da ideia de interatividade;

como

Jenkins (2008) explica que o computador oferece várias possibilidades de intera-

49 Interatividade

A interatividade refere-se ao modo como as novas tecnologias foram planejadas para responder ao feedback do consumidor. Pode-se imaginar os diferentes graus de interatividade possibilitados por diferentes tecnologias de comunicação, desde a televisão, que nos permite mudar de canal, até videogames, que podem permitir aos usuários interferir no universo representado. A participação, por outro lado, é moldada pelos protocolos culturais e sociais. […] A participação é mais ilimitada, menos controlada pelos produtores midiáticos e mais controlada pelos consumidores de mídia (JENKINS, 2008, P. 182, 183).


duto televisivo, o público pode interagir através do site desse programa, comentando sobre o conteúdo transmitido através de um sistema de chat ou um fórum de discussão, acerca de um conteúdo veiculado na televisão. A participação desses indivíduos tem início quando a produção do programa abre canais pelos quais o público pode enviar sugestões sobre o conteúdo desse produto midiático, por exemplo, que poderão vir a ser

A participação nos conteúdos televisivos não é uma novidade trazida pela web e pelas tecnologias digitais de comunicação. O telefone, por exemplo, já possibilitava esse tipo de atividade antes do surgimento da Internet. No entanto, a web e as tecnologias digitais potencializam essa prática ao conferirem mais autonomia aos telespectadores que podem criar canais de participação através de blogs e redes sociais, por exemplo. Coloca-se assim a participação como subcategoria da interatividade por se constatar o aumento das possibilidades que os indivíduos adquirem de participar da elaboração de conteúdos através da web nesse processo de convergência com a televisão. Diante desse processo de potencialização da participação e de sua configuração como uma subcategoria da interatividade, há também que se abordar a questão do compartilhamento. Para tratar da reconfiguração do modelo de comunicação, em função da interatividade que se destaca no contexto atual, Jensen (2010, p. 49) retoma o esquema de comunicação proposto por Lasswell em 1948 (“Who/Says What/In Which Channel/To Whom/With What Effect?”)6. O autor propõe a reformulação da questão para “who shares what with whom, in wich processes of interaction?”7. Se no modelo de Lasswell a palavra de ordem seria transmissão, hoje se poderia alterar o termo para compartilhamento, de forma que uma aproximação de papéis se estabelece quando emissor e receptor podem desempenhar funções semelhantes no processo de comunicação. Com essa reformulação, o autor resgata uma distinção entre o primeiro modelo de comunicação, de transmissão, e o segundo, de ritual, proposta por James Carey, em 1975. O modelo de transmissão, explica Jensen (2010, p. 50), é aquele que em que os meios são considerados mecanismos separados da sociedade, que podem ou não produzir efeitos. Já o modelo ritualístico, explica o autor, estabelece que os meios produzem, necessariamente, efeitos, de modo que “communication is a sharing of meaning and a condition of community”8. E aqui pode-se recuperar a prática de compartilhamento já mencionada por Murray (2003), que fala sobre as alterações no comportamento do telespectador ao assistir televisão ao 6 Tradução da autora: Quem/Diz O que/Em Qual Canal/Para Quem/Com Qual Efeito? 7 Tradução da autora: quem compartilha o que com quem, em quais processos de interação? 8 Tradução da autora: Comunicação é um compartilhamento de significado e uma condição de comunidade.

4 - n. 1

do pelo público na web e trabalha com esse conteúdo na condução futura do programa.

ano

incorporadas, ou até mesmo quando a produção monitora o que é comentado e produzi-

Revista GEMI n IS |

por exemplo. Nesse caso, a interatividade se estabelece pela web, entre os indivíduos,

50


mesmo tempo em que interage com outras pessoas sobre o conteúdo televisivo na Internet. Essa condição comunitária, que tem impacto direto no nível cultural, é hoje possibilitada reformulação proposta por Jensen (2010) em contraposição ao modelo de Lasswell. Em um redesenvolvimento do modelo ritualístico, Jensen (2010) cita o trabalho nicação ao colocarem a televisão como o mais popular e acessível meio em uma culnegociações de interesses comuns. O importante, destaca Jensen (2010), é saber quem

partir dessa linha de raciocínio desse dois modelos, de transmissão e de ritual, que Jen-

nicação, pelo menos estariam oferecendo uma nova perspectiva sobre os conceitos de transmissão e ritual. sim como as pessoas estão acessíveis para os fornecedores de informação. Assim, ao pessoas se torne emissora e, na web, os atores sociais se tornem fontes abertas de infor-

e

mações e bancos de dados dinâmicos através dessa possibilidade de compartilhamento

Televisão

contrário das mídias analógicas, as mídias digitais permitem que uma massa crítica de

entre

O autor explica que as informações hoje estão acessíveis para as pessoas, as-

Convergência

que as novas mídias teriam poderes suficientes para mudar velhas práticas de comu-

sobre

sen (2010, p .50) se propõe a pensar os meios digitais, sugerindo que ao invés de achar

A nálise

transmitir o que e para quem dentro de um processo de ritual dentro de um fórum. É a

de

pode deliberar acerca dessas articulações e como, ou seja, quem estaria em posição de

Categoria

tura, entendido como um fórum, no sentido clássico de uma arena de articulações e

como

de Newcomb e Hirsch (1983), que propõem um modelo de fórum cultural de comu-

Interatividade

pela simultaneidade de uso de diversos meios de comunicação, conferindo legitimidade à

51

de conteúdo. Para melhor ou para pior, afirma Jensen (2010), as tecnologias digitais

Web

fazem com que a informação seja hoje acessível e disponível de outra forma, através de

Da mesma forma que a participação, encara-se o compartilhamento como uma subcategoria da interatividade. Assim como a interatividade permite que os indivíduos possam participar da produção de conteúdo em determinados momentos, através de determinadas ferramentas de comunicação, em alguns casos também podem compartilhar conteúdo, o que não implica na produção ou interferência na condução de um programa televisivo, por exemplo, como pode ocorrer no caso da participação. O compartilhamento se dá pela troca de informações, de mensagens, de conversações que fluem através não só de canais oficialmente estabelecidos pelos produtores dos produtos midiáticos, mas pelos canais de comunicação criados pelos consumidores dos conteúdos que circulam pela televisão e pela web, de modo que esse compartilhamento deriva diretamente da interatividade estabelecida entre produtores e consumidores de conteúdos através da web e das tecnologias digitais de comunicação.

M aria Clara A quino B ittencourt

novas estruturas de transmissão e ritual.


No entanto, ainda que percebendo a ocorrência de novas formas de acesso e disponibilização da informação, Jensen (2010) reconhece que as sociedades se perfazem os rituais os responsáveis por impulsionar as transmissões. Logo, alerta-se para o fato de que assim como determinadas mídias, algumas práticas comunicacionais não são abandonadas, de modo que mesmo que o desenvolvimento das mídias digitais e a ocor-

colocar a participação e o compartilhamento como subcategorias da interatividade o que se pretende destacar é que nem sempre essas práticas se concretizam, pelo fato de que nem todos os indivíduos estão dispostos a participar da produção ou compartilhar conteúdo. No entanto, a atual configuração midiática abre diversos espaços e canais que propiciam comportamentos nesse sentido, de maneira que não se pode ignorar a relevância dessas manifestações. Teoricamente, as considerações de Jensen (2010) sobre os modelos de transmissão e ritual vão ao encontro do desenvolvimento dos meios digitais, no âmbito da web e das ferramentas de comunicação que se desenvolvem nesse espaço, ou seja, que aproveitam as potencialidades oferecidas por esse espaço, que permitem uma interação em maiores proporções entre o indívíduo e o conteúdo e entre os próprios indivíduos. Porém, ao se pensar na relação da televisão com a web, a interatividade ainda é uma característica extremamente limitada em termos práticos. O desenvolvimento técnico é visível e cada vez mais ampliado no atual contexto. A interatividade virtualmente proporcionada pelo surgimento contínuo de potencialidades técnicas diversas acompanha esse desenvolvimento. Há, no entanto, que se refletir e se questionar se o amadurecimento social e cultural segue o mesmo ritmo dessa evolução técnica, já que as consequências desse processo de aprimoramento técnico e social reflete na cultura dos indivíduos que se apropriam dessas tecnologias baseadas na interatividade. O movimento inverso de reflexão também há de ser realizado para que se perceba como a cultura dos indivíduos influencia na apropriação técnica e social dessas tecnologias. O quadro a seguir resume a abordagem realizada sobre a categoria da interatividade, organizando os autores apresentados de acordo com a maneira com que encaram a ideia, de forma a ilustrar o que foi exposto no item a partir de tipos, critérios e transformações.

4 - n. 1

em função dos novos meios, o modelo de transmissão ainda permanece. Ou seja, ao se

ano

rência de novos costumes em torno de novos modos de comunicação se estabeleçam

Revista GEMI n IS |

através dos dois modelos, de transmissão e de ritual, sendo o conteúdo transmitido e

52


Critérios

Transformações

Thompson (1998)

Interação face a face; Interação mediada e Interação quase mediada.

Relação espaço-tempo, as possibilidades de deixas simbólicas, a orientação da atividade e o fato da interação ser dialógica ou monológica.

Não se aplica.

Lemos (2002)

Social, Analógico- digital, Eletrônico- digital.

Interface como background.

As novas formas de interação homem-máquina permitindo apropriação social dos computadores. Implementações técnicas e transformações sociais e culturais impactando-se mutuamente.

Primo (2007)

Interação mútua e interação reativa.

Classificação baseada no relacionamento mantido entre os interagentes e entre estes e o conteúdo.

Multiinteração.

Pavlik (2008)

Não se aplica.

Não se aplica.

Sobre a utilização do termo audiência. Opção pelos termos produtor e usuário.

Jenkins (2008)

Não se aplica.

Não se aplica.

Diferenciação entre interatividade e participação. Definição das subcategorias participação e compartilhamento.

Jensen (2010)

Interatividade 1 (entre agência e meio) Interatividade 2 (entre estrutura e meio) Interatividade 3 (entre agência e estrutura).

Classificação com base nas interações dos indivíduos com os meios.

Interatividade auxiliando no entendimento da relação entre comunicação e ação.

53

como

Tipos

Interatividade

Autores

Categoria de

A nálise sobre

Convergência entre

Televisão e

Web •

M aria Clara A quino B ittencourt

Quadro 1: Interatividade: o primeiro pressuposto para a convergência


Considerações finais

sobre o fenômeno entre televisão e we e considerou pertinente a configuração da interatividade como pressuposto da convergência entre os dois meios. Diante do que foi exposto, constatou-se a diversidade de tipos e níveis de interatividade que podem se estabelecer nas

da ideia de interatividade entre os dois meios, e foi isso o que se buscou expor neste paper. A identificação das subcategorias de participação e compartilhamento, demonstraram que o fator tecnológico não determina o fenômeno. O destaque recai sobre a atuação social e cultural dos indivíduos na produção, circulação e consumo dos conteúdos que transitam pela televisão e pela web, de forma que nos três níveis estudados percebe-se a complexidade do processo de convergência e a força da interatividade na constituição do fenômeno. A convergência entre televisão e web não se configura somente através da transposição de conteúdos de um meio para o outro, assim como a convergência entre outros meios de comunicação também não se efetiva dessa forma, de acordo com o entendimento do processo aqui referenciado. É preciso assimilar os fatores que determinam como essa convergência vai além da mera transposição de conteúdo, envolvendo aspectos técnicos, sociais e culturais, os quais devem considerar os processos de produção e recepção. Tais considerações não são conclusiva, considerando-se o fato de que os resultados alcançados com o levantamento bibliográfico realizado e com a proposta de categorização analítica construída, abrem possibilidades de pesquisa não só de caráter teórico, mas também empírico e metodológico, de modo que múltiplos insights podem vir a ser explorados futuramente. Além disso, o cenário digital é absolutamente dinâmico, de modo que assim como o desenvolvimento técnico se amplia, transformações sociais e culturais seguem o fluxo, reconfigurando práticas e processos de produção, circulação e consumo de conteúdos midiáticos.

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4 - n. 1

dade de suportes midiáticos existentes hoje, certamente influenciam nas reconfigurações

ano

relações entre televisão e web. As alterações nos modelos de comunicação e a multiplici-

Revista GEMI n IS |

O estudo conceitual sobre convergência interpretou a pluralidade de entendimentos

54


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Internet

ou

TV? Novas

estratégias de lançamento para

“D e Volta”

Vera B ungarten Graduada em Desenho Gráfico e Desenho de Produto pela ESDI - Escola Superior de Desenho Industrial. Obteve o título de mestre pela UFF, no departamento de Artes e Comunicação Social, com a dissertação A fotografia cinematográfica brasileira: expressão de uma identidade.e o título de doutor pela PUC-Rio, no departamento de Artes e Design, com a tese A imagem cinematográfica, convergências entre Cinema e Design. Desde 1975 passou a atuar profissionalmente em cinema, principalmente como fotógrafa de cena. Atualmente realiza trabalhos profissionais na área da produção de cinema. Trabalha como docente em cursos de extensão e pósgraduação lato sensu. E-mail: verabungarten@yahoo.com.br

Revista GEMI n IS

ano

4 - n . 1 | p. 57 - 68


Resumo As mudanças que o uso extensivo da internet e das suas ferramentas trouxeram para o cotidiano dos indivíduos da sociedade contemporânea também geraram alterações significativas no comportamento e nos relacionamentos. Essas alterações se estendem ao universo das obras audiovisuais e a forma com que o espectador se relaciona com elas. Essa realidade promove novas formas de divulgação e lançamento de filmes, com o objetivo de conquistar um público cada vez mais numeroso. Obra sem fins comerciais destinada a promover a reflexão sobre os direitos humanos através de uma abordagem instigante e inovadora, o documentário “De Volta” tem um lançamento inédito no Canal Futura. Palavras-Chave: TV, internet, estratégias de divulgação, plataforma digital.

Abstract The changes that the extensive use of the internet and its tools brought to the everyday life of people in contemporary society also have generated significant changes in behavior and relationships. These changes extend to the universe of audiovisual works and the way the audience relates to these. This promotes new forms of disclosure and release of films, with the goal of winning an increasingly large audience. “Coming back” is a documentary movie without commercial purposes, and aims to promote reflections on human rights through a thought-provoking and innovative approach. It was released by Futura Channel in a non-conventional way. Keywords: TV, internet, dissemination strategies, digital base.


A

linguagem do computador tornou-se referência universal. As novas mídias digitais são usadas por cada um de nós diariamente, algumas vezes de forma automática e impensada. Aos recursos oferecidos pelas ferramentas digitais,

sejam elas de uso infinitamente simples ou de alta complexidade técnica, soma-se a possibilidade do trânsito global de conteúdos oferecida pela internet. Esse conjunto tecnológico engendrou mudanças paradigmáticas no comportamento, nos relacionamentos, no lazer e na ocupação do tempo, alterando fundamentalmente o modo de vida de cada indivíduo na sociedade. Os princípios que regem essa nova plataforma e a sua interferência na vida cotidiana repercutem também de maneira definitiva sobre as obras audiovisuais, tanto na sua produção e como na sua apreciação. As estratégias de veiculação e divulgação de obras audiovisuais, comerciais ou não, apoderam-se das condições da atualidade; estão em permanente transformação, adequando-se aos novos comportamentos, sempre transitórios. No dia 18 de abril o Canal Futura adotou uma estratégia inédita para o lança-

mento do seu programa Doc Futura, produzido uma vez por ano. Através de uma concorrência pública anual a emissora propõe a coprodução e exibição na sua grade de um documentário sobre um tema relacionado a direitos humanos. São priorizados projetos que tratam de temas provocadores e instigantes, estimulando a reflexão a partir de uma abordagem inusitada. Vencedor da terceira edição, o documentário “De Volta”, proposto pela produtora COOPAS Multimagem, acompanha quatro presidiários selecionados entre os 26 mil presos que tiveram direito à saída temporária de quatro dias, no Natal de 2012. O benefício é concedido aos condenados em regime semiaberto, com bom comportamento e que já cumpriram um sexto da pena. Diferente dos vários filmes brasileiros, documentais ou de ficção, que debatem questões relacionadas ao sistema penitenciário brasileiro, esse não se concentra na vida no interior dos presídios, nem aborda as complexas relações que se estabelecem neste território em particular. O documentário não adota uma forma didática e oferece poucas informações objetivas. O foco aqui está nas alegrias e angústias do ser humano que, privado há anos da liberdade de ir e vir, se vê repentinamente na rua, na sua casa,


no convívio com seus familiares. Essa situação dura um curto espaço de tempo, com início e fim bem determinados: das 6:00h do dia 23 de dezembro às 17:00h do dia 26. A festa. Compartilha os abraços, as lágrimas, as risadas, o mal estar. Caminha junto com os personagens essa trajetória da ida e da volta. De volta à vida? De volta ao presídio? O título tem vários significados possíveis

nham, os quatro cavaleiros do apocalipse, para trás, procurando o ponto de origem de toda essa névoa pastosa sem pé nem cabeça.” (SOARES, 2013) A abordagem inédita e esse olhar profundamente humano dão ao documentário uma dimensão inteiramente nova do tema. A amplitude do impacto que o filme pode exercer sobre o público e a consequente reflexão sobre as condições e consequências do sistema jurisdicional e penal no Brasil, é percebida como diferencial, motivando a adoção de uma nova forma de lançamento e veiculação. A emissora visa aprofundar e disseminar o caráter instigante e provocador que está na proposta original. Pela primeira vez o documentário do Doc Futura não tem sua primeira exibição na televisão, mas na internet! Como pode ser analisada essa aposta? A constatação de que a internet e todas as ferramentas e meios de expressão a ela associados passaram a dominar as formas de comunicação, na atualidade, não é mais novidade: trata-se de uma realidade definitivamente instalada. A rede é um meio extraordinário para a disseminação de qualquer tipo de conteúdo, em especial o imagético. Instagram e Youtube permitem um acesso democrático a uma quantidade fenomenal de imagens produzidas em todo o mundo e facultam a divulgação das produções pessoais, realizadas pelos mais variados meios. As redes sociais ajudam a multiplicar os acessos, promovem comentários, debates, fóruns. Essa circunstância da atualidade tem origem em mudanças essenciais que se processam ao longo da segunda metade do sec. XX, quando se abre um novo capítulo na história das imagens e da tela. A televisão é o primeiro grande vetor dessa transformação fundamental. A técnica da televisão é introduzida entre 1925 e 1930, mas é somente a partir dos anos 50 que ela se impõe como bem doméstico e fenômeno social de massa. No final da década de 70 a maioria das residências no mundo ocidental possui um apa1 Luiz Eduardo Soares é antropólogo, cientista político e escritor. Ocupou a Secretaria Nacional de Segurança Pública e foi Subsecretário de Segurança Pública no Rio de Janeiro. É um dos maiores especialistas em segurança pública do país.

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Soares1 comenta que no filme “o relógio anda para trás como caranguejo. [...] Cami-

ano

e remete ao tempo inexorável a que estas quatro pessoas estão sujeitas. Luiz Eduardo

Revista GEMI n IS |

câmera não só observa, mas se insinua entre as pessoas. Participa dos preparativos e da

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relho receptor, que passa rapidamente a ser considerado um equipamento de base do conforto moderno. rece a recepção das imagens em domicílio. Enquanto o cinema é construído a partir

zação. Outras inovações desenvolvidas e oferecidas ao público, como o VHS e o DVD Na medida em que se impõe no ambiente doméstico, a pequena tela se estabelece como ameaça para a frequência das salas de cinema. O cinema responde com filmes mais espetaculares, mais coloridos, que podem ser mais bem apreciados na tela grande. Porém a mais importante influência da televisão sobre o cinema é de outra ordem: o meio televisivo favorece a formação de uma nova geração de cineastas e o desenvolvimento de uma nova estética, segundo Gilles Lipovetsky (LIPOVETSKY, 2007, p.233). A gravação das imagens por meio eletrônico oferece novos potenciais. Pela faciimagens que acabam por determinar outros parâmetros estéticos, de ordem bastante diversa daqueles que constituem a lógica da linguagem do cinema.

gem linear, para constituir uma narrativa clássica. Porém esse não é o modo discursivo predominante no vídeo. Nos anos 70 o cinema passa a incorporar alguns dos recursos tecnológicos da imagem eletrônica, promovendo uma hibridização de meios. Nos anos 80 alguns cineastas passam a usar deliberadamente alguns recursos de linguagem próprios do vídeo, definindo uma mudança estética marcante. (DUBOIS, 2004, p.145) Mais para o final do milênio uma nova transformação se opera nos meios audiovisuais, que se acentua no sec. XXI. A tecnologia digital borra os limites bem determinados entre os diversos meios de representação, que transbordam e rompem suas fronteiras, permitindo um trânsito entre os diversos meios de representação e expressão da imagem. Se as mudanças trazidas pela incorporação dos recursos eletrônicos no cinema analógico trouxeram novas formas para a produção de significados na imagem bem como uma mudança de linguagem daí decorrente, a incorporação dos novos meios digitais alargou dramaticamente os limites deste potencial. A possibilidade, proporcionada pelas tecnologias computacionais, de traduzir em dados numéricos todo tipo de mídia, acarretou uma revolução que afetou as co-

Vera B ungarten

forma como no cinema clássico, obedecendo às mesmas convenções de plano e monta-

Philippe Dubois aponta que nada impede que se proceda no vídeo da mesma

“D e Volta”

lidade dos recursos que esse meio oferece, o vídeo agrega possibilidades de criação de

estratégias de lançamento para

acentuam cada vez mais essa condição.

TV? Novas

particular. Esse fenômeno da tela “pessoal e privada” condiciona a via da individuali-

ou

de um lugar público e coletivo - a sala de projeção - a televisão oferece um espetáculo

Internet

A tela da televisão promove uma profunda ruptura com o cinema, já que ofe-

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municações em todos os níveis, desde a captação e a manipulação até a distribuição, abrangendo todos os meios: textual, imagético e sonoro. O gerenciamento por recurmeios trouxeram um novo potencial de produção e troca de informações e significados, produzindo um profundo impacto no desenvolvimento da sociedade e da cultura contemporâneas. Ainda nos encontramos no meio deste turbilhão de mudanças, e é difícil

jetórias históricas separadas: por um lado o desenvolvimento de um sistema de computação digital complexo a partir das primeiras máquinas analíticas e, por outro, o surgimento de uma moderna tecnologia de produção e reprodução de mídia visual, sonora e textual. A síntese destas duas resulta na possibilidade de traduzir toda mídia existente em dados numéricos acessíveis ao computador, proporcionando com isso o gerenciamento de gráficos, imagens, sons e textos por meios computacionais. (MANOVICH, 2008, p.44) O surgimento da cultura da computadorização não só levou à criação de novos produtos como jogos de computador ou realidade virtual, mas também passou a redefinir os antigos meios de representação e comunicação como a fotografia e o cinema. Para Manovich, o deslocamento de toda a nossa cultura para formas de produção, distribuição e comunicação mediadas por computador acarretou uma revolução mais profunda do que a invenção da imprensa no sec. XV e da fotografia no sec. XIX, já que a revolução da nova mídia afeta todos os estágios da comunicação e abrange todos os meios. (MANOVICH, 2008, p.43). Segundo ele, estamos apenas começando a sentir os efeitos iniciais desta revolução. Em que medida os novos meios e a imagem numérica acarretam ou não uma ruptura radical na linguagem do audiovisual, instaurando uma mudança de paradigma no significado das imagens? Philip Rosen afirma que há uma associação permanente da proposta digital com o universo das imagens analógicas, não apenas na nomenclatura, mas também nos aparatos destinados a produzir as imagens digitais. Assim temos a câmera digital, “... que não exclui nenhuma das operações próprias de uma câmera analógica, utilizando até mesmo uma objetiva para captar a luz.” (ROSEN, 2001, p.308). O produto resultante tem uma aparência similar à fotografia analógica, mesmo que apresente uma trama de pixels no lugar da imagem fotoquímica. Trata-se assim de uma simulação: a imagem digital simula a fotografia analógica, a câmera simula uma forma tradicional de captar imagens. Rosen chama a capacidade do digital em imitar as formas convencionais de

4 - n. 1

Segundo Lev Manovich, as novas mídias advêm da convergência de duas tra-

ano

avaliar o real impacto causado por estes meios.

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sos computacionais dos meios de representação tradicionais e o surgimento de novos

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composição de imagem de “mimetismo digital”. Esse mimetismo pode ser observado no cinema, quando imagens criadas em computador tornam-se descritivas, assumindo metiza instrumentos de captação de imagens previamente conhecidos.

dor imitam as propriedades óticas conhecidas dos filmes convencionais. A composição imaginárias, que podem ser iluminadas usando as mesmas técnicas que o diretor de fotografia usaria” (Rosen, 2001, p.312), reproduzindo assim técnicas que todo filme de animação convencional já usava. A adoção de códigos e convenções familiares e a tradução de qualquer novo meio de representação para uma linguagem conhecida é própria da sociedade humana e faz parte da história da cultura. Assim, o cinema baseia-se inicialmente em determinados códigos próprios do teatro, e só com o tempo cria a sua própria linguagem. Essa imagem em movimento. Portanto não é de se admirar que os novos meios representacionais baseados em computador adotem alguns dos princípios de construção conso-

culturais acessíveis ao usuário do computador, transformando o cinema, como verifica Manovich, no “esperanto visual” preconizado por Griffith e Vertov. (MANOVICH, 2002, p.87). Alguns legados foram deixados pela representação pictorial da cultura ocidental, que foram adotados pelo cinema e se estenderam à cultura do computador. Um deles é a perspectiva renascentista, como código de percepção do espaço representado numa superfície plana, como já apontou Rosen. A outra é a delimitação da cena pela moldura, instituindo o quadro como recorte de uma realidade que se estende para além daquela representada. A parte visível pressupõe uma continuação da cena, num espaço que constitui o fora de quadro. O quadro retangular, horizontalmente orientado, característico do cinema, é preservado em todos os meios audiovisuais gerados e divulgados por meios computacionais. A semelhança com a construção cinematográfica passou a constituir um atestado de qualidade para as imagens em movimento criadas em computador. Assim, nas palavras de Manovich, “o cinema, a forma cultural mais importante do século vinte, encontrou nova vida como caixa de ferramentas para o usuário de computador.” (MA-

Vera B ungarten

narrar uma história, de ligar uma experiência à seguinte, forma a base dos produtos

lidados pelo o cinema. O modo cinemático de ver o mundo, de estruturar o tempo, de

“D e Volta”

linguagem, por seu turno, tornou-se o referencial preponderante na representação da

estratégias de lançamento para

digital recorre à “criação de movimentos de câmera sintéticos, através de paisagens

TV? Novas

e bem conhecidos. Os filmes realizados com imagens totalmente criadas em computa-

ou

A representação digital inscreve-se em códigos culturalmente convencionados

Internet

formas de uma verossimilhança pictorial. Para realizar estas simulações, o digital mi-

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NOVICH, 2002, p.89). A abrangência dos recursos e o acesso que usuários de praticamente qualquer das imagens em nível global, desencadearam de fato uma revolução sem precedentes na sociedade pós-moderna. Ao contrário do individualismo que caracteriza a apreciação na telinha da TV,

estabelecer, mesmo fragmentada em tempo e espaço. O público tende a se multiplicar através da replicação exponencial e da propagação através de comentários e debates. Pois o indivíduo que recebe a imagem por esse meio não é mais um mero espectador passivo: ele vê, curte, divulga, comenta. Além disso, produz ele mesmo um conteúdo imagético, que é facilmente tornado público e propagado rapidamente pela rede. Estratégias pouco convencionais de lançamentos de filmes têm sido vistas nos últimos anos. Alguns longa-metragens de ficção, destinados ao circuito das salas de cinema, foram exibidos na telinha da TV antes do lançamento nos cinemas. O que pode parecer um paradoxo resulta numa maior divulgação, atraindo um público ainda mais numeroso. Agora há um deslocamento: o ineditismo salta da telinha da TV, agora representante do código convencional, para a internet. O documentário concebido para ser exibido na grade da programação na televisão tem a sua estreia no site do Canal Futura, que durante os quatro dias anteriores exibe apenas a chamada para o filme. Esse site obviamente conta com redes sociais como Facebook e Twitter. Ao lançar o documentário na rede um mês antes de exibi-lo na sua programação na TV, investe nesse potencial de disseminação, apostando no potencial próprio do meio para aguçar a curiosidade e o interesse de mais e mais indivíduos, na intenção de que esses também irão assistir ao filme na televisão. O propósito do Canal Futura, como parte integrante de uma fundação, não é comercializar o documentário. O objetivo aqui é mobilizar a opinião pública em relação às questões tratadas no filme. Nesse ponto torna-se necessário jogar uma luz no documentário e verificar o que torna a sua abordagem tão singular. Em primeiro lugar, o que está em foco no filme é o ser humano, múltiplo por natureza, que não pode ser designado por um rótulo apenas: o de presidiário. O documentário deixa claro que o seu personagem, foco do seu tema, não é apenas um indivíduo privado da liberdade por ter cometido um crime, mas um sujeito com vários

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compartilhado com um universo potencialmente ilimitado. A coletividade volta a se

ano

o consumo das imagens nas telas de um computador, tablet ou celular é novamente

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classe social a eles, somados à facilidade e velocidade na distribuição sem restrições

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papéis na sociedade; que é também pai, marido, filho, que possui um hobby ou pratica algum esporte, que tem (ou teve) uma profissão. balho, do lazer e do sagrado, com passagens por vezes quase imperceptíveis. Vivem

Mas essas fronteiras podem se tornar bastante tênues. Velho chama isso de potencial de divíduos mantêm, em geral, uma identidade vinculada a grupos de referência, mesmo nas passagens e no trânsito entre domínios e experiências mais diferenciadas. Assim, na sociedade complexa, a coexistência de diferentes mundos constitui sua própria dinâmica. (VELHO, 1994, p.27). Porém o detento (ou ex-detento) dificilmente escapa do rótulo estigmatizante, já que a sociedade o olha com desconfiança e preconceito. Anderson, um dos personagens do filme, hesita em sair do seu estrito círculo familiar para participar de uma festa pessoas diante da sua condição. Os grupos sociais alienam o preso e o ignoram, numa atitude que pode ser

dade moderna como ponto de interseção de vários mundos. Com o conceito atitude blasé definiu a alienação ou defesa do indivíduo diante da impossibilidade de lidar com o mundo do outro. Segundo ele, a estimulação constante a que estão expostas as pessoas numa metrópole faz com que passem a não reagir a muitos destes estímulos. Desenvolvem um agir intelectualizado, distanciado, de observar as coisas ao seu redor, como forma de se proteger da sobrecarga de solicitações. Porém o resultado é que com isso tudo à sua volta é reduzido a um sentimento generalizado de indiferença, de inutilidade. Perdem-se, dessa forma, sentimentos como compaixão, solidariedade, humanidade. (SIMMEL, 1903, s/n) Outra singularidade do documentário está na assumida falta de isenção: não se trata, de forma alguma, de uma análise social ou antropológica neutra. Ao propor a imersão de cada equipe no círculo familiar dos respectivos personagens que foram acompanhados na saída temporária, o filme assume uma interferência flagrante do observador sobre as reações do observado. A postura distanciada é impossível. A presença da equipe não apenas influencia as atitudes e o comportamento dos personagens, como estimula ações e desencadeia pensamentos que se revelam nas falas. Como houve

Vera B ungarten

ainda surpreendentemente atual. Simmel caracteriza a situação do indivíduo na socie-

considerada blasé, dentro de um conceito apresentado por Georg Simmel em 1903, mas

“D e Volta”

em casa de desconhecidos - a família do namorado da mãe. Ele teme a atitude dessas

estratégias de lançamento para

metamorfose. Mesmo com uma capacidade maior ou menor de se metamorfosear, os in-

TV? Novas

p.26). Um agente social normalmente se move entre as províncias de significado, diz ele.

ou

múltiplos papéis em função dos diferentes planos em que se movem. (VELHO, 1994,

Internet

Gilberto Velho afirma que os indivíduos transitam entre os domínios do tra-

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um acordo prévio, cada um dos personagens começa a se expressar verbalmente, atendendo à demanda do diretor. Mas esse discurso acaba desencadeando uma reflexão lise e já não está mais voltada para o filme, apenas. Algumas passagens de extrema emoção brotam dessa circunstância. Como no momento em que Leandro fala, olhando diretamente para a câmera, sobre a experiên-

marejados: “acordar meu filho com um beijo.. ainda não tinha pensado nisso ... caramba, é... acordar meu filho com um beijo!” Midiã consegue declarar os seus ressentimentos em relação ao pai, por quem se sente abandonada. Anderson busca contato com a filha e se entristece diante da atitude evasiva das irmãs que criam a menina. E Sonia se depara com a decadência dos filhos adolescentes, o abandono da casa, a acolhida pouco afetuosa da irmã e do cunhado, e busca consolo no amor da mãe. Aos poucos a equipe, com a mediação da câmera, se torna cúmplice e compartilha emoções. Fica claro que os projetos pessoais estão desmantelados, suspensos, ou pior, não há mais projetos. O futuro, por enquanto, é voltar - para a cadeia. Os discursos sobre o depois são abstratos, como “vou sair uma pessoa melhor”. Gilberto Velho se refere aos projetos individuais mediados pelas alternativas construídas no processo sócio-histórico, que representam o quadro dos campos de possibilidades. Estabelece as características que determinam as premissas em que o indivíduo concebe seus projetos. O Projeto Individual se associa não só a uma visão de mundo, em que a biografia é essencial, mas também a um estilo de vida, uma organização das emoções, em que a experiência individual é foco e referência básica. Os projetos são elaborados e construídos em função de experiências socioculturais, de um código, de vivências e interações interpretadas. Porém o projeto não é um fenômeno puramente interno, subjetivo. É formulado e elaborado dentro de um campo de possibilidades, circunscrito histórica e culturalmente, tanto em termos da própria noção do indivíduo, como dos temas, prioridades e paradigmas culturais existentes. (VELHO, 1981, p.27). O sujeito que fica recluso, desconectado dos seus grupos de referência - família, colegas de trabalho e de lazer, torna-se inseguro, perde seus pontos de apoio. A sociedade o rejeita, o seu campo de possibilidades fica limitado. Soares descreve os quatro, que “caminham e falam, mas não saem do lugar, mudos. As biografias estão, irremediavelmente, embalsamadas.” Eles caminham para trás. O momento presente está atrelado ao passado, preso nas lembranças, no resgate da memória. O futuro além do presídio parece distante e indeterminado: “Sempre de costas para o futuro, aquele

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e de manhã acordar o filho com um beijo. De repente ele se emociona, os olhos ficam

ano

cia de passar o dia e a noite em casa, poder levantar no meio da noite e ir à geladeira,

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profunda sobre a complexidade da situação, a fala adquire uma conotação de autoaná-

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ponto obscuro, distante, fugidio, que o olhar emparedado divisa e perde, na oscilação de expectativas remotas.” (SOARES, 2013, s/n). mento, compondo-se com o que se apresenta aos olhos e ouvidos da câmera e dos mi-

perimentaram transformações e reformularam sua maneira de pensar, como se pôde Dessa forma o filme traz resultados e consequências que vão além da obra cinematográfica propriamente dita. Para compartilhar esse sentimento que transparece na obra e levar à reflexão crítica o maior número possível de espectadores, a emissora decidiu adotar portanto, uma nova forma de lançamento. Esse foi divulgado da forma mais ampla possível, visando aguçar a curiosidade do público. O lucro esperado não é de ordem financeira. A aposta visa um lucro social pela tomada de conhecimento e por um maior engajamento da sociedade nessa questão pricom um rótulo único, como um número inserido na estatística, mas que o mostra em toda complexidade da sua dimensão humana. É possível estabelecer identificações com

O que se percebe na contemporaneidade, portanto, é não apenas um deslocamento entre os meios de veiculação considerados os mais adequados para a obra audiovisual, mas um transito livre e aleatório entre esses meios. O filme pode estar simultaneamente ou consecutivamente na tela grande do cinema, na telinha da TV, nas telas do computador. Os exemplos são variados: O clássico filme mudo, antes considerado raridade, pode ser encontrado no Youtube. Alguns longa-metragens de ficção ou documentários, realizados com ou sem pretensões comerciais, estão disponíveis para download (legal) gratuito, na internet. O filme destinado à exibição no circuito de salas de cinema pode ser visto antes na telinha da TV. Cada produto que busca contato com o seu público-alvo determina em si o meio (ou os meios) mais adequado para o lançamento e a veiculação. De acordo com os objetivos focados, será eleito o leque que irá trazer a maior repercussão junto ao público. No caso do documentário “De Volta”, houve uma inovação no procedimento padrão, com o intuito inicial de chamar atenção. Essa opção tira proveito da propagação própria nesse meio, do alastramento que assume vida própria, fugindo de qual-

Vera B ungarten

da história de vida.

esse personagem, encontrar traços em comum nas diversas facetas da emoção, do afeto,

“D e Volta”

sional, resultante da reflexão sobre uma imagem que apresenta o detento não apenas

estratégias de lançamento para

depreender de declarações posteriores.

TV? Novas

ninguém saiu dessa vivência como entrou. Equipe, personagens e familiares, todos ex-

ou

crofones e dos seres humanos ali envolvidos. Terminado o trabalho verificou-se que

Internet

Finalmente, é possível afirmar que o filme se construiu ao sabor de cada mo-

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quer controle possível. O que em outras situações pode se apresentar como aspecto ameaçador, neste caso serve muito bem aos propósitos esperados: espraiar ao máximo te, indigno e ineficaz sistema prisional no Brasil. E lembrar a todos que estas pessoas, além de prisioneiros que infringiram a lei, são seres humanos, complexos como somos todos nós.

DUBOIS, Philippe. Cinema, vídeo, Godard. São Paulo: Cosac Naify, 2004. LIPOVETZKI, Gilles. L’écran global. Paris: Éditions de Seuil, 2007. MANOVICH, Lev. The language of new media. Cambridge: MIT Press, 2002 ROSEN, Philip. Change mummified – cinema, historicity, theory. University of Minnesota SIMMEL, Georg. Die Grosstädte und das Geistesleben, Dresden: Petermann Verlag, 1903 SOARES, Luiz Eduardo. Luiz Eduardo Soares, especialista em segurança pública, fala sobre ‘de Volta’. acessível em: <http://www.futura.org.br/blog/2013/04/17/ critica-luiz-eduardo-soares-especialista-em-seguranca-publica-fala-sobre-de-volta/> VELHO, Gilberto. Individualismo e Cultura. Notas para uma Antropologia da Sociedade Contemporânea. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981. VELHO, Gilberto. Projeto e Metamorfose, Antropologia das Sociedades Complexas. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1994. Filme Documentário “DE VOLTA”. Produção Canal Futura e COOPAS Multimagem. Direção geral Rafael Figueiredo. 2013. acessível em: <http://www.futura.org.br/blog/2013/04/17/ de-volta-acompanha-a-liberdade-temporaria-de-presidiarios-no-rio-de-janeiro/>

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Referências

ano

De costas, em contagem regressiva, de volta ao buraco entulhado de fotos, cartas e cinzas, imitando o destino irreversível de nós todos. Luiz Eduardo Soares

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esse olhar envolvido e envolvente, e estimular uma reflexão crítica sobre o deforman-

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Webséries:

narrativas

seriadas em ambientes virtuais D aniela Zanetti Doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professora do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). E-mail: daniela.zanetti@gmail.com

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ano

4 - n . 1 | p. 69 - 88


Resumo O artigo trata do processo de migração de conteúdos audiovisuais da televisão para a Internet a partir do estudo das webséries, que mantém da tradição das teleficções as narrativas fragmentadas. Apresenta breves análises de algumas webséries brasileiras, tentando mapear elementos de similaridade e de distinção entre as séries feitas para ambientes virtuais e aquelas produzidas para a televisão, além de apontar contribuições teóricas e metodológicas pertinentes a esses novos produtos midiáticos. Palavras-Chave: websérie, teleficção, narrativa seriada.

Abstract The article discusses the migration process of audiovisual content from television to the Internet, with the study of the webseries, which maintains fragmented narratives from the tradition of the television. The article presents analysis of some Brazilian webseries, trying to map elements of similarity and distinction between sets made for virtual environments and those produced for television, while pointing out relevant theoretical and methodological contributions to these new media products. Keywords: webseries, fictional TV, serial narratives.


1. Introdução

A

migração de produtos audiovisuais da TV para o computador, bem como o surgimento de novos formatos específicos para a Web, tem promovido mudanças no modo de circulação e consumo de conteúdo audiovisual, mas tam-

bém tem afetado sensivelmente a dimensão das narrativas, resultando, por exemplo, no aparecimento de gêneros híbridos, decorrentes, em certa medida, da convergência das mídias. Vídeos caseiros e amadores, vídeos publicitários, curtas e longas metragens, vinhetas, traillers de filmes, videoclipes, fragmentos de programas televisivos, progra-

mas específicos para WebTV’s estão entre os produtos que compõem a ampla oferta de conteúdo audiovisual na rede. Um produto audiovisual que surge nesse contexto são as webséries, que mantém da tradição audiovisual as narrativas seriadas, fracionadas, ou seja, histórias que mantém uma certa continuidade narrativa, contadas através de capítulos e episódios. Em busca de parâmetros para se compreender a migração das narrativas seriadas da TV para a Web, e os elementos que diferenciam as webséries das séries (ou seriados) tradicionais, o artigo traz um mapeamento desses materiais feitos no Brasil, apresentando algumas análises, na tentativa de também identificar contribuições teóricas e metodológicas pertinentes a esses novos produtos midiáticos. Partindo do pressuposto de que as narrativas seriadas na Web seguem parâmetros similares aos produtos de teleficção, o estudo das obras tem como base os apontamentos de Machado (2005), Pallottini (1998), Calabrese (1988) e Casetti e Di Chio (1999). No que se refere à relação entre as mídias envolvidas no desenvolvimento de webséries (TV e computador), recorre-se aos conceitos de: i) remediação (BOLTER E GRUSIN, 2000), considerando que se trata de um produto novo, que surge a partir do computador e da Internet, mas que mantém aspectos de mídias anteriores; e ii) convergência (JENKINS, 2008; CANNITO, 2010), para se entender o contexto produtivo dessas obras, e como funcionam as estratégias de criação, exibição, circulação e consumo desse tipo de produto na Web.


2. A narrativa seriada

tagma televisual (MACHADO, 2005). Antes da TV, porém, as formas de narrativa seriada de caráter massivo já se encontravam na técnica do folhetim, no radiodrama ou radionovela, e nas obras seriadas produzidas para o cinema no início do século passado.

e temporadas – e o desenvolvimento de novas obras, com mais ou menos variações. Inserida também dentro da grade de programação televisual, frequentemente, esta é composta por blocos, intercalados por breaks comerciais, esses blocos possuem durações variadas de acordo com os modelos dos canais aos quais essas narrativas estão vinculadas. Os elementos de conexão entre os breaks e os blocos são os ganchos – ferramenta narrativa que visa a manutenção do interesse do espectador na obra, seja no final do episódio, entre blocos, ou até menos na passagem entre temporadas – e flashbacks – que ajuda a situar o telespectador na narrativa, trazendo informações do bloco ou do episódio anterior, construindo uma breve síntese. Essa forma descontínua e fragmentada televisual é chamada por Machado (2005) de serialidade, onde o enredo é geralmente estruturado sob a forma de capítulos ou episódios que, reunidos, constituem uma temporada (do inglês seasons). Consideremos as webséries como produtos próprios do ambiente virtual, mas que guarda semelhanças com as séries e seriados de TV, cujos episódios, em geral, são exibidos semanalmente. O primeiro episódio de uma série encerra uma história completa, com início, meio e fim, mas sempre atrelado ao corpo da ficção maior. Por isso, possui relativa unidade e integridade. Para agradar o público de tal maneira que desperte no espectador o desejo de acompanhar o desenrolar da história, deve apresentar os personagens principais e suas características básicas por meio de ações, além do conflito central que dará impulso à trama. Em geral, há um objetivo básico que unifica o seriado e que configura a cosmovisão da obra (PALLOTTINI, 1998). Com relação à construção dos personagens, o protagonista normalmente é proposto logo no primeiro episódio. “Os episódios seguintes, numa estrutura global épica, mostrarão momentos da vida desse protagonista, dentro da trajetória que se propôs seguir” (1989, p.156). Machado (2005) categoriza as narrativas seriadas televisuais em três tipos. O primeiro é constituído por uma única narrativa (ou várias entrelaçadas e paralelas) que se alterna(m) de uma forma quase linear ao decorrer dos capítulos. Os teledramas, telenovelas e algumas séries e minisséries são exemplos desta forma de serialidade teleológica, pois ele se resume fundamentalmente num (ou mais) conflito(s) básico(s),

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que possibilitam a continuidade de certos produtos – através de capítulos, episódios

ano

A serialização faz parte da estética audiovisual contemporânea, contendo elementos

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A serialidade se constitui na apresentação descontínua e fragmentada do sin-

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que propõe inicialmente desequilíbrio estrutural, e toda evolução dos acontecimentos consiste num empenho em restabelecer o equilíbrio perdido. Esse objetivo, em geral, é do autônomos, onde cada um destes apresenta um começo, meio e fim, e o que irá se nas em situações diferentes. Não existe necessariamente uma relação entre as histórias de cada episódio. O terceiro exemplo de serialização traz como principal característica um único aspecto que se preserva nos vários episódios, como, por exemplo, uma temática, podendo variar os personagens, atores, cenários e até roteiristas e diretores. Cada um dos quadros é similar aos chamados unitários, episódios que trazem uma história com início, meio e fim, “que esgota sua proposição na unidade e nela se encerra” (PALLOTTINI, 1998, p.25). O que torna esses unitários uma espécie de seriado são elementos em comum: alguns personagens fixos, uma temática, um formato ou gênero similar, ou mesmo uma proposta estética com base autoral. Um exemplo desse formato na Web é o canal Portas dos Fundos1, lançado em 2012 por um grupo de atores (além de outros

dos atores que compõem o núcleo e se revezam nos episódios, o humor é o principal elemento agregador dos unitários. O formato também é similar: esquetes com ações que se passam em geral num único espaço e tempo, retratando eventos cotidianos, por vezes com diálogos inusitados e situações surreais. O humor sarcástico, característico das comédias stand-up, transforma eventos do cotidiano em cenas absurdas ou extremamente exageradas. Uma pequena vinheta com a logomarca do programa, seguida de uma cena que funciona como um “posfácio”, finalizam a esquete. No lado esquerdo da tela, durante essa cena final, surgem janelas pequenas que são hiperlinks para os outros episódios já exibidos. O canal também disponibiliza um “subcanal”, o Fundos da Porta, que contém erros de gravação dos episódios. No que se refere ao mercado de obras audiovisuais, a ideia de serialidade (ou serialização) vai de encontro ao conceito de estética da repetição que, segundo Calabrese, tem como princípios fundamentais as próprias concepções de “repetição”: a) modo de produção em série (estandartização); b) mecanismo estrutural de generalizações de textos; e c) condição de consumo por parte do público. As repetições, no caso

1 http://www.You Tube.com/user/portadosfundos 2 Os atores Fábio Porchat e Gregorio Duvivier são atores que estão entre os criadores do Porta dos Fundos.

D aniela Zanetti

dos vídeos é de 3 a 5 minutos em média e são postados duas vezes por semana. Além

profissionais da mídia) já reconhecidos na televisão, no cinema e no teatro2. A duração

narrativas seriadas em ambientes virtuais

repetir nos episódios seguintes serão apenas os mesmos protagonistas inseridos ape-

Webséries:

atingido nos capítulos finais. A segunda categoria é composta por uma história e enre-

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de narrativas teleficcionais, não são apenas relativas às continuações das aventuras, ações e dramas dos personagens, mas também aos recursos utilizados, como os temas relação estabelecida entre um texto e vários outros textos, entre o que se pode perceber como idêntico e aquilo que se pode perceber como diferente em produtos como filmes e seriados de TV, considerando a vasta combinação de variáveis icônicas, temáticas e

e as diferenciações. Eco (1989) ressalta que os processos de serialização sempre estiveram presentes na tradição da produção artística e que, diante das produções massivas contemporâneas, é preciso estar atento a um tipo de obra que, à primeira vista, não se assemelha a qualquer outra coisa. Para ele, o leitor acha que “desfruta da novidade da história enquanto, de fato, distrai-se seguindo um esquema narrativo constante e fica satisfeito ao encontrar um personagem conhecido, com seus tiques, suas frases feitas, suas técnicas para solucionar problemas” (ECO, 1989, p.123). O “retorno ao idêntico”, portanto, é um aspecto fundamental no processo de produção – e também de fruição – de uma produção seriada, o que resulta numa espécie de consolo, pois o espectador se sente confortável ao encontrar o já conhecido, ao saber como a trama será mais ou menos conduzida e como os conflitos serão resolvidos. Essa é também uma forma de manter o engajamento e a fidelidade do telespectador. Tendo como foco as estruturas narrativas, que tendem a ordenar o mundo por meio de um texto direcionado sobretudo a contar algo, toma-se como pressuposto que as obras em análise seguem um regime narrativo serial, e que o exame das estruturas narrativas de cada capítulo possibilita identificar uma forma de narrar geral (Casetti e Di Chio, 1999). 3. As webséries e o processo de migração do audiovisual O conceito de remediação postula que as mídias digitais emergem já inscritas num determinado contexto cultural, a partir do qual reelaboram outras mídias. Pensando numa genealogia de filiações para se pensar as mídias digitais, e não numa progressão linear, como propõem Bolter e Grusin (2000), o conceito de remediação traz a ideia de renovação e reabilitação de outras mídias. Desse modo, o que é novo em relação às novas mídias são os modos específicos pelos quais elas renovam as mídias tradicionais e os modos pelos quais as mídias mais antigas renovam a si mesmas para

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rar o nível – discursivo, narrativo ou fundamental – no qual se instituem as repetições

ano

narrativas que tornam os produtos diferentes entre si. Outro parâmetro seria conside-

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e as ambientações. Um dos parâmetros relativos ao conceito de repetição diz respeito à

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responder aos desafios impostos pelos dispositivos tecnológicos mais recentes. O fato do computador apresentar uma interface ao mesmo tempo automática e interativa, por o que, de certo como, promove novos modelos de interação entre sujeito e máquina. Isso fica evidente ao perceber como as palavras “interação” e “interatividade” se tornaram Um elemento específico do computador enquanto mídia é a webcam, dispositivo pequeno e de baixo custo para captação e exibição em tempo real de imagens, possibilitando que cada internauta “broadcast yourself”, como propõe o slogan do You Tube. Ferramenta aparentemente frívola, caracteriza de modo singular a linguagem das narrativas no ciberespaço. É pela webcam que eventos do cotidiano e de âmbito privado podem ser monitorados, acompanhados e compartilhados de modo contínuo, sendo que a interação, em geral, é conduzida de modo individual e personalizado. A webcam evidencia de modo bastante contundente a especificidade do computador como mídia ao mesmo tempo individual e coletiva. Para além da função de monitoramento/vigi-

seu dispositivo não deixa evidente os aparatos “da máquina” que permeiam as interações entre os internautas. A ideia de proximidade e de privacidade associada à webcam constitui um elemento narrativo eficaz na websérie #E_VC?, ao possibilitar que os protagonistas “se dirijam” ao público quando estão refletindo sobre suas questões pessoais junto ao computador. Mesmo a expressão “#E_VC?”, representando uma “linguagem própria” da Web, também pressupõe uma “interação mediada por computador” (Primo, 2007) já incorporada à trama, como será visto adiante. Como “nova mídia”, o computador conectado à Internet também gera conteúdo próprio e distinto das mídias anteriores, como é o caso das webséries – muito embora, como pressupõe os processos de remediação, aspectos das mídias tradicionais sejam incorporados. Ainda que o suporte de veiculação desse tipo de conteúdo seja a Web, sendo acessível através de uma interface gráfica, trata-se de uma obra elaborada para ser assistida numa tela, mesmo que de forma “não massiva”, e não atrelada a uma programação contínua, como estabelece a TV. Com relação à linguagem, a websérie recorre a estratégias já familiares de construção narrativa televisual. A websérie se caracteriza como sendo um produto típico da Internet. Decorre do processo de “migração” do audiovisual para o computador, que pode ter se iniciado quando, ainda em 1991, foi lançado pela Apple o primeiro programa de computador para reprodução de imagens em movimento, o QuickTime, que permitia a apresentação

D aniela Zanetti

que coloca em evidência o internauta. Parece operar sob a lógica da transparência, pois

lância, a webcam determina também uma nova estética e a constituição de um discurso

narrativas seriadas em ambientes virtuais

tão presentes no discurso midiático.

Webséries:

exemplo, já introduz aspectos que redimensionam as relações entre o público e a mídia,

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de breves imagens em movimento e com visualização privada (MANOVICH, 2005). Neste momento, o computador passa a funcionar como exibidor/projetor. Apesar de de modo generalizado, uma ampla rede de Internet e uma banda larga que permitisse a disponibilização de vídeos em streaming, tecnologia frequentemente utilizada para distribuição de conteúdo multimídia. Nesse processo, conteúdos característicos da TV

Por outro lado, também surgem produtos próprios dos ambientes virtuais e das linguagens digitais. O webvídeo é um deles. Para Killp e Fischer (2010), o webvídeo não seria um tipo de material audiovisual remidiado – ou seja, que é adaptado de uma mídia para outra –, mas se trata de um “formato audiovisual em particular, navegável e lúdico, interativo e emergente, que já vem se constituindo no processo da convergência, e se encontra como potência em muitos vídeos já disponíveis na web” (2010:38). Todavia, ainda perduram nesse contexto as referências tradicionais, analógicas, e as narrativas textuais anteriores ao hipertexto, pois as audiovisualidades digitais estão ainda sendo inventadas, em vários aspectos: gramaticais, estéticos e com relação aos modos como emissão e recepção atuam. “Há muito de analógico no que se vê, ou de analógico-digital. A começar pelos players, que mimetizam os antigos videocassetes e DVD players” (2010:37), corroborando com a ideia de que “cada época lida com a tecnologia mais recente recorrendo às representações mentais de coisas mais antigas e mais familiares” (JOHNSON, 2001). Na rede, é possível observar uma série de produtos e “serviços” audiovisuais, dentre eles: i) plataformas de disponibilização, exibição e compartilhamento de obras audiovisuais em sites nos quais tanto empresas produtoras como amadores têm a possibilidade de fazer circular seus produtos (You Tube, Vimeo, My Space); ii) sites pertencentes a serviços de distribuição e/ou produção de conteúdo audiovisual vinculado a grandes empresas de mídia, entretenimento e mesmo da área de telefonia; iii) WebTV’s; iv) sites que funcionam como canais, atuando como filtros ao agregar e organizar conteúdo específico, como curtas-metragens, videoclipes ou vídeos temáticos; entre outros (KILLP E FISCHER, 2010). O audiovisual já deixou de estar atrelado somente ao controle exclusivo das grandes empresas de comunicação, espalhando-se pelas novas mídias e sendo utilizado por amadores e profissionais. Criaram-se importantes nichos que vêm sendo disputados acirradamente por diferentes setores relacionados à produção, distribuição e disposição de recursos para consumo e realização audiovisual. Considerando as especificidades do audiovisual na Web, é possível caracterizar

4 - n. 1

sumo de conteúdos audiovisuais na Web.

ano

tiveram que se adaptar às pequenas telas do computador e às diferentes formas de con-

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datar de 1995 a primeira websérie, deve-se considerar, contudo, que ainda não havia,

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alguns sítios que já se tornaram referência no que tange à disponibilização de vídeos on line, como o You Tube (maior canal de compartilhamento de vídeos na Internet) e o de funcionamento distintos. O primeiro se aproxima da lógica das redes virtuais e se apropria mais das ferramentas de interatividade, pois o You Tube funciona como uma suas contas com seus vídeos preferidos, podendo ainda compartilhá-los. O allTV, por sua vez, é uma WebTV, mantendo similaridades com o padrão de televisão convencional. Como afirma Cannito (2010), “em vez de produzir, o You Tube optou por ajudar o usuário a exibir vídeos próprios” (2010, p.97), contando, para isso, com uma interface extremamente simples, acessível a qualquer internauta. Para o autor, o modelo adotado pelo You Tube traz uma inovação que se contrapõe a exemplos de televisão na web que não foram tão bem sucedidos justamente porque tentaram reproduzir na web a programação tradicional de televisão, tendo como diferencial apenas as ferramentas de interatividade. A allTV optou por levar a experiência da televisão tradicional à Web, pois

transmissão ininterrupta durante 24 horas, mesclando informação e entretenimento. A interatividade foi sua principal novidade, uma vez que o telespectador foi substituído pela figura do usuário/internauta. De todo modo, os dois modelos, ao oferecerem múltiplas opções para o consumo de materiais audiovisuais, demonstram total aderência ao chamado mercado de nichos, característica de uma sociedade de consumo que não mais se sustenta apenas num mercado de massa, mas que cada vez mais se caracteriza pela segmentação dos públicos e pelo valor associado aos bens e serviços com alvos estreitos. Considerando a ampliação desse mercado, Anderson (2006) afirma que o impulso da demanda pelos produtos do nicho tem se dado a partir das ferramentas de compartilhamento de informações na rede, como ocorre com as webséries. O You Tube, por exemplo, dispõe todos os vídeos simultaneamente, como numa prateleira, aproveitando a capacidade quase infinita da internet de armazenar dados, ao invés de investir em poucos sucessos de “audiência de massa”. Assim, consegue alcançar pequenas audiências (CANNITO, 2010). Esse fenômeno vai de encontro ao que diz La Ferla (2009) sobre os novos modos de consumo audiovisual, marcados pela “hiper presença do processamento, transmissão e consumo de dados”. Segundo o autor, o que ocorre é uma individualização do espetáculo coletivo por meio das interfaces pessoais, que seriam a “essência do novo entretenimento baseado na transmissão virtual e numa pequena unidade que concentra

D aniela Zanetti

oferecido por usuários amadores. A allTV foi criada em 2002 com a proposta de realizar

oferece programação em fluxo contínuo e com conteúdo próprio, profissional, e não

narrativas seriadas em ambientes virtuais

rede social ao permitir que os usuários tenham um login e uma senha e personalizem

Webséries:

allTV (primeiro canal brasileiro de TV on line). Ambos possuem estruturas e modos

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diversos dispositivos: computador, GPS, telefone, fotografia, vídeo e tela”. (LA FERLA, 2009, p.172). adequaram de forma bem sucedida aos ambientes virtuais foi o videoclipe (NERCOLINI; HOLZBAC, 2009). Funcionando como ferramenta promocional e associado às estratégias de marketing das grandes gravadoras, também foi um dos primeiros for-

senvolvido tanto por profissionais recém-chegados ao campo audiovisual, quase sempre vinculados a produtoras independentes, quanto por instituições já reconhecidas no campo, como as grandes corporações midiáticas. Exemplos disso são as campanhas publicitárias desenvolvidas sob a forma de webséries ou conteúdos complementares aos programas de canais de TV de grande audiência, como parte de ações transmídia. No primeiro caso, um exemplo é a websérie Brahma - Imagina o Carnaval, Imagina a Festa, de quatro episódios, com a humorista Tatá Werneck, veiculada no canal da cerveja Brahma no You Tube3. No segundo, exemplos das chamadas ações transmídia empreendidas pela TV Globo foram a realização de uma websérie documental para a novela Amor Eterno Amor (2012), compondo uma narrativa complementar à trama da TV, e a utilização da Internet de maneira sistemática durante a novela Cheias de Charme (2012). Entre as estratégias utilizadas está o lançamento e a viralização do videoclipe Vida de Empreguete nas redes sociais, inicialmente postado no portal Globo.com, e o lançamento de um concurso de paródias do mesmo videoclipe no blog de um dos personagens da trama (CASTRO, 2012). Uma websérie é uma narrativa audiovisual de qualquer gênero produzida exclusivamente para a Internet, dividida em episódios (os chamados “websódios”, websodes em inglês), cada um com tempo de duração variável (em geral, de um a dez minutos), e apresentados com um certa periodicidade (quase sempre semanal). Webséries podem ser distribuídas diretamente pelos próprios produtores/criadores em sites de disponibilização de vídeos, como You Tube ou Vimeo, e utiliza estratégias narrativas já consolidadas nas séries televisivos, mas incorporando os recursos de “interatividade” dessas plataformas. Além dos registros de visualizações e “curtidas”, os comentários e os compartilhamentos, a participação ativa do público se efetiva através das comunidades de fãs que, ao interagirem entre si, muitas vezes contribuem para a construção das narrativas. Os consumidores registrados nas comunidades virtuais das séries em geral possuem vantagens, como assistir novos episódios e traillers, ou acessar conteúdo 3 http://www.You Tube.com/user/CervejaBrahmaOficial. Acesso em 11 de fevereiro de 2013.

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trabalhos na Web. Do mesmo modo, a websérie surge como um tipo de conteúdo de-

ano

matos audiovisuais a ser utilizado por artistas independentes para divulgação de seus

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Um dos primeiros produtos típicos da televisão a migrarem para a Web e se

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exclusivo (ROMERO; CENTELLAS, 2008). Geralmente, uma websérie possui um site ou blog e um perfil em redes sociais como o Facebook, que reúnem notícias e informações Diferentemente do conteúdo mais amador que popularizou o You Tube, as webséries são desenvolvidas por realizadores já com alguma experiência no campo simplicidade das webcams possibilitou a efetivação dos gêneros confessionais na Web (SIBILIA, 2008) – como os vlogs, fotologs, vídeos caseiros –, caracterizados por uma estética amadora e basicamente associado à figura do internauta como personagem de si mesmo. Os vlogs seriam uma espécie de evolução audiovisual dos blogs, que permite aos internautas publicizarem suas opiniões em forma de vídeo, com exibição por meio de um canal próprio em geral no You Tube. Alguns vlogs, por meio da figura de suas criadores (que se tornam personagens de si mesmos), ganharam destaque justamente por incorporarem, de modo criativo, aspectos característicos da televisão, como a utilização de roteiros pré-definidos, vinhetas de abertura, elaboração de cenários e uma

Mas para além desse gênero, é cada vez maior a presença de conteúdos audiovisuais mais bem produzidos, muitas vezes realizados por profissionais, e que apresentam como marcas a construção de um ou mais personagens, cenografia, unidade temática, periodicidade. Desse modo, as plataformas de disponibilização de conteúdo audiovisual na Internet se tornaram canais de exibição de obras desenvolvidas tanto por instituições e profissionais já consagrados, quanto por agentes que almejam ingressar no campo audiovisual, ao disporem de maior liberdade de experimentação e possibilidade de avaliar a recepção do público através do número de views, compartilhamentos, comentários e repercussões na rede, sem depender de uma grande produtora ou emissora. Esses aspectos demonstram o quanto as webséries já ocupam um lugar específico no campo de produção audiovisual, possuindo instâncias próprias de reconhecimento e consagração, principalmente nos Estados Unidos, onde ocorrem importantes festivais dedicados a esse tipo de produto, como Los Angeles Web Series Festival7 e HollyWeb Web Series Festival8. No Brasil, já existem editais públicos de realização audiovisual específicos para webséries e no You Tube é possível encontrar a página Web4 http://www.You Tube.com/user/maspoxavida 5 http://www.You Tube.com/user/descealetra 6 http://www.You Tube.com/user/felipeneto 7 http://www.lawebfest.com/ 8 http://www.hollywebfestival.com/

D aniela Zanetti

Siqueira4; Desce a Letra, de Cauê Moura5; e Não faz sentido, de Felipe Neto6.

certa padronização das apresentações. Exemplos desses vlogs são Maspoxavida, de PC

narrativas seriadas em ambientes virtuais

audiovisual, quase sempre vinculados a produtoras independentes. A praticidade e

Webséries:

sobre a obra e agregam fãs.

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seriados.com, o “primeiro canal dedicado às webséries nacionais”9.

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4. Universo juvenil em evidência

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Com uma forte tradição na produção (e distribuição) de seriados televisivos, os Estados Unidos se destaca na produção de webséries, com um mercado já consolidado.

dramática sobre adolescentes. Reúne crônicas do cotidiano de duas amigas, Esther e Zelda, que vivem num bairro onde não há nada para fazer e onde ninguém as compreende. A obra é, declaradamente, inspirada em produtos como as séries estadunienses Freaks & Geeks10 (1999-2000) e Daria11 (1997-2001) e o filme Ghost World12, que trazem como tema central os conflitos da adolescência. Uma comédia adolescente com um tom sarcástico, e a proposta de apresentar como as adolescentes se sentem crescendo sem a certeza do que querem ser, diz o texto de apresentação da websérie13. A primeira temporada, de 2012, teve 16 episódios, cada um com duração entre 2 e 8 minutos, e lançados semanalmente. Este exemplo de websérie norte-americana serve como parâmetro para se pensar na forte relação existente entre as séries convencionais e as que são feitas para a Internet. Em função da grande quantidade de webséries internacionais (principalmente norte-americanas), o presente trabalho se restringe a alguns exemplos de produções brasileiras que ganharam destaque na Web entre 2011 e 2012. #E_VC?, 3%, Heróis, Lado Nix, 2012 Onda Zero, Armadilha e ApocalipZe são algumas das webséries citadas na mídia14 como exemplos bem sucedidos, principalmente em função do grande número de visualizações e pela crítica positiva dos internautas. #E_VC?15 foi lançada em 2011 pela 8KA Produções, que mantém um canal no You Tube, no qual é possível encontrar outras séries da mesma produtora. Sua primeira temporada possui 6 episódios, cada um com uma média de 3 minutos. A segunda temporada teve 3 episódios, sendo que o último apresentou uma “resolução”, permitindo a conjunção dos dois protagonistas, depois de algumas reviravoltas. A narrativa traz como tema central problemas existenciais de adolescentes, explorando suas incertezas, conflitos internos e relações afetivas, em situações do cotidiano, vividas pelos persona9 http://www.You Tube.com/user/webseriados 10 http://www.imdb.com/title/tt0193676/ 11 http://www.imdb.com/title/tt0118298/ 12 http://www.imdb.com/title/tt0162346/ 13 http://squaresvilleseries.com/about 14 MORAES (2012) e PINO (2012). 15 http://www.You Tube.com/playlist?list=PL76DEDF52658D2756

4 - n. 1

o caso de uma websérie estaduniense. Squaresvillage é caracterizada como uma comédia

ano

Antes de examinarmos os exemplos brasileiros, cabe apresentar, à título de ilustração,


gens centrais Nina e Vinícius. Além dos episódios, a série também agrega dois teasers (um com Nina e outro com Vinícius), um videoclipe e um vlog com o elenco. No início protagonista, inicialmente apresentado por meio de um enquadramento frontal, centralizado, que remete ao uso da webcam. “Ter a minha idade é estar numa constante #E_VC?, Nina, no sétimo episódio. A jovem aparece posicionada em frente à webcam de seu computador, encarando a tela e, consequentemente, o internauta. A cibercultura é parte da narrativa sob vários aspectos: está presente no título da série, que representa um tipo de escrita/linguagem criada e difundida no contexto da cibercultura; na forma de interação dos personagens, que se utilizam de seus computadores pessoais para trocarem confidências ou mesmo discutir seus relacionamentos; no tratamento da imagem, que se utiliza do enquadramento e do “ponto de vista” característico da webcam. A introdução de cada episódio traz somente o título do mesmo, mas também permite a compreensão do tema central que irá sintetizar a trama construída no decor-

sempre relacionada ao título do episódio. Essa reflexão culmina em uma pergunta direcionada ao espectador. Se comparada à uma série televisiva, ela obtêm um diálogo próximo ao conceito de episódio, trazendo uma história única envolvendo um casal de protagonistas, que vivem situações de aproximação e desencontros numa narrativa linear, porém marcada por momentos de auto-reflexão dos personagens. Ao término de cada episódio é exibida uma interface interativa na qual links e hipertextos são adicionados na intenção de possibilitar a interação entre espectador e obra. Há, por exemplo, a possibilidade do envio de um comentário ou “vídeo-resposta” à pergunta final feita pelo personagem. Além disso, uma janela exibe cenas do próximo episódio, trazendo também um link para o referido episódio. A mesma produtora também lançou em 2011 um seriado de humor com episódios do tipo unitário chamado Armadilha, com um mesmo grupo de atores que vivem personagens e situações diferentes a cada episódio, mas mantendo uma mesma temática: as “armadilhas” do universo adolescente, ou seja, situações constrangedoras ou de difícil solução. Despertar é o nome de outra websérie lançada pela 8KA Produções em 2013. Como informa o texto de apresentação do produto no canal da produtora no You Tube, trata-se de uma série musical baseada no clássico de Frank Wedekind “O Despertar da Primavera”, e que, como as outras, traz para o centro da trama “um grupo de

D aniela Zanetti

em voz off, pelo protagonista, realizando uma reflexão acerca da temática explorada,

rer do mesmo episódio. Ao término de cada episódio, há uma retomada da narrativa,

narrativas seriadas em ambientes virtuais

variação entre expectativa e desânimo”, diz a voz em off de uma das protagonistas de

Webséries:

de cada episódio a narrativa é realizada em voz off, que é intercalada com a fala do

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jovens e seus anseios e descobertas sobre o mundo e sobre eles mesmos”16. Lado Nix , de 2011, é uma websérie com uma temporada inicial de 5 episódios, 17

drinhos e desenha graphic novels. Ela é uma espécie de nerd e todo o universo da série é construído em torno de referências a quadrinhos, games e cultura pop, que aparecem não somente nos cenários, personagens e situações criadas, mas também sob a forma

tagonista, que descreve as características principais de cada um e explica as relações existentes entre eles: a amiga e “fiel escudeira” Mei Mei; o amigo músico Shazam, que é apaixonado por Mei Mei e irá protagonizar a trama amorosa; e a antagonista Manú. Um dos objetivos de Nix é publicar sua graphic novel, ao mesmo tempo em que tenta se livrar de Manú, que a persegue e humilha. Alguns flashbacks são usados para recuperar fatos da infância de Nix que ajudam a dar sentido à história. A primeira temporada termina com uma espécie de revelação que servirá de gancho para o início da segunda. #E_VC?, Armadilha e Lado Nix se aproximam do universo adolescente criado pela série Malhação, exibida na TV Globo desde 1995. Semelhanças podem ser percebidas não tanto na estruturação da narrativa – Malhação possui mais núcleos dramáticos, enquanto as webséries normalmente contam com apenas um núcleo de personagens centrais –, mas sim nos tipos de conflitos afetivos, na caracterização das personagens, na relação tempo-espaço e na ambientação das histórias. Com uma abordagem distinta, que se aproxima das narrativas fantásticas e futuristas, a websérie 3%18 mescla drama e ficção científica, mas também investindo em questões relativas ao universo jovem. Lançada em 2011, é um projeto piloto com apenas 3 episódios, cada um com duração de 8 a 9 minutos. No primeiro episódio, a voz off de uma das personagens introduz o espectador no universo da série: “O mundo é dividido em dois lados: o lado bom e o lado ruim. Eu nasci no lado ruim”. A única maneira de passar para “o Lado de Lá” é por meio de um rígido e misterioso processo seletivo, do qual todas as pessoas de 20 anos podem participar, mas apenas 3% serão aprovados. As etapas de seleção se assemelham aos processos seletivos para vagas de emprego, remetendo ao desafio do jovem de ingressar no mercado de trabalho. No final do terceiro episódio, uma das personagens aparece morta, fato que imprime suspense à trama, se configurando também num gancho. Ao contrário de #E_VC? e Lado Nix, que possuem cenários e figurinos coloridos, e que remetem a ambientes familiares (casa, escola, etc.), 16 http://www.You Tube.com/watch?v=zTGCs93z3WU&list=UUl1jpFWVmruyyrIy9jeMdlA&index=4 17 http://www.ladonix.com/#/temporada1?id=1 18 http://www.You Tube.com/playlist?list=PLF7D1EE3144E33A57

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os personagens principais, incluindo Nix, são apresentados em voz off pela própria pro-

ano

de grafismos, animações e efeitos especiais inseridos nas cenas. No primeiro episódio,

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cada um tendo em média de 6 a 9 minutos de duração. Nix é uma jovem que é fã de qua-

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as cores predominantes em 3% são o cinza e o preto, e o ambiente criado é hostil e impessoal. Há uma aproximação com séries de ficção científica como, por exemplo, a série A mistura de drama e ficção científica também está na base de 2012 Onda Zero19 (2011) e ApocalipZe20 (2012), que contam ainda com cenas de ação e catástrofe e muitos narra a trajetória do jovem JP que, por conta de uma anomalia misteriosa, de repente começa a vivenciar fenômenos sensoriais estranhos e situações inexplicáveis, o que vai abalar sua relação com a namorada. A trama afetiva ocorre paralela às reviravoltas bizarras vividas por JP, que inclui perseguições e monitoramento de agentes secretos. Estes parecem saber tudo o que está acontecendo, à revelia dos protagonistas e dos espectadores. A história tem elementos icônicos que remetem a Matrix (1999), ao trabalhar com variações de tempo e espaço repentinas e inexplicáveis. Já ApocalipZe, da Guerrilha Filmes, se passa no Brasil, no ano de 2015, tendo como evento principal um misterioso ataque bioterrorista que, segundo anuncia o trail-

concretiza e restam alguns sobreviventes. Nesse contexto, são apresentados os personagens centrais: um homem que está por trás dos ataques e que busca informações secretas, um mediador que tenta transportar um misterioso produto químico, um professor universitário que está entre os sobreviventes e que se vê perseguido. No segundo episódio, o professor continua fugindo e, ao encontrar uma mulher e uma menina que também sobreviveram ao ataque, revela que sua esposa e filha haviam sido assassinadas. Como é de praxe em filmes de catástrofe, os poucos sobreviventes vão se encontrando pelos escombros da cidade e permanecem juntos para se protegerem e solucionarem os problemas que surgem. As ações também se passam na Web, onde parte do mistério é revelado por um jornalista blogueiro, que acaba sendo capturado. Na rápida cena final do último episódio – intitulado “Não estamos sós” –, um dos agentes do grupo terrorista, morto pelo professor, abre os olhos de modo repentino, criando um gancho para o que seria uma segunda temporada. ApocalipZe reúne um conjunto de aspectos bastante frequente em filmes de catástrofe e histórias de ficção científica, tendo como plot a ação criminosa de um grupo de espionagem estrangeiro contra uma nação, porém trazendo elementos locais como novidade, garantindo assim uma variação da dimensão icônicos da narrativa. Do mesmo diretor de ApocalipZe (Guto Aeraphe), a websérie Heróis (2011), se 19 http://www.You Tube.com/user/2012ondazero?feature=watch 20 http://www.You Tube.com/watch?v=GWntf3OEOXM

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meiras cenas a tensão de um ataque eminente num grande centro urbano. O ataque se

ler da série, “vai abalar o país”. O primeiro dos cinco episódios da série já traz nas pri-

narrativas seriadas em ambientes virtuais

efeitos especiais feitos a partir de computação gráfica. A primeira, com 4 episódios,

Webséries:

norte-americana Arquivo X, exibida nos anos 90.

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caracteriza pelo tema mais sério e pelo seu caráter histórico. O trailler21 anuncia: “A primeira série sobre o Brasil na Segunda Guerra”. Baseada em fatos reais, retrata os últide Montese. Todas os capítulos mostram a atuação dos soldados no campo de batalha, incluindo cenas de combate armado. Mais do que uma websérie, trata-se, na verdade, de uma narrativa unitária fragmentada em capítulos. A obra também está sendo co-

webséries são as vinhetas de abertura e de encerramento de cada episódio e a atribuição de um título para cada capítulo. Os ganchos, em seu formato mais tradicional, nem sempre são usados. Por vezes, a narrativa é somente interrompida numa cena crucial para o entendimento da história como forma de criar expectativa para o capítulo seguinte. Além disso, como são muito mais curtas que as séries tradicionais, e contam com recursos mais limitados, as webséries normalmente possuem apenas um núcleo de personagens principais numa trama linear, com poucas variações temporais e espaciais. Na web, algumas ferramentas auxiliam o espectador na visualização das obras, como os links inseridos no próprio display do vídeo ou na lateral da página, permitindo o internauta acessar os capítulos anteriores ou posteriores, e links para outros sites relacionados ao produto. 5. Conclusão Como as webséries estudadas possuem apenas uma primeira temporada – pelo menos até o presente momento – ainda não é possível estabelecer um padrão de serialização que caracterize essas narrativas ao longo de temporadas. O que se pode depreender numa primeira análise é que as webséries se caracterizam por variações que ocorrem em torno de um mesmo eixo temático e pela metamorfose dos elementos narrativos, mais comum em episódios unitários. Os exemplos examinados se caracterizam por trazer apenas um ou dois núcleos reduzidos de personagens principais, com poucas variações de tempo e espaço. As temáticas, em geral, são direcionadas a um público adolescente e jovem, com ênfase em histórias que mesclam relações afetivas e desencontros amorosos, conflitos pessoais, mistério/suspense, com algumas cenas de ação. Em consonância com uma atenção fragmentada e dispersa do espectador da Internet, o tempo de duração dos episódios das webséries parece ser um dos principais aspectos de diferenciação em relação às tradicionais séries de TV. Na televisão, 21 http://www.You Tube.com/watch?v=AdoFNtfkqnY

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Outros elementos característicos das séries televisivas e que se repetem nas

ano

mercializada em DVD.

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mos momentos de um grupo de soldados da Força Expedicionária Brasileira na Batalha

84


as séries são integradas a uma grade de programação rígida das emissoras, e por isso os episódios necessitam de um tempo fixo de duração. A fragmentação da narrativa é são bem mais curtos – variando de 3 a 10 minutos, em média – e não são divididos em capítulos. Em função disso, a fragmentação do produto como um todo segue uma lóinício de cada vídeo. O tempo reduzido de cada episódio também induz a uma espécie de compressão da narrativa, com muitas elipses e diálogos concisos. No âmbito da produção e circulação, se, por outro lado, as séries de TV possuem divulgação garantida feita pelas emissoras e/ou produtoras, através de assessorias de comunicação e de marketing, as webséries, por sua vez, dependem do próprio público para se espalharem pela rede. Além disso, devem estar vinculadas a outros sítios, como blogs e páginas em redes sociais, como forma de garantir maior visibilidade e poder de viralização – muito embora essas estratégias e ferramentas já estejam sendo utilizadas pela TV como forma de integrar as mídias e manter a fidelidade do público por meio

dentro das chamadas comunidades de conhecimento. As webséries examinadas, e seus respectivos canais, cumprem uma característica contemporânea do consumo de obras audiovisuais, qual seja o da segmentação de conteúdo. As estratégias de segmentação permitem ao público encontrar e selecionar o conteúdos direcionados, dentro de uma ampla gama de opções, promovendo a “construção de marcas especializadas em um tipo de conteúdo, o que confere também confiabilidade ao material exibido” (CANNITO, 2010:101). No caso das webséries (e também dos videoclipes, por exemplo), isso ocorre com a criação de “canais” das próprias produtoras em sites como o You Tube ou Vimeo e o desenvolvimento de conteúdos baseados em formatos e gêneros já consagrados na televisão, porém adaptados para ambientes virtuais. A especificidade das webséries é decorrente, dentre outros fatores, da utilização dos recursos disponíveis nas plataformas on line de exibição de vídeos, que afeta dois aspectos do consumo de obras audiovisuais: i) a dimensão da fruição: a possibilidade de assistir os episódios no momento e na sequência que se desejar, e de ter que dedicar menos tempo para essa atividade, uma vez que os episódios são bem mais curtos que os das séries televisivas, resultando num consumo mais rápido e “descomprometido”; ii) a dimensão da produção e do “gerenciamento” desses produtos: há uma maior liberdade de criação por parte dos realizadores, sem limitações de tempo ou de grades de progra-

D aniela Zanetti

compartilhamento também dota os indivíduos de um poder específico de participação

da criação de narrativas transmidiáticas. Para Jenkins (2008), esse tipo de atividade de

narrativas seriadas em ambientes virtuais

gica de fruição distinta da TV, pois na Web os anúncios são normalmente inseridos no

Webséries:

necessária para que sejam inseridos os comerciais, ao passo que na Web, os episódios

85


mação, e possibilidades de experimentação técnica, estética, etc., além de retorno quase imediato do espectador, que pode ser manifestar por meio de comentários, “curtidas”, conteúdos contam também com ferramentas de aferição do número de visualizações – ou views, o que corresponderia ao conceito de audiência na TV–, de mapeamento dos comportamentos e dos perfis dos internautas, considerando a vocação da Web para a

produtos televisivos se mostra bastante coerente para uma reflexão sobre conteúdos gerados na e para a Web, considerando o objetivo de se distinguir o que há de realmente específico e inovador, e o que há de tradicional e de recorrente nas webséries. Considerando a repetitividade como “mecanismo estrutural de generalizações de textos” (1988, p.43), as webséries analisadas representam textos que de certa forma se assemelham a certas estruturas já utilizadas em produtos de sucesso na TV, como, por exemplo, abordagens recorrentes sobre o universo adolescente/jovem, esquemas na composição do núcleo dramático, determinados tipos de ambientações e de reviravoltas no enredo. As repetições são observadas em relação às dimensões temática e icônica. Talvez ainda seja cedo para se pensar as webséries como produtos inovadores do ponto de vista narrativo. Muito embora já incorporem elementos hipertextuais, estes pouco interferem na essência das histórias. A princípio, a novidade fica por conta dos dispositivos de interatividade com o público vinculados aos displays nos quais se exibem as webséries, aspecto amplamente disseminado por meio um discurso de hipervalorização dessas plataformas, mas que nem por isso afeta as estruturas fundamentais das narrativas. As inúmeras variações – de caráter icônico, temático, narrativo – continuam sendo ativadas para se garantir a multiplicação de obras a partir de alguns protótipos, recorrendo à novidade da estrutura do hipertexto e das mídias interativas, de maneira a atender às necessidades da indústria do entretenimento. Trata-se de um aspecto que demonstra o quanto os novos suportes interativos de mediação também se valem de parâmetros herdados das mídias tradicionais.

6. Referências bibliográficas ANDERSON, Chris. A cauda longa: do mercado de massa para o mercado de nicho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2006. BOLTER, Jay David; GRUSIN, Richard. Remediation. Understanding New Media. MIT Press, 2000.

4 - n. 1

A estética da repetição proposta por Omar Calabrese (1988) para o estudo dos

ano

segmentação de produtos para públicos distintos.

Revista GEMI n IS |

compartilhamentos. As estratégias de lançamento, divulgação e gerenciamento desses

86


CALABRESE, Omar. A idade neobarroca. Lisboa, Portugal: Edições 70, 1988.

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D aniela Zanetti

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4 - n. 1

Académico sobre Documentación Digital y Comunicación Interactiva.

ano

narratives forms: The web 2.0 and audiovisual language. Hipertext.net - Anuario

Revista GEMI n IS |

PRIMO, Alex . O aspecto relacional das interações na Web

88


Conversando

com uma

API:

um estudo exploratório sobre

TV

social a partir da

relação entre o twitter e a programação da televisão M árcio Carneiro

dos

S antos

Doutorando do programa de Tecnologias da Inteligência e Design Digital da PUC-SP. Mestre em Comunicação pela UAM- SP. MBA em Marketing pelo ISAN-FGV-Rio. Graduado em Comunicação Social pela UFMA. Professor do Curso de Comunicação Social da UFMA na área de Jornalismo em Redes Digitais. Coordenador do Laboratório de Convergência de Mídias – LABCOM (www. labcomufma.com). E-mail: mcszen@gmail.com

Revista GEMI n IS

ano

4 - n . 1 | p. 89 - 107


Resumo Discute-se o fenômeno do uso de redes sociais em paralelo ao consumo de TV, constituindo o que alguns autores chamam de “backchannel”, um espaço secundário da produção de conteúdo e discussão sobre os programas que estão sendo assistidos de forma síncrona à sua emissão, formando o que propomos denominar aqui de nuvem de sentido. São exploradas as técnicas de mineração de dados através da ferramenta personalizada Social Tracker, desenvolvida na linguagem de programação Python, para coletar dados sobre o problema, considerando-se que, devido à grande quantidade de informações geradas neste ambiente, é cada vez mais difícil fazer isso manualmente. Palavras-Chave: TV Social, Mineração de Dados, Twitter.

Abstract In this text we intend to discuss the phenomenon of using social networks in parallel to TV consumption, constituting what some authors called “backchannel”, a secondary space of content production and discussion about the programs being watched synchronously to its issuance, forming what we propose to call here a cloud of sense. We explore the techniques of data mining through the tool customized for us by using the Python programming language, called Social Tracker (ST), to study the problem, considering that due to the large amount of information generated in this environment, is increasingly difficult to collect them manually. Keywords: TV Social, Mineração de Dados, Twitter.


1.0 – TV e Internet

N

o dia 3 de fevereiro de 2013, quando o Baltimore Ravens venceu o San Francisco 49ers, por 34 a 31, na final da temporada 2012 da liga de Futebol Americano, a NFL, diversos números povoaram o noticiário sobre o evento, co-

nhecido como Super Bowl. Dados da Nielsen (2013), empresa de monitoramento de audiência, indicam que a CBS, rede de TV americana detentora dos direitos de transmissão do jogo, teve uma média de 108,69 milhões de espectadores com um pico de 164 milhões. Segundo a Folha (2013) cada comercial com 30 segundos de exibição custou aos anunciantes 4 milhões de dólares (oito milhões de reais). Houve uma discussão se esse teria sido ou não o recorde de público da história do evento, entretanto, posteriormente foi constatado que a audiência da TV foi menor que nas finais dos dois últimos anos anteriores. Já na internet os números foram históricos. A transmissão online segundo o site especializado em marketing de vídeo digital REELSEO (2013) atraiu mais de 2 milhões de pessoas e outras métricas, talvez menos divulgadas, trouxeram indícios de que o que chamamos de TV Social ou Social TV também tinha conseguido índices expressivos, basicamente através da participação dos espectadores gerando comentários a partir do Twitter. No seu blog oficial, com o título “The Super Tweets of #SB471”, o Twitter (2013)

registrou no mesmo dia os números do Super Bowl. Foram gerados 24.1 milhões de tweets durante o evento e o intervalo entre os tempos da partida. O pico do fluxo de mensagens chegou a 185 mil tweets por minuto (TPMs). O show da cantora Beyonce, que aconteceu no intervalo da partida, gerou 5.5 milhões de tweets com fluxo, no final do show, de 268 mil tweets por minuto. A constatação mais básica a fazer é que um número enorme de pessoas estava assistindo a transmissão pela TV e usando o Twitter, simultaneamente, já que os núme1 O Twitter utiliza o recurso das hashtags (#) através do qual os usuários podem identificar um tema específico e escrever sobre ele criando um conjunto de conteúdos que se refere a essa palavra que funciona como um rótulo(tag) e pode ser reproduzido a partir de ferramentas de busca.


ros da transmissão online, apesar de terem batido o recorde histórico, chegaram apenas a cerca de 2% da audiência da transmissão televisiva normal ou “off-line”. em paralelo ao consumo de TV, constituindo o que alguns autores como Proulx e Shepatin (2012) chamam de “backchannel” (canal de fundo), ou seja, um canal secundário de produção de conteúdo e discussão sobre os programas que estão sendo assistidos

A conversação online sobre um determinado programa acontece antes, durante e depois que ele vai ao ar. O canal de fundo, entretanto, é definido como a conversação em tempo real que está acontecendo através das mídias sociais durante a sua transmissão (PROULX, SHEPATIN, 2012, p.11).

A ideia de nuvem vem do termo cloud computing utilizado no jargão da internet para descrever o conjunto de servidores e infraestrutura de rede que possibilita a execução de programas e aplicações de internet, bem como o arquivamento de informação, de forma descentralizada e não no computador do usuário. Hoje mais do que nunca, guardamos nossos arquivos nas nuvens computacionais de grandes empresas como Google, Apple e Microsoft e utilizamos soluções e ferramentas que não estão instaladas em nossas próprias máquinas, mas sim nos servidores deles e de outras companhias que nem conhecemos. Todo o resultado dos processos de significação, a partir da enorme produção de conteúdo que os usuários da internet agora conseguem realizar, é enviado para esses servidores, entre eles os que rodam as aplicações de mídias sociais. Essa massa de sentido que paira nas nuvens computacionais contém muito do que pensamos e imaginamos sobre tudo e todos, inclusive sobre nós mesmos. Tal conjunto pode ser replicado através de vários outros canais e ferramentas digitais, sendo inclusive disponibilizado via infraestrutura de internet e captado através de APIs (Application Programming Interfaces – Interfaces de Programação de Aplicações) como a do Twitter, foco desse trabalho. A análise e processamento desse material passaram a ser alvo também da atenção acadêmica que ainda explora novos métodos e ferramentas para realizar suas pesquisas sobre o tema. Por isso, aqui apresentamos também um relato de utilização da ferramenta Social Tracker (ST), ainda em desenvolvimento, para a coleta de dados a partir da API do Twitter e posterior manipulação e análise dos mesmos, oferecendo possiblidades mais adequadas ao uso acadêmico. Nossa intenção é argumentar que uma das novas possibilidades interativas da

4 - n. 1

sentido.

ano

de forma síncrona à sua emissão, formando o que propomos chamar aqui de nuvem de

Revista GEMI n IS |

Nesse texto pretendemos discutir o fenômeno da utilização das redes sociais

92


TV tradicional existe a partir de um processo de remediação2, no sentido de Bolter e

93

Grusin (2000) que discutiremos adiante, com a Internet, que tem sido benéfico para am-

Discutimos também como uma prática que implica em atividades síncronas da normalmente apontada como uma de suas principais características justamente a pos-

da ferramenta por nós customizada utilizando a linguagem de programação Python, chamada de Social Tracker (ST), para estudar o problema, considerando que, devido ao grande número de informações geradas nesse ambiente, é cada vez mais difícil coleta-las de forma manual. 2.0 – TV Social e o Backchannel de Significação

cacional de fundo em tempo real entre os espectadores dos programas de televisão5”, identificando essa prática como uma atividade distinta entre as possíveis ações dos fãs no ambiente online. Evangelia (2011, p.1) lembra que “o conceito de TV Social veio à

seu engajamento e expressão pessoal.6” Já Proulx e Shepatin (2012, p.13) definem Social TV como “a convergência entre televisão e mídias sociais”7. 2 Para Bolter e Gruzin, a remediação entre os meios acontece quando o meio mais novo representa ou assimila o meio mais antigo, incorporando o conteúdo deste último. Os autores, entretanto, admitem a possibilidade de que a remediação também ocorre no sentido inverso, ou seja, o meio anterior incorporar parte ou características do meio mais novo. É o caso da TV aberta que cada vez mais reforça seus links com a internet através da replicação de seu conteúdo em sites, incentivando o diálogo online na web e através das redes sociais, inclusive apropriando-se do conteúdo desses ambientes para divulgação em seus programas de veiculação aberta. 3 “Social television, a combination of technologies that enable social experiences around TV content…” – Tradução do autor 4 “Two-screen veiwing” 5 “Use of social networks to create a real-time backchannel of communication among viewers of television programs …” – Tradução do autor

6 “The concept of Social TV has come forward over the last years as the next phase of Interactive Digital TV (IDTV) in its evolution from a medium that promotes the viewers’ active participation to one that aims to their engagement and selfexpression.” – Tradução do autor. 7 “... the convergence of television and social media.” – Tradução do autor

S antos

evolução, a partir de um meio que permite a participação ativa dos espectadores para

dos

tona nos últimos anos como a fase seguinte da TV Digital Interativa (IDTV), como sua

M árcio Carneiro

“visualização de duas telas4 com o uso de redes sociais para criar um canal comuni-

da TV”3. Johns (2012, p.333), apesar de não usar diretamente o termo, faz referência à

social

“combinação de tecnologias que permitem experiências sociais ao redor do conteúdo

TV

O conceito de TV Social ainda é impreciso. Harboe (2011, p.1) fala sobre uma

um estudo exploratório sobre

Por fim exploramos as técnicas de mineração de dados (data mining) através

API:

sibilidade de acessos assíncronos aos conteúdos que disponibiliza.

com uma

audiência ao redor de uma transmissão de TV, acontece a partir de um meio que tem

Conversando

perdas ou diminuição de atenção dos espectadores em relação aos meios mais antigos.

a partir da relação entre o twitter e a programação da televisão

bas as partes, mesmo em contradição às ideias prévias de que os meios digitais impõem


O fato é que, diferente dos que imaginaram caminhos separados para a TV e a Internet, a tendência da TV Social, reforçada por números como da FORRESTER RESEARCH que tem atividades online, 48% disseram que usam um computador pessoal enquanto assistem TV para conversar, navegar e pesquisar sobre o que estão assistindo. “Como o número de pessoas engajadas em mídias sociais continua a crescer, o conjunto de conversações online sobre

do mundo, entre eles o Brasil, também serve como indício de que uma “segunda tela”9, móvel e mais leve, de onde se pode interagir nas redes sociais, pode estar bem à mão de um número cada vez maior de espectadores de TV. O fenômeno de duas mídias que inicialmente pareciam apenas competir pela atenção das pessoas não é inédito. Até a década de 50, principalmente nos Estados Unidos, havia a dúvida de como o cinema, na época com bilheterias decrescentes, sobreviveria ao avanço da televisão nos lares americanos. O que a princípio aparentava ser o pior inimigo de Hollywood, logo se tornou seu principal parceiro comercial. A estratégia do high concept e dos blockbusters, discutidos abaixo, fez da TV uma alavanca para os lançamentos da indústria do cinema e também um importante cliente das suas produções. A indústria do cinema adaptou-se ao contexto e passou por um processo de hibridização e extensão para áreas antes não exploradas. Essas mudanças começaram com os filmes da indústria americana do cinema pós 75, um período que alguns autores chamam de Nova Hollywood e que Mascarello caracteriza, [...] pelo abandono progressivo da pujança narrativa típica do filme hollywoodiano até meados de 1960, e também por assumir a posição de carro chefe absoluto de uma indústria fortemente integrada, daí em diante, à cadeia maior de produção e do consumo midiáticos (cinema, TV, vídeo, jogos eletrônicos, parques temáticos, brinquedos, etc.) (MASCARELLO, 2006, p.57).

Esse objetivo de integração é conhecido pelo termo “high concept” que também é utilizado para se referir ao modelo de negócios iniciado em filmes desse período, marcado pelo lançamento dos blockbusters “Tubarão” de 75 e “Guerra nas Estrelas” e “Embalos de Sábado à Noite”, ambos de 77. De novo usamos o texto de Mascarello para definir o filme blockbuster ou tradu8 “As the number of people engaging within social media continues to increase, the amount of online conversations about television while shows are airing within those platforms also increases.” – Tradução do autor 9 Apesar dos autores citados nesse trabalho considerarem como “segunda tela” , smarphones e tablets, para outros esses equipamentos seriam a terceira e a quarta tela respectivamente, sendo a primeira a TV tradicional e a segunda os laptops e notebooks. Esse entendimento pode ser encontrado, por exemplo, em relatórios como o da COMSCORE.

4 - n. 1

patin, 2012, p.27)8. O crescimento das vendas de tablets e smartphones nos grandes mercados

ano

televisão, nessas plataformas, durante a exibição dos programas, também cresce” (Proulx ; She-

Revista GEMI n IS |

(2013) indicam o contrário. A partir de uma pesquisa com cerca de três mil americanos adultos

94


zindo para o português, “arrasa quarteirão”:

sua marca à de um filme de sucesso. Voltando ao século XXI, a inicial competição entre TV e Internet anunciada

gicas e os ambientes culturais por elas possibilitados (Jenkins, 2006) geraram a partir

do próprio, os aparatos tecnológicos e as soluções de infraestrutura e software que os suportam.

mediação, ao mesmo tempo em que incorporou a linguagem e os produtos dos meios audiovisuais, também foi por eles incorporada, gerando diversos fenômenos e tendências híbridas. A Televisão Social entre elas. Os meios como entes de um sistema complexo acabam interagindo de diversas formas, às vezes não tão fáceis de prever ou identificar. O relativo equilíbrio desse sistema não traduz apatia ou monotonia, e sim pelo contrário, uma dinâmica bastante intensa que dificulta a aplicação de modelos mais

S antos

Nos termos de Bolter e Grusin (2000), a Internet, com seu enorme poder de re-

dos

Cada definição de Comunicação está fundada numa metáfora. A Comunicação já foi vista sucessivamente como canal, instrumento, flecha, projétil, conflito, contrato, orquestra, espiral e rede. [...] Neste texto faremos uma aposta muito clara pela metáfora do ecossistema, o seja a Comunicação entendida como um conjunto de intercâmbios, hibridações e mediações dentro de um entorno onde confluem tecnologias, discursos e culturas (SCOLARI, 2008, p.26).

M árcio Carneiro

espectadores, cada vez mais interessados e aptos a produzir e fazer circular conteú-

de uma rede complexa de interações entre diversos atores tais como as redes de TV, os

social

tema midiático (Scolari, 2008) traduz melhor a situação que as transformações tecnoló-

TV

como definitiva por alguns, mais uma vez nos mostra que o paradigma de um ecossis-

um estudo exploratório sobre

máticos, de brinquedos e de qualquer outro segmento que tenha interesse em associar

API:

dutos baseados em personagens ou filmes para a indústria dos games, dos parques te-

com uma

da exibição nas redes de televisão, nas locadoras e o mercado de licenciamento de pro-

Conversando

O que Mascarello chama de mercados secundários são em síntese o mercado

a partir da relação entre o twitter e a programação da televisão

Filmes que em sua maioria tem custo de produção alto (normalmente por conta de cachês e efeitos especiais), custos de lançamento também elevados e às vezes próximos ou superiores aos custos de produção (em razão do número elevado de cópias e da publicidade massiva) e rápida “queima” do filme no circuito primário de exibição, não importando o quão positivo seja o boca-a-boca, já que eventuais prejuízos de bilheteria, através da lógica do high concept, poderão ser compensados nos mercados secundários de exibição, bem como através dos produtos conexos (MASCARELLO, 2006, p.349).

95


simples em termos teóricos convencionais, traduzida, por exemplo, pela reconfiguração das dinâmicas entre o público e o privado, controle e liberdade e ainda a própria fronmente, receptores, decodificadores) de conteúdo. O advento das tecnologias recentes ressalta a natureza plural e mutável da ecologia midiática, já que as interfaces da mídia ordenam o acesso aos conteúdos entregues pelos canais digitais,

faces de mídia traz consigo a criação de novas categorias televisuais e midiáticas com base no acesso e competência, que se tornam particularmente atraentes quando mapeadas contra as flexíveis estratégias de microcasting 10 que já estão resultando em articulações distintas e diferenciadas de plataforma e conteúdo (CHAMBERLAIN, 2012, p.20)11.

3.0 - TV Social e a Sincronicidade no Consumo de Conteúdo O surgimento específico da TV Social também incorpora uma aparente contradição entre processos síncronos e assíncronos de acesso ao conteúdo. Faz parte da retórica positiva e do imaginário ligado à internet, sua capacidade, por exemplo, de possibilitar o consumo de conteúdo, desvinculado de rígidos controles como as grades de programação das televisões tradicionais. A ideia do consumo on demand, em qualquer hora ou lugar, incorpora bem essa característica que também traduz a crença de um aumento de poder do espectador que, com a Internet, poderia agora realizar coisas antes quase impossíveis, como o simples desejo de ver um programa que foi exibido num horário em que não estava perto de um aparelho de TV. Apesar das evidentes possibilidades que as redes e a infraestrutura da internet trazem, transfigurando-se num imenso acervo digital a ser consultado, a qualquer hora ou de qualquer lugar (desde que exista a conexão), algumas questões devem ser lembradas. Uma das mais importantes é a questão do controle. A partir da inerente possibilidade de identificação e registro da navegação online, a partir de diversas ferramentas de análise de tráfego, métricas e monitoramento, é possível afirmar que houve uma redução na homogeneidade ou regularidade das formas de entrega de conteúdo, mas um importante aumento no esforço de caracterização e análise sobre esses consumidores, facilitado principalmente pelas formas específicas de manipulação e tráfego dos arquivos digitais. O controle foi talvez perdido em um aspecto do processo, o da distribuição, mas evidentemente intensificado em outro, o do con10 Difusão de conteúdo para públicos cada vez mais segmentados. 11 The advent of recent technologies underscores the plural and mutable nature of the media ecology, yet media interfaces order engagements with content delivered though digital cable, satellite, over the Web, on personal media players, through DVDs, and ultimately through digital broadcast. At the same time, the broad distribution of media interfaces brings with it the establishment of new televisual and media divides based on access and competency, which become particularly compelling when mapped against strategies of flexible microcasting that are already resulting in distinct and differentiated articulations of platform and content. Tradução do autor.

4 - n. 1

finalmente, por meio de transmissão digital. Ao mesmo tempo, a ampla distribuição de inter-

ano

a cabo, via satélite, através da Web, em reprodutores de mídia pessoais, através de DVDs e,

Revista GEMI n IS |

teira entre produtores (formalmente, emissores, codificadores) e consumidores (formal-

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sumo, provavelmente ainda em nível inferior ao que as novas possibilidades de tratamento de

97

grandes massas de dados parece delinear. A recente utilização de tecnologias de “Big Data” na

goria Blogs13 e Podcasts14 e na subcategoria “Microblogs e Fluxos de Atividades”.

tas20 entre outras.

S antos

15 Palavra chave que serve como uma espécie de rótulo (tag) para marcar conteúdos sobre um mesmo assunto ou tópico. 16 Forma utilizada com o termo “RT” iniciando a mensagem e indicando sua origem a partir de outro usuário que é replicada através do retweet por ser considerada interessante por aquele que a “retuitou”. 17 Forma de se referir a um outro usuário, indicando uma conversação específica com ele, representada a partir da inserção do caractere “@” antes do seu nome.( Ex: @mcszen ). É uma forma de indicar, dentro do fluxo público que contém várias mensagens, de que aquela mensagem, especificamente , se direciona a alguém. Também chamada de marca de endereçamento. 18 Forma de citar determinado usuário na mensagem sem necessariamente estar dialogando com ele naquele momento. Também representada com o caractere “@” antes do nome do usuário mas não colocada no início da mensagem , o que caracterizaria uma réplica (reply). 19 Tópicos sobre os quais há grande interesse ou conversação no fluxo de mensagens do Twitter. Os trends podem ser identificados por região geográfica o que ajuda a conhecer os temas de maior atenção no Twitter em determinado momento e em determinada área. 20 Mensagem direcionada especificamente para outro usuário fora do fluxo geral de mensagens.

dos

12 A tecnologia de Big Data foge ao escopo desse texto. Sobre o exemplo citado, ver a matéria da INFO de Dezembro de 2012, “Big Brother OBAMA” sobre a utilização da ferramenta pela equipe do presidente Barack Obama nas eleições americanas em http://info.abril.com.br/arquivo/2012/dez.shtml. Acessado em 13/02/2013. 13 Forma especial de página na internet caracterizando-se por uma forma de baixo custo para publicação de conteúdo digital apresentado como uma série de mensagens de texto, chamadas de “posts” em ordem cronológica reversa. 14 Publicação na internet parecida com o blog com a diferença fundamental de, ao invés do texto, utilizar arquivos de som para o registro das mensagens.

M árcio Carneiro

comunicação tais como hashtags15, retweets16, réplicas17, menções18, trends19 e mensagens dire-

guido e trabalha com um conjunto de possibilidades utilizadas para organizar o ambiente da

social

Além da ideia de seguir alguém ( follow), o usuário do Twitter também pode ser se-

TV

Parecido com os blogs tradicionais devido ao seu foco em publicações recentes, difere deles porque seus posts, chamados de tweets, são restritos a 140 caracteres de texto. O Twitter recupera a ideia de acompanhar o fluxo das postagens através da subscrição como nos blogs a partir da possibilidade de “seguir” um outro usuário. Um canal personalizado de determinado usuário mostra os tweets mais recentes de todos os indivíduos que ele está seguindo, criando um fluxo de pequenos pedaços de informação (HANSEN;SHEIDERMANN;SMITH,2011, e-book pos.1210).

um estudo exploratório sobre

online que dão suporte a interações sociais entre seus usuários”, o Twitter está na cate-

API:

pos. 771) para as mídias sociais, definidas por eles como “o conjunto de ferramentas

com uma

A partir da classificação estabelecida por Hansen, Sheiderman e Smith (2011,

Conversando

4.0 - Twitter e Transmissões ao Vivo

a partir da relação entre o twitter e a programação da televisão

reeleição do presidente Obama nos Estados Unidos, é um exemplo.12


Para as pesquisas sobre TV Social utilizando o Twitter como referência, os números têm indicado que os maiores picos de interação acontecem a partir do comentário sobre transNúmeros do balanço do Twitter no Brasil em 2012 indicam que entre os 60 picos repentinos de interesse no ano (top trends) a categoria entretenimento recebeu aproximadamente 28% do total, esportes, 13%, e política, em torno de 9%. No entretenimento, as novelas

timo capítulo, apresentou um fluxo de 3.031 tweets por minuto. Da mesma forma, a hashtag #BBB12 foi recordista entre os realities, seguido do The Voice Brasil, A Fazenda e Mulheres Ricas (Twitter Blog, 2012).

Figura 1 – Gráfico com números de Tweets por Minuto em eventos nacionais. Fonte: LABCOM

Nos eventos internacionais os números são ainda maiores como o caso do SuperBowl já citado, bem como a transmissão de debates da eleição americana na TV, os jogos da Eurocopa (futebol) e dos jogos Olímpicos de Londres.

4 - n. 1

outubro de 2012, o termo Avenida Brasil foi recordista com milhões de tweets e, em seu úl-

ano

e os reality shows tiveram uma enorme presença no Twitter: de 1º de março ao dia 31 de

Revista GEMI n IS |

missões ao vivo ou, quando pré-gravadas, inéditas (sem veiculação anterior).

98


99

tante abertas. Hoje existem centenas de aplicações que se “alimentam” das informações geradas nele, incluindo ai as mais simples como buscas (search) de trends, informações sobre os usuários e muitas outras. Uma lista básica dos principais recursos disponibilizados pela API do Twitter inclui também, além das citadas acima, a recuperação de mensagens diretas ( direct messages – DM) , amigos e seguidores ( friends , followers), sugestões de usuários ( suggested users), favoritos (favorites), listas (lists), buscas salvas ( saved searches) , lugares e dados geográficos (places e geo), relatório de mensagens automáticas ou indesejáveis (spam reporting) , autenticação (Oauth – Open Authentication) e ajuda ( help). Na atual versão da API (1.1) há cerca de 100 tipos de requisições que podem 21 https://dev.twitter.com/docs/api/1.1

S antos

Em especial, a API do Twitter e a política de privacidade desse serviço são bas-

dos

sobre o fluxo de conteúdo que é gerado pelas pessoas que estão conectadas a ele.

M árcio Carneiro

acessar os computadores do mantém o serviço e assim coletar informações diversas

que no caso do Twitter, através da sua API21, é possível criar aplicações que possam

social

net. O exame dessa questão está além dos limites desse texto mas o principal é saber

TV

os desenvolvedores criem aplicações que possam acessar determinado serviço na inter-

um estudo exploratório sobre

cações) é o conjunto de rotinas, padrões e instruções de programação que permite que

API:

Uma API – Application Programming Interface (Interface de Programação de Apli-

com uma

5.0 – Ferramenta Social Tracker e Coleta de Dados de Eventos Nacionais

Conversando

Fonte: LABCOM

a partir da relação entre o twitter e a programação da televisão

Figura 2 – Gráfico com números de Tweets por Minuto em eventos mundiais.


ser acessadas nos grupos citados que permitem um amplo espectro de coleta de informações. damental a capacidade de coletar quantidades de mensagens relativamente grandes e depois conseguir processá-las também de alguma forma automatizada. A partir dessa constatação foi desenvolvida a ferramenta ST capaz de fazer consulta à API do Twitter

determinado tema ou usuário, permite customizações por data e localização, além de não necessitar de autenticação prévia para o acesso.

Figura 2 – Print de uma das telas da ferramenta ST Fonte: LABCOM

No exemplo abaixo, colhido através da ferramenta ST, é possível ver a estrutura da resposta do servidor do Twitter a partir de uma solicitação de busca (search) sobre o próprio nome da ferramenta: “Social Tracker”. Para essa coleta foi feita uma postagem de teste por volta das 18 horas do dia 17 de fevereiro de 2013 e em seguida feita uma

4 - n. 1

mento foi focada no módulo de buscas (search) que além de retornar mensagens sobre

ano

através das diversas modalidades por ela permitidas. A primeira etapa do desenvolvi-

Revista GEMI n IS |

Nas pesquisas relacionadas à TV Social com abordagem quantitativa é fun-

100


coleta sobre o mesmo termo.

101

A primeira imagem mostra a postagem na forma tradicional dentro do fluxo

Twitter com informações sobre a mesma postagem só que na forma estruturada com guns dados realmente não foram inseridos, como a menção sobre algum outro usuário,

API:

por exemplo.

com uma

todos os possíveis detalhes sobre ela. Nem todos os campos estão completos porque al-

Conversando

pelo desenvolvimento da ferramenta e, abaixo dela, segue a reposta original da API do

um estudo exploratório sobre

TV social

a partir da relação entre o twitter e a programação da televisão

de tweets da conta do LABCOM – Laboratório de Convergência de Mídias, responsável

M árcio Carneiro dos

S antos

Figura 4 – Imagem do tweet de teste sobre Social Tracker feita na conta do LABCOM-UFMA Fonte: LABCOM

Na segunda imagem foram marcados alguns campos para destacar como as informações são apresentadas, como o tema da busca (query), a data da postagem com o horário no fuso padrão GMT que é 3 horas a frente do horário brasileiro (created at), o usuário que postou ( from_user), seu código de identificação ( from user_id), a língua da postagem (iso language_code), o endereço da imagem do perfil(profile_image url) e o texto da mensagem(text).


102 Revista GEMI n IS | ano

4 - n. 1

Figura 5 – Imagem da resposta da API do Twitter recuperada por ST Fonte: LABCOM

A vantagem de uma ferramenta desenvolvida de forma customizada é que ela normalmente permite um maior conjunto de possibilidades de coleta e manipulação de dados que a maioria das aplicações disponíveis. É preciso usar várias delas para conseguir o mesmo resultado. As ferramentas prontas obviamente tem uma interface gráfica mais trabalhada, entretanto, para a pesquisa acadêmica, o material coletado é o que importa. A ferramenta ST ainda está em desenvolvimento mas já consegue coletar grande quantidade de tweets a partir de requisições de busca(search) para a API do Twitter. Algumas das funcionalidades já disponíveis são exatamente o levantamento em separado da massa de textos (mensagens) acoplados aos resultados da busca. Além disso, ST ainda permite verificar, a partir da amostra coletada, o fluxo em Tweets por Minuto (TPM) dos tópicos postados com maior frequência, além de verificar as principais fontes de retweets e menções. 6.0 - ST e a Medição da Atividade Social nas Transmissões de Noticiário e do Carnaval 6.1 - Metodologia Ainda que em caráter exploratório foram realizadas medições em dois tipos de transmissão televisiva. Foram escolhidas duas modalidades de transmissão. A primeira categoria, a partir do noticiário sobre um tema de grande repercussão e a segunda, a partir da transmissão ao vivo de um evento também de grande interesse, no caso, o desfile das escolas de Samba do Rio de Janeiro. A medição a partir do noticiário aconteceu no dia 27 de janeiro de 2013, dia do incên-


dio de uma casa de shows em Santa Maria no Rio Grande do Sul, que teve intensa cobertura

103

da mídia. Acompanhamos a cobertura da Rede Globo, rede de maior audiência nacional, que

respondentes na região da tragédia. Apesar de não ter nenhum relacionamento com o tipo de o andamento normal do programa, para que pudesse ser feita a inserção do noticiário sobre o

volta das 12:20, foram feitas 10 medições para acompanhar a variação do fluxo de tweets por minuto (TPMs) a partir da repercussão das informações que iam sendo dadas durante a transmissão na TV. Posteriormente, a noite, durante o Fantástico fizemos mais 5 medições para, num outro programa com transmissão ao vivo a partir do estúdio da emissora, termos uma ideia da expansão ou retração do interesse no Twitter sobre o tema. A segunda medição aconteceu no início das transmissões do desfile das Escolas de

escolas da transmissão deve-se ao fato de que, a partir do momento que avançamos pela transmissão durante a madrugada, o número de telespectadores vai diminuindo e consequentemente

social

e da Unidos da Tijuca no primeiro dia e da Mangueira no segundo dia. A opção pelas primeiras

TV

Samba do Rio de Janeiro, nos dias 10 e 11 de fevereiro, acompanhando os desfiles do Salgueiro

um estudo exploratório sobre

No período da manhã, iniciando às 11 horas, até o final do Esporte Espetacular, por

API:

incêndio na transmissão da TV.

com uma

programa que estava no ar, a importância do evento na avaliação da emissora alterou totalmente

Conversando

do estúdio os apresentadores esportivos tiverem que assumir o contato e as chamadas dos cor-

a partir da relação entre o twitter e a programação da televisão

iniciou-se de maneira mais articulada a partir do programa Esporte Espetacular onde a partir

6.2 – Resultados e Considerações Finais

fma.com/socialtv.htm) . No caso do acidente de Santa Maria foi observado um crescente interesse sobre o tema no Twitter à medida que a cobertura dentro do programa Esporte Espetacular foi acontecendo. É obvio que outros programas em outras emissoras também ajudaram nesse fato. As medições iniciais começaram indicando um fluxo de 41 tweets por minuto, número que foi crescendo para alcançar um pico de 174 ao final do programa. É importante lembrar que a API do Twitter responde a consultas informando apenas uma parte do fluxo total que recebe o que implica em dizer que os números apontados são ainda maiores. Os números indicados são uma amostra do universo de mensagens processadas pelo Twitter mas servem para apontar uma tendência de crescimento nesse intervalo de tempo. Nas medições da noite, durante o programa Fantástico, apesar de já se terem

S antos

sas medições estão publicados numa tabela no site do LABCOM. (http://www.labcomu-

dos

Os dados coletados através de fontes secundárias bem como os resultados des-

M árcio Carneiro

o número de tweets sobre o tema.


passado mais de 12 horas do início da cobertura da manhã, a intensidade do interesse foi diluída, com os fluxos variando em torno de 40 TPMs um pouco antes e depois da É impossível afirmar com certeza o que levou a essa redução. É fato que durante o programa da manhã havia a novidade da matéria, as pessoas estavam acordando no domingo e sendo pegas de surpresa com as informações sobre o incêndio. Havia

de das referências na programação ao fato, constituindo-se em algo bastante parecido com uma transmissão ao vivo sobre o evento, já que praticamente toda a duração do programa foi dedicada à cobertura de Santa Maria. Novidade, percepção crescente da gravidade da situação e intensidade do número de referências ao evento talvez possam explicar o reflexo no Twitter. As transmissões da noite tinham uma situação distinta. O fato tinha sido amplamente divulgado por todos os canais e as pessoas de forma geral já conheciam a extensão dos danos causados. A saturação sobre o tema amplamente explorado durante todo o dia por todos os veículos de informação e a diluição da cobertura, agora já intercalada com outros assuntos, já não reforçavam a percepção das três características apontadas no parágrafo anterior. São hipóteses apenas que precisam ser mais aprofundadas. Já na transmissão do Carnaval feita pela Rede Globo, os números chegaram a 200 TPMs com cerca de 1 hora após o início do desfile do Salgueiro (a primeira escola, não do desfile, mas a aparecer na cobertura da emissora), no primeiro dia das transmissões. Esses números mais que dobraram (451 TPMs) após o início do desfile da Unidos da Tijuca, conhecida pela utilização de muita criatividade em suas comissões de frente e carros alegóricos. As dificuldades enfrentadas pela escola, que teve carro quebrado, princípio de incêndio e integrante passando mal, tudo isso durante o desfile, aparentemente refletiram na intensidade dos comentários do Twitter que chegaram a um pico de 684 TPMs ao final da apresentação. O mesmo fenômeno (a relação das dificuldades enfrentadas pela escola durante o seu desfile e o crescimento do fluxo de mensagens do Twitter) foi constatado também no segundo dia durante o desfile da Mangueira. Com uma hora de transmissão as medições obtidas usando ST chegavam a 683 TPMs. Entretanto nos minutos finais do desfile ficou claro que a escola estava com dificuldades para terminar sua apresentação no tempo estipulado, o que ocasionaria perda de pontos na avaliação dos jurados e con-

4 - n. 1

cobertura com números e detalhes cada vez mais impactantes, bem como a intensida-

ano

o choque inicial sobre a dimensão da tragédia que foi sendo delineada ao longo da

Revista GEMI n IS |

exibição das matérias sobre o acidente.

104


sequentemente diminuição das chances de título. A transmissão começou a enfatizar

105

fortemente esse problema e o fluxo do Twitter quase que instantaneamente começou

Como foi dito acima, os estudos usando a ferramenta ST estão ainda sendo feitos apeção atual já é possível coletar não só os textos das mensagens, como também aplicar algumas

o número de usuários únicos nas postagens e a definição de um período para a coleta das publicações, resguardados os limites da própria API que retorna em média apenas o conteúdo dos últimos sete dias anteriores a data da consulta (search). Novas funcionalidades vão permitir que outras modalidades de consulta sejam implementadas incluindo ai um módulo baseado em NLTK ( Natural Language Toolkit22) ferramenta que trabalha com textos para que análises voltadas à parte de conteúdo das mensagens também

para a análise dos pesquisadores bem como possibilitar a inserção dos mesmos em outras fer-

das mídias digitais, a que ele chama de transcodificação, ou seja, a estruturação dos objetos de mídias digitais em duas camadas, uma cultural, de significação e outra lógica, a partir da forma com que as máquinas tratam as coisas; permite imaginar que as pesquisas em TV Social

para que o diálogo com as APIs possa ser feito de forma mais fácil e efetiva. A recente associação entre Twitter e Nielsen para a criação de um novo conjunto de métricas de audiência na TV também baseada nos comentários do Twitter indica que a TV Social já conseguiu também bastante atenção do mercado e que novos formatos e modalidades híbridas de utilização e consumo do conteúdo da TV estão por vir.

22 www.nltk.org

S antos

uma compreensão sistêmica desses fenômenos. A ferramenta ST foi pensada com essa intenção

dos

também precisam abordar e coletar informações sobre essas duas camadas, de forma a permitir

M árcio Carneiro

Utilizando as definições de Manovich (2006) sobre as características dos produtos

ramentas complementares como planilhas e bancos de dados.

social

A vantagem de uso da ST é justamente a de gerar arquivos em texto mais acessíveis

TV

possa ser feita.

um estudo exploratório sobre

palavras mais frequentes e a divisão da massa coletada a partir da língua utilizada, bem como

API:

métricas básicas como o número de tweets por minuto, a listagem dos retweets e menções, as

com uma

nas em caráter exploratório já que o próprio software está incompleto. Apesar disso na situa-

Conversando

1356 TPMs, bem acima da média do dia anterior.

a partir da relação entre o twitter e a programação da televisão

a subir com as pessoas comentando justamente essa situação. O pico medido ficou em


Referências

106

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Revista GEMI n IS |

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107

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TV

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com uma

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Conversando

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a partir da relação entre o twitter e a programação da televisão

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M árcio Carneiro dos

S antos


Problemas na D efinição Legal B rasileira de TV Sob D emanda Via Internet Wiliam M achado

de

A ndrade

Bacharel em Comunicação Social pela ESPM, especialista e Mestre em Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da USP, doutorando em Administração e docente na Universidade Metodista de Piracicaba. E-mail: wimandrade@unimep.br

G lauco M adeira

de

Toledo

Mestre e Bacharel em Imagem e Som pela UFSCar. Coordenador da Especialização em Comunicação: Linguagens Midiáticas do Barão de Mauá. Professor de Comunicação Social do IMESB-VC. Membro do Grupo de Análise do Audiovisual e do Grupo de Estudos do Audiovisual da FAAC-UNESP e do Grupo de Estudos Sobre Mídias Interativas em Imagem e Som, do PPGIS-UFSCar. Membro do OBITEL-UFSCar (Observatório Ibero-americano de Ficção Televisiva, núcleo UFSCar). E-mail: glaucot@yahoo.com

D alila A lves Corrêa Doutora em Administração pela FEA-USP, Mestre em Administração pela EAESP – FGV e graduada em Administração de Empresas pela PUCCAMP - Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Docente e pesquisadora do programa de pós-graduação em Administração e coordenadora do MBA em Gestão de Pessoas e Desenvolvimento do Capital Humano da Faculdade de Gestão e Negócios da Universidade Metodista de Piracicaba. E-mail: dacorrea@unimep.br

Revista GEMI n IS

ano

4 - n . 1 | p. 108 - 126


Resumo A legislação brasileira que regulamenta as emissoras de televisão não contempla os serviços de Internet Protocol Television (IPTV) e Over The Top (OTT), em parte por entender a televisão a partir da forma de transmissão, e não pelo conteúdo. Isso deixa margem para que novos negócios envolvendo essas tecnologias funcionem sem regulamentação, demonstrando que a legislação atual desconsidera o contexto da convergência midiática. Palavras-Chave: Legislação brasileira, IPTV, OTTtv, Legislação canadense, Convergência midiática.

Abstract The Brazilian legislation that regulates television transmitters does not include the services of Internet Protocol Television (IPTV) and Over The Top (OTT), in part by understanding television by its transmission form, not its content. This leaves scope for new businesses involving these technologies to operate without regulation, demonstrating that the current legislation disregards the context of media convergence. Keywords: Brazilian legislation, IPTV, OTTtv, Canadian legislation, Media convergence.


Introdução Este artigo tem por objetivo discutir a inadequação das leis brasileiras que pretendem regulamentar a televisão em incluir as tecnologias contemporâneas voltadas à oferta de conteúdo televisivo que utilizam a internet. Serviços como Internet Protocol Television (IPTV) e Over The Top (OTT) não são regulamentados no Brasil de forma a entendê-los como fornecedores de conteúdo audiovisual da mesma forma que emissoras de televisão por radiodifusão, cabo ou satélite. Visando ilustrar a situação, será apresentado inicialmente um breve cenário atual da convergência midiática e a migração de diversos conteúdos das formas de distribuição analógicas para as digitais. Em seguida, um panorama das leis reguladoras da televisão no país, apontando sua idade e a terminologia tecnicista utilizada nos textos para descrever situações que, ao evoluírem naturalmente para novas formas de tecnologia, ficam descobertas da legislação. E, por fim, será feita uma comparação entre o nosso enfoque e terminologia utilizada nas leis com o equivalente canadense, que faz referência muito mais ao conteúdo que à forma de propagação, permitindo que as revisões das leis sejam feitas mais em função da intenção que da necessidade de atualização tecnológica. 01. Cenário das mudanças: impactos mercadológicos da convergência midiática e novas tecnologias A popularização da internet e suas possibilidades de oferta em banda larga nos últimos anos têm levado a adaptação dos meios de comunicação para o universo digital e interligado em rede. Os fenômenos da digitalização e sua virtualização foram discutidos por autores como Levy (1996) e Castells (1999) no sentido de explicitar suas características e consequências sociais, criando algumas bases referenciais para análises e pesquisas posteriores. A velocidade que a internet se apropria dos meios convencionais tem causado mudanças profundas na distribuição de conteúdo, impactando diretamente nos modelos de negócio


corporativos, que precisaram encontrar formas de melhor adaptação ao consumidor transformado em usuário de tecnologias. Newsweek, que após oito décadas de publicações impressas decidiu pela distribuição exclusiva online a partir de 2013 (SABA e LAURIA, 2012). Nem todos os veículos que migraram para a internet fazem-no interrompendo suas

concomitantemente. A esses exemplos seguem-se outros, como a expansão dos ebooks e a concorrência das rádios convencionais com aquelas cuja programação pode ser montada pelo ouvinte para a transmissão online. A dualidade analógico-digital tem demonstrado ser necessário repensar a relação entre forma e conteúdo, à medida que os meios têm se reformulado frente à expansão de material codificado e decodificado em dígitos binários. Não se trata apenas da disponibilização de veículos para a exibição pelo computador, mas de seu posicionamento em relação ao público em tempos que a própria ideia do computador vem sendo revisitada em sua transformação, ainda que parcial, em reprodutores portáteis de áudio e vídeo, Smart Phones, tablets e até mesmo, construindo o objeto deste texto, televisão. Há de se pensar na convergência dos meios ao se tornarem digitais. Certas características próprias de cada um passam a se integrar a linguagens naturais de outros, fazendo com que as fronteiras narrativas se tornem híbridas. Exemplos podem ser encontrados em jornais e revistas online que disponibilizam links a vídeos e áudios complementares ao conteúdo textual. Em outro caso, o da revista inglesa The Economist, todas as matérias são transformadas em arquivos de áudio, levando o público a ouvir a revista. A definição, portanto, dos meios de comunicação digitalizados não deve ser resultado apenas da distinção da forma particular como eles são conduzidos, umas vez que seus suportes têm perdido suas propriedades explícitas no contexto online. Uma abordagem possível é a observação do tipo de linguagem utilizada e o conteúdo exibido, ou seja, como o próprio meio define suas estratégias de comunicação. Dessa forma, conclui-se que uma rádio online não deixa de ser rádio, bem como uma TV online não deixa de ser TV, apesar da utilização de ambas pela internet não depender, necessariamente, de radiodifusão.

4 - n. 1

pondente online de sua versão impressa, sendo a estratégia de mercado a oferta das duas formas

ano

outras maneiras de entrega de conteúdo. Diversos jornais ao redor do mundo possuem o corres-

Revista GEMI n IS |

Nesse contexto, alguns exemplos valem ser notados, como o da revista estadunidense

111


Televisão e TV Online compreensão de seu desenvolvimento e tendências. Concomitante à sua incursão online, a TV digital passou a ser oficialmente transmitida no país, após ter a ela destinada especial atenção do governo federal para regulamentação e criação de modelo próprio de conversão e programação. Além disso, a TV a cabo teve suas normas reformuladas, com abertura de mercado e o estabelecimento de cotas de produto nacional para exibição nos canais exibidores de produções estrangeiras. Já a TV por internet, entretanto, não obteve a mesma atenção, sendo ignorada tanto para as cotas quanto em sua possível integração com a TV Digital. Entre as três, a televisão pela internet é mencionada como a de maior potencial de expansão, havendo, inclusive, a crença de que ela seja capaz de superar a transmissão das outras duas (cf. BERMAN, DUFFY e SHIPNUCK, 2006). Seu funcionamento pode ser fragmentado, contínuo em tempo real ou sob demanda (on demand), dependendo da forma como é abordada. O primeiro pode ser encontrado em websites que disponibilizam trechos audiovisuais com os mais diversos propósitos, desde usos pessoais até trailers de filmes para

O segundo, de maneira contínua, ocorre através de streaming, permitindo inclusive transmissões ao vivo, demandando maior banda para adequada exibição. Algumas emissoras disponibilizam sua programação deste modo, que também serve de suporte para ingressantes no mercado de TVs exclusivamente streamed. Por fim, a forma on demand, permite a visualização a partir de um catálogo de filmes, séries e programas, com modelos de negócios próximos ao da TV a cabo (através de assinaturas) e da televisão aberta (com exibições de anunciantes em intervalos comerciais). Ela pode ser conduzida tanto por streaming quanto por carregamento. A TV sob demanda apresenta dois modelos de transmissão. A primeira, a Internet Protocol Television (IPTV; cf. SIMPSON e GREENFIELD, 2009, pp. 01-14), funciona através da instalação ou integração de aparelhos destinados exclusivamente a este fim, como a Apple TV ou as conexões com a internet das Smart TVs. A segunda, de maior expansão e configurando as tendências do meio, é a chamada OTTtv, ou televisão de transmissão de conteúdo over the top (OTT), que utiliza a internet apenas como meio de transmissão de dados para sua exibição em dispositivos online.

Wiliam Machado de Andrade - Glauco Madeira de Toledo - Dalila Alves Corrêa

do seja carregado total ou parcialmente no dispositivo do usuário.

o cinema. Alguns programas, para aperfeiçoar a visualização, permitem que o conteú-

Problemas na Definição Legal Brasileira de TV Sob Demanda Via Internet

No Brasil, a televisão, em especial, tem demonstrado certos desafios para a

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Algumas emissoras por internet, como o Netflix e a Crackle, funcionam tanto por IPTV como OTTtv, expandindo suas possibilidades de atingir o público. ao possibilitar ao usuário à assistência de conteúdo a partir de diferentes aparelhos no momento e local escolhidos (POSSEBON, 2009, p. 240), ao passo que a TV convencional passa a ser percebida como televisão por hora marcada, a appointment TV (GRANT, KA-

A desvantagem da TV por internet aparenta ser a dificuldade de acesso à banda ideal para a exibição contínua do conteúdo audiovisual, o que leva, por exemplo, exibidores via streaming a baixar a qualidade dos vídeos para que demandem menos da conexão e assim mantenham a transmissão sem interrupções. A expansão de oferta de conexão à internet e os avanços tecnológicos para a recepção têm superado o problema, permitindo que operadores de OTTtv alcancem qualidade em alta definição de som e imagem, equivalente à TV digital e a cabo. Frente a esta última, a OTTtv demonstra constituir-se em concorrência real (conferir as observações de Ulin, 2010, p. 06), utilizando o próprio modelo mercadológico da TV fechada: o acesso ao conteúdo pode ser realizado por assinaturas que permitem a assistência do conteúdo ou ainda não disponíveis na TV aberta ou produzidos exclusivamente pela emissora. Essa característica, aliada à maior oferta de canais e qualidade de transmissão, constroem as diferenças da TV a cabo em relação à TV fechada para o argumento de que o valor pago pela assinatura gera tais benefícios. Ainda assim, à exceção da possibilidade pay-per-view de programas esportivos ao vivo (uma vez que até mesmos os filmes, nesta modalidade, têm a exibição iniciada e repetida em períodos preestabelecidos), a TV a cabo funciona como appointment TV. Em outras palavras, a OTTtv é capaz de oferecer as mesmas benesses, incluindo ainda o momento de escolha para a assistência. De forma dual, algumas emissoras de televisão, inclusive no Brasil, têm tentando utilizar a IPTV ou a OTTtv de forma conjunta com suas transmissões regulares convencionais, disponibilizando trechos de suas programações em seus websites ou aplicativos. A exploração da internet para disponibilizar conteúdo, entretanto, parece ser de domínio maior daqueles cujo foco está na nova forma de exibição que daqueles que já operam na TV convencional.

4 - n. 1

exibição daquilo que lhe interessa para ser exposto a tal.

ano

MINER e LEE, 2009, pp. 63-68), ou seja, o espectador precisa aguardar o momento de

Revista GEMI n IS |

A TV por internet possui uma vantagem em relação à televisão convencional

113


Velocidade das mudanças

de negócio dos meios convencionais. Os impactos já podem ser sentidos no tempo presente, norteando decisões estratégicas futuras. Ainda assim, as bases teóricas que observam temas como IPTV e OTT parecem não acompanhar a velocidade de suas expansões, sendo, no tempo presente, poucos os estudos acadêmicos que as abordam. Daí haver a necessidade de construção de referências que auxiliem a compreensão dos usos e tecnologias. Além disso, e mais especificamente no caso do Brasil, as normas regulatórias da televisão não contemplam a OTTtv, focando-se na televisão a cabo e digital, com aparente falta de percepção das tendências mundiais, mesmo com transmissoras via internet já operando no país. 02. O aparato legal regulador da televisão e suas considerações Antes mesmo de que as primeiras transmissões experimentais de televisão fossem feitas no país (em 1948, por Olavo Bastos Freire em Juiz de Fora, MG, segundo notícia do jornal MegaMinas.com) já havia menção a ela nos decretos nº 20.047, de 27

ção estavam também ali referidas, para que, se delas se viesse a fazer uso por aqui, já estivessem previstas e regulamentadas, inclusive com finalidade, conforme relata o seguinte artigo: “Art. 12. O serviço de radiodifusão é considerado de interesse nacional e de finalidade educacional” (1931). A televisão no Brasil tem sido regulamentada a partir do suporte de transmissão. O uso da radiodifusão, desde a origem, tem sido o parâmetro para lidar com a legislação que envolve a televisão aberta, aproximando suas discussões das do rádio, mesmo que esses meios tenham se separado muito desde seu início, em épocas em que a televisão ainda era chamada de rádio com imagem. Art. 2º Para os efeitos deste decreto, constituem serviços da radiocomunicação, a radiotelegrafia, a radiotelefonia, a radiofotografia, a radiotelevisão, e quaisquer outras utilizações de radioeletricidade, para a transmissão ou recepção, sem fio, de escritos, sinais, imagens ou sons de qualquer natureza por meio de ondas hertzianas (1931).

Hoje em dia, com as rádios online, IPTVs, OTTtvs, TVs por acesso condicionado

Wiliam Machado de Andrade - Glauco Madeira de Toledo - Dalila Alves Corrêa

radiocomunicação de imagens animadas”. Diversas outras formas de radiocomunica-

de Maio de 1931, e nº 21.111, de 1º de Março de 1932, referida como “Radiotelevisão,

Problemas na Definição Legal Brasileira de TV Sob Demanda Via Internet

O cenário de novas tecnologias do audiovisual demonstra desafiar os modelos

114


como as TVs a cabo e de assinatura com transmissão via satélite, e todas elas transmitindo conteúdo audiovisual, ainda que se possa alegar que não é em sua totalidade telea radiodifusão, nem somente a web, nem somente o acesso condicionado e a gratuidade. Por exemplo: as atuais diretrizes do Ministério da Educação para a grade curricular de formação de Radialistas (será válido ainda esse termo para designar o pro-

Recentemente foi modificada a antiga Lei do Cabo (Lei Nº 8.977, de 6 de janeiro de 1995) que se referia à TV paga, mas por usar a terminologia “a cabo”, abria brecha para as emissoras que não trabalhavam com o suporte de distribuição “cabo”, mas com satélite ou outros recursos, a fugirem das determinações da lei. A versão atual da lei fala em Serviço de Acesso Condicionado, subentendendo que é qualquer acesso pago. Esse tipo de preocupação precisa fazer parte não somente dos raciocínios anteriores à primeira versão da lei, mas também dos resultados finais obtidos, que muitas vezes perdem pelo caminho durante as discussões alguns termos fundamentais, justamente para favorecer essa ou aquela empresa ou nicho de mercado. Segundo a definição da Anatel: Serviço de Acesso Condicionado - SeAC é o serviço de telecomunicações de interesse coletivo, prestado no regime privado, cuja recepção é condicionada à contratação remunerada por assinantes e destinado à distribuição de conteúdos audiovisuais na forma de pacotes, de canais de programação nas modalidades avulsa de programação e avulsa de conteúdo programado e de canais de programação de distribuição obrigatória, por meio de tecnologias, processos, meios eletrônicos e protocolos de comunicação quaisquer.

Assim, sendo obrigatoriamente remunerado, perde-se a possibilidade de enquadrar serviços “condicionados” a algo que não seja pagamento. No entanto, já é um ganho em relação aos termos “a cabo” e “por assinatura”, conforme segue: A Resolução 581, que aprovou o regulamento do Serviço de Acesso Condicionado (SeAC), que sucede os serviços de TV por assinatura, e a Resolução 582, que aprovou o modelo do termo de autorização do SeAC, foram publicadas nesta quarta-feira, 28, no Diário Oficial da União. Isso significa que as novas regras para a TV por assinatura entraram em vigor também nesta quarta. O SeAC unifica as regras para serviços semelhantes, que eram diferenciados pela tecnologia como, por exemplo, DTH (satélite), cabo, MMDS (micro-ondas). O SeAC também abrange e substitui o Serviço de TV a Cabo (TVC), o Serviço de Distribuição de Canais Multiponto Multicanal (MMDS) e o Serviço Es-

4 - n. 1

Rádio, Televisão e Internet.

ano

fissional da televisão?) propõe a troca do nome da graduação de Rádio e Televisão pra

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visivo, há motivos para crer que a referência para as discussões legais não pode ser nem

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Há outros países que lidam com a questão de forma diversa, como, por exemplo, o Canadá. Lá se baliza as questões relativas ao conteúdo audiovisual chamando-o de programação (programming) e não separando o meio de transmissão, como tem sido aqui; cabe ressaltar também que o Código Brasileiro de Telecomunicações, Lei nº 4.117, é de 27 de agosto de 1962, tendo no tempo presente mais de cinquenta anos. Fica nítida a necessidade de revisão do Código como um todo, bem como a mudança de parâmetros tecnológicos para parâmetros de conteúdo ou de intenção. 03. Pontos de vista para compreensão do tema Parte da dificuldade brasileira em enquadrar as novas tecnologias nas terminologias já existentes para a televisão pode ser explicada pelo modo com que o poder público nacional aborda o audiovisual. Nesse sentido, é possível observar nas publicações de órgãos federais acerca do tema o seu foco predominante em questões técnicas e legais, como as instruções normativas que existem para dar direcionamento às próprias leis, incapazes de possibilitar

fazem-no mais no sentido de descrever dados coletados do que como fonte de análises para tomadas de decisão. O objetivo é descrever as possibilidades presentes (noticiando editais e eventos) e fornecer referências do passado (listas de produções, bilheterias e contemplados em ações de incentivo). Mas não há estudos relacionados a tendências e mapeamento de público que visam prover informações para planejamento futuro. Tal conclusão é possível ao se acessar as fontes federais públicas online responsáveis pela regularização do cinema e da TV no país. A saber, os websites dos Ministérios da Cultura (MinC) e das Comunicações (MC), da Agência Nacional do Cinema (Ancine) e do Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual (OCA). Em todos eles, opções como “acesso à informação” e “publicações” disponibilizam planos e ações do governo, no sentido de divulgar metas e difundir as regras que norteiam os meios audiovisuais, incluindo a internet. Apesar dos dados sobre produções cinematográficas serem expostos pela Ancine e pelo OCA, não há informações de produção no que tange as telecomunicações, quão menos as possibilidades atuais da internet, citada apenas em planos de oferta de banda larga.

Wiliam Machado de Andrade - Glauco Madeira de Toledo - Dalila Alves Corrêa

Como resultado, as publicações são endógenas e, quando observam o mercado,

que as diretrizes descritas em seu texto funcionem de maneira autônoma.

116 Problemas na Definição Legal Brasileira de TV Sob Demanda Via Internet

pecial de Televisão por Assinatura (TVA). O SeAC foi criado pela Lei 12.485/11 que, entre outros, prevê a transmissão de conteúdo nacional na TV paga no horário nobre (DAMASCENO, 2012).


Pensados como meios distintos, cinema, TV e internet não possuem informações públicas conjugadas, sendo suas interfaces transversais ignoradas.

Uma estratégia diferente pode ser encontrada nas publicações do governo do

vação pública do ambiente mercadológico privado e seus movimentos e tendências é um padrão brasileiro e não, necessariamente, mundial. No website da CRTC, o Centro de Recursos de Informações oferece dados financeiros, glossários, regulamentações e relatórios do mercado de televisão local. A opção de visualização das finanças descreve números das transmissões a cabo ou por satélite, incluindo quantidade de assinantes e lucro obtido (comparativamente entre determinados períodos anuais) de cada uma das distribuidoras de conteúdo televisivo que operam naquele país, incluindo ofertas específicas ao consumidor, como os serviços de pay-per-view. Os glossários exibem informações acerca da terminologia técnica sobre TV e rádio, incluindo também a internet. As regulamentações e estatutos descrevem as ações da CRTC e as normas que regem o rádio e a televisão, também já incorporando a internet sob o ponto de vista de criar um novo meio (new media) difusor de conteúdos audiovisuais. Tais itens destinam-se predominantemente à descrição da realidade de transmissão, diferenciando-se dos correspondentes brasileiros ao fornecer detalhes econômicos e características do mercado. Por sua vez, a maior distinção na forma governamental de perceber a realidade tecnológica e de produção, especialmente para a TV e a internet, entre os dois países, está explícita no item “relatórios e publicações” (Reports and Publications). Nessa área do website da CRTC estão disponíveis os estudos, de professores e consultores, sobre o mercado e a inserção de tecnologias. Algumas das decisões de âmbito federal são baseadas nos relatórios publicados pela Comissão. Por exemplo, as políticas públicas para o novo meio, como citado acima, foram tomadas a partir da formação do Projeto de Iniciativa de Nova Mídia (New Media Project Initiative), que abriu chamadas públicas para consultas e criou relatórios com análises acerca dos possíveis caminhos legais a serem tomados. Um dos textos que merece destaque, neste caso, é o estudo intitulado “TV ou

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and Telecommunications Commission – CRTC), que demonstram que a ausência de obser-

ano

Canadá e sua Comissão de Radiotelevisão e Telecomunicações (Canadian Radio-television

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O exemplo canadense

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não TV: três telas, uma regulamentação?” (TV or Not TV: Three Screens, One Regulation?), de Eli Noam (2008). três modelos de televisão possíveis: a TV limitada (a primeira geração, que se trata da oferta de poucos canais e controle centralizado); a TV multicanal (segunda geração, que é composta de emissoras a cabo, aumento da oferta via satélite e utilização de aparelhos auxiliares, como o VHS e o DVD, até chegar à televisão de alta definição); e, por fim, a atual terceira geração de TV individualizada, que é a televisão por internet e móvel em seus dispositivos de exibição, incluindo a assistência de vídeos sob demanda (video on-demand – VOD). Percebe-se que a tentativa de definição canadense das novas tecnologias audiovisuais em contexto regulatório aborda a TV não a partir, exclusivamente, de seus métodos e técnicas de transmissão (a cabo ou por satélite), mas também por suas características de utilização pelo público. Para ratificar tal conclusão, Noam demonstra que o conteúdo veiculado é elemento diferenciador entre os tipos de televisão, que também devem ser pensados pelo seu suporte de condução (incluindo a internet) e formas de financiamento. Em suas conclusões, o autor defende a integração conteúdo-condução e regulamentação integrada da TV em seus três formatos, sugerindo um fundo mantido através

ção dos novos meios em relação ao conteúdo, com participação legisladora estatal apenas em um segundo momento, caso a regulamentação própria não esteja funcionando de acordo com normas preestabelecidas para a TV convencional. Além da publicação de análises, como a de Noam, a CRTC também disponibiliza seus pareceres que buscam expor as tendências das telecomunicações, tanto para conhecimento público quanto privado, como os textos “Análise de tendências de avanço rápido” (Fast Forward Trend Analysis - 2006) e “Parecer no ambiente futuro frente ao sistema de transmissão canadense” (Report on the Future Environment Facing the Canadian Broadcasting System- 2006), que refletem sobre os problemas atuais de oferta de conteúdo e acerca dos movimentos de mercado, calculando projeções de números de assinantes e espectadores de cada modalidade de televisão. As possibilidades futuras, quando expostas em textos estatais analíticos, fazem com que o planejamento para as próximas ações, tanto do governo quanto das empresas e do público, sejam direcionadas a finalidades de interesse comum. O norte exposto ao conhecimento geral é importante para que todos os envol-

Wiliam Machado de Andrade - Glauco Madeira de Toledo - Dalila Alves Corrêa

serem veiculadas por elas. Além disso, segundo ele, deve haver uma autorregulamenta-

de captação junto às empresas distribuidoras para o fomento de produções locais a

Problemas na Definição Legal Brasileira de TV Sob Demanda Via Internet

Nele, Noam expõe as dúvidas acerca de legislação única ou separada para os

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vidos, seja com regularização, produção, condução ou audiência, tenham uma visão esclarecida do contexto e evitem que dispendiosas ações sejam realizadas como desvios

Ações brasileiras

o acesso ao definir números mínimos de canais nacionais nos pacotes oferecidos por empacotadoras que operam no mercado de TV fechada. Há de se considerar a relevância da vigência de tal norma quando alguns especialistas apontam que o futuro da televisão não está na TV a cabo ou mesmo na digital, mas em sua transmissão via internet (BERMAN, DUFFY e SHIPNUCK, 2006). Nesse caso, as distribuidoras de conteúdo online não precisam se enquadrar nas cotas, já que a referida lei prevê normas especificamente na condução e não na recepção e conteúdo. A aprovação da Lei 12.485 aconteceu após audiências públicas que modificaram o Projeto de Lei original, talvez sob a crença de que as necessidades de produtores brasileiros, em defesa da cultura nacional, exposta na tela, em concorrência com os produtos estrangeiros, estivessem sendo contempladas e solucionadas, o que poderia levar à conclusão que aqueles envolvidos com o texto legal ou os participantes das sessões de discussão teriam cometido um erro ao não prever que seus esforços estavam sendo colocados em um meio de futuro questionável. Ao analisar o caso canadense, porém, é possível levantar outra hipótese: a de que a solução legal oferecida pelo governo brasileiro está adequada ao problema formulado pelas informações que estão disponíveis. Tais informações, entretanto, são insuficientes. Em outras palavras, é possível que no Brasil as decisões estejam sendo tomadas sem o devido conhecimento de tendências e possibilidades tecnológicas. Isso está evidente ao se observar os esforços de expansão do sinal e da recepção de TV digital e de oferta de “internet popular” sem haver uma convergência (contradizendo Collie, 2007, p. 36, ao determinar internet e TV com papéis distintos) de ambos. Conteúdo OTT em pauta Voltando aos relatórios da CRTC e seu caráter difusor de informações, vale notar os textos “Resultados da investigação factual nos serviços de programação over-

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material brasileiro na programação de emissoras de TV a cabo, condicionando também

ano

No Brasil, a Lei 12.485, de setembro de 2011, estabeleceu cotas de veiculação de

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de foco ou objeto.

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-the-top” (Results of the fact-finding exercise on the over-the-top programming services - 2011), “Padrões regulamentares de conteúdo e provedores OTT: desafios e abordagens potenches – 2012) e “Impacto mercadológico e indicadores da televisão over the top no Canadá: 2012” (Market Impact and Indicators of Over the Top Television in Canada: 2012). No primeiro, a tendência de substituição de transmissões ou redução de assinaturas dos serviços pagos frente à concorrência de oferta OTT é comentada, oferecendo, inclusive, uma definição para esta, ao afirmar que “a Comissão considera que o acesso à programação por internet independente de dispositivo ou rede dedicada à sua distribuição (por exemplo, via cabo ou satélite) é a definição utilizada do que tem sido intitulado serviço ‘over-the-top’”. O texto ainda conclui que, apesar das consequências mercadológicas, não há dissonância entre OTT e as políticas de transmissão canadenses, e que possíveis regulamentações poderiam desestimular o crescimento deste tipo de serviço, uma vez estar se tornando um fator importante do cenário local. O segundo reflete acerca da isenção de regulamentação da oferta de OTT, o que poderia forçar normas federais de transmissão segundo o Ato de Transmissão daquele país. Entretanto, percebeu-se que os provedores, para evitar ações estatais, passaram a utilizar a autorregulamentação na oferta de seus conteúdos, utilizando as diretrizes

O terceiro, de autoria de Peter H. Miller e Randal Rudniski, analisa o rápido crescimento dos provedores de OTT no Canadá, que em apenas dezoito meses de operação já contavam com 10% da população como assinantes. Os autores abordam diversas características do novo meio, incluindo as formas diferenciadas (e individualizadas) de medição de audiência (que podem resultar em mudanças de estratégias de produção, como exemplificado por Newman e Levine, 2012, pp. 01-05) e o número crescente de competidores em tal mercado, o que decerto não representará perdas de assinantes, uma vez que o número destes vem aumentando exponencialmente. Em outro texto, “Desenvolvimentos no mercado legal canadense de programas 2011” (Developments in the Canadian Program Rights Market 2011), Miller aponta que existe, naquele país, um mercado separado de exibição de conteúdo, voltado às produções locais e fomentado pelo aparato legal. Ao analisar possíveis impactos dos provedores de conteúdo OTT em tal ambiente, o autor, ao invés de preocupar-se em definir os meios e novos meios ou em

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sonância com as observações de Noam.

legais voltadas à TV aberta e a cabo para nortear a condução de seus serviços, em con-

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ciais” (Community Content Standards and OTT Providers: Potential Challenges and Approa-

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estabelecer os mecanismos de condução e suas implicações, aborda a questão da concorrência entre TV convencional e por internet com o foco na programação oferecida. canadenses de produção local em decorrência da expansão de serviços OTT, e não a defesa de que sua abordagem é a mais adequada para analisar o tema, utilizar a programação como objeto de discussão fornece uma base possível de aplicação em diversas si-

determinante em transmitir conteúdos e estabelecer as relações mercadológicas com o público. Assim, definir normas para um meio de transmissão específico, como no caso das cotas em TV a cabo, ignora o objetivo difusor das emissoras, abrindo brechas para que a legislação não seja utilizada a cada vez que a forma de condução sofra alguma alteração. No Canadá, com as informações citadas disponíveis publicamente, vem se discutindo se é o momento de revogar a isenção para o novo meio e regulamentar os provedores de OTT, enquadrando-os no Ato de Transmissão vigente naquele país (WINSECK, 2012 e OKALOW, 2013). Com a disponibilização e transparência dos estudos e pensando na programação como o objeto em pauta, independente da forma como é levada ao espectador, o governo canadense certamente alcança um nível adequado de discussão entre todas as partes envolvidas, fazendo com que as decisões sejam tomadas sobre bases sólidas. As outras preocupações brasileiras No Brasil, em nenhum material dos órgãos online são encontradas quaisquer menções acerca dos conteúdos OTT, havendo apenas algumas passagens sobre a IPTV, como eventos e consideração sobre a velocidade mínima necessária de internet para a sua recepção, no Programa Nacional de Banda Larga, realizado pelo Comitê Gestor do Programa de Inclusão Digital (2010), disponível no sítio do Ministério das Comunicações. Questões sobre o compartilhamento de conteúdo da TV convencional com OTTs e enquadramento normativo destas dentro das telecomunicações são ignoradas. O que se percebe no caso brasileiro é a ênfase nas ações tomadas e não nos critérios que as resultaram, em oposição com o exemplo canadense. Pode ser citado, a título de ilustração, que o website do MC, no momento da escrita deste texto, divulga amplamente as etapas do plano de desligamento do sinal analógico de televisão local, procurando prorrogar o prazo de 2016 para 2018. Os estudos que levaram à formulação do plano e de suas mudanças não são

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No final, seja por “appointment” ou por catálogo “on demand”, é a programação a

ano

tuações envolvendo os conflitos do mercado de transmissão, qualquer seja seu suporte.

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Apesar do objetivo de seu texto ser demonstrar os riscos dos distribuidores

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descritos no ambiente online do Ministério. Se no Brasil o plano de desligamento ainda está sendo formulado com metas para cin2011, com permissões para que algumas retransmissoras fizessem-no até um ano depois. Em outras palavras, a atenção voltada à legislação a cabo e os esforços em implantar o sinal digital, com a preocupação em subsidiar sua recepção, parece levar o governo brasileiro a não perceber as tendências e tecnologias que, vale apontar, já operam livremente no país, nem no sentido de enquadrar as novas tecnologias em modalidades existentes, ou criar novas, quão menos para realizar políticas de expansão do acesso. Por sua vez, o nível de discussão canadense e sua percepção do tema a partir da veiculação e não dos meios leva o país a considerar as hipóteses do futuro das opções de transmissão, uma vez já ter resolvido outros processos, como o da digitalização do sinal de TV, o que sugere que o Brasil deve abrir sua visão acerca da oferta de conteúdos, retificando sua abordagem baseada nos métodos de condução, bem como disponibilizar informações, em seus sítios na internet, de forma transparente para uma discussão social adequada. Considerações finais Ao passo que a definição brasileira de televisão se mostra inadequada e seu

tem suas operações autorizadas pelo governo federal) não favorecem a expansão da TV por internet no Brasil. Pesquisas realizadas para a produção deste texto concluíram que a venda conjugada de pacotes de TV a cabo, telefone e internet banda larga faz com que existam poucas opções para o usuário assinar, por exemplo, apenas a internet com valores vantajosos em relação a não utilização das duas outras opções. Por exemplo: desligar o serviço de TV a cabo para aumentar a largura da banda demonstra ser desvantajoso financeiramente ao assinante, uma vez que as operadoras, certas vezes, cobram um valor por pacote completo inferior (absoluto ou proporcional) àquele destinado a um dos serviços exclusivamente. Além disso, os planos estatais de expansão da “internet popular” pensam no acesso, mas não na largura de banda, fazendo com os usuários dessa modalidade não possuam adequada conexão para a utilização de TV online. A televisão por internet torna-se restrita no Brasil a faixas socioeconômicas específicas, capazes de arcar com os custos de banda convenientes ao acesso e, em casos de serviços pagos, incluir nos custos a assinatura também do provedor OTT.

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tégias mercadológicas das operadoras de telefonia, internet e televisão (que, vale dizer,

foco privilegia o meio em suas formas convencionais de transmissão, as próprias estra-

Problemas na Definição Legal Brasileira de TV Sob Demanda Via Internet

co anos adiante, vale mencionar que no Canadá o sinal analógico foi substituído em agosto de

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Conclui-se que o governo federal, em sua definição restritiva, aliado aos operadores que oferecem acesso, são mantenedores de modelos de televisão convencional, Mesmo assim, emissoras de TV por internet, pagas ou gratuitas, como Netmovies e Bolsa de mulher.com, têm operado no país desafiando as regras normalizadoras locais.

gulamentação do Código Brasileiro de Telecomunicações e das demais leis que norteiam o meio. Há, nesse sentido, um deslocamento de funções, uma vez que não é o governo federal a conceder permissão de operação, assim como ocorre na televisão aberta, ou as empacotadoras, que também respondem a regras legais. Quem pode ou não oferecer os canais por internet, no caso das IPTVs, são as próprias fabricantes de aparelhos de televisão, que incluem emissoras em seus produtos através de acordos bilaterais, baseados em critérios mercadológicos privados. No caso das OTTtvs, o critério é inteiramente do usuário, não havendo intermediário outro que não o provedor de internet que apenas possibilita o acesso e não controla as opções ofertadas. Assim, ao manter o modelo convencional de televisão no Brasil, ignora-se a vertente que, mesmo com as citadas barreiras impeditivas, ao menos parcialmente, opera no Brasil sem obrigações legais. Por fim, a falta de uma definição clara parece ser uma restrição à criação de regulamentação condizente. Ou, ao menos, como no Canadá, deve-se explicitar a decisão por não fazê-lo para, justamente, incentivar sua difusão. Analisar o tema pelo ponto de vista da programação, seja por catálogo ou por hora marcada, não só esclarece as características da TV como parte do novo meio, como também auxilia sua compreensão como difusor de conteúdos adaptados da televisão convencional e de conteúdos originais, que faz com que a internet seja uma possibilidade viável de produção e exibição de produtos audiovisuais.

Referências ANATEL - Agência Nacional de Telecomunicações. Disponível em: <http://www.anatel.gov.br> Acesso em: 05 de maio, 2013.

4 - n. 1

ou OTTtv não se enquadram em nenhuma legislação vigente, isentas, portanto, da re-

ano

Isso porque, operando fora do previsto pelas leis brasileiras, os canais de IPTV

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servindo como uma barreira para a expansão da tecnologia de vanguarda no país.

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ANCINE – Agência Nacional do Cinema. Disponível em: <http://ancine.gov.br/> Acesso em: 05 de maio, 2013.

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D ispositivos Móveis como Potencializadores da Televisão D igital Interativa: desafios e usos da segunda tela no telejornalismo E lane Gomes

da

S ilva

Mestranda da Linha Culturas Midiáticas Audiovisuais do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFPB- Universidade Federal da Paraíba. Integrante do Grupo de Pesquisa em Processos e Linguagens Midiáticas – GMID/ PPGC-UFPB. E-mail: nanegsilva@hotmail.com

E d Porto B ezerra Pós-doutor em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Estagiário Sênior no College of Communication da University of Texas (Knight Center for Journalism in the Americas). Professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFPB- Universidade Federal da Paraíba. PPGC-UFPB. Bolsista da CAPES – Proc. Número BEX 1487/12-4. E-mail: edporto@di.ufpb.br

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Resumo O presente trabalho é fruto de uma pesquisa em desenvolvimento e tem por objetivo identificar quais as possibilidades de uso de um dispositivo móvel na construção de um telejornal. Entendemos que em tempos de convergência tecnológica, os produtos de informação são produzidos de forma que possam gerar compartilhamento de ideias e discussão em grupos de pessoas. Nesse sentido, surge a necessidade de aplicar itens complementares ao conteúdo produzido, no intuito de tornar o assunto tratado o mais completo possível. A segunda tela visa adicionar informação naquela veiculada num programa ao vivo da TV. A reconfiguração da TV é necessária para se adequar ao uso das mídias móveis, que servem de segunda tela. Apresentaremos um levantamento geral sobre o uso de aplicativos de segunda tela em emissoras de TV nacionais e estrangeiras. Discutiremos seus usos e as perspectivas criadas com a aparição desta nova forma de consumo de informação que aglutina a TV e a Internet, destacando a área telejornalística. Palavras-Chave: Convergência, Televisão, Segunda Tela, Telejornalismo.

Abstract This article is based on research which has been developed and aims to identify the possibilities of using a mobile device in the construction of a newscast. We understand that in times of technological convergence, information products are produced that can generate an exchange of ideas and discussion in groups of people. In this sense, there is a need for additional elements to the content produced in order to make the object as completely as possible. The second screen is set to add information transmitted in a live TV program. Reconfiguration is required to accommodate the TV using a mobile communication means, which serves as a second screen. We present a study on the use of applications on the second screen television at home and abroad. Discuss their uses and perspectives created by the emergence of this new form of information consumption that brings TV and Internet, emphasizing journalism TV area. Keywords: Convergence, TV, Second Screen, TV Journalism.


1. Introdução

A

tualmente as emissoras de TV tentam promover interatividade em suas programações objetivando um maior envolvimento dos seus telespectadores. Obviamente querem ‘fisgar’ sua audiência, fazendo com que não se disperse,

mas que seja submersa na sua programação televisiva e assim seja alcançada pelos anunciantes. Estamos às voltas com mudanças tecnológicas, midiáticas e culturais promovi-

das pela convergência de mídias. O pesquisador francês, François Jost (2011), afirma que a chegada de uma nova mídia em um cenário já midiático, coloca questões necessárias à reflexão sobre as possíveis mudanças de comportamento causadas. É prudente entendermos que o uso de novos produtos para a alimentação da grande mídia, gera novos comportamentos e novos desafios. Em meio à crise que se abate sobre o fazer televisivo em tempos de convergências, surgem alternativas em experimentação, como o uso de dispositivos móveis. Tais mecanismos aparecem como alternativa real de potencialização da TV, bem como propõem a reconfiguração do meio. Este artigo é parte de uma observação feita em uma pesquisa em desenvolvimento. Em um primeiro momento, buscamos compreender a convergência tecnológica para uma mídia específica: a televisão. A partir disto travamos uma discussão sobre tecnologias agregadoras, que fazem parte do processo atual de reconfiguração do modelo de TV vigente. Tentamos desvendar como a linguagem televisiva e o telejornalismo se entrelaçam com métodos e modelos usados pela Internet. Em seguida, observamos como a TV pode ganhar possibilidades de uso com os dispositivos móveis. Para isso, algumas questões foram relevantes para a construção desta análise: como é construído esse ambiente convergente? Quais as funcionalidades das aplicações para segunda tela? Quais as modificações do processo interativo proporcionado pela televisão digital com o surgimento da segunda tela? Quais os usos e desafios da segunda tela no telejornalismo? A segunda tela visa adicionar informação complementar ao conteúdo veicula-


do em um programa de TV, ou seja, na tela principal. A reconfiguração da TV é necessária para se adequar ao uso da segunda tela. Mudando não só o processo de produção da televisão. A ideia é discutir usos, vantagens e desvantagens, além das perspectivas criadas com a aparição desta nova forma de consumo de informação que aglutina a TV e a

telejornal da TV Cultura, emissora da cidade de São Paulo, que utiliza a experiência no telejornal da noite. Em contrapartida, mostraremos também exemplos bem-sucedidos da segunda tela em programas de TV em algumas partes do mundo, a fim de entendermos o processo e observarmos quais os desafios deste experimento como forma de reconfigurar o fazer televisivo e a linguagem jornalística. 2. Convergência entre mídias – Um olho na TV e outro na Internet No contexto de convergência midiática, devemos entender que a relação entre interatividade e participação é caracterizada por transformações de caráter técnico, social e cultural, de modo que a própria noção de convergência deve ser pensada a partir desses três níveis. Ainda que o ambiente digital seja propício para a reunião de materialidade da convergência, concordamos com a ideia de Jensen (2010) que toma como premissa o fato de que são as interações e as práticas comunicativas que caracterizam os intercâmbios comunicacionais responsáveis por esse processo. Isso requer a reflexão sobre questões como participação e interatividade que estão diretamente ligadas aos níveis sociais e culturais do conceito. Jenkins (2009) entende que o termo convergência deve ser compreendido como mudanças tecnológicas, industriais, culturais e sociais no modo como as mídias circulam em nossa cultura. Num conceito mais amplo, ela se refere a uma situação em que múltiplos sistemas de mídia coexistem e onde o conteúdo passa por eles fluidamente. O determinismo tecnológico tem permeado os estudos de convergência. Entretanto, é imprescindível entendermos as mudanças inter-relacionadas existentes em outros setores. O que temos como pressuposto atual é que a tecnologia não é o único motor das reconfigurações culturais midiáticas, apesar de ser sua principal impulsionadora. O cenário é abrangente para o diálogo entre mídias, mas é prudente salientarmos a mudança cultural que isto tem causado. O termo convergência tem sido bastante usado quando o assunto envolve novas

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Nesta perspectiva, a pesquisa se dará com a análise do uso da segunda tela no

ano

Internet, mas com foco na área do telejornalismo e na produção de notícias.

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do conteúdo televisivo, mas também a postura do telespectador frente à programação

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tecnologias da informação e da comunicação. Isso se deve à crescente fusão dos mais diversos dispositivos tecnológicos, capazes de reunir várias mídias numa só interface. mais complexas. Resumidamente, percebe-se que os velhos meios de comunicação não estão sendo substituídos, mas revendo suas funções, que estão sendo transformadas em decorrência da introdução de novas tecnologias. Neste artigo vamos nos deter a entender a relação convergente entre televisão e Internet. A situação de confluência entre as duas mídias no Brasil é aumentada com a chegada do Sistema Brasileiro de Televisão Digital Terrestre, implementado em 2007. Novas características e propostas começam a figurar no meio da comunicação de massa. A possibilidade não só de ganho na qualidade de imagem, mas também de interatividade, portabilidade e mobilidade geram uma grande discussão a respeito dessa nova mídia. É importante lembrarmos que na década de 1950 a TV absorveu a tecnologia radiofônica, complementando-a com o advento da imagem; nos anos 2000 a internet vem absorvendo a TV no que diz respeito à reprodução de tecnologia (som e imagem) e programação. Entretanto, diferentemente da TV, a internet, por meio de suas ferramentas,

A interatividade com o público sempre fez parte do universo midiático. A TV e o rádio mantiveram em sua grade programas nos quais o público podia participar

gue é uma interatividade instantânea que satisfaça ao público. A busca por uma TV reconfigurada, faz com que a Televisão Digital Terrestre represente uma nova forma de proporcionar conteúdo televisivo. O processo de digitalização ainda é tímido. Muitos estudos sobre como será a Televisão Digital já existem, mas poucos sabem do que será possível ver dessa mídia. Compreendemos que o que se busca é uma interatividade mais plena, que modificará a forma de identificação entre usuário e emissora.

O deslocamento do telespectador para outras plataformas, fez com que a

televisão atentasse para a transformação de sua programação. Esta já não é mais exclusiva do fluxo televisual, ela pode também ser encontrada na Internet: o conteúdo visto na TV, e, ás vezes, dados que o complementam. Este tema proporciona diversas opiniões. Carlón (2009) e Miller (2009) afirmam que a televisão, tal como a conhecemos e consumimos, está perdendo audiência. A revolução tecnológica pode a reconfigurar, ou seja, a TV pode ser adaptada às novas

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ampliaram-se as possibilidades e fluidez dessas interações. Contudo, o que se perse-

da

por telefone e cartas. Com a extensão dos conteúdos televisivos para o ciberespaço,

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deslocamentos na produção, circulação e recepção de conteúdos.

possibilita inúmeras formas de comunicação interativa, tornando possível, inclusive,

D ispositivos Móveis como Potencializadores da Televisão D igital Interativa: desafios e usos da segunda tela no telejornalismo

Para Jenkins (2009) nova e antigas mídias podem interagir de forma cada vez

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circunstâncias e processos. Nesta reconfiguração, o espectador ganha o lugar central. Segundo Miller (2009, p. 22) “É bobagem pensar que a Internet servirá de opocom que a televisão penetre de outra forma, caracterizando uma transformação da TV, em vez de sua morte. Já para Newton Cannito (2010, p 16) “o digital tornará a televisão ainda mais televisão”. Ele tenta ir de encontro aos mitos apocalípticos e defende uma

Jensen (2010) lembra que as próprias mídias são capazes de reconfigurar as condições de comunicação, ou seja, que diferentes mídias suportam diferentes tipos de modificação, e que tanto o modelo de comunicação sofre impacto quanto o processo comunicacional e a esfera de produção de conteúdos. O formato que se pretende alcançar com a televisão digital nos obriga, segundo Aquino (2011, p.7), a refletir sobre questões comunicacionais que se desenvolvem através dos meios digitais e que promovem a reconfiguração de uma cultura marcada pelo uso de novos tipos de ferramentas da comunicação. A autora ainda afirma que essa interação dos usuários de Internet com outras mídias, traz argumentações sobre a comunicação em rede. Devemos ficar atentos não só com o que a mídia faz com as pessoas, mas o que as pessoas fazem com a mídia. Esse processo produz impacto direto no conceito de convergência midiática e se refere ao grau de interatividade, participação e aceitação dos indivíduos em relação aos processos comunicacionais estabelecidos no processo de convergência. Durante décadas a interação em meios de comunicação tradicionais, por exemplo, acontecia da seguinte forma: no rádio, o ouvinte tinha a oportunidade de realizar ligações e interagir com o locutor e só assim conceder sua opinião e contribuir com informações adicionais ou simplesmente, criticar ou elogiar o programa radiofônico. Já na Televisão, a interação era dificultada, de forma que, o telespectador era passivo em relação às notícias transmitidas, podendo apenas escolher se continuava submerso no conteúdo televisivo ou não, com o uso do controle remoto. Com o ambiente digital este cenário é modificado. Agora a proposta das emissoras de TV é de interatividade para imersão do telespectador. A fim de proporcionar expectativas para conseguir uma programação com mais participação e que gerará novos efeitos de sentido e facilitará o surgimento de um novo modelo de negócios, com proposta diferenciada de lucro. Entendemos que a TV construiu a propriedade de uma linguagem multimídia que ajudou a criar uma audiência cativa. Entretanto, ela encontrou na Internet a

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com a Internet.

ano

reconfiguração da TV através de uma causa mais interativa e ainda mais convergente

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sição à televisão.” Para o autor, a Internet, estando cada vez mais presente nos lares, faz

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possibilidade de uma relação promissora. Segundo Aquino (2011, p. 9) “um dos fatores que difere a internet dos demais meios de comunicação é a rapidez de seu alcance. A ser comparada com qualquer outro meio de comunicação”. A popularização dos aparelhos de informática e do acesso à Internet no trabalho e na educação contribui para o aumento do alcance da mídia. É importante salientar que ao mesmo tempo em que usa, a sociedade modifica e se apropria da tecnologia. A possibilidade de ser uma ‘obra aberta’ à modificação, faz da Internet uma ferramenta em constante evolução e amplamente aceita por seus usuários. A expectativa é que a Internet sirva de mídia agregada à TV, ou seja, que se busque nela o que se quer como informação complementar aos programas de televisão, não apenas com computadores do tipo desktop1, mas também através de mídias móveis (smartphones2 e tablets3). Logo, entendemos que a Internet seria uma potencializadora dos recursos oferecidos pela televisão, facilitando atividades e contribuindo para alterações no comportamento dos indivíduos. Para Murray (2003), a alteração no comportamento do telespectador está diretamente ligada aos processos de digitalização da informação e entretenimento, passando de atividades sequenciais para atividades simultâneas. Se antes o telespectador assistia

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velocidade com que a internet vem se difundindo nas últimas três décadas não pode

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po. Estar conectado a Internet facilita a interação entre mídias e dá passos importantes à reconfiguração e o alcance interativo que tanto se pretende. Não se trata de assistir

tela), é a legitimação da audiência da TV na Internet. De acordo com Donato e Puhl (2011) o poder destinado ao receptor não se limita a apenas escolher o horário e o produto midiático que irá consumir. Ele tem a capacidade de opinar, orientar e formar laços sociais com consumidores iguais a ele, além de estabelecer uma relação de mão-dupla com os produtores de mídia. Quem assiste a programação televisiva nos tempos atuais, busca manifestar suas opiniões e introduzir o conceito de interatividade através da internet, o cenário de convergência de mídias facilitou o processo. Estar conectado ao computador é necessá1 Desktop é uma palavra da língua inglesa que designa o ambiente principal do computador. Literalmente, o termo tem o significado de “em cima da mesa”. Era frequentemente utilizado para designar um computador de mesa por oposição ao laptop que é o computador portátil. Laptop tem o significado de “em cima do colo”. 2 Smartphone é um telefone celular, e significa telefone inteligente, em português, e é um termo de origem inglesa. O smartphone é um celular com tecnologias avançadas, o que inclui programas executados um sistema operacional, equivalente aos computadores. 3 Tablet é um tipo de computador portátil, de tamanho pequeno, fina espessura e com tela sensível ao toque (touchscreen). É um dispositivo prático com uso semelhante a um computador portátil convencional, no entanto, é mais destinado para fins de entretenimento que para uso profissional.

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a programação no aparelho de televisão, e comentar seu conteúdo na Internet (segunda

da

televisão pelo computador ou por qualquer dispositivo conectado a Internet: é assistir

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ao conteúdo televisivo para depois interagir, hoje ele faz as duas ações ao mesmo tem-


rio para que o telespectador passe da postura de passivo para um telespectador ativo e atento ao que se produz na televisão uma grade de programação, um fluxo comunicacional e uma linguagem multimídia que proporcionam um grande alcance popular. O que se almeja, atualmente, é potencializá-la com novos aparatos e deixá-la ainda mais usual e singular.

de uso e a reelaboração do conteúdo midiático televisivo. Acreditamos que os dispositivos móveis tecnológicos podem aprimorar o conceito de interatividade e fornecer suplementos que ajudem na identificação de uma nova forma de assistir TV. Assim, teríamos uma produção televisiva que geraria a busca por mais informações. A partir daí, seria necessário um segundo meio para complementar o que foi disseminado na primeira tela (TV). A mídia dita secundária, não tiraria a audiência ou o foco da tela da principal. Neste caso a programação da TV incentivaria o uso e justificaria a necessidade de uma segunda tela, materializada através de smartphone ou tablet. Estes tipos de dispositivos móveis não só oferecem uma nova opção para assistir a um programa de TV, como também mudam a forma como a experimentamos. Esta reflexão surge em meio a constantes dúvidas sobre o futuro da televisão. Dados de pesquisas mundiais nos dão subsídios para entendermos que estamos em um momento em que a televisão passa pela mudança não só de uso, mas de significação. Levamos em conta a ideia de Tourinho (2009, p.138) que diz que “no exercício da convergência entre as mídias, a forma como os novos discursos serão organizados torna-se um desafio crucial para que a nova plataforma não se limite a ser um simples espaço de recepção dos discursos obtidos nas linguagens das mídias tradicionais”. De acordo com um estudo4, publicado em 2011 pela Yahoo! e pela Nielsen Company, mais de 86% dos usuários de Internet usam seus dispositivos móveis enquanto assistem TV, sendo que 1/4 deles procuram conteúdos relacionados ao que estão assistindo. Em agosto de 2012 a empresa de consultoria Deloitte5 realizou uma pesquisa com 4.000 pessoas no Reino Unido para analisar os hábitos dos telespectadores com a segunda tela. Neste estudo verificou-se que 24% de todos os entrevistados a usavam, 4 Disponível em: http://advertising.yahoo.com/article/the-role-of-mobile-devices-in-shopping-process.html. Acesso em 15 de novembro de 2012. 5 Disponível em: http://www.deloitte.com/view/en_GB/uk/industries/tmt. Acesso em 15 de novembro de 2012.

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Entramos em um processo convergente em que é preciso a reflexão do modelo

ano

3. Segunda Tela - Dispositivos Móveis potencializando a TV

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Entendemos que a TV é um meio singular diante de outros meios, pois possui

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e que aproximadamente metade dos que tem entre 16-24 anos também usavam e-mail, Facebook ou Twitter para discutir algo que eles estavam assistindo na TV. entre o programa televisual e o público.

New types of criticism based on social networks, however, can reveal a greater connection between characters, TV Show, and audiences. Instead of seeing characters as mere components of narrative, the social network mode reveals them as links in a network of multiple identifying selves, of which the viewers can also be a part.6

As redes sociais estão remodelando a audiência e a forma como as pessoas assistem e se comportam diante da televisão. Em reportagem publicada no mês de janeiro de 2013 na edição on line da Revista de circulação nacional Info7, trouxe que as empresas estão se especializando na análise de dados da chamada Social TV. Para a professora Karla Patriota (2013), este fenômeno trata-se, na realidade, de uma área que desponta aos poucos, mas já se constitui como um espaço promissor para o desenvolvimento de novos serviços para as emissoras de TV – que assistem a

diferenciado. Outro ponto importante, segundo Patriota (2013), a considerarmos quando

gência da Internet com a TV seja uma realidade presente em diversas partes do mundo. Em suma, a Social TV representa uma mudança na forma como os espectadores consomem o conteúdo televisivo. A audiência é afetada diretamente pelos comentários, elogios ou críticas que as pessoas fazem nas redes sociais enquanto assistem a determinado programa na televisão. O fenômeno não era visto antes, já que se esperava o dia seguinte para comentar na roda de amigos o que tinha passado na TV no dia anterior. Hoje, entendemos que a rede serve de uma grande praça para os telespectadores comentarem entre si o que de fato lhes agrada.

6 Tradução livre da autora: “Novos tipos de crítica baseada em redes sociais, no entanto, podem revelar uma maior conexão entre os personagens do programa de TV e o público. Em vez de ver personagens como meros componentes da narrativa, o modo de rede social revela-os como elos de uma rede de vários eus de identificação, de que os telespectadores também podem ser uma parte”. 7 Reportagem TV do futuro terá tablet como segunda tela. Disponível em http://info.abril.com.br/noticias/tecnologia-pessoal/tv-do-futuro-tera-tablet-como-segunda-tela-16012013-15.shl Acessado em 20 de janeiro de 2013.

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esteja a passos lentos demais, e só vá se concretizar de forma plena, quando a conver-

da

abordamos o conceito de Social TV é que a tão propagada interatividade na TV aberta

E lane Gomes

busca de novas formas de reconfigurar a televisão e oferecer um conteúdo televisivo

fragmentação da audiência massiva, e para os produtores de conteúdo, que estão em

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Para Paul Booth (2012), as redes sociais podem gerar um novo tipo de conexão

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A empresa Ericsson,8 baseada em seu programa de pesquisa ConsumerLab, publicou um estudo em 2012 para entender os hábitos de uso de TV e de vídeo, abrangendas pessoas usam mídias sociais enquanto assistem TV e que 40% delas estão discutindo o que eles estão assistindo no momento. A Red Bee Media 9 realizou, em 2012, uma pesquisa com mais de 2.000 britâni-

tinham usado uma segunda tela para descobrir mais sobre um programa de televisão; que 44% dos usuários usam uma segunda tela para encontrar mais sobre marcas e anúncios; e que 56% estão abertos para receber anúncios direcionados através de aplicativos síncronos. De acordo com outra pesquisa realizada pela COG Research10, também publicado em 2012, os usuários conectados simultaneamente na TV e na segunda tela são mais propensos a ficar na sala de estar durante os intervalos comerciais. Todos os dados que resultaram destas pesquisas apontam que a TV ainda é algo a ser considerado para o desenvolvimento de aplicativos para segunda tela, pois esta pode mudar a forma como os consumidores interagem com as marcas, combinando visualização, compartilhamento, participação e marketing integrado para permitir que os distribuidores e anunciantes consigam um maior envolvimento com seus consumidores. O recurso de aliar dispositivos móveis aos programas televisivos tem sido utilizado massivamente em programas de entretenimento. A reportagem publicada na edição on line da Folha de São Paulo11 mostra que emissoras e patrocinadores têm investido em aplicativos para celulares e tablets que fazem a ponte entre a programação e a internet. Quem assiste a uma corrida de F1 ou a um jogo de futebol, por exemplo, pode seguir estatísticas extras. Os fãs das séries norte-americanas ‘The Walking Dead’ ou ‘Hannibal’ e que são exibidas no Brasil através de canais de a cabo, podem baixar os aplicativos das séries e podem, enquanto assistem ao episódio, obter informações detalhadas sobre o passado de um personagem, por exemplo. No Brasil já existem aplicativos para segunda tela em programas de entrevista

8 Disponível em www.ericsson.com/res/docs/2012/consumerlab/tv_video_consumerlab_report.pdf Acesso em 15 de novembro de 2012. 9 Disponível em www.redbeemedia.com/sites/all/files/downloads/second_screem_research.pdf. Acesso em 15 de novembro de 2012. 10 Disponível em: http://www.thinkbox.tv/multi-screening-encourages-more-tv-and-ad-viewing. Acesso em 15 de novembro de 2012 11 Assistir à TV com smartphone e tablets na mão aproxima o telespectador. Disponível em http://www1.folha.uol. com.br/tec/2013/04/1265765-assistir-a-tv-com-smartphones-e-tablets-na-mao-aproxima-telespectador.shtml. Acesso em 06 de maio de 2013.

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sitivos enquanto assistiam TV. O estudo também revelou que 52% dos entrevistados

ano

cos proprietários de smartphone, tablet e laptop dos quais 86% usaram um desses dispo-

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do entrevistas com 100.000 pessoas em 40 países. Sua principal descoberta foi que 62%

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como o ‘Roda Viva’, um programa de entrevistas, o ‘Cartão Verde’ que é um noticiário esportivo e o Game Show ‘Quem sabe, sabe’. Todos os programas são da emissora de São Em relação a conteúdo noticioso sincronizado aos dispositivos móveis, no Brasil apenas o Jornal da Cultura utiliza o experimento. Mas, em outros países podemos encontrar grandes conglomerados internacionais de notícias, tais como CNN12, Fox13 e CBS14 que estão lançando aplicativos para segunda tela. Isto parece ser um indício de que estas agências estão investindo recursos para averiguar quais as potencialidades destes aplicativos. A Figura 1 apresenta a tela da rede de notícias Fox referente ao aplicativo para segunda tela chamado FOXNOW. Ele pode ser baixado para uso em diversas plataformas (desktop, tablet, Xbox 360, iphone e ipad).

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Paulo, a TV Cultura.

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E lane Gomes da

Fonte – http://www.fox.com/foxnow/

O surgimento de aplicativos para a segunda tela também é preocupação de especialistas em estudos da TV1516 que começam a emitir pareceres sobre suas experiências no uso dos mesmos. 12 Disponível em http://www.cnn.com/2012/09/15/showbiz/tv/second-screen-tv-our-mobile-society. Acesso em 20 de abril de 2012. 13 Disponível em http://www.fox.com/foxnow/. Acesso em 20 de abril de 2013. 14 Disponível em http://www.beet.tv/2012/10/kenneth-lagana-cbs.html. Acesso em 20 de abril de 2013. 15 Disponível em http://blog.scribblelive.com/best-practices-2/cnn-adapts-the-second-screen-to-tv-news/. Acesso em 20 de abril de 2013. 16 Disponível em http://www.grantland.com/blog/hollywood-prospectus/post/_/id/70080/the-second-screen-is-this-app-really-necessary. Acesso em 20 de abril de 2013.

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Figura 1 – Tela para download do aplicativo FOXNOW


4. Sobre os desafios da segunda tela no telejornalismo

tica que pode absorver as audiências ao se proporem novas formas de colocar a reportagem no ar, usando plataformas distintas, porém complementares. Com o surgimento de novas mídias, como a Internet, com o volume rápido de

De modo semelhante aos diversos gêneros dos programas de televisão, o telejornalismo tem como uma de suas características a constante evolução de sua técnica e formato, incluindo aí a linguagem. A partir das inovações, mais visivelmente as tecnológicas, mas não apenas destas, o telejornal foi agregando qualidade e agilidade até chegar ao atual formato, com toda a sua riqueza de conteúdo, dinâmica e estética.

No formato narrativo do telejornalismo, com o uso da tecnologia, modifica-se a estrutura e traz possibilidades de reelaboração da narrativa. De acordo com Murray (2003, p.155) a narrativa com aspectos tecnológicos faz surgir à capacidade de apresentação de ações simultâneas de múltiplas formas. É o que se pretende com o uso da segunda tela. Embora se mostre como uma vantagem ao teleinternauta17 que não precisará buscar complementos das notícias em mecanismos de busca da Internet, esta possibilidade apontará para desafios os quais devem ser considerados. A perda da atenção do teleinternauta ao que está sendo veiculado na tela pincipal é um deles. Outro é a possibilidade de reelaboração da narrativa, ou seja, da linguagem audiovisual utilizada num telejornal. Uma alternativa é o uso da linguagem híbrida que fosse comunicativa para o público em geral e para o teleinternauta simultaneamente. A usabilidade do conteúdo da segunda tela é importante ponto a ser investigado. Isto é, os arranjos em tela devem ser projetados de forma que sejam de fácil acesso e uso pelo usuário que é internauta e telespectador ao mesmo tempo. Também se configura um desafio, a redefinição do modelo de negócios de um telejornal que agora precisaria incorporar elementos de merchandising da TV e da Internet de forma harmoniosa. Por último, está a necessidade de capacitação de profissionais para a produção de notícias nesta provável linguagem híbrida. É de fato importante sabermos que, quem deverá produzir conteúdo complementar em segunda tela será jornalistas multimídia

17 Entendemos que o termo Teleinternauta seria pertinente usar neste contexto por fazermos a junção das palavras: telespectador e internauta, para denominar o usuário de produto televisivo e de segunda tela.

4 - n. 1

buscavam ao máximo atrair o público. Segundo Tourinho (2009, p.91):

ano

informações, os telejornais foram obrigados a mudar a sua forma, sua apresentação e

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Mostrar a notícia através de outros ângulos é uma ampliação da forma jornalís-

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que aliem linguagem da TV com a da internet e por fim entenda como funciona o modelo de negócios em produtos a serem consumidos em dispositivos móveis. segunda tela para o seu telejornal da noite chamado Jornal da Cultura. Desde o dia 25 de janeiro de 2013 a emissora apostou no uso da ferramenta complementar. Porém, cabe a nós pesquisadores, observar como inicialmente esta experiência está sendo colocada em prática para as massas. Em uma observação empírica, compreendemos que o telejornal segue um formato diferenciado, com notícias mais trabalhadas, tempo de duração maior em comparação com outras emissoras nacionais que possuem em sua grade de programação os telejornais. No caso do Jornal da Cultura, todas as noites, dois comentaristas distintos participam do noticiário comentando o que é exibido. No canto da tela da TV é possível ver o ícone indicando que existe conteúdo complementar que pode ser consumido em uma segunda tela. Para estar conectado a segunda tela, é importante que o usuário esteja também conectado a uma rede social. Aos poucos vão aparecendo na tela do laptop, tablet ou smartphone os links das informações adicionais. Fotos, pequenos vídeos e textos curtos ajudam na imersão da notícia. E na hora do intervalo comercial só torna-se conteúdo também complementar

D ispositivos Móveis como Potencializadores da Televisão D igital Interativa: desafios e usos da segunda tela no telejornalismo

O telejornalismo da TV Cultura é pioneiro no Brasil ao lançar um aplicativo de

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Coletamos algumas imagens que ajudam no entendimento de como funciona a segunda tela no Jornal da Cultura. A Figura 2 apresenta a tela do website onde é possível baixar o

Figura 2 – Tela para download do aplicativo para segunda tela do Jornal da Cultura Fonte – http://cmais.com.br/segundatela

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sua equipe se depare com alguns dos desafios que elencamos.

da

aplicativo de segunda tela para o complemento de notícias deste telejornal. É bem provável que

E lane Gomes

aquilo que já faz parte da grade de programação da emissora.


Na Figura 3 é possível ver a segunda tela já em funcionamento. As informações são dispostas à tela do dispositivo complementar (laptop), de acordo com as notícias

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simultaneamente exibidas no fluxo normal do programa principal.

140

ano

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Figura 3 – Segunda Tela do Jornal da Cultura em funcionamento Fonte – http://cmais.com.br/segundatela

Em outra tela é possível ver que tipo de conteúdo complementar é disponibilizado para o teleinternauta. Na Figura 4, disposta abaixo, encontramos um vídeo que é oferecido ao usuário como informação adicional.

Figura 4 – Vídeo é utilizado como conteúdo complementar de segunda tela Fonte – http://cmais.com.br/segundatela


Encontramos também pequenos textos como conteúdo adicional disponível na página da segunda tela do Jornal da Cultura. Como é possível ver na Figura 5. Ao esco-

Figura 5 – Texto complementar de uma notícia presente na segunda tela Fonte – http://cmais.com.br/segundatela

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lher um dos links, o teleinternauta tem a opção de ler as informações complementares.

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Atualmente o cenário televisivo passa por um processo de reconfiguração onde

segunda tela, entendemos que o percurso é amplo e não se esgota facilmente. Objetivamente, cria-se uma forma de deixar o teleinternauta submerso no conteúdo televisivo, que está sendo consumido também em outra plataforma. Entretanto, compreendemos que deve haver um equilíbrio entre fornecer conteúdo adicional para o telespectador, e não o importunar ou o mover para fora da experiência televisiva. Dados de pesquisas mundiais nos deram subsídios para entendermos que o uso da segunda tela na sociedade contemporânea é uma realidade. Grandes redes da comunicação estão se adaptando a este fato. Seria interessante, iniciar um processo de aperfeiçoamento dos conteúdos das mídias móveis para que elas passem a ocupar o local de coadjuvantes à televisão. Por esses motivos, concluímos que a segunda tela gera novas perspectivas para o processo de mudança da televisão, possivelmente recriando sua programação. No caso específico deste trabalho, entendemos que a segunda tela pode poten-

S ilva - E d Porto B ezerra

sua potencialização. Ao iniciarmos o processo de investigação de usos e desafios da

da

se percebe a necessidade de utilização de ferramentas digitais complementares para a

E lane Gomes

5. Considerações Finais


cializar a linguagem do telejornalismo, seja ampliando a narrativa, seja aumentando o seu alcance de público, ao juntar telespectadores e usuários que consomem conteúdos gência midiática: o teleinternauta. Ao fim deste artigo chegamos à conclusão de que o entendimento da estrutura da informação, das redes e dos processos de apreensão da relação do indivíduo com

formatos, utilizando, ao menos inicialmente a linguagem híbrida, pode consolidar a segunda tela e ajudar na reconfiguração da televisão. A perspectiva é de se construir um ambiente colaborativo totalmente tecnológico que modifique a forma de construção da notícia e que permita a ampliação da informação. Cabe a nós, pesquisadores verificarmos as alternativas tecnológicas e procurarmos superar os desafios para adoção da segunda tela no formato de um telejornal.

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4 - n. 1

conteúdo telejornalístico aos da segunda tela. A experimentação de novos gêneros e

ano

o uso de novas plataformas nos faz ver quais serão os desafios para a adequação do

Revista GEMI n IS |

advindos das plataformas móveis, criando um novo personagem no cenário da conver-

142


JENSEN, Klaus Bruhn. Media Convergence: the three degrees of network, massa and interpesonal communication. Routledge. New York, 2010.

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D ispositivos Móveis como Potencializadores da Televisão D igital Interativa: desafios e usos da segunda tela no telejornalismo

JOST, François. Novos comportamentos para antigas mídias ou

143


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ano

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Revista GEMI n IS |

segunda-tela-para-telespectadores/ Acesso em 01 de abril de 2013.

144


A Favela:

narrativas

migrantes e perspectivas de futuro em cinco produções audiovisuais D aniele G ross Doutoranda em Meios e Processos Audiovisuais e mestre (2010) em Ciências da Comunicação, ambos pela ECA/USP. Membro do grupo de pesquisa MidiAto – Grupo de Estudos de Linguagem: Práticas Midiáticas, da USP, atua como docente de cursos de Comunicação Social. E-mail: danielegross@danielegross.com.br

Paula Paschoalick Mestre em Ciências da Comunicação e doutoranda em Meios e Processos Audiovisuais, ambos pela ECA/USP. Atua como infografista da Editora Moderna, e webmaster e programadora dos sites: Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual (SOCINE), Revista Científica Eletrônica Rumores (MIDIATO-ECA/USP), Revista Científica Eletrônica Significação (PPGMPAECA/USP), Revista Científica Eletrônica Rebeca (SOCINE). E-mail: artepasck@gmail.com

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ano

4 - n . 1 | p. 145 - 158


Resumo Esta proposta busca articular uma análise das narrativas migrantes e suas proposições de perspectivas para o futuro da população favelada brasileiras em obras audiovisuais entre as décadas de 1990 e 2007, período da retomada comercial da produção cinematográfica no país. Especificamente analisaremos as narrativas fílmicas das produções: Notícias de uma Guerra Particular, Palace II, Cidade de Deus, Cidade dos Homens (série) e Cidade dos Homens (filme), na tentativa de delinear suas propostas discursivas sobre a favela e principalmente as perspectivas de futuro que cada uma dessas obras apresenta para essa parcela socialmente marginalizada da sociedade. Palavras-Chave: favela, perspectivas de futuro, produções audiovisuais brasileiras, políticas da representação, narrativas migrantes.

Abstract This proposal seeks to articulate analysis of the migrants narratives and their propositions for the future prospects of the Brazilian slum population in audiovisual works between the 1990s and 2007, a period of the resumption of commercial film production in the country. Specifically we will analyze the film narratives productions: Notícias de uma Guerra Particular, Palace II, Cidade de Deus, Cidade dos Homens (TV show) and Cidade dos Homens (movie), in an attempt to outline their discursive proposals on the slum and especially about the future prospects that each of these works presents to Brazilian society. Keywords: slum, future prospects, Brazilian audiovisual productions, politics of representation, migrant narratives


Introdução

É

notória a presença do tema “favela” nas produções que participaram da retomada comercial da produção audiovisual brasileira no final da década de 1990 e início do século XXI. Grandes bilheterias, indicações para prêmios internacio-

nais, produções para a televisão. Todo um arcabouço narrativo fílmico formatou uma concepção de favela brasileira assim como indicou perspectivas de futuro para essas comunidades que migraram das páginas policiais para a grande tela e de lá para o sofá da sala das famílias brasileiras. Foi essa profusão de produtos midiáticos que nos fez pensar em acompanhar como essas narrativas migram e se modificam através do tempo e dos meios onde se desenvolvem. Para começar essa investigação partimos de uma das manifestações audiovisuais pioneiras na popularização da representação das parcelas marginalizadas da sociedade, o jornalístico Aqui Agora (1991), do SBT. Compreendendo como essas formas de representação surgiram é que podemos entender melhor o que são essas produções sobre a favela e como determinam perspectivas para o seu futuro. Aqui Agora O jornalístico é reconhecido por ter sido um dos primeiros a realizar a cober-

tura in loco de ocorrências de zonas marginalizadas dos morros e favelas. O programa, inspirado em um jornal homônimo da TV Tupi de 1979, trouxe para a sala das casas brasileiras rostos e vozes que não circulavam anteriormente pela programação televisiva. Dentre as questões mais determinantes da participação desse programa na formação de uma narrativa sobre a favela está a emanação da estética que impregnou várias das produções que iremos analisar a seguir: as cores saturadas, a câmera nervosa, a captação de som direto. Além das imagens que o jornal nos trouxe, vieram também as vozes, a gíria, o som da favela através de entrevistas, de postos com “microfone aberto” e da sintonização dos rádios usados pelos traficantes. Todo esse arcabouço de sons


passou a fazer parte do nosso imaginário sobre a favela, sendo também determinante da caracterização das obras analisadas nesse artigo. parcelas socialmente marginalizadas não se pode negar, por outro lado, que pioneiramente na televisão brasileira, criou um espaço para outro tipo de história contada, para outra imagem do Brasil, abrindo também o caminho para o surgimento e populariza-

Olhar de fora e de dentro Apesar de ser facilmente reconhecível como pioneiro na construção popularizada das representações da favela no Brasil, o jornal Aqui agora, mesmo trazendo depoimentos e entrevistas dos moradores das favelas, sempre foi pautado por uma edição que emoldurou a representação da pobreza de acordo com um ponto de vista exterior a ela, um “olhar de fora”. Já o livro Cidade de Deus, de Paulo Lins, que capitaneia e inspira uma série de produções posteriores, fazendo com que personagens e formas de representação migrem por diversos meios, trouxe uma perspectiva diferenciada pois, sendo escrito por um ex-morador da favela Cidade de Deus, foi recebido como uma narrativa representativa, legitimada pela vivência do autor, um “olhar de dentro”. Assim, com a estética do Aqui Agora e as histórias legitimadas de Cidade de Deus, estava pautada as novas diretrizes da representação da favela nas obras audiovisuais brasileiras do período conhecido como “a retomada” do cinema brasileiro: estética saturada, câmera nervosa, gírias, música e narrativas realistas sobre a vida na favela. Da observação deste material audiovisual, surgiu o questionamento que resulta na proposta aqui desenvolvida: analisar e buscar compreender como a favela é representada em diversas produções, formando narrativas e representações distintas do que é ser pobre e favelado no Brasil e traçando para eles perspectivas diferenciadas de futuro. Deste modo, filmes como Notícias de uma guerra particular (1999), Palace II (2000),

4 - n. 1

Através do seu consumo, eles (os espectadores) levantaram assuntos políticos, questionando seu próprio status em relação a outros cidadãos em um Estado democrático. Em meio ao desprezo geral pelo programa e do gênero realidade como um todo, estas discussões eram mais do que provas dos limites das críticas acadêmicas do programa. Elas revelaram o poder dos discursos especializados de enquadrar os membros da classe trabalhadora como marginalizados, desrespeitando suas diferenças de gênero, cor e classe social. (MAYER, 2006, p. 34).

ano

ção desse conjunto de obras que cercam o tema favela.

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Se o programa foi e é criticado pela capitalização da situação degradante dessas

148


Cidade de Deus (2002), Cidade dos Homens (2003), entre outros, são obras – ficcionais ou documentais – que trazem novas representações dessas parcelas socialmente marginadas vezes, o faziam apenas de forma pejorativa ou depreciativa sempre construídas por

Ao trazer esse universo à atenção pública, esses filmes intensificaram e estimularam o que chamo de disputa pelo controle da visualidade, pela definição de que assuntos e personagens ganharão expressão audiovisual, como e onde, elemento estratégico na definição da ordem, e/ou da desordem,contemporânea. (HAMBURGER, 2007, 114, grifos da autora).

Narrativas migrantes Nesse processo de construção de uma representação, padrões narrativos migraram de uma obra para outra estabelecendo conexões (FIGUEIREDO, 2010) e um ideário do que seria a favela e o favelado brasileiro, como se comporta, o que sofre o que faz, como é. No entanto, no percurso de contato entre a sociedade do asfalto e a comunidade dos morros favelados, essas narrativas foram modificando-se através do tempo e principalmente do meio para onde eram produzidas, ou, como nos traz Hamburger, nas “diferentes formas de apropriação dos mecanismos de produção da representação” (2005, 208, grifos da autora). E é esse percurso de domesticação do discurso e de apontamentos diferenciados sobre as perspectivas de futuro para as comunidades faveladas que pretendemos traçar. A proposta então é iniciar a investigação pelo documentário Notícias de uma

apresenta histórias de uma favela que o país não conhecia a não ser pelo noticiário policial sensacionalista. Não por acaso, um desses narradores auxiliares dos quais falamos é o próprio Paulo Lins que, em entrevista, é apresentado apenas como sociólogo, e não como ex-morador da favela, traçando um esquema de como a questão da exclusão social se fundou nos morros cariocas. A partir desse documentário, várias outras produções se articularam em torno do tema, apropriando-se de narrativas que migram pelas obras reproduzindo-as, mas também modificando-as: Palace II, curta metragem produzido para televisão em 2001;

D aniele G ross - Paula Paschoalick

dor auxiliar, bem ao estilo do narrador sociológico do qual nos fala Bernardet (2003),

guerra particular (1999), direção de João Moreira Salles e Kátia Lund, em que um narra-

narrativas migrantes e perspectivas de futuro em cinco produções audiovisuais

esse olhar “de fora”.

A Favela:

lizadas, antes pouco mostradas nos espaços midiáticos – e, quando o eram, na maioria

149


Cidade de Deus, filme de 2002; Cidade dos Homens, série de televisão produzida em 2002 (1ª temporada) e Cidade dos Homens, o filme, de 2007. das entre si por histórias, personagens e situações que aparecem e se repetem de alguma forma em cada uma das produções, apresentando, assim, um quadro significativo dessa migração das narrativas e das políticas da representação dessas perspectivas de

Para interpretar os significados que essas narrativas midiáticas carregam, nosso interesse é de ultrapassar a noção simplista da espetacularização da pobreza de que são acusadas diversas dessas obras. É necessário, como coloca Hamburger, repensar-se a ideia de espetáculo trazida por Guy Debord: Mas, a noção de “sociedade do espetáculo” tal como a formulou Guy Debord, entendida como esse universo midiático, quase fantasmagórico que se impõe, fascina e aliena espectadores, é insuficiente para compreender a contemporaneidade. Em vez de separação, interações desiguais e distorcidas caracterizam as relações entre realizadores e representados. (...) Interpretar significados de documentários e filmes de ficção que lidam com o universo da violência e da pobreza no Brasil contemporâneo convida então a repensar a idéia de espetáculo, que, na falta de posterior reelaboração, vem servindo de referência aos mais diversos trabalhos que, a partir de perspectivas teóricas distintas, procuram de alguma forma situar o imaginário no contexto de fenômenos contemporâneos. (HAMBURGER, 2005, p. 214-215)

Articulado com essa perspectiva de que é preciso repensar a ideia do espetáculo e suas funções na contemporaneidade nos preocupamos especialmente com as perspectivas de futuro que as obras traçaram para seus personagens e, para isso, retomamos o que Auerbach chamou de uma lógica da profecia em seu livro Figura – bastante presente no Cinema Novo brasileiro: “(...) o acontecimento terreno é uma profecia ou figura de uma parte da realidade divina total que será revelada no futuro” (AUERBACH, 1997, p. 61) Assim, buscaremos também demonstrar como os discursos são articulados nesses filmes, seja pelo viés da montagem, dos jogos de luz, seja pelos enquadramentos realizados. Nessas representações da favela, enfim, procuraremos traçar quais as conexões existentes nessas obras, que ora se aproximam, ora se distanciam num traçado de perspectivas futuras. O que observamos dessas perspectivas é a positividade traduzida em esperança e expectativa de melhora da situação presente ou a negatividade, falta de perspectiva

4 - n. 1

rio, cinema, televisão – em tempos diferentes – de 1999 a 2007.

ano

futuro através de produções audiovisuais de gêneros e meios diferentes – documentá-

Revista GEMI n IS |

Essas obras foram escolhidas por articular elementos comuns; estão alinhava-

150


de melhora, que os finais dessas produções carregam.

151

As obras e suas perspectivas

A Favela:

Nosso primeiro representante para a análise teve sua estreia na televisão fechada, mas ganhou status cinematográfico sendo exibido em diversas mostras de cinema. Utilizando aspectos da linguagem jornalística, Notícias se apresenta como documentário traçando uma narrativa calcada nas entrevistas de caráter realista sobre a vida na favela, seus conflitos e quotidiano. Em Notícias de uma guerra particular, temos acesso a uma justaposição de imagens e depoimentos que não se completam, porque são contraditórios, mas que se interpenetram, porque tecem a teia complexa das vidas que circundam a favela e o tráfico. Às experiências que nos relatam os menores, o chefe de polícia, os soldados, as famílias envolvidas no tráfico e, ainda, a própria mídia que, numa dimensão metadiscursiva também se revela personagem, somam-se imagens de um cotidiano absolutamente comum – crianças brincando nas ruas e pessoas caminhando em direção às suas casas ou ao trabalho – e da própria “guerra”, ou do próprio “movimento”, como também chamam o tráfico. (RESENDE, 2009)

O que nos fez querer começar a análise por esse filme é perceber que, de certa forma, essa produção marca o início de uma sequência de produções sobre as favelas nesse período da retomada comercial do cinema brasileiro. Também é interessante pontuar que, nessa obra, surge como um dos personagens principais, o Comandante

narrativas migrantes e perspectivas de futuro em cinco produções audiovisuais

Notícias de uma guerra particular (1999)

Tropa de Elite. Também, como já comentamos anteriormente, Paulo Lins, autor do livro Cidade de Deus, cujas histórias e personagens vão participar de todas as outras obras apresentadas aqui, surge como entrevistado, marcando uma das pontas da linha que une todas as obras analisadas. O final: Cenas em corte paralelo apresentando o enterro de membros dos grupos que permeiam no filme: moradores do morro, policiais e criminosos. A cena é acompanhada de depoimentos, em que ninguém - moradores, policiais e criminosos - acredita haver possibilidade de mudanças na perspectiva de todos. O filme termina com uma tela branca que vai sendo preenchida com as inscrições funerárias de várias pessoas, com especial destaque para suas profissões e idades, de modo a demonstrar que a tragédia atinge a todos sem distinção. A perspectiva de futuro: Não vendo nenhuma alternativa para o fim da guerra

D aniele G ross - Paula Paschoalick

Pimentel, que depois escreveria o livro A Elite da Tropa, subsídio do tão aclamado filme


entre tráfico e polícia, não vendo alternativas de fuga para a população entrincheirada no meio da guerra, o filme traça uma perspectiva absolutamente negativa para o futuro

Palace II (2001) O curta Palace II foi filmado com o mesmo elenco que estava sendo treinado

atores da própria favela. Apresentado como um especial de fim de ano na Rede Globo, foi exibido como episódio do programa Brava Gente, Palace II já trazia dois atores ‒ Darlan Cunha e Douglas Silva ‒ que se consagrariam em produções posteriores sobre a mesma temática da favela, como os personagens Acerola e Laranjinha. O final: As crianças protagonistas – Laranjinha e Acerola – que passaram a história toda relutando em participar do movimento criminal do morro, sucumbem diante de uma oferta tentadora ‒ o traficante oferece R$ 100,00 para eles entregarem um pacote de drogas a alguém no morro. O filme procura um certo suspense, não deixando absolutamente claro que a oferta foi aceita, mas a câmera congelada no sorriso maroto dos garotos se entreolhando com a frase de fundo proferida pelo traficante: “Por cem vai né...” não deixa dúvidas sobre o desfecho. A perspectiva de futuro: Com a construção do enredo que nos mostra que, mesmo se esforçando para não entrar no tráfico, as crianças acabam seduzidas pela oferta financeira nos deixa uma perspectiva de futuro absolutamente negativa. Cidade de Deus (2002) Longa metragem de grande sucesso nas bilheterias, Cidade de Deus sofreu sérias críticas do universo acadêmico, sendo acusado de espetacularizar a pobreza e a violência. O filme nos trouxe a estética da saturação e da agilidade de câmera resgatadas do tempo do Aqui Agora, e que iria permear grande parte da cinematografia sobre a favela. A despeito das críticas acadêmicas, a produção baseada no livro de Paulo Lins, que já era sucesso internacional, tendo sido editado em países como França, Inglaterra, EUA, Dinamarca, Noruega e Suécia, foi inspiração para uma série de televisão, também de sucesso, e um outro longa-metragem, ambos baseados nos personagens Acerola e Laranjinha, que apareceram no curta Palace II. Os personagens não aparecem no filme, mas seus atores sim. O final: A cena final do filme mostra um grupo de crianças armadas planejando a tomada do tráfico no morro após a chacina que matou os antigos “chefes do movimento”. A cena realizada na entrada de um beco, focaliza o grupo de crianças que

4 - n. 1

uma espécie de laboratório para a equipe que produzia o filme a partir da captação de

ano

para o filme Cidade de Deus, inspirado no livro homônimo. A produção serviu como

Revista GEMI n IS |

da favela e também da sociedade conforme a conhecemos.

152


vai embora – rumo ao seu futuro – enfatizando especialmente a infantilidade da mais nova delas que, ao correr, perde o chinelo e volta para buscar, deixando clara a sua filme – Buscapé – salienta, no entanto, que ele, um morador da favela, agora tem nome A perspectiva de futuro: evidentemente um grupo de crianças planejando tomar o comando do tráfico em uma região não é uma perspectiva de futuro positiva, mas, ao contrário das produções anteriores, há alguma esperança para alguém, no caso representada pelo personagem Buscapé, que conseguiu sair do morro, conseguiu uma profissão. Fica claro no filme que se trata de uma exceção, de um que “deu certo”, mas, diferentemente de Notícias e Palace II há alguma esperança para alguém, mesmo que ínfima. Cidade dos Homens – a série (primeira temporada, 2002) A série Cidade dos Homens foi ao ar no mesmo ano em que o filme Cidade de Deus foi lançado, pegando carona no seu sucesso e estilo (os quatro episódios da primeira temporada foram exibidos entre os dias 15 e 18 de outubro de 2002). No entanto, a produção feita para televisão focou-se em personagens infantis, o que permitiu uma outra roupagem para o mesmo tema, minimizando os traços de violência explícita que, embora fosse palatável para o cinema, poderia não ter uma boa recepção na televisão. Atores do filme foram incorporados na produção e os personagens Laranjinha e Acerola ganham de vez o protagonismo. A análise dos finais e das perspectivas de futuro foi realizada nos quatro epi-

Os finais: a) Os personagens são escolares, vão a um passeio ao museu, mesmo que tendo que fugir de traficantes e das dificuldades financeiras acabam conseguindo cumprir suas metas; b) As cenas finais reforçam o senso de amizade entre os dois personagens principais depois de um deles ter se envolvido com traficantes por ser cunhado de um deles. Todo o episódio faz uma valoração moral sobre o envolvimento com o tráfico, mostrando, ao final, que a vida no crime não compensa e que a valorização das amizades é mais importante. c) O episódio todo é construído em torno da convivência das pessoas com o tráfico nos morros, demonstrando que há vida além do tráfico para os moradores das

D aniele G ross - Paula Paschoalick

Correio; d) Uólace e João Vitor.

sódios da primeira temporada, a saber: a) A coroa do imperador; b) O cunhado do cara; c)

narrativas migrantes e perspectivas de futuro em cinco produções audiovisuais

completo, Wilson Rodrigues, carteira assinada e profissão: é fotógrafo.

A Favela:

pouca maturidade física, emocional e social. Em voz over o personagem principal do

153


favelas, apesar da necessidade de se aprender a conviver com as regras impostas pelo crime. A sequência final do episódio é uma conversa em voz over entre um traficante cadeia, o que ele chama de “um computador que parece um livro”, tirando risos dos telespectadores, tornando leve o que seria trágico e pontuando o acesso das parcelas marginalizadas aos bens de consumo típicos da classe média.

favelado a uma profunda reflexão sobre sua vida e suas perspectivas. O que poderia ser um traço de volta aos discursos unicamente negativos das produções anteriormente citadas é contraposto pela cena final em que, em paralelo, a voz off de dois personagens – um favelado e outro de classe média – mostra que os medos, inseguranças e crises são comuns aos dois, quebrando então a perspectiva de que o favelado tem mais problemas, colocando os dois jovens na mesma situação humana. A perspectiva de futuro: em todos os episódios foi possível pontuar perspectivas que apontam para alguma positividade, quer seja pela escolarização das crianças pobres, pela valorização da amizade, pelo acesso aos bens de consumo ou ainda por uma ideia – mesmo que equivocada – de que adolescentes pobres e de classe média passam por dificuldades semelhantes. Cidade dos Homens - filme (2007) Fechando nosso percurso de análise que começou com Aqui Agora, delineando uma estética típica para as produções sobre favela, passou pelo livro Cidade de Deus que emprestou suas histórias e personagens para as obras audiovisuais, chegamos ao filme Cidade dos Homens. O filme traz os personagens Laranjinha e Acerola já no fim da adolescência, tendo que começar a encarar as responsabilidades da vida adulta. A história central continua calcada na convivência da população comum com o tráfico dos morros cariocas. O final: A cena final do filme é de Acerola e Laranjinha indo embora do morro, levando pela mão o filho de Acerola, para quem o pai promete que sempre estará presente e que ensinará para ele “as coisas da vida”. É interessante notar nesse filme que, a despeito de toda a tragédia social que leva os dois personagens a sair do morro, essa saída marca a união de pai e filho num contexto narrativo em que a ausência do pai é sempre demarcada severamente. A perspectiva de futuro: Sair do morro, assumir responsabilidades, cuidar do filho, todos esses conceitos são articulados de modo melancólico, mas positivo, a cena final, que mostra os personagens caminhando com o morro as suas costas deixa clara a

4 - n. 1

lico do que seus antecessores. Dilemas filosóficos e pragmáticos levam o personagem

ano

d) O último episódio da primeira temporada tem um tom bem mais melancó-

Revista GEMI n IS |

preso e seu comparsa solto. O traficante pede ao amigo que lhe leve um notebook na

154


partida para uma nova realidade, para uma outra perspectiva de futuro, mais positiva; mas que também possui um viés negativo, já que para a concretização dessa perspecti-

Ano

Cena Final

Futuro

Observação

Cenas de enterro e inscrições fúnebres

Negativa

Não há esperança alguma nessa narrativa fílmica: quem está envolvido, direta ou indiretamente, com os acontecimentos do morro, está condenado a um final trágico.

Palace II

2001

As crianças protagonistas relutam em participar do movimento criminal do morro, mas no final sucumbem

Negativa

O tráfico acaba seduzindo os menores pela sua dificuldade financeira.

Cidade de Deus

2002

Crianças armadas caminhando entre becos de Cidade de Deus. Buscapé falando que agora ele é conhecido como “Wilson Rodrigues, fotógrafo”.

Negativa/ positiva

Narrativa que indica uma perspectiva negativa, mas aponta para uma transição importante.

Cidade dos Homens (série, 1ª temporada)

2002

Os três primeiros episódios tem finais com perspectivas bastante positivas, o último, um pouco destoante, marca apenas que os problemas humanos são semelhantes mesmo em classes sociais diferentes, deslocando o problema da miséria.

Positiva

Apesar da existência de uma intensa criminalidade no morro, a narrativa do seriado traz uma perspectiva futura bastante positiva aos moradores, mostrando crianças na escola, acesso a bens de consumo, amizade e igualdade humana.

Cidade dos Homens (filme)

2007

O filme traz os protagonistas já quase adultos, indo embora da favela e prometendo um futuro melhor ao filho de um deles.

Positiva/ Negativa

A saída do morro mostra uma possibilidade de uma vida melhor, mesmo que longe do lugar de origem. Acerola e Laranja enfrentam o futuro incerto, mas na expectativa de uma vida melhor para a nova geração.

Tabela 1 - Resumo das perspectivas futuras em produções audiovisuais brasileiras (1990-2007)

D aniele G ross - Paula Paschoalick

1999

Notícias de uma Guerra Particular

narrativas migrantes e perspectivas de futuro em cinco produções audiovisuais

Filme

A Favela:

va positiva, eles têm que sair do morro, têm que abandonar a favela.

155


Considerações Finais

em Cidade de Deus – já que a possibilidade de um futuro melhor parece ser infinitamente menor do que o certeiro futuro de seus moradores, que desde a infância estão envolvidos na criminalidade –, em Cidade dos Homens – tanto na série (2002) quanto no

tratam de apresentar possibilidades de escape dos finais negativos inevitáveis das outras produções. Há então uma sensível mudança nas perspectivas apresentadas nessa série de produções entrelaçadas por seus autores, produtores, personagens, atores e histórias. De um cenário amplamente pessimista para uma perspectiva que aponta para algumas saídas positivas para a população socialmente marginalizada nas favelas brasileiras. Definir causas para essa mudança é um trabalho de outra ordem, que deve partir de perspectivas muito variadas, no entanto, podemos nos arriscar a ponderar sobre uma certa domesticação das narrativas apresentadas ao grande público, principalmente de televisão. Teria talvez a televisão aberta uma vocação menos afeita aos dramas violentos do documentário Notícias de uma guerra particular e ainda mais avessa às sequências sanguinolentas de Cidade de Deus? Talvez sim. É possível que o telespectador doméstico tenha sido poupado pelos produtores de Cidade dos Homens das mazelas quotidianas que empurram diariamente as crianças para o tráfico. Nesse caso, o meio televisão teria determinado uma mudança nas produções. Mas, por outro lado, também é possível pensar num reflexo do ânimo social geral ao traçar um comparativo entre o ano de produção das obras e o momento político do País. Se podemos apontar como um marco inicial dessas representações o programa televisivo Aqui Agora (1991, SBT), sendo considerado como um importante marco de difusão de imagens e personagens periféricos para o grande público brasileiro e também o primeiro programa popular a estar in loco nas comunidades carentes marginalizadas divulgando vozes e imagens dessas pessoas, quando o governo federal estava sob o comando de Fernando Collor de Melo (posteriormente, Itamar Franco), governo que não conseguiu equacionar as questões financeiras do país e muito menos minimizar as diferenças sociais entre o asfalto e o morro, as primeiras produções aqui analisadas (Notícias de Uma Guerra Particular, 1999; Palace II, 2001, e Cidade de Deus, 2002) foram produzidos sob o governo de Fernando Henrique Cardoso, com o país começando a se estabilizar economicamente, mas ainda sob a incerteza do futuro. Ao passo que Cidade

4 - n. 1

e os problemas sociais que os moradores das favelas enfrentam em seu dia a dia, mas

ano

filme (2207) – ela é bastante explicitada: ambas narrativas não ignoram as dificuldades

Revista GEMI n IS |

Se a positividade dessas narrativas fílmicas se inicia, mesmo que sutilmente,

156


dos Homens (série, 2002; filme, 2007) foram produzidas já em um outro momento social: sociais de transferência de renda já assinalavam algumas mudanças nas perspectivas Assim, diante de uma melhoria social e econômica para os grupos sociais menos favorecidos no país, parece-nos possível afirmar que quando as perspectivas sociais destes grupos melhoram, também melhoram as perspectivas futuras sobre eles nas narrativas fílmicas brasileiras. Mas o mais provável é que um conjunto de fatores tenha levado às mudanças aqui debatidas e apresentadas. Assim, talvez o ânimo do País em torno de uma perspectiva de futuro diferente para si mesmo tenha se refletido nas obras produzidas, uma vez que a nação brasileira é também uma marginalizada em relação aos países chamados desenvolvidos, isso, conjuntamente com a necessidade de domesticação da violência, pode ter sido determinante para as mudanças de perspectivas observadas nas obras analisadas, tornando-as mais palatáveis para o “da poltrona”.

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narrativas migrantes e perspectivas de futuro em cinco produções audiovisuais

futuras das pessoas mais pobres.

A Favela:

Lula, um representante popular, acabara de ser eleito pelo povo; em 2007 os programas

157


MEYER, Vick. A vida como ela é/pode ser/deve ser? O programa Aqui Agora e cidadania no Brasil. Revista Brasileira de Ciências da Comunicação, n. 1, 2006.

AQUI AGORA. Direção: Albino Castro, Dácio Nitrini. Rio de Janeiro: SBT, 1991-1997.

Meirelles, Kátia Lund. Rio de Janeiro: 2002. CIDADE DOS HOMENS. Direção: Paulo Morelli. Rio de Janeiro: 2007. NOTÍCIAS DE UMA GUERRA PARTICULAR. Direção: João Moreira Salles, Kátia Lund. Rio de Janeiro: 1999. PALACE II. Direção: Fernando Meirelles, Kátia Lund. Rio de Janeiro: 2000.

4 - n. 1

CIDADE DOxS HOMENS. Direção: Fernando

ano

CIDADE DE DEUS. Direção: Fernando Meirelles, Kátia Lund. Rio de Janeiro: 2002.

Revista GEMI n IS |

Filmografia

158


Considerações

sobre o

culto à imagem em

Thrones:

G ame

of

experiência estética e

recepção A driana Corrêa S ilva Porto Mestranda do Programa de Pós-graduação em Comunicação Social (PPGCOM) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). E-mail: acporto@ymail.com

Fernando Gonçalves Doutor em Comunicação pela ECO-UFRJ e Professor do PPGCOM-UERJ. E-mail: fng@uerj.br

Revista GEMI n IS

ano

4 - n . 1 | p. 159 - 175


Resumo O objetivo deste trabalho é investigar a relação entre a experiência estética instaurada pelas imagens da série Game of Thrones e a capacidade destas de tornarem-se objetos de culto entre os fãs. Considerando o processo relacional entre humanos e não humanos como potencial gerador de efeitos estéticos, propomos uma reflexão sobre a circulação de materiais expressivos como estímulo à fruição estética. Dentro dessa perspectiva, pretendemos identificar o papel da imagem nas tramas que enredam homens e aparatos tecnológicos, assim como a relação de culto estabelecida entre eles como forma de problematizar a relação homem x tecnologia. Palavras-Chave: Imagem, estética, culto, recepção, fãs.

Abstract The objective of this study is to investigate the relationship between aesthetic experience and capacity of an art work became the object of worship among fans. Considering the relational process between human and nonhuman as a potential generator of aesthetic effects, we propose a reflection on the movement of expressive materials as a stimulus to aesthetic enjoyment. Within this perspective, we intend to identify the role of the image in a scene that involve men and technological devices, as well as the relationship of worship established between them as a way to problematize the relationship between man x technology. Keywords: Image, aesthetic, cult, reception, fans.


1 - Introdução

P

artindo do pressuposto de que as relações entre pessoas, objetos e acontecimentos podem gerar efeitos estéticos1 (BRAGA, 2010), buscamos no presente artigo analisar a relação entre a experiência estética proporcionada pelas imagens da

série americana Games of Thrones, produzida e veiculada pela emissora HBO – canal por assinatura com transmissão para 50 países - e a sua capacidade em tornar-se objeto de culto por parte de seus fãs na internet. O texto se propõe a investigar o papel da imagem numa trama que enreda ho-

mens e aparatos tecnológicos na tentativa de evidenciar que, mais do que a tecnologia, é o conjunto de relações que se estabelece com ela e não apenas através dela, que ajuda a entender fenômenos como o culto às imagens na referida série. Abordar tal processo de um ponto de vista relacional é fundamental para percebermos que tal culto pode ser entendido como um exemplo de efeito estético dessas imagens, talvez exatamente porque sua natureza não é apenas “técnica”, mas propriamente “sociotécnica” e faz parte de uma rede de mediações socioculturais e comunicativas (LATOUR, 1994; SIMONDON, 2008). Como procuraremos demonstrar, o papel desempenhado pelas imagens na série Games of Thrones só é possível por causa dessas redes de mediações, que emergem no esmaecimento das fronteiras entre humanos e não humanos e se manifestam nos discursos da cultura e da ciência (FELINTO; SANTAELLA, 2012). Não há aqui a intenção de estabelecer um embate de forças e sim de tentar pensar criativamente a relação homem-máquina2, a fim de ampliarmos nossa compreensão sobre os fenômenos no âmbito da cultura midiática e tecnológica na atualidade. Para cumprirmos tal propósito é preciso delimitar alguns conceitos que nos nortearão durante a tarefa de avançarmos rumo a um conhecimento mais profícuo acerca desta relação homem-máquina. O primeiro deles é o contexto em que os fenômenos analisados se desenvolvem. Em um território cultural marcado pelo simbólico 1 Entendido como conjunto de efeitos sobre a percepção e sobre a organização de nossa experiência sensível. 2 Neste caso, computadores, aparelhos de TV, celulares e outros dispositivos móveis.


e pelo imaterial, nosso desafio será tomar como base o paradigma da materialidade da comunicação. A partir dessa perspectiva, a matéria deixa de ser vista apenas como (FELINTO; ANDRADE, 2005). É neste cenário - em que objetos, coisas e pessoas agem uns sobre os outros e se afetam mutuamente - que propomos uma reflexão que leve em conta as circunstâncias materiais e históricas, capazes de influenciar a produção de

pelos fãs e sua relação com as imagens da série Game of Thrones. Para introduzir o assunto, cabem aqui algumas explicações. O fenômeno cult ao longo dos anos vem se relacionando com a ideia de subcultura, “identificada menos como um estilo específico do que como uma certa estratégia de leitura associada à vanguarda” (JANCOVICH, 2003, p. 35)3. Neste sentido, importa-nos uma das principais características do fenômeno: a existência de um grupo de fãs, admiradores e consumidores ávidos por destrinchar a obra e segui-la em seus percursos e desdobramentos. E é justamente esta característica que utilizamos para definir uma obra cult e darmos prosseguimento à reflexão que propomos nas próximas páginas. Sob este ponto de vista, a palavra cult – do inglês, culto - parece bastante apropriada para definir a ação de alguns grupos de adeptos, seguidores de objeto, pessoa ou conjunto de componentes, que mantém com estes uma relação de culto em seus mais diversos aspectos. Tal fenômeno tornou-se uma espécie de classificação, um rótulo para as obras “adoradas” por fãs para além da sua vida útil4. Não se trata apenas de uma distinção alternativa ao mainstream 5, tampouco da mera celebração da qualidade e sofisticação de uma obra, mas também da emergência de um mercado de nicho marcado pelo hibridismo e pelo paradoxo das comunidades de fãs na internet. Ainda mais múltiplas e diversas na web, a dinâmica dessas comunidades online é definida por seus próprios integrantes, assumindo a forma que seus membros querem que tenham, funcionando por meio de uma cultura compartilhada (SHIRKY, 2011). Tal esclarecimento é bastante oportuno, já que tomaremos como objeto de estudo uma obra audiovisual. E, a partir dela, buscaremos analisar a relação entre culto imagético e experiência estética, por meio dos rastros deixados em uma comunidade de fãs na web.

3 Do original: “(...) a subculture identified less by a specific style than by a certain strategy of reading associated with the avant-garde (2000:14).” (JANCOVICH, 2003, p. 35). 4 Refere-se aos fãs que continuam a cultuar uma obra audiovisual que já tenha sido finalizada, como é o caso dos fãs de filmes e séries de TV que continuam a manifestar a sua admiração e articular interações e produções (fanfictions) em comunidade ciberespaciais, mesmo após o término do filme ou da série de TV em questão. 5 A ideia de mainstream está associada a uma conformidade política, cultural e/ou econômica com os respectivos circuitos dominantes. E também a categoria de “blockbuster”, ou seja, filme ou obra produzida para atender aos anseios comerciais de seus produtores. Muitas vezes também é entendida como produto de fácil assimilação e baixa sofisticação.

4 - n. 1

Feitas as primeiras considerações, passamos à discussão sobre o culto mantido

ano

sentido e o desenrolar dos acontecimentos.

Revista GEMI n IS |

um suporte, um mero veículo de apreensão do sentido, para tornar-se constitutiva dele

162


O objeto do artigo em questão são as imagens da série audiovisual Game of Thrones6, que relata disputas pelo poder em um mundo medieval fantástico . A obra chamou a 7

zadas e personagens ambíguos, que oscilam entre figuras extremas, tais como vilões e heróis, bons e maus, virtuosos e inescrupulosos, conforme as circunstâncias e o defotografias da trama e o fato de não haver personagem ou núcleo de personagens principais, e sim vários núcleos. Trata-se de um emaranhado de histórias que misturam drama, violência, aventura, romance, suspense e horror em meio a disputas de poder entre famílias e seres fantásticos. Conhecidas as ideias e ferramentas a partir das quais a pesquisa é desenvolvida, identificamos as imagens técnicas, foco desse estudo, como superfícies que preten-

imagens. No entanto, como o próprio filósofo assevera, a imaginação possui dois lados: bilita a reconstrução das demais – profundidade e tempo. Isso implica em dizer que o que confere sentido às imagens são as relações entre elementos diversos, que incluem a síntese das intenções do emissor e do receptor:

As imagens que buscamos analisar são “imagens técnicas”, que Flusser define como sendo aquelas produzidas por aparelhos. Mas, como veremos, trata-se de um tipo

6 Baseada na série de livros de fantasia épica As Crônicas de Gelo e Fogo (no original: A Song of Ice and Fire), escrita pelo romancista e roteirista norte-americano George R. R Martin e publicada pela primeira vez em 1996. Originalmente concebida para ser uma trilogia, a saga agora consiste em cinco volumes publicados, com mais dois planejados. 7 Abordaremos mais adiante as peculiaridades da estética medieval.

A driana Corrêa S ilva Porto - Fernando Gonçalves

2 – Imagem e recepção

Imagens não são conjuntos de símbolos com significados inequívocos, como o são as cifras: não são “denotativas”. Imagens oferecem aos seus receptores um espaço interpretativo: símbolos “conotativos”. (...) Ao circular pela superfície, o olhar tende a voltar sempre para elementos preferenciais. Tais elementos passam a ser centrais, portadores preferenciais do significado. Desse modo, o olhar vai estabelecendo relações significativas. (...) O significado das imagens é o contexto mágico das relações reversíveis (FLUSSER, 1985, p.7).

experiência estética e recepção

se por um deles permite apreender duas dimensões do espaço-tempo, por outro possi-

Thrones:

remete a noção de “imaginação”, que, em Flusser (1985), implica a ideia de produzir

of

espaço-temporais específicas da imagem plana - comprimento e largura. Sua origem

G ame

dem representar algo, resultado dos esforços de se abstrair duas das quatro dimensões

sobre o culto à imagem em

senvolvimento da trama. Outro detalhe que chamou a atenção do público são as belas

Considerações

atenção da crítica pelo enredo complexo, com grande número de histórias entrecru-

163


particular de imagem técnica: imagens audiovisuais, captadas por câmeras e transmitidas para aparelhos de TV, celulares, computadores e similares. Apoiadas no pensaimagens não se produzem na relação direta com a técnica, mas sim, no seio das redes de relações em que estão inseridas. No caso, um seriado de TV com uma narrativa multissituada, apoiada no uso de imagens que visam, deliberadamente, estabelecer um

Se por um lado, para Flusser (1985), o mundo representado parece ser a causa das imagens técnicas e estas parecem resultar de uma complexa cadeia de acontecimentos que partem do mundo representado, por outro, ao visualizar tais imagens, os espectadores vêm, na verdade, um “conceito”, uma determinada ideia de que tais imagens traduzem do mundo. Isso quer dizer que quando um fã reage diante de uma imagem, não o faz pela imagem em si, e sim pela visão de mundo que ela transporta. Tais relações não são imperativas ou de mão única, pois dependem do contexto, dos elementos em ação e de quem as vê. Efetivamente, na experiência vivida frente à obra e seus recursos materiais e expressivos de qualquer ordem, parece ocorrer, junto com a emoção, uma reação proprioceptiva8 (BRAGA, 2010). É o que este autor chama de “experiência estética”. É a produção de tal experiência que desejamos discutir quando observamos a recepção dos fãs, que afirmam sentir frio na espinha, vertigem e tontura ao assistir algumas cenas. É o caso daquela em que o personagem Tyrion Lannister acorda em uma cela aberta, à beira de um abismo, no Ninho da Águia9. Dessa forma, seguindo o raciocínio de Flusser (1985), somos levados a crer que a imagem técnica, constituída de símbolos estéticos e abstratos, necessita ser “decifrada” para termos acesso ao mundo conceitual que organiza seu universo de sentido. O que vemos nessas imagens, portanto, não é o mundo criado pela série e por suas histórias, mas determinados conceitos relativos a esse mundo e a essas histórias, a despeito da impressão automática do real sobre a superfície da imagem. Ou seja, tais imagens não são transparentes, tampouco representam uma mera duplicação do real. São superfícies que “transcodificam processos em cena” (FLUSSER, 1985, p. 11) e, como tais, a dificul8 Também denominada como cinestesia, o termo é utilizado para nomear a capacidade de reconhecer a localização espacial do corpo, sua posição e orientação, a força exercida pelos músculos e a posição de cada parte do corpo em relação às demais, sem utilizar a visão. Este tipo específico de percepção permite a manutenção do equilíbrio postural e a realização de diversas atividades práticas. Resulta da interação das fibras musculares que trabalham para manter o corpo na sua base de sustentação, de informações táteis e do sistema vestibular, localizado no ouvido interno. 9 Assista a cena em http://www.youtube.com/watch?v=-FFW0JdgRLo de 1’34’’ a 1’44’’. O relato dos fãs sobre o referido episódio da primeira temporada está disponível no fórum de discussão http://iceandfire.forumeiros.com.

4 - n. 1

sua vez, organizam-se em uma comunidade de fãs na internet.

ano

determinado tipo de experiência sensível ou estética com seus espectadores, que, por

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mento de Latour (2012), nossas análises procurarão demonstrar que o sentido dessas

164


dade está em decifrá-las, uma vez que delas emana um fascínio mágico, que nos torna cada vez mais influenciáveis. Por outro lado, tais imagens também agem sobre nós com um pensamento através e a partir da imagem. Exatamente por não ser transparente, uma imagem técnica é uma presença imagens e objetos a ela relacionados, trazendo consigo toda uma cadeia de representações sobre uma ideia-imagem – importante na construção de identidades, na formação de grupos e seus modos de funcionamento. Com isso, os símbolos revelam que não são meros artifícios das representações já feitas, mas parte integrante delas. Um grupo apenas se torna visível no emblema coletivo que reproduz seu objeto designado. Ao mesmo tempo, um grupo, em suas múltiplas relações, torna visível também as redes

mente por humanos, que elegem signos e interesses em torno dos quais o grupo deve se sobre nós e uns sobre os outros (LATOUR, 2012). Tal ideia está presente em diversos autores, como em Walter Benjamin (1990), um dos precursores da perspectiva material de análise das imagens, que afirmou: “Quando o ator torna-se o acessório da cena, não é raro que, como contrapartida, os próprios acessórios desempenhem o papel de atores. Não é insólito que, de qualquer modo, o filme lhes confie um papel” (BENJAMIN, 1990, p.224 apud PERNISA; LANDIM, 2008). Nesse sentido, a própria série que iremos discutir, Game of Thrones, assim como

tos dentro do grupo. Para analisarmos a recepção da obra audiovisual pelos fãs, selecionamos o fórum virtual Ice and Fire, no qual estes discutem os aspectos cultuados e expõem as suas sensações, reações, modo de agir, de pensar e de ver o mundo. Tais impressões resultam na experiência estética. A opção pelo http://iceandfire.forumeiros.com se deve ao fato de este ser um espaço aberto e gratuito, bastando apenas se cadastrar para participar e interagir com os demais membros. Além disso, é o primeiro fórum brasileiro sobre As crônicas de gelo e fogo, fundado em 17 de novembro de 2010 – conforme informa o próprio site.

A driana Corrêa S ilva Porto - Fernando Gonçalves

aparelho – podem ser considerados agentes em ação, capazes de provocar deslocamen-

os suportes utilizados para a sua veiculação – televisão, computador, celular ou outro

experiência estética e recepção

reunir. Pelo contrário, o curso da ação oscila entre estes e os objetos técnicos que agem

Thrones:

Isso, é claro, não significa que o curso de uma ação é determinado exclusiva-

of

enquanto grupo.

G ame

que eles próprios constroem e que, ao mesmo tempo, o mantém vivo e o caracterizam

sobre o culto à imagem em

que vai além de seu aspecto imediato, material. Ela se atualiza na relação com outras

Considerações

o poder de nos emancipar do pensamento conceitual. Quer dizer, desenvolvem em nós

165


Intitulado Cenas impressionantes visualmente10, o tópico, criado por um dos usuários, convoca os demais para elegeram as imagens mais impressionantes da obra audescritas e postadas aquelas que mais afetaram os espectadores – pela beleza, horror ou apreensão causada por sua fotografia, ou ainda, pela intensidade da sensação que ela provocou, seja esta positiva ou negativa. Entre os dias 27 de março e 28 de julho de 2012,

Antes de passarmos as três imagens eleitas pelos fãs, vale um registro sobre as demais. Quase metade delas (47,36%) são paisagens de Westeros11 nas quais algum personagem participa ou não do desenrolar da história – exceto a cena do nascimento dos dragões e a do voo sincronizado dos diversos corvos que partem da cidade de Winterfell, nas quais o foco da atenção recai sobre a perfeição e o realismo da cena ficcional com os animais, e não sobre a paisagem em si, embora essa também seja parte integrante. Dentre as fotografias citadas estão a vista de Porto Real; de Winterfell; do Ninho da Águia; da Muralha; do personagem Ned Stark sob a árvore branca da família, diante do lago de Winterfell; e o personagem infantil Bran Stark escalando um dos muros da mesma cidade, ao norte de Westeros. Essas paisagens de Westeros são um dos grandes atrativos imagéticos da série, pois contribuem para a sua aproximação do mundo real, para o entendimento da história e a imersão dos fãs no universo ficcional. Além de representarem uma experiência estética proporcionada pela contemplação da beleza – assunto que voltaremos a explorar adiante. O segundo tipo de cena que mais aparece nas citações do grupo está relacionada a momentos de medo ou perigo iminente (31,57%). Por exemplo, quando aparecem os ‘Outros’12, o corvo de três olhos e o lobo raivoso na cripta da Família Stark. Por último, foram registradas cenas de violência (31,57%), como o tapa dado pelo Rei Robert na Rainha Cersei, Tyrion Lannister batendo em Joffrey Baratheon e a coroação de Viserys Targaryen por Kal Drogo. Esses dados nos mostram que as imagens consideradas mais impressionantes pelos fãs da série, com significativa contribuição para o seu culto, estão relacionadas à beleza, ao horror e a violência, respectivamente.

10 Disponível em http://iceandfire.forumeiros.com/t155-cenas-impressionantes-visualmente. 11 Local onde se passa a série. Um dos três continentes do mundo ficcional, que abrange os Sete Reinos descritos na história e corresponde às nações ao sul da muralha. 12 Também conhecidos como Caminhantes Brancos, existem ao norte da Muralha. Ressuscitam homens e animais mortos, aparentemente quando tocados pelo frio que os acompanha. Homens que perecem em uma batalha contra os “Outros” devem ser queimados, ou então os mortos se erguerão novamente como seus servos. Segundo a lenda, surgem quando está frio ou fica frio quando eles surgem. Por vezes, aparecem durante tempestades de neve e somem quando os céus se limpam. Escondem-se da luz do sol e emergem à noite. Seus propósitos e origem permanecem desconhecidos até o final da terceira temporada.

4 - n. 1

quais três são eleitas como as mais impressionantes da primeira temporada.

ano

foram registradas 15 manifestações de usuários, que citam 19 cenas/imagens. Dentre as

Revista GEMI n IS |

diovisual. Como critério para a escolha das imagens, o proponente sugere que sejam

166


Voltando às três melhores imagens eleitas pelos fãs de Game of Thrones, a primeira delas mostra o personagem Tywin Lannister conversando com seu filho Jaime teriormente, o couro13. O apelo da cena é o escalpelamento do animal, realizado de forma habilidosa e violento. O contraste entre o preto e o vermelho na tenda sombria remete a uma guerra sangrenta. As paredes vermelhas ao fundo, também fazem referência ao estandarte da Casa Lannister – um leão vermelho. Enquanto o cervo representa a Casa Baratheon, que perdeu o domínio sobre os sete reinos após a morte do Rei Robert. Sobre esta cena, um fã comenta: “A cena de Tywin esfolando um veado é bem impressionante”. Ao comentário se segue outros que o confirmam.

sobre o culto à imagem em

banal. Por meio da imagem é possível inferir também o caráter do personagem – frio e

Considerações

sobre os rumos da guerra enquanto escalpela um cervo, retirando suas vísceras e, pos-

167

G ame of

Thrones: experiência estética e recepção •

A segunda cena/imagem14 é a do personagem Tyrion Lannister acordando em uma cela aberta, à beira do abismo, no Ninho da Águia. O anão, de família nobre, foi acusado de tentar matar Bran Stark e trancado nas celas do céu, que possuem piso inclinado em direção a um penhasco exposto. Sobre este take, usuários afirmaram ter sentido vertigem e frio na espinha devido a situação de grande risco experimentada pelo personagem. Tanto nesta como na figura anterior, o movimento das imagens, a perspectiva e a sonoplastia - o vento uivando na cela, o som da faca cortando o couro, a retirada das vísceras do animal, etc. - são fundamentais para 13 Assita a cena em http://www.youtube.com/watch?v=47MazYDnmaU 14 Assita a cena em http://www.youtube.com/watch?v=-FFW0JdgRLo.

A driana Corrêa S ilva Porto - Fernando Gonçalves

Figura 1 – Cena de escalpelamento do animal


168 Revista GEMI n IS |

evocar os sentidos dos usuários e despertar sentimentos de nojo, horror, medo, apreensão e beleza15. Sobre a referida imagem, um dos fãs comenta: “(...) Outra cena que me impressionou visualmente foi quando Tyrion está dormindo e quase cai da cela aberta do Eyrie”. Um segundo usuário acrescenta “A cena do Tyrion acordando na beira do abismo dá um frio na espinha”. E um terceiro participante afirma: “a cena que o Tyrion acorda com a mão pendurada me deu vertigem”.

ano

4 - n. 1

Figura 2 – Tyrion acordando na beira do abismo

A terceira é a cena/imagem da chegada ao Ninho da Águia16, sede principal da Casa Arryn, uma das mais antigas linhas de nobreza Ândala. No local, reside a viúva de Lorde Jon Arryn e irmã de Catelyn Stark, Lysa Tully, e seu filho Robert Arryn. No fórum de discussão, fãs definem a imagem como “simplesmente espetacular”, “memorável” e continuam: “Realmente, o Ninho da Águia é com ctz o castelo mais impressionante...”. Apesar do apelo visual, a fotografia não deve ser tomada em si como “estética”, mas sim, seus processos e efeitos, nos quais obra, objetos, produtos, acontecimentos e paisagens tornam-se vetores daquilo que Braga (2010) chamou, no âmbito das mídias, de “experiência estética”, que é basicamente relacional. Para Braga, o valor estético de um objeto ou de uma imagem está ligado a sua capacidade de produzir em nós senti15 Adotamos o conceito de beleza como um sentimento através do qual os indivíduos experimentam a plenitude da vida. A beleza aqui é aquilo que atrai – seduz o olhar, brinca com os sentidos. Ela transporta a imaginação, acelera ou acalma o coração, refina o espírito (CÂNDIDO, 2010). 16 Está situada nas Montanhas da Lua, sob o pico conhecido como Lança do Gigante, milhares de metros acima do Vale. É considerado impregnável a ataques. Durante os anos de inverno, os Arryns buscam refúgio contra o frio na base da montanha, nos Portões da Lua. Fonte: http://wiki.gameofthronesbr.com.


mentos, o que depende da ativação relacional para a fruição da obra. No caso do fórum de discussão na web, um incontável número de participantes não trabalha afetos cuja complexidade e profundidade os faria singulares, tampouco dispõe de um domínio de formas e processos sofisticados. Todavia, possibilita a am2010, p. 80).

sobre o culto à imagem em

pliação significativa do circuito de expressão da experiência e sua circulação (BRAGA,

Considerações

pode relatar suas experiências com a obra. Entretanto, essa expressão, em sua maioria,

169

G ame of

Thrones:

“A Coroação do Viserys foi impressionante mesmo... mas nada, NADA ganha do Tyrion batendo no Joffrey” e é seguido por outro que diz “Ah é, tem essa aí. Foi ainda melhor que a de Cersei, porque foram vários tapas (...). Na sequência, um terceiro participante reproduz a sonoplastia da cena “Plaft. Eu vou contar pra mamãe!!!! Plaft” e acrescenta: “Eu ri muito, se o Tyrion tivesse cuidado da educação daquele moleque ele teria sido um bom rei.” Um quarto usuário se manifesta: “O mais correto seria se, de alguma forma, a única pessoa que pudesse cuidar de Joffrey após seu nascimento fosse Tyrion. Talvez assim ele pudesse mudar, mas ainda não é garantido. Como quem o criou foram a vadia da Cersei e o bêbado do Robert, o resultado foi isso.” Por fim, um quinto participante faz um diagnóstico: “O problema dele foi a mãe que o mimou até não poder

A driana Corrêa S ilva Porto - Fernando Gonçalves

clara quando acompanhamos outros comentários no fórum Ice and Fire. Um fã relata:

Essa percepção de afetos ou efeitos produzidos no contato com a obra fica mais

experiência estética e recepção

Figura 3 – Chegada ao Ninho da Águia


mais e talvez o fato dele assistir ao pai fazendo o que bem entendesse porque era o Rei. Deve ter colocado na cabeça dele que ele poderia ser assim, afinal ele era o futuro Rei. apreender que alguns personagens despertaram a raiva e a simpatia dos espectadores. Mas eles não os fazem sozinhos, mas em conjunto com uma série de elementos estéticos, expressivos e visíveis.

vimento, a manifestação e a experiência dos usuários. Isso mostra que eles não apenas agem sobre nós, como também sobre nossa subjetividade – o modo como nos relacionamos, nos organizamos, existimos e enxergamos o mundo. Fato que ganha mais relevância na sociedade em que vivemos, como demonstra Flusser (1985): Tudo, atualmente, tende para as imagens técnicas, são elas a memória eterna de todo empenho. Todo ato científico, artístico e político visa eternizar-se em imagem técnica, visa ser filmado, fotografado, videotaipado. Como a imagem técnica é a meta de todo ato, este deixa de ser histórico, passando a ser um ritual de magia (FLUSSER, 1985, p.12).

3 - Experiência medieval e efeito estético das imagens em Game of Thrones

A série Game of Thrones se passa em um cenário medieval. Embora a nar-

rativa seja uma obra de ficção que se desenvolva em um universo próprio, ela usa claramente a estética medieval como base para toda a sua produção imagética. Por conta disso, é pertinente buscarmos entender quais e de que forma os valores e características desse período histórico real são utilizados para compor a estética da série audiovisual em questão e, assim, compreendermos o impacto dessa ação na recepção dos fãs. O período medieval nos remete ao culto de uma série de conceitos e reações espontâneas diante da beleza, da natureza e das obras de arte. Modos de ver a natureza como reflexo de transcendência estão vivos na sensibilidade da época. Contudo, esses conceitos não são apenas abstratos, se referem também a experiências concretas, que constituem a realidade moral e psicológica do homem e da cultura da Idade Média17 (ECO, 1999). Em um campo de interesse estético ampliado, o olhar medieval dedica atenção especial à beleza, em seu aspecto material e, sobretudo, espiritual, já que o culto aos objetos mantém íntima relação com a devoção a Deus. Mas não se trata de culto estético da arte pela arte e sim pela experiência que dela decorre, o que proporciona 17 Compreende o período entre meados do ano de 476 e 1500. É um dos três grandes períodos da história europeia: a Antiguidade, a Idade Média e a Era Moderna – esta última dividida em Idade Moderna e Contemporânea.

4 - n. 1

é dado a apreender pelos objetos técnicos, que podem ainda ampliar ou limitar o envol-

ano

Assim sendo, apreendemos do contato com as imagens técnicas aquilo que nos

Revista GEMI n IS |

Mas a crueldade deve ser defeito de fábrica mesmo...” Após os relatos dos fãs podemos

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em termos daquilo que Rancière chamou de uma “partilha do sensível”18, ou seja, das operações que determinam aquilo que nos é dado ou não a perceber e sentir através da A partilha do sensível tem papel fundamental neste processo, já que, em seus arranjos, estrutura as maneiras pelas quais um objeto – uma imagem, por exemplo - tem seu senbém determina sua inscrição em “comunidade” (RANCIÈRE, 2005). Entretanto, para Rancière, uma comunidade não é sinônimo de um agrupamento de pessoas em torno de interesses comuns, mas a existência de um sistema que nos permite vivenciar certas experiências a partir de determinados parâmetros comuns ou separados. É um exemplo disso a experiência de culto nos grupos de fãs reunidos em torno da série Game of Thrones, que nos permitem perscrutar as “partilhas do sensível” realizadas pela obra

atmosfera ou ambiência, que dá sabor próprio à história, afeta os espectadores tanto determinado universo ficcional. Dessa forma, o mundo “ficcional” é construído a partir de elementos do mundo “real”, mas com tamanha riqueza e complexidade, que, em alguns momentos, as fronteiras entre um e outro se enfraquecem e tornam-se quase imperceptíveis. É nesse sentido que Umberto Eco (1994) afirma que, por vezes, ao ingressarmos em um universo fictício, “experimentamos todas as sensações tácteis que teríamos se estivéssemos caminhando sobre aqueles pedregulhos” (p. 78). Isso ocorre quando é alcançado um nível

Mas quando isso acontece? Quando se torna fácil atribuir uma vida real a uma personagem de ficção? Para Eco (1994), a vida extratextual e intratextual das personagens coincide com o fenômeno cult. E por que um filme se torna cult? Sua hipótese para o surgimento de um culto ao redor de uma obra específica é a “desconexão” da obra. Mas desconexão também implica a possibilidade de “desconjuntamento” - sem forma, deformado, desconjuntado, desconexo, mistura de fontes distintas. Assim tam18 Entenda-se por partilha do sensível, ao mesmo tempo, um comum partilhado e partes exclusivas. Essa repartição das partes e dos lugares se funda numa partilha de espaços, tempos e tipos de atividade, que determina propriamente a maneira como um comum se presta à participação e como uns e outros tomam parte nessa partilha (RANCIÈRE, 2005, p. 15). 19 Para saber mais, leia GUMBRECHT (2008). Versão em português disponível em http://www.revistaindice.com. br/gumbrecht.pdf. Acesso em 15/01/2013.

A driana Corrêa S ilva Porto - Fernando Gonçalves

natural quanto andar pela rua ou assistir televisão.

descritivo que estimula as experiências sensoriais, fazendo da imersão um processo tão

experiência estética e recepção

emocionalmente, quanto materialmente, contribuindo sobremaneira para a imersão em

Thrones:

Stimmung19, uma espécie de sintonia fina, que envolve também o nosso corpo. Esse tom,

of

sentido. Fazendo uso das imagens, ainda ensejam o que Gumbrecht (2008) chamou de

G ame

audiovisual. É assim que os enunciados ficcionais impactam o real e reconfiguram seu

sobre o culto à imagem em

tido produzido pelo modo como é apresentado e difundido. Da mesma maneira, tam-

Considerações

observação ou da vivencia de uma experiência com algo que afeta nossos sentidos.

171


bém são as imagens técnicas, que abrigam um emaranhado de referências, evocações e desdobramentos. râneo não constitui uma simples retomada de valores pregressos, mas o rearranjo de novas bases, pilares que se atualizam, tais como aqueles que resultaram no surgimento do barroco20. Desse novo rearranjo surge a estética neobarroca, que aponta para for-

Calabrese (1988) sugere o termo para classificar alguns objetos culturais do nosso tempo, que a etiqueta ‘pós-moderno’ não daria conta. O “neo” poderia passar a ideia de repetição, regresso. Seria a reciclagem de um período específico, no caso o barroco. Mas isto não significa realmente que a hipótese seja de uma retomada. Ele atualiza a própria definição do barroco “como atitude generalizada e uma qualidade formal dos objetos que o exprimem. Nesse sentido, pode haver barroco em qualquer época da civilização” (p. 27). Ideia semelhante está presente na obra do filósofo alemão Friedrich Nietzsche, quando ele trata do conflito apolíneo e dionisíaco no mundo grego. Enquanto o primeiro representaria o equilíbrio das formas, a serenidade e a tranquilidade, o segundo faria referência ao desequilíbrio, ao excesso, a bebida, aos impulsos carnais, ao erotismo e a violência (TEIXEIRA, 2010). Conflito que também está presente nas imagens técnicas da série Game of Thrones, visíveis na progressiva evolução dos estados descontínuos da trama. Contudo, o foco desta análise recai sobre o potencial emotivo suscitado pela experiência estética no contato com cada imagem em particular. O problema dessa abordagem é que a experiência estética “parece fugidia e inapreensível na sua diversidade e na sua ausência de materialidade capturável, a não ser pela própria subjetividade do indivíduo que apreende proprioceptivamente sua reação e tenta objetivá-la, fazendo circular” (BRAGA, 2010, p. 84). Por isso não nos interessa a experiência estética meramente psicológica, mas sua relação interacional ou comunicativa, o compartilhamento – o trabalho de objetivação da emoção sentida. Assim como fazem os fãs ao relatarem para o grupo suas sensações e sentimentos diante de uma imagem. Cientes da impregnação estética pelo contexto e pelo repertório de referências individuais, buscamos na experiência vivida e na relação da obra com os afetos produzidos - a partir dos suportes

20 O barroco surge da crise renascentista conjugada à retomada de alguns dos valores medievais. Na tentativa de solucionar o dilema do homem que perdeu sua crença ilimitada na razão, na harmonia, no humanismo e na valorização da vida corpórea, o culto à religiosidade, à vida espiritual, ao exagero e ao rebuscamento é retomado. Dessa tentativa de conciliar a visão medieval da vida e da arte com a visão renascentista, nasce o barroco.

4 - n. 1

organizada, pelo policentrismo, pela irregularidade regulada e pelo ritmo insensato.

ano

mas e fenômenos em transformação. Uma estética da repetição, marcada pela variação

Revista GEMI n IS |

A utilização de traços medievais em um produto de entretenimento contempo-

172


que as transportam - o caminho para vislumbrar as respostas para boa parte das inquietações manifestas neste artigo.

do real (GUMBRECHT, 2006, p. 53 apud BRAGA, 2010), estar diante de uma imagem é também estar diante de uma época, como vimos com a Idade Média. Tal experiência sensível, que decorre do contato com a obra, é construída socialmente, através da interação entre pessoas, grupos, objetos e suportes em uma trajetória combinada de ações. Balizada pela cultura, nenhuma dessas ações é natural, mas produzidas pelo um coletivo, do qual fazem parte as tecnologias – ainda que tomada por invisível por conta do

de visão e percepção do mundo. guns padrões primários sobre esse aspecto. O primeiro deles é que quanto mais intensa a experiência estética, em relação à beleza e ao sentimento que nos desperta, parece-nos maior a probabilidade da obra ser cultuada por fãs. A observação pode soar óbvia, mas não é, já que o culto depende do compartilhamento da vivência experimentada, da ampliação da partilha do sensível. Quando um membro chancela algo na comunidade, uma nova visão é experimentada, confrontada e/ou intercambiada. A construção coletiva desses fatos é o que potencializa o culto e não a imagem em si, por mais atraente

intersecção entre culto e experiência sensível, reconhecendo a circulação de materiais expressivos como um estímulo à fruição estética. Assim sendo, a experiência estética ainda depende dos suportes utilizados e da criação de um stimmung - no sentido de imersão sensorial e extrassensorial - de acordo com as experimentações materiais e simbólicas que estes são passíveis de proporcionar. Não ignoramos que esse arranjo também depende do repertório individual de cada ator21 e da maneira como são acoplados uns aos outros. E que esse processo é decisivo

21 Utilizamos o conceito de Latour (2012) para definir ator como tudo que age, deixa traço, produz efeito - independente da sua natureza -, podendo se referir a pessoas, instituições, coisas, animais, objetos, máquinas, etc. Ou seja, ator aqui não se refere apenas aos humanos, mas também aos não-humanos, sendo por esse motivo sugerido ainda pelo autor o termo actante.

A driana Corrêa S ilva Porto - Fernando Gonçalves

tais como o acesso e a distribuição da obra. Todavia, manteremos o foco do trabalho na

e instigante que seja. Há ainda outras questões a serem consideradas a esse respeito,

experiência estética e recepção

Atendo-nos ao acompanhamento da comunidade pesquisada, observamos al-

Thrones:

imagem e o que ela traz consigo em termos de produção de uma dada realidade, modos

of

do culto mantido pelo humano frente aos objetos técnicos, é uma tentativa de decifrar a

G ame

saber da sua utilização. Tencionar esses processos de mediação e recepção, no estudo

sobre o culto à imagem em

Inferindo que a experiência estética envolve um alargamento do conhecimento

Considerações

4 – Considerações finais

173


para a fruição estética, que, por sua vez, também nos leva ao culto da obra. Parece-nos de certo modo, que, apesar das diferentes configurações possíveis, esses fatores sociotécnicas. Outro ponto que merece registro é o atributo de “beleza” das imagens, conferido pelos fãs tanto em uma paisagem quanto em uma cena de violência, medo ou

uma realidade que de conceitos estéticos canônicos. As sensações e reações provocadas no contato com as imagens técnicas podem ser distintas, conforme a inscrição de cada fotografia. No entanto, há um elemento comum: a afetação que leva ao culto. Isso implica em dizer que as três figuras apresentadas neste trabalho são iguais, no sentido de que todas despertaram o interesse dos espectadores para uma experiência sensível particular através das imagens. O papel da imagem neste contexto é a de uma janela pela qual é possível apreender um mundo de impressões de diversas ordens, na qual experimentamos intensamente a perda da centralidade de categorias estéticas e intelectuais – tal como ocorreu no barroco. Uma situação que se repete e se potencializa, criando uma estética própria do contemporâneo, que chamamos de neobarroca. Nesta perspectiva, não são as formas do belo em seus aspectos particulares que atraem a visão e favorecem o culto da imagem, e sim a união de uma pluralidade de aspectos visíveis que, associados, exercem um poder de atração sobre o espectador.

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4 - n. 1

da transposição de uma realidade ou da instauração de novas formas de percepção de

ano

perigo. Isto talvez aponte para um alargamento da noção de belo, que se aproxima mais

Revista GEMI n IS |

convergem para a prática do culto, ao afetarem os participantes da rede de relações

174


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A driana Corrêa S ilva Porto - Fernando Gonçalves

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experiência estética e recepção

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Thrones:

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of

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G ame

JANCOVICH, Mark et al. In: Mark Jancovich, Antonio Lazaro Reboll, Julian Stringer

sobre o culto à imagem em

o pensamento da materialidade da comunicação. Rio de Janeiro:

Considerações

FELINTO, Erick; SANTAELLA, Lucia. O explorador de abismos:

175


A Linguagem Motion G raphics nos Videoclipes B rasileiros H erom Vargas Doutor em comunicação e semiótica, professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS) e autor do livro Hibridismos musicais de Chico Science & Nação Zumbi (Ateliê, 2007). E-mail: heromvargas@terra.com.br

Luciano

de

Souza

Graduado em Rádio e Televisão, Mestre em comunicação pela Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS) e docente do curso de RTV da mesma universidade. E-mail: lucmanbr@yahoo.com.br

Revista GEMI n IS

ano

4 - n . 1 | p. 176 - 197


Resumo Com o desenvolvimento das tecnologias digitais de edição, animação e pós-produção, a linguagem motion graphics se configurou como ferramenta criativa nas relações entre som e imagem. Este artigo tem como objetivo identificar e analisar aspectos inovadores da utilização da linguagem motion graphics nos videoclipes de artistas brasileiros, no período de 1990 a 2010. Por meio de categorias de avaliação relacionadas 1) aos softwares de composição visual, 2) à evolução da linguagem do clipe no período e 3) às relações entre música, vídeo e gráficos utilizados, quatro estágios de aplicação criativa dos recursos dessa linguagem nos videoclipes brasileiros foram estabelecidos. Palavras-Chave: motion graphics, videoclipe, MTV, tecnologia digital.

Abstract With the development of digital technology of editing, animation and post-production, the motion graphics language has configured itself as a creative tool in the relationships between sound and image. This article aims to identify and analyze the innovative aspects of the use of motion graphics language in Brazilian artists’ music videos in the period from 1990 to 2010. Through the evaluation categories related 1) to the visual composition softwares, 2) to the evolution of music video language in that period, and 3) to the relations among music, video and graphics used, four stages of creative application of features of this language in Brazilian music videos were established. Keywords: motion graphics, music video, MTV, digital technology.


1 Introdução

D

esde o seu surgimento, o videoclipe estabeleceu diversas interfaces com outros gêneros audiovisuais contemporâneos e proporcionou ampla margem para experimentações estéticas e narrativas. Com o advento e o desenvolvi-

mento das tecnologias digitais de edição, animação e pós-produção, a linguagem motion graphics tornou-se potencialmente criativa na múltipla relação entre som e imagem. Nos dias de hoje, o motion graphics pode ser encontrado em diferentes tipos de projetos audiovisuais como vinhetas de emissoras de televisão, comerciais, vídeos institucionais, vídeos para web, em exposições de videoarte, projetos multimídia, abertura de filmes (title sequences) e shows musicais, e, logicamente, nos videoclipes. Assim, para compreender a utilização do motion graphics, esse artigo tem o objetivo de identificar e analisar as formas como ele aparece nos videoclipes de artistas brasileiros, examinando quais aspectos estéticos proporcionaram algum tipo de inovação na construção e na narratividade desse tipo de produto audiovisual. O período utilizado para a análise foi delimitado pelas décadas de 1990 e 2000. A escolha da data inicial (1990) se justifica por ser o surgimento da MTV no Brasil e o início de uma produção massiva de videoclipes em nosso país. Além disso, com o advento e desenvolvimento das tecnologias digitais, principalmente a partir da década de 1990, houve um crescimento na produção do motion graphics, que acabou por se tornar alternativa acessível para a realização total ou parcial de um clipe. Esse desenvolvimento histórico é também acompanhado pela popularização dos softwares de composição gráfica no audiovisual, como o Adobe After Effects e o Adobe Photoshop. A proposta de estudar o uso inovador e criativo da linguagem motion graphics nos meios audiovisuais encontrou nos videoclipes um campo fértil de exploração. Primeiro, porque as raízes históricas do motion graphics estão vinculadas às experiências de animação que buscavam, na sincronização entre som e imagem, a clara tentativa de construir uma narrativa diferenciada na utilização de elementos gráficos. Em segundo lugar, porque, ao longo da história, apesar de estar vinculado à divulgação comercial


de um artista e ter padronizações típicas dos produtos culturais massivos, o videoclipe sempre proporcionou largas margens para experimentações estéticas e narrativas, muiestéticas e com a novidade. De acordo com Thiago Soares (2004) e Arlindo Machado (2003), historicamente, o videoclipe sempre absorveu novas experiências relacionadas ao cinema e ao vídeo, e assim ajudou a construir a sua própria identidade, apesar de

agora, com o desenvolvimento tecnológico digital e dos elementos gráficos, é possível criar novas relações entre imagem e som, e este estudo é necessário para entender melhor as características atuais dos videoclipes. A análise foi realizada de acordo com categorias preestabelecidas após um amplo levantamento bibliográfico e documental. A definição das categorias de avaliação está relacionada aos avanços tecnológicos dos softwares e à evolução da linguagem motion graphics no período, sendo elas divididas em dois grandes grupos: a presença de elementos do motion graphics nos videoclipes e as formas de relação entre música, vídeo e gráficos utilizados (sinestésica, temática e narrativa). 2 A linguagem motion graphics Ao longo dos séculos, a representação visual mimética de objetos e cenas cotidianos foi a principal preocupação para os artistas ocidentais. Com a fotografia, foi possível captar uma fração de instante do mundo real, mas ainda seria necessário mais para captar as imagens em movimento. O resultado do somatório de técnicas e aparatos tecnológicos para criar, produzir e exibir as imagens em movimento levou à invenção do cinema pelos irmãos Lumière. Anos mais tarde, a televisão se tornou o segundo meio de comunicação com capacidade de veicular imagens temporalizadas1. Na década de 1960, o vídeo surgiu como principal suporte para a arte eletrônica, permitindo o acesso a todo tipo de experimentalismo audiovisual. Segundo João Velho (2008), essas experiências nasceram do pioneirismo de pessoas como Nam June Paik, interessadas na imagem eletrônica como forma particular de expressão estética. Desde a década de 1950, o design gráfico vem sendo incorporado às novas tecnologias relacionadas à imagem em movimento e termos como videodesign, broadcast design, design audiovisual, videografismo e motion graphics têm aparecido no vocabulário 1 Segundo Jacques Aumont (1993), a imagem temporalizada é aquela que se modifica no tempo, devido às características intrínsecas do dispositivo que as produz e apresenta. O cinema e o vídeo são as mais conhecidas atualmente, embora tenham surgido outras formas em épocas mais remotas.

4 - n. 1

relacionados ao tema se esquecem de um importante elemento de análise: a música. E

ano

bastante fluida e variável. Conforme aponta Andrew Goodwin (1992), alguns estudos

Revista GEMI n IS |

to em virtude de estar ligado à cultura jovem que permitia o intercâmbio com outras

179


dessa atividade. Segundo Ana Luiza Escorel (2004), o design é uma forma de produção de cultura e linguagem, sendo que a tecnologia de cada mídia, independentemente de levadas em consideração no processo em design. Para o filósofo Vilém Flusser (1999), o design é o ponto central da relação entre arte e tecnologia, enquanto a pesquisadora Mônica Moura (2003) entende que o design é uma área relacionada à tecnologia, não somente a ela, mas a própria história tem comprovado que a cada mudança tecnológica e cultural, o design se modifica, pois são gerados novos padrões de produção e de criação. Para ela, esses novos padrões constroem, a partir da tecnologia e de seu uso cultural,

gia sem o contexto social e cultural de criação e de utilização”, ou seja, a tecnologia por si só não é fator único de inovação, mas sim sua apropriação pela sociedade e em quais circunstâncias essas relações acontecem. Desde suas origens na década de 1970 até os dias de hoje, o videoclipe tem sido um gênero audiovisual que proporciona um campo extenso para experimentações esté-

e a publicidade, além do intercâmbio natural com outras estéticas como a arte pop, a videoarte e, por fim, a música pop. Portanto, o design, a animação e a computação gráfica encontraram um campo fértil na produção de videoclipes e do encontro entre música e gráficos em movimento surgiu o que hoje é denominado motion graphics2.

O termo motion graphics é relativamente novo, tendo se popularizado a

animar livremente camadas de imagem de todo o tipo (vídeo, fotografias, elementos gráficos diversos, tipografia e animações) (VELHO, 2008, p.45). Segundo Lev Manovich (2006), a utilização de softwares como o Adobe After Effects popularizou o motion graphics fazendo com que essa linguagem passasse a ser amplamente utilizada. Em virtude disso, não há uma conceituação universal, sendo que alguns pesquisadores tratam de forma mais abrangente enquanto outros o interpretam de forma muito específica. Para João Velho (2008), se anteriormente o motion graphics era coadjuvante, hoje ele se emancipou como linguagem e multiplicou-se em inúmeras pré-formatações semânticas no cinema, na TV e no vídeo. Na busca por uma definição do termo é importante observar essa linguagem 2 No Brasil, o profissional de motion graphics pode ser conhecido por outras denominações, como por exemplo, videografista, “motion designer” ou até mesmo “motion graphic designer” (VELHO, 2008).

Souza

manipulação de imagem em movimento por computador que permitiam combinar e

de

partir da década de 1990, com o surgimento dos primeiros sistemas de composição e

H erom Vargas - Luciano

videoclipes sempre estiveram ligadas às linguagens de outros gêneros como o cinema

ticas e narrativas. Segundo Machado (2003) e Bryan (2005), as referências artísticas dos

Videoclipes B rasileiros

tanto, de acordo com Vargas e Goulart (2008, p.162), “[…] não há como pensar a tecnolo-

nos

outros processos em design, e a isso se atribui a constituição de novas linguagens. Entre-

A Linguagem Motion G raphics

suas limitações e possibilidades estéticas, determina algumas características a serem

180


sob dois pontos de vista: o técnico, descrevendo o motion graphics como uma aplicação mista de variadas tecnologias de computação gráfica e vídeo digital; e o conceitual, vimento. Portanto, a linguagem motion graphics se caracteriza pela composição visual e manipulação de imagens em movimento por computador, permitindo, assim, animar diferentes tipos de representação audiovisual (vídeos, fotos, tipografia e elementos grá-

Por se tratar de uma linguagem que incorpora elementos de outras, é possível destacar o caráter de hibridização que compreende as mais diversas combinações e misturas no campo visual. De acordo com Santaella (2007, p.76), “[…] há apenas três matrizes lógicas, a partir das quais, por processos de combinações e misturas originam-se todas as formas possíveis de linguagem e processos de comunicação. Essas matrizes são: a sonora, a visual e a verbal”. Híbrido por natureza, o motion graphics incorpora principalmente o design gráfico às linguagens já conhecidas do cinema e do vídeo, como indica Manovich (2006, p.4): “[…] o termo motion graphics (gráfico animado) expressa o mesmo desenvolvimento: a subordinação ao código gráfico da ação cinematográfica ao vivo”. Segundo Gallagher e Paldy (2007), a arte do motion graphics é tão dinâmica como o próprio nome indica. Dá vida a imagens e palavras inanimadas, codificando-as com uma mensagem destinada a certo público-alvo. Entretanto, para este estudo do motion graphics aplicado aos videoclipes, a definição apresentada por Velho (2008) é a mais adequada por também contemplar o áudio e enfatizar o lado gráfico representado por ícones, símbolos e objetos 2D e 3D, muitas vezes sintetizados com live-action3. As raízes históricas do motion graphics são encontradas nos filmes de animação experimental realizados entre as décadas de 1920 e 1950, nas chamadas title sequences4, no design televisual e nos primeiros filmes de animação por computador. Os filmes de animação experimental, principalmente da década de 1920, são os primeiros a trabalhar com colagem utilizando fragmentos de objetos, formas orgânicas e fotografias. Muitos desses animadores também eram músicos, e em suas obras tentavam transmitir 3 O termo live action é muito utilizado em cinema para designar os filmes que são realizados por atores reias, ao contrário das animações (BARBOSA JUNIOR, 2002). 4 Title sequences são os créditos de abertura dos filmes indicando geralmente o nome do filme, dos atores e da

equipe técnica. Disponível em: <http://www.artofthetitle.com/category/site/>. Acesso em: 20 dez. 2011.

4 - n. 1

Em suma, proponho o entendimento do termo motion graphics como uma área de criação que permite combinar e manipular livremente no espaço-tempo camadas de imagens de todo o tipo, temporalizadas ou não (vídeo, fotografias, grafismos e animações), juntamente com música, ruídos e efeitos sonoros (VELHO, 2008, p.19).

ano

ficos). Segundo João Velho, a definição do termo pode ser resumida da seguinte forma:

Revista GEMI n IS |

como espaço para desenvolvimento de um projeto gráfico por meio de imagens em mo-

181


o conceito de “música visual”5, antecipando alguns elementos da linguagem do videoclipe que surgiria cerca de 50 anos mais tarde. nas title sequences, foi fator fundamental para o desenvolvimento da linguagem motion graphics. Segundo Jon Krasner (2008), por meio das title sequences, as possibilidades do design gráfico no audiovisual se expandiram, desafiando a animação tradicional e abrindo espaço para o motion graphics figurar como importante linguagem utilizada na publicidade, nas vinhetas de identidade das emissoras de televisão e nos videoclipes. De acordo com João Velho (2008, p.27), a partir dos anos 1950, com as cultuadas aberturas

Bass foi o primeiro a realizar um projeto de design que unificava os impressos (cartazes, logos etc.) com o motion graphics, criando uma identidade visual única para o filme. Na metade da década de 1980, com o grande desenvolvimento das ferramentas de computação gráfica, o surgimento dos primeiros sistemas de composição e manipulação de imagens em movimento e das possibilidades do universo 3D, a linguagem

Photoshop (1990), Nuke (1993) e o Adobe After Effects (1993), que facilitaram a produção desse tipo de linguagem e proporcionaram um incremento às possibilidades criativas. O resultado dos últimos avanços tecnológicos, seu barateamento e facilidade de acesso, é a adoção do motion graphics como a principal linguagem utilizada no chamado broadcast design. Os sites de vídeo como YouTube e Vimeo, contribuíram para simpli-

por projetos de interatividade para CD-ROMs, fazendo com que os designers gráficos assimilassem o uso de áudio e de imagens em movimento. Os videoclipes passaram a ser produzidos numa combinação regular entre gravações reais, animações e grafismos em movimento, enquanto produtores de conteúdo televisivo começavam a considerar o motion graphics como um componente narrativo relevante. Os elementos de identificação para análise da linguagem aqui apresentados são o resultado dos estudos de Block (2001), Velho (2008), Krasner (2009) e Gallagher e Paldy (2007). O estudo de Block (2001) procurou estabelecer um sistema possível de decomposição do motion graphics articulado por meio de relações de contraste e afinidade encontrados nessa morfologia. Absorvendo as categorias estabelecidas por Block (2001), 5 O termo “música visual” foi cunhado pelo crítico de arte Roger Fry, em 1912, para descrever uma forma de arte emergente que buscava estabelecer relações entre a luz e o som (BEHNEN, 2008).

Souza

das ferramentas de animação para design passou a ser necessário graças às demandas

de

ficar a divulgação de projetos eletrônicos profissionais e amadores. O conhecimento

H erom Vargas - Luciano

1990, surgiram novos softwares de composição gráfica e efeitos visuais, como o Adobe

motion graphics começou a se desenvolver com mais intensidade. A partir da década de

Videoclipes B rasileiros

a genealogia do motion graphics. Para Philip Meggs (2006), por meio das title sequences,

nos

de Saul Bass, a relação entre texto e imagem se sofisticou e estabeleceu um marco para

A Linguagem Motion G raphics

Além da animação experimental, o design aplicado no cinema, principalmente

182


João Velho (2008) realizou amplo mapeamento do território do motion graphics nas suas quatro dimensões principais: dimensão projetual, dimensão das abstrações da matesendo que essas duas últimas serão utilizadas neste estudo. Os estudos de Jon Krasner (2009) e Rebecca Gallagher e Andrea Moore Paldy (2007) são importantes por terem realizado um levantamento dos principais estilos e conceitos estéticos e visuais, além

De acordo com Lilian Coelho (2003, p.1), costuma-se alegar que o videoclipe é dotado de narrativa fragmentada e “[…] é comumente reduzido a um disparatado arranjo de imagens desconexas cuja razão de ser reside exclusivamente no apelo sensorial”. A pesquisadora demonstra que o videoclipe está longe de ter uma narrativa pautada na “esquizofrenia” e na colagem gratuita de imagens, mas tem uma narrativa invariavelmente presente. Conforme aponta Goodwin (1992, p.237), alguns estudos relacionados ao tema se esquecem de um importante elemento de análise: a música. O videoclipe surgiu na década de 1970 por força principalmente do rock e do pop, atendendo a interesses artísticos e comerciais da indústria musical que se expandia em função da demanda juvenil. Por isso, esses dois aspectos – artístico e comercial – vão estar sempre presentes na história desse gênero. Assim como o motion graphics, a linguagem do videoclipe tem suas raízes nas primeiras experimentações de animação das décadas de 1920 e 1930 que buscavam sincronização entre imagem e som. Nesse período, o artista alemão Oskar Fischinger produziu uma série de pequenos filmes de animação que procuravam passar a ideia de que objetos e formas tinham sons inerentes a eles. Por meio de experimentações gráficas e de efeitos na película, Fischinger começou a esboçar as primeiras características do videoclipe, como a percepção do público de não conseguir separar a música da imagem. A importância de Fischinger para o videoclipe é destacada por Nercolini e Holzbach: Para pensar as bases estruturais do videoclipe, é importante resgatarmos Fischinger. Ele, em 1940, junto com o maestro britânico Leopold Stokowski, trabalhou no musical Fantasia, um dos marcos cinematográficos de Walt Disney. O filme é formado por oito curtas-metragens animados que utilizaram músicas clássicas conhecidas para contar histórias de animais e seres fantasiosos (NERCOLINI; HOLZBACH, 2009, p.50).

4 - n. 1

3 Videoclipe: linguagem, narratividade e a MTV

ano

das técnicas utilizadas por profissionais de motion graphics e de animação.

Revista GEMI n IS |

mática e da computação gráfica, dimensão plástica e, por fim, dimensão de linguagem,

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O próximo período de destaque são as décadas de 1950 e 1960, quando a televisão se consolidava nos principais países ocidentais e mostrava apresentações musicais tor inglês Bruce Gowers, com a ajuda do vocalista do grupo Queen, Freddie Mercury, realizou o que muitos pesquisadores consideram como sendo o primeiro videoclipe, propriamente dito, da história6 – Bohemian Rhapsody, de seis minutos, que se transformou num grande êxito comercial para o grupo e para seu disco A night at opera. Foi considerado o primeiro videoclipe produzido por se distinguir dos vídeos promocionais devido aos efeitos especiais e à maneira ágil de relacionar música e imagem.

ro audiovisual nos anos 1980. Afinal, ele será quase sempre realizado para atender a uma demanda da emissora que, com isso, consegue estabelecer um nicho de mercado. Prova disso é que, em 1984, a MTV assinou contrato com quatro grandes gravadoras dando a ela o direito exclusivo de transmissão dos novos videoclipes produzidos pelas companhias.

conhecidos pelos clipes do que pela presença na lista dos discos mais vendidos. Ele passou a interessar, assim, às gravadoras, que o incluíram em suas estratégias de marketing, incorporaram a tecnologia necessária e criaram departamentos específicos para sua realização. Outra característica do videoclipe é seu poder de relacionar um gênero musical

Seria, por exemplo, impossível imaginar fenômenos musicais como Michael Jackson e Madonna sem a expressividade de seus clipes. Para atingir seus objetivos comerciais, esse novo gênero audiovisual vale-se de procedimentos parecidos com os que são adotados na publicidade. Por isso, na opinião de Peter Wicke (1995, p.162), enquanto os filmes de rock ou os programas de TV de música pop transmitiam visualmente a experiência da música, o videoclipe concebe-a com a linguagem das imagens da publicidade. Com a necessidade de envolver e encantar em poucos segundos, a publicidade, assim como o clipe, vale-se de edição rápida, imagens digitais, câmera lenta, planos curtos (ou muitos cortes), mudanças de perspectiva e tomadas inusitadas, em sintonia com um tipo de telespectador também impaciente que 6 Muitos autores, porém, consideram os promos (vídeos promocionais) realizados para os Beatles como sendo os primeiros videoclipes da história.

Souza

O clipe ajuda na constituição da performance audiovisual, consagrando celebridades.

de

ou uma música à figura do intérprete, tornando-a uma forma de propaganda do artista.

H erom Vargas - Luciano

audiovisual tão grande que, contraditoriamente, muitos grupos musicais ficaram mais

Apesar de rapidamente descartável, o videoclipe demonstrou ter um potencial

Videoclipes B rasileiros

um caso isolado sem o surgimento da MTV, que possibilitou a emergência desse gêne-

nos

De acordo com Goodwin (1992), a experiência de Bohemian Rhapsody teria sido

A Linguagem Motion G raphics

dos principais artistas do momento como Elvis Presley e The Beatles. Em 1975, o dire-

184


não se interessa por ver a mesma imagem por muito tempo. No videoclipe, a relação entre música e imagem ocorre na edição de imagens de visual são, muitas vezes, levados ao extremo. De acordo com Arlindo Machado (2001, p.181), o videoclipe não precisa obedecer ao tempo da canção que o originou em função do acréscimo de ruídos, vozes e até mesmo de outras músicas. Para Ney Carrasco

plasticidade própria. Os aspectos dramáticos e narrativos têm sua importância reduzida, diferenciando-o, assim, do cinema, pois neste, a atenção do espectador não deve concentrar-se exclusivamente no discurso musical, visto que uma música que chame excessivamente a atenção para si prejudicaria o conjunto cinematográfico, ao contrário do que se espera do videoclipe. A história do videoclipe brasileiro pode ser dividida em três fases distintas, que se entrecruzam em alguns momentos, mas que possuem características próprias. A primeira fase vai de 1975 a 1980 e é marcada exclusivamente pelos videoclipes do Fantástico, programa de variedades da Rede Globo. A segunda vai de 1981 a 1989, quando o rock brasileiro amadurece e, além do Fantástico, surgem outros produtores de videoclipes: gravadoras e/ou profissionais que mudam a linguagem da televisão brasileira. Por fim, a terceira vai de 1990 até os dias atuais, quando os videoclipes são exibidos, em sua maioria, pela MTV Brasil8, subsidiária da emissora norte-americana, tendo por foco outros ritmos que se misturam ao rock e abrem espaço na programação das rádios e TVs. O surgimento da MTV Brasil representou novo e vasto espaço para a produção de videoclipes brasileiros, tanto que Nercolini e Holzbach (2009) consideram-na o fato mais importante para a produção musical do Brasil desde os festivais de música popular da década de 1960. No entanto, Lusvarghi (2002) entende que ela colabora para a segregação da música realizada no país porque atua como uma frente avançada da cultura pop norte-americana, uma vez que exibe, na maior parte de sua programação, videoclipes vindos da matriz, atualizando, direcionando e interferindo no gosto do público jovem daqui. A MTV Brasil, no entanto, foi inaugurada com a proposta, presente também na programação da rede nas outras partes do mundo, de não ser apenas um canal de 7 De acordo com o ex-diretor de criação da MTV Brasil, Jimmy LeRoy, o editor de videoclipe geralmente segue o ritmo de algum instrumento musical, geralmente a bateria, na hora de realizar os cortes de imagens (apud LOIOLA, 2001, p.42). 8 Principalmente na televisão por assinatura, algumas emissoras continuam tendo, até hoje, programas dedicados aos videoclipes, como, por exemplo, Multishow e Canal Brasil, além de outras dedicadas exclusivamente à exibição de videoclipes como o VH1.

4 - n. 1

diais, com as possibilidades de sincronia sendo levadas ao extremo em busca de uma

ano

(2003, p.192-193), as relações entre os movimentos visual e sonoro no clipe são primor-

Revista GEMI n IS |

acordo com o andamento e o ritmo da trilha sonora7, em que o nonsense e o preciosismo

185


videoclipes nacionais, mas também disputar audiência na programação de comportamento, variedades e jornalismo dentro do segmento jovem. Por outro lado, como o essa estética. O clipe no Brasil pode ser visto também como uma importante ferramenta para o envolvimento e identificação dos jovens brasileiros com sua cultura porque encontram ali seus ídolos, seus pares, seu visual e seu estilo de comportamento. De acordo com Ivana Bentes (2007), o videoclipe aqui realizado busca algo relacionado à realidade brasileira nos temas, trabalhados dentro de uma estética internacional, investindo numa espécie de audiovisual brasileiro para exportação.

da dimensão plástica e da dimensão da linguagem, de acordo com o trabalho de Velho (2008), Krasner (2009) e Block (2001). Em relação ao videoclipe, mais especificamente na sua linguagem, serão levadas em conta as relações existentes entre os gráficos, a canção

existentes nas duas linguagens. A ideia é fornecer ferramentas eficazes para a análise das formas de uso criativo e inovador da linguagem motion graphics nos videoclipes de artistas brasileiros no período coberto pela pesquisa. O propósito desse artigo é apresentar os resultados obtidos após análise qualitativa, de caráter exploratório, baseada na identificação e análise da linguagem motion

VMB (Video Music Brasil). A escolha do período de 20 anos se justifica por compreender o tempo de presença da MTV Brasil que demonstra boa parte da evolução e do desenvolvimento da produção massiva de videoclipes em nosso país. O MTV Video Music Brasil (VMB) é uma premiação criada pela MTV Brasil que destaca os videoclipes de artistas brasileiros em categorias técnicas e de votação popular. O prêmio foi criado em 1995, porém, de 1990 a 1994 a emissora já promovia uma votação popular da categoria que existe até hoje: a escolha da audiência. Com esse recorte de 20 anos, foi possível chegar primeiramente a um corpus de 659 videoclipes. A visualização dos videoclipes foi feita diretamente no site da MTV Brasil , no site YouTube, no portal Terra, dentro do espaço dedicado aos videoclipes, nos home pages dos próprios artistas, nos endereços eletrônicos das gravadoras e em sites que também exibem videoclipes, mas não se dedicam exclusivamente a esse propósito,

Souza

MTV Brasil entre 1990 e 2010, e que concorreram em alguma categoria de premiação do

de

graphics encontrada na produção de videoclipes de artistas brasileiros, exibidos pela

H erom Vargas - Luciano

Além disso, as categorias aqui apresentadas serão retiradas das próprias características

e o vídeo, sendo que essas relações podem ser sinestésicas, temáticas ou narrativas.

Videoclipes B rasileiros

Em relação ao motion graphics é importante identificar os principais elementos

nos

4 O motion graphics nos videoclipes brasileiros

A Linguagem Motion G raphics

videoclipe é o estilo característico de sua programação, até mesmo o noticiário seguia

186


como por exemplo o VideoLog.9 Dentre os 659 clipes indicados ao VMB, verificou-se que ao longo do período entre 1990 e 2010 foram encontrados 71 produções que utilizaAs categorias de análise utilizadas em relação ao motion graphics foram definidas por Velho (2008) e correspondem ao que ele chamou de duas dimensões: a plástica e a de linguagem. Na dimensão plástica, estão incluídas as categorias de espaço, linha,

seus efeitos plásticos. Na dimensão da linguagem serão analisadas as formas de relação existentes entre a música, o vídeo e os gráficos utilizados, que podem ser sinestésicas, narrativas ou temáticas. As sinestésicas são referenciadas pela múltipla produção de sentidos intrínseca ao videoclipe (MACHADO, 2003; GOODWIN, 1992), enquanto que as temáticas se diferenciam por estabelecer uma conexão entre o gênero musical, o artista e o tipo de grafismo utilizado, como se fosse uma espécie de identidade visual (LEGUIZAMÓN, 2001; JANOTTI e SOARES, 2008). A forma narrativa deve ser observada por dois diferentes aspectos: o primeiro é procurar contemplar uma reciprocidade entre imagem e som (visualização da canção no clipe), dentro das convenções ditadas pela música pop, ou seja, a relação entre produção e consumo do videoclipe, reconhecendo os três códigos principais da canção (música, letra e iconografia); o segundo aspecto é o tensionamento que ocorre entre o ritmo musical e o ritmo de edição de imagens ou a movimentação dos gráficos (CARVALHO, 2006; CHION, 1994; COELHO, 2003; GOODWIN, 1992). Por meio dessa análise, foi constatada a presença de quatro grandes estágios na evolução do uso da linguagem motion graphics nos videoclipes de artistas brasileiros entre 1990 e 2010: 1) As primeiras incursões de gráficos animados nos clipes (a partir de 1990); 2) O motion graphics como um elemento narrativo do clipe (a partir de 1998); 3) O motion graphics como linguagem principal no clipe (a partir de 2004); 4) A utilização de outras técnicas de animação incorporadas ao motion graphics (a partir de 2007). Estas fases revelam o desenvolvimento da linguagem motion graphics e não são simplesmente sucessivas, lineares e estanques, mas cumulativas, às vezes simultâneas e não necessariamente excludentes. Por exemplo, um videoclipe produzido recentemente pode ter elementos da primeira etapa. Para demonstrar as principais características de cada um dos estágios, foram analisados dois clipes para cada um deles. 9 Respectivamente, os sites são: http://mtv.uol.com.br/videos/clipes/; http://www.youtube.com; http://www.terra. com.br/musica/videoclipes.htm; http://www.videolog.tv/.

4 - n. 1

nados tanto à técnica utilizada como em relação às ferramentas digitais dos softwares e

ano

forma, tom, cor, textura, movimento e ritmo. Todas elas contemplam aspectos relacio-

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ram motion graphics.

187


Em linhas gerais, o primeiro estágio apenas retrata a introdução dos primeiros mecanismos de composição digital nos clipes. Apesar de o gênero servir como extenrecursos da edição não-linear, produtores e artistas demoraram a trabalhar com essa possibilidade. Durante quase metade da década de 1990, os clipes ainda buscavam uma interpretação da letra da música, uma narrativa mais formal, cenários pouco elaborados e repetitivos e pouca utilização de gráficos. Para auxiliar na identificação dessa fase de introdução do motion graphics, escolhemos dois videoclipes: Flores10 (1990), dos Titãs, e Eu quero essa mulher11 (1995), da

gráficos que retratam flores. Com a direção do videomaker Jodele Larcher e a colaboração do cenógrafo Gringo Cardia, essa é uma das primeiras produções a utilizar motion graphics, mesmo sem essa terminologia ser conhecida e usada na época. Esses gráficos, de acordo com a definição de Velho (2008), por terem sido manipulados e possuírem movimentação, enquadram-se no que se entende por linguagem motion graphics. Se-

natural dos objetos já que há flores bem maiores do que os músicos; e outra inovação foi o fato de cobrir com flores, por exemplo, a imagem do cantor justamente no momento em que ele interpreta a letra. Em relação à dimensão plástica do clipe, o espaço ocupado pela banda é tridimensional, enquanto que os gráficos são todos bidimensionais, portanto, um típico produto de motion graphics. Por outro lado, é também um espaço

flores por todos os lados / Há flores em tudo que eu vejo”. As cores estão levemente saturadas nos gráficos das flores e quentes nos membros do grupo, o que auxilia na relação plano-profundidade. A linguagem é sinestésica e temática, pois a canção associa valor à imagem das flores, tanto em forma de gráficos como no fundo do clipe. De acordo com os conceitos de narratividade de Claudiane Carvalho (2006), não há uma trama presente, mas sim uma relação direta com o ritmo estabelecido na edição. De acordo com Ana Sedeño (2008), o videoclipe pode ser classificado como misto, pois trabalha com o caráter conceitual e musical.

10 Flores (1990), da banda Titãs. Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=5y8GVud9bDw. Acesso em: 17 out. 2011. 11 Eu quero essa mulher (1995), da banda Virna Lisi. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=I9KjgZBbXmc. Acesso em: 17 out. 2011.

Souza

passam pela tela têm a função de tematizar a letra ao ressaltar o que ela diz em: “Há

de

ambíguo devido à diversidade de tamanho dos objetos em movimento. As flores que

H erom Vargas - Luciano

terísticas tornaram esse videoclipe tão inovador. Uma foi o desrespeito à proporção

gundo Guilherme Bryan, em artigo para o site Clipestesia (BRYAN, 2012), duas carac-

Videoclipes B rasileiros

O videoclipe Flores mistura cenas reais (live action) com a movimentação dos

nos

banda Virna Lisi.

A Linguagem Motion G raphics

so campo para a experimentação, mesmo após a introdução de novos softwares e dos

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O outro clipe que ilustra essa fase é Eu quero essa mulher (1995), do grupo Virna Lisi. Na análise desse clipe, fica perceptível o deslumbramento com a variedade de recolagens, inserção de animação tradicional, animação de objetos vetoriais e stop motion no início do clipe. Em relação ao espaço, todas as animações são bidimensionais, porém a relação entre plano e profundidade é pouco destacada. O espaço é planificado por

quase de forma aleatória, sem nenhuma relação mais profunda com a música. A movimentação também demonstra a falta de habilidade com as possibilidades do motion graphics, que na época já possuía recursos interessantes para um acabamento superior ao apresentado no clipe. Nele, os movimentos dos gráficos ainda respeitam as mesmas características da direção da câmera que captou as cenas reais e os gráficos possuem trajetória bem retilínea, sem alterações de velocidade. Nos aspectos de linguagem, há pouca sinestesia dos gráficos com a música, já que não ocorre movimentação ou edição específica para o produto. Entretanto, a temática está presente nas animações e movimentações de gráficos por tratar da letra da música que cita vários “adjetivos” para mulheres. O segundo estágio do uso do motion graphics nos videoclipes de artistas brasileiros tem como característica principal a incorporação da linguagem para evidenciar um sentido mais narrativo da obra. De forma geral, a linguagem motion graphics nos clipes dessa fase apresentou a utilização estética de recursos tecnológicos desenvolvidos para os softwares de composição digital desde o começo da década de 2000, como por exemplo, a capacidade de criar ambientes virtuais em 3D, as ferramentas de pintura digital, a geração de partículas animadas e recursos que permitiam que os movimentos dos gráficos ficassem cada vez mais próximos da realidade. Esses recursos oriundos do design e dos produtos multimídia renovaram os aspectos estéticos dos videoclipes brasileiros, que até esse momento tinham pouca experimentação na produção. Para evidenciar as características do segundo estágio, foram analisados os clipes Instinto coletivo12 (2002), do grupo O Rappa, e Dentro do mesmo time13 (2003), do cantor e compositor Nando Reis, baixista egresso dos Titãs. O clipe Instinto coletivo é inteiro realizado em animação e ambientado numa espécie de arena onde o personagem começa a tomar contato com a cultura brasileira

12 Instinto Coletivo (2002), do grupo O Rappa. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=lePKOZ1rk6o. Acesso em: 20 dez. 2011. 13 Dentro do mesmo time (2003), de Nando Reis. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=FHH5JOLFvO0. Acesso em: 19 dez. 2011.

4 - n. 1

são implícitas e as formas são figurativas. Os gráficos e sua movimentação são feitos

ano

conta da total uniformidade de tamanho dos objetos e planos frontais. As linhas ainda

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cursos e técnicas recém-incorporadas aos softwares de composição, com a utilização de

189


representada pela capoeira e pela literatura de cordel, além de apresentar referências ao cenário do samba e do hip-hop carioca. O clipe faz uma citação clara dos problemas perda das referências culturais. A linguagem motion graphics apresentada nesse clipe é destacada pela animação dos caracteres ao redor do personagem e pela composição que mescla elementos 3D e 2D, além de grafismos que passam pelo vídeo. Nesse videoclipe, a sensação é de espaço profundo devido à emulação dos movimentos de câmera (câmera virtual) que gira ao redor do personagem, ao trabalho com a perspectiva e aos efeitos de luz e sombra. Além disso, as fontes tipográficas que “escrevem” a letra da música são

Há também o uso constante de tonalidades de cinza, do mais claro ao mais escuro. O movimento do motion graphics presente no videoclipe muitas vezes acompanha a letra da música, simulando uma câmera real que faz uma panorâmica de todo espaço, em trajetória curva com velocidade variável de acordo com a intensidade sonora. Com certeza, essa produção foi uma grande influência para outros produtores principalmente

entre as imagens do videoclipe e o discurso visual da própria banda. O outro videoclipe desse estágio é Dentro do mesmo time (2003), do cantor Nando Reis. Os diferenciais desse trabalho são as alterações cromáticas em tons de sépia e a incorporação de parte das imagens gravadas com o cantor, provavelmente em chroma-key, dentro da composição. O espaço como componente visual no videoclipe se apresenta

drinhos. O resultado é uma superfície gráfica que, subitamente, adquire profundidade. As formas são figurativas, as linhas estão implícitas nos objetos e há predominância de formas retilíneas que identificam a cidade (prédios, janelas etc.). Os movimentos dos inúmeros recortes das imagens decorrentes da transição entre elas são sincronizados com o ritmo da música e, em vários momentos, as trajetórias não-perpendiculares são retilíneas, como se a câmera virtual se deslocasse horizontal ou verticalmente no espaço. As relações sinestésicas e temáticas no clipe estão presentes principalmente pela vinculação da solidão demonstrada ao tipo de ambiente noir utilizado para ilustrar o clipe (Trecho da letra: “Espalha graça ao pleno presente / E mesmo ausente é doce sua falta / Espelho é o mar, o lago, meus dentes / Com um beijo posso ver sua alma / E depois que eu vou / Não vou voltar”).

Souza

fundo aplicado sobre o chroma-key “chapado”, para dar a sensação de história em qua-

de

profundo, aberto, restrito a quase que dois cenários: o carro e a rua. Há um plano de

H erom Vargas - Luciano

letivo, possui os três elementos: sinestesia, temática e a narrativa, já que há forte ligação

pela movimentação e pelos ritmos acelerados. Quanto à linguagem, o clipe Instinto co-

Videoclipes B rasileiros

no início do clipe são apresentadas de maneira explícita e as formas são representativas.

nos

utilizadas para reforçar a impressão de profundidade. As linhas que cercam a “arena”

A Linguagem Motion G raphics

que a globalização traz, como a exclusão e a marginalização, por meio de uma possível

190


O terceiro estágio retrata a maior utilização da linguagem motion graphics por parte do mercado de produção de clipes. Agora, o motion graphics não aparece mais a realizar clipes que fossem produzidos 100% em motion graphics, ou que, pelo menos, a questão da utilização da linguagem já estivesse presente muito antes, no processo de produção, como um produto que auxiliasse o artista a também criar uma identidade

Caboclinho comum15 (2005), dos rappers Thaíde e DJ Hum. Como uma espécie de reforço na ideia de misturar samba e rap, o cantor Marcelo D2 realizou o videoclipe Gheto com cenas reais que interagem com gráficos, ou seja, a ideia do motion graphics foi pensada muito antes das gravações, até mesmo para possibilitar essa interação. A música já começa com uma frase emblemática que traduz o próprio estilo da produção: “Eu ‘tô’ na rua e vejo a vida como um videoclipe”. Durante todo o vídeo, são colocados elementos que retratam a diferença entre a vida da periferia e da classe alta da cidade do Rio de Janeiro. Além disso, o clipe ressalta o samba e reforça os pontos em comum existentes com o rap brasileiro, além de apontar para as misturas de linguagens e sonoridades presentes no trabalho de Marcelo D2. O estilo desse vídeo é apontado como um dos mais inovadores no uso do motion graphics por fazer o passeio da câmera virtual dentro do espaço em que foram gravadas cenas em live action. Para isso ocorrer, todo cenário em 2D deve se integrar perfeitamente com as cenas do cantor e dos figurantes, estabelecendo diferenças de perspectiva e de proporção dos objetos. Por meio da visualização de vários pontos da cidade do Rio de Janeiro, o espaço profundo fica evidente nessa produção pelas diversas transformações de tamanho dos gráficos presentes na animação, a noção perfeita de perspectiva e convergência, a sobreposição de camadas, os efeitos de luz e sombra e a emulação dos movimentos de câmera em vários ângulos e direções. Além disso, durante o clipe, as fontes tipográficas presentes em alguns momentos remetem ao movimento hip-hop, por conta do grafite, e aos discos de rap americanos das décadas de 1970 e 1980. As texturas utilizadas nos objetos procuram ser fiéis ao real da melhor maneira possível, como por exemplo, no calçadão de Copacabana. O clipe da música Caboclinho comum (2005), dos rappers paulistas Thaíde e DJ Hum, se diferencia por ter sido feito totalmente em motion graphics, sem nenhuma imagem em vídeo, ou seja, tudo que aparece são gráficos animados. O videoclipe é 14 Gheto (2006), do cantor Marcelo D2. Disponível em: http://vimeo.com/2845830. Acesso em: 15 dez. 2011. 15 Caboclinho comum (2005), da dupla Thaíde e DJ Hum. Disponível em: http://www.youtube.com/ watch?v=EQSJivjFP3A. Acesso em: 13 dez. 2011.

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será feita a análise dos seguintes videoclipes: Gueto14 (2006), do cantor Marcelo D2, e

ano

visual juntamente com o show e a capa do CD ou DVD. Para representar esse estágio,

Revista GEMI n IS |

como uma linguagem para ser inserida apenas na pós-produção. O desafio era começar

191


praticamente a animação de gráficos bidimensionais num cenário 3D criado dentro do ambiente dos softwares de pós-produção. Portanto, é repleta de emulação de moformas representativas e figurativas do cenário da periferia de São Paulo, o que aguça a interpretação de acordo com o repertório de cada pessoa. Diferentemente do clipe de Marcelo D2, aparece nesse uma tipografia muito mais “suja”, próxima de rabiscos feitos por pichadores de rua. As tonalidades mais presentes no vídeo são o preto e o branco e a textura dos gráficos é irregular privilegiando o aspecto de “sujeira” no clipe, sem preocupação com linhas e figuras de traços rebuscados.

realizados praticamente dentro da linguagem motion graphics, e até por trabalharem com a relação entre imagem e som diretamente, eles já carregam esses vínculos mais facilmente. O último estágio a ser observado é o de videoclipes com variadas técnicas de animação que incorporaram o motion graphics no processo de produção. Os clipes que

O videoclipe Bossa nostra tem direção de Rodrigo Carelli e incorpora uma série de técnicas de animação, além de utilizar a narrativa justaposta à exibição de imagens com outras finalidades que não as associativas de causa e efeito. Além do motion graphics, durante todo o clipe é possível verificar a presença de técnicas variadas como stop motion, animação 3D e pixilation18. Como o clipe retrata um mundo imaginário, em que

motion graphics são representativas e, inclusive, dentre os clipes selecionados, este é o único que trabalhou também com alterações digitais na forma, ou seja, o chamado efeito morph. Há uma movimentação diferenciada no vídeo porque incorpora personagens em 3D. Com isso, percebe-se grande variedade de trajetórias, velocidades e escalas dos objetos na emulação de movimentos da câmera. Em relação à linguagem, o vídeo reflete bem o hibridismo presente no estilo musical da Nação Zumbi, por isso, os elementos sinestésicos, temáticos e narrativos estão muito presentes nesta produção. 16 Bossa nostra (2008), da Nação Zumbi. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=ppXKPUpenBQ&ob=av3e. Acesso em 27 dez. 2011. 17 Pontes indestrutíveis (2008), da banda Charlie Brown Jr. Disponível em: http://www.youtube.com/ watch?v=bZTwKUJDU1M. Acesso em 28 dez. 2011. 18 Pixilation é uma técnica na qual atores e objetos são filmados quadro a quadro e transformados em marionetes. Um dos maiores expoentes dessa técnica é o animador Norman Mclaren. Disponível em: http://www.cinematografo.com.br/norman-mclaren-cinemateca/. Acesso em: 05 fev. 2012.

Souza

mações genéticas por meio de aparatos tecnológicos, as formas inseridas na linguagem

de

um personagem busca uma espécie de metamorfose, como numa história de transfor-

H erom Vargas - Luciano

trutíveis17 (2008), da banda Charlie Brown Jr..

serão utilizados para a análise são: Bossa nostra16 (2008), da Nação Zumbi, e Pontes indes-

Videoclipes B rasileiros

três elementos muito presentes: a sinestesia, a temática e a narratividade. Por serem

nos

Com relação à linguagem, os dois clipes destacados desse estágio possuem os

A Linguagem Motion G raphics

vimentos de câmera virtual, colagens e sobreposição de imagens. Há a presença de

192


O outro clipe a ser analisado como exemplo desse estágio é Pontes indestrutíveis (2008), da banda de rock santista Charlie Brown Junior. As músicas do grupo se caracgráfica centralizada na linguagem motion graphics e traz como diferencial o trabalho com diversas técnicas de animação, desde a animação de personagens em 3D até a animação tradicional. Outro fator importante é a utilização de animação com letterings19

bidimensionais e tridimensionais numa cidade fictícia que apresenta diversos personagens estereotipados. Todas as formas utilizadas no clipe são figurativas ou representativas, estas últimas em maior número, nos letterings. Por outro lado, as formas variam intensamente no quadro com alterações de posição dos objetos e de posição e rotação da câmera virtual. Em relação à tonalidade, os personagens da fictícia cidade, bem como elementos figurativos, são destacados com cores, enquanto que a cidade está toda em tons de cinza ou branco e preto. A textura é bastante explorada no background do videoclipe, com reproduções de superfícies de papel. Temos aqui uma solução de textura estática, tátil e irregular, que equilibra a simplicidade dos fundos, sem qualquer linha ou variação de formas bem definidas, e contrasta com os objetos coloridos geralmente tridimensionais. 5 Considerações finais O propósito deste artigo foi detectar as formas de uso criativo e inovador da linguagem motion graphics delimitando o estudo nos videoclipes de artistas brasileiros entre os anos de 1990 e 2010. Ao avaliar os resultados obtidos, é possível afirmar que o objetivo principal foi alcançado e, além disso, abre novas perspectivas para esse campo de estudo. A realização da pesquisa bibliográfica permitiu apontar as características e a importância da linguagem motion graphics no cenário audiovisual da atualidade. Por meio desse estudo foi possível entender o motion graphics como linguagem híbrida, característica marcante dos atuais produtos audiovisuais, determinada também pela própria hibridização dos softwares. Tal hibridização, que vem ocorrendo em ritmo acelerado, também torna cada vez mais difícil o trabalho de definição do conceito, já que muitas ferramentas digitais cada vez mais estão sendo incorporadas, permitindo a evolução das possibilidades estéticas do motion graphics. Apesar de a linguagem estar as19 Lettering é um termo mais utilizado em design e publicidade. São os caracteres (tipografia) exibidos durante uma peça audiovisual.

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ideia de profundidade, sem limitações, com a utilização de objetos unidimensionais,

ano

por meio de movimentação de câmera virtual. Em relação ao espaço, o clipe passa a

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terizam por misturar ritmos como rock, rap, reggae e punk. O videoclipe tem composição

193


sociada a fatores tecnológicos, na realidade ela apenas formaliza uma série de ideias, técnicas e procedimentos conhecidos, herdados de uma história da arte já estabelecida Por meio de categorias formuladas a partir da revisão bibliográfica, e que são inerentes às próprias linguagens em estudo, foi possível determinar os quatro estágios de evolução do motion graphics nos clipes de artistas brasileiros durante o período destacado. É importante observar que essas categorias não determinam períodos históricos fechados ou estanques. Na verdade, elas devem ser entendidas como períodos de evolução e acúmulo de conhecimento da linguagem, muitas vezes permitida pelo avanço

Assim como observado em outros gêneros audiovisuais (vinhetas, publicidade etc.), a maior parte da produção em motion graphics tem uma concentração muito grande no segundo e terceiro estágio, ou seja, entre o final da década de 1990 até a metade da década de 2000. Entretanto, é notória a queda de produção no último estágio até mesmo pela saturação e banalização da linguagem. Segundo Manovich (2007), essa falta de

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H erom Vargas - Luciano

do remix.

originalidade acaba por gerar o que ele chama de “remixabilidade”, ou seja, a cultura

Videoclipes B rasileiros

determinando os saltos de inovação.

nos

tecnológico dos softwares como também pelas soluções estéticas criadas, o que acaba

A Linguagem Motion G raphics

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The Last Silent Movie: Escritura e desaparição obra de S usan H iller A ngie B iondi Doutoranda. Programa de Pós Graduação em Comunicação Social. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, UFMG. GRIS - Grupo de Pesquisa em Imagem e Sociabilidade. E-mail: angiebiondina@gmail.com

Paulo B ernardo Vaz Doutor em Ciências da Educação e da Comunicação pela Université de Paris Nord; Professor adjunto do Departamento de Comunicação Social da UFMG E-mail: paulob@fafich.ufmg.br

Revista GEMI n IS

ano

4 - n . 1 | p. 198 - 205

na


Resumo Qual imagem poderia assumir a extinção de um povo? Qual palavra poderia abarcar a condição ameaçada de uma língua? A obra de Susan Hiller tenta dar conta do entrelaçamento destas duas questões. Partindo da critica à lógica ocidentalizada de tudo mostrar e tudo ver das imagens que povoam o cotidiano, a obra percorre outra via: expor o gesto e sua produção paradoxal da visibilidade como invisibilidade. Nenhuma imagem é dada ao espectador, assim como nenhuma palavra é conhecida do leitor. É na montagem híbrida que a ameaça e extinção das línguas e dos povos adquire uma forma que interroga os próprios modos de sua exposição como desaparecimento. Palavras-Chave: Visibilidade, Política, Imagem.

Abstract What image could take the extinction of a people? What word could cover the condiction theatened of a language? Susan Hiller’s work attempts to account for the intertwining of these two issues. Starting from the critical logic westernized that all shows and all is to be seeing by the images of everyday life, the work tries another route: exposing the paradoxical gesture and its production of visibility as invisibility. No image is given to the spectator and not a word is known to the reader. However, the hybrid assembly shows how the threat and the exctintion of languages and peoples acquire a form that interrogates the ways of their own exposure as disappearance. Keywords: Visibility, Politics, Image.


“Le mot silence est encore un bruit” (Georges Bataille)

T

odos os dias, o jornalismo expõe o rosto dos sofredores ao redor do mundo. São inúmeras as situações de atentados, guerras, catástrofes, doenças e violência urbana que indicam as mazelas e sortilégios que produzem vítimas de todo tipo.

Contudo, se o acesso a estas realidades do mundo nos parece cada vez maior e de modo quase instantâneo, dada a sofisticação dos aparatos tecnológicos de captação e difusão de imagens on line, por outro lado, ainda se revela muito pouco sobre a condição na qual são vistos os povos e seus sofrimentos. Neste sentido, a proliferação dos gestos de captação do mundo em imagens revela sua base paradoxal; a sobre-exposição leva à subexposição. Ou, nos termos de uma formulação crítica bem própria ao campo da discussão política das imagens: a visibilidade é sempre a revelação de maneiras de fazer e de modos de pensar o mundo incluindo a produção de sua invisibilidade (RANCIÈRE, 2009, 13). Nas imagens em questão Susan Hiller denuncia exatamente este gesto. The Last Silent Movie é um híbrido artístico. Uma projeção em vídeo de 20 minu-

tos acompanhada por 25 quadros e, em cada um, palavras escritas em línguas diversas compõem legendas para uma única imagem que se repete: o fundo preto. Durante o tempo do vídeo, o áudio traz vozes em diferentes idiomas e entonações. Os diversos ritmos das falas, por vezes, nos sugerem um canto, outras vezes, uma oração, também um relato ou um simples fragmento de conversa. Seus sons são indecifráveis assim como as imagens que se mantêm como um fundo escuro, daquela que não se pode ver mais nada, pois foi sobre-exposta, recebeu muita luz e queimou o negativo; nada restou de sua singularidade figurativa. Em algumas legendas escritas em inglês, talvez traduções de trechos dos diferentes idiomas, é possível ler: “Can you speak Lenape?”, “I can speak my language”, “Can you speak your language?” “Severely endangered”. Em uma parte da projeção, o quadro preto dá passagem às linhas desenhadas por um osciloscópio; espécie de máquina com um sensor muito sensível que registra as


ondas sonoras, tal qual a leitura visual dos mapas que registram os abalos sísmicos ou os sinais vitais dos batimentos cardíacos. Mais uma vez, nenhuma figuração nas imaUma máquina como o oscilatório serve tanto para registrar o funcionamento de um órgão, como leitor de sua atividade, quanto para monitorar uma ameaça de catástrofe natural. A analogia que a artista propõe entre os registros sonoros das línguas

detalhe a ressaltar: as línguas, extintas ou ameaçadas, são desconhecidas, reduzidas às comunidades de seus falantes ou a poucos estudiosos. Lenape, Cajun, Xoleng, Jerrais, Comanche, Potowatomi, K’ora, e outras 17 línguas são apresentadas sob o registro de ondas sonoras e parecem estranhas ao repertório ocidental proveniente da raiz latina que predomina nos idiomas mais utilizados nas sociedades. Descarnadas de um corpo humano, mas aderidas a uma forma física, maquínica, adensadas nas linhas em aclive, declive, segmentos de reta, as múltiplas vozes compõem uma massa incompreensível de som e que, apesar de audíveis, são incompreensíveis, tal suas imagens, que não consegue lhe conferir a legibilidade desaparecida. Entretanto, a dinâmica entre palavra, som e imagem se mistura ao ponto do questionamento. A referência ao entendimento que a obra pretende chegar não é interna, mas propõe nos alcançar, está projetada para fora, para o outro lado, no exterior, no salto para fora da obra. A projeção híbrida de Hiller não quer se explicar, mas ela pede explicação, apela, inquire, solicita olhos e ouvidos ao que, a todo o momento, está sendo visto e ouvido, mas não compreendido. É na visibilidade ilegível, na denuncia do gesto, que as vozes fazem seu coro e gritam sua extinção. Tudo está exposto, mas nada está dado a ver, sequer ouvido, mas não compreendido. Susan Hiller provoca a linha tênue entre ver e compreender. A artista critica a lógica ocidentalizada de tudo mostrar e tudo ver das imagens que povoam nosso cotidiano. O jornalismo, o turismo, a publicidade, nos acostumaram a modos de ver (e também ouvir) os povos, as culturas, paisagens e realidades. Mesmo sob a imagem escura, queimada pelo excesso de exposição, seus personagens existem, estão lá nas imagens, ainda que como presença espectral ou fantasmática de um estado do mundo. Não compartilham também da invisibilidade na super exposição os personagens trazidos pelo jornalismo? Os personagens não precisam exibir seus corpos mutilados, abatidos, sangrando ou mortos, e ainda assim denunciam sua extinção, sua morte, a ameaça de sua desaparição, da língua, da cultura, da espécie.

4 - n. 1

legendas “endangered”, “several endangered”, “extinct”, “nearly extinct”. Mas há ainda um

ano

como a passagem de sua existência ou ameaça de sua extinção é corroborada pelas

Revista GEMI n IS |

gens, mas apenas os índices de sua existência, presente ou passada.

201


Susan Hiller procura o leitor/ouvinte/espectador por outro percurso, por outra via de representação que não aquela do sofrimento midiático, midiatizado, mas aquela obra de Hiller procura nos deslocar, portanto, do lugar comum das imagens prontas. É pela contraposição entre imagens, sons e palavras, pela confrontação de seus usos pela lógica corrente da mídia, que ela consegue provocar algum pensamento outro. The Last Silent Movie não é uma obra sobre o silêncio das línguas ou o silêncio dos povos e suas culturas ameaçadas. É uma obra que faz muito barulho, que reproduz múltiplas vozes que reclamam com insistência que não querem sucumbir na arte ou na vida, mas que questiona com as palavras-imagens indicando que o único silêncio que

O aparecer político dos povos As dimensões de registro e escritura se confundem na obra de Hiller. Ao mesmo tempo em que se põe em xeque o caráter documental das imagens para atestar a assume o lugar de comprovação desta realidade com uma força poética, decerto, mas também política. Neste ponto, a narrativa que se compõe não precisa restituir os fatos

ilustrar ou demonstrar a realidade de sua desaparição, ainda assim, factual. Contudo, sua realidade social adquire uma forma que interroga os próprios modos de sua exposição. Registro e escritura se confundem em seus limites e conceitos na obra de Hiller porque, mutuamente, jogam com o papel de seus usos para o reconhecimento e identificação da realidade. A ameaça ou a extinção de uma língua é também a ameaça e a extinção de uma cultura, de um pensamento, de um povo. O anúncio da morte em The Last Silent Movie indica, na verdade, as muitas mortes que acompanham o fim de uma língua, ao mesmo tempo em que joga com o estatuto da palavra, imiscuída em texto/ imagem/som, em uma sociedade baseada na economia informativa que seleciona e divulga os fatos do mundo como convém. Quanto do mundo pode dizer um registro? Quanto de um povo pode dizer uma língua? Jacques Derrida, no Mal de arquivo (2001), já denunciava certa perspectiva que vigora em nossa sociedade, considerada pelo autor, positivista e autoritária, em lidar com os materiais do arquivo como únicos “documentos guardiões da verdade”

A ngie B iondi - Paulo B ernardo Vaz

tística para comprovar, nenhuma fotografia para provar e nenhuma cronologia para

que levam à ameaça e extinção das línguas; nenhum dado é fornecido, nenhuma esta-

S usan H iller

realidade ameaçada das línguas e seus povos, a montagem entre texto, som e imagem

e desaparição na obra de

existe é o nosso.

The Last S ilent Movie: Escritura

da poética - e da política - que indica outras formas de expor o outro e sua realidade. A

202


(DERRIDA, 2001, 13). Sucintamente, mais que questionar a legitimidade exclusiva que a posição do historiador, seguindo sua função arcôntica, manteve ao longo dos tempos, o cumento, porque extraído do próprio corpo do fato passado, assume para a experiência. Ao que se insiste na classificação do documento como fragmento da origem, pedaço do original e, por isso mesmo, válido e legítimo, Derrida contrapõe a noção de

gesto preciso, que Hiller questiona a exposição dos povos em sua ameaça e extinção. A língua é um vestígio que atesta a condição de realidade e seu estado no mundo. A exposição, enquanto super exposição, gera a subexposição e sua invisibilidade. Sabemos que a visibilidade tem importante reverberação no pensamento político ocidental e, no campo teórico contemporâneo, é matriz das discussões em torno de uma constituição democrática de sociedade. Desde a concepção de Jürgen Habermas sobre o conceito de esfera pública política, nos anos 60, que a visibilidade alimenta as discussões em torno da caracterização de uma política democrática, que garanta o acesso e a participação pública nos processos. No entanto, o acesso à esfera da visibilidade é marcado por uma série de padrões normativos e institucionais que confere posições extremamente desiguais aos seus atores (MAIA, 2006, 106). Naturalmente que a obra em questão não procura refinar as nuances desta problemática, mas atinge seu ponto crucial ao questionar a relevância da visibilidade/invisibilidade para o quadro da natureza política. Ao colocar em evidência o entrelaçamento do documento e da escritura que modelam, ou modulam, a visibilidade (e seu contrário) de um povo, se problematiza tanto o gesto quanto seu produto. Não é à toa que o invisível e o inaudito estão entrelaçados aqui. Neste ponto, a obra de Hiller afronta diretamente uma lógica midiática responsável pela gestão e produção das (in)visibilidades do mundo contemporâneo, ou pelo menos, daquilo que entra em pauta, que recebe “luz” e passa como referência ao senso comum. O contraponto da obra é provocar o avesso da imagem única, homogênea, universalizada, que povoa o mundo oferecido pelos media com nenhuma imagem, ou melhor, com a mesma imagem que se repete: o fundo preto. Assim também à única fala, como único discurso pronunciado, incessantemente, pelos meios de comunicação, se contrapõem as múltiplas vozes, em múltiplas línguas. O aparecer político dos povos e suas línguas ameaçadas ou extintas, nesta reconfiguração do jogo proposta na obra de Hiller, sublinha a multiplicidade como critério do visível no espaço público. Se “ser e aparecer coincidem”, como sublinhou Han-

4 - n. 1

pressão é tão atuante quanto o valor de documento. É neste movimento, a partir deste

ano

vestígio (DERRIDA, 2001, 15). Este argumento ajuda a compreender que o valor de ex-

Revista GEMI n IS |

gesto interpretativo de Derrida anuncia uma revisão importante na função que um do-

203


nah Arendt (ARENDT, 2009, 35; 2004, 38) é porque sua consideração fenomenológica das atividades do espírito – o querer, o pensar e o julgar – partilha de uma concepção homens. O espaço público e a visibilidade comungam, segundo Arendt, deste respeito como premissa. O que se desvela na singularidade de cada homem, de cada povo, de cada cultura ou de cada língua é a pluralidade. Não se aparece como um, mas como muitos. A experiência estético-política que movimenta a obra de Hiller se aproxima desta concepção de compartilhamento do mundo. A exposição é, assim, um paradigma político, seja na mídia, na arte ou na vida.

Faz parte desta perspectiva a relação que se desenvolve com o sujeito, nomeadamente receptor, diante da obra. Dissemos, anteriormente, que Hiller busca o espectador/ouvinte/leitor e que é preciso deslocá-lo do lugar comum, borrar as fronteiras Como definir um espectador se não há imagens? Como definir um leitor se as palavras são incompreensíveis? Como definir um ouvinte se não se reconhece uma fala? The Last

logo do entendimento sem palavras, acordos ou consensos, mas ao nível das afecções1. Ainda que a obra não esteja para comprovar ou demonstrar a realidade da invisibilidade que leva à morte das línguas e dos povos, pois não lhe interessa coletar e exibir as informações, os dados ou os índices desta desaparição, ela apresenta os movimentos e os gestos que a produzem. Deste modo é possível produzir outra relação entre o fazer e o ver. As imagens, no vídeo, assim como as palavras, não estão para compor discursos, mas para abalar os consensos, para modificar os modos de ver e ouvir através de novas formas de sentir palavras e imagens. Por isso imagens, sons e palavras não se complementam, não se enquadram, mas estão para a mútua perturbação de uma ordem que sempre lhe impôs um discurso.

1 Empregada no mesmo sentido conceitual deleuziano de afecção, que designa um estado do corpo atravessado por potências de agir que podem ser ampliadas ou reduzidas conforme os afectos (paixões, desejos). Conceito afim desenvolvido em Espinosa e retomado por Deleuze. Ver DELEUZE, Gilles. Espinoza e os signos. Porto: Rés Editora, 1976. 51p.

A ngie B iondi - Paulo B ernardo Vaz

que está do outro lado da margem, o apenas outro, para que, juntos, consigam um diá-

Silent Movie não busca nenhuma destas figuras, mas apenas pretende alcançar aquele

S usan H iller

de suas demarcações funcionais, confundí-lo em seus papeis diante da obra híbrida.

e desaparição na obra de

A partilha com o espectador

The Last S ilent Movie: Escritura

da aparência baseada na pluralidade, no mundo comum do inter esse, no espaço entre os

204


A articulação entre os diferentes recursos textuais, de imagem e som propõem

205 Revista GEMI n IS |

Mas a ideia de ‘partilha do sensível’ implica algo mais. Um mundo comum não é nunca simplesmente um ethos, a estadia comum, que resulta da sedimentação de um determinado número de atos entrelaçados. É sempre uma distribuição polêmica das maneiras de ser e das ‘ocupações’ num espaço de possíveis. (RANCIÈRE, 2009, 63)

um exercício de pensamento sobre o próprio regime visual. Ao olhar desejante que se

ano

alimenta das incansáveis imagens publicitárias ou jornalísticas se contrapõe um gesto e

4 - n. 1

uma operação de partilha. Em certa altura da projeção lemos claramente: “you want to holler”. Às múltiplas vozes e sons reproduzidos no vídeo, o sujeito também é provocado a interpor sua própria voz, a gritar. Mais que uma relação entre sujeito e obra há uma veemente proposta de mexer na condição do sujeito para que se reconheça como um corpo integrado. A montagem de imagens, sons e palavras está colocada para reconfigurar o território do visível, do pensável e do possível (RANCIÈRE, 2009, 62).

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A Música Clássica como E lemento N arrativo Produtor de S entido em Cartoons M arina La Rocca Cóser Mestre em “Forme e Tecniche dello Spettacolo:Cinema” pela Universidade La Sapienza de Roma. Graduada em Comunicação Social: Publicidade e Propaganda pela Universidade Federal de Santa Maria. Atualmente cursa uma especialização em Digital Audio / Video Editing também na Universidade La Sapienza de Roma. E-mail: marinacoser@gmail.com

Rogério Ferrer Koff Doutorado em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2001). Atualmente é Professor da Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: rkoff@terra.com.br

Revista GEMI n IS

ano

4 - n . 1 | p. 206 - 218


Resumo Este trabalho estuda como a música toma forma de narrativa imagética ajudando a produzir sentido em desenhos animados, através da análise dos cartoons The Cat Concerto, de Hanna Barbera, estrelando Tom & Jerry; e Rhapsody Rabbit, de Friz Freleng, estrelando Pernalonga. Ambos, de 1946, construídos sobre a “Rapsódia Húngara nº2”, de Franz Liszt, de 1847. Palavras-Chave: cartoon, imagem e som, produção de sentido, The Cat Concerto, Rhapsody Rabbit, Hungarian Rhapsody n.2.

Abstract This paper studies how music acquires an image narration form, helping to produce sense on cartoons. Through the analysis of the cartoons “The Cat Concerto” by Hanna Barbera, starring Tom & Jerry; and “Rhapsody Rabbit” by Friz Freleng, starring Bugs Bunny. Both cartoons, from 1946, were built upon Franz Liszt’s “Hungarian Rhapsody n.2”, from 1847. Keywords: music, cartoon, image and sound, sense production, The Cat Concerto, Rhapsody Rabbit, Hungarian Rhapsody n.2.


1 – Introdução

N

os cartoons, um recurso largamente utilizado como elemento narrativo produtor de sentido é a música erudita. Entender como a música se relaciona com a imagem, bem como se é possível trabalhá-la a fim de sincronizá-la com a

imagem são problemas desafiadores que devem ser pesquisados. Para o comunicador é de suma importância saber como e se a música pode ser trabalhada a fim de colaborar com a produção de sentido desejado. A fim de desenvolver este trabalho, foi realizada uma pesquisa bibliográfica ex-

ploratória abrangendo um breve histórico do som no cinema, a mostrar como e quando o som se uniu a essa linguagem, qual a sua importância; como se dá a relação música-cinema; uma contextualização da música clássica em desenhos animados; e ainda um breve histórico do compositor e da Rapsódia Húngara nº2, para entender melhor em que contexto a música em questão surgiu e, assim, saber se ela sofreu alterações tanto de estrutura e forma quanto de significado para se aplicar em tamanha sincronia com ambos os cartoons aqui trabalhados. Posteriormente, os dois desenhos foram analisados compasso a compasso, quadro a quadro, buscando saber como a música foi trabalhada para estar em sincronia com a imagem e, assim, produzir sentido junto a ela. Chegando, então, na comparação do desenvolvimento dos dois desenhos em relação à música, a fim de ver como a música pode tomar diferentes sentidos dependendo da entonação, da interpretação (tanto na execução quanto na representação imagética) e, por que não, da sua leitura em forma de imagem. 2 – Desenvolvimento 2.1 – Cinema Sonoro – Um Breve Estudo Mesmo enquanto mudo, o cinema sempre se pretendeu sonoro. Desde o seu surgimento, em 1895, com os irmãos Lumière e seus trabalhadores saindo da fábrica ou


mesmo seu trem chegando à estação, em 1896, o cinema sugere sons, produz sensações sonoras. Em pouco tempo, as projeções passaram a ter um acompanhamento sonoro ou ainda narração), com o objetivo de promover um maior entendimento da estória e, ainda, abafar o ruído do projetor. Apenas em 1927 é que o cinema veio a conhecer fisicamente o som, introduzin-

-films, filmes repletos de diálogos, deixando clara a intenção de exibir o novo recurso. Além disso, muitos barulhos desnecessários se faziam presentes na cena, sem critério de seleção. Devemos aqui estabelecer uma distinção entre aqueles efeitos sonoros que são divertidos somente pela virtude de sua novidade (que logo se esvai), e aqueles que nos ajudam a entender a ação, e que excitam emoções que não poderiam ter sido levantadas somente pela visão das imagens. (CLAIR, 1985, p.93 apud MANZANO, 2003, p.95) A partir da conscientização da função e de como se aproveitar do advento sonoro junto ao cinema, o próximo passo é estabelecer a relação com a música, a qual se dará num nível horizontal e vertical, e que ajudará numa prática mais intrínseca de aplicação do som ao cinema sonoro. 2.2 – Cinema e Música A linguagem cinematográfica é herdeira de toda uma tradição dramático-musical da cultura ocidental, em que a música, em diversas manifestações, se combina com a fala, com a estrutura dramática, com o gesto, com a ação e com o movimento. A primeira grande característica entre música e cinema é o fato de ambos se desenvolverem no tempo. Ambos são uma sucessão de eventos que, isolados, não possuem conexão entre si e, quando aproximados, ganham um novo sentido, o que dá a dimensão de horizontalidade dos dois meios. O Cinema é formado ainda pela música, pela imagem em movimento, pela palavra e também pelos efeitos sonoros, levando-nos à dimensão de verticalidade, se desenvolvendo como uma polifonia. A construção audiovisual está baseada, portanto, em duas dimensões que ganham sentido através de um movimento unificado, em que sons e imagens interrelacionam-se de maneira dinâmica no decorrer da linha do tempo.

4 - n. 1

junto ao cinema. Com o advento do som na montagem, houve um abuso dos talking-

ano

do-o, então, como um novo elemento de montagem, a fim de integrar o ver e o ouvir

Revista GEMI n IS |

ou mesmo musical, improvisado por músicos ou realizado por atores (efeitos sonoros

209


2.3 – Música Erudita em Cartoons

da prática de acompanhamento musical no cinema mudo. Quando empregada em formas como comercial ou cartoons, em que se tem poucos segundos para comunicar uma mensagem, a música precisa chegar rapidamente ao Peças com motivos facilmente identificáveis propiciaram, aos acompanhadosual, permitindo-os dar um senso de plenitude a cada gesto, tanto forma visual quanto auditiva. (GOLDMARK, 2005, p. 110) Ao usar os chamados light classics (músicas clássicas mais conhecidas e apreciadas pelo público em geral), o diretor podia isolar cada gesto musical a fim de trabalhá-lo. Essa técnica, de modo à música pontuar a ação das personagens de forma a estarem em perfeita sincronia e, por vezes, anunciando o que está por vir (ou criando uma ex-

Friz Freleng (diretor do cartoon Looney Tunes, aqui estudado), sobre a Rapsódia

(...) um dos meus números favoritos. Eu a conheço e posso manipulá-la. Posso

(...) Eu tinha de conhecer a música, pois desenhei a ação ainda antes de ter o pianista para tocá-la. (...) eu não sabia quem era o pianista ou o quão bom ele era, e o dirigi. E eu dizia ‘toque isso rápido’ e tinha alguns trechos que ele dizia ‘eu nunca toquei algo tão rápido assim em minha vida’ e eu disse ‘bem, não está rápido o bastante’. Você tem que conhecer a música, pois tem de visualizar as personagem fazendo algo e ainda assim não perder o enredo da estória. (LOONEY TUNES, 2005, extras) Desse modo, Freleng pôde desmontar a música e reuní-la de forma a se ajustar melhor conforme a necessidade do cartoon. Tal habilidade deu ao diretor um grande poder, pois ele além de controlar a imagem visual, podia dar a forma necessária à narrativa musical.

M arina La Rocca Cóser - Rogério Ferrer Koof

peça: você pode usar uma frase, você pode repetí-la, e ainda assim a peça funciona.

fazê-la parar, como um maestro. Ou posso deixá-la mais devagar. Isso é ótimo nessa

Cartoons

afirmou:

em

Húngara nº2, de Franz Liszt, usada juntamente ao cartoon Rhapsody Rabbit, certa vez

S entido

década de 20, consiste em a música “imitar” a ação (ou vice-versa).

de

pectativa que pode não vir a se concretizar), é chamada de mickeymousing. Surgida na

E lemento N arrativo Produtor

res, compositores e animadores, meios simples de conectar um som com uma idéia vi-

como

seu objetivo. É necessário, portanto, um imediatismo gestual da música.

A Música Clássica

O uso da música do século XIX em filmes e cartoons é uma conseqüência direta

210


2.4 – Análise e comparação dos cartoons

dos possui suas particularidades, diferenciando-se nos detalhes. Ambos foram construídos em cima da música Rapsódia Húngara nº2, de Franz Liszt, de 1847. Cada um dos cartoons, no entanto, trabalhou a música à sua própria maneira, isto é, interpretou-a de

Analisando cada um dos desenhos, foi possível encontrar algumas passagens bastante interessantes, como o que veremos a seguir: Os trechos dos compassos 235-239 e 243-246 são sonoramente bastante parecidos, tendo apenas o acréscimo dos arpejos antes da nota real, ao invés da apoggiatura. No entanto, Tom, ao executá-los em The Cat Concerto, os toca de maneira completamente diferente. O trecho de 235 a 237 é realizado sonoramente bastante leve e brincalhão, tendo, visualmente, a nota mais aguda sendo realizada por Tom com o dedinho se espichando, visto que essa nota pede um salto bastante grande da mão (Figura 1). Os compassos 243-246, no entanto, são realizados por Tom, brabo, tocando muito forte. Como é um trecho curtinho, com o intuito de trabalhá-lo melhor, Tom o repete, indicação não existente na partitura. Inclusive, Tom, ao invés de realizar os arpejos existentes na partitura, transforma-os em acordes, isto é: toca as notas que seriam uma de cada vez, todas juntas, acrescentando ainda maior força às notas e à sonoridade, a fim de causar maior efeito (Figura2).

Figura 1 - Para realizar as apogiaturas existentes no trecho dos compassos 235-239, o dedinho de Tom se espicha para alcançar o salto necessário, porém tal salto é feito de maneira lúdica, tendo uma extensão duas vezes maior do que a real da música.

4 - n. 1

diferentes da mesma música com interpretações, entonações, cortes e cenas diferentes.

ano

modo a encaixar com a ação idealizada pelo diretor. Desta forma, temos duas leituras

Revista GEMI n IS |

Apesar de possuírem enredos similares, cada um dos desenhos aqui analisa-

211


212 A Música Clássica como

Já em Rhapsody Rabbit, temos os compassos 4 e 65 que, idênticos, apresentam uma leitura/interpretação completamente diferentes. O compasso 4 é feito de maneira sonora e visual bastante tranqüila, visto que é o começo da música (Figura 3); Pernalonga está concentrado e o Ratinho, seu adversário, ainda não entrou em cena, enquanto que o

dilha para o seu adversário (Figura 4).

S entido

prenunciar a eminente morte do Ratinho, pois Pernalonga acaba de preparar uma arma-

de

compasso 65 é interpretado sonora e visualmente de forma bastante forte e com garra, a

E lemento N arrativo Produtor

Figura 2 - Tom toca o trecho 243-246, brabo, de maneira bastante forte

em

Cartoons •

M arina La Rocca Cóser - Rogério Ferrer Koof

Figura 3 - Compasso 4 interpretado visual e sonoramente de maneira calma e tranquila


213 Revista GEMI n IS | ano

Ao comparar os desenhos entre si, é possível notar que, desde o princípio, eles se desenvolvem com caráter diferente. The Cat Concerto se apresenta de maneira mais séria: o riso, por exemplo, é provocado pelas situações causadas no decorrer da performance, uma vez que Jerry se encontra atrapalhando o concerto de Tom. Já Rhapsody Rabbit, desde o começo, apela para o humor, forçando situações engraçadas, como, por exemplo, a sátira que é feita aos solistas logo no início do cartoon: o fato de Pernalonga entrar no palco e tirar 3 pares de luvas de suas mãos, até ficar com o par de luvas ideal; o ajeitar o banco (que acaba na mesma altura); a tosse de alguém da platéia, etc. Dessa forma, já é Possível notar a música ajudando a construir sentidos diferentes: enquanto um cartoon possui caráter basicamente humorístico, o outro se apresenta de maneira séria, mesmo sendo construídos em cima da mesma obra musical. Comparando um cartoon com o outro, é possível encontrar trechos da música que resultam em divergências (ou interpretações diferentes). É o caso dos compassos 203210 (Figura 5), em que Pernalonga realiza curtindo a música, tocando com os pés ao piano (mostrando-a “fácil”, inclusive por ser uma melodia bastante conhecida do público), de maneira bastante ágil (Figura 6), enquanto que The Cat Concerto tira proveito da existência de notas repetidas para causar tensão: apresenta a mão de Tom tocando sobre a ratoeira, em notas do extremo da armadilha colocada pelo seu adversário (Figura 7), correndo imenso perigo de ter seu dedo preso, o que de fato acontece nos compassos seguintes (compasso 209).

4 - n. 1

Figura 4 - Compasso 65, diferentemente do compasso 4, é interpretado visual e sonoramente com caráter forte, com garra, com que prenunciando a morte do Ratinho por ter a ratoeira em primeiro plano


214 A Música Clássica

Figura 5 - Compassos 203 a 210

como

E lemento N arrativo Produtor

Em Rhapsody Rabbit, essa tercina é interpretada por um nó nos dedos do pianista (Figura 9).

proporcionar uma crescente intensidade, o que, em ambos os casos, é traduzido visualmente por uma situação de tensão: o nó nos dedos, bem como o acordar de forma súbita o ratinho que se encontra dormindo em paz. Em ambos os desenhos, para reforçar essa idéia de crescente intensidade, a tercina é extendida, sendo acrescentadas ainda mais repetições da mesma nota.

Figura 8 - Compasso 24 do pianista ao repetir Figura 9 - Nó nos dedos do inúmeras vezes a mesma nota

M arina La Rocca Cóser - Rogério Ferrer Koof

telinhos do piano (Figura 10). Segundo Eisenstein (2002, p.67), uma das funções da repetição é

Já em The Cat Concerto, é usada para acordar Jerry, que se encontra dormindo sobre os mar-

Cartoons

exemplo, o compasso de número 24, que apresenta uma tercina de notas repetidas (Figura 8).

em

Além de trechos dissonantes, podemos encontrar, também, consonâncias, como, por

S entido

Figura 7 - Tom alternando os dedos ao redor da ratoeira

de

Figura 6 - Pernalonga tocando com os pés


215 Revista GEMI n IS | ano

Temos, aqui, ainda, o caráter de cada um dos cartoons reforçado: The Cat Concerto, com a seriedade, apresenta esse trecho com tensão: o inimigo de Tom foi acordado subitamente; Rhapsody Rabbit, com o humor, traduz essa tensão de forma humorística: o pianista se atrapalha, causando um nó nos próprios dedos. 3 – Conclusão Através da análise, estudo e comparação dos desenhos, foi possível observar que ambos os cartoons apresentam passagens muito semelhantes. Para a realização de cada desenho, a música recebeu diferentes cortes, isto é: diferentes trechos da música foram utilizados, até mesmo em ordens diversas, sem fazê-la perder a identidade. Os efeitos sonoros (entenda-se por ruído e não música), nos dois cartoons, são pouquíssimos. A trilha sonora se dá, portanto, basicamente pela música. Nos dois desenhos a música é manipulada pelo diretor de maneira a deixar explícita a sua intenção, ficando claro que a música pode ser interpretada conforme a intenção que se quer dar, de modo a permitir à imagem reforçar a música a passar tal idéia. O modo de tocar, a interpretação e a sonoridade são propriedades muito fortes para a produção de sentido. Se alguém toca algo com raiva, passa a sensação de raiva para o ouvinte, mesmo que não haja imagens (nem mesmo a do intérprete). Se tocar alegremente, passará a sensação de alegria. É necessário salientar que ambos os cartoons analisados trabalham com humor e, portanto, possuem um clima similar. No entanto, como vimos, The Cat Concerto possui um desenvolvimento mais sério do que Rhapsody Rabbit. No desenho de Pernalonga, muitas vezes a situação humorística é caricata, apenas brincando com trechos da música (ou ainda do músico), nota-se também que a participação do Ratinho é bem menor do que a participação de Jerry em The Cat Concerto

Colocando os desenhos lado a lado, foi possível ver que, também entre

4 - n. 1

Figura 10 - Quiáltera de três acorda Jerry e o faz quicar sobre a mesma tecla através dos martelinhos do piano


eles ocorrem leituras diferentes e com intenções sonoras e interpretações visuais diferentes de um mesmo compasso ou ainda trecho da música. Dessa forma, pôde-se notar tanto da interpretação sonora da música, quanto da intenção do diretor, como da interpretação visual. É importante, no entanto, salientar que, mesmo a música sendo uma criação ela pode ser trabalhada a fim de criar ou reforçar um novo sentido sem, no entanto, perse quer passar, isto é: se ele achar que, para produzir dado sentido, ele precisa fazer tal trecho um pouco mais rubato ou mesmo mais staccato, ele pode fazê-lo, em concordância com o que lhe está sendo dirigido e com aquilo que acontecerá visualmente. Além disso, durante a pesquisa, encontramos diversas obras audiovisuais criadas em cima da Rapsódia Húngara nº2 ou mesmo de trechos dela. Dessas obras, tive acesso aos dois cartoons aqui analisados; aos desenhos: C Flat or B Sharp?, com Tiny Toons;

Todos estes trabalharam em cima da mesma música, proporcionando diferentes inter-

ALENCAR, M. Quando Sons e Imagens são Equivalentes. In: Sessões do Imaginário. Disponível em: <caioba.pucrs.br/famecos/ojs/include/ getdoc.php?id=360&article=114&mode=pdf>. Acesso em: 14 jan. 2007. LANGIE, C. A Participação Afetiva no Cinema. In: Sessões do Imaginário. Disponível em: <http://caioba.pucrs.br/famecos/ojs/sitemap.php>. Acesso em: 14 jan. 2007. SILVA, J. C. da. Sobre o Imaginário. Disponível em: <www.eca.usp. br/nucleos/filocom/josimey.doc>. Acesso em: 14 jan. 2007.

*Dissertações: SALLES, F. Imagens Musicais ou Música Visual: um estudo sobre as afinidades

M arina La Rocca Cóser - Rogério Ferrer Koof

*Artigos:

Referências Bibliográficas

Cartoons

lhar uma mesma música de diferentes maneiras, a fim de produzir o sentido desejado.

em

pretações e leituras para diversos trechos da peça, o que reforça que é possível traba-

S entido

Rabbit; um trecho de A Car-Tune Portrait e ainda ao comercial da cerveja Stella Artois.

de

Convict Concerto, com Pica-Pau; The Opry House, com Mickey Mouse; Who Framed Roger

E lemento N arrativo Produtor

der a sua identidade. Para tornar isso possível, o músico deve ter entendimento do que

como

com suas próprias características e indicações do autor para a execução de cada trecho,

A Música Clássica

que uma mesma frase musical pode ganhar novos e diferentes sentidos dependendo

216


entre o som e a imagem baseadas no filme Fantasia (1940) de Walt Disney. 139f. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Semiótica: Artes) – PUC/SP, São Paulo, 2002.

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4 - n. 1

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ano

3. Produzido por Warner Bros. DVD, color. EUA, 2005.

Revista GEMI n IS |

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217


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A Música Clássica

SADIE, S.; TYRELL, J. The New Grove Dictionary of

218

de

S entido em

Cartoons •

M arina La Rocca Cóser - Rogério Ferrer Koof


Imagem -vestígio: do relance à resistência

S iomara Faria Mestranda em Comunicação Social pela Univerdade Federal de Minas Gerais. Possui especialização em Imagens e Culturas Midiáticas e graduação em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (2008). Tem experiência na área de Comunicação, com ênfase em produção cultural e editorial. E-mail: sio.faria@gmail.com

Revista GEMI n IS

ano

4 - n . 1 | p. 219 - 243


Resumo O artigo discute a presença das imagens de arquivo no cinema de Harun Farocki, realizador alemão cujo trabalho problematiza, em linhas gerais, as formas de exercício do poder, sejam aquelas que emergem dos conflitos geopolíticos, sejam aquelas que se disseminam por meio das mais diversas práticas sociais (formas de controle e vigilância, tecnologias de produção e circulação de imagens, estratégias do consumo, da informação e da publicidade). A partir do filme Imagens do mundo e inscrições da guerra (Harun Farocki, 1988), buscamos refletir sobre a relação entre as imagens de arquivo e os processos históricos acionados por esses registros, observando como Farocki monta as imagens em filmes que evocam o passado em sua própria materialidade, isto é, em seus vestígios. Palavras-Chave: Cinema, Arquivo, Montagem,Vestígio.

Abstract The article discusses the presence of archival footage film by Harun Farocki, German filmmaker whose work discusses in general terms, ways of exercising power, are those that emerge from the geopolitical conflicts, are those that spread through several social practices (forms of control and surveillance technologies of production and circulation of images, consumption strategies, information and advertising). The images from the film world and inscriptions War (Harun Farocki, 1988), we reflect on the relationship between archival images and historical processes triggered by these records, noting how Farocki assembles the images in films that evoke the past in its own materiality, ie, in their traces. Keywords: Cinema, Archive, Montage, Trace.


E

m Imagens do mundo e inscrições da guerra (1988), Harun Farocki retoma no início do filme a história de Albrecht Meydenbauer, um mestre das obras do governo em Wetzlar, na Alemanha, que em 1858 foi contratado para medir a fachada de

uma catedral. Para realizar esse tipo de trabalho, Meydenbauer costumava subir pendu-

rado dentro de um cesto na parte externa dos edifícios. Numa noite qualquer, enquanto media a fachada da catedral, o inspetor de edifícios tentou entrar pela janela da torre, mas o cesto afastou-se da parede, deixando um enorme vão que por pouco não provocou um acidente. O episódio é narrado pelo próprio Meydenbauer em um manuscrito recuperado por Farocki: “Neste perigo eminente, bati com a mão direita sobre a parede, e empurrei a nacela com o pé esquerdo para o ar. A reação foi suficiente para empurrar o corpo pela abertura (...) Ao descer pensei: Não se pode substituir a medição à mão pela inversão da vista em perspectiva captada pela imagem fotográfica?” Esse insight fundou um novo método de medição baseado na fotografia, denominado fotogrametria. O cartógrafo conclui que tirar uma foto é mais seguro que estar presente no local, além de possibilitar ver melhor. E Farocki conclui, por meio do comentário em off da narradora de Imagens do mundo, inscrições da guerra: “Esta forma de ver melhor é o contrário do perigo da morte”. E acrescenta: “É difícil e perigoso estar pessoalmente no local, mais seguro é tirar uma foto e enviá-la depois à secretária, protegido do tempo adverso”. Somente após esta sequência Farocki introduz as imagens que vão lhe interessar durante todo o filme: as primeiras fotografias de Auschwitz, tiradas em 4 de abril de 1944, quando aviões americanos tentavam fotografar as fábricas de Buna, próximas aos campos de concentração. Essas imagens foram avaliadas pouco depois na Inglaterra. “Descobriu-se nelas uma central elétrica, uma fábrica de carbureto em construção e uma para hidrogenação de gasolina”. Mas os ingleses não se deram conta daquilo que viria interessar a Harun Farocki anos mais tarde. “Não estavam incumbidos de procurar o campo de Auschwitz, e por isso não o encontraram” acrescenta a voz off. Na década de 70, agentes americanos examinaram as mesmas fotografias a procura das marcas dos campos de concentração, das pistas deixadas pelos nazistas, agora com o olhar já informado e preparado para essa busca. Distantes no espaço e no tempo, esses


observadores podiam ver de outro modo, seu olhar era capaz de fixar, suspender, repetir, ampliar e reenquadrar a imagem. observam, livrando-os de todo o perigo. Tal como os agentes, nós espectadores estamos também postos no lugar seguro do presente, longe da morte e da catástrofe dos campos de concentração. Desde o início, o filme nos confronta com essa assimetria, como cha-

de saída, já no começo de Imagens do mundo e inscrições da guerra, um pensamento sobre o qual seu cinema se alicerça: é preciso atentar não só para aquilo que a imagem capta, mas sobretudo para a própria condição do olhar, e ainda, para o modo como as tecnologias de produção de imagem atravessam os modos de ver. Nesse e em outros filmes de Harun Farocki assistimos a uma representação do mundo histórico que indaga os próprios modos de ver e de figuração da vida na imagem. O cineasta trata a imagem não como simples registro, mas como formas expressivas que colocam em relação mundo e sujeitos, tornando evidentes as tensões entre história e política. O arquivo é adotado não como documento que diz do passado - das guerras, das prisões, dos campos de concentração, das revoluções e massacres - mas como objeto intrínseco ao próprio processo histórico. Como observa Christa Blumlinger, Harun Farocki esboça em vários de seus filmes “uma história audiovisual da civilização (pós) industrial e suas técnicas, a fim de localizar as convergências entre guerra, economia e política no interior do espaço social” (BLUMLINGER, 2010:156). De forma geral, sua obra pode ser pensada a partir de dois grandes eixos que se entrecruzam de modo imbricado e indissociável: por um lado, seus filmes refletem sobre as formas de exercício do poder, consolidado por forças materiais e simbólicas, da esfera individual à coletiva; por outro, trazem uma reflexão manifesta sobre o modo como poder e imagem se relacionam, com foco numa cultura audiovisual pós-industrial, notadamente marcada pela influência das técnicas de produção e difusão de imagens na esfera social. Por sua extensão e diversidade, sua obra é difícil de ser fixada num gênero ou formato específicos. Ao longo de mais de 50 anos, o cineasta realizou dezenas de longas e curtas-metragens, instalações artísticas e séries televisivas, sempre em busca de uma abordagem política não reduzida ao conteúdo do discurso, mas estendida às estratégias discursivas, estas que são retomadas e repensadas criticamente pela mise-en-scène do filme e, sobretudo, pela montagem. Seu trabalho compreende filmes que adotam estratégicas bem distintas. Em Fogo que não se apaga (1969) o próprio diretor performa diante da câmera ao ler o relato

4 - n. 1

olha para essas imagens, e o está sendo olhado (ELSAESSER, 2010: 119). Farocki revela

ano

ma atenção Thomas Elsaesser, ao dizer da “vertigem ética” que se instaura entre quem

Revista GEMI n IS |

Como concluiu Farocki, o mundo surge na imagem apartado daqueles que o

222


de um vietnamita atingido pelo napalm, e constrói a partir daí um apelo contra a Guerra do Vietnã e o voyeurismo das imagens televisivas transmitidas durante o conflito. Já de uma fictícia história de amor. Há também filmes em que Farocki acompanha – em modo observacional - processos de construção de imagens e discursos voltados para as exigências de uma ecoda Playboy, observando a construção da imagem da modelo diante da lente do fotógrafo. Doutrinamento e A Entrevista, registram, respectivamente, processos de formação de executivos e de candidatos a entrevistas de empregos, ambos interessados em aprender como vender a própria imagem. Há ainda trabalhos que propõem estudos acerca de estratégias particulares de

e a instalação I thought I was seeing convicts, que propõe uma analogia entre o dispositivo de vigilância das prisões e o sistema de segurança dos supermercados, criando um paralelo entre essas duas formas de observação e controle. No filme Indústria e fotografia (1979), percebemos uma relação ainda mais direta entre poder e dispositivos de visibilidade, nesse caso, entre o poder industrial e a indústria fotográfica. Farocki retoma fotografias de trabalhadores nas minas do início do século XX para pensar o modo como a vida se fixa na imagem e, sobretudo, como a fotografia colabora com a grande indústria. Já em A saída dos operários da fábrica (1995), Farocki remonta cenas produzidas ao longo de 100 anos de história do cinema, a começar pelo célebre filme dos irmãos Lumière, propondo uma reflexão sobre o sistema de trabalho industrial e, principalmente, sobre os modos de figuração do operário na imagem, como ele mesmo aponta: Na iconografia do cinema, o operário parece um dos santos pouco conhecidos da tradição pictórica cristã (...) Na grande cidade, o cinema não negligencia a luta dos operários por trabalho e pão, mas ele a transporta da usina à sala de espera de um banco (FAROCKI, apud BLUMLINGER, 2010, p.157).

Em Imagens do mundo e inscrições da guerra (1988), Farocki se apropria de imagens de arquivo, ora com exclusividade, ora associadas a registros produzidos pelo próprio cineasta, no intuito de criar um estudo acerca da representação dos campos de concentração no domínio das imagens. Neste último conjunto de filmes, em que prevalece a remontagem do arquivo

S iomara Faria

que observa o modo como os shopping centers são planejados para induzir o consumo;

controle e coerção física e simbólica, como Os criadores dos impérios das compras (2001),

do relance à resistência

nômica de mercado. Em Uma imagem, o cineasta registra durante quatro dias um ensaio

Imagem -vestígio:

em Diante dos seus olhos, Vietnã (1982), Harun Farocki tematiza a mesma Guerra a partir

223


como estratégia central, Farocki apropria-se de imagens pertencentes a diferentes domínios (arquivos de guerra; sistemas militares e prisionais; registros produzidos por nicômios e escolas; imagens produzidas no domínio da mídia, tais como a publicidade e a televisão; bem como vídeos amadores, excertos de clássicos do cinema etc.) e as reinscreve em um novo contexto.

ampliar o sentido das imagens e criar uma nova percepção. Tais filmes dispõem as imagens de forma criteriosa, instaurando, por meio da configuração de um novo terreno sensível, o confronto entre o dito e o não dito, o oficial e o extra-oficial, o visível e o obscuro. De um lado, esses registros trazem, em seu caráter indicial, as marcas e os vestígios de um passado documentado; do outro, são ampliados e reconfigurados, por meio do procedimento da montagem, propondo novas formas de pensar o mundo filmado. Sob esse aspecto, Farocki instaura um dissenso entre o que se vê (a imagem que fala por si) e o que se diz (a escritura do filme, sua montagem), provocando um deslocamento material dos signos e das imagens. Inserido em um contexto sócio-histórico em que a ação dos media e dos processos de produção e difusão de imagens situam-se no cerne da ordem política, consolidando a estrutura hierárquica da sociedade, o trabalho de Harun Farocki pode ser tomado como um cinema que reflete sobre a cultura audiovisual no calor de grandes mudanças. Sua obra se constrói atenta a esse fenômeno de saturação de imagens, trazendo à tona a recente transformação dos modos de ver em função desse excesso de informação visual. Farocki interroga uma cultura constituída de imagens, reflete sobre os modos de construção da realidade histórica e sobre as relações de poder que se estabelecem no âmbito dos regimes de visibilidade. Como observa Thomas Elsaesser, Harun Farocki é um arguto observador dos processos de transformação gerados na sociedade, nas relações de trabalho, na esfera política e no aparato da guerra a partir da mídia: “Seus filmes testemunham as injustiças sociais ou os abusos de poder, mostram o mundo como ele é, exibem relances de como deveria ser ou como foi, segurando um espelho para fazê-lo, a fim de que a vergonha seja transformadora” (ELSAESSER, 2010:103). *** Imagens do mundo e inscrições da guerra (1988), é precedido por dois grandes filmes sobre o Holocausto: o documentário Nuit et Brouillard (1955), de Alain Resnais; e

4 - n. 1

vio da natureza sensível e inteligível dos arquivos utilizados como matéria bruta para

ano

Por meio da abertura do arquivo, o cinema de Harun Farocki promove o des-

Revista GEMI n IS |

câmeras de vigilância em instituições como indústrias, supermercados, hospitais, ma-

224


Shoah (1985), dirigido por Claude Lanzmann. O que difere este último dos outros dois é a opção de Lanzmann em não adotar uma única imagem de arquivo num filme sobre de testemunhas, Lanzmann defendia a ideia de que o Holocausto é inimaginável, e por isso, irrepresentável. Para ele, qualquer tentativa de representação visual desse horror seria sintoma de um “fetichismo revisionista” (DIDI-HUBERMAN, 2008). Por essa ratorno dos campos de concentração, tanto tomadas pelos filmes, como pelos livros. Um dos alvos de suas críticas é o livro Images in spite of all - Four Photographs from Auschwitz, de Georges Didi-Huberman (2008), no qual o autor retoma quatro fotografias tiradas por Alex Ayaan, membro do Sonderkommando1. Contestando duramente o uso dessas imagens, Lanzmann chegou a afirmar que se tivesse encontrado essas fotos teria desa-

podem revelar algo do real, ainda que pouco, e sob a forma de um pensamento aturdido. Diante das quatro fotografias de Auschwitz e de outros relatos testemunhais, Didi-Huberman conclui que um pensamento ou uma reflexão sobre essas imagens parece impossível, porém necessário. O autor retoma a fala de Hannah Arendt quando ela diz que na ausência de uma verdade, surgirão instantes de verdade, e esses instantes são tudo o que temos disponível para colocar ordem no horror (ARENDT, apud DIDI-HUBERMAN, 2008: 31) 2. Para Didi-Huberman, é isso que as imagens tiradas pelos membros do Sonderkommando representam: “instantes de verdade”. Trata-se de quatro imagens apenas, quatro instantes do horror de 1944, mas que são tudo o que temos. Se Claude Lanzmann abriu mão dessas imagens por considerá-las uma exposição gratuita, Alain Resnais, em Nuit et Brouillard, o fez por desconhecimento. Como observa Sylvie Lindeperg (2010), no contexto em que o filme foi feito (década de 50), Alain Resnais não tinha ainda o distanciamento necessário para que se pudesse compreender a real importância de algumas imagens. Como conta Lindeperg numa entrevista cedida a Jean-Louis Comolli, Resnais, quando montou o filme, excluiu essa fotografia por desconhecer o valor dessa imagem produzida nos campos de extermínio por uma testemunha numa condição de risco iminente. Não se trata de uma fotografia tirada pelos nazistas, e sim uma imagem que 1 Grupo de judeus responsáveis por executar trabalhos dentro dos campos a mando dos nazistas. Eram recrutados entre os prisioneiros recém chegados e tinham como função a execução das tarefas mais críticas, tais como enterrar os corpos dos prisioneiros mortos e limpeza das câmaras de gás. 2 No original: Lacking the truth, (we) will however find instants of truth, and those instants are in fact all we have available to us to give some order to this chãos of horror. These instants arise spontaneously, like oases in the desert. They are anecdotes and they reveal in their brevity what it is all about. (Arendt, Hannah. Le procès d’Auschwitz, p. 257 – 258).

S iomara Faria

Contra o argumento de Lanzmann, Didi-Huberman defende que as imagens

parecido com elas (LINS, 2009: 111).

do relance à resistência

zão, ele se opõe a toda e qualquer possibilidade de resgate das imagens de arquivo em

Imagem -vestígio:

o Holocausto com mais de nove horas de duração. Valendo-se apenas dos depoimentos

225


porta em sua precariedade, em seu desenquadramento, o olhar da vítima que capta a cena do extermínio instantes antes da execução. da guerra, ciente de que se trata de uma imagem tirada clandestinamente por um membro do Sonderkommando.

Revista GEMI n IS |

Em 1988 Harun Farocki insere essa fotografia em Imagens do mundo e inscrições

226

ano

4 - n. 1

Frame - Imagens do mundo e inscrições da guerra (00:37:09)

A fotografia tirada por Alex, assim como as fotos aéreas feitas pelos Aliados, que são também retomadas no filme, têm em comum a precariedade da informação disponível no plano visível da imagem. É preciso que haja um distanciamento temporal e um deslocamento espacial para que se possa enxergar o que essas imagens têm a mostrar. Para além da dimensão material, elas convocam um saber que está dado no fora de campo, refletem sobre a condição histórica do olhar que se coloca por trás das câmeras, e do olhar que se lança sobre essas imagens no momento de sua exposição. Ao olhar para a foto das mulheres nuas correndo pelos campos de extermínio, Farocki é capaz de perceber uma singularidade que não estava clara para Resnais 30 anos antes, assim como os agentes americanos apreenderam nas fotos áreas algo que não foi perceptível para os ingleses anteriormente: as marcas de Auschwitz. Em Images in Spite of All – Four Photographs from Auschwitz, Didi-Huberman reforça que a imagem, assim como a história, não ressuscita nada em absoluto, mas salva um saber, a memória dos tempos. Na sua visão, enquanto restos, os vestígios de uma destruição não nos oferecem muita coisa, porém esse pouco que eles podem oferecer torna-se muito, é quase tudo que nos resta. Ou como concluiu Lissovsky, a partir da leitura de Walter Benjamin: “a ‘experiência’ do arquivo dá-se sempre sobre a linha tênue que vincula aquilo que aparece àquilo que desaparece” (LISSOVSKY, 2004: 47). Esta é também a própria condição da memória, circunscrita, como sublinha Jeanne-Marie


Gagnebin, numa eterna tensão entre a presença e a ausência (GAGNEBIN, 2006). Por isso não se pode esperar dessas imagens a condição de ver tudo, tampouco passado. O que elas oferecem é uma relação lacunar, inexata mas necessária, com a verdade, de caráter testemunhal, como um olhar sobrevivente. Enquanto vestígios, essas imagens são uma espécie de rastro do passado, marcas inscritas aleatoriamente no inscreve a lembrança de uma presença que não existe mais e que sempre corre o risco de se apagar definitivamente. Sua fragilidade essencial e intrínseca contraria assim o desejo de plenitude, de presença e de substancialidade que caracteriza a metafísica clássica” (GAGNEBIN, 2006: 44). Imagens do mundo e inscrições da guerra parece ser construído em torno do para-

aquilo que salva a experiência da destruição. Como lembrou Gagnebin, quando se tornou claro que o Terceiro Reich perderia a Guerra, deu-se início à destruição dos rastros da própria destruição. Como um arqueólogo, Farocki recupera os vestígios do passado, reorganiza esses rastros num novo plano de sentidos que os faça valer como objetos da destruição. No entanto, o gesto de reconstrução na imagem não desfaz o ato de destruição, como comenta o próprio Farocki num outro filme, Entre duas Guerras (1978). Trata-se de um paradoxo, como escreve Elsaesser: “captar uma imagem é um gesto de preservação, mas é também um gesto que prepara o objeto para destruição” (ELSAESSER, 2010: 117). Para Elsaesser, a imagem que faz ressurgir o passado nos filmes de Harun Farocki exibe em sua outra face o seu impacto destrutivo. Reenquadrar o passado, implica, por um lado, preservá-lo, salvá-lo do esquecimento, mas é também, em alguma medida, um gesto de abertura que torna novamente possível a barbárie e a destruição. As imagens portam as marcas do horror, da morte, da catástrofe. Reconstruir a catástrofe é, em alguma medida, trazer seus restos de volta. Em Imagens do mundo e inscrições da guerra, a contradição está dada na sua própria condição de existência: o filme exibe imagens de um lugar que - como comenta o narrador - não pode produzir fotografias, imagens do que não pode ser mostrado, promovendo, por meio do acesso ao inacessível, uma tensão entre o visível e o invisível. Imagens que existem apesar da impossibilidade de existirem. O terror de Auschwitz não pode ser imaginado, escreve Didi-Huberman (2008). Mas é também, por outro lado, algo que só pode ser imaginado.

S iomara Faria

xalmente, aquilo que deriva de uma sociedade industrial destruidora da experiência, e

doxo da destruição/reconstrução. As fotografias recuperadas por Farocki são, parado-

do relance à resistência

tempo, de forma frágil e descontínua, como enfatiza Jeanne-Marie Gagnebin: “o rastro

Imagem -vestígio:

subjugá-las à condição de mero documento, de representação de um fato encerrado no

227


Num dado momento do filme, Farocki recupera a fotografia de uma mulher tirada por um membro da SS para seu álbum particular. De forma persistente, o cineasta imagem entre preservar e destruir. O homem que produz a imagem da mulher pertence ao mesmo grupo que a conduzirá a morte. A narradora comenta: “Como estão ligados, o captar e o destruir”.

que aparecem na imagem sobrevivem. Só a própria imagem permanece. Ainda que produzida no interior da máquina de extermínio, essa fotografia é a única coisa que pode salvar a memória de Alex do apagamento. Novamente o filme conecta a imagem à morte. Nestas e em inúmeras outras passagens, o filme estabelece uma tensão entre a imagem e aquilo que ela representa. Esta colisão dá origem, através da montagem, ao pensamento do filme, fazendo com que as idéias ganhem forma num movimento dialético que não cessa de colocar os elementos em contraposição, e ao mesmo tempo revelar o estado transitório de todas as coisas, um estado de constante devir. De forma dialética, o filme coloca em cena o arquivo e o testemunho, o inimaginável e aquilo que só pode ser imaginado, o vestígio do passado e seu apagamento, a verdade sobre o passado e a sua construção. A imagem no cinema de Harun Farocki assume uma condição ambivalente. Ele nem a submete a um totalitarismo, que daria a entender a integridade da história, nem a desqualifica a ponto de abrir mão desse registro. Seu método consiste, justamente, em valer-se da própria natureza dupla dessas imagens. Imagens que são objetos da destruição, e são, ao mesmo tempo, aquilo que preserva o passado da destruição. Imagens que carregam um vestígio do passado, e são também uma construção. *** Entre as inúmeras imagens do horror disseminado nos campos de concentração e extermínio nazistas, uma fotografia do álbum da SS guarda um sorriso inusitado, desses que parecem surgir inexplicavelmente, como o dos amantes que flertam discretamente nas ruas.

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Auschwitz, resiste, de algum modo, à própria morte. Nem o fotógrafo, nem as pessoas

ano

Também a fotografia tirada por Alex Ayaan do interior de uma das câmaras de

Revista GEMI n IS |

repete, reenquadra, descreve e analisa esta fotografia, enfatizando a tensão presente na

228


229 Imagem -vestígio:

Em meio ao grupo de judeus que caminha pelos campos numa espécie de fila,

cabeças calvas, uma moça a sorrir” (...) “Em Auschwitz, além da morte e do trabalho havia um mercado negro, histórias de amor e resistência”.

Frame - Imagens do mundo e inscrições da guerra (1:03:12)

Há menos para entender ou descobrir nessa imagem, do que para imaginar. Pouco ou quase nada sabemos sobre essa jovem que sorri, mas sua feição levemente alegre nos faz enxergar ali uma efêmera felicidade, algo que escapa, ainda que provisoriamente, ao destino do campo de concentração. Farocki parece dar-se conta de um sentimento dissonante expresso nesse furtivo gesto. Dele é extraído uma forma de amor e de resistência, que escapa ao controle e violência impostos em Auschwitz. A foto foi tirada de um álbum da SS criado para “mostrar ao mundo como eliminaram os judeus”, observa a narradora. Está inserida junto a outras imagens que

S iomara Faria

zê-la para o centro do plano, destacando-a das outras. A narradora aponta: “Entre as

um sorriso se mistura, é difícil percebê-lo. É preciso, pois, reenquadrar a imagem, tra-

do relance à resistência

Frame - Imagens do mundo e inscrições da guerra (1:03:12)


retratam o processo de extermínio nos campos. São imagens já criadas para conservar algo que desaparecerá. dição de surgimento da imagem: “muitas vezes, ela não é gravada para ser arquivo: ela se torna arquivo”. Mas no caso das imagens do álbum da SS, tal como os registros produzidos nos guetos poloneses pelos nazistas, “pode-se considerar que a imagem é

dos, destruídos pelos próprios autores das imagens, como também o olhar desses que captam, para então destruir. Na produção das imagens dos guetos, os cinegrafistas nazistas buscavam os rostos que correspondiam ao imaginário antisemita. Mas como nota Lindeperg, nesse ideário estereotipado, apareciam figuras que sugeriam algum tipo de resistência: “um rosto integrado ao plano mas que não está de acordo com ele pode desmentir esse primeiro trabalho. As ordens dadas pelos câmeras nazistas não são escrupulosamente seguidas” (LINDEPERG, 2010: 320). Um rosto que não adere à mise-en-scène proposta pelos autores das imagens, resiste a essa construção caricatural. “Quando eles pedem a um grupo para rir, uma pessoa pode não fazê-lo e olhar estranhamente para a câmera ou fugir da lente” (LINDEPERG, 2010: 320). O simples gesto de não sorrir é capaz de gerar um ato de resistência, de desvio da ordem que foi dada pelo dispositivo de propaganda nazista. Um suposto assujeitamento do judeu às ordens que lhe são impostas não se dá da forma esperada. Há um fator de instabilidade e de imprevisibilidade intrínsecos à natureza de cada um, que impede que eles sejam inteiramente entregues ao controle da máquina cinematográfica. Se no exemplo citado por Lindeperg é o ato de não sorrir que resiste, na imagem do álbum da SS parece ser justamente o sorriso que escapa ao domínio dos nazistas, na medida em que faz com que a maneira singular da jovem ganhe a superfície, expondo um gesto, um modo de ser. O sorriso suspenso em Imagens do mundo e inscrições da guerra, repetido e reenquadrado, desvia a finalidade do próprio álbum, e interroga, por sua vez, a condição ambígua da tomada. Espontâneo, o sorriso nesse contexto (não mais da propaganda nazista – tal como as imagens gravadas nos guetos -, mas de legitimação do controle e da ordem dentro dos campos) escapa à norma que foi imposta. Ele é o contrário do dever, da coerção e da subordinação. Isso nos leva a pensar sobre o olhar do fotógrafo que captura a cena, bem como sobre aquilo que na imagem resiste para além do instante da captação, e que revela-se com o passar do tempo, na retomada do arquivo. Teria o fotógrafo registrado esse gesto

4 - n. 1

2010: 319). Imagens que preservam não só a existência daqueles que serão extermina-

ano

pensada a título de conservação de alguma coisa que será destruída” (LINDEPERG,

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Em uma entrevista a Jean-Louis Comolli, Sylvie Lindeperg reflete sobre a con-

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se soubesse que ele revelaria, anos mais tarde, que em Auschwitz, além da morte e do trabalho, haviam também histórias de amor e resistência? gesto, como ressaltou Agamben, que o cinema encontra seu centro: “o cinema reconduz as imagens para a pátria do gesto”. Ao contrário do fazer, que possui um fim para além de si mesmo, o gesto é, em si, o próprio fim, ou melhor, um meio sem fins: “O gesto é a a expressão de uma medialidade pura que se coloca entre os homens, é a comunicação de uma comunicabilidade: “Este não tem propriamente nada a dizer, porque aquilo que mostra é o ser-na-linguagem do homem como pura medialidade” (AGAMBEN, 2008). No instante fotográfico apreende-se o gesto (a expressão do rosto). O vestígio fotográfico porta, por assim dizer, uma condição duplamente política: ele carrega, por

de desativar os usos e sentidos da imagem, na medida em que a inscrição fotoquímica resiste para além da situação em que foi produzida ou que é dada a ver. Agamben acredita que a essência do homem é constituída pela inoperatividade, pela absoluta e integral gestualidade. Inoperatividade, ressalta ele, não significa inércia: “Trata‑se, antes, de uma operação que consiste em tornar inoperativas, em desativar ou des‑oeuvrer todas as obras humanas e divinas” (AGAMBEN, 2008: 47). Para Agamben o poema seria uma operação de inoperatividade: O que é, aliás, um poema, senão aquela operação linguística que consiste em tornar a língua inoperativa, em desativar as suas funções comunicativas e informativas, para a abrir a um novo possível uso? Ou seja, a poesia é, nos termos de Espinosa, uma contemplação da língua que a traz de volta para o seu poder de dizer (AGAMBEN, 2008: 28).

E é na suspensão que a palavra encontra sua natureza poética, isto é, na interrupção de unidades sintáticas (frase, verso, sentença), promovendo assim a ruptura do sentido: “o poeta pode opor um limite sonoro, métrico, a um limite sintático. Não se trata apenas de uma pausa, mas de uma não-coincidência, uma disjunção entre o som e o sentido” (AGAMBEN, 2007). Como no poema, a suspensão da imagem no cinema arranca-a do sentido que a precede e sucede no encadeamento dos planos. Para Agamben, essa hesitação entre a imagem e o sentido é o que torna o cinema mais próximo da poesia do que da prosa. A interrupção do fluxo dá a ver a própria imagem, exibida enquanto tal, em sua forma pura, inoperante, momentaneamente suspensa da ordem narrativa. A imagem torna-

S iomara Faria

riso como pura medialidade, pura comunicabilidade –, por outro, porta a possibilidade

um lado, o gesto da garota inscrito no grão – um gesto que expressa o inefável do sor-

do relance à resistência

exibição de uma medialidade, o tornar visível um meio como tal”. O gesto é portanto

Imagem -vestígio:

O gesto guarda algo que nem mesmo o olhar do fotógrafo pôde perceber. E é no

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-se, portanto, puro meio, pura medialidade, fazendo com que o ato expressivo seja consumado no próprio meio: “A imagem dá-se a ver ela própria em vez de desaparecer no Por meio da paragem e da repetição, o cinema quebra o fluxo narrativo, cria uma zona de inoperatividade entre imagem e sentido. Na disjunção, a imagem expressa a ausência de um caráter narrativo, didático ou explicativo, e consequentemente, uma

surgir um certo “pensamento itinerante” - para tomarmos de empréstimo a expressão cunhada por Blanchot – no qual a descontinuidade e o inacabamento são essenciais: “a interrupção é necessária em toda a sequência de palavras; a intermitência torna possível o devir; a descontinuidade assegura a continuidade do pensamento” (BLANCHOT, 2001: 132 apud SEDLMAYER, 2011: 46). Na defasagem entre a imagem e aquilo que ela por princípio representa, é possível encontrar o invisível da imagem, aquilo que só existe enquanto potência, sob uma virtualidade que, paradoxalmente, se inscreve na materialidade da própria imagem. O grão da fotografia tirada pelo fotógrafo da SS incuba o gesto. Mas só o permite nascer na subtração da ordem já dada, quando a imagem rompe com a finalidade que lhe deu origem e, disruptiva, abre-se a novas possibilidades de sentido. Somente nessa diferença é possível encontrar aquilo que Farocki notou: o amor e a resistência.

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tanto, da ordem sintática e cronológica, para exibi-la enquanto devir imagem, fazendo

ano

ausência de finalidade, tornando-se puro gesto. A suspensão da imagem a subtrai, por-

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que nos dá a ver” (AGAMBEN, 2007).

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Tempo

Imagem

Áudio

00:38:17

Voz over: Numa avenida olharia dessa maneira para uma montra e não para o senhor que está a olhar para ela. E ao não olhar ela tenta imaginar-se no mundo das avenidas, senhores e montras, longe daqui.

00:38:53

Voz over: A tarefa do campo da SS é acabar com ela, e o fotografo que capta sua beleza, eternizando-a, é da mesma SS. Como estão ligados,o captar e o destruir!

Em outra fotografia do álbum da SS, o rosto de uma mulher captado pelas lentes do fotógrafo imprime na imagem uma expressão que sobrevive ao instante do registro. A primeira inserção dessa foto no filme dá-se por meio de um enquadramento que promove a suspensão do plano ao rosto da mulher. A narradora indaga: “O que fazer diante de uma câmera?” No rosto reenquadrado repetidas vezes, Farocki encontra novamente algo que não é aparente, ou melhor, algo que esta lá, mediado pela expressão da face, mas que

S iomara Faria

Voz over: O fotografo tinha montado a máquina e quando a mulher passou tirou uma foto, como teria olhado para ela na rua, porque ela é linda. A mulher sabe captar o olhar fotográfico com a posição do rosto, e não olha diretamente para quem está a olhar.

00:38:07

do relance à resistência

Voz over: Uma mulher acaba de chegar a Auschwitz. A máquina capta-a em movimento.

Imagem -vestígio:

00:38:02

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não se faz de todo visível: um modo de ser, uma memória, um pensamento. Mais uma vez desejos e afetos ganham a superfície da imagem. A voz over que orienta nosso olharia dessa maneira para uma vitrine e não para o senhor que está a olhar para ela. E ao não olhar ela tenta imaginar-se no mundo das avenidas, senhores e vitrine, longe daqui”. Só é possível ter acesso a esse pensamento pela via da imaginação, e isto se dá

daquilo que nos é dado a ver. No entanto, só é possível ir além a partir do vestígio, isto é, a partir do que está gravado na imagem, das marcas da presença dos corpos diante da lente do fotógrafo. E é dessa inquestionável presença que se faz visível no álbum fotográfico – e por extensão, no filme – que o cineasta parte para ir ao encontro do não figurável, desafiando o olhar. Esse jogo entre o ver e o não ver fica ainda mais explícito no plano que será exibido minutos depois, no qual o álbum de fotos da SS é folheado por mãos desconhecidas. Se num primeiro momento temos acesso a essas fotografias por meio da montagem – reenquadramento e repetição -, nesse segundo momento há também um trabalho de mise-en-scène (colocação em cena) do arquivo. As fotos não mais aparecem ocupando todo o enquadramento, e sim fixadas num álbum sobre a mesa. Perto do álbum há um lápis, que em outros momentos, será utilizado para escrever observações sobre as imagens do filme. Mas o que chama atenção nesse plano é o gesto das mãos. Folheando algumas páginas, vê-se novamente a foto da prisioneira na plataforma de Auschwitz, dessa vez enquadrada pela moldura do álbum. Mas antes que possamos contemplá-la mais uma vez, uma mão intervém sobre a imagem, cobrindo sua face. Já não é mais possível ver, porque a mão que desvela a imagem, dessa vez decidiu ocultá-la. Reflexivamente, as mãos representam o trabalho do cineasta na mesa de montagem. As mãos conduzem nosso olhar, decidem a duração de cada imagem, quando passar as páginas, quando exibir a foto seguinte, e quando esconder o que não se quer mostrar. E ao encobrir a imagem, as mãos acionam, decisivamente, nosso desejo de ver.

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gem extrapola seu próprio espaço figurativo, convocando uma outra cena, para além

ano

somente quando o arquivo é dotado de uma capacidade poética e fabuladora. A ima-

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olhar narra o que supostamente se passa no imaginário da prisioneira: “Numa avenida

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235 Imagem -vestígio:

Desse modo, o filme esboça uma espécie de ensaio acerca do olhar, demons-

mas de uma situação, uma circunstância. O olhar é não apenas histórico, mas situado. Depende de uma pragmática. Sob esse aspecto, o filme aborda questões ligadas não só ao extermínio promovido nos campos de concentração, mas também aos modos de representação dessa destruição. Como observa a narradora, a máquina fotográfica fazia parte do equipamento do campo. O registro fotográfico é o indício do passado, a conexão existencial entre aquilo que resta – a imagem – e o que foi destruído. É também a conexão física entre aquele que produz a imagem e aquele que será assassinado. Um enorme hiato se forma entre o que há para ver e o que deixou de existir. Farocki busca preencher essa distância entre imagem e acontecimento através da imaginação, extraindo dessas imagens os vestígios de um passado irrecuperável, que só pode ser imaginado. A imagem da destruição produzida pelos nazistas é também a imagem da resistência, daquilo que resiste ao passar do tempo e desafia o olhar numa nova aparição, agora voltada contra aqueles que a criaram. Resistência é também o que marca as imagens produzidas pelos próprios prisioneiros, como as fotografias tiradas por Alex Ayaan, membro do Sonderkommando. A narradora reconhece nesta imagem o sentimento de verdade: “Esta foto foi tirada de Auschwitz por presos às escondidas. Queriam divulgar a verdade sobre o campo”. Ao contrário dos nazistas, que preferiram ocultar a verdade, a foto de Alex pretendia difundir para além dos muros de Auschwitz o que acontecia ali. Farocki insere esta fotografia em meio às imagens do álbum da SS. Trata-se, em ambos os casos, de imagens-vestígio. O que as difere, contudo, para além da autoria, é a circunstância de produção. Na foto de Alex, o medo estampado no desenquadramento e no tremor da imagem. Nas fotos da SS, o olhar estável e estratégico de quem detém o

S iomara Faria

ver, e daquilo que se quer dar a ver. Isto é, depende não apenas de uma historicidade,

trando que ver ou não ver depende daquilo que se quer ver, daquilo que se consegue

do relance à resistência

Frame - Imagens do mundo e inscrições da guerra (00:40:57)


controle da situação, quem dirige, soberano, a mise-en-scène. Como notou George Didi-Huberman no livro Images in spite of all - dedicado às não cessa de dizer: eu estive lá, eu vi, eu vivenciei. A testemunha tem consciência de que não irá sobreviver ao evento, mas sabe bem que a imagem sobreviverá, apesar de tudo (DIDI-HUBERMAN, 2008).

Alex, como esta que aparece em Imagens do mundo, foram cortadas, reenquadradas, manipuladas numa tentativa de aproximação do objeto principal da imagem e de exclusão dos elementos não documentais do quadro. Originalmente, esta foto usada por Farocki possui uma borda escura que, a princípio, oferece pouca ou nenhuma informação visual. O reenquadramento adotado pelo cineasta apaga essa zona de sombra e enquadra somente aquilo que, aparentemente, pode ser tomado como informação. Contudo, como bem nota Didi-Huberman: Apagar uma “zona de sombra” em favor de alguma informação nítida (o testemunho visível) é, ademais, agir como se Alex fosse capaz de tirar a foto com segurança. Isto é quase um insulto ao perigo que ele enfrentou e à sua astuta resistência. (DIDI-HUBERMAN, 2008: 36)4.

Para Didi-Huberman, o reenquadramento nessas fotografias é uma manipulação ao mesmo tempo formal, histórica, ética e ontológica. A intervenção, em princípio formal, compromete a leitura e a compreensão da circunstância histórica em que foram produzidas. A escuridão da borda revela a condição e o exato lugar de onde as imagens foram tiradas: o interior da câmara de gás. Essa zona de sombra que emoldura o centro do quadro guarda, como nota o autor, um paradoxo: a câmera da morte, preserva, naquele momento, a vida do fotógrafo, enquanto no exterior da câmara de gás vemos o terror das vítimas que serão incineradas. Essas imagens feitas de sombra e escuridão revelam a própria condição do relato testemunhal: “Elas oferecem o equivalente ao modo como a testemunha potencialmente fala: as pausas, os silêncios, e o peso na entonação” (DIDI-HUBERMAN, 2008: 3 Didi-Huberman se refere à reprodução da imagem com o cropping no livro Auschwitz: A History in Photographs, Ed. Swiebocka (Oswiecim, Warsaw, and Bloomington: Auschwitz-Birkenau Museum, Ksiazka I Wiedza, and Indiana University Press, 1993); e também no livro Mémoire dês camps: Photographies dês camps de concentration et d’extermination nazis (1933 – 1999), Ed. C. Cheroux (Paris: Marval, 2001). Porém, cabe estendermos sua crítica ao filme de Harun Farocki, uma vez que o diretor se vale do mesmo recurso de reenquadramento. 4 No original: To erase a “zone of shadow” (the visual mass) for the sake of some lucid “information” (the visible testimonial) is, moreover, to act as though Alex were able to take the photographs safely out in the open. It is almost to insult the danger that he faced and to insult his cunning as résistant.

4 - n. 1

essas fotografias foram posteriormente reproduzidas3. Algumas das fotos tiradas por

ano

Cabe lembrar que Didi-Huberman faz uma ressalva em relação ao modo como

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quatro fotografias tiradas por Alex - as imagens trazem o testemunho de alguém que

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36)5. Elas mostram, naquilo que não se pode ver, a condição de urgência e terror em que foram produzidas. A sombra é como o silêncio no testemunho, expressa a conjustamente nessa impossibilidade de dizer. Abertas hoje, no presente, essas imagens representam um fragmento de Auschwitz, trazendo, apesar da precariedade, um gesto de sobrevivência. periência de fuga. Trata-se da história de Rudolf Vrba e Alfred Wetzler, dois prisioneiros de Auschwitz que conseguiram fugir quando trabalhavam do lado de fora da cerca elétrica do campo, escondendo-se debaixo de uma pilha de madeira. A narradora ressalta a intenção dos fugitivos: “Três dias depois das primeiras fotos de Auschwitz, dois presos conseguiram fugir. Queriam contar ao mundo a verdade sobre os campos”.

apenas sugerida ao olhar, é preciso imaginá-la entre esses pontos, no grão da imagem. Como escreveu Sedlmayer, “o fragmento possui uma imagem pictórica exterior. É rodeado de lacunas, brancos, intervalos…” (SEDLMAYER, 2011: 46). Será a partir desses fragmentos de imagem que Farocki narra a fuga de Vrba e Wetzler, formulando através do grão da fotografia a presença precária – quase invisível – desses corpos. Na precariedade da imagem, o filme encontra uma fração pictórica que conserva o passado dentro e fora dos limites do plano. Por um lado, o vestígio porta uma verdade, atesta e legitima algo – ainda que este algo esteja na fronteira do visível - , mas cria também, por outro lado, uma crença. Em vários momentos, Farocki chama a atenção do espectador para o espaço não figurativo da imagem, que porta uma espécie de memória de algo não filmável, isto é, não totalmente controlado pela representação. E o faz por meio da desfiguração da própria imagem, transformando-a em uma massa granulada que força o espectador a imaginar, ou melhor, a crer, naquilo que o filme tem a nos oferecer. A narradora comenta que Rudolf Vrba, de 19 anos, tinha trabalhado na construção da fábrica de Buna e já estava há dois anos nos campos, na área de administração. Era responsável por controlar os bens daqueles que chegavam ali, vivos ou mortos. O outro fugitivo, Alfred Wetzler, tinha trabalhado num escritório: “Memorizou a data, o país de origem e o número dos recém chegados”, observa a narradora.

Essa imagem enigmática, composta por anotações e sequências numéri-

cas, nos oferece pouco. Ela aparece aqui associada aos números dos recém chegados, 5 No original: It offers the equivalent of the way a witness might speak: the pauses, the silences, and the heaviness of the tone.

S iomara Faria

e branco com duas setas apontadas para algo ilegível. A presença desses fugitivos é

O plano que surge junto a esse comentário exibe um emaranhado de pontos em preto

do relance à resistência

Após uma hora de filme, uma outra sequência exibe os resquícios de uma ex-

Imagem -vestígio:

dição inenarrável e irrepresentável da morte. As fotos de Alex encontram seu poder

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contabilizados por Wetzler. E a narradora prossegue: “Após três dias a SS desistiu de procurar por eles. A caminho da Eslováquia uma camponesa acolheu-os. Vrba pensou sobre Auschwitz a pelo menos uma pessoa”. Mais uma vez o filme adentra o imaginário de um dos prisioneiros, supõe aquilo que ele teria pensado diante da morte, e ainda sugere o que teria acontecido caso fossem pegos pelo comando nazista: “Se a SS

ser testemunha.” O filme conta que Vrba e Wetzler chegaram à Eslováquia e relataram o que se passava dentro dos campos. Testemunharam sobre as mortes, sobre o modo como a SS separava os recém-chegados em dois grupos: “À direita para o trabalho, à esquerda para a morte.” Diante do testemunho levado pelos prisioneiros para fora dos campos, a narradora indaga mais uma vez: “Ter-se-iam os deportados deixado levar para o campo sem resistência, se soubessem a verdade sobre Auschwitz?” Há uma relação existencial dessas imagens com aquilo que elas representam, isto é, uma conexão física da imagem com o seu referente, que resulta numa afetação material da película, uma escritura gerada pela força bruta da inscrição dos corpos na imagem. À essa inscrição bruta, material, existencial, Farocki atribui um valor testemunhal, revelador de um saber sobre os campos que pode ser visto e comprovado mesmo na porção mais precária da imagem. Minutos depois, ao final do filme, o plano dos números é retomado, e só então é esclarecida a origem das imagens. Enquanto a narradora explica tratar-se de um código cifrado de um grupo de resistência em Auschwitz, a imagem dos números é re-exibida em planos cada vez mais fechados. Ela conta que os homens Sonderkomando atacaram os guardas da SS com martelos, machados e pedras, e usaram cargas explosivas de pólvoras trazidas por mulheres da fábrica de munição “Union” para incendiar um crematório. “Conseguiram o que toda a maquinaria de guerra dos Aliados não conseguiu, inutilizaram uma instalação da guerra. Nenhum dos revoltosos sobreviveu”, afirma a narradora.

4 - n. 1

alguns dias. Ou executados no mal-afamado muro entre o bloco 10 e o 11. Era perigoso

ano

os tivesse capturado durante a fuga, teriam sido enforcados, e como aviso, deixados ali

Revista GEMI n IS |

que se morresse naquele momento, não teria vivido em vão, teria contado a verdade

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239 Imagem -vestígio:

A narradora prossegue: “Desespero e coragem heróica fizeram destes números uma

imagem”.

do relance à resistência

Frame - Imagens do mundo e inscrições da guerra (01:11:16)

S iomara Faria

Frame - Imagens do mundo e inscrições da guerra (01:11:41)

A imagem exibida acima encerra o filme Imagens do mundo e inscrições da Guerra. Trata-se de um reenquadramento do plano anterior, onde está apontado “Gas Chamber IV Destroied” (câmera de gás destruída). A última imagem do filme preserva o rastro da destruição provocada pelo grupo de resistência. Nela há muito pouco para ver, ou melhor, quase nada além da ponta de uma seta. Ela aponta para o desespero e a coragem heróica dos rebeldes, é a própria consumação dos números da resistência em imagem, em indício da insurreição. Exibe, na mancha preta quase indecifrável, os destroços do crematório incendiado pelos membros do Sonderkomando. Resto, destroço, ruína. Isso é tudo que há para ver nesta imagem, ela própria, ruína. Como os escombros do crematório, as anotações numéricas dos rebeldes, as aerofotografias produzidas pelos Aliados, as fotos do álbum da SS, bem como aque-


las tiradas por Alex Ayaan, são rastros da presença dos nazistas e dos prisioneiros nos campos, fruto da inscrição irrevogável desses corpos em uma matéria bruta - o Emmanuel Levinas: “o rastro não é um signo como outro. Mas exerce também o papel de signo (…) ele significa fora de toda intenção de fazer signo e fora de todo projeto do qual ele seria a visada” (LEVINAS, 1993: 75-76 apud GAGNEBIN, 2002: 130). Em outras

(…) o rastro é fruto do acaso, da negligência, às vezes da violência, ele foi deixado por um animal que corre ou por um ladrão que fugiu, ele denuncia uma presença ausente sem, no entanto, prejulgar de sua legibilidade: já que quem deixou rastros não o fez com uma intenção de transmissão ou de significação, o decifrar dos rastros também é marcado por essa não-intencionalidade. (…) Rigorosamente falando, rastros não são criados - como o são outros signos culturais e linguísticos -, mas, sim, deixados ou esquecidos. (GAGNEBIN, 2002: 129)

O rastro é, nesse sentido, um acidente. Nem sempre resulta de uma intenção, um desejo de produção de sentido, mas pode, inclusive, como nota a autora, se voltar contra quem o produziu. Não por acaso os nazistas tentaram eliminar os rastros da destruição nos campos quando se deram conta de que perderiam a guerra. Apesar disso, algumas marcas do extermínio permaneceram, e ainda que poucas e fragmentadas, essas marcas são, como diria Didi-Huberman (2008), tudo que nos resta. Enquanto rastros, essas imagens resultam de uma relação de alteridade, do contato de um corpo com outro. Elas são o que restou da presença desses corpos, e ao mesmo tempo, aquilo que restou de um processo de desaparição. Contêm a diferença entre o que foi e o que há para ver. São, simultaneamente, o sinal de uma presença e a revelação de uma falta, uma ausência, um vazio. A imagem-vestígio não traz, portanto, uma representação fiel do real, ou um reflexo, mas sim um traço que resiste, que confronta e que salva o próprio real da desaparição. Nas palavras de Jean-Luc Godard: “ainda que arranhada até a morte, um simples retângulo de 35 milimetros salva a honra de todo o real” (GODARD, apud DIDI-HUBERMAN, 2008: 165). Trata-se de uma redenção que está para além da relação entre homem e deus. Diz respeito, antes de tudo, à relação do homem com a história, e pode se dar a qualquer momento do presente, num ato de resistência.

4 - n. 1

descuido, como escreve Gagnebin:

ano

palavras, o rastro resiste mesmo quando inscrito de forma involuntária, fruto de um

Revista GEMI n IS |

concreto, o papel, a película – dada de forma intencional ou não. Pois como lembrou

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A

experiência lean forward da TV social Resennha de Livro - Book Review PROULX , Mike; SHEPATIN Stacey Social (2012) TV: How Marketers Can Reach and Engage Audiences by Connecting Television to the Web, Social Media and Mobile. Hoboken, NJ: Wiley & Sons, Inc.

S heron Neves Mestre em História do Cinema e da TV pela Birkbeck, University of London. Pesquisa televisão e convergência, narrativa transmídia, comportamento da audiência e branding televisivo. Leciona na ESPM-Sul e na PUCRS. E-mail: sheron.neves@espm.br

Revista GEMI n IS

ano

4 - n . 1 | p. 245 - 251


Resumo A possibilidade de assistir TV conversando simultaneamente nas redes sociais trouxe de volta a cultura do “assistir em tempo real” (em inglês, appointment television). Aumentam assim as chances do público ser atingido pelos comerciais dos patrocinadores, o que torna a TV social uma excelente aliada das emissoras e anunciantes. Este é o argumento central do livro: ao se valer de estratégias que engajem e recompensem quem assiste um programa durante sua transmissão (aplicativos de segunda tela, hashtags promocionais, conteúdo complementar), profissionais de marketing têm em mãos uma ferramenta nova que explora um hábito antigo: conversar em frente à TV. Palavras-Chave: TV Social, Mídias Sociais, Segunda Tela, Engajamento, Comportamento da Audiência.

Abstract The ability to watch TV while chatting on social networks has brought back the culture of “watch in real time” (in English, appointment television). Thus increasing the chances of the public being hit by commercial sponsors, which makes social TV an excellent ally for broadcasters and advertisers. This is the central argument of the book: to take advantage of strategies that engage and reward those who attend a program during its transmission (second screen apps, hashtags promotional, supplementary content), marketers have in hand a new tool that explores a habit old: talking in front of the TV. Keywords: Social TV, Social Media, Second Screen, Engagement, Audience Behavior.


“A

TV sempre foi social”. Com esta constatação, no primeiro parágrafo do prefácio de Social TV: How Marketers Can Reach and Engage Audiences by Connecting Television to the Web, Social Media and Mobile, a dupla de auto-

res Mike Proulx e Stacey Shepatin estabelece que as próximas 270 páginas não têm a pretensão de descobrir a pólvora, apenas de apresentar novas formas de explorar seu potencial de combustão.

A ideia defendida é a de que a convergência entre TV e mídias sociais – popu-

larizada no termo “TV social” e apontada como tendência pelo MIT Technology Review já em 2010 (BULKELEY, 2010) – é simplesmente uma evolução natural da forma como experienciamos o meio após setenta anos do seu nascimento. O aspecto social ao qual os autores se referem, a conversa paralela à transmissão, foi transferida da sala de estar para o ambiente virtual. Trata-se hoje de uma conversa global, democrática, que tem o poder de influenciar o conteúdo – até então consumido de forma passiva – dos programas e da publicidade. O léxico do meio também foi impactado, e hoje vocábulos como spoiler, season finale e hiatus já são adotados em conversas online em diversas línguas. Da mesma forma, as hashtags – que permitem indexar e mensurar a dimensão da conversa – possuem uma linguagem tão própria que podem parecer indecifráveis para novatos – como #GoT, #TBBT e #PPL1 (ou até mesmo o nosso #oioioi2). Para os autores, até mesmo nossa postura em frente à TV mudou: inicialmente um meio lean-back3, a TV estaria hoje transformando-se em um meio lean-forward. Ou seja, nosso próprio corpo estaria refletindo tal transformação, como se assistíssemos em posição de alerta, prontos para participar.4 O livro abre com um interessante paralelo entre 1964, quando um episódio de A Família Buscapé atingiu 44% dos domicílios americanos, e 2011, quando o comercial Darth Vader da Volkswagen, veiculado nos EUA durante o intervalo do Super Bowl, levou milhões de pessoas à internet não só para rever mas também para comentar e compartilhar a experiência (gerando 1 Acrônimos utilizados como hashtag para Game of Thrones, The Big Bang Theory e Pretty Little Liars. 2 Hashtag popularizado nas redes pelos fãs da novela Avenida Brasil em 2012.

3 Em português, “jogado para trás, relaxado”. 4 Johnson também cita esta nova postura de prontidão da audiência, semelhante à dos gamers (JOHNSON, 2006). Os conceitos de lean back e lean forward foram inicialmente popularizados por Nielsen, que argumenta que a TV seria um meio passivo, em frente ao qual “vegetamos”, diferente do computador, que nos convida à ação (NIELSEN, 2008).


na época 45 milhões de visualizações no YouTube e pautando a conversa nas redes sociais ao redor do mundo). Obviamente, para a realidade do mercado contemporâneo – ultra fragmenFamília Buscapé há 50 anos atrás soa quase mitológica. Entretanto, enquanto o público de 1964 digeria o conteúdo passivamente – no máximo trocando comentários com familiares ou colegas de trabalho no dia seguinte –, o de hoje não se satisfaz apenas comentando no Twitter: ele

esta audiência, ávida por participação e obsessivamente conectada, a interação online se transformou no acompanhamento perfeito para o imenso banquete de conteúdo digital. A internet, na visão dos autores, nunca ameaçou a TV, apenas modificou a experiência de assistir. O prato principal continua sendo o programa em si – entretanto, assim como em um jantar, o elemento social tem um papel fundamental para o sucesso do evento. A possibilidade de assistir de forma compartilhada trouxe de volta um comportamento que parecia estar ameaçado desde o advento do vídeo cassete – e mais recentemente pela tecnologia Video On Demand (VOD): a cultura do “assistir em tempo real”5, e junto com ela, a chance de ser atingido pelos comerciais dos patrocinadores. Afinal, apesar de ter libertado a audiência da ditadura da grade de programação, oferecendo autonomia para assistir quando e onde desejar, o VOD (e inclua-se aqui também DVDs, downloads legais e ilegais, serviços de streaming e Digital Video Recorders) nem sempre pode produzir o mesmo nível de gratificação que a TV em tempo real proporciona. Assistir no momento real da transmissão é uma experiência coletiva, uma prática que, especialmente para os fãs mais ávidos, assemelha-se a um ritual (EPSTEIN et al., 1996, NEVES, 2005). E é exatamente este um dos maiores apelos da TV social: a gratificante experiência coletiva de compartilhar impressões muito além da sala de estar e até do país. Benefício que não passou despercebido por anunciantes e novos players como o GetGlue (que recompensa com adesivos e cupons de desconto dos patrocinadores todos os usuários que fazem check-in em um programa durante seu horário de transmissão). Para as emissoras, a recompensa vem na forma de índices de audiência e de índices participação nas redes sociais6. Especialmente se souberem tirar proveito de ações de segunda tela, premiações, hashtags promocionais, aplicativos interativos, conteúdo sincronizado e outros inúmeros exemplos citados no livro (que não se limitam a séries e conteúdo de ficção: telejornais, eventos esportivos, reality shows e documentários também podem explorar a TV social). Assim, apesar de oferecer autonomia, para muitos a função do VOD acaba sendo apenas de catch up, ou seja, uma segunda chance para assistir. Como argumentado pelo pesquisador canadense Richard Kastelein, enquanto o VOD é mais indicado para consumo de conteúdo a la carte (como filmes 5 Em inglês popularmente chamado de appointment television, ou televisao com hora marcada. 6 Além de, teoricamente, diminuir o risco de pirataria.

4 - n. 1

apresentadores) no Facebook, e, é claro, compartilha os melhores momentos no YouTube. Para

ano

faz check-in no GetGlue, posta memes no Tumblr, segue o programa (e seus personagens e/ou

Revista GEMI n IS |

tado e com uma multiplicidade de conteúdos e plataformas – a extraordinária audiência de A

247


e reprises de séries), eventos ao vivo, estreias e episódios inéditos se adequam melhor ao consumo em tempo real (KASTELEIN, 2011). consumo de conteúdo? Não seria a experiência lean forward indicada apenas para determina-

volume. O livro de Proulx e Shepatin, entretanto, deixa claro no próprio subtítulo que seu foco é comercial, e, portanto, não possui a ambição de ser um tratado acadêmico sobre as consequências culturais e cognitivas desta interatividade. Os autores contentam-se em oferecer um complexo guia para emissoras, anunciantes e profissionais de marketing, com inúmeros pontos bem embasados e pareceres bastante bem vindos em um momento em que muitos profissionais da mídia parecem navegar no escuro: “A TV hoje tornou-se, mais uma vez, uma nova mídia” (Proulx citado em EDELSBURG, 2011). A discussão sobre o fato das mídias sociais terem se tornado o novo termômetro da popularidade de um programa (ou comercial) de TV tem gerado proclamações hiperbólicas como “A família Nielsen está morta” (VANDERBILT, 2013) na imprensa especializada. Apoiados

miopia criar um programa ou campanha publicitária sem levar em consideração o seu potencial

mais exata os dados precisam ser cruzados com medidores de participação e engajamento (aos quais um capítulo inteiro do livro é dedicado). Apesar de estabelecer paralelos históricos bastante úteis na contextualização do atual cenário midiático, os autores não se arriscam a “prever” o futuro deste novo ecossistema. O escopo ser claro: examinar o potencial da situação e apontar para possíveis direções – e não determinar qual a direção correta. Este cuidado aparece até na conclusão, que vem acompanhada de um “por enquanto” entre parênteses. Esta ideia de continuidade, um recurso bem próprio da linguagem televisiva, reforça o argumento de que o tema permanece em aberto. O que talvez coloque nós, brasileiros, em uma posição vantajosa para aprender com os erros e acertos do mercado norte-americano, avaliando o que funciona ou não para a nossa realidade. Afinal, de acordo com a mais recente edição do Barômetro de Engajamento de Mídia da Motorola Mobility (EXAME, 2013), somos um dos países onde mais se assiste TV no mundo7; além disso, passamos 7 Média de 20 horas semanais, o que nos coloca, dentro das Américas, atrás apenas dos Estados Unidos.

S heron Neves

tradicionais medidores de audiência sejam descartáveis, apenas insuficientes: para uma análise

de interatividade e de compartilhamento em rede. Para eles, entretanto, isto nao significa que os

social

Twitter) e nas novas possibilidades analíticas, os autores reconhecem que no atual cenário seria

TV

nas novas métricas sociais (como Trendrr e Bluefin Labs, adquirido em fevereiro deste ano pelo

experiência lean forward da

de vista (inclusive de executivos de grandes corporações como NBC, ABC e Viacom), insights

Livro / Book Review - A

sam ser examinados pela academia e são possivelmente até abordados em artigos neste mesmo

de

dos segmentos específicos do público? Estes são aspectos extremamente relevantes, que preci-

Resenha

Mas tanta interatividade e interferências de telas secundárias não causariam ruído no

248


uma média de 6 horas por dia nas redes sociais8, e, de acordo com o Ibope, 8,7 milhões de brasileiros assistem TV enquanto simultaneamente conectados à internet (SAWAIA, siva, estes dados talvez apontem para o fato de que somos, afinal, uma nação com alto potencial de assimilação deste comportamento convergente. Códigos QR e links no final de cada um dos onze capítulos atuam como uma segunda

caráter inesgotável do tema e a própria essência da convergência midiática. Assim como na aliança entre TV e internet proposta pelos autores, a discussão não se encerra no meio impresso: ela se realimenta e se recicla online. Com isto em mente (e munido de um dispositivo móvel), é possível tirar proveito dos diversos cases e provocações trazidas na obra, cuja leitura fragmentada, multiplataforma e às vezes excessivamente informativa emula a experiência televisiva contemporânea: envolvente mas também extenuante. Os autores parecem tentar, intencionalmente, colocar o leitor em estado de prontidão. Ao refutar a teoria de que a TV é um meio passivo, a obra esforça-se para tornar-se ela própria uma leitura lean-forward. Referencias bibliográficas BULKELEY, William M. Ten Breakthrough Technologies. MIT Technology Review, mai./jun. 2010. Disponível em: http://www2.technologyreview. com/article/418541/tr10-social-tv/ Acesso em: 21 abr. 2012. EDELSBURG, Natan. Inside the Social TV book, now available for pre-order. Lost Remote, 22 nov. 2011. Disponível em: http://www.lostremote.com/2011/11/22/ the-social-tv-book-is-available-for-pre-order/ Acesso em: 10 abr. 2013. EPSTEIN, Michael, REEVES, Jimmie e ROGERS, Mark. Rewriting Popularity: The Cult Files. In: CARTWRIGHT, M., HAGUE A. e LAVERY, D. (Eds.). Deny All Knowledge: Reading the X-Files. London: Faber & Faber, 1996. p. 22-35. _________. The Sopranos as HBO Brand Equity. In: LAVERY, D. (Ed.). This Thing of Ours: Investigating The Sopranos. New York: Wallflower, 2002. p. 42-57. JENKINS, Henry. Cultura da Convergência. São Paulo: Aleph, 2008. JOHNSON, Steve. Tudo que é ruim é bom para você: como os games e a TV nos tornam mais inteligentes. Rio de Janeiro: Zahar, 2012. 8 Número semelhante à média global.

4 - n. 1

de compartilhadas infinitas vezes pelos leitores). Esse complemento digital parece refletir o

ano

tela, com informações adicionais que podem ser atualizadas infinitas vezes pelos autores (além

Revista GEMI n IS |

2012). Somados à dieta farta em folhetins que compõe a história de nossa cultura televi-

249


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Resenha

NEVES, Sheron. Consuming Sex and The City: female fandom and

250

TV social •

S heron Neves


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