Flaubert #03

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Vem, ela disse, tendo antes molhado na boca os dedos que cravou na carne, vem dentro de mim. Junto à porta do quarto surgiu o gambá, que começou a arrastar as unhas no assoalho sem sair do lugar. A mulher gritou e se encolheu. Ele se levantou e, com gestos, depois com um travesseiro, depois com um chinelo, tentou espantálo. O animal continuava parado, olhando de um lado para o outro, arranhando o chão, até que emitiu um guincho pavoroso. A mulher se cobriu com o vestido. Ele continuava nu, percebeu a calcinha que ela deixara sobre o tapete ao lado da cama. Desculpa, ela disse, isso foi um erro. Eu não devia... O gambá voltou a emitir um novo guincho. Esse bicho... Calma... Me solta! Espera. Vou dar um jeito nisso. Quando tentou se aproximar da criatura, ela fugiu. Ao se voltar, a mulher já avançava em sua direção. Ele quis dizer alguma coisa, mas ela fez um sinal para que se calasse. Ainda tentou detê-la, segurando-a pelo braço. Me solta, ela disse. Vamos, me solta. Acabou por afrouxar a pressão dos dedos. Por um instante ele ainda ficou parado, vendo-a se afastar, até sair da casa. Voltou para o quarto, deitou na cama. A calcinha seguia ali, ao lado, abandonada, parecendo a ele o fragmento de um acidente.

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De volta à sala, olhou para a caixa. Ali deveriam estar os três objetos que o irmão lhe tomara. Era certo que tinham combinado nunca desenterrá-los, que era promessa séria, mas quem poderia impedi-lo agora? Talvez ali estivessem a Ferrari de ferro, seu artilheiro de galalite, o ioiô profissional da coca-cola, aquele preto com as bordas douradas. Nunca soube ao certo, porque parte do acordo era deixar o outro escolher as coisas a serem enterradas apenas no último dia daquele verão. No ano seguinte, já não foi capaz de lembrar. Olhou uma vez mais para a cozinha. Nada da criatura. Ergueu a caixa da mesa, prendeu-a, apoiando-a contra o corpo e envolvendo-a com o braço esquerdo, forçou a tampa. Após um pequeno estalo, a madeira cedeu. O interior estava vazio.

PEDRO GONZAGA

é natural de Porto Alegre. Doutor em Literatura pela UFRGS, é prosador e poeta, tendo quatro livro publicados, sendo o mais recente Falso Começo (2013), ed. Ar do Tempo. Além disso, é tradutor e músico.

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