20ª Edição da FIDES

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FIDES, Natal, v. 10, n. 2, jul./nov. 2019. ISSN 2177-1383

EDITORES GERAIS Isabelly Thayse Araújo Alves Marcos Vinícius Alves Diniz

DIRETORIA DE EDITORAÇÃO Ana Letícia Guedes e Melo André Luiz da Silva Costa Andressa Rafaelly Maia Dias Angélica Rego Vidal Arthur Dafne Dantas da Cunha Silva Carlos Romero Bacurau de Brito Larissa Raquel Leandro Tomaz Lucas Augusto Martins Bezerra Lucas Parente Nobre Luiz Gabriel Dantas de Souza Silva Rafaela Ribeiro Cabral Renan Rodrigues Pessoa Saliza Furtado da Câmara Oliveira

PROFESSORES ORIENTADORES Anderson Souza da Silva Lanzillo (UFRN) Fabiana Dantas Soares Alves da Mota (UFRN) Henrique André Ramos Wellen (UFRN) Zéu Palmeira Sobrinho (UFRN)

Edição da Capa Amanda Alves da Silva Diagramação Isabelly Thayse Araújo Alves Marcos Vinícius Alves Diniz


EDITORIAL

É com muita satisfação que a Revista de Filosofia do Direito, do Estado e da Sociedade (FIDES) divulga mais uma edição. Durante toda a sua trajetória, a FIDES tem se mantido fiel em seu compromisso de incentivar a pesquisa no âmbito acadêmico. Nesta 20ª edição, o periódico renova este compromisso, publicando trabalhos que combinam excelência com uma linguagem simples e acessível, sempre com fins de promover a democratização do conhecimento. Frente às dificuldades inerentes às atividades de pesquisa no Brasil, a Revista FIDES parabeniza a todos os pesquisadores cujos trabalhos compõem esta edição. Agradecemos ainda aos membros do Conselho Editorial por desempenharem com louvor todas as atividades necessárias ao fluxo editorial deste periódico. Não obstante, manifestamos nossa gratidão aos membros do Conselho Científico, que contribuíram com valiosas publicações e meticulosa avaliação de todos os trabalhos submetidos à análise deste periódico, provendo subsídio vital para a publicação de mais uma edição. Neste semestre, o evento de lançamento da 20ª edição da Revista FIDES oportunizou o debate de questão de extrema relevância no momento político vivido na atualidade, qual seja, “O direito à Educação Pública e o Neoliberalismo”, fazendo disto também o tema desta edição. Agradecemos aos professores Maria Arlete Duarte de Araújo e Zéu Palmeira Sobrinho (coordenador da Revista) pelas ricas contribuições que trouxeram à discussão. A FIDES deseja a todos uma excelente e profícua leitura.

Natal, 13 de novembro de 2019 Conselho Editorial


CONSELHO CIENTÍFICO Ana Mafalda Castanheira Neves de Miranda Barbosa

(Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra)

Anderson Souza da Silva Lanzillo

(UFRN)

Artur Cortez Bonifácio

(UFRN)

Carlos Sérgio Gurgel da Silva

(UERN)

Cleanto Fortunato da Silva

(UFRN)

Daniel Alves Pessoa

(UFERSA)

Daury Cesar Fabriz

(UFES)

Fabiana Dantas Soares Alves da Mota

(UFRN)

Fabrício Germano Alves

(UFRN)

Henrique André Ramos Wellen

(UFRN)

José Anselmo de Carvalho Júnior

(UERN)

Lívio Coêlho Cavalcanti

(UFCE)

Luciana Ribeiro Campos

(UERN)

Luiz Felipe Monteiro Seixas Luiz Ricardo Ramalho de Almeida Pablo Henrique Hubner de Lanna França Paulo Velten Rute Neto Cabrita e Gil Saraiva Zéu Palmeira Sobrinho

(UFERSA) (UERN) (Faculdade Asa de Brumadinho) (UFES) (Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa) (UFRN)


ARTIGOS CONVIDADOS

09

EM

BUSCA

DE

UM

ROMPIMENTO

HISTÓRICO

PARA

A

EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS PAULO SÉRGIO VELTEN PEREIRA

19

A EDUCAÇÃO DOS ADULTOS SENIORES EM PORTUGAL: ESTUDO DE CASO – VOLUNTARIADO DE LITERACIA JURÍDICA JUNTO A PESSOAS IDOSAS NA MANSÃO DE MARVILA RUTE NETO CABRITA E GIL SARAIVA

50

FUTURE-SE:

A

FÚRIA

NEOLIBERAL

SOBRE

A

EDUCAÇÃO

SUPERIOR PÚBLICA E GRATUITA ZÉU PALMEIRA SOBRINHO

69

THE CURRENT ENIGMA OF BRAZIL

88

DIREITO À AUTODETERMINAÇÃO DA IDENTIDADE DE GÉNERO:

HENRIQUE ANDRÉ RAMOS WELLEN

REFLEXOS EM TORNO DA LEI Nº 38/2018, DE 7 DE AGOSTO ANA MAFALDA CASTANHEIRA NEVES DE MIRANDA BARBOSA


ARTIGOS CIENTÍFICOS

108

A INFLUÊNCIA DO NEOLIBERALISMO NA EFETIVAÇÃO DO DIREITO À EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS NO BRASIL MARIA CLARA FERNANDES SILVA

128

RECONHECIMENTO E CIDADANIA DOS ANALFABETOS NO BRASIL: UMA QUESTÃO HISTÓRICA E POLÍTICA AMANDA CRISTINA ANDRADE MARCELO SEVAYBRICKER MOREIRA

142

ENSINO DOMICILIAR: UM ESTUDO DE CASO SOBRE O SUPERIOR TRIBUNAL FEDERAL ENQUANTO CORTE SUPREMA À LUZ DO RE Nº 888.815/RS CLARA BEATRIZ MIRANDA DA SILVA MILENA DA SILVA CLAUDINO

157

MEDIAR

UFBA:

MEDIAÇÃO

COMO

INSTRUMENTO

DE

PACIFICAÇÃO NO AMBIENTE UNIVERSITÁRIO DANDARA LIMA SANTANA DE JESUS SUZANA MONTEIRO SOUZA

173

O ENCARCERAMENTO PRECOCE NO BRASIL: UMA ANÁLISE MULTIDISCIPLINAR VINICIUS FLORIPO CHAFFIN VIEIRA


191

A REFORMA AGRÁRIA NO BRASIL: ELEMENTOS PARA O DEBATE MACIANA DE FREITAS E SOUZA FRANCISCO VIEIRA DE SOUZA JUNIOR

206

PESSOAS COM DEFICIÊNCIA: A QUESTÃO DA DIFERENÇA E DA INCAPACIDADE JÉSSICA REGINA ALVES DA SILVA

219

CONSTITUCIONALIDADE DA INCIDÊNCIA DO ISS SOBRE OS ROYALTIES PAGOS PELO FRANQUEADO AO FRANQUEADOR IAGO DE SOUSA REIS VICTOR FRANK CORSO SEMPLE

234

O ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL NO SISTEMA PENITENCIÁRIO BRASILEIRO E A ADPF 347 DANIEL LIMA DE ALMEIDA

253

A RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DO ESTADO: UMA ANÁLISE DO INSTITUTO NO DIREITO BRASILEIRO RENATA GRAZIELLE FERRÃO MARQUES

273

FUNÇÃO REGULATÓRIA DA ANATEL EM FACE DA NOVA PLATAFORMA TECNOLÓGICA WHATSAPP SOPHIA FÁTIMA MORQUECHO NÔGA

286

O REALISMO JURÍDICO CLÁSSICO DE JAVIER HERVADA: DEFINIÇÃO E CONCEITOS BÁSICOS ARTHUR LOPES CAMPOS CORDEIRO


304

A SUBNOTIFICAÇÃO ENQUANTO CARACTERÍSTICA MARCANTE DO ESTUPRO NO CONTEXTO BRASILEIRO KHADJA VANESSA BRITO DE OLIVEIRA

318

A CRISE DO DIREITO PENAL NA PÓS-MODERNIDADE: POR UMA EIDÉTICA PENAL GABRIEL PEREIRA DA SILVA

332

ESTUDO

ACERCA

DA

LIMITAÇÃO

DA

ATIVIDADE

HERMENÊUTICA IMPLEMENTADA PELA LEI 13.467/2017 NO TOCANTE ÀS NEGOCIAÇÕES COLETIVAS JESSICA PETROVICH HENRIQUES

353

EXTRAFISCALIDADE TRIBUTÁRIA: NOTAS SOBRE SEU LIMITE A PARTIR DO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE RICARDO LUIZ MUNIZ DE SOUZA FILHO

369

A GARANTIA FUNDAMENTAL À DURAÇÃO RAZOÁVEL DO PROCESSO E A BUSCA POR UM PROCESSO PENAL FINITO SÊMELY CLÍCIE RODRIGUES BATISTA LIRA

386

A ADEQUADA OCUPAÇÃO DOS CARGOS PÚBLICOS SEGUNDO MICHAEL WALZER: ANÁLISE NO CONTEXTO BRASILEIRO ALAN JOSÉ DE OLIVEIRA TEIXEIRA


LITERATURA E DIREITO

406

UMA LEITURA CRÍTICA À LUZ DA OBRA O QUE É RACISMO ESTRUTURAL? MACIANA DE FREITAS E SOUZA PATRICIA LORENA RAPOSO


EM BUSCA DE UM ROMPIMENTO HISTÓRICO PARA A EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS Paulo Velten1 Jaqueline Bagalho2

RESUMO O presente trabalho questiona o aumento de discursos violadores de direitos humanos no campo educacional, a naturalização da desigualdade entre os poderes hegemônicos e minoritários. Apresenta uma nova perspectiva a partir de uma revisão histórico bibliográfica, ao identificar o momento histórico que deu origem a tragédia educacional exibida. Aponta para a necessidade de um rompimento com a perspectiva exclusivamente legal, propondo um paradigma mais sensível, no que diz respeito a educação em direitos humanos, em uma perspectiva freireana como possibilidade democrática para a

Palavras-chave: Desigualdade. Poderes hegemônicos. Sentimentos.

1 INTRODUÇÃO

1

Professor do Curso de Especialização em Educação em Direitos Humanos na Universidade Federal do Espírito Santo. 2 Professora do Curso de Especialização em Educação em Direitos Humanos na Universidade Federal do Espírito Santo.

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educação.


Unanimidade entre os discursos políticos, a educação tem sido alardeada como um método civilizatório capaz de resolver todos os males, a ela ou a falta dela, comumente é atribuída a condição de essencialidade para a harmonia social. Por outro lado, crises econômico-políticas intermináveis produzem o efeito de colocar a educação no papel de protagonista no campo das disputas políticas. Exemplo disso, o corte das verbas universitárias e das bolsas de pesquisa promovido pelo Ministério da Educação recentemente. De forma que ganha cada vez mais espaço na mídia e, por sua vez, influenciam decisivamente naquilo que cotidianamente se costuma chamar de senso comum. Apesar disso, paradoxalmente, ainda que adotada como princípio orientador na constituição, a promoção e a proteção aos direitos humanos que esteve presente nas políticas públicas educacionais pós 1988, parece ter desaparecido do horizonte. O que torna inevitável a pergunta: O que falhou no processo educacional vivenciado até aqui, pois, se a democracia é uma conspiração em torno da ética, da alteridade e do bem comum, como se poderá admitir caminhar em sentido oposto? Tais inquietações foram repercutidas na aula proferida pelo professor Sólon Viola em um curso de Educação em Direitos Humanos na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Na oportunidade, o professor ensinou que, ao contrário do que se pode eventualmente crer, a cultura baseada em uma educação em direitos humanos não é frutos de decisões deliberadas racional e institucionalmente, antes, nascem da dor, um sentimento intenso produzido pelo sofrimento quando a opressão é maior. O fenômeno da dor pode ser compreendido de forma simbólica como uma mola propulsora da vida, ou seja, o que se quer afirmar é que os direitos humanos não são conquistados passivamente, em convenções ou tratados negociados em hotéis luxuosos, muitos menos em gabinetes políticos, mas são conquistadas pela mobilização e luta motivadas

Desta maneira, a originalidade da afirmação do professor consiste no fato de contrariar a tese de que uma educação baseada na promoção e proteção aos direitos humanos seria fruto das transformações civilizacionais contemporâneas e, que, teriam sido produzidas a partir do exercício da razão, que por sua vez teria criado uma espécie de conscientização sobre os direitos. Essa lógica, de que a conscientização pela educação leva a um agir adequado da sociedade a partir de direitos aceitos pela maioria, em tese, aproxima-se a estrutura de Estado

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pela dor coletiva.


idealizada por Aristóteles na Grécia antiga, onde a virtude devidamente aprendida produziria cidadãos aptos a agirem em harmonia com o Estado. A virtude poderia advir pelo ensino (virtude intelectual) ou ainda pelo hábito (virtude moral), ambas derivadas de uma prática aprendida, não natural, e deverão guiar as escolhas, as ações do homem virtuoso. Desta forma, aquele que aprende a escolher bem produz o bem, logo, o bem se tornou produto do ensino. Ocorre que, Aristóteles é o vértice de uma construção filosófica muito anterior, cuja origem naturalista mantém-se ainda nos tempos atuais, na qual se compreende a existência através de um processo de observação dos fenômenos naturais, cite-se como exemplo as teorias darwinianas amplamente aceitas. Assim, a crença explicitada no início seria fruto da combinação daquele direito natural que, através de sua positivação, teria gerado pela educação uma conscientização capaz de determinar uma evolução da sociedade. O presente artigo pretende, através de uma revisão bibliográfica e histórica questionar essa perspectiva tão comum, de que os direitos humanos teriam sido concebidos naturalmente e a partir de um processo educacional evolutivo, com fases concebidas racionalmente, segundo uma moral apreendida universalmente, com o objetivo de alcançar a paz e a harmonia social, a felicidade coletiva e a realização do estado de vida boa.

2 NATURALISMO GREGO, IGUALDADE E DIREITOS HUMANOS

O questionamento desta concepção é necessário pois, embora teoricamente robusta, na prática, apesar dos enormes esforços em se implantar, ela não se confirma, já que, apesar de toda conscientização já existente, as atrocidades humanitárias só fizeram ampliar nas

Outro problema é que, esta perspectiva admite como naturais processos históricos repetitivos de opressão do mais forte sobre o mais fraco, assim como no paradigma natural, sem que se analise a injustiça desta condição, vinculando assim a necessidade de submissão a um determinismo universal que mantêm imutável o destino dos oprimidos. Assim e por causa disso, são comuns afirmações no jargão popular que confirmam esta tese, tais como: o mundo é assim mesmo, seja feita à vontade de Deus. Elas reproduzem a ideia de que as desigualdades são imutavelmente naturais, e, por vezes, de tão repetidas acabam adquirindo contornos jurídicos, como aquele repetido por inúmeros doutrinadores de 11

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últimas décadas.


que a Constituição brasileira admite o princípio da igualdade na medida das destas igualdades, exemplo típico de um conformismo, de uma tentativa de adequação da realidade social tragicamente desigual. Por outro lado, contrariando esta tendência existem os direitos humanos, que desde a sua primeira positivação assumem claramente a defesa da igualdade, da liberdade e da fraternidade. Para além, a Constituição brasileira admite como princípio, no art. 3º a defesa intransigente do referido tripé, repudiando textualmente a desigualdade, rompendo em tese, com a contínua violação histórica dos direitos do fraco e oprimido. A leitura da Constituição brasileira com os óculos dos direitos humanos passa por esta ideia, qual seja, de que, ela, a Constituição brasileira, tem lado, serve ao fraco e não ao opressor histórico, pois a esse último interessa que tudo permaneça naturalmente desigual, a fim de que a ordem social excludente persista. A desigualdade é argumento que só favorece ao opressor e quando vinculada a um destino natural legitima sempre aos que, naquele contexto histórico, tem o poder hegemônico. Somente poderes hegemônicos consideram aplicar a igualdade na medida das desigualdades. Os poderes hegemônicos costumam usar como instrumento para aferição da igualdade a ética, ou seja, a capacidade interna (virtude em Aristóteles) que o aplicador da lei teria para equilibrar o ponteiro da balança desigual, ou por outra, uma igualdade proporcional. Entretanto, é necessário que se diga, a manutenção desta perspectiva desde a Grécia antiga até os dias atuais, em quase nada aproveitou ao fraco ou oprimido histórico, o fosso da desigualdade somente aumentou. Este artigo tem a pretensão de defender que, contemporaneamente, a busca por direitos humanos tem que se dar a partir da ruptura com a desigualdade, através da leitura constitucional que busque a efetivação destes direitos através de uma aferição substancial. Se, a desigualdade for sujeita a ética do intérprete, por nobre que seja, não romperá

concessões ou por representantes do modelo perpetuador da desigualdade, do qual ele próprio (o interprete) também é fruto, e ressalte-se, não se trata de afirmar aqui qualquer tipo de desvio ético, mas de considerar natural a desigualdade. A partir desta perspectiva, deve-se ressaltar a estreita relação que deve guardar o processo educacional com a defesa intransigente dos princípios garantidos na Constituição brasileira na defesa e promoção dos direitos humanos, e que, por sua vez devem ser as lentes com as quais se deve verificar sistemas de eliminação ou diminuição de desigualdades sociais.

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com a estrutura de dominação do forte sobre o fraco, uma vez que baseada em benevolentes


Como foi ressaltado introdutoriamente, o objetivo do artigo é abordar como se dá a adesão de seres educados a discursos violadores de direitos humanos, para tanto é necessária a delimitação do que seja educar para o respeito aos direitos humanos. É necessário questionar se as matrizes curriculares dos cursos têm reproduzido ensinamentos que justificam, ou por outra, admitem como natural a manutenção da dominação do oprimido pela razão legal? E ainda, se têm reproduzido as teorizações justificadoras da desigualdade? Se a resposta a tais questionamentos apontar para uma naturalização histórica das condutas opressivas, mantidas há séculos através das mais variadas formas legais (leis, tratados e convenções) e ainda na forma de atos ilegais (de exceção) encarregados de reproduzir o continuísmo da opressão, talvez seja necessário rever as referidas matrizes. Símbolos como a Declaração Universal dos Direitos Humanos3 são importantes, entretanto, podem camuflar continuidades históricas opressoras, podem dar a aparência de uma conquista, todavia, como já afirmado, se a conquista teórica não se materializa na vida dos oprimidos, corre o risco de se tornar letra morta. Podem ainda se tornar propulsores de dogmas, muitas vezes rezados como ladainhas que propugnam a fé na possibilidade de uma paz perpétua, mesmo que nunca tenha havido um só dia de paz na história da sociedade. Pode ainda contribuir para a crença no método científico do direito como um instrumento pacificador, ainda que nunca tenha produzido este efeito na história. O louvor a uma ciência do direito evolucionista e que progride como um método hibrido de solução de problemas complexos, dão um verniz de modernidade a problemas antigos, soam como mantras antigos na história recente, expressões de matriz positivistas como ordem e progresso, desenvolvimento sustentável, gestão estratégica entre outras, vão naturalizando a ciência como uma divindade, um mito, um oráculo, a quem se recorre para dar continuidade a um modo de vida que legitima o caos contra os oprimidos.

igualdade substancial como elemento fundamental que vise a defesa dos oprimidos. Há uma área de tensão que necessita de delimitação, pois, se as normas jurídicas refletem a materialização de um poder hegemônico em detrimento das minorias, como poderão continuar legitimadas?

3

DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS. Assembleia Geral das Nações Unidas em Paris. 10 dez. 1948. Disponível em: <http://www.onu.org.br/img/2014/09/DUDH.pdf>. Acesso em: 25 de jun.2017.

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Avançando um pouco mais, é preciso uma teoria que tenha como paradigma a


3 UMA REVISÃO HISTÓRICA

Mas esta tensão não é novidade, nos idos de 1963, houve um estilhaço histórico, esta é uma expressão de Walter Benjamin que se refere a um intervalo de tempo, ainda que efêmero, onde a continuidade histórica é rompida por uma revolta dos oprimidos, como por exemplo, na revolução francesa na qual mais de mil anos de absolutismo medieval cessaram. Também no Brasil, houve um movimento que pretendeu romper com essa lógica, buscava a emancipação libertadora dos oprimidos pela educação popular, através da implantação do primeiro Plano Nacional da Educação, sob a direção de Anísio Teixeira (então ministro da Educação), Darcy Ribeiro, Florestan Fernandes Jr., dentre outros, um plano que objetivava implantar o programa nacional de alfabetização com o método desenvolvido por Paulo Freire, louvado até hoje em todo o mundo como a maior referência educacional do mundo. Entretanto, os poderes hegemônicos reagiram e através de um golpe político, apagaram violentamente o lampejo histórico que se constituía. A trágica interrupção deste Plano Nacional de Educação é sentida até os dias atuais, na medida em que, 50 anos após o golpe ainda se constituem num bloqueio a implantação de um plano que prestigiava a emancipação popular pela educação. Considerando este contexto histórico, o modo de agir violador de direitos humanos, que inaugurado pelo regime político instituído a partir do golpe de estado de 1º de abril de 1964, foi a busca pela legitimação dos atos ditatoriais através de processos judiciais. Evidencia isso o fato de que, curiosamente o sistema judicial no Brasil continuou operando normalmente durante toda a ditatura, a ponto inclusive de referendar a eleição indireta do primeiro presidente, após a campanha presidencial de dois dias prevista no referido AI-1, manifestando assim a clara disposição do judiciário de aplicar a legislação produzida durante o regime militar.

corpo graças à manipulação do conceito de ameaça da segurança nacional no ordenamento jurídico pátrio. Foi no processo judicial que o conceito adquiriu nova roupagem, outrora relegada às ameaças internacionais, passou a ser atribuída a cidadãos nacionais opositores ao regime vigente. Não somente contra estes, mas também a todos que de alguma forma constituíam-se, mesmo sem querer, em inimigos do autoritário regime hegemônico. Infelizmente, como se pode ver, o direito e a justiça contribuíram sobremaneira para a legitimação de atos contra os poderes não hegemônicos que ousavam discordar do

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Esta pratica de legitimar os atos totalitários dos poderes hegemônicos, foi tomando


continuísmo histórico, o direito tradicionalmente alinha-se ao poder hegemônico, a tradição, a jurisprudência tem efeitos muito contundentes na formação da lógica jurídica. Uma educação pautada em direitos humanos e na igualdade, por uma adesão à ideia de emancipação popular e não vinculada ao mercado. É o que defendia Paulo Freire, o protagonista daquele movimento histórico, em sua Pedagogia do Oprimido. Essa via, aparentemente inviabilizada, atraí para este texto, um enorme pessimismo em relação à disposição do direito de servir aos interesses dos oprimidos, vez que a efetiva realização de seus direitos não passa de uma fantasia, basta ver a tragédia educacional vivida no Brasil, somente alguns dados preliminares já serão suficientes: Segundo o relatório da UNICEF (2011, p. 48) o Brasil possui uma população bem grande de adolescentes: 11% da população brasileira, mais de 23 milhões de pessoas são cidadãos entre 12 e 17 anos e grande parte enfrentam diversas vulnerabilidades, dentre as quais se destacam: a pobreza e a pobreza extrema; a baixa escolaridade; a exploração no trabalho; a privação da convivência familiar e comunitária; os homicídios; a gravidez na adolescência; as doenças sexualmente transmissíveis; o abuso e a exploração sexuais e o contato com substâncias entorpecentes. Para este público segundo o Mapa da Violência (2014, p. 56) foi criado o Índice de Assassinatos na Adolescência (IHA), uma rápida olhada neste dado revela uma realidade assustadora, uma vez que, nos anos entre 2009 e 2010 atingiu a incrível marca de 45,2%; quando aplicado ao estereótipo de jovem negro (71,44%), do sexo masculino (93,03%), com idade entre com idade entre 10 e 19, resultou no ano de 2012 a uma média de 28 mortes por dia. Segundo o Levantamento Anual do SINASE (Sistema Nacional Socioeducativo) indica que existem 88.022 adolescentes brasileiros cumprindo medidas socioeducativas em meio aberto (advertências, prestação de serviços à comunidade e liberdade assistida). Existem

provisória e semiliberdade) e principal característica fundamental destes jovens é a baixa escolaridade. Esta tragédia reflete-se na hipótese ventilada no início do texto, aquela que atentava para o fato de que os poderosos escolarizados (hegemônicos) não são afetados por uma educação em direitos humanos, a educação que foi dada foi sofrida e não produzida, fruto do autoritarismo, hierárquico e dominador típico dos regimes militares, ainda como dizia Paulo Freire (1996) a educação quando não é libertadora, produz no oprimido a vontade de ser opressor. 15

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também 23.066 adolescentes em restrição e privação de liberdade (internação, internação


4 O ROMPIMENTO EM WALTER BENJAMIN

A referência à expressão estilhaço histórico utilizada por Walter Benjamin tem, além do contexto de precisão linguística, a pretensão de demonstrar o igualmente pessimista vivido na Alemanha nos idos de 1930. Naquela ocasião o autor profeticamente elaborou a sua a enigmática tese IX. A tese IX utiliza como figura de linguagem um quadro de Paul Klee, no qual, um anjo olha assustado em direção ao paraíso, de onde sopra o vento da destruição, que sob os pés do referido anjo amontoam-se, o vento não permite que o anjo feche suas asas que o conduzem sempre para mais longe do paraíso. O vento na figura, para Benjamin, é o progresso e a história dos vencedores. O título do presente artigo é uma alusão à essa tese, na qual, interpretadas décadas mais tarde, passou a ser considerada premonitória da tragédia que se abateria sobre a Alemanha naquela época. Nela, afirmava que era necessário um rompimento com o historicismo vencedor, com os ventos do progresso, e que ele, o progresso, seria o responsável pelos escombros da destruição. Ao buscar-se entender como se daria o rompimento referido por Benjamin, é significativo destacar sua afirmação de que o “[...] o fim da opressão se dá por um salto para fora do trem do progresso. O anjo não suporta o progresso!” (LÖWY, 2005, p. 39). A tese de Benjamin foi interpretada décadas depois, como um prenuncio não percebido à sua época, a respeito das tragédias humanitárias que seriam produzidas em Auschwitz e Hiroshima, o fundo do poço histórico. Michael Löwy comentando a tese de Benjamin (2005, p. 136) ensina que, apesar de

acontecimento uma possibilidade de que ele se torne singular na história. Existem momentos trágicos que tem a possibilidade de se tornar um movimento motriz que quebre o continuísmo, para ele, estilhaços de um tempo qualitativo em oposição ao tempo progressivo histórico. Esses (LÖWY, p. 140) estilhaços do tempo são os breves momentos em que os oprimidos conseguem revoltarem-se contra a continuidade histórica, e salvando um momento do passado quebram o cerne do presente.

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tais fatos históricos estarem relegados ao passado, é importante destacar que existe em cada


A interrupção, o rompimento, constitui-se na chance revolucionária de cada evento histórico, e caso não seja exercido, dão ensejo a continuidade do vento irresistível que imobiliza as asas do anjo da história, aberta e cristalizada. Para Benjamin (LÖWY, 2005, p.135) esse momento revolucionário significa a entrada no compartimento fechado do passado se dá pela ação política, na medida em que interrompe a continuidade natural do tempo histórico. Eis aí o objetivo derradeiro do artigo, a superação do referido pessimismo e às considerações finais que seguem.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A possibilidade de romper com o progresso é a possibilidade de quebrar com a passividade o imobilismo político, com a inércia produzida pela transferência da responsabilidade

na

resolução

da

tragédia

pelos

instrumentos

jurídicos

e

seu

pseudomodernismo técnico processual. Essa transferência da ação política em instrumentos jurídicos transforma sujeitos históricos em autômatos. Nesta perspectiva, ao se transformar a tragédia educacional brasileira numa situação naturalizada, típica de brasileiros, de país terceiro mundista onde tudo tem um jeitinho, correse o risco de se repetir erros do passado de continuísmo estéril. Deve-se aproveitar este instante histórico e transformá-lo num instante revolucionário onde se lute contra a dominação continuísta em nome do progresso. Igualmente os sombrios tempos da tragédia educacional brasileira pode se tornar o estopim de uma insurreição capaz de romper com o continuísmo histórico. O artigo aponta para uma possibilidade de, no presente momento, a ação política dos

É importante sublinhar que a atual tragédia educacional era evitável, mas que essa possibilidade não está relegada ao passado, inexoravelmente, pois a abertura histórica pode não coincidir com a história continua como se viu acima, ela pode ser transformada, mesmo após o fato histórico. Esse fato histórico tem que ser uma conspiração que seja fruto de um sentimento comum, cujo objetivo seja tornar a pobreza a exploração a desigualdade social, erros do sistema educacional do passado e que resulte num pacto em torno de uma educação baseada na promoção e proteção dos direitos humanos. 17

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atingidos inconformados transformar o fato histórico.


REFERÊNCIAS

DEUTSCHER, Isaac. Trotski: o profeta bandido. 1. ed. Trad. Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1996. LÖWY, Michael. Walter Benjamin: Aviso de incêndio: uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. Trad. de Wanda Nogueira Cadeira Brant, (tradução de teses) Jeanne Marie Gagnebin, Marcos Lutz Müller. São Paulo: Boitempo, 2005.

MATURANA R, Humberto. Emoção e linguagem na educação e na política. Trad. José Fernando Campos Fortes. Belo Horizonte: UFMG,1998.

LOOKING FOR A HISTORICAL RUPTURE FOR HUMANS RIGHTS EDUCATION

ABSTRACT The present work questions the increase of human rights violating discourses in the educational field, the naturalization of the inequality between the hegemonic and minority powers. It also presents a perspective from a bibliographical historical review, identifying the historical moment that gave rise to the educational tragedy exhibited.

more sensitive paradigm regarding Freire's human rights education as a democratic possibility for education. Keywords: Inequality. Hegemonic powers. Feelings.

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FIDES, Natal, V. 10, n. 2, jul./nov. 2019.

It points to the need to break with the legal perspective, proposing a


A EDUCAÇÃO DOS ADULTOS SENIORES EM PORTUGAL: ESTUDO DE CASO – VOLUNTARIADO DE LITERACIA JURÍDICA JUNTO A PESSOAS IDOSAS NA MANSÃO DE MARVILA1 Rute Saraiva2

1 INTRODUÇÃO

No Dia Internacional da Pessoa Idosa, a Organização das Nações Unidas (ONU) divulgou um conjunto de dados que revelam a crescente dimensão da chamada “maré cinzenta”, isto é do acelerado envelhecimento demográfico, em especial nos países mais desenvolvidos, com o velho continente a ser cada vez mais um continente de velhos. Entre outros, o número de pessoas com mais de 65 anos no mundo ultrapassou, pela primeira vez, o número de crianças com menos de 10 anos; entre 2017 e 2030, o número de pessoas com idades superiores a 60 anos deverá aumentar 46%, passando de 962 milhões para 1,4 mil

atuais 143 milhões para 426 milhões. Para Portugal, a ONU antecipa que a percentagem de idosos com mais de 65 anos possa situar-se no intervalo entre os 29,2% e 38,1% (SOUSA, 2019) e, de acordo com a Pordata, o índice de envelhecimento3 em Portugal cresceu de 27,5% em 1961 para os 157,4% 1

A recolha de dados para o estudo de caso foi feita por Catarina Pimenta e Lucas Velho, ex-alunos da FDUL e mentores do projecto 8 e 80, a quem se agradece pelo excelente trabalho desenvolvido. 2 Professora Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL) e Presidente do Gabinete de Responsabilidade Social da FDUL. 3 O índice de envelhecimento representa o número de pessoas com 65 e mais anos por cada 100 pessoas menores de 15 anos. Um valor inferior a 100 significa que há menos idosos do que jovens.

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milhões e, em 2050, é esperado que o número de pessoas com mais de 80 anos triplique dos


em 2018, tendo vindo a acelerar nos últimos anos, subindo igualmente o índice de longevidade4, passando dos 33,6% para os 48,4% entre 1961e 2018 (PORDATA, 2019). Aliás, de acordo com o Instituto Nacional de Estatística, a esperança média de vida por terras lusas é, em 2019, de 77,78 anos para os homens e de 83,43 para as mulheres, sendo que aos 65 anos, os homens podem esperar viver mais 17,58 anos e as mulheres mais 20,88 anos, o que representa ganhos de 1,23 anos e de 1,18 anos, respectivamente, na última década (INE, 2018). Acresce, para os efeitos deste artigo, que, pese embora a quebra continuada dos níveis de analfabetismo, considerando o efeito geracional, este é, apesar de tudo, relevante na faixa etária dos + 65 anos, com o Alentejo a surgir como a zona do país com piores resultados, com uma taxa total de analfabetos de 9%, quase o dobro da média nacional5 (CNE, 2013, p. 28). Ainda assim, esforços vêm sendo feitos em Portugal para combater este flagelo, desde os anos 50, com as primeiras campanhas de educação para adultos, em especial em aldeias remotas, mas sobretudo com as reformas na educação, designadamente com o alargamento da escolaridade obrigatória, e mais recentemente, no que aos adultos diz respeito, com o Programa Qualifica e o Plano Nacional para a Literacia de Adultos, lançado em 2018. Mais, os níveis de escolaridade, em termos de educação formal, têm evoluído muito positivamente, em especial junto das mulheres, mesmo se existem mais mulheres sem escolaridade (as mais idosas) mas simultaneamente mais mulheres com ensino superior (VELOSO; ROCHA, 2016, p. 6) . Ora, face a um cenário de envelhecimento populacional, conjugado com uma expectativa de vida mais prolongada depois da idade da reforma e com níveis de literacia e educação tão diferentes entre os denominados adultos seniores, do analfabetismo a uma franja já algo alargada de diplomados superiores, não deixa de ser estranho verificar, como se

global e integrada de educação para idosos, que, em particular, os reconheça, por um lado, como um grupo social autónomo e, por outro, heterogéneo (ALBUQUERQUE; ALBUQUERQUE, 2019) que não deve ser estereotipado em termos de incapacidades, fragilidade e inactividade. Nestes moldes, tentar-se-á, de forma relativamente sucinta, abordar e retratar a educação para adultos, em particular seniores, em Portugal, para finalizar com uma 4

O índice de longevidade é o número de pessoas com 75 e mais anos por cada 100 pessoas com 65 e mais anos. Quanto mais alto é o índice, mais envelhecida é a população idosa. 5 De acordo com o censo de 2011, contam-se cerca de 30 mil analfabetos em idade activa, o que significa mais de 400 mil com +65 anos.

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constatará nas páginas que se seguem, uma ausência de uma política pública sistematizada,


experiência piloto levada a cabo, no plano do voluntariado social, por alunos da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL) junto dos utentes institucionalizados da Mansão de Marvila.

2 EM BUSCA DE UMA POLÍTICA PÚBLICA EDUCATIVA PARA ADULTOS SÉNIORES

Independentemente da variação terminológica (velhos, idosos, pessoa idosa, seniores, 3ª e 4ª idades) com conotações que traduzem concepções socio-culturais e preocupações do politicamente correcto e independentemente da forma e metodologia do seu recorte (ex. cronológico-biológico – designadamente acima dos 60 ou 65 anos; laboral – aposentação; ou funcional, entre outros), o grupo social das pessoas idosas não pode nem deve ser reconduzido a um estereotipo de exclusão social, doença, mormente com perdas de capacidades cognitivas, nem de indigência, cuja preocupação pública se deverá centrar em torno da sua inserção social, cuidados de saúde e apoios financeiros, colocando-o de fora de outras dimensões dos direitos fundamentais, em particular, e no que aqui interessa, da educação. Com efeito, este grupo, que durante séculos não foi autonomizado, por ser considerado um assunto do foro privado das famílias e, na sua ausência, do sector social, até, por razões de (pouca) representação demográfica devido a uma esperança de vida mais curta, caracteriza-se pela sua heterogeneidade, em tudo similar ao que existe em outros patamares etários, seja no plano económico, social, educacional, de acesso à cultura, seja em termos de capacidades físicas, cognitivas, mentais e emocionais. Assim, se alguns apresentam níveis de escolaridade baixos, ou mesmo inexistentes, com rendimentos escassos e limitações de saúde,

elevados níveis de educação, perfeitamente capazes e activos. Por exemplo, no caso de estratos socio-económicos mais elevados não é incomum uma ausência de corte abrupto e integral com o mercado de trabalho e actividades socio-culturais, prolongando as relações préexistentes. Já nas classes médias, cujo estatuto em muito se deve ao trabalho, a reforma, para muitos, surge como um marco de ruptura mais vincada, que obriga a uma reaprendizagem da gestão do tempo, enquanto que, nos estratos mais baixos se tende a manter padrões de conduta, seja de inactividade anteriormente associada a desemprego ou manutenção de tarefas anteriormente desempenhadas para garantir algum rendimento, sejam agrárias, limpeza, 21

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outros, da mesma idade, mais novos ou mesmo mais velhos, vivem confortavelmente, com


construção, braçais, entre outras. Em suma, coexistem modelos de velhice tradicional e passiva com modelos activos, muito fruto da evolução social e de factores sociológicos e antropológicos como a diminuição do carácter determinístico da herança e a importância que assume o trabalho ou a alteração do modelo familiar, mas também de factores biológicos e científicos que permitem a extensão da esperança de vida e da sua qualidade. Daqui decorre que, antes de avançar, há que desfazer alguns mitos, estereótipos ou generalizações que podem induzir em erro a compreensão deste grupo social e das suas necessidades e, consequentemente, as políticas públicas a ele dirigido e que deverão prosseguir, fomentar e consolidar os seus direitos fundamentais. Assim, além de se querer quebrar a ideia de homogeneidade e, por outro, a sua recondução a pobres, doentes e analfabetos, há também, por isso mesmo, que afastar a préconcepção e generalização abusiva de que a educação previne o envelhecimento ou garante um envelhecimento activo. Afinal, basta pensar que dificilmente reverterá cenários de senilidade e demência já instalados ou que uma educação e formação como a formal (escolar) e pensada para a integração na vida activa poderá ser adequada e interessar e motivar a totalidade da população idosa. Aliás, daqui se retira que, antes de mais, se deve pensar devidamente no que deverá ser a educação e formação de idosos, considerando inclusivamente a sua diversidade, tanto em termos de conteúdos como de metodologias, pedagogia, contextos ou fins. Na lógica de uma educação permanente ou ao longo da vida, esta deverá adequar-se ao seu público alvo e não tanto perpetuar um modelo redutor de educação para a vida activa, como parece decorrer das opções europeias e lusas, em especial. Mais, de igual modo, não se deve erradamente subsumir a educação e o ensino à educação formal e de tipo escolar, mas também informal, não formal ou extra-escolar, ou seja não sistematizada nem criada propositadamente para fins educativos, revelando portanto um processo educativo com concepções, contextualizações e metodologias diversas. Pelo

educação permanente devem englobar e passar por possibilidades educativas e pedagógicas fora do sistema educativo. No âmbito da soft law internacional, desde a década de 70 que se vem focando a importância de uma educação permanente e de políticas públicas de educação de adultos e adultos seniores. Assim, recordem-se, entre outros, as Recomendações da Conferência Geral da UNESCO sobre a Educação de Adultos de 1976, de 1979 com o relatório Introduction to Life Learning ou do Relatório Educação, um tesouro a descobrir de 1996, ou do Relatório da OCDE de 1973 Recurrent education: a strategy for life-longlearning, das Conferências 22

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contrário, em especial no caso das pessoas idosas, a construção e idealização de uma


internacionais de Educações de Adultos, em particular em Tóquio em 1972, em Paris em 1985 ou em Hamburgo em 1997, ou ainda da Recomendação das Nações Unidas 44/1982 ou do Comentário n.º 6 de 1995 do Comité dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais, que alerta para a ausência de atenção quanto à promoção e protecção das pessoas idosas (ONU, 2002). Nestes moldes, nas Recomendações de 1976 sobressai a ideia de a educação de adultos ser encarada como uma forma de correcção de desigualdades decorrentes de diversos factores, incluindo a idade, no acesso ao ensino e formação iniciais. Sugerem-se pois acções específicas para a faixa etária dos adultos séniores, designadamente numa óptica de preparação para a aposentação, um envelhecimento activo e para uma melhor compreensão intergeracional. Procura-se, deste modo, no recorte da definição da educação para adultos ir para lá da dimensão escolar e de formação profissional para abarcar uma lógica de desenvolvimento pessoal e social (UNESCO, 1976). Por seu lado, a Conferência de Tóquio chama a atenção para a existência de grupos marginalizados no plano educativo, como a população rural, jovem em países em desenvolvimento, desempregados e idosos, sendo que, porém, não se reporta a estes últimos de forma individualizada nas recomendações específicas finais (UNESCO, 1972). Já a de Paris salienta a problemática da evolução demográfica em termos de envelhecimento progressivo, recomendando-se o acesso à educação e cultura independentemente da idade até como condição e fortalecimento da cidadania. Deste modo, e afastando-se de um modelo em que os idosos são vistos como desfavorecidos mas apenas como pessoas com necessidades especiais educativas, reconhece-se “a educação de adultos idosos como um investimento necessário ao equilíbrio social”. Ou seja, defende-se um direito à educação e a aprender para todos, em particular à pessoa idosa. Mais, alerta-se para a dimensão constitutiva da educação para adultos no seio da política de desenvolvimento socioeconómico e cultural (UNESCO, 1985). Por seu lado, a Conferência de Hamburgo, intitulada “Aprender em idade adulta: uma chave para o Século XXI”, advoga a importância e

observa serem geralmente discriminados na educação para adultos (UNESCO, 1997). Ademais, defende-se aqui que esta não deverá servir apenas para efeitos de não declínio cognitivo mas sobretudo para assegurar a sua participação activa como cidadão de pleno direito. Em suma, reforça-se a ideia da educação como direito fundamental também do idoso. A Recomendação 44 da ONU, por sua vez, na sua referência à educação, inclui a educação informal, sobretudo quanto aos idosos, enfatiza o papel destes enquanto formadores e transmissores de conhecimentos e valores, sugerindo a criação de programas que os valorizem. Nestes moldes, com os olhos postos na experiência piloto e bem sucedida da 23

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necessidade do reconhecimento e valorização das competências e capacidades dos idosos que


primeira Universidade Sénior, em Toulouse, 1973, a ONU alerta para a necessidade de adaptação e adequação do ensino às capacidades dos idosos e a sua participação satisfatória, de acordo com um “princípio do direito das pessoas idosas à educação” (ONU, 1982, p. 8687). No caso português, a velhice só deixa de ser invisível e passa a identificada como categoria social autónoma com a revolução dos cravos (VELOSO, 2004, p. 51, 55; VELOSO; ROCHA, 2016, p. 7), evoluindo de uma caracterização de indigência ou questão familiar para um problema de protecção social. Ainda que o art. 13.º referente ao princípio da igualdade não preveja expressamente a idade como factor discriminatório, a Constituição lusa de 1976 estipula, no seu art. 67.º n.º 1 alínea b, uma política de terceira idade, mesmo se numa lógica de inserção socio-familiar e de uma política de manter preferencialmente o idoso no seu domicílio, e no seu art. 72.º, que aos poucos foi alargando a sua visão muito focada na preocupação com a exclusão socioeconómica, vindo, com as sucessivas revisões constitucionais, a acentuar mais objectivos de empoderamento pessoal e de uma cidadania plena, designadamente com uma menção cultural, pese embora sem uma referência expressa à educação, consagrada no artigo seguinte. De notar que se o art. 73.º n.º 2 CRP se refere à educação, realizada através da escola e outros meios, já o art. 74.º CRP concentra e reconduz o ensino à educação formal e escolar. Não deixa de ser extraordinária e significativa a criação e funcionamento entre 1975 e 1976 de uma Direcção-Geral de Educação Permanente, com uma abordagem bastante inovadora, mormente através da recolha da cultura oral depois passada a escrito e levada de volta às populações de origem, em vez de uma simples aposta na alfabetização maciça. Todavia, a sua curta duração é um pronúncio de uma ausência de uma política pública de educação para idosos e até de inversão, mesmo se a Lei n.º 3/79, de 10 de Janeiro, cria um plano nacional de alfabetização e de educação de base de adultos, com uma natureza mais

Porém, apenas a primeira acabou por funcionar, terminando em 1984 com o desenvolvimento de quatro programas regionais integrados. Assim,

As formas de mobilização popular, que no período anterior se procurava estimular, passaram a ser encaradas com desconfiança e o recurso ao destacamento de professores do ensino regular traduziu a emergência de um mandato assente no

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fundada na educação formal e escolar, que prevê duas fases quinquenais de implementação.


esforço de escolarização de segunda oportunidade. (GUIMARÃES, documento não datado, p. 1)

6

A Lei de Bases do Sistema Educativo, a Lei n.º 46/86, de 14 de Outubro, sem qualquer referência expressa a pessoas idosas, trata da educação de adultos pela via do ensino recorrente, no seu art. 20.º; a formação profissional no art. 19.º; a educação extra-escolar, com finalidades de educação permanente, incluindo o combate ao analfabetismo, a promoção da educação de base de adultos e a promoção da solidariedade e participação activa, no art. 23.º; o acesso ao ensino superior “directo” para os maiores de 25 anos na alínea b) do n.º 1 do art. 12.º e; finalmente, o ensino à distância, sobretudo pela via da Universidade Aberta, no art. 21.º. Da análise do diploma (na sua versão original), não decorre qualquer preocupação de visão sistemática com a educação de adultos (muito menos com os seniores), mormente numa óptica de empoderamento para uma cidadania plena, e sem verdadeira integração entre os aspectos formais e não formais do ensino (VELOSO, 2004, p. 197). Neste sentido, aliás, a Direcção-Geral para a Educação de Adultos é, com o Decreto-Lei n.º 3/87, de 3 de Janeiro, substituída pela Direcção-Geral de Apoio e Extensão Educativa, transformada em apenas Direcção-Geral de Extensão Educativa com o Decreto-Lei n.º 484/88, de 29 de Dezembro e finalmente extinta pelo Decreto-Lei n.º 133/93, de 26 de Abril, passando o ensino recorrente para a esfera dos Departamentos do Ensino Básico e do Ensino Secundário. Por outras palavras, sobressai, na institucionalização e organização administrativa, a marginalização da educação para adultos e a invisibilidade da educação sénior. No mesmo sentido caminha a tentativa de reforma educativa no final dos anos 80, com um grupo de trabalho relativo à educação de adultos que não só diagnostica o sector (ensino recorrente, formação profissional e intervenção socio-educativa e cultural) e as suas falhas (falta de formação de formadores e de motivação e mobilização dos adultos ou

orientações, entre as quais se encontra a criação de um Instituto Nacional de Educação de Adultos com uma forte componente descentralizadora (ideia mais tarde retomada) e de um Fundo de Apoio a projectos privados de intervenção cultural e socio-educativa. Infelizmente, o plano não se concretiza. Veja-se que o Programa Operacional de Desenvolvimento da Educação de Adultos (1989), financiado pelo PRODEP I da Comunidade Europeia, impunha a exigência de proporcionar uma dupla certificação, a saber o cumprimento da escolaridade 6

GUIMARÃES, Paula. Políticas públicas de educação de adultos em Portugal: diversos sentidos para o direito à educação?. Disponível em: <http://www.apcep.pt/alfabetizacao/artigos/paula_guimaraes.pdf>. Acesso em: 5 nov. 2019.

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inexistência de programas socio-educativos) como apresenta um rol de recomendações e


obrigatória e atribuir uma formação profissional de nível 1, pelo que a abordagem é marcadamente económica, competitiva e vocacional, afastando os idosos (GUIMARÃES, documento não datado, p. 2)7. No entanto, em 1997, procura-se, através do Grupo de Trabalho coordenado por Alberto Melo, relançar um projecto de solução educativa para todos com iniciativas vocacionadas para adultos, entre outras, de alfabetização e educação básica, formação de formadores de educação de adultos, parcerias entre o Estado e a sociedade civil, mais investigação e promoção do ensino para adultos, com centros de ensino exclusivos, mormente usando ferramentas à distância, ou a implantação de uma Agência Nacional para a Educação de Adultos. Com a Resolução do Conselho de Ministros n.º 92/98, de 14 de Julho, lança-se um Grupo de Missão para o Desenvolvimento da Educação e Formação de Adultos que conta com o apoio da Universidade do Minho e que apresenta uma proposta de modelo institucional descentralizado com uma componente intra e interministerial, que culmina com a criação da ANEFA (Agência Nacional de Educação e Formação de Adultos) com o Decreto-Lei n.º 387/99, de 28 de Setembro, que prossegue, entre outros objectivos, e com a colaboração da sociedade civil, a construção gradual de um sistema de reconhecimento e validação das aprendizagens informais dos adultos. A sua extinção chega, porém, em 2002 com a sua substituição pela Direcção-Geral de Formação Vocacional. Ainda assim, mesmo durante o período de institucionalização da ANEFA, revela-se difícil adivinhar uma política pública sistemática e global de educação de adultos, principalmente idosos, seja pelo âmbito vago do envolvimento daquela agência na concepção e desenvolvimento concretos da política de educação de adultos, pela não concretização de uma verdadeira descentralização, pela sua fragmentação e tomada pontual de iniciativas, seja

educativa (VELOSO, 2004, p. 215-216). Em rigor, o seu reinado é marcadamente de formação e não de educação (VELOSO; ROCHA, 2016, p. 20). A ANEFA, aliás, tem competências de reconhecimento, validação e certificação de competências, seja, por exemplo, no seio dos cursos EFA (Educação e Formação de Adultos), seja no âmbito do programa s@ber+ que, bem analisados, se destinam à integração na vida activa, com uma participação de cerca de 75% de jovens adultos entre os 18 e os 24 anos e só 25% entre os 25 7

GUIMARÃES, Paula. Políticas públicas de educação de adultos em Portugal: diversos sentidos para o direito à educação?. Disponível em: <http://www.apcep.pt/alfabetizacao/artigos/paula_guimaraes.pdf>. Acesso em: 5 nov. 2019.

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pela ausência de uma intervenção focada para uma educação para a cidadania e socio-


e os 64 anos (VELOSO, 2004, p. 218). Esta preponderância de jovens adultos é também ela muito visível no ensino recorrente8, numa aposta política séria numa escolarização compensatória (de segunda oportunidade) (VELOSO, 2004, p. 201; TÁVORA; VAZ; COIMBRA, 2012, p. 36). Com uma recolha alarga de dados estatísticos quanto ao perfil etário no ensino recorrente, veja-se VELOSO (2004, p. 201). Sobre a degradação de uma formação de base humanista para compensatória em Portugal, por todos, A(s) crise(s) da educação e formação de adultos em Portugal (TÁVORA; VAZ; COIMBRA, 2012, p. 36). Resta saber se esta política de formar primeiro sem educação de retaguarda, retomada com o Programa Novas Oportunidades e depois Qualifica, alguma vez funcionará eficazmente (VELOSO; ROCHA, 2016, p. 21). Resumindo, as soluções nacionais, na esteira das tendências europeias, visam, por um lado, uma educação de “segunda oportunidade”, com o ensino recorrente, e uma educação vocacional e profissional, que, naturalmente, se centra nas camadas mais jovens, deixando de fora os adultos seniores. Ora, este movimento afirma-se no Direito da União Europeia desde a década de 80 do século passado em que se reforça, sob a tutela do Estado, o elo entre o sistema educativo e o mercado de trabalho, numa abordagem estratégica neo-liberal. Basta para tal recordar os apoios europeus para a formação profissional9 ou os Livros Brancos sobre Crescimento, Competitividade e Emprego ou sobre Ensinar e Aprender ou a denominada Estratégia de Lisboa ou de Nice, que, com uma acentuada nota vocacionalista, procuram a promoção de competências técnicas e profissionais, numa lógica restritiva e redutora de pendor económico que se traduz, de um lado, numa dimensão de mercado centrada na competitividade, emprego e inclusão social e, de outro, e em consequência, num público alvo em idade activa. Trata-se, portanto, de uma política de educação ao longo da vida activa, excluindo os mais velhos do

para o Envelhecimento Activo se baseia em políticas de emprego e não de educação (VELOSO; ROCHA, 2004, p. 8). Isto não significa, contudo, que a União Europeia esqueça, durante este período, as pessoas idosas. Afinal, em 1993 celebra-se o Ano Europeu do Idoso e da Solidariedade entre Gerações e já antes, a Decisão do Conselho n.º 92/440/CEE, de 24 de Junho, que possibilita a geração de projectos inovadores de intervenção junto dos idosos, com uma das redes dedicada 8

Despacho Normativo n.º 73/86, de 25 de Agosto e Portaria 243/88, de 19 de Abril. Pense-se, por exemplo, em formações financiadas pelo Fundo Social Europeu e pelo PRODEP através do Ministério da Educação. 9

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direito à educação e cultura (VELOSO, 2004, p. 191-192). Veja-se que a Estratégia Nacional


à solidariedade intergeracional para a educação e formação. De novo, em 2012, festeja-se o Ano Europeu do Envelhecimento Activo e da Solidariedade entre Gerações. Todavia, o potencial da educação para adultos seniores teima em não se assumir na sua plenitude. Nos últimos anos, o modelo continua, até devido à recessão económica com níveis históricos de desemprego na sequência da crise financeira de 2008 e da subsequente crise da dívida soberana, a apostar primordialmente nos adultos em idade activa, seja por via de ensino recorrente e de Vias de Conclusão do Nível Secundário de Educação10, seja por via da formação técnica e profissional. Trata-se de uma resposta criada para quem frequentou, sem concluir, percursos formativos de nível secundário de educação ao abrigo de planos de estudo já extintos ou em processo de extinção. O seu modelo é de educação formal, sendo asseguradas por escolas com ensino secundário públicas, particulares e cooperativas com autonomia pedagógica e por entidades formadoras de Cursos EFA de nível secundário. Assim, no que a esta última interessa, a Agência Nacional para a Qualificação e o Ensino Profissional (ANQEP) é o instituto público que tem por missão coordenar a execução das políticas de educação e de formação profissional de jovens e adultos e acautelar o desenvolvimento e a gestão do sistema de reconhecimento, validação e certificação de competências. Neste momento, estas actividades envolvem os denominados Centros Qualifica11 que, enquanto estruturas do Sistema Nacional de Qualificações, assumem um papel determinante na ligação entre a educação, a formação e o emprego, numa perspectiva de aprendizagem ao longo da vida, dirigindo-se a jovens e adultos que procuram uma qualificação, com o objectivo de continuar os estudos e/ou uma transição/reconversão para o mercado de trabalho. Todavia, o Programa Qualifica, lançado em 2017 com bastante sucesso na linha da Iniciativa Upskilling Pathways da União Europeia e que conta hoje com três centenas de centros, não é, como reconhece o relatório de 2018 da European Association for

de financiamento (do Fundo Social Europeu) que não se sabe se será renovado, para além de alguns problemas associados com pagamentos em atraso e reembolso de custos. Por outro lado, prosseguem os cursos EFA12 para adultos que pretendam elevar as suas qualificações, desenvolvendo-se de acordo com percursos de dupla certificação e, sempre

10

Como base legal, entre outros: Decreto-Lei n.º 357/2007, de 29 de Outubro; Portaria n.º 612/2010; Despacho n.º 6260/2008. 11 Como base legal, entre outros: Resolução do Conselho de Ministros n.º 32/2019; Despacho n.º 7534/2017; Despacho n.º 6261-B/2017; Despacho n.º 1971/2017; Portaria n,º 232/2016. 12 Como base legal, entre outros: Despacho nº 334/2012; Portaria n.º 283/2011; Portaria n.º 1100/2010; Portaria n.º 711/2010; Despacho n.º 3447/2010; Portaria n.º 230/2008; Portaria n.º 817/2007; Despacho n.º 11 203/2007;

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the Education of Adults – EAEA (2018, p. 47), uma estratégia de longo-prazo, dependendo


que adequado, apenas de habilitação escolar, com vista a uma (re)inserção ou progressão no mercado de trabalho. Na mesma linha de preparação e integração para a vida activa, e numa lógica de educação formal, surgem os Cursos de Especialização Tecnológica (CET) enquanto formações pós-secundárias não superiores que preparam para uma especialização científica ou tecnológica numa determinada área de formação, cuja realização confere o nível 5 de qualificação do Quadro Nacional de Qualificações e um diploma de especialização tecnológica (DET), sendo ministrados em estabelecimentos de ensino públicos e do ensino particular e cooperativo, Centros de Formação Profissional do Instituto do Emprego e Formação Profissional do (IEFP), Escolas Tecnológicas ou em outras entidades formadoras acreditadas. Acresce ainda a este universo de qualificação e formação profissional para adultos13 as chamadas formações modelares14, que se dirigem, prioritariamente, a indivíduos sem a conclusão do ensino básico ou secundário, e que são promovidas por entidades de natureza

pública,

privada

ou

cooperativa,

designadamente, estabelecimentos

de

ensino, centros de formação profissional, autarquias, empresas ou associações empresariais, sindicatos e associações de âmbito local, regional ou nacional, desde que integrem a rede de entidades formadoras do Sistema Nacional de Qualificações. Rapidamente daqui se retira a sua perfeita desadequação a adultos seniores e a ausência da sua contemplação na esfera do Ministério da Educação e da ANQEP que coordena, em Portugal, a implementação da Agenda Europeia para a Educação de Adultos, decorrente da Resolução de 20 de Dezembro de 2011, do Conselho da União Europeia enquanto um dos meios a considerar para se alcançar os objetivos da Estratégia Europa 2020 baseada num "crescimento inteligente, sustentado e inclusivo", que deverá abarcar a aprendizagem ao longo da vida e interligar todas as competências e conhecimentos obtidos em diversos contextos (formais, informais e não formais) (CONSELHO DA UNIÃO

A Agenda Europeia renovada para o período 2020 previa como prioridades:

Despacho n.º 26 401/2006; Despacho nº 15 187/2006; Despacho conjunto n.º 1083/2000; Decreto Regulamentar n.º 26/1997; Portaria n.º 216-C/2012. 13 Podem, todavia, ser integrados em formações modulares, jovens com menos de 18 anos, desde que comprovadamente inseridos no mercado de trabalho ou em centros educativos tutelados pelo Ministério da Justiça. 14 Como base legal, entre outros: Despacho n.º 13147/2014, Despacho n.º 1039/2013, Portaria n.º 283/2011, Despacho n.º 13484/2011, Portaria n.º 711/2010, Portaria n.º 612/2010, Despacho n.º 18223/2008, Portaria n.º 230/2008. 15 CONSELHO DA UNIÃO EUROPEIA, resolução do Conselho da União Europeia sobre uma agenda renovada no domínio da educação de adultos, OJ C 372, 20.12.2011, p. 1–6. Disponível em: <https://eurlex.europa.eu/legal-content/PT/ALL/?uri=CELEX:32011G1220(01)>. Acesso em: 5 nov. 2019.

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EUROPEIA, 2011, p.1-6)15.


i.

Fazer da aprendizagem ao longo da vida e da mobilidade uma realidade, o que se traduz, designadamente na aposta em sistemas de segundas oportunidades; formação no local de trabalho; acesso facilitado ao ensino superior; e mecanismos de validação da aprendizagem formal, informal e não formal;

ii.

Melhorar a qualidade e a eficácia do ensino e da formação, passando, entre outros, pela maior e melhor formação dos formadores, criar sistemas de garantia de qualidade, mais adequação da formação a um mercado de trabalho em mudança; ou o envolvimento público, privado e da sociedade civil;

iii.

Promover a igualdade, a coesão social e a cidadania activa através da educação de adultos, designadamente aumentando a literacia para a cidadania, ambiental ou financeira, envolver grupos marginalizados como ciganos e migrantes, chegar aos que estão excluídos do ensino por deficiência, doença, prisão e, num contexto de envelhecimento activo, promover a aprendizagem dos mais idosos, incluindo o voluntariado e a promoção de formas inovadoras e intergeracionais e de iniciativas que procurem aproveitar socialmente os conhecimentos, aptidões e competências dos mais velhos;

iv.

Fomentar a criatividade e a capacidade de inovação dos adultos e dos respectivos ambientes de aprendizagem, mormente através da promoção da aquisição de competências essenciais transversais, como aprender a aprender, um reforço do papel das organizações culturais ou aproveitar as tecnologias da informação e da comunicação, em particular para uma aprendizagem à distância; e

v.

Melhorar a base de conhecimentos sobre a educação de adultos e a monitorização deste sector, o que implica mais investigação e, no que aqui interessa, alargar a cobertura dos dados à faixa etária acima dos 64 anos, acompanhando o prolongamento da vida activa.

numa educação para adultos séniores, o grosso da preocupação centra-se numa aprendizagem ao longo da vida activa, sem verdadeiramente se perspectivar uma política pública europeia focada naquele grupo etário. Aliás, é de salientar, à semelhança do que sucede no plano nacional em que se elege, apesar de tudo, os seniores como um dos grupos-alvos prioritários, uma entrega desta tarefa à sociedade civil, ainda algo descoordenada nesta matéria, sem grandes linhas orientativas que não seja uma lógica vaga de envelhecimento activo e de inclusão social, que passarão por um (indeterminado) intercâmbio de saberes e partilha de experiências intergeracionais, e sem qualquer previsão de financiamento a médio-longo prazo. 30

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Por outras palavras, mesmo se alguns aspectos toquem directa ou indirectamente


Ao nível da EPALE – Plataforma eletrónica para a educação de adultos na Europa, financiada pelo Programa Erasmus +, que funciona em Portugal por via da ANQEP, nota-se, porém, uma preocupação acrescida com os idosos assim como com outros grupos mais discriminados como as pessoas com deficiência, imigrantes ou os presos. Em Portugal, a Associação Portuguesa para a Cultura e Educação Permanente (APCEP), fundada em 1982 com base nos princípios do Relatório Faure, funciona como chapéu da educação de adultos (e portanto também de seniores) no âmbito da sociedade civil e como impulsionador de uma política pública para a educação permanente, da alfabetização e educação de base ao empoderamento individual, passando pela componente de qualificação. Da mesma forma, a Associação Direito de Aprender assume por terras lusitanas um especial destaque na promoção da educação para adultos. Todavia, no caso do Plano Nacional de Literacia para Adultos, apresentado pelo Governo português em Outubro de 2018 com o apoio técnico do Serviço de Apoio às Reformas Estruturais da Comissão Europeia, pelo menos numa primeira fase, é apontado como parceiro estratégico para o seu desenvolvimento em termos técnicos, em colaboração com o Governo, a EAEA, uma vez que se pretende um Plano alinhado com as reais necessidades nacionais mas também europeias, bebendo das melhores práticas. Espera-se, ainda assim e nesta linha de adequação ao cenário luso, a colaboração das organizações da sociedade civil, procurando entre outros a criação de um Conselho Consultivo da sociedade civil para apoio e orientação ao longo de todo o projecto, a elaboração de um Relatório Técnico de Investigação e de um conjunto de estudos de caso, que identifiquem as necessidades e as práticas existentes, recolhendo e tratando informação e propondo recomendações, a organização de uma oficina internacional para partilha de práticas, a organização e selecção de Grupos de Desenvolvimento, reunindo diferentes actores da sociedade civil em reuniões de trabalho e reflexão e elaboração sistematizada de Relatórios Temáticos a partir dos resultados dos Grupos de Desenvolvimento, procurando-se sempre

a realização de uma estratégia de implementação, lançamento oficial do Plano e, finalmente, a elaboração de uma estratégia de disseminação. Em suma, procura-se envolver e sistematizar os contributos de uma sociedade civil dispersa que trata da educação de adultos, num compromisso de esforços, contributos, experiências e actores. Restará saber como será efectivamente concretizado e qual o lugar atribuído à educação dos adultos seniores, enquanto grupo autónomo mas heterogéneo. Ou seja, também aqui é patente, como aliás resultou das várias iniciativas envolvendo a construção do Plano, em especial da oficina, que este, por um lado, não 31

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recolher contributos de todos os interessados para as fases subsequentes, nomeadamente, para


excluindo os idosos, pelo menos por agora não os trata diferenciadamente, nem os parece reconhecer como conjunto heterogéneo, por outro lado, assenta basicamente numa estratégia de devolução da questão à sociedade civil. Fazendo um paralelismo com o Plano para a Literacia Financeira, no final, faz diferença a participação ou não do Estado nem que seja na definição de uma política pública sistemática e harmonizada (e financiada) para alcançar os objectivos definidos e que até poderão ser mais bem alcançados por via de organizações privadas ou do Terceiro Sector. Com efeito, os grupos demográficos que apresentam maiores défices de literacia financeira são compostos pelos jovens e os idosos, as mulheres e as franjas populacionais com baixos níveis de escolaridade e de rendimentos. Ora, se quanto aos jovens vem sendo desenvolvida uma estratégia de introdução da educação financeira nas escolas numa colaboração entre o Ministério da Educação e os supervisores financeiros, já os idosos, sobretudo os aposentados, requerem uma actuação mais estruturada e institucionalizada que teima em tardar, tal como reconhecido nas linhas de orientação do Plano Nacional de Formação Financeira para o quinquénio 2016-2020. Por outras palavras, apesar da bondade do Plano e da identificação do problema, os meios continuam a não existir sustentadamente. A educação financeira vai sendo feita pela Comunicação Social, organizações de protecção dos consumidores como a DECO ou privilegiadamente (e com conflitos de interesses) pelos gestores de contas nos intermediários financeiros. A educação para adultos seniores encontra-se hoje, não só fora da escola, como na iniciativa da Economia Social e de projectos a mais das vezes ligados ao voluntariado. O exemplo paradigmático encontra-se nas Universidades da Terceira Idade, que existem em Portugal, desde 1978, e cujos modelos, institucionalização, objectivos e programas muito variam, ainda que, por um lado, haja uma estrutura-chapéu, a RUTIS16, única instituição nacional com acordo com o Estado para a promoção do envelhecimento activo, e, por outro,

p.377), com formação e capazes. Neste momento, a rede portuguesa de Universidades Seniores conta com cerca de 305 organizações, 45 mil alunos seniores e 5 mil professores e envolve actividades educativas em regime não formal, sem fins de certificação e no contexto da formação ao longo da vida (RUTIS, documento não datado). Apesar de em regra não se afastar a certificação, alguns projectos, até com interesse para a realidade da FDUL, podem envolvê-la. Recorde-se, por 16

A RUTIS – Associação Rede de Universidades da Terceira Idade – é uma Instituição Particular de Solidariedade Social e de Utilidade Pública de apoio à comunidade e aos seniores, de âmbito nacional e internacional, criada em 2005.

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pareça ter como público-alvo preferencial adultos seniores de classe média (VELOSO, 2004,


exemplo, a iniciativa muito interessante do Instituto Politécnico de Leiria com o Programa de Formação Sénior IPL 60+, destinado a adultos maiores de 50 anos, que permite aos inscritos a frequência semestral de até três disciplinas de qualquer dos cursos existentes no Instituto, integrando estes as turmas do Ensino Regular e usufruindo dos espaços académicos existentes. Aqueles que optam por se submeterem a avaliação recebem os créditos atribuídos à disciplina, de acordo com o Processo Bolonha, sendo submetidos às mesmas provas dos demais alunos. Uma solução similar foi entretanto adoptada com sucesso na Universidade de Aveiro para pessoas com deficiências mentais e cognitivas. A Universidade do Porto vem desenvolvendo também um projecto de Universidade de Terceira Idade. A importância social das Universidades Seniores foi reconhecida oficialmente pela Resolução de Conselho de Ministros n.º 76/2016, de 29 de Novembro. Veja-se que a sua pujança permite uma mudança de paradigma na educação de idosos a partir da década de 80, compensando a falta de uma concepção de política pública global (VELOSO; ROCHA, 2016, p. 14). Em suma, em Portugal, não foi por iniciativa pública que surgem e se desenvolvem estes espaços necessários de formação, em especial informal e não formal e que fogem a uma lógica vocacionalista (GUIMARÃES, documento não datado, p. 2)17, mas por via do activismo da sociedade civil, incluindo dos próprios beneficiários. Trata-se de um fenómeno em rápido crescimento, sendo que as razões demográficas e a facilidade da criação de uma Universidade Sénior podem ajudar a explicar. Com efeito, é um processo muito pouco burocrático, com uma estrutura altamente informal e de baixo custo: no final, são precisos uma sala, professores voluntários e um grupo de interessados. Esta flexibilidade permite assim abranger a heterogeneidade de interesses e de interessados, podendo ir da pintura à contabilidade, à história ou às línguas estrangeiras. Grosso modo, há três grandes modelos de Universidades Seniores: as aulas da terceira idade (professores

universidades da terceira idade (desenvolvidas pelas Universidades tradicionais e mais próximas deste modelo de ensino e dirigidas a um público em regra já com formação superior). Isto é, seja numa perspectiva de inclusão social, seja mais “elitista” de conhecimento pelo conhecimento em áreas de formação superior, as Universidades (tradicionais) podem oferecer as suas valências aos adultos seniores sem terem (e sem deverem) transformar-se em verdadeiras Universidades só de Terceira Idade, isto é, sem 17

GUIMARÃES, Paula. Políticas públicas de educação de adultos em Portugal: diversos sentidos para o direito à educação?. Disponível em: <http://www.apcep.pt/alfabetizacao/artigos/paula_guimaraes.pdf>. Acesso em: 5 nov. 2019.

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voluntários e sem certificação final), as universidades populares (abertas a todos) e as


perderem a sua identidade e missão. O projecto que se segue é pois um bom exemplo de uma pequena iniciativa nesse sentido, em especial não olhando para o envelhecimento activo meramente numa óptica economicista de envelhecimento produtivo que desloca as questões da velhice de direitos humanos para deveres económicos da pessoa idosa (VELOSO; ROCHA, 2016, p. 28). Em suma, há que olhar para a educação dos adultos seniores numa perspectiva da abordagem das capacidades (NUSSBAUM, 2000; SEN, 2003; NUSSBAUM; SEN, 1993), isto é de igualdade (material) de oportunidades de desenvolvimento pessoal e de empoderamento enquanto pessoa e enquanto cidadão de direito pleno (GUIMARÃES, 2008, p. 37), o que significa adaptar e adequar o direito à educação à sua medida, designadamente tendo em conta a gerontologia educacional (MARTINS, 2015, p. 665). O como fica para uma nova discussão.

3 ESTUDO DE CASO: PROJECTO 8 E 80 – VOLUNTARIADO DE LITERACIA JURÍDICA JUNTO A PESSOAS IDOSAS NA MANSÃO DE MARVILA

3.1 Enquadramento

O projecto inovador 8 e 80 de voluntariado de literacia jurídica por parte de estudantes universitários junto de idosos na Mansão de Marvila da Fundação D. Pedro IV nasceu, em 2014, da iniciativa de dois muito motivados alunos de licenciatura na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL) e da colaboração do Gabinete de Responsabilidade Social (GRS) desta instituição. A proposta foi encaminhada e bem recebida pelo Lar e pela Fundação, dando azo a uma primeira visita às instalações para se conhecer o

estrutura e conteúdo face às características específicas do público-alvo. Posteriormente, realizou-se, no final do ano lectivo 2013/2014, uma sessão experimental na Mansão, aproveitando o tema então quente das eleições europeias, tendo sido desenvolvido um jogo sobre a geografia europeia, a construção e as instituições da União Europeia e sobre as eleições, envolvendo um grupo inicialmente tímido de cerca de dez utentes com maiores capacidades cognitivas. Pese embora o princípio desconfiado e a necessidade de algum reajustamento do nível e tipo de perguntas do jogo, a experiência foi ganhando rapidamente o entusiasmo da assistência e motivou conversas paralelas sobre temas tão diferentes como a 34

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espaço e os seus beneficiários e perceber, com os profissionais da Mansão, a sua melhor


descolonização portuguesa ou a diferença de vivenças no Portugal antes e depois da adesão à CEE, hoje União Europeia. Em suma, o resultado revelou-se prometedor e determinante para a assinatura, a 5 de Novembro de 2014, de um protocolo entre a FDUL e a Fundação D. Pedro IV, oficializando não apenas o programa de voluntariado e os seus termos (ex., considerando o Decreto-Lei n.º 389/99, de 30 de Setembro, distribuição dos custos, seguro, transportes e ainda frequência) mas também uma cooperação em matéria de investigação científica em temas relacionados com o Direito da família, menores, idosos e violência doméstica, com a realização de uma conferência conjunta anual.

3.2 Funcionamento do projecto e sua missão

Durante o ano lectivo de 2014/2015, numa média quase bimensal, mesmo em períodos de avaliação escolar, equipas de 3 a 5 voluntários lideradas pelos mentores ou por alunos mais experientes no projecto dirigiram-se à Mansão para promover, com o apoio e acompanhamento dedicado dos profissionais do Lar, actividades previamente programadas na FDUL, por interacção entre os mentores e o GRS, de modo à melhor adequação das matérias em função do grupo de voluntários, da época do ano académico e dos comentários analíticos das sessões anteriores. Os voluntários, maioritariamente alunos da licenciatura e cujo número foi crescendo até à trintena, de ambos os géneros e incluindo estudantes sem nacionalidade portuguesa, juntaram-se ao 8 e 80 graças, por um lado, à angariação pessoal pelos mentores e por um passa-a-palavra e, por outro, por sessões de esclarecimento envolvendo os mentores e o GRS e pela divulgação da iniciativa através de cartazes e de uma página do facebook especificamente criada para o efeito. No início do ano lectivo 2014/2015, os mentores organizaram uma banca sobre o projecto, no átrio da FDUL, na semana de recepção dos

conferindo-lhe, assim, maior estabilidade para o futuro. Apesar de os dois mentores iniciais já terem concluído entretanto a sua formação e deixado a FDUL, o movimento teima em sobreviver à saída dos seus fundadores, tendo o projecto continuado a crescer e expandir-se para uma iniciativa similar com o apoio do GRS com a Associação Mais Proximidade Melhor Vida, que faz o acompanhamento de idosos que vivem muitas vezes sós, no centro da cidade de Lisboa. Com efeito, uma das dificuldades previsíveis na implementação duradoura desta iniciativa pioneira prende-se com a renovabilidade dos mentores e dos voluntários, uma vez 35

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caloiros, de modo a ampliar a sua base e garantir voluntários por um período mais alargado,


que a sua passagem pela FDUL tem uma duração esperada de quatro anos, ainda que a média aponte para cerca de seis. Desta forma, além da procura activa de novos voluntários, ponderase a maior institucionalização do projecto através da criação de uma associação sem fins lucrativos. O apoio do GRS é também vital para a sua sustentabilidade. Dois outros obstáculos devem igualmente ser considerados em matéria deste tipo de voluntariado. Por um lado, por ser feito por estudantes, verificam-se períodos de maior complexidade na composição das equipas, em especial as épocas de avaliação (que na FDUL se estendem, grosso modo de Dezembro a meados de Fevereiro e de Maio ao final de Julho) e de férias escolares, em particular natalícias e de verão. Ainda assim, foi possível nos meses de exames garantir pelo menos uma visita por mês face à forte motivação dos estudantes. Por outro lado, constata-se, pelo menos em primeiros contactos, alguma relutância em acompanhar idosos, declarando muitos maior preferência por programas com crianças, adolescentes e/ou sem-abrigos. Este último aspecto revela um problema social de desvalorização da população sénior que este projecto visa combater. Quanto à montagem das equipas, saliente-se que por vezes a tarefa se revela complicada por duas principais razões. Em primeiro lugar, porque, por uma questão de princípio aliada à sensibilidade e conhecimento necessários para o desenvolvimento das actividades, se procura garantir que esteja presente para liderar ou um dos mentores ou um aluno que tenha já colaborado. Deste modo, não só se facilita a passagem de testemunho, como se acautela alguma estabilidade e continuidade, tanto entre os estudantes como, mais importante, com os profissionais do lar e os seus beneficiários. Por outras palavras, assegurase maior eficiência e, simultaneamente, segurança e reforço dos laços emocionais com os idosos. Em segundo lugar, a divisão tradicional dos horários na FDUL, com os alunos dos 1.º e 4.º anos a terem aulas no período da manhã e os alunos dos 2.º e 3.º à tarde, diminui, à partida, o número de estudantes disponíveis. Com efeito, as deslocações deverão ser feitas

maioritariamente ao tratamento e higiene dos idosos, que tomam as refeições relativamente cedo. Não obstante, tem sido possível coordenar equipas matinais, começando por volta das 11h00, com os beneficiários mais autónomos. Por outro lado, pese embora, a início, se tenha descontado os alunos do horário nocturno, uma vez que a maioria trabalha, impossibilitando, neste caso, o voluntariado, vem-se observando uma tendência crescente para a inscrição nesse turno de alunos sem estatuto de trabalhador-estudante com um perfil muito similar ao dos estudantes diurnos. Abre-se pois uma porta para o alargamento da base de recrutamento de voluntários. 36

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preferencialmente no horário da tarde, depois do almoço, uma vez que a manhã se destina


No ano lectivo 2015/2016, por questões de maior pragmatismo, planeamento e de responsabilização, optou-se por um novo modelo de construção de equipas. Em vez da solução anterior de se procurar, casuisticamente, para cada sessão, alunos disponíveis, estabeleceu-se uma escala pré-montada considerando o calendário expectável de deslocações, dada a conhecer aos voluntários que deverão, na hipótese de não poderem comparecer no dia marcado, procurar, o mais cedo possível, um substituto ou informar os mentores. Ainda assim, em particular na altura de avaliações, surgem cancelamentos inesperados de visitas, obrigando a um reagendamento. Por último, quanto a este assunto, sublinhe-se que o contacto e a coordenação entre voluntários ocorre sempre à distância (ex. facebook, mail, telefone), sendo esta a única maneira de garantir uma organização e eficácia mínimas até ao dia da actividade. Aliás, esta acaba, a mais das vezes, por ser preparada desta forma. De futuro, talvez fosse preferível e mais adequado, até para fomentar o espírito de grupo e de pertença a um projecto solidário, a atribuição de um espaço físico na FDUL para as reuniões entre voluntários, mentores e GRS. No que respeita as actividades desenvolvidas, vêm sendo escolhidas e montadas, de acordo com três grandes critérios, num diálogo profícuo entre o GRS e os mentores e os voluntários: i.

Matérias na ordem do dia nas mídias sociais, tais como as eleições legislativas ou os poderes do Presidente da República;

ii. Matérias didácticas e com conteúdo pedagógico, de preferência com ligações às ciências jurídica e política; iii. Matérias e instrumentos que interessem os beneficiários, como os direitos dos idosos, ou que, no decorrer das sessões, se revelassem mais adequadas e motivadoras, designadamente desenhar e colorir. Com efeito, o objectivo deste tipo de estrutura e conteúdo procura contrariar a

se encontram em lares, contrariando, na prática, os ensinamentos em voga de um envelhecimento activo. Assim, o que se pretende principalmente é: i.

Promover a integração e o respeito social pelo idoso;

ii. Estimular e manter as suas capacidades cognitivas, curiosidade e motivação; iii. Partilhar saberes e experiências intergeracionais, discutindo temas que permitam a ligação entre o passado e o presente;

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tendência cada vez mais natural de infantilização dos cidadãos seniores, em especial dos que


iv. Dar sentido de tempo, criando uma ligação com que se passa fora das portas do Lar, mas também de espaço, designadamente através de actividades ligadas a conhecimentos de geografia. Neste sentido, foram sendo trabalhados, com abordagens diversas e interactivas (desde jogos didácticos tipo quem é quem, desenhos, jornais, apresentações a “mesas de café”, entre outras), por exemplo temas associados aos direitos dos idosos, ao sistema de governo com referência aos poderes do Presidente da República e da Assembleia, aos partidos, às eleições, aos impostos ou ao 25 de Abril. Saliente-se que é frequente as matérias escolhidas servirem, na prática, apenas de pontapé de saída para conversas animadas sobre assuntos paralelos e o seu planeamento, previamente enviado para conhecimento dos responsáveis e funcionários do Lar, ter de ser adequado durante a sessão ou implicar uma revisão das temáticas das visitas futuras programadas, revelando pois a dinâmica intensa que se estabelece entre os voluntários e os idosos participantes. Note-se que o sucesso percepcionado a respeito deste projecto, em especial na sua dimensão pedagógica, exige, em boa parte, uma ligação afectiva entre os voluntários e os idosos. Aliás, neste momento, já se trabalha com os idosos no plano pessoal, dado que se foram estabelecendo pequenas ligações afectivas com alguns beneficiários a reter certos alunos na memória e estes a participarem em momentos da "família" do lar como na festa dos santos populares. De sublinhar, por fim, a extrema importância da coordenação com os gestores da Mansão, nomeadamente com o animador socio-cultural, fundamental no arranque das actividades e para a adequação das mesmas ao estado dos idosos no dia em que a mesma decorre. Afinal, convém sempre ter em conta o que já estiveram a fazer naquele dia, se há algum idoso com pouca disposição e porquê, se há factores perturbadores, entre outros.

De modo a avaliar a bondade e o impacto desde projecto, tanto junto dos alunos como da comunidade, no final do ano lectivo 2014/2015, foram efectuados inquéritos anónimos (em anexo no final) preparados pelo GRS, tanto aos voluntários como aos responsáveis e funcionários do Lar mais próximos desta experiência. A opção de não inquirir directamente os utentes beneficiários prendeu-se, sobretudo, pelas incapacidades cognitivas de alguns que dificultam a sua realização correcta.

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3.3 Avaliação preliminar do projecto


Note-se porém que, tratando-se de um projecto ainda pequeno, a amostragem, em termos científicos, pode ser criticável porque diminuta mas ainda assim, importa analisá-la, exactamente pela dimensão e experimentalismo do programa. a) Pelos alunos voluntários Dos cerca de 30 alunos que participaram no projecto-piloto, 13 responderam ao inquérito (Anexo II) que lhes foi colocado no final do ano lectivo 2014/2015. Resumindo os dados recolhidos, todos declaram terem sido motivados principalmente por razões de solidariedade. A maioria, 9 (ou seja, 69,2%), apenas se deslocou à Mansão uma única vez; 1 (7,7%) duas vezes; 1 (7,7%) três vezes; e 2 (15,4%) quatro ou mais vezes. Estes números realçam uma certa rotatividade dos voluntários mas a manutenção de pelo menos um mentor e/ou aluno mais experiente a acompanhar as sessões. Quanto ao tempo de preparação antes de cada sessão, apenas 2 alunos (15,4%) declararam não ter gastado tempo. Outros 2 (15,4%) reportam até 15 minutos mas a maioria, 8 (61,5%), considera ter levado até 30 minutos nos preparativos prévios. 1 aluno (7,7%) estimou demorar mais de uma hora em matéria de organização. As respostas sugerem várias interpretações. Por um lado, que as actividades desenvolvidas necessitam de alguma, mas não muita, preparação pelos voluntários, talvez porque se, por um lado, é necessário algum tipo de briefing sobre os destinatários, a temática e os meios usados, por outro, os temas abordados não são, por natureza, complexos. Uma questão que se levanta é de saber se, na óptica da inclusão deste projecto na lógica das clínicas legais de rua (Streetlaw clinics), não se deveria aumentar a carga de trabalhos prévios, designadamente incentivando o aprofundamento do tratamento de matérias de literacia jurídica, tanto para os voluntários como para os beneficiários. Note-se porém que há um equilíbrio a encontrar entre as características destes como da disponibilidade daqueles, em especial face aos longos períodos de avaliação a que

trabalhadas pelo GRS e mentores, diminuindo, deste modo, o esforço exigido aos estudantes participantes. Aliás, 4 (30,8%) alunos apontaram como principal dificuldade a coordenação com o horário das aulas, 6 (46,1%) a coordenação com os estudos, 1 (7,7%) ambas. Apenas 1 (7,7%) considerou não haver qualquer tipo de obstáculo e 1 (7,7%) outro aluno referiu a distância e tempo de deslocação até à Mansão.

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estão sujeitos. Ademais, convém recordar que as sessões são previamente concertadas e


Por outro lado, 4 (30,8%) alunos apontam como maior desafio a falta de autonomia física dos idosos e 5 (38,5%) a deterioração da sua capacidade mental. 2 (15,4%) referem porém a falta de motivação e receptividade dos idosos. 1 aluno não respondeu a esta pergunta. Ainda assim, 11 (84,6%) alunos consideram que os utentes da Mansão, ao longo das sessões de voluntariado, em termos emocionais, ficam mais motivados e felizes com as actividades desenvolvidas. Apenas 1 (7,7%) voluntário defendeu que os beneficiários ficam emocionalmente indiferentes. Também aqui 1 aluno não respondeu a esta pergunta. Acresce que 9 (69,2%) voluntários reconhecem, ao longo das sessões, que os idosos, em termos cognitivos, melhoram, pese embora 3 (23,1%) não constatem qualquer melhoria. 1 aluno não respondeu a esta pergunta. Em termos gerais, de forma unânime, os voluntários sentem motivação no final de cada sessão. Todos os alunos que responderam à pergunta 9), a saber 12 em 13, reconhecem ter aprendido algo com a experiência, variando bastante as respostas quanto ao seu conteúdo: humanismo, comunicação, inexistência real de um fosso intergeracional ou relacionamento pessoal. Todavia a resposta mais comum, em 7 (53,4%) casos, refere-se ao conhecimento mais aprofundado da realidade e vivência do idoso. Em 12 respostas em 13 possíveis (1 aluno não respondeu a esta pergunta), a maioria (7-53,4%) considera que passou a ter um novo olhar sobre o Direito, em especial pelo programa demonstrar que o Direito é feito para as pessoas (4 respostas) e que os seus objectivos são aqui prosseguidos (3 respostas). 5 (38,5%) alunos, ao contrário, não experienciaram uma nova abordagem, sobretudo por não terem tido tempo suficiente no projecto para o efeito (3 respostas). 1 aluno defendeu que já esperava que o 8 e 80 fosse uma nova forma de abordar o Direito desde início, pelo que não foi uma surpresa. Enfim, apenas 1 (7,7%) aluno arguiu que a educação legal continua, na sua opinião, confinada à sala de aula.

últimas perguntas), mas agora de forma unânime, os voluntários concordam com a manutenção da iniciativa e querem regressar. No primeiro caso, a maioria (9) invoca a importância do humanismo e da promoção do bem-estar de outrem e do próprio, 2 argumentam com a importância de ter conhecimento do mundo real e 1 gostaria que o projecto fosse aprofundado. No segundo caso, a maioria (6), voltará por gosto, 4 por desenvolvimento pessoal e 2 para fazer a diferença. b) Pelos responsáveis e cuidadores da Mansão de Marvila

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Mais uma vez em 12 respostas em 13 possíveis (1 aluno não respondeu às duas


Dos responsáveis e cuidadores da Mansão, foram recebidas apenas 3 respostas ao inquérito elaborado em Julho de 2015 (Anexo I) mas provenientes de quem, de forma mais próxima, acompanhou a iniciativa, sendo, por isso, a sua importância não despicienda pelo seu testemunho directo. De forma sucinta, e atendendo às perguntas colocadas, as actividades foram desenvolvidas efectivamente com grupos em média de 10 utentes autónomos ou dependentes mas com boas capacidades cognitivas com gosto e interesse em participar. Aos poucos, confirmou-se, unanimemente, um processo de conquista de aumento de confiança, proximidade e receptividade, potenciando, em consequência, uma maior abertura a uma experiência nova e ao diálogo intergeracional, ainda que se reconheça que a rotatividade dos alunos dificulte o reforço da ligação entre os voluntários e participantes. Um dos testemunhos sugere também a necessidade de melhores equipamentos e espaços para algumas das actividades. Apesar das duas dificuldades referidas no parágrafo anterior, o projecto, na opinião dos 3 inquiridos, contribuiu para o incremento de bem-estar dos idosos ao mantê-los activos e com interesses diversificados, ao permitir a sua actualização e desenvolvimento cognitivo e, ademais, como salientado numa resposta, por combater a solidão e fomentar o diálogo, com a importância, para os beneficiários, de serem ouvidos. Com efeito, é unânime a apreciação de que as actividades desenvolvidas, em especial as que implicam perguntas e respostas, potenciaram as capacidades cognitivas do grupo de utentes envolvidos ao estimularem o pensamento e raciocínio. Se um dos inquiridos considera que mais do que aprendizagem face à idade dos participantes, o projecto conseguiu promover a activação da memória, os outros dois reconhecem alguma dimensão educacional, não apenas pela actualização e relacionamento entre passado e presente, estimulando a situação no tempo e no espaço, mas também pela

Dois dos testemunhos recolhidos consideram, em separado, que, num caso, também beneficiaram do projecto, com excelentes resultados, dois filhos de funcionários e, noutro, que as vantagens se repercutiram igualmente nos técnicos da Mansão que ficaram a conhecer uma dinâmica de relacionamento intergeracional diferente. Em suma, todos concordam veementemente que esta é uma iniciativa a manter e até, num caso, se sugerem novas abordagens, como discussão sobre uma notícia actual por escrito.

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curiosidade em relação a temas novos.


4 APONTAMENTOS FINAIS SOBRE O PROJECTO

Em suma, pese embora a amostragem seja reduzida para validação puramente científica, ainda assim, os resultados parecem sugerir que o projecto-piloto de voluntariado da FDUL na Mansão de Marvila deve ser mantido e aprofundado, por ser uma iniciativa vantajosa para todos os envolvidos (win-win). Vantajosa para os voluntários que se sentem motivados, se desenvolvem pessoal e emocionalmente e têm um conhecimento intergeracional da realidade. Vantajosa para os idosos que ganham em termos cognitivos e emocionais e passam a sua mensagem aos mais novos, fazendo-se ouvir. Mas vantajosa também para a FDUL por levar o Direito e os seus valores para fora de portas, prestando um serviço à Comunidade e mostrando novas abordagens e formas de Direito aos alunos. E vantajosa para a Fundação D. Pedro IV, em particular à Mansão de Marvila e seus cuidadores e responsáveis, por poder beneficiar do dinamismo e motivação de um grupo dedicado de voluntários que trazem novas rotinas aos seus utentes. Por último, vantajosa para a sociedade pela promoção do humanismo, da solidariedade e sobretudo do conhecimento e aproximação intergeracional. Esperemos pois que este programa mantenha a sua vitalidade e se possa reproduzir noutras instituições, fomentando a solidariedade mas também a literacia jurídica e a aprendizagem do Direito fora de portas, numa lógica mais pragmática de clínica legal.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

heterogéneos para continuar a aprender: sociabilizar, aprofundar conhecimentos e ampliar horizontes, preencher lacunas formativas, treinar a parte físico-cognitiva e emocional e manter competências, readaptar-se a novas situações (ex. aposentação) ou até dar significado a esta fase da vida, entre outras. O acesso à educação e a concretização de uma verdadeira educação permanente é um direito fundamental que lhes assiste como a qualquer outro cidadão e que lhes permite exercer e continuar a exercer a sua cidadania plena. Nestes moldes, importa uma política pública sistemática e sistematizada de educação de adultos seniores que atenda às suas necessidades e diversidade e que tarda em chegar a 42

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As pessoas idosas constituem um grupo heterogéneo com motivações e interesses


Portugal. Não se retire daqui que a actuação no terreno deverá ser pública. O modelo concreto poderá (e deverá) passar por cooperação estreita com o sector privado e social mas sem um chapéu ou espinha dorsal e ausência de meios e incentivos financeiros, dificilmente se passará de uma amálgama de iniciativas pontuais, mais ou menos estruturadas e sustentáveis, dependentes, em regra, da boa vontade, e que não conseguirão chegar a todas as pessoas idosas, independentemente das suas capacidades físico-cognitivas e socio-económicas e do local da sua residência, seja em lugares remotos ou em centros urbanos de maior ou menor dimensão, onde inclusivamente alguns vivem fechados e isolados em casa em prédios sem elevador. Por fim, importa o empoderamento das pessoas idosas, confirmando-as como cidadãos de pleno direito.

REFERÊNCIAS

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45

FIDES, Natal, V. 10, n. 2, jul./nov. 2019.

Universidade do Minho, Braga, 2004.


ANEXO I

Inquérito aos responsáveis e cuidadores da Mansão de Marvila

Agradece-se a resposta sucinta às questões abaixo, de preferência depois de sondados os beneficiários.

1. Qual o perfil do idoso que frequenta as actividades da FDUL? 2. Qual o número de idosos envolvidos? 3. Como evoluiu a receptividade e motivação dos idosos a este projecto? 4. Quais as maiores dificuldades na implementação deste projecto? 5. As actividades contribuíram para o bem-estar dos idosos? 6. As actividades contribuíram para a capacidade cognitiva dos idosos? 7. Os idosos aprenderam? 8. Na Mansão, mais alguém beneficiou destas actividades? 9. Consideram que o projecto deve continuar?

FIDES, Natal, V. 10, n. 2, jul./nov. 2019.

10. Comentários e sugestões.

46


ANEXO II

Inquérito aos voluntários 8 e 80

Seleccione a resposta mais acertada do seu ponto de vista

1. O que o atraiu no projecto: a) Solidariedade b) Ser um projecto com idosos c) Ser uma mais valia curricular d) Ser uma nova forma de aprender Direito e) Outra _____________________________

2. Quantas vezes foi ao Lar: a) Uma b) Duas c) Três d) Quatro ou mais

3. Quanto tempo demorou a sua preparação para as actividades desenvolvidas: a) Nada b) Até 15 minutos c) Entre 15 e 30 minutos d) Entre 30 minutos e uma hora

4. Principal dificuldade no projecto: a) Conciliação do voluntariado com o horário das aulas b) Conciliação do voluntariado com o estudo c) Conciliação do voluntariado com a vida pessoal e familiar d) As matérias jurídicas abordadas e) Outra ___________________________

47

FIDES, Natal, V. 10, n. 2, jul./nov. 2019.

e) Mais de uma hora


5. Principal desafio na Mansão de Marvila: a) Falta de autonomia física dos idosos b) Deterioração da capacidade mental dos idosos c) Falta de motivação e receptividade dos idosos d) Falta de condições para as actividades desenvolvidas nas instalações e) Outra ______________________

6. Ao longo das sessões de voluntariado, os idosos, em termos emocionais, ficam: a) cada vez mais desmotivados e infelizes com as actividades desenvolvidas b) indiferentes às actividades desenvolvidas c) mais motivados e felizes com as actividades desenvolvidas

7. Ao longo das sessões, constata, em termos cognitivos, que os idosos: a) Pioram b) Não se alteram c) Melhoram

8. No final de cada sessão, sente: a) Desmotivação b) Indiferença c) Motivação

9. Aprendeu alguma coisa nova: a) Não

10. Acha que este projecto mudou a sua forma de olhar para o Direito: a) Não porque ___________________________ b) Sim porque ___________________________

11. Acha que este projecto se deve manter: a) Não porque __________________ b) Sim porque ___________________

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FIDES, Natal, V. 10, n. 2, jul./nov. 2019.

b) Sim. O quê _________________________


12. Para o ano quer voltar a participar no projecto: a) NĂŁo porque _________________________

FIDES, Natal, V. 10, n. 2, jul./nov. 2019.

b) Sim porque ____________________________

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FUTURE-SE: A FÚRIA NEOLIBERAL SOBRE A EDUCAÇÃO SUPERIOR PÚBLICA E GRATUITA Zéu Palmeira Sobrinho1

RESUMO O governo Bolsonaro apresentou um Anteprojeto de lei visando a implantação do Programa Future-se com a finalidade de permitir que as IFES (instituições federais de ensino superior) captem recursos no mercado, por meio de parcerias com as fundações de apoio e as OS – Organizações Sociais, e fortaleçam a sua autonomia administrativa e financeira. O presente artigo, além de descrever aspectos do Future-se, explicitará o contexto em que este é apresentado, bem como demonstrará como o mesmo é concomitantemente um desdobramento do Golpe de 2016 e se insere num conjunto de estratégias para a

Palavras-chave: Future-se. Educação superior. Privatização.

1 INTRODUÇÃO

1

Juiz titular da 10ª Vara do Trabalho e do Juízo Auxiliar da Infância e Juventude, no âmbito da Justiça do Trabalho do RN, mestre e doutor em Ciências Sociais pela UFRN, pós-doutor em Sociologia Jurídica (Universidade de Coimbra), professor associado da Faculdade de Direito da UFRN.

50

FIDES, Natal, V. 10, n. 2, jul./nov. 2019.

privatização da educação superior no Brasil.


“A

ideologia

autoritária

que

naturaliza

as

desigualdades

e

exclusões

socioeconômicas vem exprimir-se no modo de funcionamento da política [no Brasil].” (CHAUÍ, 2001, p. 16)

A epígrafe que inspira a presente introdução é uma descrição das estruturas profundas da luta de classes que historicamente condiciona a vida socioeconômica no Brasil. É o iracundo e implacável desejo das elites que resistem à construção de uma nação onde caibam todos e todas. Nessa sociedade em que a cultura senhorial foi recorrentemente amoldada aos interesses do capitalismo, a oligarquia que controlou a terra, a burocracia e a exploração da força de trabalho se arvorou como diferente, superior e privilegiada, cooptando a classe média com as migalhas do autoritarismo. É nessa perspectiva histórica que o ódio excludente dos de cima em relação aos de baixo traduz-se na restrição de acesso às instituições, seja como instrumento para a negação da democracia concreta ou como tentativa de desconstrução da política em seu sentido democrático. Embora não sem ambiguidades, as universidades e outras relevantes instituições do Estado no Brasil, sob a inspiração de demandas democráticas muito recentes, tornaram-se num espaço de combatividade pela inclusão social. Todavia, ante a mesquinhez de uma elite obcecada por um modelo de periferização geopolítica e socioeconômica, a educação superior na qual caibam todos e todas continua a ser uma luta interditada, bloqueada e asfixiada. É nesse contexto, por exemplo, que o atual Ministro da Educação, Abraham Weintraub, numa solenidade em que este se dirigia a crianças e adolescentes, afirmou categoricamente que no “Brasil não tem espaço para todos, só para os melhores” (MARTINS, 2019)2. É partindo dessa reflexão sobre a exploração da desigualdade, como práxis de uma elite política, que o presente artigo propõe-se a debruçar sobre a segunda versão do Anteprojeto3 do Programa do governo federal, denominado Future-se, como a mais nova

No capítulo inicial do presente artigo será feita uma breve descrição dos aspectos principais do Programa Future-se. No segundo capítulo será explicitado o contexto em que está sendo apresentado o Programa Future-se. No capítulo 4 será exposto o debate sobre o 2

MARTINS, Luísa. Brasil só tem espaço para os melhores, diz Weintraub a crianças. Valor econômico, São Paulo, 04 set. 2019. Disponível em: <https://valor.globo.com/politica/noticia/2019/09/04/brasil-so-tem-espacopara-os-melhores-diz-weintraub-a-criancas.ghtml>. Acesso em: 04 set. 2019. 3 Por uma questão de convenção e para facilitar a atenção do leitor, toda vez que for apresentado o termo Anteprojeto, com “A” maiúsculo, o autor estará se referindo ao Future-se. Registre-se que, apesar de membros do governo falar em projeto do Programa Future-se, somente existe um “anteprojeto”, mesmo porque somente existirá projeto quando o mesmo for apresentado perante uma casa legislativa e for tombado sob o número específico.

51

FIDES, Natal, V. 10, n. 2, jul./nov. 2019.

investida da elite econômica brasileira contra a democratização do ensino superior.


Future-se como um desdobramento do Golpe de 2016. Por fim, no capítulo 5 será debatido até que ponto o Future-se se inclui dentre as estratégias neoliberais para a privatização da educação superior. Observe-se que o neoliberalismo aqui é entendido como um receituário econômico que, em contraposição ao Estado de bem-estar social, visa concomitantemente a eliminação do intervencionismo econômico na ampliação dos direitos sociais, a redução dos déficits fiscais, a desregulamentação de direitos sociais, a privatização, a mercantilização dos bens sociais e a livre autonomia nos contratos privados (ANDERSON, 1995). O Future-se é um programa de adesão não obrigatório, pelas IFES – instituições federais de ensino superior, que tem como finalidade – segundo o governo federal – fortalecer a autonomia administrativa e financeira IFES, por meio de parcerias com as fundações de apoio e as OS – Organizações Sociais. A primeira versão do anteprojeto do Future-se foi apresentada no mês de julho de 2019 com consulta pública aberta até 29 de agosto de 2019. Logo, o Ministério Público Federal ingressou com ação civil pública postulando que a justiça determinasse uma nova consulta pública, haja vista a falta de ampla e prévia divulgação do documento convocatório da proposta do programa Future-se. Essa primeira consulta pública perdurou por 40 dias e resultou, segundo informação do MEC, em mais de 20 mil contribuições ao Anteprojeto. Uma nova minuta foi apresentada pelo MEC para fins de nova consulta pública até 28 de outubro.

2 PRINCIPAIS ASPECTOS FORMAIS DO PROGRAMA FUTURE-SE

A versão inicial do programa era baseada em três eixos: governança, gestão e empreendedorismo; pesquisa e inovação; e internacionalização.

nova proposta mantém-se em três eixos: pesquisa, desenvolvimento tecnológico inovação; empreendedorismo; e internacionalização. A primeira versão do programa Future-se foi recusada por mais de 30 universidades federais do país. Das 63 universidades federais, algumas não se manifestaram publicamente, embora os integrantes dessas mesmas comunidades tenham recorrentemente manifestado insatisfação em relação à proposta. A apresentação da segunda versão do programa Future-se provocou certa desconfiança da comunidade universitária em relação as intenções do MEC, principalmente 52

FIDES, Natal, V. 10, n. 2, jul./nov. 2019.

A nova versão retira dois dos eixos da versão inicial: a governança e a gestão. A


após o Ministro da Educação fazer várias críticas à gestão das universidades e manifestar o interesse em reduzir os supostos altos salários dos professores, os quais o ministro jocosamente chamou de “zebras gordas.” Adiante serão listadas as principais modificações trazidas ou ratificadas na nova versão:

a) Servidores e o direito a bônus vinculados ao desempenho

O MEC sugere alterações no plano de carreira dos servidores técnicos administrativos das IFES, mas não explicita o sentido e o alcance de tais alterações. Os servidores técnicos são autorizados a coordenar projetos de ensino e pesquisa; Se aprovado o Anteprojeto, os bônus de natureza eventual, não incorporáveis aos salários, serão instituídos para os servidores como "benefícios especiais" para os servidores que atingirem os indicadores de desempenho.

b)O contrato de desempenho e as metas a serem cumpridas pelas IFES

O Anteprojeto diz que as IFES participarão do programa Future-se por meio de um contrato de desempenho, com prazo de vigência não superior a 4 anos e não inferior a 1 ano, e prevê um conjunto de metas a serem cumpridas pelas IFES, conforme critérios a serem definidos pelo MEC. O aludido contrato, que será firmado entre a universidade, ou o Instituto Federal, e o Ministério da Educação, terá como contrapartida a concessão de benefícios especiais. Segundo o artigo 3º do Anteprojeto, os benefícios especiais são definidos como medidas facilitadoras do atingimento dos fins colimados para o programa Future-se.

indicadores de resultado, para avaliar o desempenho das IFES relacionados aos eixos do programa em troca de benefícios especiais que ninguém sabe ainda em que consistem. Cuidase, portanto, de uma norma vaga, que se abre para um horizonte amplo de indefinições. Com efeito, o § 2º do art. 7º do Anteprojeto ao fazer alusão aos indicadores de desempenho que serão estabelecidos pelo Ministério da Educação não estabelece parâmetros para a fixação de tais indicadores. c) As fundações de apoio e as OS – Organizações Sociais 53

FIDES, Natal, V. 10, n. 2, jul./nov. 2019.

A grande inquietação trazida pelo contrato de desempenho é que o Anteprojeto prevê


O novo Anteprojeto do programa Future-se prevê que, para alcançar os resultados em cada eixo, as IFES poderão celebrar contratos e convênios diretamente com fundações de apoio e ou contrato de gestão com as OS - organizações sociais. Importante ressaltar que embora tenha sido retirado da segunda versão o eixo referente a gestão, o Anteprojeto manteve a possibilidade de celebração do contrato de gestão com OS - organizações sociais com a finalidade de permitir que estas façam o gerenciamento da execução das atividades previstas nos eixos do programa Future-se. A segunda versão do Anteprojeto trouxe como novidade a possibilidade da celebração de instrumentos jurídicos entre as IFES e as fundações de apoio. Estás foram historicamente instituídas para dar apoio a execução de projetos de interesse das IFES. Todavia, a despeito do atual Anteprojeto afirmar a sua obediência à autonomia universitária, prevista no art. 207 da Constituição, o § 3º do art. 12 diz expressamente que a execução de projetos no âmbito do programa Future-se ensejará a alteração da norma interna que disciplina o relacionamento das fundações de apoio com a universidade ou o Instituto Federal. O aludido parágrafo abre um largo horizonte para questionamentos, inclusive para se permitir ou autorizar a quebra da autonomia universitária. O Anteprojeto prevê que a União poderá doar bens imobiliários para as organizações sociais participante do programa Future-se (at. 33), desde que referidos bens sejam integralizados no Fundo Soberano de Conhecimento ou no Fundo Patrimonial do Future-se.

d) Revalidação de diplomas

O Anteprojeto autoriza que as faculdades privadas passem a ter o poder de revalidar diplomas de graduação obtidos em cursos realizados no exterior. Atualmente a LDB (Lei de

pode abrir um campo amplo para fraude, haja vista que além de afastar a fiscalização sobre o funcionamento das instituições formadoras, traz como o risco a possibilidade de permissão de ingresso no mercado de trabalho de profissionais com qualificação insuficiente ou duvidosa, o que se traduz em riscos para a população. Ademais, é patente o receio de que revalidações sejam realizadas sem a aplicação da regra de reciprocidade, a qual já foi abolida da política de

4

O § 1º, do art. 48, da LDB diz o seguinte: “§ 2º Os diplomas de graduação expedidos por universidades estrangeiras serão revalidados por universidades públicas que tenham curso do mesmo nível e área ou equivalente, respeitando-se os acordos internacionais de reciprocidade ou equiparação.”

54

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Diretrizes e Bases)4 só permite que universidades públicas procedam tal validação. A medida


relação exterior do Brasil em alguns casos, a exemplo da exigência de vistos em relação a países como EUA e China.

e) O suprimento da exigência de título acadêmico pelo reconhecimento de notório saber

O parágrafo único, do art. 66, da atual LDB, prevê que o notório saber poderá suprir a exigência de título acadêmico, mas desde que seja reconhecido por universidade com curso de doutorado na respectiva área afim. O Anteprojeto altera o citado artigo da LDB para retirar a exigência de que somente a instituição de ensino com doutorado na área afim é que tem competência para reconhecer e declarar o notório saber. Se vingar o Anteprojeto, para outorgar o título de notório saber, basta que a instituição de ensino tenha apenas pós-graduação na área afim, não sendo necessariamente curso de doutorado. Sob esse aspecto urge indagar-se: como pode uma instituição que não forma doutores, que é a mais alta qualificação acadêmica, ter legitimidade para decretar que alguém tem notório saber? Outra novidade do Anteprojeto é que este amplia largamente o horizonte de caracterização do notório saber ao permitir que este título seja outorgado àqueles que tenham realizado trabalhos reconhecidamente importantes, em escala nacional e/ou internacional, com contribuição significativa para o desenvolvimento da área no país e que demonstrem a alta qualificação no campo do conhecimento. Em relação à possibilidade de concessão do título de notório saber, o Anteprojeto abre uma enorme brecha para fraude e para demagogicamente banalizar tal título. Ao afrouxar as exigências em relação às IFES, não exigindo mais que esta tenha um doutorado na área afim para reconhecer o título de notório saber, a proposta tende a adotar dois caminhos

pertinência da outorga de titulação; e, segundo, a conceder a titulação a quem não tem qualquer relevante e regular produção acadêmico-científica.

f) Contratação de estrangeiros

O Anteprojeto, visando dinamizar o eixo da internacionalização, autoriza a contratação de pesquisador e professor do exterior, mas condiciona que a vinculação deste se dê diretamente com a OS (organização social) ou com a fundação de apoio, mediante a 55

FIDES, Natal, V. 10, n. 2, jul./nov. 2019.

tenebrosos: a não ter em seus quadros possuidores de notório saber para se reconhecer a


celebração de contrato de trabalho privado. Tal contratação não se dará de forma excepcional, conforme se prevê atualmente a Lei 8745/1993 que autoriza a contratação de professor e pesquisador estrangeiro visitante para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público.

g) Naming rights

As universidades e os institutos federais poderão adotar os naming rights, ou seja, poderão celebrar contratos de concessão do direito de nomear bem, evento ou local com os nomes de pessoas físicas ou jurídicas, em troca de compensação economicamente mensurável e relevante. O Anteprojeto prevê que a autorização para a adoção de naming rights deverá ser precedida de estudo que demonstre que o preço de mercado da imagem da IFES e a proposta apresentada pela pessoa física ou jurídica representam ganhos para a instituição.

h) A Sociedade de Propósito Específico (SPE)

O Anteprojeto permite a criação de SPE, dotada de personalidade jurídica de direito privado e constituída de pessoas físicas ou jurídica, de direito público ou privado, nacionais ou estrangeiras, no âmbito de uma ou mais IFES. O Anteprojeto prevê que as SPE devem trabalhar articuladamente com as IFES e poderão assumir a forma de sociedade limitada ou anônima, obedecendo às normas e exigências legais vigentes previstas na legislação para o tipo societário escolhido. A finalidade da SPE é, conforme expressamente prevê o Anteprojeto, fortalecer o poder de compra, o compartilhamento de recursos, a combinação de competências, a divisão

produtos com qualidade superior e diversificada. Observe que a SPE pode ser constituída de agentes administrativos, ou seja, o docente poderá ser sócio de uma SPE. No Anteprojeto inicial, havia a previsão de que as IFES fariam jus a um percentual do lucro auferido pela sociedade de propósito específico. Essa possibilidade restou silente no atual Anteprojeto.

i) Do Fundo Patrimonial do Future-se (FPF)

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do ônus da realização de pesquisas, a partilha dos riscos e custos ou o oferecimento de


O Ministério da Educação, conforme previsão do art. 26 do Anteprojeto, poderá constituir fundo patrimonial a ser gerenciado por instituição privada, sem finalidades lucrativas, e escolhida por procedimento simplificado, dispensada a licitação. A criação do FPF não impede que as IFES criem seus próprios fundos patrimoniais. O fundo patrimonial será constituído de uma diversidade de receitas, dentre as quais podem ser destacadas: as doações financeiras e das seguintes receitas: as doações financeiras e de bens móveis e imóveis e o patrocínio de pessoas físicas, de pessoas jurídicas, nacionais ou estrangeiras; os ganhos de capital e os rendimentos oriundos dos investimentos realizados com seus ativos; os recursos derivados de locação, empréstimo ou alienação de bens e direitos ou de publicações, material técnico, dados e informações; os recursos destinados por testamento; as contribuições associativas; as receitas decorrentes de arrecadação própria das universidades e dos institutos federais; alienações de bens e direitos; aplicações financeiras que realizar; exploração de direitos de propriedade intelectual; matrículas e mensalidades de pós-graduação latu sensu, etc. Segundo o Anteprojeto (art. 28), as receitas decorrentes de recursos de arrecadação própria das universidades e institutos federais poderão ser destinadas ao FPF, sem ingresso na Conta Única do Tesouro Nacional, mas deverão ser alocadas em contas separadas. Os rendimentos respectivos somente poderão ser utilizados em projetos e programas da respectiva instituição, por meio das organizações sociais ou das fundações de apoio.

j) Do Fundo Soberano de Conhecimento

O Anteprojeto autoriza a União a criar um Fundo Soberano de Conhecimento que consistirá numa espécie de fundo de investimento específico, multimercado, constituído a partir da integralização de diversos ativos financeiros, inclusive imobiliários, com a finalidade

Future-se. O Fundo Soberano de Conhecimento terá natureza privada, patrimônio próprio, gestão a cargo de instituição financeira, a qual será escolhida mediante procedimento seletivo simplificado e terá a sua atuação submetida à disciplina das regras editadas pela Comissão de Valores Mobiliários. Conforme o atingimento dos indicadores de desempenho, as IFES receberão do Fundo Soberano de Conhecimento os benefícios especiais para aplicação nos eixos do

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de geração de receitas para alocação nas ações de fortalecimento dos eixos do programa


Programa Future-se, ou seja, nas esferas do empreendedorismo, pesquisa, desenvolvimento tecnológico, inovação e internacionalização.

3 O CONTEXTO POLÍTICO DO FUTURE-SE

O Programa Future-se é apresentado num contexto de críticas dos neoliberais aos investimentos realizados na educação superior pelos governos petistas de Lula e Dilma. A ampliação das IFES entre 2005 a 2014, mais do que promover a igualdade de oportunidades no acesso ao ensino, contribuiu para o desenvolvimento de regiões até então carentes de uma educação de qualidade. A disseminação de universidades e institutos por diferentes regiões do país foi fruto direto do Programa REUNE. Por meio deste, cada universidade ou instituto federal definiu como deveria capilarizar-se, interiorizar-se e atingir populações até então distantes da educação superior e técnica. Para além do Golpe de 2016, a primeira grande resposta dos neoliberais, ao que eles consideraram uma gestão de gastança perdulária das políticas públicas, foi a Emenda Constitucional 95 que congelou por vinte exercícios financeiros todos os investimentos em bens primários, afetando diretamente o funcionamento do sistema educacional do país. Na esteira dos desdobramentos do Golpe de 2016, a estrutura de poder dominante conseguiu emplacar o governo Bolsonaro com o apoio de banqueiros, empresários do agronegócio, empresários de grandes corporações internacionais do setor de educação, magnatas como Steve Bannon, que controlam empresas de mega robôs para a disseminação de ódios e preconceitos por meio de fake news, sem falar no apoio da mídia hegemônica mercenária, de parte dos fundamentalistas religiosos e de conservadores negacionistas da ciência. Sob o governo Bolsonaro, o mote central passou a ser reprimir a escola pública por

por meio de intimidações e chantagens. Assim, se deram as ações com a finalidade de criminalização do corpo docente, de contingenciamento injustificado de verbas para a educação, etc. As práticas de criminalização promovida pela política neoliberal, após o Golpe de 2016, tiveram como alvo os docentes e dirigentes das universidades, a exemplo do emblemático caso que levou à morte o ex-reitor Luis Carlos Cancellier, da UFSC. O mencionado reitor foi afastado da reitoria e acusado de acobertar uma organização criminosa que teria supostamente desviado dinheiro público da UFSC. Mesmo sem a existência de 58

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meio de iniciativas conservadoras, tais como a “escola sem partido”, a “escola militarizada” e


provas, o reitor foi violentamente retirado do cargo. Por força de ordem judicial, Cancellier foi submetido a uma condução vexatória, espetacularizada, além de tratado de forma humilhante e sensacionalista pela mídia. Preso preventivamente por 2 semanas, o professor Cancellier foi alvo de terror psicológico e, emocionalmente abalado pela profunda injustiça que estava a sofrer, atirou-se de um vão do Beiramar Shopping, na cidade de Florianópolis. O fato chocou tanto o país, que tramita no Senado, o projeto de Lei do abuso de autoridade, que também é chamado de projeto da Lei Cancellier. Além do caso do reitor Cancellier, outros fatos ocorridos em 2019 retrataram o novo modelo de autoritarismo e obscurantismo da gestão da educação no Brasil. No primeiro semestre de 2019 ao menos alguns dos fatos mencionados a seguir marcaram a postura do governo federal em relação as universidades: 

1º) O Ex-ministro Ricardo Velez Rodriguez, embora com uma passagem meteórica à frente da pasta da educação, ocupou o site do MEC para mandar um recado claro a toda a sociedade brasileira no sentido de que a universidade não seria para todos (MARIZ, 2019)5;

2º) O substituto de Velez, o novo ministro da educação, Abraham Weintraub, afirmou que “gravar ou filmar aulas é ato de legítima defesa contra os predadores ideológicos disfarçados de professores” (AGOSTINI, 2019) 6;

3º) O mesmo ministro Weintraub fez, ainda, repercutir a fala de Olavo de Carvalho, no sentido de que as universidades são locus de balbúrdia, onde as pessoas andam nuas, fazendo sexo e fumando maconha (SILBER, 2019)7;

4º) Não tardou para que o próprio Weintraub determinasse o contingenciamento de verbas da educação superior sob a alegação de suposta balbúrdia nas

5º) A resposta da população veio nas ruas com os protestos, realizados nos dias 15 e 30 de maio de 2019, contra os atos do ministro da educação;

5

MARIZ, Renata. Ministro da educação afirma que universidade é para somente algumas pessoas. O Globo, Rio de Janeiro, 30 jan. 2019. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/sociedade/ministro-da-educacao-afirma-queuniversidade-para-somente-algumas-pessoas-23414713>. Acesso em: 30 jan. 2019. 6 AGOSTINI, Renata. Ministro da educação diz que filmar professores em aula é direito dos alunos. O Estadão. São Paulo, 28 abr. 2019. Disponível em: <https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,ministro-da-educacaodiz-que-filmar-professores-em-aula-e-direito-dos-alunos,70002808189>. Acesso em: 28 abr. 2019. 7 SILBER, Paulo. MEC pune universidades federais que promovem nudez e balbúrdia. Rede Pará. Belém, 30 abr. 2019. Disponível em: <https://redepara.com.br/Noticia/194395/mec-pune-universidades-federais-quepromovem-nudez-e-balburdia>. Acesso em: 30 abr. 2019.

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universidades;


6º) Como se não bastassem as difamações de Weintraub contra as universidades brasileiras, o presidente Bolsonaro propôs reduzir verbas para cursos de filosofia e de sociologia, sob o argumento de que estes não serviam para nada, deixando implícito que os mesmos deveriam ser abolidos (MAIA, 2019)8;

7º) Paralelamente as hostilidades do governo federal, o governo do Estado de São Paulo e a bancada parlamentar que lhe dá apoio também colaborou par o processo de intimidação e criminalização das gestões universitárias. Com efeito, a Assembleia do Estado de São Paulo resolveu abrir uma CPI para investigar a gestão e até o conteúdo que estava sendo lecionado nas universidades estaduais, como a USP e a UNICAMP;

8º) Por fim, o ministro da educação baixou uma Portaria tentando revogar os poderes dos reitores das universidades federais de nomearem os pró-reitores. Estes, segundo Weintraub deveriam ser nomeados somente após passarem pelo crivo da Casa Civil e da Secretaria de Governo. Felizmente, a Portaria foi revogada.

Todos esses fatos retratam os atos brutais que tentaram silenciar os setores críticos da sociedade que ainda insistem numa educação inclusiva e como fator de combate às desigualdades sociais. Os constantes ataques contra a universidade não ocorrem porque ela se opõe a ter uma relação com o mercado, é porque ela em algum momento da história ousou ampliar o seu acesso como estratégia para a promoção de um país menos subalterno e colonizado.

4 O FUTURE-SE COMO DESDOBRAMENTO DO GOLPE DE 2016: O ATAQUE A

O Brasil entrou no século XXI com problemas gravíssimos na educação. Apesar de uma legislação progressista, o Brasil tinha sérios problemas na infraestrutura, tais como: inclusão escolar; transporte escolar; utilização de metodologias de ensino superadas; falta de quase 400 mil professores; metade dos docentes na iminência de aposentadoria; docentes

8

MAIA, Dhiego. Bolsonaro propõe reduzir verba para cursos de sociologia e filosofia no país. Folha de São Paulo, São Paulo, 26 abr. 2019. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2019/04/bolsonaropropoe-reduzir-verba-para-cursos-de-sociologia-e-filosofia-no-pais.shtml>. Acesso em: 30 abr. 2019.

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EDUCAÇÃO SUPERIOR INCLUSIVA E AO PNE.


desmotivados; salários precários para os docentes; subfinanciamento da educação, exclusão digital; inexistência ou insuficiência de laboratórios, bibliotecas, salas de aula e etc e etc. Após a Constituição de 1988 e a Lei 9.394/1996 (LDB -Lei de Diretrizes e Bases da Educação), a legislação mais importante no âmbito da educação é a Lei 13.005/2014 (PNE – Plano Nacional de Educação), haja vista que esta expressa o planejamento a longo prazo do que será feito e do que se deseja de toda a educação nacional. Uma das mais fortes singularidades do Programa Future-se é que ele despreza o PNE. A razão desse menoscabo é porque o governo de ultradireita jamais aceitaria uma educação baseada num planejamento que chancela a liberdade de cátedra, a gestão democrática da educação, a pluralidade, a inclusão social, a universalidade do acesso, a educação laica, etc. É no art. 3º do PNE que estão as pilastras básicas da educação civilizatória, além das metas e estratégias para a educação nacional. São metas do PNE – Plano Nacional da Educação, a saber resumidamente, conforme o quadro a seguir:

META 1

Universalizar, até 2016, a educação infantil na pré-escola

2

Universalizar o ensino fundamental de 9 (nove) anos para toda a população de 6 (seis) a 14 (quatorze) anos

3

Universalizar, até 2016, o atendimento escolar para toda a população de 15 (quinze) a 17 (dezessete) anos

4

Universalizar, para a população de 4 (quatro) a 17 (dezessete) anos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação, o acesso à educação básica e ao

5

Alfabetizar todas as crianças, no máximo, até o final do 3o (terceiro) ano do ensino fundamental.

6

Oferecer educação em tempo integral em, no mínimo, 50% (cinquenta por cento) das escolas públicas

7

Fomentar a qualidade da educação

8

Elevar a escolaridade média da população de 18 (dezoito) a 29 (vinte e nove) anos, de modo a alcançar, no mínimo, 12 (doze) anos

9

Elevar a taxa de alfabetização da população com 15 (quinze) anos ou mais para 93,5% (noventa e três inteiros e cinco décimos por cento) até 2015 e, até o final da vigência deste PNE, erradicar o analfabetismo absoluto e reduzir em 50% (cinquenta por cento) a taxa de analfabetismo funcional.

10

Oferecer, no mínimo, 25% (vinte e cinco por cento) das matrículas de educação de jovens e adultos, nos ensinos fundamental e médio

11

Triplicar as matrículas da educação profissional técnica de nível médio

12

Elevar a taxa bruta de matrícula na educação superior para 50%

13

Elevar a qualidade da educação superior e ampliar a proporção de mestres e doutores do corpo docente

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atendimento educacional especializado


14

Elevar gradualmente o número de matrículas na pós-graduação de modo a atingir a titulação anual de 60.000 (sessenta mil) mestres e 25.000 (vinte e cinco mil) doutores.

15

Garantir a política nacional de formação dos profissionais da

16

Formar, em nível de pós-graduação, 50% (cinquenta por cento) dos professores da educação básica

17

Valorizar os (as) profissionais do magistério das redes públicas de educação básica

18

Assegurar planos de Carreira para os (as) profissionais da educação básica e superior pública

19

Assegurar a gestão democrática da educação.

20

Ampliar o investimento público em educação pública de forma a atingir, inicialmente, o patamar de 7% (sete por cento) do PIB até chegar o equivalente a 10% do PIB ao final do decênio. Quadro elaborado pelo autor.

O maior desafio dos gestores nacionais da educação continua a ser, como diz Meszaros (2005), a busca de meios para a superação da lógica desumanizadora do capital na esfera da educação. Outros dois desafios para os educadores brasileiros, nas duas últimas décadas que antecederam ao Golpe de 2016, era ter que decidir entre melhorar primeiro a estrutura e somente promover a inclusão educacional a posteriori ou fazer as duas coisas concomitantemente. Preferiu-se a segunda alternativa, visto que a urgência da inclusão não poderia mais ser postergada. Porém, em matéria de educação, num país de déficit de inclusão abissal, melhorar o sistema educacional e promover inclusão social ao mesmo tempo é algo metaforicamente comparável a consertar os pneus com o carro em movimento. Se tudo não saiu como desejado, se o déficit histórico da inclusão educacional ainda persiste, não se pode por outro lado deixar de reconhecer que muito foi realizado. Os governos Lula e Dilma priorizaram o ajuste fiscal, o pagamento da dívida pública, políticas sociais focalizadas e a dinamização do acesso à educação superior nas universidades privadas. Todavia, no período compreendido entre 2003 a 2014, as despesas com as universidades federais aumentaram 76,47% (REIS, 2017).

recursos do que o que foi destinado para o pagamento da dívida pública, a União até 2014 vinha obtendo avanços no cumprimento do PNE. As metas do PNE muito incomodaram a ultradireita porque o cumprimento das mesmas implicariam investimentos crescentes. Por exemplo, a meta 12 previa a elevação da taxa bruta de matrículas na educação superior para 50%; a meta 14 previa se atingir a titulação anual de 60 mil mestres e 25 mil doutores; a meta 16 previa formar, em nível de pósgraduação, 50% dos professores da escola básica até 2014; a meta 17 previa a valorização dos docentes, inclusive com a reestruturação paulatina da carreira e dos salários. Ressalte-se ainda

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Apesar de as universidades, entre 2003 a 2014, terem recebido treze vezes menos


que, no cumprimento do PNE, no período de 2011 a 2016, foram colocados em execução 28 programas de formação de professores. Acrescente-se ainda que, entre o período de 2003 a 2014, foram criadas 18 novas universidades e os institutos federal de educação técnica e tecnológica passaram de 160 para 644 unidades. Na ânsia de objetar e destruir as bases do PNE, no período compreendido entre o governo Temer e o atual governo, principalmente depois da aprovação da Emenda 95, que congelou por 20 anos os investimentos em saúde e educação, as metas do PNE foram abandonadas. Até o momento, das 20 metas existentes, 16 não foram atingidas e 4 foram cumpridas parcialmente, ou seja, as metas 7, 11, 13 e 14. Além do PNE, o Future-se também tenta abater as diretrizes curriculares nacionais, previstas na Resolução CNE/CP n. 02/2015, ao tentar estigmatizar as universidades como promotoras de festivais de gastança, de irresponsabilidade fiscal, de balbúrdia e de improdutividade. Nesse contexto, são realizados cortes orçamentários e construída uma narrativa dos supostos abusos praticados pelos gestores e pelos membros da comunidade universitária. Essa narrativa, além de contar com a espetacularização midiática, afirma-se no contexto de criminalização dos gestores universitários, a exemplo do que vem ocorrendo com as CPIs das Universidades Estaduais em São Paulo, as constantes ameaças de abertura da CPI da Educação Nacional e os fatos que sinalizam a violência real e simbólica traduzida na invasão das universidades por policiais e na prisão vexatória de membros da comunidade universitária, devendo-se recordar, sob esse aspecto, a vexatória e constrangedora prisão do ex-reitor da UFSC Luiz Carlos Cancellier. Outros gestores, a exemplo do que aconteceu recentemente aos reitores da UFMG e da UFRGS, também respondem atualmente por processos criminais sob a acusação de desvio de recursos públicos. Como se não bastasse toda essa violência contra a educação, o governo recentemente desviou recursos da educação na ordem de 1 bilhão de reais com a finalidade de liberar emendas parlamentares em relação aos

Portanto, o Future-se é um programa imposto num contexto de chantagem e destruição da educação superior. Esse ataque à educação vem junto com a tentativa de pilhagem das riquezas nacionais e junto com a tentativa de se retirar da universidade pública a função de autarquia, subordinando-a ao regime de direito privado e a uma constelação de contratos precários em relação a docentes e demais servidores, extinguindo-se conquistas da cidadania, tais como: a exigência do concurso público; a transparência das contas públicas; a valorização do docente; e a estabilidade dos servidores públicos em geral.

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deputados que votaram favoravelmente à reforma da previdência social.


O Future-se, ao desprezar o PNE, além de aprofundar o projeto ultraliberal de destruição do Estado Social, desenhado pela Constituição Federal de 1988, tende a disseminar a política do ódio à diversidade, afetando principalmente os direitos das mulheres, indígenas, negros, quilombolas, socialistas, comunistas, LGBTT, lideranças ambientais, representantes de movimentos sociais, etc. Torna-se urgente que a sociedade reivindique o cumprimento do PNE e das diretrizes que orientam os rumos a serem trilhados pela educação nacional. Tais diretrizes apontam para a necessidade de expansão da educação de qualidade, pela gestão democrática, pela promoção dos princípios do respeito aos direitos humanos, à diversidade e à sustentabilidade socioambiental e pela valorização dos profissionais da educação.

5 AS ESTRATÉGIAS NEOLIBERAIS PARA PRIVATIZAR A EDUCAÇÃO SUPERIOR

Com a Reforma Universitária de 1968, realizada em pleno regime militar, as instituições privadas de ensino superior passaram a ganhar crescentemente fatias do mercado e competir com o Estado pela oferta de vagas na educação superior (CARVALHO, 2017). Sob o governo de Fernando Henrique Cardoso, o estímulo aos empresários da educação superior foi atraente. Pelo Decreto 2207/1997, as instituições privadas passaram a ampliar a sua rede de usuários com a intervenção dos financiamentos estatais, passaram a gozar de favores fiscais e de acesso às verbas públicas. A nova ordem escolar que se almeja desenhar por meio do programa Future-se aponta para a repetição da tragédia chilena, ou seja, um modelo excludente que transforma a educação num recurso privado e a escola num locus instrumental do mercado. A escola considera educação bem essencialmente privado, o valor é acima de tudo econômico.” A proposta neoliberal tenta, por meio do Future-se, ampliar a esfera do mercado sobre a educação superior. Essa tentativa de alargamento, a despeito de ser fundamentada no discurso da modernidade, é desprovida de um diagnóstico do modelo vigente, mas alimentada pela obstinação de privatização das universidades públicas. Se à partida o programa Future-se não pode promover a imediata privatização, ao menos ele está a lançar as bases profundas para que as instituições federais de ensino superior se tornem privatizáveis.

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neoliberal, no dizer de Laval (2003, página. 17) “é a designação de certo modelo escolar que


Dentre as estratégias para tornar as universidades privatizáveis estão a promoção de quatro aspectos: a desinformação; a desautonomização; o desvirtuamento; e a cooptação. A desinformação como estratégia consiste em se confundir a sociedade, de modo a alimentar a ignorância desta sobre o papel relevante que as universidades públicas desempenham em relação a setores estratégicos do estado, do mercado e da sociedade. Sob esse aspecto, o Future-se dissimula e máscara as informações e propõe um novo modelo de educação, partindo da suposição de que as IFES são jejunas em matéria de políticas de internacionalização,

estudos

e

pesquisas

sobre

desenvolvimento

tecnológico

e

empreendedorismo. A desautonomizacão das instituições federais de ensino superior vem com a proposta de transferir a gestão dos serviços universitários para fundações de apoio ou Organizações Sociais. Tais instituições são modelos de empreendimentos para se retirar a autonomia universitária, sequestrar as IFES da esfera pública, e esvaziar o poder deliberativo das instâncias democráticas, tornando os colegiados das universidades meros adereços. O desvirtuamento consiste em estilhaçar a importância das universidades como locus da cultura geral, das práticas emancipatórias, do pluralismo e dos valores civilizacionais, reduzindo-as cada vez mais a instituições utilitaristas, monotemáticas e com atuação focada para a pauta de interesse imediato do mercado. O desvirtuamento atua na destruição real e simbólica dos ideais, dos saberes e das práticas que chancelam a igualdade de oportunidades, o pluralismo e a gestão democrática. O interesse neoliberal em desvirtuar toda a educação superior visa transformar a universidade em algo parecido como uma empresa privada, que atua segundo a lógica gerencial e utilitarista. Outra estratégia não menos importante é a cooptação de docentes, de políticos, de estudantes, de técnicos, de integrantes da sociedade e da mídia. A cooptação não decorre somente de uma empatia, mas geralmente envolve uma perspectiva individualista, monetarista

federais de ensino superior vão resultado em vantagens individuais, ainda que sob o aspecto coletivo traga prejuízo para a sociedade. Não por acaso, o secretário nacional de educação, ao anunciar o programa Future-se, foi enfático ao afirmar que era chegada a hora do professor ficar rico.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

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ou compensatória. Há sempre aquele que acredita que as transformações das instituições


Para finalizar as presentes reflexões, restam um apelo e uma indagação. O apelo consiste em se alertar para que nenhuma universidade e nenhum pesquisador subestimem o que está por trás das propostas de um governo ultraliberal e também não menosprezem a capacidade que essa equipe do Future-se tem de levar adiante a implementação de medidas que venham afetar drasticamente todo o sistema de educação superior. O tempo que se dispõe para o estudo e as sugestões ao projeto é curtíssimo. Salvo engano, são 5 (cinco) semanas para consulta popular, o que inviabiliza um tempo hábil para um debate mais aprofundado. Por isso mesmo, é preciso que haja um esforço para se ampliar esse debruço muito firme sobre cada ponto do projeto. Sem a intenção de reduzir-se a análise a uma crítica para desconstruir o Future-se, destaque-se a incisiva conduta do assessor do Ministério da Educação ao apresentar o programa. Ele o tempo todo colocou a urgência das medidas, sugerindo que nesse tempo todas universidades teriam sido negligentes e até incompetentes ao não enxergarem realidades tão óbvias e aspectos tão problemáticos de gestão acadêmica. Diante de tal postura surge uma questão: que momento é este no qual, em quase 200 anos de ensino superior no Brasil, ninguém da direita pensou antes num programa tão estratégico para as Instituições Federais de Ensino Superior – IFES como o Future-se? A indagação proposta vislumbra-se uma resposta plausível neste momento. A educação emancipadora é um processo de luta histórica que exige união, inteligência, engajamento e estratégia. A luta contra o desmonte da educação superior desafia neste momento a união dos trabalhadores da educação e o envolvimento da sociedade e dos movimentos sociais contra a mercantilização da educação, contra o obscurantismo e contra ofensiva de financeirização. É o momento de os trabalhadores deixarem a pauta defensivista ou meramente denuncista. É chegada a hora de a universidade questionar o modelo de desenvolvimento

de trabalhadores da educação superior intensifique a mobilização e rompa com a fragmentação que ainda perdura há mais de uma década. Não por acaso, em 2005, foi extinto o Fórum Nacional em defesa da educação pública. Para isso, é preciso que as entidades interessadas se unam em torno de pontos de convergência, por exemplo, a luta contra a Emenda Constitucional 95; a luta contra o fim da estabilidade; a luta contra o fim da autonomia universitária; etc. É preciso que essa pauta seja estratégica e capaz de inserir os partidos, a mídia e a sociedade, etc.

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econômico ultraliberal imposto com enorme sacrifício ao povo brasileiro. Urge que o coletivo


Nunca é tarde demais para a universidade abrir-se à educação popular e fazer aproximações que sejam capazes de atrair a sociedade para que esta saiba o que está por trás do Future-se. A universidade terá que ser capaz neste momento de traduzir para sua comunidade o que em termos de educação será capaz de evitar que o nosso projeto de civilização desemboque no caminho da barbárie. Os docentes, discentes e servidores precisam saber dizer a sociedade que somente com a autonomia universitária, as universidades terão a possibilidade de levar em conta o interesse público na hora de direcionar as suas pesquisas, os seus projetos de desenvolvimento de inovação tecnológica, a sua força de trabalho qualificada; etc. Enfim, somente ganhará apoio da sociedade aquela universidade que se recusar a ser subalterna, autoritária, burocrática, que se cala, que silencia diante dos seus problemas e das grandes questões nacionais. A sociedade encontrará um patamar civilizatório se a universidade for cada vez mais gratuita, pública, inclusiva, de qualidade e democrática.

REFERÊNCIAS

ANDERSON, Perry. Balanço do neoliberalismo. In: SADER, Emir; GENTILI, Pablo (orgs.) Pósneoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995, p. 09- 23.

CHAUÍ, Marilena. Escritos sobre a universidade. São Paulo: UNESP, 2001.

LAVAL, Christian. A escola não é uma empresa: o neoliberalismo em ataque ao ensino

MESZAROS, Istvan. Educação para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2005.

REIS, Luiz Fernando. Dívida pública, política econômica e o financiamento das universidades federais nos governos Lula e Dilma (2003-2014). In: Políticas de financiamento da educação superior num contexto de crise. CHAVES, Vera Lúcia Jacob et al (orgs). Campinas, SP: Mercado de Letras, 2017, p. 23-45.

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público. São Paulo: Boitempo, 2019.


FUTURE-SE: THE NEOLIBERAL FURY OVER PUBLIC AND FREE HIGHER EDUCATION

ABSTRACT The Bolsonaro government has presented a preliminary bill intended at implementing of the Future-se program, in order to allow IFES (federal higher education institutions) to raise funds in the market through partnerships with support foundations and OS (social organizations) and to strengthen their administrative and financial autonomy. This article portrays the aspects of the Future-se and explains the context in which it is presented, as well as explains how it is associated to the unfolding of the 2016 Coup and a part of a set of strategies aimed at the privatization of the higher education in Brazil

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Keywords: Future-se. Higher education. Privatizacion.

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THE CURRENT ENIGMA OF BRAZIL Henrique André Ramos Wellen1

ABSTRACT Originated from some questions of British academics (mainly from the University of Kent) about the Brazilian political reality, it was sought, based on historical and social elements, to analyse the presidential election of 2018. This text, which was presented in November 2018 in a seminar in Canterbury, has, in addition to the introduction and the final considerations, three parts: a brief history of the Brazilian formation, an analysis of the capitalist crisis and the previous governments, and an approach of the political manipulations carried out through social networks. Finally, the fascist leitmotiv of the Bolsonaro´s campaign was also analysed, problematizing its nuances in a dependent and underdeveloped country.

Financial capital. Media manipulation.

1 INTRODUCTION

1

Pós-doutor em Teoria Política pela University of Kent. Doutor em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Mestre em Gestão e Políticas Públicas na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Graduado em Administração de Empresas e em Administração Pública pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Professor de graduação e pós-graduação em Serviço Social e colaborador com a pós-graduação em Gestão Pública e Sociedade da UNIFAL.

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Keywords: Brazilian elections. Dependent capitalism. Fascism.


On October 28th of 2018, the Brazilian population voted to elect its new president. In the result, Jair Bolsonaro, the candidate of the Social Liberal Party had 55.13% of the votes (57.797.847) and Fernando Haddad, of the Workers´ Party, had 44.87% of the votes (47.040.906). The difference was more than 10 million votes. 2.14% voted blank (2.486.593), 7.43% of the votes were null (8.608.105) and 21.30% abstained to vote (31.371.704). It is important to note that in the first round, which took place on October 7th of 2018, Bolsonaro had already achieved a large number of votes. With 46.03% of the votes (49.276.990), he was shortly to be elected in advance. Bolsonaro's campaign was highlighted by three central points: by the use of social networks as a form of political manipulation; by the discursive centrality in the fight against corruption; by the dissemination of hate values and prejudices. On this last point, Bolsonaro made speeches against women, against black people and against homosexuals. He also made, with even more force, speeches against the Brazilian left people. He said that if these people do not subordinate themselves to his command, they will be arrested, expelled from Brazil, or exterminated. His words appeared in various places and echoed throughout the world. They came to different countries and cities. Thus, in addition to the Brazilian population, that also shocked many people around the world. Many people, including members of right-wing political organizations, said that all this was absurd. They defended that the election of Bolsonaro would be a problem not only for Brazil, but for the whole world. Moreover, much was said that it was fascism. Many have said that Bolsonaro represents a fascist policy. Is it really that? Does the Bolsonaro government announce itself as a fascist? But what is Fascism? Analysing the historical experiences, and especially the Italian case of Mussolini, the

a) The diffusion of prejudiced values, which present people and groups as superior to others. Whether against Jews, homosexuals, gypsies, communists, black people, these values come from a connection with fascism. b) The nationalism and the protectionism. The realization of internal economic investments and the creation of trade limits to imports, showing a national unity against external economic interests. For this, defences of national industrial and productive capital against international financial capital also took place; c) The link with unions and organizations of the national working class. The dissemination of a defence of national workers against international exploitation and against 70

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fascism presents itself from three main elements:


the occupation of work places by immigrants. Fascist propaganda uses nationalism as a solution to unemployment and thus manages to control working-class organizations. The first quality is clearly presented in Bolsonaro´s speech. But the other two appear rather confused. It is important to separate between a fascist candidate and a fascist power structure. In the Brazilian case, this situation is a bit more complicated. Due to the historical characteristics that mark the process of dependence and underdevelopment, the Brazilian case may even be more serious. To reflect this process, several elements are essential. Among these, we can highlight: a brief Brazilian history; the economic and political crisis and the impacts on the Workers´ Party government; and the political manipulation through social networks.

2 BRIEF BRAZILIAN HISTORY

According to the International Monetary Fund´s 2015 data, Brazil is the ninth largest economy in the world. Brazil has a Gross Domestic Product of US $ 1,772,589 billion (almost two trillion dollars). In the previous year, according to the United Nations, this value was US$ 2,346,523 billion and Brazil was in seventh place. Also according to this institution (UN), in 2017, Brazil was the sixth most populous country on the planet, with 207,660,929 inhabitants. In relation to the territorial extension, Brazil is the fifth largest in the world, with 8.515.767 km². However, the social data indicate that this reality is extremely inequitable. In the IDHAD (Human Development Index Adjusted to Inequality) of 2015, Brazil was in position number 76. But the worst economic data is in relation to the concentration of wealth.

of income in the world. This data analysis (2001-2015) indicates that almost 30% of all national income are in the hands of 1% of the population. The 10% richest have 55% of total Brazilian income. For the UN, the Brazilian inequality is also increased by tax-free on profits and dividends. In worldwide, only in Brazil and Estonia there is no tax on what shareholders receive from companies. In addition, Brazilian taxation is extremely contradictory. Financial gains are less taxed than labour income. This reality makes Brazil a tributary paradise for the super-rich.

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According to research by Thomas Piketty, Brazil is the country with the highest concentration


A simple calculation could indicate a very different situation. By dividing all national income by the Brazilian population and considering the cost of living in most Brazilian cities, everything would be quite different. The individual annual income would be nearly $ 12,000. And, taking a family of four people, the annual family income would be more than $ 46,000. The problem, then, is not the size of wealth, but its concentration. The violence in Brazil follows the size of the economic inequality. Brazil is the thirteenth country with the highest homicide rate in the world. Of the fifty most violent cities in the world, 17 are in Brazil. But this reality is not new in Brazil. Its historical roots are very old. The economic concentration in Brazil was based on violence. This process dates from the year 1500, with the Portuguese invasion of Brazil. Until then, the lands of this country were inhabited by hundreds of indigenous ethnic groups. These Indians were organized, for the most part, from the so-called primitive communism. The land was very fertile and abundant of food, compensating the little productive development. With the arrival of the Portuguese invaders, a process of colonization began. But, in distinction to the colonization of the northern part of the American continent, which was for settlement, Brazil experienced only exploitation. This was known as exploration colonization. The general interest of the Portuguese State was simply to steal the riches of the Brazilian lands and to negotiate these with companies and States of Europe. To facilitate these activities, the Portuguese aimed to use the work of the Brazilian Indians. They tried to enslave and train the Indians. Through violence, the sacrifice to work occurred. Through force, they imposed the Catholic religion as a sacrifice. All Indians should obey the leaders and gods of the white invaders. But there was resistance. Knowing the places where they were born and aware of their possession, the Brazilian Indians tried, and are still

were almost all killed by the white invaders. Unable to use the work of the Indians, the Portuguese invaders tried to find other sources of labour. In 1452, Pope Nicholas V predicted that slavery was a design of God against the infidels. But this was not restricted to the kingdom of Portugal. The entire European continent was also erected by black slave hands. The mercantilist economic phase also developed from slavery. In fact, modern slavery differs, in some important qualities, from the old. The main variation is that the slave also served as a commodity in the process of precapitalist accumulation. Not just as a labour, but the slave himself had a value of exchange.

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trying, to resist. They had an initial fate less brutal than the North America´s Indians, which


In the Brazilian case, slaves were used in both directions: both to enrich the slave trader, and to expand the wealth of the exploiter of his labour. To the form of agricultural production - denominated of plantation - were also added other elements. Alongside the slave labour, was the big land property, the monoculture and the commodity exportation. The wealth produced by the slaves in Brazil was transported to Europe, to be negotiated as the other commodities. The colonizing state transferred the control of those big lands to the Portuguese lords, where slaves produced essentially the same agricultural culture. The biggest examples were sugar and coffee. All these commodities came from the sweat and the blood of the African people, who were enslaved in Brazilian lands. In the beginning, when the most brutal was this exploration, more the sugar and the coffee became accessible in world and more wealth was accumulated by its explorers. Slavery in Brazil was so widely used by Europeans that this was reflected even in literature. An example is the classic English book by Daniel de Foe entitled Robinson Crusoe's Adventures. In this work, the protagonist also makes use of the exploitation of the slaves in Brazil to accumulate riches. Alongside Protestantism and liberal asceticism, capitalist synthesis was made by using slavery. But, in this time, slavery was essentially in the colonies, outside Europe. The use of slavery in Brazil served to the interests of European countries. When slavery became an obstacle to the accumulation of wealth of some of these countries, it began to be fought. With the industrial revolution, England needed machines, workers, raw materials and, as well, consumers. It also needed a formal equality relationship that would turn everyone into buyers and sellers of commodities. Slavery was an obstacle to that. Thus was created the Slave Trade Suppression Act or, as it became known in Brazil,

British navy had the right to arrest or destroy any slave ship that was going to Brazil. This law represented a fight between European countries. But it represented more a dispute between dominant classes. With the end of the slave trade approaching, the use of slave labour tended to end. Thus, in Brazil, landlords and slave traders would lose their economic power. However, to try to avoid this loss of power, some agreements were made. Since 1822, Brazil had become independent of Portugal. But the dominant classes were still practically the same. And agricultural production was still based on planting and voltage to supply European markets.

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the Bill Aberdeen. Approved by the British Parliament in 1845, this law indicated that the


The abolition of slavery in Brazil dates from 1888. But, before that, two laws were important: the law of the free womb of 1871 and the law of the sexagenarians of 1885. The first considered free all the children of slaves born in Brazil. The second transmitted freedom to slaves over sixty. Therefore children and old people were free from slavery. However, one can ask a simple question: what are the costs that these laws have generated for the slave owners? Has that diminished their economic power? The useful life of slaves in Brazil ranged from 10 to 12 years. Thus, a slave over sixty years old no longer had the strength and ability to work. Similarly, a new-born child would need some years to be able to work. The abolition of slavery did not represent a great defeat for the dominant classes in Brazil. They knew how to reduce that impact. Another group would also be affected by abolition of slavery. The slave traders had much to lose. But, in 1850, the so-called Land Law was established in Brazil. Before that law, the Brazilian lands were owned by the State and only their possession was granted. But from that law, the land became commodities and could be sold and bought. A portion of the slave traders took advantage and bought Brazilian land. From merchants they became masters of lands. The big lands properties increased and made impossible the agrarian reform. In Brazil, the most conservative groups have not been destroyed, but have remained stronger. And, along with these dominant classes, the prejudices against the population were also maintained. Until today, the worker in Brazil has a label and has a colour. The Brazilian economic elite have aversion to the workers and have hate of the black population. But this reality is not only an internal result of Brazilian history. This is also maintained because it serves to international economic interests. Unlike revolutionary processes that led to economic transformations, in Brazil an agreement was reached among the dominant classes. Unlike in the USA and France, where

This agreement was essentially made through the State. Thus, a movement took place from up, far from the population. In fact, the various popular revolts that occurred in Brazil were hardly repressed by the State. The absence of democracy is a historical mark of the Brazilian State. And corruption develops through the absence of democracy. To understand the Brazilian economic formation, the German case is better than the French case. In place of the Bourgeois Revolution, Brazil approached to a Prussian Way. But that happened with several differences for the German case. The Brazilian case, in addition to be later, it was more dependent. Germany was unified in 1871 and its capitalist economy

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there was a war between feudal and bourgeois forces, an agreement was reached in Brazil.


began to develop rapidly. In Brazil, it was only after 1930 that one can spoke of capitalist hegemony. Until then, the economic and political power was with the rural oligarchies. The twentieth-century capitalism was no longer the same as its birth. Initially, capitalism was marked by competition between companies. But with this development, monopolies were born. With the monopolies, financial capital was born. With financial capital, the new imperialism was born. When Brazil reconfigured itself economically, the central countries were already imperialists. The capitalist enterprises had already spread all over the world. It was impossible to build large independent capitalist enterprises in Brazil. Unlike Germany, which built its capitalism with violence and nationalism, Brazil experienced almost only violence. In the agreement between the landlords and the Brazilian industrial capitalists, appeared a new leading actor: the international financial capitalist. Within the repressive and corrupt state and without democracy, another agreement was made. But this time the new and old dominant classes were subordinated to the interests of transnational corporations. The corruption practices were natural to this agreement. The situation of the Brazilian population had to be subordinated to the interests of these three social classes. The wealth produced in Brazil, derived from economic exploitation, needed to be divided into three parts. The rural worker was exploited by the rural oligarchy. The industrial worker was exploited by the industrial capitalist. And financial capital received its economic rate from everyone, especially through profits and dividends. To guarantee this process, the Brazilian State had to stimulate the economy and did it through creating debts. Brazilian public debt is also a result of the exploitation of Brazilian workers. As there were more exploiting classes, the amount explored needed to increase. This is called super-exploitation. It occurred in Brazil through the decrease in the value of the

workers´ wages and the terrible working conditions. In addition, with worse working conditions, there is a greater tendency to social revolts. The workers organized and protested. However, as the revolt increased, the repression increased too. And the state was the central element for that. It served both as a meeting room for the agreements of the dominant classes and as a repressive force against the workers. The absence of democracy in Brazil is not a cultural effect. It is a direct determination of economic exploitation and historical repression of the state. And always one speaks of lack of democracy, one can speak of corruption. The old practices of personal favours were known as patrimonialism. This patrimonialism, instead of 75

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labour power and the increase in profits. The major sources for that are the reduction of


having been destroyed, was reconfigured. One could say that Brazil was ruled by a bourgeois autocracy. It is a form addicted by practices of personal favour but used for the development of the concentration of riches. Capitalism in Brazil made great use of state corruption to develop. The State has always responded with repression to the minimum social and democratic advances. This was the example of the coup d´état of 1964 that existed until 1985. The attempt of social advances through reforms was destroyed by the bourgeois and military dictatorship. US imperialism joined with the dominant Brazilian classes and aborted any possibility of democratic advancement in Brazil. Using the lie of a communist threat, this bourgeois and military organization killed and tortured several people. Several of the Brazilian torturers were trained directly by US government officials. One of the most famous torturers was Colonel Brilhante Ustra. Among other things, he was famous for participating in torture of children and women. There are several reports that he forced both children to witness the torture of their mothers, when were introduced mouse into women's vaginas. It was Colonel Ustra who personally tortured the President Dilma Roussef. It is this torturer that Bolsonaro likes to praise. His most famous public tribute occurred when Bolsonaro said his vote for the impeachment of Dilma. He said “by the memory of Colonel Carlos Alberto Brilhante Ustra, the terror of Dilma Roussef”2 and voted for her impeachment.

3 THE CRISIS AND THE WORKERS´ PARTY GOVERNMENT

The Workers´ Party was founded in 1980. At that time, Brazil was still under a

countries. Several social organizations were forbidden. But the acts of violence and the state repression declined in the late 1970s and there was a small democratic opening. The Workers´ Party was founded by three main groups: workers and unions; religious groups linked to the Liberation Theology; intellectuals and artists of the left wing. Among these, their greatest strength came from the trade union movement. During the Brazilian dictatorship, unions were forbidden and virtually destroyed. Beginning in the 1970s,

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PLENÁRIO - sessão deliberativa extraordinária - 17/04/2016. Brasília, DF: TV Câmara, 2016. Available in: <https://www.camara.leg.br/evento-legislativo/43397?video=1460937304907>. Accessed on: 22 oct. 2019.

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military-bourgeois dictatorship. Many political leaders were missing or exiled in other


some other union experiences began to emerge. They built a position on the margins of the state and with a negotiating propose with the capitalists. On that time, big strikes began to be organized and a great leader began to stand out: Luís Inácio Lula da Silva. Lula became famous for two main qualities: his great capacity of communication that reaches the simplest people, and his belief in the idea of negotiation between the parties to reach an agreement. Several advances in the conditions of the workers were resulted through their actions. On the other hand, from the moment of its origin, some criticisms were made to the Workers´ Party and its form of social struggle. The main criticism was its instrumental character. Often, in the struggle through negotiation, the strategy and horizon of the organization were abstracted. This criticism was also added, both internally and externally, by the absence of a deeper analysis of the Brazilian reality. However, the Workers´ Party, since the 1980s, has begun to stand out as the most important political force of the Brazilian left. In Brazil, after the dictatorship, the first presidential election occurred in 1989. Several parties and candidates participated in this dispute. Many political leaders had returned from exile and many organizations of the left were reorganizing. Lula managed to reach the second round of these elections and represented many hopes of social change. But a great economic and media investment made this impossible. Fernando Collor de Mello, a littleknown candidate, ended up being elected. For the dominant classes, a right-wing stranger would be better than a candidate known for his relations with the left. Collor´s government lasted less than two years. Several allegations of corruption were announced, and popular pressure came on. He ended up undergoing an impeachment process. Itamar Franco, the vice-president, took his place. He made a liberal government, with emphasis on the stabilization of the Brazilian currency. The

greater development of financial capital in Brazil. For two more consecutive elections, Lula tried again the dispute for president in Brazil. But, both in 1994 and 1998, Lula lost in the first round to Fernando Henrique Cardoso. Cardoso had been one of the main actors for implementing the Plano Real. He was also a world-famous university professor. His academic nickname was the prince of sociologists. As his publications showed, he had a vast knowledge of sociological and Marxist thought, and especially of dependency theory. He has published several analyses of the historical roots of dependence and underdevelopment of the Brazilian economy.

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so-called Plano Real (Real Plan) both reduced the high rates of inflation and allowed the


However, in his governmental practices, Cardoso did exactly what he criticized in his theoretical analysis. He was a critical theorist of Brazilian subordination to international financial capital. In his government, he increased the dependent situation of Brazil through the adoption of the neoliberal model. The contradiction between his governmental practice and his theoretical analysis was so great that Cardoso said to rip everything he had written. The privatization practices made by Cardoso temporarily stimulated the Brazilian economy. But, in general, it was a direct transfer of public property to private companies, especially for international ones. The most famous case was the Vale do Rio Doce, the world´s largest iron ore miner. This company was privatized for R$ 3.3 billion. It was an extremely small value. Only the natural reserves of this company had a value of R$ 100 billion. This privatization occurred without any consultation with the population. Its buyers were members of international financial capital networks. As in colonial times, the privatization of the Vale do Rio Doce was a clear example of the exploitation of Brazilian wealth by international companies. Several denunciations were presented on this process, including the practices of corruption. But the Brazilian media and the judiciary did not give much importance to it. But even with these economic resources, Cardoso´s government has experienced several crises. At the end of his government, the majority of the Brazilian population rejected his president and wished for social changes. In the presidential election of 2002, Lula faced Jose Serra, who was the main economic representative of the Cardoso government. The elections were for the second round and Lula, after three defeats, was victorious. Lula had a great popular support because it represented an alternative of social change. On the other hand, Lula also had a decisive

industrial capital. In addition, a document became quite famous in Brazil. During a meeting to present the Workers´ Party Political Program, Lula read the so-called letter to the Brazilian people. Unlike its title, the public target of this document was the representatives of international financial capital. It was an attempt to calm and receive support from these people. Lula made a defence of economic stability and a promise to keep the power of financial capital in Brazil. Since the beginning of his government, he tried a realization of a social pact. He tried an agreement among social classes in Brazil to develop the economy. The two most extreme economic poles would be the manifestation of this agreement: the poorest and the richest 78

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support of the capitalists. Its vice president, José Alencar, was a representative of Brazilian


people. For the poorest, the government would expand social assistance policies. For the richer, the government would give more space for financial capital. Economically, in the first moment, this deal worked well. Two examples prove this. In the area of housing, a program called Minha Casa, Minha Vida (my house, my life) was created. The government subsidized and gave credit to the poorest people to buy houses. These houses were built by large capitalist companies, which also expanded the financial speculation. In this cycle, the government gave subsidy and credit, the poor people bought the house, and the capitalists accumulated a lot of profit. In the area of university education, a policy was formed with three programs: Reuni, Prouni and Fies. Fies, which was created in 1999, but had great impetus in the Lula administration, gave credit for students to pay their costs at the private universities. Reuni increased vacancies in Brazilian public universities, where education is free. Prouni, by means of tax-free, transformed vacancies not used of private universities for public uses. In both cases, the government made investments in the economy, either through subsidies or through tax-free. In both cases, some poor families had access to new goods. Some of these families used government credits and got into debt. In both cases, the capitalists made a lot of money. Moreover, as Lula himself liked to say, financial capital had never made so much money in Brazil. And, for this, the Brazilian State has become more indebted. That increased when Brazil prepared to hold the Football World Cup and the Olympics Games. The government invested a lot of money on these. Many people were employed. Much profit has been accumulated by international companies. Too much money has been received through corruption. However, the social pact seemed to work well. The poorest families had finally

economic part, the so-called liberal tripod was maintained: inflation targets, floating exchange rate and primary surplus to pay interest on debt. Almost half of the entire budget of the Brazilian State is used to the payment of such interest. All of this was fundamental to financial capital. On the other side, there were assistance policies and consumer incentives. This served the needs of the population, especially the poorer people. So, even with some reports of corruption, the prestige of the government was very high. The first major allegation of corruption occurred in 2005. An allowance of about R$ 150,000 was paid for deputies to vote in favour of the government. The most important vote was for the pension reform. According to denunciations, members of the government bought 79

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achieved a better life. International capitalist firms seemed satisfied with their profits. In the


votes of deputies to destroy rights of the Brazilian workers. JosÊ Dirceu, who was the most important minister of the Lula government and a historical person of the Workers´ Party, was denounced as the organizer of this corruption. The media have used this corruption case to criticize the government. It also took advantage of this to suppose links of corruption with the president. However, despite this, Lula had a lot of social support. At that moment, the image of corruption related to the Workers´ Party did not reach him. He was re-elected in 2006 and maintained a great popularity. At the end of his second term in December 2010, Lula had the highest popular approval in Brazilian history. It was approved by about 90% of the population. At that time, the capitalist crisis of 2007/2008 did not have large impacts in Brazil. In the US, this crisis led to bankruptcy of large financial companies, like the Lehman Brothers. But Brazil seemed safe in economic development. The government stimulated and subsidized consumption. The population bought their commodities. The capitalists made profits. The idea of a democracy based on commodity seemed work well. In 2010, as Lula had already been re-elected, he could no longer run. But with such great prestige, he had the strength to nominate a favourite candidate for the upcoming elections. He chose Dilma Rousseff, who had been minister of his government. Rousseff was considered a technical staff and highly praised for her character and her discipline. On the other hand, even within his party, this choice was criticized for her lack of political capacity. Quite different was the case of her vice candidate. Michel Temer was famous for his political articulations, in which he used various means to achieve success. He was also linked to his party's more conservative wing (PMDB) and to international capitalist interests. In the second round of the 2010 elections, Dilma Rousseff was elected. In 2011, she became the first woman to govern Brazil. But, from the beginning of her government, the

policies. On the economic side, she privileged the capitalists. On the social side, she tried improvements for the poorest population. However, the impact of the capitalist crisis in Brazil got deep. The credit policies implemented succeeded in postponing the impacts of the 2007 crisis. But this postponement also increased the problem. Several people became indebted. As some rights had become commodities, it was also more difficult to access them. The money invested in the Football World Cup and in the Olympics Games increased the debt of the Brazilian state. Many capitalists had increased these government costs to make more money through corruption. 80

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situation began to get worse. She continued to advance with the previous economic and social


Even giving more space to conservative groups, the pressure on Rousseff did not decreased. And the victory in the second round of the 2014 election served to further expand the attacks on her. The small difference in votes showed that a social change was needed. However, with more pressure from the right wing, the government transferred more political power. Since 2015, Brazilian economic policies have been explicitly controlled by neoliberal interests. Beside the economic crisis, corruption accusations also have increased. The media echoed the various allegations of corruption. But that did not happen in general. There was a selection of both the media and the judgment of corruption cases. Corruption involved several political parties. But the media tended to show only the cases of Workers´ Party corruption. In this struggle, many tried to link Dilma Rousseff to these practices of corruption. They did not succeed. Rousseff have participated democratically in all rites and judgments. But some subterfuges were used to create the process of impeachment. This became known as fiscal pedals. This is a Brazilian historical practice. The union budget could be used differently from what was approved, since the Federal Senate approved those changes. But that year, the Senate reproved the public accounts and allowed Rousseff to be indicted for corruption. Temer, the vice president, joined with several corrupt politicians and managed to make the impeachment move forward. The media also created a lot of pressure. On April 17th of 2014, the impeachment was voted in the House of Deputies. 367 deputies voted in favour of impeachment and 137 against. The decision was not final, but it indicated the result to be expected. When they voted, several deputies made speeches and honours. It was at that vote

4 POLITICAL MANIPULATION AND SOCIAL NETWORKS

The impacts of the capitalist economic crisis became stronger. This got worse in the Rousseff government. The unemployment rate had fallen during Lula´s governments. But these data began to get worse during the Rousseff government. The number of unemployed has increased dramatically over the past few years. At the beginning of 2018, the unemployment rate of some Brazilian cities reached 26%. The policies of credit also have putted several families with debt. 81

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that Bolsonaro paid his tribute to the colonel who had tortured Dilma Rousseff.


Several popular critiques demonstrations began to emerge. Initially these demonstrations were against the increase in the price of some commodities, such as bus tickets. Then they began to turn against corruption. The most immediate target was money used in the Football World Cup and the Olympics Games. The media tried to transform these in a moralist criticism. Instead of targeting social change, it was created a sense that all political parties were corrupt. The social view was that there was no alternative within the political system. On the other hand, the organizers of the Football World Cup and the Olympics Games have made international pressures on the Brazilian government. They demanded that these events be held in a peaceful manner. In 2013, the Brazilian government complied with these requests and created the law 12,850. This law seeks to combat criminal organizations that do acts of terrorism. In Brazil, the last acts of terrorism occurred during the military dictatorship. And, as was recently proven, it was military and government officials who began these acts. With the end of the dictatorship, the terrorist actions were over. Unlike the US or European countries, Brazil is not a target for international terrorist actions. Law 12,850 was then used against groups and social movements that protested against the Brazilian government. In addition, during the Workers´ Party government, important trade unions and social movements were passive. In order to not criticize the government, they have reduced their demonstrations on the streets of Brazil. Only more independent and critical organizations continued to manifest on the streets. But the increase of police repression has also diminished the action of these left organizations. Even so, several demonstrations took place on Brazilian streets. Millions of people went to the streets to protest. These people had different goals. From anarchist groups to

right-wing groups have tried to use these manifestations to create a particular meaning for them. To do so, these groups have used a lot of the social networks. The Brazilian media was also important to put an instrumental meaning to these manifestations. Initially, they tried to criminalize the most radical groups. Then they changed their strategy and started supporting the demonstrations. But the support was only for criticism the corruption. Several politicians have been reported as being responsible for these problems. The most famous was the governor of Rio de Janeiro state – SÊrgio Cabral - who today is arrested for corruption.

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fascist organizations. From unemployed workers to people from the Brazilian elite. Some


At that time, the right-wing groups were organizing, but they did not have much political force. However they had an open path ahead. In the class struggle, there are no empty spaces. If some political force withdraws from some space, the other political force will seek to occupy it. Because of these pressures, the government´s tactic was to pacify the population. With this, large syndicates and social movements have withdrawn in their manifestations and social actions. They had also diminished their role of critical social formation. In common sense, the capitalist economic crisis has been transformed into a crisis of corruption. The liberal media hid that social problems had their causes in inequality and economic concentration. Unemployment and violence appeared to be caused only by corruption. And even if that corruption was practiced by several politicians and parties, the media gave much more attention to the Workers´ Party. And within this party, Lula was at the centre of the accusations. The trials of these cases became known as Lava Jato (car wash). Sérgio Moro, the judge responsible for the trial, became quite famous. At the trial, Lula was charged personally with some corruption crimes. The main ones were the illegal receipt of an apartment and a renovation on his farm. The first case was tried in 2017 and Lula was sentenced to almost ten years in prison. He was the first Brazilian president to be arrested. It is very difficult to analyse the merits of Lula´s trial. There are some signs of personal favour. But the evidences are quite questionable. For a person to be arrested, his crime must be proved. And for this happen, his judgment needs to be impartial. In the case of Lula, there are several doubts about the impartiality of his judgment. These doubts expanded recently, when Moro accepted the invitation of Bolsonaro to be his minister of justice. He will work for a person who was elected using Lula´s judicial conviction. The biggest problem, then, is not whether Lula did a crime or not. The central

Judge Moro´s strategy to keep the trial was to use the media to create an appeal in society. At various times he passed on information to the press, which was daily published. The Brazilian and international media showed the stages of his trial. The feeling of anger was also stimulated. With that, the most part of the Brazilian population did not think about justice, but only about revenge. The hate against Lula and the Workers´ Party grew a lot from these facts. The Brazilian election of 2018 was marked by hate. This was efficiently used by the Bolsonaro´s team. A few years earlier, it was very difficult to imagine Bolsonaro's strength growing so much. His popular support was not great. His fascist words received more 83

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question is whether he had a correct judgment.


criticism than support. Most people did not seem to agree with their hate of women, black people, homosexuals and communists. Bolsonaro was the first to announce his candidacy. His team began their political campaign long time before the other parties and candidates. Bolsonaro travelled in and out of Brazil to seek alliances. In one of those trips he had a meeting with Steven Benon. Benon became world famous for his fascist ideas and for being strategist of the campaign of Trump in the US. During the Brazilian election, Benon declared his support for Bolsonaro. There is also evidence that he has contributed to the strategic political manipulation through social networks. But, at that moment, few politicians gave him a public support. On the other hand, Bolsonaro began to appear in the media and in social networks. He focused his communication on facebook and whatsapp groups. He also has appeared on several television shows. His prejudiced words began to stand out. Initially they were criticized. Then they started to be repeated and their sense was changed through the actions of their staff. It was created the idea that he spoke these aggressive things because he was honest and had nothing to hide. The idea was that he spoke what he thought and he was a truly person. Even having been a deputy for almost thirty years, he was presented as an outside of politics. Bolsonaro was transformed into a virtual phenomenon. Much of what he received from criticism was used in an opposite way in the social networks. His team tried to turn their ignorance into a positive quality. This worked well on the internet. In the communication in these spaces it is always difficult to develop a critical analysis. In social networks, the practice of repeating information is much stronger than information analysis. But that would be more difficult to do it in interviews and debates on television. In these spaces, he would need to develop his thinking better and present more

Bolsonaro has participated in some of these events at the beginning of his campaign. His performance was not positive. His limitations could not be hidden by the manipulation of the internet. So, he began to refuse to participate of the television debates. At that time, he suffered a knife attack and he was almost killed. One person stabbed him in the street during a demonstration of political support. Bolsonaro had to stay in the hospital for several days. The attack increased his popularity. He got politically stronger. His rejection rates decreased a little. Before the attack, he was a favourite to win the first round of the election. But in the second round, he would be defeated by all the other candidates, even by the Workers´ Party candidate. 84

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concrete arguments.


Bolsonaro´s electoral campaign grew more and expanded its force through the internet. And he also did this in an illegal way, as denounced by the Brazilian press. Several capitalists who supported him paid for companies to send messages by whatsapp. In the US, this practice had already occurred through facebook. In Brazil, this happened more by whatsapp. Some Bolsonaro´s supporters have paid for companies to use the data sources of these social networks and send messages against the Workers´ Party. Fernando Haddad, who was its candidate, was also the target of these messages. Millions of messages have been sent. These messages, for the most part, were terrible lies. Some said that the Workers´ Party government was teaching children to engage in homosexual relationships at school. Others said that Haddad had raped a 12-year-old girl. These fakenews were disseminated in a professional and unscrupulous manner. Companies that work with this indicate the profile of people who may be most influenced. They have a complex information system of the people. They know the tendencies of behaviour and consumption. People more conducive to feelings of hate and irrationalism were more easily influenced by the right-wing. The efficiency of political manipulation is based on emotional manipulation. But other ingredients contributed to the increase of Bolsonaro. It was not just the hate. It was also prejudice and ignorance. Historical roots demonstrate the behaviour of the Brazilian elite. The prejudices of these people are unified around social class. They are against Brazilian workers, poor and black people. They are also against any form of equality between people. In fact, the Brazilian elite prefer to live in Miami and explore the Brazilians people. Bolsonaro also had important religious support. Most of the Brazilian population still

very big. These churches have a great capacity to influence people. Some also reproduce various prejudices, especially against homosexuals. Some important pastors of these Protestant churches supported Bolsonaro a lot. Some of them gave him television spaces. Others gave him his loyal people. But the most important support came from financial capital. Initially, the candidate preferred by the majority of this group was Geraldo Alckmin, of the Brazilian Social Democrat Party. But Alckmin failed to increase his votes. His chances of going to the second round finished soon. The agents of the finance capital then decided to negotiate with

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follows the Catholic religion. However, the increase of neo-Pentecostal churches has been


Bolsonaro. In answer, Bolsonaro showed Paulo Guedes, an agent of the interests of that group, to control the economy policies. Thus, financial capital indices have advanced. With the expectation of Bolsonaro´s victory in the first round, the Brazilian currency had a record appreciation. Between September 13rd and October 09th of 2018 (two days after the first round vote), the Brazilian currency appreciated more than 11% against the Dollar and the Pound, and more than 13% against the Euro. During this period, the Bovespa shares (the main index of shares traded in Brazil) increased more than 15%. These data demonstrated who the international capitalists supported in the Brazilian elections.

5 FINAL CONSIDERATIONS

If Bolsonaro promised to give the control of economic policies to financial capital, what will be his main function in the Brazilian government? The answer of this question indicates how complicated is the Brazilian situation. The problem in Brazil is not to have a fascist system. That is almost impossible, because of the dependent economic structure. For Brazil to become fascist, it would take a nationalist struggle against international financial capital. The Brazilian reality is worse than that. By giving its economic policy to financial capital, Brazil will expand its international dependence. New conditions will also be created to increase the profit of the internal and external dominant classes. The agreement between the dominant classes will take a new stage. The State will again be used to increase that. Workers´ conditions will be worse in Brazil. The few social rights will be targets of destruction. The exploitations of national wealth by foreign

But that's not enough. Bolsonaro will not create a fascist system in Brazil. But Bolsonaro represents fascist values. As he promised, Brazilian repression will increase. His first target will be organizations, people and ideas of the left-wing. He aims to destroy the critical thought at schools and universities. He intends to arrest, exile and kill people who are critical of his government. This appears very clearly in their political projects. He will use violence as intimidation and destruction. And this violence will not be made only through institutional entities such as the police force and the army. This will also occur by paramilitary groups. In fact, this is already happening in Brazil. Several cases have

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invaders will increase.


already occurred. A lot of people have already been beaten, raped and killed by Bolsonaro supporters. However, the story is not linear. History is dialectical. There is no history without contradictions and without movement. And this is also true for the Brazilian case. Future years will be terrible. But moments of great resistance can also appear.

O ATUAL ENIGMA BRASILEIRO

RESUMO Originado

de

questionamentos

de

acadêmicos

ingleses

(principalmente da University of Kent) sobre a realidade política brasileira, buscou-se, com base em elementos históricos e sociais, analisar a eleição presidencial de 2018. Esse texto, que foi apresentado em novembro de 2018 num seminário em Canterbury, possui, além da introdução e das considerações finais, três partes: um breve histórico da formação brasileira, uma análise da crise capitalista e dos governos anteriores, e uma abordagem das manipulações políticas realizadas através de redes sociais. Por fim, também se abordou o leitmotiv fascista da campanha de Bolsonaro, refletindo as suas nuances num país dependente e subdesenvolvido. Palavras-chave: Eleições brasileiras. Capital financeiro. Capitalismo

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dependente. Fascismo. Manipulação midiática.

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DIREITO

À

AUTODETERMINAÇÃO

DA

IDENTIDADE

DE

GÊNERO:

REFLEXÕES EM TORNO DA LEI Nº. 38/2018, DE 07 DE AGOSTO Ana Mafalda Castanheira Neves de Miranda Barbosa1

RESUMO O estudo que se apresenta pretende refletir sobre a existência de um pretenso direito à autodeterminação da identidade de gênero. Recorrendo à noção de direito subjetivo e ao fundamento éticoaxiológico do mesmo, concluiremos que este é um não-direito, tanto quanto surge revestido de um pendor ideológico que contraria a intencionalidade e a matriz da juridicidade. Além disso, o referido direito não tem em consideração direitos fundamentais de terceiros. Palavras-chave: Direito à identidade de gênero. Direito à autodeterminação da identidade de gênero. Direito à identidade

1 INTRODUÇÃO

A Lei nº. 38/2018, de 07 de agosto, vem estabelecer o direito à autodeterminação da identidade de gênero, e expressão de gênero, e o direito à proteção das características sexuais de cada pessoa, nos termos do artigo 1º do citado diploma. Nas páginas que se seguem, pretendemos refletir sobre alguns dos tópicos mais controversos da nossa legislação. 1

Professora Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

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sexual. Ideologia de gênero.


Designadamente, tentaremos perceber em que medida o direito que se pretende consagrar existe efetivamente. É que os direitos subjetivos que sejam direitos de personalidade não podem resultar de uma construção artificiosa e arbitrária de um legislador que, transformando a lei num instrumento de uma engenharia social, procure através dela a imposição de uma ideologia. Pelo contrário, eles hão de ser expressão do entendimento antropológico e da valoração axiológico do ser humano, que não está na dependência de uma qualquer vontade arbitrária. Assim, haveremos de questionar em que medida o direito à autodeterminação da identidade de gênero é, efetivamente, um direito no sentido próprio do termo. Para tanto, é relevante tecer algumas considerações acerca da ideologia que parece estar subjacente à nova disciplina normativa.

2 O DIREITO À AUTODETERMINAÇAÕ DA IDENTIDADE DO GÊNERO NA LEI Nº 38/2018

A Lei nº. 38/2018 consagra duas dimensões do direito à identidade do gênero: uma dimensão negativa e uma dimensão positiva. A dimensão negativa traduz-se na proibição de discriminação. Nos termos do artigo 2º, nº. 1, do citado diploma:

Todas as pessoas são livres e iguais em dignidade e direitos, sendo proibida qualquer discriminação, direta ou indireta, em função do exercício do direito à identidade de gênero e expressão de gênero e do direito à proteção das características sexuais.

Como reforço da dimensão negativa, o diploma prevê medidas programáticas que,

discriminação em função da identidade de gênero, expressão de gênero e das características sexuais2. A dimensão positiva diz respeito ao chamado direito à autodeterminação da identidade do gênero, que é, nos termos do nº. 1 do artigo 3º: “assegurado, designadamente, mediante o livre desenvolvimento da respetiva personalidade de acordo com a sua identidade e expressão de gênero”. 2

Estas medidas destinadas aos diversos operadores de ensino são, porém, mais amplas, visando não só prevenir a discriminação (e portanto o reforço da vertente negativa do direito à identidade de género), como também o efetivo e positivo direito à autodeterminação do género. Cf. artigo 12º/1 al. b), c) e d).

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destinando-se aos diversos graus de ensino, garantam a prevenção e o combate contra a


Este direito à autodeterminação da identidade do gênero envolve inúmeros direitos que se reconduzem ao seu núcleo predicativo. O artigo 3º, nº. 2, da Lei nº. 38/2018, estabelece, neste âmbito, que se, para um determinado ato ou procedimento, se tornar

Necessário indicar dados de um documento de identificação que não corresponda à identidade de gênero de uma pessoa, esta ou os seus representantes legais podem solicitar que essa indicação passe a ser realizada mediante a inscrição das iniciais do nome próprio que consta no documento de identificação, precedido do nome próprio adotado face à identidade de gênero manifestada, seguido do apelido completo e do número do documento de identificação.

De acordo com a valoração da lei, a identidade do sujeito deixa de ser determinada em função do seu sexo cromossomático e anatómico para passar a ser definida em torno da noção de gênero, que com aquele não tem de coincidir. Daí que, o que nos permite afirmar que o diploma em análise surge eivado pela ideologia do gênero que haveremos de caracterizar, se o sujeito manifestar uma identidade de gênero que não corresponda aos seus dados de identificação, apenas é obrigado a fornecer as iniciais do nome próprio que conste do documento de identificação, precedendo-lhes o nome próprio adotado em face da identidade de gênero adotada. Vai-se, porém, mais longe e admite-se, nos termos do artigo 6º e seguintes da Lei nº. 38/2018, o reconhecimento judicial da identidade de gênero. Nos termos do artigo 7º, nº. 1, a mudança da menção do sexo no registo civil e a consequente alteração de nome próprio das pessoas pode ser requerida, no registo civil, por cidadãos de nacionalidade portuguesa, que sejam maiores de idade e não estejam sujeitos a uma medida de acompanhamento limitativa nascença, na formulação da lei3. Os menores entre os 16 e os 18 anos podem requerer o procedimento de mudança da menção do sexo e a consequente alteração do nome próprio, no registo civil, através dos seus representantes legais. Porém, o menor deve ser ouvido presencialmente pelo conservador do registo, de modo a apurar-se se o seu consentimento é expresso, livre e esclarecido, e exigese, ainda, o relatório de um médico inscrito na Ordem dos Médicos ou de um psicólogo

3

A lei fala em interditos e inabilitados por anomalia psíquica. Contudo, a lei n.º49/2018, de 14 de agosto, revogou o regime da interdição e da inabilitação, substituindo-os pelo regime do acompanhamento de maiores, razão pela qual adaptámos, em texto, a solução legal ao novo quadro normativo.

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da esfera pessoal, quando a identidade de gênero não corresponda ao sexo atribuído à


inscrito na Ordem dos Psicólogos, que ateste a sua capacidade de decisão e a vontade informada4. Tratando-se de uma pessoa intersexo (hermafrodita), o procedimento só pode ter lugar a partir do momento em que se manifeste a sua identidade do gênero. Quanto a estes, dispõe também o artigo 5º da Lei nº. 38/2018 que:

Salvo em situações de comprovado risco para a sua saúde, os tratamentos e as intervenções cirúrgicas, farmacológicas ou de outra natureza que impliquem modificações ao nível do corpo e das características sexuais da pessoa menor intersexo não devem ser realizados até ao momento em que se manifeste a sua identidade de gênero.

Embora, nos termos do artigo 11, nº. 1, da Lei nº. 38/2018, o Estado deva garantir o acesso, a quem o solicitar, de serviços de referência ou de unidades especializadas do Serviço Nacional de Saúde para efeito de tratamentos ou intervenções cirúrgicas que tenham por objetivo fazer corresponder o corpo à identidade de gênero adotada pelo sujeito, em nenhum caso é exigido à pessoa que se tenha submetido a procedimentos médicos, a uma cirurgia de reatribuição do sexo, a uma terapia hormonal ou a tratamentos psicológicos ou psiquiátricos para que possa requerer a alteração da menção do sexo. Havendo lugar ao procedimento de mudança da menção de sexo, pode ser lavrado um novo assento de nascimento, no qual não pode ser feita qualquer referência à mudança de sexo. A pessoa passa a ser identificada com um novo nome e com um novo sexo, independentemente de ele corresponder ou não ao seu sexo cromossomático e anatómico ou de, em casos de desconformidade medicamente comprovada, a situação ter sido corrigida. Não são, contudo, afetados os direitos constituídos e as obrigações jurídicas assumidas antes

3 EXISTE UM DIREITO À AUTODETERMINAÇÃO DO GÊNERO?

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A solução legal afigura-se estranha. Na verdade, se se admite que o menor presta de forma livre e esclarecida o seu consentimento e se atesta a sua capacidade para entender o alcance do ato que está a praticar, não se entende por que razão se há-de fazer intervir o representante legal no caso. Verdadeiramente, a cautela espelha a convicção de que, numa matéria deste melindre, talvez o consentimento possa não corresponder a um ato maturado e esclarecido do menor.

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do reconhecimento jurídico da identidade de gênero.


A Lei nº. 38/2018, de 07 de agosto (Lei da Identidade do Gênero), suscita-nos inúmeros reparos e levanta-nos diversos problemas. A par de uma formulação legislativa infeliz, é duvidoso o acerto constitucional de algumas medidas particulares. Pense-se, por exemplo, na previsão da adoção de

Medidas no sistema educativo, em todos os níveis de ensino e ciclos de estudo, que promovam o exercício do direito à autodeterminação da identidade de gênero e expressão de gênero e do direito à proteção das características sexuais das pessoas.

Entre as quais se conta a

Formação adequada dirigida a docentes e demais profissionais do sistema educativo no âmbito de questões relacionadas com a problemática da identidade de gênero, expressão de gênero e da diversidade das características sexuais de crianças e jovens, tendo em vista a sua inclusão como processo de integração socioeducativa.

Ora, tendo em conta que a formação dirigida aos docentes terá como objetivo a modelação do processo socioeducativo das crianças e jovens, e sendo-se consciente de que a questão da identidade de gênero corresponde a uma verdadeira ideologia, então facilmente percebemos que estas diretrizes podem contender com o direito fundamental dos pais de definirem as linhas mestras da educação que querem dispensar aos seus filhos. Mas, o que se revela ainda mais perturbador é a consagração de um direito que não corresponde a uma posição subjetiva justa, porquanto contrarie os dados ontológicos e axiológicos de compreensão do ser humano, entendido como pessoa. Daí que se imponha de forma inelutável a questão: existe um direito à autodeterminação da identidade de gênero?

Entre os vários elementos que fazem parte da identidade de um sujeito (encarado como pessoa) está o seu sexo. Consoante explica Menezes Cordeiro,

O ser humano é uma espécie sexuada. Os indivíduos de cada um dos sexos distinguem-se, fácil e imediatamente, pelo aspeto geral, pela postura, pelos gestos. (…) A diferenciação dos sexos constitui um dos grandes sortilégios da humanidade (CORDEIRO, 2004, 335; CORDEIRO, 2011, 405).

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3.1 O sexo como elemento da identidade pessoal


Sendo a determinação do sexo feita, ao nível cromossomático, no momento da conceção, ela é irreversível (CORDEIRO, 2004, 335, CORDEIRO 2011, 405), pelo que “o direito limita-se a acolher os dados da natureza. O ser humano é homem ou mulher, num facto anatómico constatado aquando do parto” (CORDEIRO, 2004, 334, CORDEIRO 2011, 415), que se repercute ao nível biológico e psicológico e releva ao nível profissional e social5. Trata-se, portanto, de um aspeto identitário do indivíduo que o direito acolhe e não pode, nem deve modificar. Daí que a intervenção do direito a este nível deva ser residual, operando em três planos: por um lado, protegendo a identidade sexual do sujeito, como dimensão identitária dele, ao nível do direito geral de personalidade (SOUSA, 2011, 325); por outro lado, solucionando problemas jurídicos que resultam de disfunções que podem ocorrer; numa terceira vertente, garantindo a igualdade entre homens e mulheres e proscrevendo qualquer forma de discriminação entre sexos. Entre as disfunções a que nos reportamos, Menezes Cordeiro refere situações como a má conformação dos órgãos sexuais externos; casos em que o sujeito assume condutas próprias do sexo oposto; distúrbios anatómicos ou hormonais; não correspondência entre o sexo cromossomático, anatómico e hormonal com o sexo psicológico (CORDEIRO, 2011, 416). São, sobretudo, o primeiro e o terceiro caso que, levantando problemas relativos à identidade sexual do sujeito, reclamam a intervenção do ordenamento jurídico. Correspondendo a situações marginais de hermafroditismo ou a situações de transsexualismo, a solução dispensada pelo direito era, ainda assim, fácil. De acordo com os ensinamentos do jurista, mais recuadamente, ocorrendo um distúrbio anatómico ou hormonal, que a medicina pudesse corrigir, ou se verificava um erro no assento de nascimento, que seria falso por indicar um facto que não tinha existido, tendo de ser corrigido; ou a pessoa mudava, efetivamente, de sexo, havendo de recorrer a uma ação

Com a Lei n.º 7/2011, de 15 de março, regulava-se o procedimento de mudança de sexo, junto das Conservatórias de Registo Civil, podendo a alteração ser requerida por qualquer pessoa maior, que não fosse interdita ou inabilitada por anomalia psíquica e revelasse uma perturbação de identidade de sexo, vulgo, transsexualismo. Para tanto, era necessária a apresentação de um relatório que comprovasse

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Menezes Cordeiro fala-nos, a este nível, de diversas componentes do sexo: cromossomático; morfológico ou anatómico; hormonal; psicológico e social – cf. CORDEIRO, 2004, 335, CORDEIRO 2011, 415.

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de Estado para o efeito (CORDEIRO, 2011, 416).


O diagnóstico de perturbação de identidade de gênero, também designada como transexualidade, elaborado por equipa clínica multidisciplinar de sexologia clínica em estabelecimento de saúde público ou privado, nacional ou estrangeiro (artigo 3º/1/b).

Ora, foram exatamente estas soluções que foram postas de lado pela Lei n.º 38/2018, de 07 de agosto. Prescinde-se do relatório médico, que passa a ser exigido apenas no caso dos menores, e assume-se que a mudança da menção de sexo no registo configura um direito de cada um dos sujeitos, a qualificar como direito de personalidade. A nova disciplina parece estar em linha com o sentido evolutivo (ou involutivo) que tem vindo a ser delineado internacionalmente. Em 1992, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, no Proc. n.º 13343/87, condenou o Estado francês, por a Cour de Cassation não ter permitido a mudança de sexo a um indivíduo que a reclamava, com fundamento na indisponibilidade dos estados civis, por entender que assim se violava o artigo 8º Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que consagra o direito à intimidade da vida privada. Tratava-se, segundo a visão do tribunal europeu, de um assunto do foro privado, numa posição que, posteriormente, viria a ser acolhida pela jurisprudência francófona6. Na Alemanha, com a Transsexuellengesetz (1980), passou-se a admitir a mudança de sexo, exigindo-se, contudo, que a pessoa se tenha submetido a uma intervenção cirúrgica. No caso em que a pessoa se encontrasse em estado de pressão por querer viver de acordo com a sua representação psicológica do sexo, que não corresponderia ao seu sexo anatómico, a única solução admitida era a solução pequena de alteração do nome7. O Tribunal Constitucional alemão (Bundesverfassungsgericht) veio, então, mostrarse muito favorável à mudança de sexo, admitindo-a mesmo sem que a pessoa se submetesse a

numa decisão de 27 de maio de 2008, na qual se considerou que uma mulher lésbica, que tinha nascido homem, tem direito a viver de acordo com a identidade de gênero que escolheu, podendo ser reconhecida como mulher e podendo viver numa união de facto com outra 8. Considerar-se-ia, portanto, inconstitucional a exigência da inexistência de um vínculo

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Cf., sobre o ponto, CORDEIRO (2004), 347; CORDEIRO (2011), 417 s. e Cour de Cassation, 11 de Dezembro de 1992. 7 Cf. CORDEIRO (2004), 347; CORDEIRO (2011), 419. 8 Cf. DUNNE/MULDER (2018), 632.

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uma intervenção cirúrgica ou mesmo que não requeresse o divórcio. Isso mesmo se constata


matrimonial9. Também a decisão de 11 de janeiro de 201110 acabaria por ser fundamental na alteração do status quo, deixando, a partir dela, de se exigir que a pessoa que requer a mudança se sexo fosse infértil e que se tivesse submetido a uma cirurgia. No fundo, conviviam duas soluções no quadro do ordenamento jurídico alemão: a kleine Lösung (solução pequena), a envolver a mudança de nome; e a große Lösung (solução grande), a permitir a alteração de sexo no registo, quando a pessoa se haja submetido a uma cirurgia. Mas esta dualidade acabou por ser considerada inconstitucional, de tal modo que as duas soluções ficam, agora, dependentes dos mesmos pressupostos, quais sejam a disposição transsexual do sujeito, ou seja, o sentimento de falta de coincidência entre o sexo cromossomático e anatómico e o sexo psicológico, e a pressão a que a pessoa está sujeita por querer viver de acordo com a sua representação mental, que tem de durar há, pelo menos, três anos11. O ordenamento jurídico alemão foi, ainda, mais longe na dissociação entre sexo e gênero. Se a Personenstandsgesetz, no §22/3, permitia que as crianças nascidas fossem registadas sem referência ao sexo, em outubro de 2017, o Tribunal Constitucional determinou que ou se eliminaria a obrigatoriedade de registo do sexo, ou se permitiria o registo de um terceiro sexo (neutro)12. Este gênero neutro diz respeito a pessoas que nascem com características que não se encaixam na definição do sexo feminino ou do sexo masculino 13. Correspondem ao que tradicionalmente se designava por hermafroditas. Mas não só. No caso concretamente discutido no Bundesverfassungsgericht, estava em causa uma mulher, que, tendo nascido mulher e tendo sido registada como tal, não se identificava como mulher, nem como homem, entendendo que o Estado a forçava a um entendimento binário que não respeitava a sua experiência sexual14. E a decisão acabou por dar razão à demandante, por se considerar que estava a ser violado o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, o

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Cf., em apreciação, Bundesministerium für Familie, Senioren, Frauen und Jugend, Report on reform of the Transsexuals Act, Berlim, 2017, 7. 10 BVerfGE 128, 109. 11 Bundesministerium für Familie, Senioren, Frauen und Jugend, Report on reform of the Transsexuals Act, Berlim, 2017, 6 s. 12 ww.bundesverfassungsgericht.de/SharedDocs/Entscheidungen/DE/2017/10/rs20171010_1bvr201916.h Para uma análise das implicações que a decisão do Tribunal Constitucional alemão teve e das influências que sofreu, cf. DUNNE/MULDER (2018), 628 s. 13 Foi também reconhecido pelo Tribunal de Tours, numa decisão de 20 de Agosto de 2015. Para outras considerações acerca da tutela da identidade de género no contexto internacional, cf. DUNNE (2016), 4 s. 14 DUNNE/MULDER (2018), 628 s. 15 Considera o aresto que o direito geral de personalidade protege o direito à identidade sexual e também o direito à identidade sexual daqueles que não pertencem de modo permanente ao sexo masculino ou ao sexo

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direito geral de personalidade15, e o direito à não discriminação em função do sexo16. Acolhe-


se, portanto, não só uma visão não binária do sexo, mas também uma visão não binária da identidade de gênero17. O movimento germânico em torno da identidade do gênero não se queda, porém, por aqui. Um relatório sobre o tema com a chancela do Bundesministerium für Familie, Senioren, Frauen und Jugend, datado de 2017, pode ler-se que a disciplina normativa nesta matéria viola direitos humanos fundamentais18. Em causa está a apreciação do requisito legal que exige que o processo de mudança da menção de sexo no registo seja acompanhado do parecer de dois avaliadores independentes, de forma a evitar decisões precipitadas e garantir o aconselhamento, por se entender que põe em causa a autodeterminação do sujeito e por ser demasiado invasivo da privacidade do sujeito19. O direito já não intervém só para resolver pontuais situações disfuncionais relacionadas com a identidade sexual dos sujeitos, mas é chamado a acolher a ideia de gênero, mutável de acordo com a representação do próprio sujeito. E com isto percebe-se que acaba

feminino: “Das allgemeine Persönlichkeitsrecht (Art. 2 Abs. 1 i.V.m. Art. 1 Abs. 1 GG) schützt die geschlechtliche Identität. Es schützt auch die geschlechtliche Identität derjenigen, die sich dauerhaft weder dem männlichen noch dem weiblichen Geschlecht zuordnen lassen”. Repare-se que, na Alemanha, o direito ao livre desenvolvimento da personalidade tem vindo a ser considerado, do ponto de vista constitucional, como acolhendo um direito geral de personalidade, por um lado, e, por outro lado, um direito à liberdade de ação. No âmbito do direito civil, o direito ao livre desenvolvimento da personalidade é analisado como uma das dimensões do direito geral de personalidade. Assim, SOUSA (2011), 352. Sobre o ponto, cf., igualmente, MIRANDA/ MEDEIROS (2005), 286. Para uma crítica à perspetiva de identificação entre o desenvolvimento da personalidade e a autonomia, por considerar (e bem) que ela implica tomar a parte pelo todo, confundindo-se um fim pessoal (a plenitude da pessoa) com um dos meios de a alcançar (a liberdade), e por entender que o tratamento oferecido ao direito em questão padece de um hipersubjectivismo que acaba conduzir à destruição do próprio ser, cf. Tomás Prieto ÁLVAREZ, “¿A qué «desarrollo de la personalidad» se refiere el artículo 10.1 de la constitución española?”, ainda em fase de publicação (pelo que se agradece ao autor a possibilidade de consulta de tão importante artigo). Vejase, igualmente, MALDONADO (2012), 753 s. 16 Em causa estava o reconhecimento da importância do registo do sexo para efeitos legais, pelo que as pessoas intersexo, as únicas que, para respeitar a sua identidade, não podiam registar o seu sexo corretamente, seriam discriminadas. Pode ler-se no aresto que “Art. 3 Abs. 3 Satz 1 GG schützt auch Menschen, die sich dauerhaft weder dem männlichen noch dem weiblichen Geschlecht zuordnen lassen, vor Diskriminierungen wegen ihres Geschlechts”. Cf., para uma análise do argumento, DUNNE/MULDER (2018), 626 s. 17 DUNNE/MULDER (2018), 634. 18 Bundesministerium für Familie, Senioren, Frauen und Jugend, Report on reform of the Transsexuals Act, 7. 19 Bundesministerium für Familie, Senioren, Frauen und Jugend, Report on reform of the Transsexuals Act, 8 s. Designadamente, considera-se no relatório que estaria em causa a violação do direito geral de personalidade, o direito à igualdade, o direito à privacidade, o direito à autodeterminação sexual. Mais se aduz que a tendência no mundo é a de se prescindir dos relatórios de avaliação da situação de transsexualidade. Outros pontos de crítica da disciplina legal passam pela necessidade de o processo ser proposto num tribunal (pág. 10), pela dificuldade que os menores têm de levar a cabo a mudança de sexo. 20 Pode ler-se no Relatório tendente à reforma da Transexuellengesetz, na Alemanha, que:

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por ser contaminado por uma ideologia que vem ganhando terreno, a ideologia do gênero20.


3.2 Da identidade sexual à identidade de gênero: a ideologia subjacente

Na verdade, mais do que resolver situações patológicas, é imputado ao direito o papel de sufragar uma ideologia que visa subverter a natural diferenciação sexual. De acordo com a explicitação de Maria Calvo Charro, “a meta é chegar a uma sociedade sem classes de sexo, por meio da desconstrução da linguagem, das relações familiares, da reprodução, da sexualidade e da educação” (CHARRO, 2016, 133 s.). Enquanto o sexo é algo imutável, pelo menos na sua dimensão cromossomática, apontando-nos para uma dimensão natural, genética, biológica, fisiológica, hormonal, o gênero corresponde a uma representação cultural e social, sendo elaborado de maneira convencional, pelo que é mutável e transitório (CHARRO, 2016, 136)21. A alteração da linguagem não é aqui inócua. A ideia é a de, com a mutação, se desconstruir a bipolaridade entre os sexos, proclamando-se a inexistência do feminino e do masculino, como polos diversos e complementares (CHARRO, 2016, 135-6). Cada um, absolutamente livre, deve viver de acordo com as suas pulsões, elegendo para si “uma ou outra coisa como natureza sua” (CHARRO, 2016, 137). Para Maria Calvo Charro, que aqui acompanhamos de muito perto, a ideologia subjacente à identidade de gênero postula que ambos os sexos são idênticos, que a feminilidade e a masculinidade são construções sociais, produto da imposição de uma cultura que é necessário erradicar, para conseguir garantir a plena igualdade em todos os planos da vida (CHARRO, 2016, 137). Ser homem e ser mulher deixam de ter um sentido objetivo e real, para passarem a ser construções sociais feitas segundo estereótipos (CHARRO, 2016, 138), de tal modo que o gênero masculino pode desenvolver-se num corpo feminino e vice-

conjugáveis num tecno-niilismo, submete a pessoa a um poder totalitário sobre si mesma, First of all, the Transsexuals Act is based on a medical and diagnostic notion of ‘transsexuality’ as a psychological condition that is no longer valid in light of contemporary sexual research. ‘Transsexuality’ relates to a medical diagnosis developed in the 1970s that presupposes rejection of the genitalia as being inconsistent with the individual’s identity, an urgent desire for gender reassignment surgery, and asexual or heterosexual orientation. With these diagnostic criteria now seen to be medically and psychiatrically misconceived9 , the term ‘transsexuality’ has increasingly fallen out of use when referring to gender identity independently of such criteria (Bundesministerium für Familie, Senioren, Frauen und Jugend, , Report on reform of the Transsexuals Act, Berlim, 2017, 5-6). 21

Referindo-se à imutabilidade do sexo cromossomático e referindo-se que a alteração do sexo anatómico corresponde a uma mutilação, cf. CORDEIRO (2011), 351.

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versa. Numa ideologia que, partindo do marxismo freudiano e do liberalismo individualista,


com a abolição de qualquer norma moral que impeça o domínio absoluto da liberdade e da técnica (CHARRO, 2016, 148), os ideólogos do gênero deixam de procurar, apenas, a igualdade perante a lei, para buscarem, também, a igualdade biológica, algo que está fora do direito (CHARRO, 2016, 148). Na verdade, se tudo é permitido e se torna possível através da técnica, caminhandose para um transhumanismo, o homem pode superar a própria determinação sexual cromossomática e anatómica com que nasceu. Cada um pode escolher configurar-se sexualmente como quiser e viver de acordo com essa configuração (CHARRO, 2016, 139). A emancipação do homem em relação à sua corporeidade – numa afirmação radical da liberdade (mal compreendida, entenda-se) que não encontraria limites, sequer na ontologia do ser – implicaria a liberdade de decidir o próprio gênero e, mais do que a defesa da não discriminação, deveria conduzir, na busca do (super-)homem novo, à afirmação de um modelo de sociedade em que o sujeito decide não só sobre as suas ações, como também sobre a sua ontologia, um modelo de sociedade subjetivista e sentimental, dominada pelo individualismo e pelo relativismo ético (ÁLVARES PRIETO/SANCHÉZ, 2016, 163 s., 171, 172). É este homem indivíduo, que vive de acordo com as suas paixões, que pode ultrapassar, compossibilitado pela técnica, todas as limitações que a natureza lhe comunica, mesmo ao nível sexual, que está na base da consagração do direito à identidade do gênero e do direito à autodeterminação da identidade do gênero. As diferenças em relação ao direito à identidade sexual são assinaláveis. Neste caso, do que se trata(va) é/era de tutelar um aspeto identificador da pessoa, de tal modo que ela não fosse associada a uma característica que não lhe pertencesse. No caso do direito à identidade do gênero, não se protege um aspeto conatural do ser humano, mas permite-se ao sujeito que se configure sexualmente,

sexualidade humana da sua componente natural, exatamente porque se entende que é a sociedade e a cultura dominantes que impõem determinadas visões sobre o modo de ser e de se comportar do ser humano. Seria a sociedade que obrigaria o homem a ser homem e a mulher a ser mulher, de tal modo que a plena igualdade só se obteria através da emancipação contra uma cultura opressora. Ao homem oferece-se a emancipação relativamente à própria limitação que a cultura estabelece e permite-se que supere as próprias barreiras que a natureza demarca, quanto tal seja compossibilitado pela técnica. O limite do humano deixa de ser a ética para ser a técnica. Daí que, ao contrário da tutela da identidade sexual, se abandone

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independentemente do seu sexo cromossomático e anatómico. No fundo, aparta-se a


como pilar fundamentador da proteção a axiologia alicerçadora do ser pessoa, para se passar a radicar o discurso no desagregador pulsar sensitivo do sujeito.

3.3 O direito à autodeterminação e à identidade do gênero como direitos de personalidade?

Em face do que se concluiu, pergunta-se se se podem configurar os direitos em questão como direitos de personalidade. A resposta que se procura fundamentada para esta questão requer uma dupla tarefa: primeiro, compreender os direitos de personalidade como direitos que têm como objeto a pessoa, nas suas múltiplas dimensões, zonas, refrações; segundo, perceber em que medida o direito à autodeterminação e à identidade do gênero se compatibilizam com o fundamento do reconhecimento dos direitos de personalidade.

3.3.1 Os direitos de personalidade e o seu fundamento ético-axiológico Os direitos de personalidade – aliás, como o direito subjetivo – não existiram desde sempre, o que não significa que, no período anterior ao iluminismo jusracionalista, não se protegesse adequadamente a pessoa. Leite Campos afirma-o contundentemente (CAMPOS, 2004, 110). O autor, na sua referência à sociedade tradicional e na tentativa de perceber por que razão é que os direitos de personalidade só surgem depois do século XVIII, afirma, depois de perguntar “será que a sociedade tradicional ignorava os direitos da pessoa, nomeadamente os direitos civis da pessoa?”, que:

Evidentemente que não os ignorava, protegendo-os, em muitos casos, através de medidas mais completas e mais eficazes do que hoje; ou tutelando-os em situação

(CAMPOS, 2004, 110).

Simplesmente, como explica, havia, à época, uma menor necessidade de tutela, fruto da compreensão do cosmos como uma ordem iluminada por Deus como causa suprema (CAMPOS, 2004, 112):

O outro, também elemento dessa ordem, era visto não como um limite ao eu, mas como um elemento solidário, colaborante do eu, imprescindível para a realização humana e a salvação espiritual de cada um (….) Direitos de personalidade, nesta

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em que hoje são agredidos (caso do direito à vida: aborto voluntário e eutanásia


época? Antes deveres de cada um para com Deus, para com a família, para com os superiores, para com todos os outros. Cada ser humano representava-se como um espaço aberto a todos os outros, solidário para com estes, comunicando incessantemente (CAMPOS, 2004, 117).

É, portanto, com a desagregação da ordem natural tradicional, pelo individualismo e pelo nominalismo, e com a absolutização do sujeito, convolado em indivíduo, que se torna urgente a tematização dos direitos de personalidade. É que, como explicita o autor, o abandono do fundamento axiológico da vontade coletiva conduziria (como conduziu) a soluções totalitárias, já que a vontade geral transcende as vontades individuais dos cidadãos (CAMPOS, 2004, 121), e, nessa medida, urgia restabelecer um limite “a luta contra a omnipotência legislativa do soberano absoluto da Idade Moderna levou à invenção dos direitos de personalidade, enquanto direitos naturais, meta-positivos” (CAMPOS, 2004, 123). Dito de uma forma mais direta, a suposta neutralidade do direito, convertido em pura forma, a recusa de qualquer fundamento transpositivo e transtextual, que nos conduziu à afirmação do direito como lei, determinaram que o direito, reduzido à norma, fosse afinal produto de um subjetivismo absoluto e de um decisionismo que, ferindo de morte o próprio direito (porque deixa sem sustentáculo a resposta para o problema do encontro no mundo), pode conduzir a uma de duas concretizações históricas: o absoluto poder do homem sobre o homem (que deixa de ter limites, já que a sua liberdade vazia implica poder fazer tudo), ou o absoluto poder do Estado sobre o homem. Em qualquer das hipóteses, porque o direito se reduz ao que o legislador determina (tudo determinando, num regime absolutista, ou nada determinando, porque, no mais primário liberalismo, acaba por ser proibido proibir), o ser humano torna-se indefeso. E é exatamente para escapar a essa vulnerabilidade que se passa dar ênfase aos direitos de personalidade – direitos do homem sobre si mesmo, para proteção

Se isto se torna simples, e explica por que razão é que a dogmática dos direitos de personalidade tem tendência a recrudescer na sequência de épocas de horror (pense-se no pós segunda guerra mundial), nem por isso os problemas se atenuam. Em primeiro lugar, o limite que os direitos de personalidade estabelecem salutarmente só cumpre a sua função se eles se impuserem ao próprio Estado. Há que, portanto, perceber que os direitos de personalidade são reconhecidos (e não atribuídos) pelo ordenamento jurídico.

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das suas dimensões fundamentais.


Em segundo lugar, os direitos de personalidade só garantem a não degradação da pessoa se eles não puderem ser invocados pelo seu titular contra si mesmo, legitimando comportamentos atentatórios da sua dignidade. Esta é, aliás, uma das razões que leva parte da doutrina a mostrar-se cética em relação à categoria. Ora, o direito subjetivo (seja ou não um direito de personalidade) radica na pessoa e não no indivíduo, pelo que ele nunca encerrará o seu titular sobre si mesmo (antes o fazendo comunicar com os seus semelhantes). Na verdade, o direito subjetivo não é apenas fonte de poderes, exercidos de acordo com uma vontade arbitrária, mas é também fonte de deveres; em segundo lugar, o direito subjetivo tem um determinado fundamento ético-axiológico (tal como o direito objetivo). No caso dos direitos de personalidade, não só o fundamento éticoaxiológico como a sua teleologia primária reconduzem-se à ideia de dignidade ética da pessoa humana, donde nunca o direito subjetivo de personalidade pode ser invocado para legitimar comportamentos atentatórios da dignidade. Acresce que, sendo o homem um ser relacional, que apenas se realiza no encontro do «eu» com o «tu», a tutela dos direitos de personalidade não pode senão espelhar essa dimensão. No fundo, a compreensão do direito como materialmente conformado impede-nos de assumir como lícitas situações como a eutanásia, a prostituição, a mutilação, a escravatura. O poder de vontade que caracteriza em termos definitórios o direito subjetivo não nos condena à contemplação de uma vontade arbitrária e desenraizada de qualquer sentido ético-axiológico que a predique. Por outro lado, não podemos deixar de, na invocação de um concreto direito, pensá-lo à luz do fundamento e da teleologia do seu reconhecimento pelo ordenamento jurídico, donde jamais o exercício de um direito de personalidade pode pôr em causa a dignidade da pessoa que o forja. Na verdade, o direito é uma ordem normativa. Tem como finalidade ordenar

para que essa validade não resvale num sem sentido ordenador do encontro no mundo, ela não pode deixar de convocar – para ser verdadeiramente válida – uma axiologia fundamentante. Que vem a encontrar-se, afinal, naquele sentido de dignitas que a ética descobre no encontro – entendido no sentido do reconhecimento e do respeito – do eu com o tu (NEVES, 1967, 725). Dito de uma forma mais direta, o fundamento último da juridicidade e, portanto, do reconhecimento ou da atribuição de direitos pelo ordenamento jurídico há-se encontrar-se na ideia de dignidade da pessoa, a implicar o salto para o patamar da axiologia (NEVES, 1995,

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condutas, para o que assume uma determinada intencionalidade, a traduzir uma validade. E,


287-310)22, axiologia essa que funcionará sempre como um limite para a própria constituição normativa. Daí que um direito não exista ou não possa ser invocado contra a axiologia que o tem de fundamentar.

3.3.2 A inexistência de um direito à autodeterminação e à identidade do gênero

Se o direito não pode prescindir do salto para o patamar axiológico, também é certo que não pode ignorar o dado ontológico e antropológico. Assim sendo, não será possível configurar um direito de personalidade que incida sobre uma ficção e não sobre um modo de ser pessoa. Por outro lado, se a configuração de um direito à autodeterminação e à identidade do gênero conduz à destruição da pessoa, ao fazer avultar o indivíduo e ao endeusá-lo como escravo dos seus próprios desejos, no mais radical individualismo niilista, que recusa toda a pressuposição axiológica, então haveremos de concluir que aquele é um não direito, por perder o sustentáculo ético-axiológico que se reclama para o reconhecimento ou a atribuição de cada direito. De uma forma mais direta, podemos afirmar que, sendo o fundamento último dos direitos de personalidade a pessoa e a sua ineliminável dignidade, então, é impensável a configuração de um especial direito de personalidade que contrarie o próprio fundamento em que se deveria radicar. Pelo que uma conclusão simples se extrai: o suposto direito à autodeterminação e à identidade do gênero que se invoca (apenas alicerçado num querer arbitrário) inexiste. E, inexistindo, a norma que o prevê não pode ser senão compreendida como uma norma injusta, a determinar a possibilidade de desaplicação por parte do jurista que seja chamado a mobilizá-

ainda que em casos muito particulares se possa ter de atender às situações de disfuncionalidade que possam ocorrer, perante um requerimento de mudança da menção de sexo, a entidade competente pode rejeitar a pretensão23.

22

Cf. também NEVES, 1994, 273. Embora num momento temporal anterior à aprovação da Lei n.º38/2018, cf. MIRANDA/MEDEIROS (2005), 285, considerando que: “na ausência de razões contrárias atendíveis, o direito à identidade pessoa parece postular que se possa mudar de nome, não sendo admissível que uma pessoa com um determinado sexo tenha de se identificar civilmente com um nome do sexo oposto”. Ora, o que se acolhe aqui é a possibilidade de mudança de nome, em virtude de uma mudança de sexo, mas não a mudança de nome em função de uma determinação arbitrária de um género que pode não corresponder ao sexo anatómico e cromossomático. 23

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la. O que se deve tutelar é, sim, o direito à identidade sexual, o que significa que, em rigor,


Na verdade, não é possível considerar o direito à identidade de gênero enquanto dimensão do direito geral de personalidade, já que a ideia de gênero contraria a pessoalidade que funda o reconhecimento daquele direito, abrindo as portas à individualidade. E também a invocação do direito ao livre desenvolvimento da personalidade falece24. Em causa está, agora, nas palavras de Capelo de Sousa a “garantia de meios e condições existenciais e convivenciais, tanto naturais como sociais, suficientes para todo o homem se poder desenvolver” (SOUSA, 2011, 352 s.), ou, de acordo com o verbo de Pais de Vasconcelos, o poder que cada ser humano tem de se autoconstituir (VASCONCELOS, 2006, 74). Simplesmente, como adverte Pais de Vasconcelos, “quem quiser desenvolver-se e realizar-se com desrespeito pelo outro, seu semelhante, pelos outros que são a sua comunidade, e pelas leis morais (…) será um bruto” (VASCONCELOS, 2006, 75). Ora, no que tange ao suposto direito à autodeterminação da identidade do gênero, não só não está em causa a tutela da liberdade de desenvolvimento segundo um projeto pessoal, ligado a uma determinada capacidade inerente à pessoa, sob pena de termos, igualmente, de admitir, como já vem sendo reivindicado em algumas latitudes, casos de transespecismo, como se contrariaria, com o seu reconhecimento, a qualidade de ser pessoa, razão pela qual ele não se integra no conteúdo do direito ao livre desenvolvimento da personalidade. Se do ponto de vista fundacional (ético-axiológico) estamos diante de um não direito, do ponto de vista prático-normativo, não são poucos os argumentos que podem ser avançados contra a modelação concreta oferecida pela Lei n.º 38/2018, de 07 de agosto. Desde logo, não podemos esquecer que o suposto direito não se integra nem no conteúdo do direito à identidade, por não estar em causa um aspeto constitutivo da pessoa, mas uma visão que ela tem sobre si mesma, nem no conteúdo do direito ao livre desenvolvimento da personalidade, por não corresponder a definição do gênero ao

Por outro lado, a lei pode ser fonte de graves problemas. Embora por referência a um quadro normativo diverso, Menezes Cordeiro questionava como resolver, no que respeita à 24

Como vimos, na Alemanha, a invocação dos dois direitos acaba por, do ponto de vista constitucional, ser idêntica. 25 CORDEIRO (2011), 424, considerando que: “o direito tem de ser autêntico: não pode proclamar o que, de facto, não seja ou não seja totalmente. Por fim: o direito é uma ordem social; não é um tratamento psicológico ou psiquiátrico”. Como ensina Oliveira Ascensão, o livre desenvolvimento da personalidade implica que o homem, no uso da sua liberdade responsável, se forma a si mesmo, desenvolvimento potencialidades que traz consigo. Ora, tal, por sua vez, pressupõe que a personalidade desenvolvida é positivamente valorada, não resultando do arbítrio do sujeito – cf. ASCENSÃO (2010), 50 s. Percebe-se, assim, que não é possível falar em desenvolvimento da personalidade, quando, ao nível da identidade de género, não se desenvolve uma potencialidade inerente ao sujeito, mas se altera a identidade sexual por arbitrária decisão da pessoa.

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desenvolvimento de uma qualidade inerente ao modo de ser do sujeito25.


tutela dos terceiros, o caso em que uma pessoa casasse com outra, julgando que ela tinha um sexo correspondente ao nome que apresentava, constatando-se, depois, que, tendo sido ou não submetida a uma intervenção cirúrgica, cromossomaticamente o sexo era outro26. O exemplo avançado mostra que a identidade sexual não releva do puro ponto de vista da intimidade do sujeito, interessando externamente. E a asserção é válida, também, para o plano patrimonial. O dado compreende-se se atentarmos que a identidade sexual (dita de gênero) anda associada a um determinado nome que se assume masculino ou feminino. Por isso, a alteração da menção de sexo no registo civil coenvolve, igualmente, a alteração do nome pelo qual a pessoa é identificada. Donde, apesar de não se alterarem os direitos constituídos e as obrigações assumidas antes da modificação, podem surgir dificuldades, no futuro, não obstante a manutenção dos números de identificação civil e fiscal, na efetivação da responsabilidade dos devedores. Percebe-se, por isso, que Menezes Cordeiro, em crítica à solução do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, sustente que ela não tem credibilidade, por o sexo da pessoa não pertencer exclusivamente à sua esfera privada, mas também à esfera pública, social e profissional27. Pense-se, ainda, na importância da determinação do sexo para a inserção de um sujeito numa determinada categoria de uma prova desportiva ou para a identificação de um determinado sujeito no quadro de um processo de responsabilidade. Acresce que, porque homens e mulheres são, apesar da igual dignidade, diferentes, há determinadas situações onde a segregação dos sexos deve ser mantida. Pense-se, por exemplo, nas hipóteses de utilização de sanitários ou balneários públicos ou abertos ao público. Dever-se-á, em nome de uma ficção, sujeitar uma pessoa do sexo feminino a ver o seu espaço invadido por um sujeito de sexo oposto, apenas e só porque este resolver autodeterminar-se como uma mulher? Não estaremos com isto a violar direitos de terceiros e

26

CORDEIRO, 2004, 351; CORDEIRO, 2011, 424, sublinhando que: Não faria sentido substituir uma (porventura) hipocrisia por uma (clara) hipocrisia de sinal contrário. A hipocrisia de princípio seria a de admitir, sem distinções, que existe apenas o sexo cromossomático, condicionante dos restantes. A nova hipocrisia seria a de publicitar, sem mais, como sendo de determinado sexo seres que, na realidade, apresentam um balanço controverso. No limite, haveria erros clamorosos, por que o Estado seria responsável: por exemplo: quid iuris quanto à pessoa que, baseada nas aparências e, sobretudo, no registo civil, contraísse casamento com um transexual?. 27 CORDEIRO, 2004, 351; CORDEIRO, 2011, 423 s, considerando que: Antes de contratar um(a) educador(a) para a escola de crianças, um(a) empregado(a) doméstico(a) ou um(a) apresentador(a) de um produto ou, até, antes de iniciar uma relação de namoro, cada um tem o direito (porventura: o dever) de conhecer o sexo da contraparte. Dizer que o sexo não interessa a não ser no foro íntimo seria negar a evidência e pretender retirar, à espécie humana, uma das suas mais impressivas riquezas.

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a sujeitá-los a situações lesivas, sem que para isso haja fundamento bastante?


4 CONCLUSÕES

A necessária compreensão do direito subjetivo à luz da axiologia que o fundamenta, a par da ancoragem ontológica que não pode ser esquecida, impede-nos de falar de um direito à autodeterminação da identidade de gênero em sentido próprio. Ademais, a proteção que o direito confere ao sexo e à identidade sexual tem implicações em relação a terceiros, que não podem ser ignoradas, pelo que não pode ser a mera vontade arbitrária do sujeito a determinar uma qualquer alteração do sexo morfológico.

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SELF-DETERMINATION OF GENDER IDENTITY: REFLECTIONS TROUGH LAW NO. 38/2018, OF THE 7TH OF AUGUST 2018

ABSTRACT The present paper intends to reflect on the existence of an alleged right

to

self-determination

of

gender

identity.

Taking

into

consideration the concept of subjective right and its axiological foundations, we conclude that such right does not exist, as much as it comes with an ideological basis that goes against the axiological intentionality of the juridical order. Furthermore, such alleged right does not take into account fundamental rights of third parties. Keywords: right to gender identity. Right to self-determination of

FIDES, Natal, V. 10, n. 2, jul./nov. 2019.

gender identity. Right to sexual identity. Gender ideology.

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A INFLUÊNCIA DO NEOLIBERALISMO NA EFETIVAÇÃO DO DIREITO À EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS NO BRASIL Maria Clara Fernandes Silva1

RESUMO O presente trabalho visa analisar, a partir de uma pesquisa bibliográfica, a influência exercida pelo modelo Neoliberal nos caminhos para a efetivação da Educação de Jovens e Adultos (EJA), como um direito dos indivíduos que não tiveram acesso à educação básica em idade própria. Para isso, estuda-se a construção da concepção universalista da educação no Brasil, enquanto direito gratuito de todas as pessoas, até se tornar, de fato, um direito humano, fundamental e social, além dos desafios também apresentados por uma matriz curricular engessada, baseada no modelo fordista de produção, que acentua as desigualdades socioeconômicas. Palavras-chave: Direito à educação. Educação de jovens e adultos.

1

Graduanda em Direito pelo Centro Universitário do Rio Grande do Norte (UNI-RN).

108

FIDES, Natal, V. 10, n. 2, jul./nov. 2019.

Neoliberalismo.


1 INTRODUÇÃO

A educação, enquanto fonte principal de diminuição das desigualdades sociais e econômicas, apenas se dá com efetividade a partir de sua concepção como um direito universal a ser assegurado e promovido pelo Estado. No Liberalismo, inclusive, existe tal compreensão acerca da escolarização como uma obrigação do Estado em promover o interesse coletivo, tanto é que a construção do direito à educação se deu nesse contexto, ganhando reconhecimento internacional com a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Apesar de ter se dado tardiamente, a compreensão da ideia universal da educação no Brasil consolidou-se – ao menos no plano do Direito – com a positivação do direito à educação como um direito fundamental e social na Constituição da República de 1988 no Brasil. Contudo, devido à falta de institucionalização de uma esfera pública democrática, as relações estabelecidas nos âmbitos escolares se dão, até hoje, como uma reprodução da sociedade: com desigualdades socioeconômicas, acentuadas pelo modelo fordista de ensino. Nesse sentido, o direito à educação, dividido em oportunidade de acesso à escola e possibilidade de permanência nesta, encontra diversos entraves para a sua efetivação em relação a todos os indivíduos. Esses obstáculos estão presentes tanto pela dificuldade de acesso e permanência da população marginalizada e de etnia negra, como o trabalho há de demonstrar, quanto pela matriz curricular que prepara os alunos para o resultado – o ingresso no mercado de trabalho –, sem priorizar o desenvolvimento de suas potencialidades e a sua libertação enquanto cidadãos. Para as pessoas que não tiveram acesso à educação básica na idade própria, o desafio é ainda maior. Inseridos na Educação de Jovens e Adultos, os alunos têm de se submeter, em muitas escolas, a uma metodologia que não considera suas experiências de vida e sua faixa informal – já apresentam dificuldade em retomar os estudos, devido à necessidade de obter recursos financeiros para seu sustento ou de sua família, não são valorizados pelo seu conhecimento de mundo e sua história social, econômica e cultural quando retornam. Nessa perspectiva, o presente trabalho pretende analisar, por meio de uma pesquisa bibliográfica, qual a influência que o Neoliberalismo exerce na efetivação do direito à educação de jovens e adultos, sobretudo, considerando a característica da educação como emancipadora e de potencial nivelador das desigualdades sociais.

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etária. Tais pessoas, já inseridas, em alguns casos, no mercado de trabalho – formal ou


2 A CONSTRUÇÃO DO DIREITO À EDUCAÇÃO E A SUA RELAÇÃO COM O NEOLIBERALISMO

De acordo com a historiadora Carlota Boto (1996, citado por ARAUJO, 2011, p. 283), até a Revolução Francesa, a educação era vista como parte da trajetória individual de cada ser humano. O movimento iluminista, por sua vez, defendia a expansão das capacidades intelectuais como meio para o progresso, mas negava o caráter público da educação – talvez devido à oposição ao Absolutismo –, o que levava a não concepção da ideia do Estado se responsabilizar pela educação. Com efeito, a Revolução Francesa trouxe novas concepções ao debate da institucionalização de um ensino público e universal. Nesse contexto revolucionário, a educação passou a ser um instrumento de regeneração social, desvinculando-se, pois, da emancipação individualista proposta pelo Iluminismo. Assim, é certo dizer que o entendimento do ensinar e do aprender passou a se dar na esfera de um dever moral em prol do aperfeiçoamento social, isto é, transformando-se em responsabilidade da coletividade (ARAUJO, 2011, p. 283). Não obstante, a ideia da educação como fonte primária de diminuição das desigualdades socioeconômicas só pode ser relacionada como um direito a ser assegurado – e promovido – pelo Estado no século XX, a partir da consolidação do elo entre Estado e educação, inclusive no cenário do Liberalismo. Ora, o próprio Adam Smith (1983, citado por ARAUJO, 2011, p. 283), em A riqueza das nações, descarta a hipótese de a educação ser uma responsabilidade de particulares, visto que não era e nem poderia ser lucrativa. Assim, deveria ser considerada uma atividade de interesse coletivo a ser garantida pelo Estado. Inclusive, a partir de 1940, segundo Hobsbawm (1995, citado por ARAUJO, 2011, p.

identificação da correlação entre nível superior de escolaridade e ascensão social por meio de emprego em empresas e órgãos públicos. Em decorrência disso, houve a formação de um processo significativo de ampliação das oportunidades de escolarização da sociedade. Em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos2 foi adotada, prevendo o direito à educação em seu art. 26, inclusive estabelecendo a gratuidade – para os graus elementares e fundamentais – e a obrigatoriedade para as etapas elementares. De acordo com

2

ASSEMBLEIA GERAL DA ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948.

110

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285), a educação se tornou uma preocupação mundial crescente, principalmente pela


o referido dispositivo, o ensino deve considerar o pleno desenvolvimento da personalidade humana, o respeito e o fortalecimento dos direitos humanos e liberdades fundamentais. (ASSEMBLEIA GERAL DA ONU, 1948). Com efeito, por volta dos anos 1960, surge o conceito de aprendizagem continuada (lifelong learning), conhecida também como aprendizagem ao longo da vida, estabelecido inicialmente na Estratégia Europeia para o Emprego. Tal definição consiste em “toda a atividade de aprendizagem em qualquer momento da vida, com o objetivo de melhorar os conhecimentos, as aptidões e competências, no quadro de uma perspectiva pessoal, cívica, social e/ou relacionada com o emprego” (SITOE, 2006, p. 284). Nessa perspectiva, a UNESCO lançou, em 1972, o relatório Aprendendo a Ser (Learning to Be), da Comissão Internacional para o Desenvolvimento da Educação, inspirado no livro de Paul Legrand, Uma Introdução a Educação Continuada (An Introduction to Lifelong Education), a fim de impulsionar os trabalhos do órgão em termos de estratégias ligadas a questões científicas, culturais e sociopolíticas (Kallen, 1996, citado por SITOE, 2006, p. 286). Da forma que se construiu na modernidade, o direito à educação pode ser dividido em dois aspectos centrais: a oportunidade de acesso à escola, em primeiro lugar, e a possibilidade de permanência nesta, a se concretizarem por meio de uma educação de qualidade para todos os cidadãos (ARAUJO, 2011, p. 287). Nesse sentido, deve-se considerar o desenvolvimento do aluno e explorar suas potencialidades, sem focar precipuamente em resultados. Levando em conta a oportunidade de acesso à escola e a possibilidade de permanência nesta como pontos basilares do direito à educação, Sacristán (2000, citado por ARAUJO, 2011, p. 287) afirma que tal direito carrega consigo uma potencialidade emancipadora, numa perspectiva individual, e igualitária, numa perspectiva social. Nessa

escolarização é capaz de nivelar as desigualdades. Desse modo, uma educação de qualidade oferecida para todos indistintamente, promove a emancipação dos seres humanos e trabalha suas desigualdades naturais do ponto de vista da alteridade, reduzindo as disparidades sociais e econômicas. Dito isto, é preciso dissociar o direito à educação da mera existência de escolas públicas, considerando a efetivação daquele em torno de um papel ativo e responsável do Estado. Tal dissociação deve contemplar aspectos que dizem respeito tanto à articulação de políticas públicas para a sua concretização, quanto à obrigatoriedade de oferecimento de 111

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última, destaca-se que a necessidade de sua efetivação parte do pressuposto que a


ensino de qualidade para todos. Somente a partir de tais práticas é que o Estado pode responsabilizar os indivíduos ou seus responsáveis pela frequência (ARAUJO, 2011, p. 287). Dessa forma, a efetivação do direito à educação se dá em torno da existência de escolas públicas e uma boa estrutura física sim – tanto para aqueles que dão aula, tanto para aqueles que dela usufruem –, mas não só! A perspectiva da escolarização como direito humano e social perpassa a qualificação dos docentes, a metodologia de ensino, a consideração das particularidades de cada aluno, recursos didáticos disponíveis para estes, entre outros elementos que compõem a esfera qualitativa do ensino. Infelizmente,

a

compreensão

da

educação

como

um

direito

social

de

responsabilidade do Estado iniciou-se tardiamente no Brasil. Embora a tradição clássica do pensamento político brasileiro considerasse que uma limitada intervenção estatal na promoção dos direitos individuais e coletivos pudesse compensar o atraso do país nessa seara, o Império e a Primeira República – com o federalismo oligárquico – desconsideraram a educação como uma tarefa do Estado, delegando-a às províncias e, posteriormente, aos estados, a partir da Proclamação da República (ARAUJO, 2011, p. 284). Nesse cenário em pleno século XIX, a Doutora Gilda Cardoso (2011, p. 284) afirma que, enquanto outros países (sobretudo europeus) articulavam o seu sistema nacional de educação, o Brasil – organizado sob um Estado liberal – não tratava isso como prioridade. Pelo contrário, voltava-se à satisfação dos interesses políticos e econômicos das elites regionais – delineando uma estrutura social marcada pela concentração de terras, riquezas e conhecimento intelectual –, de modo a acentuar as desigualdades regionais, econômicas e sociais. Tendo se dado tardiamente no Brasil, a concepção universalista dos direitos sociais está intimamente relacionada à falta de institucionalização de uma esfera pública democrática, em que pese todo o arcabouço constitucional arquitetado, em tese, nas bases de um Estado

sociedade brasileira ser marcada por relações de poder verticalizadas e autoritárias, que constrói um limbo de contradições entre esta e a efetivação dos direitos sociais. Diante disso, as relações estabelecidas nas escolas seguiram o mesmo caminho, tendo as instituições, de modo geral, se tornado reprodutoras das profundas desigualdades existentes na sociedade, dando favorecimento maior aos interesses de classes sociais privilegiadas econômica e politicamente. Segundo Gilda Cardoso Araujo (2011, p. 288), as matrizes curriculares, os métodos avaliativos e de gestão dos estabelecimentos escolares corroboram com as desigualdades acentuadas historicamente, devido, primariamente, pela 112

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Democrático de Direito (ARAUJO, p. 288, 2011). Isso se dá pelo fato de – até hoje – a


dificuldade de acesso – muitos cidadãos não tinham a oportunidade de usufruir da educação obrigatória. Quando esse acesso foi ampliado, por volta de 1970, as práticas que ocasionavam a reprovação/evasão de um grande contingente de alunos se tornaram outro fator importante. Atualmente, percebe-se que, em que pese a quase universalização da oferta de educação pública obrigatória, a baixa qualidade do ensino impõe mais barreiras à efetivação do direito à educação, o que faz com que os alunos não atinjam a emancipação necessária para o exercício da cidadania e a inserção social (ARAUJO, 2011, p. 288). Ademais, a autora pontua que:

Apesar de os direitos sociais terem sido inscritos no sistema normativo brasileiro desde a década de 1930, essa inscrição se deu desde uma perspectiva classista no contexto do Estado corporativo inaugurado por Getúlio Vargas. Disso resulta a íntima relação entre os direitos sociais e o mundo do trabalho regulado e a exclusão de amplos contingentes da população brasileira (empregadas domésticas e trabalhadores rurais, por exemplo) das garantias sociais (ARAUJO, 2011, p. 288).

Com efeito, somente a partir de 1930 foi criado o Ministério de Educação e Saúde, sendo o marco do reconhecimento institucional da educação como um assunto nacional, havendo, logo em seguida, uma série de reformas, medidas e debates desse alcance – correspondentes à configuração de um modelo estatal intervencionista. Ademais, a crise de 1929 e a Grande Depressão inviabilizaram o funcionamento pleno do modelo liberal no Brasil, “tornando-se necessária não só a sistemática planificação estatal nos domínios econômicos, como também a incorporação das massas trabalhadoras e das classes médias urbanas ao sistema político” (ARAUJO, 2011, p. 284). Contudo, o objetivo primordial desse modelo de Estado não era ainda a

sim a transição de uma economia, acima de tudo agrária, para uma industrial. Por isso, a ideia de que o Estado seria o propulsor do avanço econômico e social do país. Já no período compreendido entre 1930 e 1970, duas grandes correntes desenvolvimentistas predominavam no quadro brasileiro, a nacionalista e a liberal, as quais permeavam os embates políticos polarizados, quando tramitava a primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (ARAUJO, 2011, p. 285). Na década de 1940, a fim de acompanhar a tendência mundial, já no que tange à Educação de Jovens e Adultos, a primeira iniciativa pública se deu em 1947, com a 113

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redistribuição de renda e de promoção do bem-estar social (ou ao menos não era tanto), mas


Campanha Nacional de Educação de Adolescentes e Adultos (CEAA), de autoria do Ministério da Educação e Saúde, a qual era formada pelo Serviço de Educação de Adultos. Já em 1952, surgiu uma política voltada para o meio rural, qual seja a Campanha Nacional de Educação Rural (CNER), depois do primeiro Congresso de Educação de Adultos, ocasião em que estabeleceu-se o slogan Brasileiro é ser alfabetizado. Mais à frente, o regime militar promoveu um aumento da abertura do país ao capital externo, na tentativa de uma junção das duas correntes num projeto nacional. Entretanto, foi somente no contexto inflacionário das décadas de 1970/1980, da queda do Muro de Berlim, do colapso da União Soviética e da consequente descrença na planificação econômica, que o modelo de Estado até então em funcionamento no Brasil começa a decair (ARAUJO, 2011, p. 285). Anos depois, a positivação e consolidação da educação como direito social à cidadania se deu somente com a Constituição da República de 1988, quando se conferiu um caráter universalista aos direitos sociais. O reconhecimento da educação como um direito social foi acompanhada da garantia da Educação de Jovens e Adultos (EJA) como um direito de todos e dever do Estado – previsto no art. 208 da Constituição de 1988 –, sendo efetivada no ensino fundamental e tornando-se obrigatória e gratuita aos que não usufruíram dessa oportunidade na idade própria. Em 1990, Fernando Collor instituiu o Programa Nacional de Alfabetização e Cidadania (PNAC) em lugar da Fundação Educar, a qual fora extinta. Em 1996, foi criada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB 9.394/96), a qual assegura que a Educação de Jovens e Adultos é direcionada àqueles que não tiveram acesso ou não puderam dar continuidade de estudos no Ensino Fundamental, acrescentando o Ensino Médio como prerrogativa, na idade própria. Tal modalidade de educação deveria se dar, ainda, considerando as características dos alunos e do alunado, seus interesses e condições de trabalho. A partir de então, uma série de medidas surgiram para

Programa Brasil Jovem e o Programa Nacional de Inclusão de Jovens (ProJovem), por exemplo. Infelizmente, o processo de afirmação de tais direitos iniciou-se numa realidade de desigualdade e exclusão sociais, paradoxalmente à positivação dos princípios igualitários proclamados na Constituição (TELLES, 1999, citado por ARAUJO, 2011, p. 287). No Governo Collor, o Neoliberalismo começa a se instalar no Brasil, de modo que a expansão das oportunidades de escolarização da sociedade brasileira se deu com os ideais da sociedade do pleno emprego aliados ao da sociedade organizada sob um modelo de Estado intervencionista, no que tange às searas social e econômica. Porém, com as mudanças e o 114

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efetivar a EJA, como o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), o


crescimento do Capitalismo em escala global, tais parâmetros dão lugar a um “atrofiamento do Estado quanto às suas responsabilidades com a educação, que não integra (...) a tradição liberal (daí a propriedade do termo ‘neo’, ‘novo’ liberalismo)” (ARAUJO, 2011, p. 286). Segundo Ball (1998, p. 126, citado por GIRON, 2008, p. 19), pode-se dizer que o Neoliberalismo constitui-se em uma ideologia mercadológica, consubstanciada na redução gradativa da intervenção estatal na economia e na sociedade. Desse modo, em vez de dar atenção à igualdade de direitos entre os seres humanos, dá-se prioridade às transformações econômicas. Assim, em oposição ao que defendia o Liberalismo clássico – a liberdade do indivíduo –, o Neoliberalismo reduz o ser humano a mero consumidor e expectador da liberdade econômica das grandes organizações, com influência financeira a nível nacional e mundial. Inserida nesse cenário, a educação passa a ter uma proposta semelhante, preparando o indivíduo para o mercado de trabalho por meio da transmissão de tal ideologia e de uma qualificação competitiva (GIRON, 2008, p. 20). Nesse modelo educativo, o ensino baseia-se em excessivo tecnicismo e dogmatismo, desconsiderando as particularidades dos alunos e do alunato – verdadeiras mercadorias em um modelo ainda fordista de escolarização. Mais ainda, afirma Giron (2008, p. 20) que: Com os limites estruturais do fordismo e o esgotamento das condições políticas e econômicas que garantiam a sua reprodução ampliada, o neoliberalismo impõe um outro desafio à educação: formar para que os indivíduos tenham competências num mercado de trabalho cada vez mais restrito, quando “os melhores”, e somente eles, conseguirão ter sucesso econômico (ou uma oportunidade de emprego).

No Neoliberalismo, o Poder Público acredita na possibilidade de dividir ou transferir a responsabilidade da garantia do direito à educação, a fim de favorecer o mercado, e sob a

Diante da precariedade da educação oferecida pelo Poder Público, a privatização parece uma ideia muito boa de ser adotada, mas ao delegar a responsabilidade pela oferta da escolarização obrigatória, ocorre uma fragilização da garantia do acesso à educação a todos, de modo que tal direito passa a ser extremamente mitigado (GIRON, 2008, p. 20). Dessa forma, o que se vende é uma educação de maior qualidade para o aluno, mas o verdadeiro beneficiado é o próprio modelo neoliberal. Isso se dá pelo fato de que esse modelo, sustentado no discurso meritocrático, afirma que o sucesso parte do esforço individual das

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justificativa de melhoria na rede de ensino – é a dita privatização dos serviços educacionais.


pessoas, as quais, enquanto empreendedoras de si, constroem sua trajetória inspiradora. A educação, portanto, deixa de ser universal e passa a ser um privilégio. Entretanto, o que ocorre é uma acentuação da desigualdade socioeconômica – base do sistema econômico capitalista –, já que não há uma igualdade de oportunidades – considerando o ponto de partida – para todos os seres humanos alcançarem a emancipação e adquirem um papel de cidadão participativo na sociedade. Desse modo, os menos favorecidos dão a largada com milhas de atraso, tornando a meritocracia uma verdadeira falácia. Além disso, numa sociedade marcada pelo crescente uso – e dependência – da tecnologia, o conceito de alfabetização adentra o meio digital, como requisito para o pleno exercício da cidadania. Porém, o domínio das tecnologias de informação e comunicação não deve ser considerado uma mera ferramenta de capacitação para o mercado de trabalho ou instrumento didático para a continuidade da transmissão do saber nas escolas (BONILLA, 2010, p. 40, citado por JOAQUIM; PESCE, 2017, p. 187).

3 A EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS

Para Paulo Freire (1967, p. 57, citado por ARAUJO; NASCIMENTO; SILVA, 2017, p. 70), a educação deve ser concebida e construída como prática da liberdade e, para isso, se faz necessário pensá-la sempre como uma prática a ser exercida em conjunto com o povo e nunca sobre ou simplesmente para este. Nesse sentido, esse processo não pode ser imperativo e coercitivo, mas precisa propor ao povo “uma reflexão sobre si mesmo, sobre seu tempo, sobre suas responsabilidades, sobre seu papel no novo clima cultural da época de transição” (FREIRE, 1967, p. 57, citado por ARAUJO; NASCIMENTO; SILVA, 2017, p. 70). Desse modo, com base nas concepções de Paulo Freire, o educando deve ser capaz vida, retomando seu próprio poder de escolha e decisões perante a vida societal – a emancipação. Concomitante a isso, o povo, antes alienado, passaria por um processo de redescobrimento da sua capacidade de enxergar o lugar que ocupa na sociedade, passando, então, a construir a consciência crítica dos problemas e das dificuldades reais. Com essa visão, a sociedade trocaria de lugar, saindo da posição de objeto para assumir a postura de sujeito, gerando uma sociedade participativa, em vez de acomodada, de acordo com Paulo Freire (1967, p. 53-54, citado por ARAUJO; NASCIMENTO; SILVA, 2017, p. 70).

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de desenvolver suas potencialidades. Por isso, o autor os coloca como protagonista de sua


A partir desse ponto de vista, o desenvolvimento de uma proposta curricular não pode se dar independentemente dos sujeitos envolvidos no processo de aprendizagem – docentes e discentes –, nem do contexto histórico e político em que está inserida. Assim, aspectos culturais, trabalhistas, de controle social, poder, hegemônicos e ideológicos constituem elementos basilares nas relações de ruptura com as ações pedagógicas conservadoras (PISTRAK, p. 29, citado por CIAVATTA; RUMMERT, 2017, p. 468). Na defesa da garantia do direito a todas as pessoas, a educação tem um papel importantíssimo, sendo, na concepção de Paulo Freire (2005, p. 22, citado por ARAUJO; NASCIMENTO; SILVA, 2017, p. 70), um direito fundamental, mas também como um elemento fundante para que o oprimido reconheça a “necessidade de lutar por ela” (FREIRE, 2005, p. 34). Tal reconhecimento se dá pela consciência da existência de uma realidade opressora – na qual há os que oprimem e os que são oprimidos, tal qual na sociedade que sustenta o capitalismo –, que pode ser superada pela criticidade aplicada às dinâmicas sociais, políticas, econômicas e culturais no mundo, isto é, por uma práxis autêntica. (FREIRE, 2005, p. 42, citado por ARAUJO; NASCIMENTO; SILVA, 2017, p. 74). De forma a revolucionar o histórico de políticas públicas destinadas à EJA – as quais se davam em torno do combate ao analfabetismo –, instituiu-se, em 2006, o Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos (PROEJA), antes conhecido como Programa de Integração da Educação Profissional ao Ensino Médio na Modalidade Educação de Jovens e Adultos. O intuito do PROEJA é atrelar a unificação profissional de jovens e adultos à educação básica, tendo avançado no Governo Lula, devido à união do EJA à formação profissional, bem como à oferta do ensino inicialmente na rede federal (ALMEIDA; CORSO, 2015, p. 128, citado por ALVES; RIBEIRO, 2019, p. 6). A proposta do Programa, então, é o “compromisso com a formação humana,

profissional”. O objetivo do Programa é, pois, uma compreensão do mundo pelo aluno, para que nele pudesse atuar, construindo uma sociedade justa, sendo “de formação na vida e para a vida e não apenas de qualificação do mercado ou para ele” (BRASIL, 2000b, p. 10, citado por ALVES; RIBEIRO, 2019, p. 6). O Decreto que instituiu o Programa, em seu art. 5º, parágrafo único, ainda estabelecia que as áreas profissionais dos cursos deveriam “guardar sintonia com as demandas de nível local e regional, de forma a contribuir com o fortalecimento das estratégias de desenvolvimento socioeconômico e cultural” (BRASIL, 2006). Nesse sentido, entre 2006 e 117

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constituída dos saberes e conhecimentos científicos e tecnológicos integrados à formação


2011, foram implementadas diversas medidas necessárias à efetivação do PROEJA, dentre estas, o financiamento para a abertura de cursos do PROEJA ofertados nas redes federal e estadual, a oferta de cursos de formação continuada para profissionais da educação e de cursos de pós-graduação stricto sensu e o projeto de Inserção Contributiva, visando melhorar o processo educativo e minimizar a evasão escolar (ALVES; RIBEIRO, 2019, p. 7). Apesar disso, nesse ínterim, surgiram novos marcos regulatórios nas políticas educacionais, como o ENEM – além de outros testes padronizados em larga escala –, que valorizam os resultados obtidos em detrimento dos processos educativos. Consequentemente, causam um afastamento da função social da escola, uma vez que não colocam em pauta a capacidade de inclusão que cada instituição possui (ARAUJO, 2011, p. 286). Ademais, segundo os arts. 23 e 211 da Constituição da República de 1988, a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios devem exercer competência conjunta da efetivação do direito à educação, por meio de políticas públicas. Entretanto, ainda falta a definição de uma atuação conjunta entre as diferentes esferas de poder – a ser concretizada por meio de uma lei complementar posterior, a qual criaria o Sistema Nacional de Educação (SNE), que até hoje não foi escrita. Diante desse quadro, em 2014, o Plano Nacional de Educação deu o prazo de 2 anos para que o Sistema Nacional de Educação fosse estabelecido, mas até o presente ano, 2019, tal sistema não se concretizou. Não há nem indicadores de monitoramento próprios dos alunos da EJA – dependendo de outras fontes de pesquisa –, sendo o Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (ENCCEJA) o mais próximo nesse sentido. O ENCCEJA, uma iniciativa do Governo Federal, consiste em um exame voluntário e gratuito para aferição de habilidades e competências dos jovens e adultos residentes no Brasil e no Exterior que não tiveram a oportunidade de concluir os estudos na idade própria (INEP, 2013, citado por HADDAD; SIQUEIRA, 2015).

transparecer, a rigor, que a preocupação de seus executores está mais em utilizá-lo como uma avaliação de competências individuais do que uma avaliação do sistema que poderia indicar caminhos para novas políticas e programas de melhoria da qualidade da EJA (AÇÃO EDUCATIVA; INEP, 2013, citado por HADDAD; SIQUEIRA, 2015). Segundo dados do IBGE, na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD), realizada entre 2016 e 2018, os índices de analfabetismo entre jovens e adultos variaram pouquíssimo, apresentando uma considerável diferença entre brancos, pretos e

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Contudo, sua implementação acabou sendo direcionada para a certificação, deixando


pardos, tendo estes dois últimos as taxas mais elevadas, conforme pode-se verificar na imagem baixo.

Observa-se, pois, a intrínseca relação das taxas de analfabetismo entre pretos e pardos – que se mostram significativamente maiores do que a porcentagem apresentada no que tange às pessoas brancas – e a educação seletiva promovida pelo neoliberalismo. Além disso, na imagem abaixo, observa-se também as diferenças entre regiões, sendo as regiões Nordeste e a Norte as que possuem os menores índices de conclusão da etapa do ensino básico obrigatório, com divisões também de sexo e raça, denotando a permanência das diferenças econômicas e sociais regionais perpetradas desde a época do colonialismo no

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Brasil.

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Ademais, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, de 2018, demonstrada abaixo, a taxa de estudantes da EJA também se mostra bastante elevada, sobretudo considerando as diferenças de sexo – o índice de mulheres é maior do que o de homens – e de raça, a taxa de pretos e pardos é quase pouco mais que o dobro daqueles

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considerados brancos.

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Além disso, a partir da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, realizada em 2017 e 2018, é possível observar que os índices de pessoas de 18 a 29 anos que possuíam alguma ocupação e não estudavam é bem maior do que todos os outros, havendo pouca variação entre um ano e outro, fato que só reforça a influência da vida laboral na

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escolarização de jovens e adultos e a necessidade de políticas que se atentem para tal questão.

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Ora, o modelo de ensino no Brasil segue as tendências neoliberais e, dessa forma, se organiza pela lógica fordista, isto é, a escola está estruturada para ensinar muitos alunos como se fossem um só (CIAVATTA; RUMMERT, 2010, p 466). Nesse contexto, a educação básica tem sido renegada à população brasileira, principalmente aos jovens e adultos e, além disso, a educação oferecida prescinde de elementos primordiais para a compreensão do mundo em que vivem. Mas, para além disso, os mais prejudicados são os indivíduos pertencentes a classes sociais menos favorecidas, que possuem uma condição de vida e de trabalho empobrecedoras. Tais indivíduos, pela necessidade de integrar sua renda e de sua família, não podem completar os estudos, muitas vezes não chegando nem a alcançar o ensino médio. Isto é, o direito à educação ainda não é efetivado de forma universal, gratuita e de qualidade para todos no Brasil. Assim, o direito fundamental à educação continua a ser negado para boa parte da população brasileira e, principalmente em relação à EJA, não priorizá-la significa penalizar duplamente os analfabetos (GADOTTI, 2014, p. 15). Dessa forma, como já dito alhures, a responsabilidade do Estado quanto à escolarização obrigatória não se dá tão somente com o oferecimento de escolas públicas de ensino, tampouco com a implementação de programas que, na prática, não são tão eficazes e não consideram as características individuais de cada aluno. Para a EJA, é preciso utilizar uma metodologia apropriada. Não é cabível a mesma técnica utilizada no ensino básico de crianças, tendo em vista que, diante de tantas vivências, é uma humilhação para o adulto ter de retornar a um espaço infantilizado. É preciso, portanto, superar uma metodologia que lhes nega a sua identidade e os elementos culturais que a compõem.

A heterogeneidade é uma marca da EJA. Ela atende os excluídos dos excluídos: indígenas, quilombolas, populações do campo, ciganos, pessoas portadoras de deficiências, pessoas em situação de privação de liberdade, catadores de materiais recicláveis, população em situação de rua... que, mesmo exigindo também tratamento didático-pedagógico e materiais didáticos que atendam a todos, sem distinção, pois todos estão sendo alfabetizados, necessitam, por outro lado, de atenção pedagógica e metodológica diferenciada e específica. (GADOTTI, 2014, p. 21).

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Nesse sentido, ressalta-se que:


Desse modo, somente a partir da compreensão e consideração da existência de uma sociedade organizada em classes, na divisão técnica e social do trabalho e das consequentes contradições perpetradas, pode-se entender a matriz curricular superficial e infantilizada que se projeta sobre a educação em geral e, sobretudo, sobre os conhecimentos adquiridos pelo trabalho pelos alunos da EJA (CIAVATTA; RUMMERT, 2010, p. 472). Pelo equívoco cometido por muitos programas da EJA, de possuir uma matriz curricular que não é interessante para o adulto, muitos alunos não encontram motivações para persistir no estudo, principalmente se, para além da cultura letrada, não se considera o uso e estudo de novas tecnologias de informação e comunicação (GADOTTI, 2014, p. 21). É preciso um aprofundamento metodológico com base na andragogia, consistindo na “ciência que estuda as melhores práticas para orientar adultos a aprender” (MARTINS, 2013, LEMBRAR), considerando suas experiências como a melhor fonte para basear técnicas de ensino. Diante disso, urge a implementação de um plano educativo, o qual deve espelhar uma matriz curricular libertadora – conforme o pensamento de Paulo Freire – capaz de romper com o status quo, principalmente no que diz respeito à educação de jovens e adultos, na qual é imprescindível a consideração das experiências e potencialidades adquiridas no trabalho, por exemplo. Segundo Ciavatta e Rummert (2010, p. 466),

A questão da experiência pressupõe sua abordagem dialética que implica, por um lado, abandonar a visão dominante, claramente preconceituosa, que desqualifica, a priori, os saberes acumulados pela classe trabalhadora em suas múltiplas experiências de vida. Por outro lado, exige que não nos enredemos em uma visão romântica, que confere às experiências, também a priori, um caráter de positividade. Trata-se, portanto, de reconhecer a classe como locus de construção da vida, da experiência do trabalho e dos conhecimentos dela derivados. Na elaboração do

privatizados, transformados em mercadorias e distribuídos de forma desigual, segundo as necessidades e os interesses dominantes. Verifica-se, assim, a permanente dualidade imposta pelo modo de produção capitalista, entre o trabalho e a ciência; essa última concebida como força produtiva, transformada em propriedade privada pelo capital.

Nesse cenário da EJA inserida no neoliberalismo, o conceito de aprendizagem continuada (lifelong learning), sustentado pela UNESCO, não chega nem perto de ser posto em prática. O modelo de ensino fordista não orienta os alunos para a emancipação e o 123

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currículo, não se pode ignorar que os conhecimentos produzidos pela sociedade são


pensamento crítico e, na Educação de Jovens e Adultos, especificamente, o ensino não atinge sua concretude e o seu objetivo para alguns alunos. Com base nisso, a evasão dos alunos a EJA deve ser, também, analisada a partir de uma ótica diferenciada, já que pouco tem a ver com a evasão que se dá na educação básica. A compreensão das causas da evasão, para que possa ser evitada, deve perpassar a situação econômica do trabalhador, seu horário de trabalho, transporte, saúde, falta de material didático; para os que moram na zona rural, por sua vez, onde se encontra o maior número de analfabetos, a distância e a longa jornada de trabalho na lavoura também é outro importante fator a ser considerado (GADOTTI, 2014, p. 23). Portanto, uma nova política da EJA precisa assentar-se em princípios democráticos, em respeito à dignidade da pessoa humana, visando a participação cidadã de todos, a partir de um conhecimento crítico e emancipatório proporcionado pela educação. Para isso, é necessário que o Estado assuma, de fato, a responsabilidade pela escolarização obrigatória, tendo em vista que, como já dito, o neoliberalismo não é capaz – pela visão que atribui ao estudante ao reduzi-lo a mercadoria – de influir positivamente num modelo educativo apto a ensejar a emancipação dos indivíduos.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por todo o exposto, observa-se que o Brasil, adotando tardiamente a concepção universal da educação e a inserindo no seu rol de direitos fundamentais e sociais somente a partir da Constituição da República de 1988, não desenvolveu com efetividade, até hoje modelos educacionais que trabalhem, em conjunto com os discentes, sua emancipação e (re)inserção na sociedade.

educação e do avanço na criação de programas voltados à Educação de Jovens e Adultos, o Brasil passava, também, por um processo de consolidação do neoliberalismo. Neste, a educação – positivada como um direito dos indivíduos e um dever do Estado – passa a ser tratada como um potencial mercado. Desse modo, embora o Brasil tenha apresentado significativos avanços na redução das taxas de analfabetismo, a concretização da escolarização obrigatória resta prejudicada pela permanência de relações socioeconômicas de poder, que ocasionam uma seletividade na educação básica. Com isso, a população menos favorecida, periférica, sobrevivente à margem 124

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Isso se dá pelo fato de que, no contexto de internalização da concepção universal da


das atividades estatais é mais atingida negativamente, ao ter o seu acesso à educação negado pela visão meritocrática que o neoliberalismo dá à educação e ao ingresso no mercado de trabalho. Nesse cenário, a aprendizagem continuada (lifelong learning) aparenta ser uma ideia utópica, haja vista que os indivíduos não dispõem de instrumentos necessários à formação do pensamento crítico acerca do mundo, à sua emancipação enquanto sujeitos de direitos, à consciência do seu papel na sociedade em que vivem e, tampouco, ao pleno exercício de sua cidadania. O discurso de que somente os melhores alcançam o sucesso a partir de seus próprios esforços – meritocracia – é falacioso e serve de propulsor para a permanência e desenvolvimento do neoliberalismo. A glorificação de casos raros de pessoas que possuem uma dura trajetória de vida na periferia e que alcançaram o sucesso exercendo esforços extenuantes para poderem “ser alguém” na sociedade não pode se tornar a regra, para uma situação que deve ser exceção. A educação é um direito de todos, não uma doação. A falha do Estado em promover educação de qualidade, quando tem essa obrigação prevista em dispositivos constitucionais não deve servir de ensejo para a fortificação da ideia de que a privatização do ensino trará uma melhoria nos índices de escolarização e uma redução nas taxas de analfabetismo no Brasil. O neoliberalismo, como exposto alhures, acentua as desigualdades socioeconômicas que assolam o Brasil desde o seu período colonial, as quais compõe o pilar que sustenta o capitalismo, no qual a população é reduzida à mera engrenagem no motor do mercado. Mais ainda, no contexto da educação básica, a Educação de Jovens e Adultos é esquecida e, seus alunos, penalizados duplamente, por não terem tido o acesso à educação na idade própria. Ora, num sistema de ensino inspirado no fordismo, em que todos são tratados como um só, a matriz curricular da EJA se mostra ainda mais ineficaz para aqueles que a

de direitos.

REFERÊNCIAS

ALVES, Luísa Helena Silva e; RIBEIRO, Elisa Antônia. Política educacional para a educação de jovens e adultos no governo Lula: construção da agenda, formulação da política e

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procuram, na medida em que não considera suas particularidades como ser humano e sujeito


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THE INFLUENCE OF NEOLIBERALISM ON THE EFFECTIVENESS OF THE RIGHT TO EDUCATION OF YOUNG PEOPLE AND ADULTS

ABSTRACT This study aims to analyze, from a bibliographical research, neoliberalism’s influence on the pathways to the effectiveness of the right to education of young people and adults, as right of those who didn’t have access to basic education on the proper age. In other to do that, there is an study about the construction of the universalist idea of education in Brazil, as a free right of all people, until it becomes, in fact, a human, fundamental and social right, besides the challenges also presented by an outdated curriculum, based on the fordist model of production, which increases socioeconomic’s inequalities. Keywords: Right to education. Education of young people and adults.

FIDES, Natal, V. 10, n. 2, jul./nov. 2019.

Neoliberalism.

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RECONHECIMENTO E CIDADANIA DOS ANALFABETOS NO BRASIL: UMA QUESTÃO HISTÓRICA E POLÍTICA Amanda Cristina Andrade1 Marcelo Sevaybricker Moreira2

RESUMO Considerando a trajetória da colonização e formação política do Brasil, constata-se uma série de impedimentos da participação de grande parte da população brasileira no âmbito político, dentre eles o grupo dos analfabetos, que até hoje sofre restrição em relação à participação ativa nas eleições. De certa forma, é um problema com raízes históricas e sócio-políticas. A partir disso, busca-se analisar a formação da cidadania dos iletrados no país, considerando os efeitos na formação da identidade do grupo, refletindo, também, a questão do (não) reconhecimento deles, a partir de leituras de diversas obras, entre elas as de Axel Honneth e Jessé Souza.

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Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Lavras (UFLA). Professor adjunto na Universidade Federal de Lavras (UFLA). Doutor e Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). 2

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Palavras-chave: Cidadania. Reconhecimento. Analfabetismo.


1 INTRODUÇÃO

Partindo de um histórico repleto de privações de direitos, inicialmente vale apontar que, no cenário brasileiro pós-Constituição de 1988, há uma legitimação da participação passiva dos analfabetos, o que pode ser considerado um grande avanço. No entanto, essa participação passiva advém do fato que, ainda, são inelegíveis e possuem voto facultativo. Diante disso, por meio de uma metodologia de investigação bibliográfica, buscou-se analisar o processo de formação da cidadania dos iletrados e os efeitos na construção da identidade dessa população em relação à diferenciação de direitos ao longo do período republicano brasileiro. Com a análise da história do Brasil acerca dos direitos políticos, percebe-se uma restrição parcial, ou até mesmo total, dos direitos políticos dos iletrados. A partir das leituras realizadas, pode-se afirmar que existe uma estreita relação entre o capitalismo, a falta de reconhecimento e a cidadania relativa ou até mesmo uma subcidadania dos analfabetos, uma vez que o sistema capitalista desenvolve um forte sentimento individualista na sociedade, voltado para a meritocracia, em que cada um se preocupa somente em alcançar uma melhor posição na sociedade/mercado de trabalho. Partindo de uma concepção em que subcidadania está relacionada a uma condição de quem, em uma sociedade, não é considerado um cidadão completo, haja vista que alguns direitos básicos lhes são negados, existe uma condição de tratamento diferenciada perante aos demais integrantes da comunidade. Para exemplificar melhor, pode-se considerar uma situação na qual a cidadania estaria diretamente relacionada com a posição de mercado e com o salário que o indivíduo recebe em função de sua qualificação profissional, sendo essa a tríade meritocrática. Ou seja, para alguém ser reconhecido, nessa sociedade, como cidadão completo, é necessária a qualificação para alcançar uma boa posição social (emprego) e, assim, obter um salário, desfrutando de seus direitos.

quesito da qualificação, visto que não apresentam qualificação formal, estando, assim, inaptos para desempenhar funções no mercado que gerariam uma boa posição e um bom salário. Logo, seus direitos são afetados por serem considerados incapazes, tanto no quesito profissional, quanto político. Com isso, há uma falta de preocupação quanto aos desrespeitos sofridos pelos analfabetos em seus direitos e de seu reconhecimento. Um ponto que será abordado, também, é em relação ao momento em que a possibilidade de candidatura dos analfabetos é negada. Quando isso ocorre, é ferida a segunda dimensão de reconhecimento deles, que corresponde à esfera cognitiva dos direitos, o que, por 129

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Analisando essa relação na perspectiva dos analfabetos, a barreira é imposta no


sua vez, gera neles o sentimento de não pertencimento à sociedade. Por não possuírem instrução, estes não alcançam uma boa colocação no mercado e se sentem inferiorizados quanto aos aspectos culturais e de representação, o que reforça a invisibilidade social do grupo. Essa falta de comoção coletiva é, ainda, um obstáculo para o alcance da igualdade de diretos. Uma forma de empoderamento é a educação, uma vez que ela é necessária não só para a capacitação profissional, mas também para a formação do pensamento crítico. E, assim, a partir dessa ferramenta, o indivíduo é capaz de perceber as injustiças que sofre e ir em busca de seus direitos.

2 OS ANALFABETOS NA POLÍTICA BRASILEIRA

Para compreender a problemática que envolve os analfabetos no Brasil, em relação à sua inelegibilidade, é fundamental fazer uma breve análise histórica. A partir dela, percebe-se um conjunto de pré-conceitos que caracterizaram esse grupo ao longo de toda a trajetória política do Brasil até a Constituição de 1988, na qual no artigo 14, § 1º, inciso II, alínea a, torna facultativo o alistamento eleitoral para os analfabetos, e, no § 4º, declara que os analfabetos são inalistáveis e inelegíveis. Iniciando a análise a partir da colonização do Brasil, observa-se a falta de preocupação com a educação escolarizada, uma vez que ela não era necessária para a formação de mão de obra, mais especificamente o trabalho braçal, e nem para questões políticas. Em 1549, chegaram os jesuítas com a finalidade de instruir e catequizar os indígenas, suprimindo a cultura dos nativos e os culturalizando, conforme os ensinamentos luso-católicos, e a partir de abertura de escolas para os índios e os filhos de colonos, em locais 41), “foi inaugurado o analfabetismo no Brasil”. Após a expulsão dos jesuítas, em 1759, houve um período sem escolas, em que ocorriam somente algumas aulas avulsas. Passados alguns anos, com a instalação da Coroa Portuguesa, em 1808, no território brasileiro, surgiu a necessidade do ensino profissionalizante, com o objetivo de atender às demandas dos novos habitantes, e, dessa forma, foi inaugurado o ensino superior no país.

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economicamente estratégicos. Nessa época, de acordo com Ana Maria Araújo Freire (1989, p.


Com a independência do Brasil em 1822, foi elaborada uma Constituição em 1824 3, que declarava a instrução primária gratuita a todos os cidadãos, porém, infelizmente, não havia profissionais adequadamente preparados para tratar da alfabetização. Fundamental é ressaltar que nem todos eram considerados cidadãos, pois, conforme o artigo 6º da Constituição de 1824, seriam cidadãos apenas os que tivessem nascido no Brasil, quer fossem ingênuos ou libertos. Desse modo, percebe-se que não havia tanta exigência em manter o ensino fundamental para a população, uma vez que uma grande parte desta era escrava. Além do mais, as outras camadas da população ou tinham aulas avulsas ou com preceptores em suas casas e não havia uma obrigatoriedade em mandar as crianças à escola. Com relação à eleição no período do Império (1824-1889), apenas aqueles que eram considerados homens bons e proprietários de terra podiam ser eleitos, contudo, não havia nenhuma exigência legal de que os cidadãos fossem alfabetizados para poderem votar. Com a Lei Saraiva4, de 1881, passou-se a exigir que os novos eleitores soubessem ler e escrever, sendo esta a primeira vez que os analfabetos foram expressamente barrados de se cadastrarem como eleitores no país. Nesse sentido, grande parcela da população foi impedida de participar diretamente das eleições, ficando restrito a uma pequena parte da população o rumo político do Brasil, o que revela que os liberais e republicanos nacionais não apenas não estavam atentos às novas formas de exclusão promovidas por suas reformas, como procuraram claramente limitar a participação política das camadas populares. É notória a circunstância elitista relacionada com o acesso à escolarização. A educação era vista apenas como necessária para suprir carências das classes superiores, logo grande parte dessa massa populacional não tinha acesso a ela por realizarem trabalhos menos especializados. Percebe-se, portanto, uma forte ligação entre poder econômico, político e posição social, na qual esses grupos eram os detentores do saber e perpetuaram esse contexto Em 1878, foi criado o Decreto nº 7.031-A5, que instituía cursos noturnos para adultos analfabetos nas escolas públicas de instrução primária de 1º grau, apenas para o sexo masculino, livres ou libertos. Decerto, havia uma grande quantidade de obstáculos estabelecidos como requisitos, o que dificultava a proposta de alfabetização. Vale ressaltar 3

BRASIL. Carta de Lei de 25 de Março de 1824. Manda observar a Constituição Politica do Império, oferecida e jurada por Sua Majestade o Imperador. 4 BRASIL. Decreto nº 3.029, de 9 de Janeiro de 1881. Reforma a legislação eleitoral. Publicado na Secretaria de Estado dos Negócios do Império em 10 de Janeiro de 1881. 5 BRASIL. Decreto nº 7.031-A, de 6 de Setembro de 1878. Cria cursos noturnos para adultos nas escolas públicas de instituição primária do 1º grau do sexo masculino do município da Corte.

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por grande parte da história brasileira.


também o artigo 42 desse decreto, que dava preferência a cargos como de servente ou ajudante de porteiro aos que concluíssem esse curso noturno, evidenciando a associação entre deter o saber e o pertencimento a certa classe social. De acordo com Ana Maria Araújo Freire (1989, p. 193), “a questão do analfabetismo é, inegavelmente, uma questão política e uma questão econômica”. Avançando um pouco mais, ocorre a modernização no Brasil, com o fim da escravidão e a chegada de imigrantes com novas ideologias. Essas ideologias apresentam grande influência na Constituição de 18916, como exemplo, a extinção do voto censitário. No entanto, a Constituição continuava com o censo literário, sendo que aproximadamente 85% (FREIRE, 1989, p. 163) da população eram analfabetos. Assim, fica evidente o interesse em manter o direito e o privilégio de poucos em detrimento da maior parte da população, uma vez que as mulheres, os praças, os mendigos e os religiosos, sujeitos a votos de obediência, estavam excluídos também do processo eleitoral. A partir dos anos de 1930, houveram várias mudanças quanto ao processo eleitoral, como a criação da Justiça Eleitoral, obrigatoriedade de alistamento e o voto secreto, porém, os analfabetos, que representavam grande parte da população, continuaram privados de direitos políticos, ou seja, excluídos do processo eleitoral, o que persistiu durante todo o Estado Novo e o Regime Militar (1945-1985). Vale ressaltar que várias campanhas foram desenvolvidas com o intuito de erradicar o analfabetismo, como a Campanha de Educação de Adolescentes e Adultos e a Campanha Nacional de Educação Rural, porém sem sucesso em alcançar seus objetivos. Após mais de cem anos de privação de direitos políticos, iniciada com a Lei Saraiva em 1881, houve a emenda constitucional nº 25 de 19857, que previa o direito ao voto dos analfabetos em eleições municipais. Com o processo de redemocratização do país e a nova Constituição Federal, foi mantido o sufrágio universal e declarada a idade como único

em todos os cargos da República, sendo facultativo a eles participar ou não do processo eleitoral como votantes. No entanto, continuaram sendo inelegíveis. Infelizmente, ainda hoje há uma grande parte da população analfabeta, que não possui ensino gratuito de qualidade, o

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BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. 24 de fevereiro de 1891. Nós, os representantes do povo brasileiro, reunidos em Congresso Constituinte, para organizar um regime livre e democrático, estabelecemos, decretamos e promulgamos a seguinte. 7 BRASIL. Emenda Constitucional nº 25 de 1985, de 15 de maio de 1985. Altera dispositivos da Constituição Federal e estabelece outras normas constitucionais de caráter transitório.

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requisito de quem poderia votar. Além disso, os analfabetos passaram a ter o direito de votar


que dificulta a transformação desse grupo em cidadãos ativos, ou seja, com total participação na vida política. Nesse sentido, é notório que essa ausência dos iletrados na vida política pode ser motivada pelos obstáculos propositalmente colocados para restringir a participação de toda a população nas decisões, visto que sempre existiu um grande número de analfabetos, e, assim, havia o medo desse grupo mudar os rumos da política. Com isso, o “problema” com os analfabetos apresenta muito mais um objetivo de restringir o voto e a participação dessa parcela da população, do que a preocupação com a educação em si. O autor Jessé Souza (2006) apresenta, com excelência, como se constituiu os grupos periféricos no Brasil, e como isso afetou a formação da cidadania deles. Segundo o autor, o fato de o país ter vivido uma época de escravidão e patriarcalismo contribuíram diretamente para esse tratamento diferenciado para com alguns setores da sociedade, visto que, anteriormente, apenas os donos de escravos, fazendeiros ou europeus que aqui viviam eram considerados gente com direitos a serem respeitados. Os escravos e os mestiços não possuíam esse “direito”, não recebiam esse tipo de tratamento como uma pessoa. Mesmo após o período de escravidão, os escravos libertos ainda permaneciam desamparados, persistindo a diferença de tratamento. Apesar de não serem mais vistos como “animais” ou como força de trabalho, eram considerados pessoas inferiores. Como diz o autor, “o abandono dos libertos pelos antigos donos e pela sociedade como um todo, estava, de certo modo, prefigurado o destino da marginalidade social e da pobreza econômica” (SOUZA, 2006, p. 155). Pode-se assim dizer que o início da segregação social se deu com o fim da escravidão, uma vez que o negro, em sua grande maioria, sem estudo e sem uma habilidade profissional específica para encarar o mercado de trabalho, viu-se à margem da sociedade. Souza (2006) descreve três condições básicas para alguém ser considerado um

existe uma tríade meritocrática que envolve qualificação, posição e salário. A qualificação é primordial para que se alcance um bom emprego, com um salário considerável e, assim, obtenha-se uma boa posição na sociedade. Como salienta o autor (SOUZA, 2006, p. 169):

A tríade torna também compreensível porque apenas através da categoria do trabalho é possível se assegurar de identidade, autoestima e reconhecimento social. Nesse sentido, o desempenho diferencial no trabalho tem que se referir a um indivíduo e só pode ser conquistado por ele próprio. Apenas quando essas

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“cidadão completo”, em conformidade com Kreckel. Como já dito, de acordo com o autor,


precondições estão dadas pode o indivíduo obter sua identidade pessoal e social de forma completa.

Percebe-se, assim, a importância da educação (qualificação) para o reconhecimento como cidadão. Materialmente falando, sabe-se também da correlação positiva entre escolaridade, empregabilidade e renda. Além disso, nota-se a questão valorativa do trabalho, nessa sociedade, para ser reconhecido como sujeito de direitos. É fato que, no Brasil, ao longo dos governos, foram propostos alguns projetos a fim de erradicar o analfabetismo, como EJA (Educação de Jovens e Adultos), ou outros similares com o mesmo propósito. No entanto, eles não foram tão eficazes em concluir as metas, visto o grande contingente de analfabetos ainda hoje, sendo um total de 11,8 milhões de analfabetos, conforme dados do IBGE de 2016, o que corresponde um total de 7,2% da população de 15 anos ou mais8. Nota-se, a partir da leitura de Souza (2006), como se deu a naturalização e invisibilidade para as diferenças sociais. Considerando as três condições do “cidadão completo”, observa-se que estas não são encontradas, na maioria das vezes, nas pessoas não alfabetizadas. Sendo assim, a grosso modo, pode-se apontar uma estreita relação entre a formação da “ralé” (SOUZA, 2006) brasileira com a questão econômica e falta de visibilidade. Nossa “ralé” tem uma cor, uma condição econômica e um similar nível educacional. Assim, o analfabeto faz parte dessa “ralé”. De acordo com Carvalho (2015), os dados apontam que a educação é o fator que mais bem explica o comportamento das pessoas no que se refere ao exercício dos direitos civis e políticos. E, ainda segundo o autor, a desigualdade perante a lei e a falta de acesso a justiça, sobretudo por parte dos pobres, continuam sendo grandes obstáculos à constituição de uma cidadania justa (CARVALHO, 2015, p. 243). Sendo assim, pode-se apontar que aquele grupo social formado por ex-escravos e

estes que são desprovidos de uma educação formal que os ajudariam a ir em busca de seus direitos e os tornariam dignos desses perante os demais sujeitos. Os dois autores demonstram a importância da educação para a formação de uma boa cidadania. Carvalho (2015, p. 218) argumenta que no país há cidadãos de terceira classe, os quais seriam negros, pardos, analfabetos e aqueles com educação fundamental incompleta, sempre parte da política nacional apenas nominalmente, como figurantes. Na verdade, eles 8

Taxa de analfabetismo entre pessoas pretas e pardas. G1. 21 de dezembro de 2017. Disponível em <https://g1.globo.com/educacao/noticia/analfabetismo-entre-pessoas-pretas-e-pardas-e-mais-que-o-dobro-doque-entre-as-brancas-diz-ibge.ghtml>. Acesso em março de 2019.

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mulatos que Souza destacou, na maioria das vezes, são os pobres destacados por Carvalho,


teriam seus direitos civis extremamente desrespeitados, valendo para eles, basicamente, apenas o Código Penal, tendo em vista que são maioria nas prisões. Ainda hoje, é notória a desigualdade perante a lei, uma vez que os analfabetos não possuem, perante a Constituição de 1988, a oportunidade de serem eleitos como qualquer outro cidadão. Com isto, pode-se entender que a Constituição reafirma anos de diferenciação social para com os “sujeitos de terceira classe”. Um fator que chama a atenção é a falta de empatia dos demais que são considerados cidadãos com esse grupo social que tem os direitos afetados. De acordo com Oliveira (2006), ao passo que a sociedade vai se desenvolvendo e se aproximando da forma capitalista de mercado, desenvolve no ser humano o egoísmo como característica. Assim, ele passa a se preocupar somente com si e com os entes mais próximos, deixando de desenvolver o sentimento de coletividade, o que acarreta a ausência de interesse por participar da vida política. Nessa perspectiva, é importante analisar os efeitos causados aos indivíduos a partir da exclusão de direitos. Axel Honneth (2003) argumenta que a justiça é uma questão de conflitos por reconhecimento. Destaca a necessidade do reconhecimento de nossas capacidades e realizações por terceiros. Aponta também a importância desse reconhecimento para a construção e o desenvolvimento da identidade social. Segundo o autor, o reconhecimento é formado por três esferas: emotiva, jurídico-moral (cognitiva), e de valores (estima). A primeira forma de reconhecimento acontece nas relações primárias como, por exemplo, na família, com uma relação de amor/amizade. Isso permite ao sujeito desenvolver uma confiança em si mesmo. A segunda forma de reconhecimento se realiza no reconhecimento cognitivo, caracterizado por meio dos direitos, sendo ele o elemento material para o sujeito ser visto como cidadão, indivíduo igual ao outro em capacidade perante os

terceira forma de reconhecimento, refere-se ao valor social do indivíduo, é o status de que ele goza e que está relacionado com suas propriedades e sua competência que, quando reconhecida pelo grupo, proporciona um desenvolvimento de autoestima da pessoa. No momento em que alguma dessas esferas não é reconhecida pelo grupo, o sujeito é lesado e, consequentemente, desenvolve uma visão negativa de si, o que prejudica a integridade de sua identidade. Existem diferentes graus de desrespeito, associados respectivamente às três formas de reconhecimento: maus-tratos; privação de direitos e exclusão; ofensa e humilhação. 135

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demais integrantes da comunidade, desenvolvendo assim uma relação de autorespeito. Já a


Os maus-tratos não são constituídos apenas pela dor física, mas também por sua relação com o sentimento que prejudica a autoconfiança. Quando o sujeito sofre privação de direitos que são institucionalmente garantidos, sente-se diferente perante os outros integrantes do grupo, havendo exclusão social, além de ser prejudicado no desenvolvimento do autorrespeito por se sentir inferior aos demais. Já a ofensa e a humilhação tiram do sujeito a possibilidade de atribuir um valor social às suas próprias capacidades, tendo a sua honra ferida, ocorrendo uma perda de autoestima social. Essa fase de transição do estado de desrespeito e sentimentos negativos para uma busca ativa por reconhecimento acontece a partir do momento em que os sujeitos não enxergam fundamentos no desrespeito que lhe são dirigidos e, inseridos nesse contexto de opressão, se unem a fim de buscar a autorrealização por meio da luta social, imprescindível para uma possível transformação da sociedade. Nesse sentido, a partir do momento em que a candidatura de analfabetos é negada, é ferida a segunda etapa de reconhecimento, a esfera cognitiva de direitos, fazendo eles se sentirem inferiores quando comparados aos demais cidadãos e abalando seu autorrespeito. Em relação ao movimento social por parte dos analfabetos, ainda não ocorreu essa busca ativa por reconhecimento. Um dos motivos pode estar relacionado a essa diferença que sentem em relação aos demais cidadãos, apenas aceitando a situação de exclusão como justificável e/ou natural. Outra explicação seria o pensamento de serem incapazes de provocar alguma mudança nesse cenário, em função das ofensas e humilhações sofridas por eles, as quais tiram dos sujeitos a capacidade de acreditarem em si mesmos. Assim, pode subsistir uma situação de aceitação/comodismo por parte dos analfabetos, de imposição e restrição de participação pelos outros grupos, similar a uma “manobra” que pode ser resumida no medo de mudar os rumos da política. A partir disso, é fato que a construção da identidade do sujeito estaria relacionada

os sujeitos para que se construa a identidade. No caso dos analfabetos, ela se encontra enfraquecida em razão de diversas formas de desrespeito, tanto na forma política, por não serem tratados de igualmente, quanto na forma econômica, uma vez que essa condição os impossibilita de obter um emprego ideal na sociedade capitalista moderna. Acredita-se que avaliar a cidadania dos analfabetos no Brasil, sob a perspectiva do reconhecimento, a partir da teoria social de Honneth, permite uma compreensão mais ampla e crítica desse problema social do que teorias da justiça centradas na discussão sobre redistribuição. Dizendo de outro modo, a injustiça reiteradamente produzida em relação aos 136

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com as esferas de reconhecimento supracitadas. É essencial o reconhecimento recíproco entre


iletrados no país não se resume a uma má-distribuição de um bem público (no caso, a educação), implica também em formas de desrespeito nem sempre visíveis, mas certamente significativas e arraigadas na formação do Brasil. Já no âmbito da teoria da justiça, conforme destaca Axel Honneth (2015), existem diferentes tipos de liberdade: negativa, reflexiva, jurídica e moral. Cabe aqui analisar a liberdade reflexiva, uma vez ser esta a que melhor se encaixa no contexto da pesquisa. Dentro dessa teoria, existem duas vertentes sobre como se dá esse tipo de liberdade, seria por autorrealização ou por autolegislação (autodeterminismo). Na autorrealização, o indivíduo seguiria suas próprias intenções. Já na autolegislação, o indivíduo segue as regras que ele mesmo impôs a partir de um pluralismo da opinião pública. Segundo o autor, “desde Aristóteles, muitos sábios e filósofos do mundo antigo já sabiam que, para ser livre, o indivíduo tinha de chegar as suas próprias decisões e poder realizar suas vontades.” (HONNETH, 2015. p. 58). Pensando isso a partir da perspectiva dos analfabetos, eles não são totalmente libertos uma vez que não podem concretizar suas vontades nas demandas sociais, por não serem realmente representados. A falta da garantia de participação direta provoca uma semiliberdade no grupo dos analfabetos. Honneth também aborda a questão da legitimidade democrática. Partindo da ideia da liberdade reflexiva, na vertente da autolegislação, ele cita autores como Durkheim, Dewey e Habermas que compactuam com o ideal de que é necessário uma autolegislação sem qualquer tipo de coerção entre os cidadãos, sendo fundamental a participação em igualdade de direito, trazendo assim maior liberdade para todos. De acordo com o autor, “toda decisão tomada em nome do povo nos Estados modernos estará submetida a enorme objeção de não contar com suficiente legitimidade democrática” (HONNETH, 2015. p. 584). Ele comenta, também, o fato de que quanto maior o número de participantes nas decisões políticas, maiores as chances

Sendo assim, é de extrema importância os cidadãos acompanharem as decisões políticas e, quanto maior o número de participantes diretos, mais democráticas serão, visto que serão mais pessoas deliberando a partir dos mais diversos pontos de vista e tentando elaborar algo para o bem comum de forma reflexiva. Um ponto relevante abordado por Oliveira (2006) é relacionado à educação e a sua importância para o indivíduo saber como lidar na sociedade, reconhecendo o papel que ele deve desempenhar. É notório que a individualidade da sociedade moderna faz com que os

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delas se tornarem legitimamente democráticas.


demais cidadãos não se importem com a falta de participação direta dos analfabetos na vida política no quesito representatividade. Nesse mesmo sentido, foi analisada, também, a relação da educação com o empoderamento e a falta de reconhecimento – isso foi trabalhado por Manuel Gonçalves Barbosa e Eldon Henrique Muhl (2016). Os autores também acreditam que a educação seria a alavanca para a formação de pensamento crítico acerca da situação de desrespeito dos direitos que alguém vivencia. A educação aqui é vista como uma forma de empoderamento, de libertação dessa situação de desigualdade de tratamento. Logo, percebe-se que a falta de comoção coletiva é um obstáculo para a emancipação dos analfabetos. Considerando que a falta de educação formal prejudica a consciência crítica da ausência de direitos, os iletrados se tornam apáticos quanto a isso. Pode-se relacionar, assim, o analfabetismo com a formação da subcidadania. De acordo com dados do IBGE9 de 2016, o analfabetismo entre pessoas pretas e pardas é mais que o dobro do que em pessoas brancas. Tendo como base esse contexto histórico de exploração e posterior abandono social dos negros, entende-se como se dá a origem dessa subcidadania dos analfabetos atualmente. Além disso, percebe-se que o tratamento diferenciado perante esse grupo social ainda persiste após anos e anos de segregação social, sendo reforçado pela individualidade das sociedades capitalistas modernas. Quando se fala em educação como forma de empoderamento ou libertação, não há como deixar de citar Paulo Freire (1987). Ele reconhece que para que alguém se liberte da situação de oprimido é necessário que o indivíduo tenha a capacidade de refletir sozinho sobre a situação em que se encontra. Ademais, de acordo com o autor, “alfabetizar é educar” e “conscientizar é politizar” (1987, p. 14). E mais:

De tanto ouvirem de si mesmo que são incapazes, que não sabem nada, que não

terminam por se convencer de sua incapacidade. Falam de si como os que não sabem nada e do “doutor” como o que sabe e a quem devem escutar (FREIRE, 1987, p. 32).

De acordo com Freire (1987), é necessário que ocorra uma educação problematizadora, que implica na ação e reflexão dos homens sobre o mundo para, assim, 9

Taxa de analfabetismo entre pessoas pretas e pardas. G1. 21 de dezembro de 2017. Disponível em <https://g1.globo.com/educacao/noticia/analfabetismo-entre-pessoas-pretas-e-pardas-e-mais-que-o-dobro-doque-entre-as-brancas-diz-ibge.ghtml>. Acesso em março de 2019.

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podem saber, que são enfermos, indolentes, que não produzem em virtude disso,


poder transformá-lo, e não apenas em “depositar” conhecimentos nos indivíduos. Essa luta por reconhecimento, caracterizada por Honneth, pode ser obtida através dessa reflexão que o indivíduo teria da situação em que se encontra, percebendo os direitos que lhe são negados, a sua cidadania (que ele não exerce completamente) e sua liberdade de se expressar completamente no âmbito político, que não é garantida.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da bibliografia analisada, é possível concluir que a cidadania dos analfabetos já era prejudicada em sua construção desde o início do Brasil, na época da escravidão. São esses descendentes de escravos e mulatos que formam, em grande parte, a “ralé” brasileira e que são os sujeitos desconsiderados merecedores de igualdade em vários âmbitos dos direitos. Vale destacar, ainda, que a ausência de reconhecimento recíproco causa consequências não apenas para o sujeito que as sofre, mas também para a sociedade como um todo. Uma vez que esse grupo não pode deliberar em questões políticas de forma similar aos demais, não há legitimidade democrática plena. Logo, os analfabetos possuem uma cidadania exercida parcialmente ao longo da maior parte da história política brasileira. São considerados cidadãos de terceira classe e possuem certa invisibilidade perante os demais sujeitos. Isso tudo contribui para a formação da sua subcidadania. Uma possibilidade de reverter essa situação é através da educação, uma vez que ela é vista como uma forma de empoderamento e promoção do pensamento crítico, podendo provocar as chamadas “lutas por reconhecimento”, de Honneth. Para além disso, a educação formal colabora para uma melhor qualificação profissional, tornando os analfabetos cidadãos

No entanto, cabe um adendo aqui sobre o tipo de educação a ser oferecida. Uma maneira dos analfabetos se libertarem desse estereótipo acima aludido, seguindo os enunciados de Paulo Freire, é a partir da práxis, que implica na ação e na reflexão dos homens sobre o mundo para transformá-lo. Dessa forma, os sujeitos se tornam aptos a refletir ativamente sobre as condições nas quais se encontram e podem vislumbrar formas de alterálas. Por fim, presta-se especial agradecimento à Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (FAPEMIG) pelo financiamento de bolsa que permitiu não só a dedicação à 139

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completos, dignos de terem os seus direitos respeitados.


atividade de pesquisa, como também a promoção e valorização do trabalho científico no Brasil.

REFERÊNCIAS

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SOUZA, Jessé. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade periférica. Belo Horizonte. Editora UFMG, 2006.

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OLIVEIRA, Isabel de Assis Ribeiro. O mal-estar contemporâneo na perspectiva de


ILLITERATE RECOGNITION AND CITIZENSHIP IN BRAZIL: A HISTORICAL AND POLITICAL ISSUE

ABSTRACT Considering the trajectory of the colonization and political formation of Brazil, there is a series of impediments to the participation of a large part of the Brazilian population in the political sphere. Among them, the group of illiterates who, until today, are restricted in relation to active participation in the elections. In a way, it is a problem with historical and socio-political roots. From this, we seek to analyze the formation of citizenship of the illiterate in the country, considering the effects on the formation of the group identity. We also seek to reflect the issue of their (non) recognition, from readings of several works, including Axel Honneth and JessĂŠ Souza.

FIDES, Natal, V. 10, n. 2, jul./nov. 2019.

Keywords: Citizenship. Recognition. Illiteracy.

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ENSINO DOMICILIAR: UM ESTUDO DE CASO SOBRE O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

ENQUANTO

CORTE

SUPREMA

À

LUZ

DO

RECURSO

EXTRAORDINÁRIO Nº 888.815/RS Clara Beatriz Miranda da Silva1 Milena da Silva Claudino2

RESUMO Com o Código de Processo Civil de 2015, a comunidade e o ordenamento jurídico brasileiro foram tomados por novidades, sendo a instauração do sistema de precedentes uma das mais debatidas. Tendo em vista a importância desse instituto, o presente trabalho se propõe a realizar debate acerca do Supremo Tribunal Federal no seu papel de Corte Suprema por meio de um estudo acerca do Recurso Extraordinário 888.815/RS. Busca-se verificar a aplicação da teoria dos precedentes no caso do ensino domiciliar e ressaltar a importância

da clareza e segurança jurídica. Palavras-chave:

Corte

suprema.

Precedente.

extraordinário. RE 888.815.

1 2

Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

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STF.

Recurso

FIDES, Natal, V. 10, n. 2, jul./nov. 2019.

de cultivar boas práticas no fazer jurídico do STF para a consecução


1 INTRODUÇÃO

O Processo Civil brasileiro sofreu recentes alterações a partir do novo Código de Processo Civil (CPC) de 2015. Nesse contexto, compreende-se que essas modificações tiveram como escopo central a segurança jurídica para tutela de direitos na construção de um Estado Democrático, o qual não pode ser pensado senão com base numa teoria das decisões judiciais. Logo, a tutela de direitos, fim e limite do Processo Civil num Estado Constitucional, pode ser pensada sob duas perspectivas. A primeira, que versa sobre uma dimensão individual, que assegura a noção de uma decisão justa para o caso que está em discussão. Assim, busca-se um i) processo adequado no qual conste uma ii) reconstrução adequada dos fatos (na produção de provas e investigação) à luz de uma iii) interpretação/aplicação adequada do direito. Contudo, majoritariamente, não se deve atentar (somente) para a condição individual do processo sob pena de recair em uma disfunção do ordenamento jurídico. Nesse sentido, a dimensão coletiva da tutela de direitos, ou seja, a ideia de que a resolução de um conflito tem o papel de irradiar às demais ações em que conste a mesma razão de decidir (ratio decidendi), põe em face a construção e o respeito aos precedentes no propósito de garantir segurança jurídica às decisões judiciais. Desta feita, o Supremo Tribunal Federal (STF), enquanto cúpula do poder judiciário, tem papel primordial na construção de precedentes, uma vez que assume a responsabilidade de julgar demandas de interesse público em que há conflito relativo ao direito Constitucional, motivo pelo qual é tido como guardião da Constituição Federal de 1988. Assim, recai sobre o STF, notadamente, o papel de produzir decisões para a sociedade, tendo em vista seu intuito em integralizar o direito, de modo reflexivo, e promover decisões fundamentadas - e justas Sob essa perspectiva, o instituto da repercussão geral, instituído pela Emenda n. 453, consiste numa ferramenta que permite ao STF filtrar os Recursos Extraordinários levados à Corte segundo parâmetros de relevância jurídica e social. Assim, é possível diminuir o número de casos analisados, pois a decisão dada ao recurso com repercussão geral consolida o entendimento e o irradia às decisões em instâncias inferiores.

3

A referida emenda ficou conhecida como “Reforma do Judiciário” por apontar temas importantes a serem debatidos pela doutrina e pelo judiciário. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc45.htm> Acesso em: 02 jun. 2019.

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ao caso concreto.


Tal entendimento pode ser verificado em um dos recentes casos analisados pelo STF em sede do Recurso Extraordinário (RE) 888.815, no qual se discutia a possibilidade de o ensino domiciliar ser considerado como meio lícito de cumprimento, pela família, do dever de prover educação. Desse modo, a criança não frequentaria escolas regulares e sua educação seria a partir do ensino em domicílio sob o olhar de um ou mais adultos e o dever do Estado diante da educação seria limitado. Destarte, o presente estudo tem como objetivo geral estruturar um debate acerca do papel do STF na integralização de direitos, enquanto corte suprema, com base no Recurso Extraordinário 888.815/RS, que versa sobre o ensino domiciliar. Para isso, são apontados como objetivos específicos: a) discutir a razão de decidir (ratio decidendi) da tese jurídica formada, a qual é objeto de repercussão geral e b) apontar problemáticas dentro do caso concreto para formação de tese jurídica, uma vez que o propósito da decisão do STF é consolidar um entendimento para a sociedade. Assim, diante das recorrentes discussões sobre segurança jurídica, levantadas após a instauração do sistema de precedentes por intermédio do Código de Processo Civil 2015 e do sentimento social de que as decisões judiciais são imprevisíveis4, a pergunta gerativa desta pesquisa emerge quase naturalmente: como se estabelece o papel do STF, enquanto Corte Suprema, na estruturação de precedentes? Para tecer comentários a este questionamento, pretende-se abordar a temática sob a ótica do Recurso Extraordinário 888.815/RS, cuja redação versa sobre o ensino domiciliar, tema que levantou debate a nível nacional em diversas perspectivas ao mesmo tempo em que, no judiciário, recorreu-se à Corte Suprema para delimitar a tutela de direitos. Nesses termos, o Estudo de Caso foi adotado como metodologia sob a perspectiva de proporcionar maior nível de profundidade (GIL, 2002) acerca dos materiais e métodos adotados na construção do texto5. Logo, pretende-se realizar uma análise documental de

em face do que se compreende teoricamente.

2 O STF E O RECURSO EXTRAORDINÁRIO 4

Popularmente, muito é discutido sobre o sentimento de que a decisão, apesar do que está instituído em norma, dependerá, unicamente, da análise do juiz. Ou seja, apesar dos esforços, não há, ainda, um modelo legítimo de segurança jurídica que se funde na certeza sobre a tutela de direitos. 5 A pesquisa em pauta se propõe a investigar dilemas processuais, contudo, sugere-se que, em pesquisas futuras sobre o tema, a Análise de Discurso seja cogitada para apreciação de questões identificadas nas expressões de pensamento e conteúdo decisório dos Ministros.

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cunho descritivo e analítico, uma vez que se propõe problematizar o objeto confrontando-o


O STF consiste em um órgão de cúpula do poder judiciário brasileiro cuja competência está vinculada à guarda da Constituição Federal de 1988 (Art. 102, caput, CF/88). Suas atribuições estão definidas em rol taxativo na Constituição Federal de 1988 e versam, sobretudo, a respeito da defesa da ordem do Estado Democrático na capacidade de julgar originalmente, em recurso ordinário e em recurso extraordinário. Nesta última (em sede de recurso extraordinário), que mais se aproxima do intuito desta pesquisa, o STF poderá julgar decisões que venham a) contrariar dispositivo do texto constitucional, b) declarar inconstitucionalidade de tratado ou lei federal, c) julgar válido ato de governo local ou d) julgar válida lei local em face de lei federal. Com efeito, a Emenda Constitucional n. 45/2004 criou a súmula vinculante em matéria constitucional e consagrou na Constituição Federal de 1988 a orientação do STF de conferir efeito vinculante às decisões proferidas em controle de constitucionalidade. Nesse contexto, Didier (2019) explica que uma dessas modificações preza pela transformação do Recurso Extraordinário que, embora seja instrumento de controle difuso (pode ser feito por qualquer órgão jurisdicional) tem servido também ao controle abstrato (feito de forma concentrada). Assim, no STF, as decisões diretas de inconstitucionalidade e as ações declaratórias de constitucionalidade terão efeito vinculante aos demais órgãos do poder judiciário e, também, à administração pública direta e indireta (Art. 102, §2º, CF). No que versa sobre o recurso extraordinário, a parte recorrente deverá apresentar argumentos para que o direito em questão seja tratado como alvo de repercussão geral, na intenção de que o Tribunal examine a admissão do recurso (Art. 102, §3º, CF). Nesse ínterim, o instituto da repercussão geral tem como finalidade “delimitar a competência do STF, no julgamento de recursos extraordinários, às questões constitucionais subjetivos da causa” (STF, 2018, p. da internet) promovendo, ainda, uniformização do entendimento constitucional. Isto é, para ser classificada como ação de repercussão geral, é necessário observar a relevância – sob a ótica política e econômica – e a transcendência – ultrapassando os limites do interesse individual. Nos últimos anos, o STF tem se debruçado sobre diversas demandas de repercussão geral, incluindo o objeto desse trabalho, na ação que julgou a licitude do ensino domiciliar. Isso se deve, principalmente, porque quando ausente à consolidação do entendimento nas instâncias inferiores em matéria constitucional, espera-se que a decisão tomada pelo STF 145

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com relevância social, política, econômica ou jurídica, que transcendam os interesses


possa ser a garantia de segurança jurídica não somente para aquele processo, mas para todos os de mesma matéria mantidos suspensos até conclusão do entendimento, bem como as futuras ações. Nesse caminho, não há como se esquivar de um sistema de precedentes que vincule o direito de modo isonômico e seguro à sociedade.

3. O SISTEMA DE PRECEDENTES NO STF6 O sistema romano-germânico – também chamado de Civil Law – tem como fundamento a compreensão de que a lei é fonte imediata no ordenamento jurídico e, por isso, as ações judiciais são resolvidas por meio da subsunção do caso à norma constante da lei (CAMPOS, 2017). Isso difere diretamente dos ideais estabelecidos pelo sistema anglo-saxão (Commom Law) no qual há valorização de precedentes jurisprudenciais em detrimento da lei. Contudo, tratar a Civil Law sob uma ótica restritiva é ignorar as evoluções dessa escola no entendimento sobre o processo decisório ao longo do tempo, erro do qual padecem muitos autores ao realizar uma análise superficial e não indicar que a evolução desse sistema inverteu os papéis desejados tradicionalmente, dando ao juiz o poder de interpretar, completar, negar o direito produzido pelo legislativo, e até mesmo de criá-lo, no caso de omissão do legislador na tutela de um direito fundamental (MARINONI, 2013). No Brasil, que adotou como escola a Civil Law, é consenso que os tribunais têm o papel de uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente (Art. 926, Código de Processo Civil) e isso, notadamente, implica em uma preocupação do Código de Processo Civil com a segurança jurídica nas decisões judiciais. Com efeito, um dos mecanismos utilizados para garantia de previsibilidade é a instauração de um sistema de precedentes, que também fora estabelecido por meio do Código de Processo Civil.

indeterminação do discurso jurídico e da sobrecarga processual. Constam, portanto, vinculados diretamente aos conceitos de razão de decidir (ratio decidendi) e dito de passagem (obiter dictum), que indicam, respectivamente, conforme Didier (2019), os fundamentos 6

Dada a necessidade de realizar um filtro metodológico, esse tópico abordará os precedentes sob a perspectiva do Supremo Tribunal Federal, não pretendendo estender as disposições ao STJ. 7 Há diferença entre os conceitos de precedente e súmula. Enquanto os precedentes podem ser tidos como ferramentas para que demandas repetidas cessem rapidamente e enfrenta problemas para formação, uma vez que há uma dificuldade “cultural” no judiciário para lidar com precedentes, a súmula consiste numa espécie de metalinguagem que visa esclarecer o que é a ratio decidendi do caso (não é geral e abstrata como uma lei), ou seja, não é um precedente, é, em uma definição pouco aprofundada, um resumo do que foi dito nos precedentes.

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Destarte, os precedentes7 surgem como ferramentas de atuação na problemática da


jurídicos que sustentam a decisão, ou seja, a tese jurídica escolhida pelo julgador e os argumentos acessórios expostos apenas brevemente na construção da decisão. Com efeito, o sistema de precedentes objetiva outorgar autoridade à razão de decidir, notadamente, aos fundamentos jurídicos que sustentam a decisão firmada pelas Cortes Supremas, compreendendo que diversos casos, marcados por diferenças razoáveis, podem ser resolvidos por um precedente que resolve uma questão de direito (MARINONI, 2017, p. 452). Ou seja, trata-se de oferecer soluções idênticas para casos idênticos e decisões semelhantes para casos similares (DONIZZETI, 2015, p. 6), de forma que as demandas constituídas sob a mesma razão de decidir possam ser resolvidas de modo ágil, sem sobrecarga do sistema jurídico e sem duplo desgaste aos litigantes. Desse modo, a origem dos precedentes está necessariamente vinculada a uma decisão judicial, apesar de nem todas as decisões formarem precedentes. A distinção se dá ao observar que, para que um precedente se estabeleça, é necessário obedecer a três requisitos, quais sejam: quórum: necessidade de maioria; competência: STF (ou STJ) e matérias: razões necessárias e suficientes. A preocupação da Corte, contudo, enquanto cúpula do Judiciário, deve ser de elaborar uma compreensão do direito que se estabeleça para a sociedade, uma vez que, para ter sido invocado o parecer do Supremo, esta ação é motivo de conflito interpretativo e já esgotou as instâncias anteriores ou é de instância única (condições estabelecidas para o Recurso Extraordinário conforme o art. 102, inc. III, Constituição Federal de 1988). Logo, a corte deve preocupar-se em deixar claro à sociedade as motivações para resolver o mérito por determinado meio (atentando para as determinações do Código Processo Civil a respeito da fundamentação e da notoriedade da razão de decidir), de modo que possa ser gerado um entendimento público sobre esse direito, mas também, que não prejudique as partes8 litigantes naquela ação. STF, não cabe ação rescisória9 sobre aquele direito. A forma de reestruturação de um precedente se dá por meio de instituto tratado como Superação (Overrruling), que consiste na

8

“Embora a função de uma Suprema Corte seja desenvolver o direito e, para tanto, seja imprescindível a formulação de regras dotadas de autoridade, ela não pode decidir teses em prejuízo da solução do caso e dos litigantes. Ainda que a solução do não possa ser vista como o aspecto mais importante da atuação de uma Suprema Corte, não se pode imaginar que ela possa se preocupar em definir questões jurídicas em prejuízo de um julgamento adequado” (MARINONI, 2017, p. 497). 9 Conforme Marinoni (2017, 487) “justamente para proteger o espaço de desacordo interpretativo inerente a um sistema de precedentes, não cabe ação rescisória para desconstituição da coisa julgada quando ao tempo da sua formação havia controvérsia na jurisprudência sobre a questão enfrentada (Súmula 343, STF)”.

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Desta feita, por se tratar da consolidação de um entendimento, uma vez julgado pelo


ação de revogar um precedente, condição também crucial para desenvolvimento do direito, no intento de que não se torne obsoleto. Destarte,

as

decisões

tomadas

pelo

STF

em

controle

concentrado

de

constitucionalidade10 serão observadas pelos juízes e pelos tribunais (art. 927, inc. I, Código de Processo Civil) e, conforme a doutrina de Marinoni (2017), o legislador, ao impor essa observância aos tribunais e juízes, também a impôs ao próprio STF. Isso se deve, principalmente, porque “a primeira condição para que exista um sistema de precedentes e de compatibilização vertical das decisões judiciais é o respeito por parte das Cortes Supremas aos seus próprios precedentes” (MARINONI, 2017, p. 487). A crítica se dá justamente porque o propósito dos precedentes irradiarem às instâncias inferiores é a criação de uma tão defendida unicidade no judiciário, contudo, essa singularidade só será possível se a Corte se propuser a seguir os próprios precedentes. Além disso, outra discussão comum no papel dos precedentes – isso se dá também no Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) – é referente à liberdade do juiz no processo decisório. Nesse ponto, as críticas afirmam que tanto os precedentes que irradiam o direito para ações com a mesma razão de decidir para todo o corpo jurídico e o IRDR, que produz efeito dentro do tribunal em que fora estabelecido possam podar a capacidade do juiz de agir de modo independente diante do caso concreto. A produção desse estudo, entretanto, filia-se à corrente que compreende independência ao judiciário, do ponto de vista da tutela de direitos, sem interferência, por exemplo, dos interesses políticos, e não aos juízes, como tem sido defendido. Além disso, a criação de precedentes estabelece vinculação à matéria de direito. Ao juiz, diante do caso concreto, caberá identificar as minúcias relativas à matéria de fato, bem como apreciar a

4 RECURSO EXTRAORDINÁRIO Nº 888.815/RS

O referido julgamento se dá por Recurso Extraordinário em face de acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, em caso que seguia confirmando a negativa dada desde a primeira instância ao mandado de segurança (MS) com base em direito 10

O controle concentrado de constitucionalidade, segundo Flávia Ortega (2016), consiste na declaração de inconstitucionalidade de lei ou de ato normativo em tese, independentemente da existência de um caso concreto, visando-se à obtenção da invalidação da lei, a fim de garantir-se a segurança das relações jurídicas, que não podem ser baseadas em normas inconstitucionais.

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compatibilidade – ou não – da razão de decidir.


líquido e certo, impetrado por incapaz, frente resposta da Secretaria Municipal de Educação de Canela/RS à solicitação dos pais para fornecer educação domiciliar que, de imediato, recomendou a matrícula em rede regular de ensino. Num primeiro momento, o Tribunal de origem, em razão do não recolhimento das custas estaduais, negou o seguimento em juízo de admissibilidade. Todavia, seu relator no STF, Ministro Luís Roberto Barroso, priorizou o julgamento de mérito, compreendendo ser caso de repercussão geral, sendo assim reconhecido por maioria de votos no plenário virtual. Desta feita, em 2016, o relator determinou a suspensão nacional de todos os processos pendentes que versassem sobre a matéria discutida. Por sua vez, o julgamento ocorreu em setembro de 2018, dividido em duas sessões, com a ausência do Ministro Celso de Mello. Nessa ocasião, por maioria, o Tribunal negou provimento ao Recurso Extraordinário. Todavia, dentre os oito votos que garantiram esse resultado, a tese mostrou-se pouco clara quanto ao seu fundamento visto nos votos, elemento essencial ante a necessidade de averiguar a vinculação desta para as causas dependentes, as futuras demandas e os rumos da sociedade brasileira.

4.1 Tese jurídica: julgando para as partes ou para a sociedade?

Nesse ponto, esclarece-se que o tema 822 formado para votação do Recurso Extraordinário sob ótica da repercussão geral, propunha-se a discutir a constitucionalidade do ensino domiciliar, ministrado pela família, como meio lícito ou não para a concretização do direito à educação11. As falas e votos dividiram-se entre aqueles que afirmavam: inconstitucionalidade (Constituição Federal de 1988 ou um meio constitucional em potencial se regulamentado amplamente – Alexandre de Moraes, Rosa Weber e Dias Toffoli; com ressalvas – Marco

11

STF. RE 888.815 RG-RS. Pleno. Rel. Min. Luís Roberto Barroso. j. 12.06.2015. DJU 15.06.2015. p. 1, 9-10. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=8678529>. Acesso em: 29 mai. 2019. 12 “Sem nada a dizer sobre a possibilidade, menos ainda, sobre a constitucionalidade” (STF, 2018, p. 183). Entende haver um obstáculo para se posicionar sobre o tema, pois encontrava uma dificuldade de compatibilizar os requisitos exigidos constitucionalmente com a modalidade do ensino domiciliar, contudo, também não conseguia excluir a possibilidade de que fosse possível em algum momento, e, então, se houvesse uma ação direta de inconstitucionalidade sobre essa possível lei, conseguiria enxergar esses limites. STF. RE 888.815-RS. Pleno. Rel. Min. Luís Roberto Barroso. j. 12.09.2018. DJU 21.03.2019. p. 183. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=749412204>. Acesso em: 29 mai. 2019.

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Aurélio e Gilmar Mendes – e ainda houve quem não quis se pronunciar (Cármen Lúcia)12.


Por fim, a tese firmada foi regida pelo Ministro Alexandre de Moraes – voto vencedor – nas seguintes palavras: “Não existe direito público subjetivo do aluno ou de sua família no ensino domiciliar, inexistente na legislação brasileira.”13. Pressupõe-se, dentre aqueles que votaram seguindo o referido Ministro – de forma expressa: Rosa Weber, Gilmar Mendes, Dias Toffoli e Cármen Lúcia e, implicitamente: Marco Aurélio –, a existência de uma unidade nos mesmos termos e fundamentos. Todavia, ainda que chegando-se aos mesmos resultados, houve divergência sobre em qual fundamento e dispositivo repousavam as afirmações apoiadas quando vistos como votos isolados. Destarte, desmembrando-se a tese, a primeira parte trata sobre a inexistência de um direito ao ensino domiciliar. Em seu voto, Alexandre de Moraes buscou fundamentar-se na Constituição Federal de 1988 sendo seguido, muito embora utilizando-se de dispositivos e ferramentas hermenêuticas diferentes, por Gilmar Mendes e Cármen Lúcia 14. Dias Toffoli preferiu não se aprofundar, afirmando apenas dificuldade de ver um direito líquido e certo de imediato. Já Rosa Weber e Marco Aurélio, apesar de elencarem no seu discurso elementos constitucionais, nesse ponto em específico, observa o âmbito infraconstitucional para se pronunciar sobre o tema15. Para

tanto,

o

critério

da

distinção

feita

entre

os

que

argumentaram

constitucionalmente e infraconstitucionalmente dizia respeito aos que observaram o recurso extraordinário e discutiram pontos imprescindíveis dentro da proposta de se perscrutar a questão da repercussão geral, daqueles que se restringiram ao Recurso Extraordinário. De volta à tese, sua segunda parte trata de prestar esclarecimentos sobre a titularidade do pretenso direito. Apesar dos reclamantes argumentarem a existência de direito tanto do aluno, quanto da família, este último não foi esmiuçado no amplo debate, senão por aqueles que afirmaram precisamente a inconstitucionalidade ou constitucionalidade e

13

STF. RE 888.815-RS. Pleno. Rel. Min. Luís Roberto Barroso. j. 12.09.2018. DJU 21.03.2019. p. 4. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=749412204>. Acesso em: 29 mai. 2019. 14 Ao tratarem sob a ótica constitucional da solidariedade entre família e Estado para a concretização do direito à educação – ao contrário de Fux e Lewandowski que entendem por uma complementaridade –, enquanto Alexandre de Moraes traça balizas selecionando modalidades de homeschooling compatíveis com a CF e seus requisitos para tanto, Gilmar Mendes e Cármen Lúcia argumentam pela inviabilidade prática de implementação que a isto atenda, o primeiro trazendo questões de ordem econômica e a segunda de modo genérico constatando uma grande dificuldade de harmonização entre tantos princípios contrastantes. 15 Apesar de vislumbrarem uma abertura constitucional para um direito em potencial se conformado pelo legislador ordinário – entendendo não ser a rede de ensino regular o único modelo constitucionalmente possível –, a ratio decidendi em seus votos restringem-se a análise dos requisitos formais do MS à conformação e escolha legislativa vigentes no plano infraconstitucional, assim, com base nisso não encontrando o direito demandado pelos reclamantes.

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existência deste. Naqueles que apoiaram a hipótese da potencialidade do direito, fazendo voz


ao posicionamento do redator, porém, por caminhos diferentes, Gilmar Mendes e Cármen Lúcia16; categoricamente só afirmando haver direito do educando e não dos pais, Rosa Weber; apenas mencionando o aluno, Marco Aurélio; e, abstendo-se de falar sobre isso, Dias Toffoli. Por fim, a inexistência de regulação na legislação brasileira, ponto de maior concordância entre os ministros, sendo dissenso e afirmando a existência no plano constitucional apenas Barroso e Fachin, divergindo apenas na implementação, o primeiro considerando o STF competente para regular até que o legislador se pronuncie e o segundo lançando ao Congresso Nacional o prazo de um ano para fazê-lo. Dentre os defensores de um direito em potencial, acima já foi analisada e definida como apenas uma potencialidade. Indubitavelmente, no Recurso Extraordinário em tela, um fator de confusão no entendimento, tanto no julgamento, quanto na identificação do fundamento dos votos, encontra-se na falta de observância dos elementos essenciais de um julgamento envolvendo questão de repercussão geral. Identifica-se uma dificuldade no diálogo dos posicionamentos para que encontrassem uma resolução para o demandado. Houve aberturas e fechamentos de tópicos a cada voto, sem que se parasse para discutir um ponto em específico, salvo raros momentos de esclarecimento. Tudo isso culmina em longas e desgastantes sessões e acórdãos, tanto para os ministros, quanto para os interessados na temática, que desgastam-se na busca de entender os fundamentos daquilo que foi decidido. 4.2 Atual modelo da formação da tese jurídica: entre focos e hiperfocos17

Com a recém importância dada ao precedente no nosso ordenamento jurídico, uma reformulação no fazer jurídico do STF no tocante a esses assuntos era imprescindível. Longe de considerar a má-fé, percebe-se antes uma resistência a mudanças, notadamente presente no Direito. Todavia, é preciso alertar que em decorrência das adaptações necessárias não

presença de alguns deles no caso em tela.

16

Todos trataram de explicitar o direito dos alunos, todavia, com relação ao da família, apesar de nenhum deles ter enfrentado de todos os argumentos trazidos pelos reclamantes a este respeito, tratam dos pontos que para eles envolvem mais um dever do que direito. Assim, Alexandre de Moraes e Cármen Lúcia trabalham com a solidariedade entre família e Estado, colocando em termos de parceria, ele, inclusive, correlacionando os capítulos referentes à educação e família para fundar seu voto, divergindo apenas quanto a real possibilidade de haver uma concretização harmoniosa de outros modelos para além do ensino formal. Já o Gilmar Mendes, defende a solidariedade e papel da família dando enfoque no controle e gastos do Estado. 17 Nesta seção o enfoque será para votos isolados, no geral, com o fim de denotar o comportamento costumeiro da Corte em suas nuances no papel de Corte Suprema. Portanto, as críticas aqui levantadas em nada invalidam a decisão tomada pelo STF no caso em questão – no geral, não podem ser aplicadas ao voto vencedor.

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efetivadas, os problemas que deveriam ser resolvidos, persistem, sendo possível detectar a


Num primeiro momento tem-se a competência e essência da repercussão geral. Ainda que não atingindo a maioria, foi possível verificar votos isolados que, por mais menções a Constituição Federal de 1988, sua razão de decidir deteve-se ao plano infraconstitucional, revelando um descuido com a repercussão geral, que exigia uma resposta constitucional para além do caso concreto. É verificável nos votos de Rosa Weber e Marco Aurélio quando pronunciando-se apenas sobre a inexistência do direito – questão já tratada na seção anterior. Todavia, por mais relevantes que se mostrassem às críticas advindas da comoção existente nas redes sociais18 ao alegarem que o STF esqueceu-se da sua competência e que se deveria retirar a repercussão geral do caso – como sugeriu Dias Toffoli, seguido por Barroso em certo momento do julgamento19 –, apontando que somente a matéria constitucional geraria precedente nesse órgão, restou formada a maioria observando os aspectos constitucionais, mesmo que se possa questionar a forma como esta ocorreu ou as razões que utilizaram para tal. Para tanto, nesse ponto reside o segundo problema: o não enfrentamento de todos os argumentos trazidos pelos recorrentes. Notou-se uma preferência de cada ministro sobre os temas que lhes eram mais caros e, de modo isolado, fazendo menção no pleno. Todavia, restringiam-se aos votos, não sendo amplamente debatidos todos os argumentos considerados relevantes para a formação da tese, precisamente, o pleiteado direito dos pais de escolherem a modalidade educacional do filho com base em objeção a concessão de consciência e crença. De modo implícito, a menção de todos os ministros com relação à necessidade de expor à criança a pluralidade de pensamentos e vivências foi tida como uma resposta. Todavia, é preciso observar que amplamente a situação foi tratada de forma reducionista, limitando a argumentação ao direito religioso, quando a área de proteção do art. 5º, VI da Constituição Federal de 1988 abrange mais que a religião. Ainda assim, aceitando esses

18

Crítica mais emblemática proferida no canal educativo de um dos que figuraram como advogado de um dos embargantes do supracitado acórdão. DIREITO SEM JURIDIQUÊS. STF publica acórdão sobre homeschooling (21.03.2019). 2019. 16m17s. Disponível em: https://youtu.be/wRW6ERtfFxw. Acesso em: 27 mai. 2019. 19 STF. RE 888.815-RS. Pleno. Rel. Min. Luís Roberto Barroso. j. 12.09.2018. DJU 21.03.2019. p. 178. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=749412204>. Acesso em: 29 mai. 2019. 20 Possível conferir: Citando apenas - Gilmar Mendes (STF, 2018, p. 153); Deixou claro seu posicionamento no voto - Fachin (STF, 2018, p. 96), Fux (STF, 2018, p. 126) e Lewandowski (STF, 2018, p. 136); Deixou claro seu posicionamento em “esclarecimentos” - Moraes (STF, 2018, p. 81) e Barroso (STF, 2018, p. 176). STF. RE 888.815-RS. Pleno. Rel. Min. Luís Roberto Barroso. j. 12.09.2018. DJU 21.03.2019. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=749412204>. Acesso em: 29 mai. 2019.

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parâmetros, a discussão sobre o ponto não fluiu, restringindo-se a menções isoladas20 em


alguns votos e um rápido desacordo entre os ministros Barroso e Alexandre de Moraes 21, permanecendo na superfície do debate. Desta forma, antes de se falar em um não enfrentamento, a grande ameaça reside na atitude passiva de ouvir os votos, sem discutir os pontos emblemáticos elencados. Se presente fosse um amplo debate, ao menos dos argumentos mais importantes, resultaria numa satisfação, acreditando que mesmo recebendo uma resposta oposta a pretendida, ao menos uma respeitosa foi dada, demonstrando ter analisado o alegado. Em consonância, surge uma última problemática: os múltiplos entendimentos dos membros do STF. Tem-se, no referido julgamento, o apontamento do Ministro Luiz Fux 22 de que nos Tribunais de Apelação se busca unanimidade e nos Tribunais Superiores observa-se a maioria. Depreende-se, então, do pensamento destacado pelo ministro que se vai ao julgamento com uma dessas duas disposições. Dessarte, na “unanimidade” objetiva-se levar os apontamentos e submetê-los ao debate para encontrar os melhores direcionamentos. Já na “maioria” leva-se colocações, conforme a formação diversa de cada julgador23, procurando-se o debate apenas quando para a mínima definição de maioria, numa preocupação numérica – quanto ao provimento ou desprovimento –, não com a formação do precedente dentro de uma ampla discussão. Isso gera uma dissociação, identificando-se antes a resposta pessoal dos ministros, não do órgão. Esse tom de pessoalidade fica marcado nas falas do Ministro Barroso24 ao priorizar seu posicionamento pessoal sempre que possível. A princípio a defesa de seu posicionamento não seria ruim se fossem sustentadas dentro do debate acerca das nuances que circundam as questões ali decididas, todavia, contentam-se com a leitura de votos e raros momentos de esclarecimentos ou rápidas

21

STF. RE 888.815-RS. Pleno. Rel. Min. Luís Roberto Barroso. j. 12.09.2018. DJU 21.03.2019. p. 80-82. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=749412204>. Acesso em: 29 mai. 2019. 22 STF. RE 888.815-RS. Pleno. Rel. Min. Luís Roberto Barroso. j. 12.09.2018. DJU 21.03.2019. p. 101. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=749412204>. Acesso em: 29 mai. 2019. 23 “[...] porque cada um de nós teve uma formação diversa com relação a determinados temas” STF. RE 888.815RS. Pleno. Rel. Min. Luís Roberto Barroso. j. 12.09.2018. DJU 21.03.2019. p. 101. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=749412204>. Acesso em: 29 mai. 2019. 24 Vale ressaltar que esses momentos ocorriam em “esclarecimentos” e rápidos debates, referenciados na próxima nota. 25 Momentos de debate com a participação de Barroso e poucos ministros - Alexandre de Moraes, Fux e Mendes: STF, 2018, p. 76-82; 176-178. Debate sem Barroso, mas interação de grande parte dos ministros sobre um ponto específico da tese: STF, 2018, p. 76-82, 159-163. Os debates ocupam apenas 12 páginas de um acórdão com 197. STF. RE 888.815-RS. Pleno. Rel. Min. Luís Roberto Barroso. j. 12.09.2018. DJU 21.03.2019. Disponível

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discordâncias verbalizadas25.


Diante disso, numa última etapa, tem-se a publicação de um extenso acórdão, juntando as falas de todos, adicionando-se os votos vogais, mesmo quando trazem informações não levadas ao Pleno26 e assim não contribuindo para a formação da tese, relegando a tarefa de abordar todas as particularidades do caso ao voto vencedor.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Marcante é a dificuldade do Supremo de compreender a necessidade e atenção demandada pela razão de decidir, principalmente num sistema de precedentes, tencionando sintetizar e simplificar a discussão, sem contanto decair na qualidade. Para tanto, é possível considerar que grande parte – senão todos – os problemas até aqui relatados, passam pela pessoalização das decisões da Corte. Destarte, mesmo diante de uma tentativa tímida de adaptação, o STF carece de amparo teórico para, adequando-se às particularidades do contexto nacional, repensar o atual modelo de formação da tese jurídica. Isso deverá ocorrer, notadamente, observando a forma de pensar a sua práxis – não utilizando como instrumento de embaraço para o cidadão –, intento quando para julgar – introduzindo a discussão no lugar da irrefletida leitura dos votos prontos – e formatação do acórdão – unificando sua voz –, visando discutir e divulgar o essencial, fazendo clara a sua razão de decidir. Agindo assim, elevará a qualidade dos debates e trará mais segurança às partes e a sociedade, ao passo que tornará claro o posicionamento da Corte e, por conseguinte, os rumos da nação nos temas que lhes são mais caros. Dessa forma, assegurando um especial cuidado da guardiã da Constituição Federal de 1988 quanto aos seus aspectos materiais, sendo

em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=749412204>. Acesso em: 29 mai. 2019. 26 Dentre tantos, o caso mais emblemático foi o voto da min. Cármen Lúcia no plenário (STF, 2018, p. 182-183) e voto-vogal (STF, 2018, p. 184-195), neste último, deixando dito que votava no sentido de não conhecer do recurso extraordinário, em virtude do não recolhimento do preparo, porém marcando que não considerava o Poder Judiciário competente para autorizar o ensino domiciliar. STF. RE 888.815-RS. Pleno. Rel. Min. Luís Roberto Barroso. j. 12.09.2018. DJU 21.03.2019. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=749412204>. Acesso em: 29 mai. 2019.

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amparados por boas práticas advindas da técnica jurídica na tutela dos direitos fundamentais.


REFERÊNCIAS

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DIDIER JUNIOR, Fredie. O recurso extraordinário e a transformação do controle difuso de constitucionalidade do direito brasileiro. Disponível em: <https://www.academia.edu/1771097/Recurso_extraordin%C3%A1rio_e_objetiva%C3%A7 %C3%A3o>. Acesso em: 29 mai. 2019.

MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais.

HOMESCHOLLING: A CASE STUDY ON THE SUPREME FEDERAL COURT AS SUPREME COURT IN ACCORDANCE WITH THE EXTRAORDINARY APPEAL NUMBER 888.815/RS

The community and the Brazilian legal system were encountering with the establishment of a precedent system when the Civil Procedure Code of 2015 enters into force and becoming much debated. Given the particular relevance to this institute, the present article intends to analyze the Supreme Federal Court as Supreme Court using the Extraordinary Appeal number 888.815/RS has a case study. In addition, aims to verify the application of the theory of precedents in the homeschooling case and to emphasize the 155

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ABSTRACT


importance of cultivating good conduct in the legal practice of the Supreme Federal Court to achieve clarity and legal certainty. Keywords: Supreme Court. Precedent. Supreme Federal Court.

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Extraordinary Appeal. RE 888.815.

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MEDIAR UFBA: MEDIAÇÃO COMO INSTRUMENTO DE PACIFICAÇÃO NO AMBIENTE UNIVERSITÁRIO Dandara Lima Santana de Jesus1 Suzana Monteiro Souza2

RESUMO A mediação no contexto universitário surge como possibilidade de conhecimento e como instrumento de resolução de conflitos, assim a demonstrar outras possibilidades de lidar com os dilemas que permeiam o âmbito universitário, como: os conflitos entre professores, entre professores e alunos, entre alunos e alunos, bem como dos professores e alunos com os servidores públicos administrativos. Neste sentido, o objetivo do estudo tem como parâmetro as ações desdobradas pelo projeto “MEDIAR UFBA: PREVENINDO E SOLUCIONANDO CONFLITOS”, criado em 2012, desenvolvido

abordagem do conflito universitário à luz da Teoria do Conflito. Palavras-chave:

Mediação.

Solução

de

conflitos.

Mediação

universitária.

1

Graduanda de Direito na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Bacharela em Humanidades com área de concentração em Relações Internacionais (UFBA). Ex-Extensionista e Pesquisadora de Iniciação Científica na pesquisa: “Mediação Universitária: prevenindo e solucionando conflitos”. Mediadora extrajudicial no Balcão de Justiça e na Câmara Modelo do Observatório de Pacificação Social. 2 Graduanda em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Atualmente é estagiária da Procuradoria do Município de Salvador. Tem experiência na área de Direito Público com ênfase em Direito Previdenciário. Possui capacitação básica em mediação de conflitos. Ex-Bolsista de Iniciação Científica no Instituto Federal da Bahia.

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através do programa “Observatório da Pacificação Social”, a partir da


1 INTRODUÇÃO

A mediação no contexto universitário se apresenta como uma oportunidade de inserir dado instrumento em um ambiente marcado pela multiplicidade de grupos culturais. Assim, por consequência, sofre incidência desse contexto as relações entre os indivíduos que possuem classe, cor, religião, opção sexual e hierarquia distintas. Desta forma, enfrentar dado fato com os instrumentos mais adequados permite que àqueles que passam boa parte do seu dia neste ambiente, se construindo profissionalmente ou trabalhando, possam lidar com as diferenças e possíveis conflitos de forma mais amigável, menos burocratizada e com mais eficiência na recuperação da relação social universitária, que por ventura, tenha sido perdida. Portanto, o objetivo deste estudo tem como foco as ações desdobradas pelo projeto “MEDIAR UFBA: PREVENINDO E SOLUCIONANDO CONFLITOS”, criado em 2012, desenvolvido através do programa “Observatório da Pacificação Social”, que funciona na Faculdade de Direito da UFBA, com o intuito de atuar na prevenção e solução de conflitos dentro das unidades administrativas e dos institutos de ensino da Universidade Federal da Bahia. O projeto almeja alcançar toda a esfera universitária, sensibilizando e capacitando novos agentes mediadores que atuarão como multiplicadores da cultura da paz através da autocomposição. Com a finalidade de dialogar com determinadas teorias para que o presente trabalho estabeleça o aprofundamento do seu objetivo, intensificando a elucidação das ações do MEDIAR UFBA: PREVENINDO E SOLUCIONANDO CONFLITOS, é que se faz necessário a abordagem da Teoria do Conflito. Esta, dispõe acerca da tensão gerada entre indivíduos que se encontram em situações díspares, abordando a necessidade de ressignificar o conflito através da dicotomia do conflito positivo e negativo na busca do entendimento

como uma possibilidade de nortear os insumos colhidos através das ações do projeto, haja vista que dada teoria atribui valor filosófico a linguagem, através da “ação comunicativa”, em que os indivíduos avaliam suas posições individuais e caminham para uma possível solução de uma dada situação. Ademais, a análise será embasada pela Teoria da Transformação do Conflito e da Comunicação não Violenta, na qual estimula um caminho para a pacificação social. Destarte, tais referenciais possibilitam uma análise abrangente e interdisciplinar acerca do tema, assim a enriquecer a pesquisa demonstrando o mérito das ações de mediação universitária no projeto MEDIAR UFBA. 158

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mútuo entre os indivíduos. Além desta, é importante abordar a Teoria do Agir Comunicativo,


Diante do exposto, a relevância da análise está em abordar o conflito universitário à luz de Teorias importantes acerca da temática, a fim de possibilitar um novo olhar sobre os conflitos provenientes das relações interpessoais na Universidade, para que assim se construa um ambiente pacífico, com a qualidade necessária para o desenvolvimento acadêmico e profissional. Assim, o presente trabalho propõe que olhemos o conflito com as lentes da mediação, como instrumento de pacificação, com o intuito de fomentar resoluções autônomas, responsáveis, menos burocratizadas e judicializadas. Para além disso, incentiva a transformação acadêmica e social a partir da mudança de atitude frente ao conflito, bem como das estruturas institucionais.

2 MEDIAÇÃO UNIVERSITÁRIA Antes de entender o que é a mediação universitária é preciso estabelecer o que é a mediação. A mediação pode ser considerada como um instrumento de resolução de conflitos, como um instrumento transformativo, como instrumento de restabelecimento da comunicação, bem como um instrumento de pacificação social. Toda esta abrangência é possível por que tal mecanismo lida com a mudança de estado das relações em seu caráter amplo, dando a oportunidade de escuta a todos os envolvidos, bem como analisa os efeitos do conflito entendendo o ambiente no qual este se formou, além disto, emancipa pessoas ao colocá-las diante de uma possível solução ou transformação de uma dada situação-problema. Ademais, a mediação possui princípios basilares que conduzem a sua efetivação e passa para os indivíduos que tenham conhecimento acerca deste dispositivo uma compreensão voltada para o respeito ao próximo, para a parcimônia, para a capacidade de negociação, tendo a

situações conflituosas. Para a prevenção e resolução de conflitos é necessário fazer uma gestão positiva dos mesmos de modo a privilegiar o diálogo, a assertividade, a solidariedade e a paz. Para este efeito existem alguns métodos de prevenção e resolução de conflitos que podemos utilizar como é o caso da negociação, da conciliação, da mediação ou, em casos mais extremos, por via judicial e arbitrária. A forma mais eficaz e assertiva de chegar a um consenso e de prevenir um determinado conflito é a mediação. (TOMÁS, 2010, p. 27)

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finalidade de vislumbrar ambientes menos tensos e com maiores habilidades de conversão de


A facilidade de aceitabilidade da mediação está em não se colocar como única via possível para sanar todos os problemas. A mediação não se compromete a tomar espaços de outros instrumentos presentes na Universidade, como a ouvidoria e os colegiados das unidades acadêmicas, mas sim, se colocar à disposição dessa estrutura já existente, bem como ofertar novas possibilidades, assim Águida Arruda Barbosa (2006, p. 7)3 dispõe que, “a definição de mediação também se enquadra como espaço de criatividade pessoal e social, um acesso à cidadania. A mediação encontra-se num plano que aproxima, sem confundir, e distingue, sem separar.” A mediação universitária é um instrumento de gestão de conflitos desenvolvida neste ambiente tendo o fito de auxiliar e construir uma nova mentalidade acerca da solução e prevenção de conflitos. Tendo em vista que a Universidade sofreu mudanças nos últimos dez anos, estas em torno da expansão universitária que possibilitou um ambiente mais plural e dinâmico, também fez insurgir os choques culturais que acirraram a cultura do conflito. Valores novos e valores conservadores entram em choque, fazendo emergir uma série de conflitos, que demandam gerenciamento adequado de forma a não prejudicar o desempenho da Universidade e, até mesmo, de potenciar as mudanças necessárias ao seu bom desempenho em novo cenário. (MARRA; MELO, 2005, p. 24) Sendo assim, a gestão desta situação necessita de instrumentos múltiplos que possam atuar nesse cenário e, é com isso que o projeto Mediar UFBA pretende trabalhar para que as diferenças sejam respeitadas e que a Universidade seja um espaço mais acolhedor, já que é um importante eixo da vida acadêmica dos indivíduos que por ela passa.

A indissociabilidade do tripé ensino-pesquisa-extensão, em que se assenta a Universidade Pública, foi o que permitiu que, em 2012, surgisse o Observatório da Pacificação Social, projeto de extensão de natureza interdisciplinar, lotado na Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia.4 Fruto da pesquisa voltada aos MASC’s – Métodos

3

BARBOSA, Águida Arruda. Relação de Respeito. Boletim IBDFAM, n. 38, ano 6, p. 7, mai./jun., 2006. 4 O programa se efetiva pela conjugação de projetos e ações na seara da Pacificação Social tendo em vista a necessidade da vivência acadêmica decorrente da prática dos MASC’S-Métodos Adequados de Soluções de Conflitos, mediante a efetivação de ações de ensino, pesquisa e extensão, que se perfazem por meio da pesquisaação, em decorrência da leitura e discussão de textos, observação etnográfica da conflituosidade, elaboração,

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3 O PROJETO MEDIAR UFBA: PREVENINDO E SOLUCIONANDO CONFLITOS


Adequados de Soluções de Conflitos, com o fito de propagar a mediação como instrumento hábil à resolução de conflitos gerados no âmbito universitário, o projeto “Mediar UFBA: Prevenindo e solucionando conflitos” configura-se como uma inovação em pesquisa sobre mediação universitária realizada na esfera da Universidade Federal da Bahia. O projeto visa alcançar toda a comunidade interna da UFBA – unidades acadêmicas e administrativas – disseminando a utilização da mediação como meio apto a alcançar a pacificação social. O Mediar UFBA surge da experiência bem-sucedida da Mediação Escolar desenvolvida pelo Observatório da Pacificação Social5, tendo como eixo a atuação no ensino fundamental e médio de algumas escolas municipais e estaduais da Bahia. A noção de colaborativismo e de alternativas transformativas e resolutivas diante da complexidade das questões que se insurgem no âmbito escolar, faz com que a mediação escolar seja um instrumento integrativo entre os envolvidos nesta relação. A mediação neste setor propõe que pais, estudantes e diretores possam construir decisões acertadas perante um conflito e isto é possível, através de práticas educativas que estimulem aos jovens a ser mais autônomos e disseminadores da cultura da paz no trato do vínculo entre as pessoas, na escolha dos gestores em trazer a cultura do diálogo e da escuta ativa para a condução de uma possível solução e a demonstração aos tutores da necessidade da presença deles na construção deste movimento. Isto posto, o setor universitário se dissocia do setor escolar em alguns pontos, mas em outros há uma interseção e, é nesta que se revela o aproveitamento das ideias instituídas da mediação escolar. Desta forma, o conglomerado de unidades administrativas e acadêmicas, cada uma com seus ritos próprios, conduzem a situações que são inerentes dos choques interrelacionais e tendem gerar uma situação de desconforto em estar nestes ambientes, fato relatado por discentes, servidores e professores durante as ações do projeto. Com o propósito de interferir neste cenário, o projeto Mediar UFBA: prevenindo e solucionando conflitos tem nas suas ações o objetivo de levar a mediação ao ambiente acadêmico como método

a paz através da implantação de uma cultura de atuação política e social de paz, por meio de uma política voltada para a paz. (MUNIZ, 2006, p. 268) aplicação e tabulação de questionários estruturados e semiestruturados junto à comunidade, escola e empresas, sensibilização e capacitação de agentes de mediação escolar e comunitária, implantação, acompanhamento e supervisão de núcleos de mediação escolar e comunitária, administrar conflitos por meio da mediação, conciliação e arbitragem, dentre outros, por meio dos quais alunos da graduação e pós-graduação possam vivenciar a experiência da mediação, conciliação e arbitragem. Observatório - Quem somos? (OBSERVATÓRIO DA PACIFICAÇÃO SOCIAL, 2018). Disponível em: <http://www.observatorio.direito.ufba.br/observatorio/quem-somos>. Acesso em: 28 jul. 2018. 5 Mediação Escolar em Pauta. (OBSERVATÓRIO DA PACIFICAÇÃO SOCIAL, 2018). Disponível em: <http://www.observatorio.direito.ufba.br/mediacao-escolar/historico>.

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colaborativo e autocompositivo de resolução de controvérsia, já que é necessário educar para


3.1 Histórico O Observatório da Pacificação Social é um programa de extensão coordenado pela Prof. Dr.ª Ana Paula Rocha do Bomfim, lotada no Departamento de Direito Privado, na Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, que congrega os projetos "Ação Curricular em Comunidade e Sociedade (ACCS) - Observatório da Pacificação Social via MESCs”, “Mediação Escolar em Pauta”, “Câmara Modelo de Mediação, Conciliação e Arbitragem”, “Um olhar sobre a conflituosidade nas comunidades quilombolas”, o ” Projeto Mediação Comunitária em Pauta”, “Mediar UFBA: prevenindo e solucionando conflitos, “Mediação Empresarial” e “Mediação Familiar”. As ações tiveram início com o ACCS “Observatório da Pacificação Social via MESCs” em 13 de agosto de 2012. Pautam-se na metodologia da pesquisa-ação decorrente da intervenção, que objetiva sobretudo a geração de tecnologia social em prol das comunidades atendidas e de outras que possam ser assim beneficiadas mediante os resultados obtidos em decorrência da interação ensino, pesquisa e extensão. Participam do programa professores e alunos de graduação de diversos cursos da UFBA, dentre estes Direito, Administração, Psicologia, do Programa de Mestrado em Segurança Pública, Justiça e Cidadania, além de voluntários, na sua maioria ex-alunos, e professores do curso de Direito do Campus XIX da Universidade Estadual da Bahia.6 Após o sucesso da visionária Ação Curricular em Comunidade e Sociedade (ACCS) – Observatório da Pacificação Social, ministrada pela professora Ana Paula Rocha do Bomfim, em 02 de setembro de 2013 o Observatório da Pacificação Social institucionalizou, na qualidade de ação extensionista de natureza permanente, os trabalhos de pacificação social via MASC’S que já vinham sendo realizados na ACCS. Com o surgimento da Câmara

de propagar a cultura da paz se intensificam, com o oferecimento de cursos, oficinas e outros eventos que visam a formação de mais agentes mediadores na Universidade. O Projeto Mediar UFBA foi originado no primeiro semestre do ano de 2014 sob a coordenação da Professora Ana Paula Rocha do Bomfim. A primeira atividade do grupo foi uma sensibilização, realizada na Residência Universitária Frederico Perez Rodrigues Lima, conhecida pela comunidade universitária como “R5”, que se localiza na Avenida Anita Garibaldi, número 1207, no bairro Ondina da cidade de Salvador, Bahia. A sensibilização 6 Acervo Observatório da Pacificação Social (2016).

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Modelo de Mediação, Conciliação e Arbitragem, as atividades ora realizadas com o objetivo


pretendia apresentar o projeto aos residentes e familiarizá-los com a mediação como meio adequado

à

resolução

de

controvérsias

na

seara

universitária.

Esse contato inicial permitiu, em 03, 04 e 05 de setembro de 2014, a realização da primeira capacitação básica em mediação para os residentes da R5, que ocorreu na Faculdade de Direito da UFBA. O sucesso dessa primeira capacitação possibilitou ao projeto MEDIAR UFBA empreender mais ações intervencionistas nas outras residências universitárias da UFBA. Por tal ferramenta de disseminação ter logrado êxito, as capacitações começaram a ser desenvolvidas nas unidades administrativas da UFBA, assim a instaurar uma das estratégias da mediação: capacitação de disseminadores em cada local para concretização dos ideais almejados. Diante do exposto, o projeto MEDIAR UFBA fez suas pesquisas com aplicação de questionários e sensibilização em 60% das suas unidades acadêmicas e 30% das unidades administrativas, assim difundido a mediação como instrumento de pacificação e resolução de conflitos, tanto para os servidores administrativos da Universidade, bem como os discentes. A consolidação do projeto MEDIAR UFBA, além de incentivar a pesquisa e a extensão na Universidade Federal da Bahia, gera tecnologia social na medida em que se utiliza dos resultados obtidos nas ações desenvolvidas pelos seus membros para expandir o potencial transformador da mediação como instrumento de pacificação social para além da comunidade interna da UFBA.

3.2 Ações desenvolvidas As principais intervenções realizadas pelo projeto, em sua qualidade de extensão universitária, são: aplicação de questionários nas unidades de ensino e administrativas, com a finalidade de criar o mapa da conflituosidade da UFBA; elaboração de oficinas,

bem como a realização de procedimento de mediação aos conflitos levados à câmara-modelo, lotada na Faculdade de Direito da UFBA. Essa atuação se desdobra de forma sistêmica, com a finalidade de alcançar os discentes, assim como os órgãos institucionais, uma vez que na perspectiva da fragmentação, as culturas dos grupos ou subculturas na universidade, é composta de três grandes grupos distintos: docentes, discentes e funcionários. (MARRA; MELO, 2005, p.14) No campo da pesquisa, os membros do MEDIAR UFBA se dedicam à leitura e discussão de textos voltados à mediação no âmbito educacional, à elaboração de questionários 163

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sensibilizações e capacitações que visam formar novos agentes mediadores universitários,


estruturados para pesquisa da conflituosidade na comunidade interna da UFBA, bem como a produção de artigos com os resultados dessa pesquisa. As ações visam efetivar o projeto e com isso pretende levar ao conhecimento da comunidade acadêmica que a mediação pode ser um instrumento de pacificação e resolução de conflitos no âmbito universitário, no qual os indivíduos que permanecerão no mesmo âmbito por um dado tempo possam restaurar relações rompidas, se assim quiserem. Para além disto, as ações contribuem para a pesquisa e extensão disseminada pela Universidade, que tem o intuito de desenvolver aparatos que possam instigar o meio acadêmico e seus discentes a produzir conhecimento e proporcionar um retorno à sociedade dos seus resultados. Para alcançar e implantar as particularidades traçadas pelo instituto, devem ser estabelecidas modalidades de execução das ações [...] que contribuam para o desenvolvimento do mecanismo e para a consolidação de seus objetivos [...]. (MUNIZ, 2006, p. 256). Sendo assim, estas são as principais ações do projeto:

3.2.1 Ação de capacitação da mediação A ação de capacitação em mediação visa habilitar a comunidade acadêmica a utilizar as técnicas da mediação para dirimir os conflitos ocorridos dentro da Universidade Federal da Bahia e contribuir para a pacificação social dentro das Unidades Acadêmicas e Administrativas da Instituição. O projeto almeja alcançar toda esfera universitária sensibilizando e capacitando novos agentes mediadores que atuarão como multiplicadores da cultura da paz através da autocomposição para solucionar suas questões utilizando os Meios Adequados de Solução de Conflitos - MASC’s. Dada ferramenta tem sua importância ao difundir no ambiente universitário a mediação como possibilidade de conhecimento e como instrumento de resolução de conflitos,

permeiam o âmbito universitário. Com isso, o público alvo do projeto são os professores, alunos, servidores, funcionários da Universidade que tenham interesse em conhecer a mediação de conflitos e que possam atuar como multiplicadores da cultura da paz no ambiente acadêmico. Para a sua realização, compõem sua organização professores e alunos que fazem parte do Observatório da Pacificação Social, além dos colaboradores voluntários. A equipe organizadora é composta por um mínimo de 14 (quatorze) pessoas, organizada da seguinte

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assim a demonstrar outras possibilidades de lidar com as divergências e as dificuldades que


forma: 01 (um) coordenador; 02 (dois) ou mais professores assistentes de coordenação responsáveis pela ministração do curso e 11 (onze) ou mais assistentes de execução. A metodologia utilizada é a denominada ativa, em que os indivíduos estão no centro da abordagem do conhecimento no qual são colocados a dialogar com o que está sendo apreendido. Para a fixação e para compor a finalidade almejada, são realizadas simulações de mediação ao longo do curso, bem como observação das sessões de mediação reais. Por fim, conforme evidenciado, os novos mediadores universitários podem dedicarse à prevenção do conflito, funcionando como agentes propagadores da cultura da paz e da autocomposição de conflitos, bem como podem atuar como terceiro imparcial em situações de conflituosidade originadas na comunidade interna da Universidade (seja entre alunos, professores ou servidores). O ideal de uma Universidade que busca a pacificação social através da mediação de conflitos alude a um corpo universitário que além de empreender nos MASC’s, trabalha para a consecução de um ambiente acadêmico saudável.

3.2.2 Ação da disseminação da mediação através de questionário

A aplicação de questionários nas unidades acadêmicas pretende traçar um mapa da conflituosidade dentro da Universidade, objetivando conhecer quais os conflitos mais frequentes e suas formas de solução, além de levar ao conhecimento do corpo docente, discente e demais funcionários (servidores administrativos e terceirizados) a importância da mediação. A relevância desta ferramenta está em colher os insumos necessários para a produção de pesquisas voltadas a mapear e entender qual é o público da Universidade, suas características, seus anseios frente às dificuldades encontradas ao resolver uma situação

mediação como instrumento de resolução de conflitos, abrindo o leque de possibilidades para lidar com as divergências que permeiam o âmbito universitário, entre eles: os conflitos entre professores, entre professores e alunos, entre alunos e alunos, bem como dos professores e alunos com os servidores públicos administrativos. Para a realização de dada ferramenta, forma-se uma equipe organizadora composta pelos professores e alunos da UFBA, além de colaboradores voluntários. Esta equipe será composta por um mínimo de 14 (quatorze) pessoas, organizada da seguinte forma: 01 (um) coordenador, 02 (dois) professores assistentes de coordenação e 11 (onze) assistentes de 165

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conflituosa e como se caracterizam os conflitos universitários. A partir disto, disseminar a


execução, tendo em vista a necessidade de cobrirem a maior quantidade possível de unidades administrativas e de ensino. A metodologia utilizada é a qualitativa, com a aplicação dos questionários aplicadas presencialmente nas unidades acadêmicas com maior fluxo de alunos, professores e servidores com o fito de alcançar a maior quantidade de membros do corpo universitário. Após o término da aplicação de questionários, todos os membros da equipe deverão escrever um diário de bordo da ação, de modo a registrar seu desenvolvimento, bem como suas impressões pessoais quanto à atividade.

3.2.3 Ação de sensibilização

A ação de sensibilização é um método que possui o intuito de disseminar a mediação como instrumento transformativo e resolutivo de conflitos ancorada na colaboração e autocomposição. Para além disto, se propõe a disseminar a cultura da paz. A importância desta ferramenta está na possibilidade de ter um contato maior e pessoal com os indivíduos que compõem o âmbito acadêmico, assim estreitando relações e explanando sobre a proposta do projeto e o instrumento utilizado, a mediação. Para a sua realização é necessário entre 5 (cinco) a 10 (dez) estudantes bolsistas e voluntários que após entrar em contato com uma unidade administrativa ou acadêmica, se dirige a esta para dar início a proposta de disseminação da mediação como instrumento indicado para transformação e resolução de conflitos. A metodologia utilizada é a intervenção participativa dos integrantes do projeto nas unidades, com a finalidade de estreitar relações e abrir espaço para outras alternativas adequadas à construção de um ambiente mais pacífico. As ações demonstram seu caráter educativo ao envolver uma rede de indivíduos

ideais e participação ativa na vida acadêmica através desta plataforma de ações criada pelo projeto. Ensina-se paz quando se ensina a resolver a prevenir os conflitos de maneira amigável, quando se restaura o diálogo, quando se oferece possibilidades de conscientização de direitos e de responsabilidade social, quando se substitui a competição pela cooperação, o individual egoísta pelo coletivo solidário. (SALES citado por MUNIZ, 2006).

4 TEORIAS E PRÁTICAS 166

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dedicados a levar a ideia de pacificação à Universidade, assim a possibilitar a difusão de


O projeto MEDIAR UFBA leva a mensagem da possibilidade de alternativas frente a uma situação, tendo em vista a complexidade em que as relações interpessoais se estabelecem. Neste sentido, o ambiente acadêmico como já abordado anteriormente, apresenta as condições propícias tanto para a formação do conflito, como para a instauração de plataformas que atuem no processo transformativo. Com isso, o dado projeto, através das suas ações, pretende construir procedimentos que auxiliem a Universidade em um caminho menos burocrático, mais aberto ao acolhimento e ao diálogo. Para isto, é preciso enxergar o conflito como ponto de partida para transformações, pois eles nos tiram da zona de conforto e nos confrontam a tomar decisões. Assim dispõe Lederach (2002, p. 21)

O conflito nasce da vida. [...] ao invés de ver o conflito como ameaça, devemos entendê-lo como uma oportunidade para crescer e aumentar a compreensão sobre nós mesmos, os outros e nossa estrutura social. Os conflitos nos relacionamentos de todos os níveis são o modo que a vida encontrou para nos ajudar a parar, avaliar e prestar atenção. Uma forma de conhecer verdadeiramente nossa condição é reconhecer o dom que o conflito representa em nossa vida.

O projeto traz para a Universidade a ressignificação do poder do diálogo na resolução dos conflitos, pois em tempos de avanços tecnológicos e de estruturas que privilegiam procedimentos, a capacidade humana de comunicação tem sido resumida a textos e imagens, o que leva a uma nova configuração da linguagem. Esta nova configuração permite muitas interpretações e conduzem a maiores incompreensões, visto que através dessas formas não se percebe entonação de voz e sentimentos que reflitam verdadeiramente o que está acontecendo em um dado momento. Através disto, a teoria do agir comunicativo nos conduz a uma análise filosófica em que interpreta as interações sociais como uma prática

universais, assim tendo a necessidade da compreensão do outro por meio da ponderação das falas envolvidas em um dado caso para constituir sua validade. A intercompreensão equivale a um processo que visa obter um acordo entre sujeitos capazes de falar e de agir (HABERMAS, 1989, p. 164-165). Essa ética da discussão de Habermas é a primazia do diálogo em detrimento do convencimento do interlocutor. Deste modo, através da mediação, conseguimos levar isto para comunidade acadêmica, bem como ensaiar a institucionalização de resoluções de questões por meio do método que conduz o projeto. Assim, tem-se como exemplo o direcionamento para a 167

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intersubjetiva na qual as premissas dispostas pelos indivíduos não correspondem a verdades


resolução de questões através da mediação pela PROAE-UFBA7, que já se institucionalizou quando demandada pelo aluno, no que diz respeito a má convivência entre os assistidos pelo Serviço de Residência Universitária - SRU, sendo a mediação parte do procedimento de tentativa de solução do impasse (...) (BORGES, 2017, p. 70). Isto posto, reflete uma atuação efetiva que caminha para a construção do mapeamento do conflito na Universidade, bem como verificação da utilização da mediação para a mudança de perspectiva quanto a transformação do conflito. De todo modo, essa análise será realizada a médio e longo prazo tendo em vista o tamanho da Universidade e a necessidade de maiores práticas voltadas a alcançar este êxito. Conforme já mencionado, é natural do ser humano ser dotado de vontades e determinar o melhor modo de resolução de seus problemas, que perpassa por diversos fatores, em especial o meio sociocultural em que ele está inserido, tanto no aspecto macro (sociedade e comunidade) como micro (região em que vive ou seio familiar). Da força atuante desses fatores, verifica-se uma interferência no que há de mais pessoal no indivíduo, e que se colocado em face da pessoalidade do outro ser, permite a manifestação de um ambiente propício ao surgimento de divergências com potencial para gerar o conflito. Conforme preleciona Chiavenato (2000, p. 362), “O conflito é inerente à vida de cada indivíduo e faz parte inevitável da natureza humana”. Por conseguinte, é possível concluir que o conflito é inerente ao ser humano e não há que se falar em absurdez quando das relações interpessoais, permeadas pela heterogeneidade natural, assim decorre uma situação de conflituosidade. A Universidade, caracterizada por essa heterogeneidade de indivíduos e ideias, concebe um ambiente propício para conflituosidade dada à incessante formação de vínculos interpessoais com potencial para situações de conflitos sempre que os pontos de controvérsia são colocados em evidência. O trabalho do MEDIAR UFBA se justifica quando dessa análise, o projeto realiza intervenções visando prevenir o conflito, quando é possível fazê-lo, ou

construção de políticas universitárias frente a dado contexto. A teoria do conflito acrescenta a esta discussão a noção de posição inerente do conflito na sociedade, tendo em vista posições antagônicas, em que uma sempre buscará sobrepor ou se igualar a outra. Dada teoria tem sua importância por traçar historicamente nas 7 Pró Reitoria de Ações Afirmativas e Assistência Estudantil - foi criada em 2006, a fim de concentrar esforços e otimizar os recursos destinados a garantir a permanência de estudantes de graduação em situação de risco social e realizar o enfrentamento à perpetuação das desigualdades sociais e à discriminação de grupos historicamente excluídos dos espaços legitimados de poder, a saber: mulheres, negros(as), indígenas, comunidade LGBT, pessoas com necessidades especiais, ciganos(as), dentre outros grupos. Disponível em: <https://proae.ufba.br/ptbr/conheca-proae>.

168

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identificar a situação onde ele surgiu, quando já existente, para em seguida perseguir na


ciências sociais o conflito como fruto das interações humanas que caminham para as transformações necessárias para diminuir desigualdades, sendo mola propulsora de progressos e igualdade. Nesta perspectiva, os conflitos sociais são destacados como socialmente importantes e refletem uma maneira de resolver certa situação. Seu desfecho dependerá das ferramentas utilizadas pelos indivíduos para melhor chegar a um denominador comum, com isso importante aporte teórico, aponta as virtudes do conflito:

Uma condição necessária para que as partes, às vezes, ásperas e díspares possam, de fato, efetuar a trama que ele encerra. É um ato estipulador que, em outros instantes, permitirá a própria superação das dissimilitudes dos litigantes. O conflito possui a capacidade de constituir-se num espaço social, em que o próprio confronto é um ato de reconhecimento e, ao mesmo tempo, produtor de um metamorfismo entre as interações e as relações sociais daí resultantes. Uma outra característica positiva atribuída, residiria no fato de superar os hiatos e os limites socialmente estabelecidos pelos intervalos dicotomizados, ou mesmo, as desigualdades sociais produzidas e estruturadas pelos resultados dos entrelaçamentos ocorridos na sociedade. Para Simmel, o conflito é a substância existente nas mais diversas relações entre os indivíduos na sociedade. (JÚNIOR, 2005, p. 9)

Desse modo, a construção teórica do conflito perpassa de uma visão clássica à moderna em que se atribui uma explicação acerca do conflito, seja tendo um recorte histórico voltado para a subversão das classes para tornar o mundo menos desigual, seja no entendimento da dicotomia positivo e negativo na construção de instrumento que ressignifique o conflito percebendo o que de melhor pode se extrair dele, através do meio

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto, o projeto Mediar UFBA: prevenindo e solucionando conflitos colabora e abre espaço para a transformação em um eixo da sociedade, a Universidade, buscando através de suas ações disseminar a cultura da paz através da mediação. Os esforços do projeto é criar condições para que se altere a ideia de conflito na Universidade, ressignificando-o, para que este se torne uma força motriz para o avanço da concepção dos indivíduos diante de questões que surjam no ambiente acadêmico. Neste sentido, as mudanças 169

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mais adequado.


se apresentam a partir do momento em que uma dada consciência coletiva é paulatinamente desenvolvida, de modo que passe a compor a cultura de uma determinada instituição. Com isso, as ações do projeto se propõem a construir esta consciência coletiva voltada para a pacificação, assente em colocar os indivíduos (estudantes, professores e servidores) como participantes desse processo, dando voz aos seus anseios e os chamando a compor a ideia de transformação do conflito. Desta forma, é imperativo os desafios que se apresentam a fim de que essa realidade proposta seja efetivada, uma vez que enfrentar dada cultura instaurada pelo tempo, pelas práticas e pela naturalização do que está posto, envolve esforços de vários setores. Com isso, o projeto pretende levar o despertar para novas formas de agir e pensar, buscando isso através de uma atuação pontual em determinados setores da universidade, com a finalidade de que os próprios indivíduos entendam e queiram pensar o conflito de forma desburocratizada, na perspectiva de que é possível um processo de troca, com possibilidade concreta de valorar os interesses de todos. Destarte, a mediação tem sua importância nesse processo, por ser um método que pretende dar voz aos envolvidos em uma contenda, e que busca soluções que equilibre os interesses das partes. Somado a isto, a pacificação compõe sua natureza, através dos seus princípios, quais sejam a imparcialidade, escuta ativa, confidencialidade e a celeridade. Em suma, o presente trabalho tem o intuito de mostrar as práticas e a efetividade de trazer para o ambiente universitário a importância de pensar pacificação no conflito, sobretudo, desenvolver dentro deste ambiente a ótica do consenso integrativo, visto que na última década a universidade passou por transformações, assim a exigir responsabilidades em lidar com essa “nova” conjuntura, através de instrumentos que possibilitem um futuro com mais sociabilidade, e que consequentemente, reflita socialmente na construção de um país

REFERÊNCIAS

BORGES, Francisco Rafael Dias. Da mediação escolar à universitária: um novo paradigma de acesso à justiça. Monografia. Faculdade de Direito, Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2017.

170

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melhor.


CHIAVENATO, Idalberto. Administração: teoria, processo e prática. 3. ed. São Paulo: McGraw-Hill do Brasil, 2000. HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. Tradução de Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, n. 84. Estudos Alemães. 1989. JUNIOR, José Odval Alcântara. Georg Simmel e o conflito social. Caderno Pós Ciências Sociais, São Luís, v. 2, n. 3, jan./jul., p.1-14, 2005. LADERACH, John. Paul. Transformação de Conflitos. Tradução de Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2002. MARRA, Adriana Ventola; MELO, Marlene Catarina de Oliveira Lopes. A Prática Social de Gerentes Universitários em uma Instituição Pública. RAC, v. 9, n. 3, jul./set., 2005. MUNIZ, Tânia Lobo. MEDIAÇÃO - UM INSTRUMENTO DE PACIFICAÇÃO SOCIAL EDUCAR PARA A PAZ. SCIENTIA IURIS, Londrina, v. 10, p. 243-270, 2006 TOMÁS, Catarina Alexandra Ribeiro. Mediação Escolar – para uma gestão positiva dos conflitos. Coimbra, 2010

MEDIAR UFBA: LA MEDIACIÓN COMO INSTRUMENTO DEL PACÍFICACIÓN EN EL ÁMBITO UNIVERSITARIO.

La mediación en el contexto universitario surge como una posibilidad de conocimiento y como una herramienta para la resolución de conflictos, demostrando así otras posibilidades para abordar los dilemas que impregnan el entorno universitario, tales como: conflictos entre maestros, entre maestros y estudiantes, entre estudiantes y estudiantes. , así como profesores y estudiantes con los servidores públicos administrativos. En este sentido, el objetivo del estudio tiene como parámetro las acciones desarrolladas por el proyecto “MEDIAR UFBA: PREVENINDO E SOLUCIONANDO CONFLITOS”, creado 171

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RESUMEN


en 2012, desarrollado a través del programa "Observatorio de Pacificación Social", desde el enfoque del conflicto universitario a la luz de Teoría del conflicto. Palabras clave: Mediación. Resolución de conflitos. Mediación

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universitaria.

172


O

ENCARCERAMENTO

PRECOCE

NO

BRASIL:

UMA

ANÁLISE

MULTIDISCIPLINAR Vinicius Floripo Chaffin Vieira1

RESUMO Mais da metade da população carcerária brasileira é composta de jovens entre 18 e 29 anos. O presente trabalho tem como objetivo estudar

os

motivos

desse

fenômeno

fazendo

uma

análise

multidisciplinar, passando por teorias sociológicas, psicológicas e biológicas, bem como análise de dados objetivos sobre o tema. Conclui que o fenômeno deve ser analisado de forma multifacetária, de modo que nenhum aspecto isolado consegue explicar o problema, e que a população de baixa renda é mais vulnerável a maioria dos fatores estudados, embora pessoas ricas também cometam crimes. Para isso faz uso de dados qualitativos, pelo método fenomenológico.

1

Bacharel em Ciências Navais pela Escola Naval. Graduando do curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

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Palavras-chave: População carcerária. Jovens. Laços Sociais.


1 INTRODUÇÃO

Frequentemente, é tema de debate na sociedade brasileira a temática relativa à população carcerária. Seu crescente número, sua seletividade e a precariedade do sistema são temas que urgem, tendo em vista sua importância, sobretudo no que diz respeito a um dos maiores problemas brasileiros, que é a violência urbana. A população prisional no Brasil tem apresentado, nas últimas décadas, um acréscimo contínuo, tendo dobrado, segundo dados divulgados em 08 de dezembro de 2017, pelo INFOPEN – Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, em apenas 11 anos, atingindo a marca de 726.712 presos em 2016. Segundo o mesmo levantamento, 55% desta população é composta por jovens de 18 a 29 anos. É na juventude que o ser humano experimenta a maior parte das transformações biológicas, psicológicas e sociais em sua vida, para o Estatuto da Juventude (Lei n. 12.852/2013), essa fase compreende o período entre 15 e 29 anos. Exatamente por causa de tantas transformações, é um período bastante conturbado, marcado por descobertas, adaptações e, por vezes, confusões sobre sua existência, sobre autoridade e, até mesmo, sobre sua sexualidade, o que os deixa mais expostos a fatores de risco. Naturalmente, existem diversas juventudes. Nem todos os jovens passam por esse período da mesma forma, existem aqueles com maior e menor apoio familiar, com maior e menor poder aquisitivo, com maior e menor acesso a direitos como educação, saúde e trabalho. O objetivo do presente estudo é buscar o porquê de se ter tantos jovens dentre a população carcerária brasileira. Para fazer cumprir o mencionado, busca-se amparo de teorias sociológicas sobre o que leva a prática de crimes, bem como da Psicologia sobre a personalidade dos jovens e a delinquência, das teorias biológicas, e, ainda, fazendo uma análise de dados coletados.

vez que se pode enxergá-la como sendo consequência de certo desvio de conduta ou inadaptação e falta de integração social. Porém, essa visão é diferente entre o jurista, o psicólogo, o educador e o sociólogo. Para o jurista, delinquente seria aquele que pratica conduta desviante da lei; para o psicólogo, o comportamento delinquencial tem várias causas e fatores, podendo ser o indivíduo predisposto ou desencadear tal comportamento; já para o educador, o delinquente é um enfermo da conduta, sendo resultado de uma série de condicionamentos que encontrou sem buscar; e o sociólogo concede maior importância aos fatores ambientais, sendo não só o menor inadaptado, mas também o meio em que vive. 174

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Delinquência, aliás, é um termo que não detém uma definição geral e uniforme, uma


Faz-se, ainda, uma análise de dados objetivos captados pelo INFOPEN, os quais abordam temas como quantidade de pena aplicada aos condenados, porcentagem de detentos casados e com filhos e grau de instrução dos presos. Ao fim, conclui que nenhum dos aspectos isoladamente é capaz de explicitar esse fenômeno, devendo-se fazer uma análise em conjunto de todos os aspectos da vida humana. E, ainda, que a população de baixa renda se mostra mais vulnerável a quase todos os aspectos analisados como fatores estimulantes da delinquência, embora pessoas ricas também cometam crimes, motivo pelo qual se afirma que se faz necessária uma análise conjunta de diversos fatores. A pesquisa foi realizada de maneira qualitativa, utilizando-se do método fenomenológico. Igualmente, o procedimento de análise de dados de acesso público, bem como a exploração de pesquisa bibliográfica e trabalhos acadêmicos publicados em meios digitais.

2 TEORIAS SOCIOLÓGICAS

As teorias sociológicas tentam explicar o porquê as pessoas, especialmente os jovens, cometem crimes a partir dos fatores ambientais, ou seja, do contexto em que o indivíduo está inserido, sendo o meio um aspecto bastante influente no comportamento do ser humano. São muitas as contribuições nessa área e que podem ser divididas de acordo com seu aspecto macro ou micro estrutural. As teorias macroestruturais são aquelas que defendem o crime como um produto do contexto social, estando relacionado a características de determinadas localidades ou grupos. Já as microestruturais propõem interpretações individuais, para as quais o crime é fruto das interações do indivíduo com os diversos processos da sociedade. O primeiro grupo será representado neste trabalho pela Teoria da

Social (HIRSCH, 1969). A Teoria da Anomia, de Merton, tem origem na Teoria da Anomia Social, de Durkheim (citado por PINTO, 2017, p.40), para quem anomia significaria ausência de normas. Já para Merton (citado por PINTO, 2017, p.40), existem duas estruturas, a cultural e a social, que podem colidir, dando origem a um conflito que seria a anomia. A primeira estrutura seria a cultura do estabelecimento de metas e aspirações ilimitadas, como ascensão profissional, carros cada vez mais robustos, celulares cada vez mais tecnológicos. Já a

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Anomia (MERTON, 1968 citado por PINTO, 2017) e o segundo pela Teoria do Controle


segunda consiste na limitação dos meios legais para se atingir aquelas metas. Contudo, nem todos detêm as mesmas condições de meios para isso, pois estes são limitados. A partir dessa impossibilidade de se alcançar os objetivos, quase sempre financeiros, de forma legítima, os indivíduos começam a não se preocupar com a licitude de seus atos para alcançar os fins desejados. É na fase da adolescência/juventude que a pessoa se encontra mais vulnerável a esses desvios, pois a necessidade de pertencimento a grupos, de interação com outras pessoas e a falta de maturidade para compreender os aspectos da vida faz com que essas aspirações sejam mais frequentes. Questionamentos podem surgir nas mentes mais jovens, por exemplo, sobre o porquê os pais dos outros têm carros melhores, ou o porquê os amigos possuem celulares mais caros e roupas da marca da moda, e eles não. Baseado nisso, percebe-se que são os jovens das classes sociais mais baixas, com menor poder aquisitivo, os mais vulneráveis à contradição entre as estruturas cultural e social de Merton, e é nisso que ele acredita – ao contrário de Durkheim, que afirma que as pessoas mais abastadas financeiramente são as mais atingidas, por terem menos níveis de subordinação, uma vez que normalmente são os patrões, para conter seus desejos. Essa teoria é aplicável na sociedade brasileira, tendo em vista suas desigualdades gritantes. Como afirma Hélio Pinheiro Pinto (2017, p. 39-51):

Realmente, como exemplo de país com contrastes impactantes, o Brasil engloba uma elite ostensivamente rica ao lado de uma massa enorme de pessoas muito pobres, que não tem o mínimo necessário para viver com dignidade. A existência de múltiplos mundos sociais, separados por diferenças socioeconômicas abismais, aliado ao estímulo ao consumo e a competição sem limites, favorece, por exemplo, o avanço do tráfico de drogas e dos crimes contra o patrimônio (inovação), além de contribuir para a mendicância (retraimento) e para comportamentos rebeldes

No entanto, essa teoria não é imune a críticas, pois aborda somente os fatores externos ao indivíduo, desconsiderando os internos. Não explica, por exemplo, por que nem todos os jovens de baixa renda cometem crimes e por que há pessoas de alta renda que cometem crimes de natureza financeira. Nesse sentido, faz-se necessário uma análise dos fatores endógenos (internos) do indivíduo. A Teoria de Controle Social, de Travis Hirsch (1969), tenta entender de que forma o meio e os fatores sociais podem influenciar o comportamento individual. Para a teoria, o 176

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(rebelião).


crime ocorre quando o indivíduo não se encontra devidamente controlado, controle esse que ocorre nas mais variadas ligações que ele mantém na sociedade: família, amigos, escola, trabalho, igreja. Dessa forma, como afirma Hirsch (1969, p. 16), “as teorias de controle assumem que atos delinquentes resultam quando o vínculo do indivíduo com a sociedade é fraco ou quebrado”, ou seja, a pessoa tende a cometer atos desviantes de conduta na medida em que seus laços com a sociedade estão enfraquecidos ou até mesmo rompidos. Por outro lado, quanto mais ligações sociais, mais mecanismos de controle atuarão sobre a pessoa, e a probabilidade de seu comportamento estar conforme as normas sociais é substancialmente maior. Em sua obra, Hirsch define quais são os elementos de vínculo com a sociedade e apresenta

quatro:

afeição

(attachment),

compromisso

(commitment),

envolvimento

(involvement) e crença (belief). A afeição seria o apego que o indivíduo tem com outras pessoas, a ligação e a consideração dele para com elas. Na medida em que há consideração e proximidade em relação a algumas pessoas, como pais, irmãos, professores, enfim, pessoas próximas que despertem admiração, surge uma preocupação com a opinião e com a expectativa dessas pessoas em relação ao comportamento do jovem. Isso serviria como um controle, pois quebrar essa expectativa, ou causar uma opinião negativa acerca de um ato seu, faz com que o jovem se constranja em praticá-lo. O compromisso, também chamado de empenho, é o grau com o qual o jovem se compromete com os valores convencionais. Segundo Emanuelle Lopes Miranda (2010), ao se comprometer com as atividades sociais, o indivíduo constrói uma reputação positiva, e a prática de atos delituosos colocaria em risco todo esse investimento. O custo se de perder todo um investimento funcionaria na prevenção de práticas delituosas.

sociedade, seu círculo de amizades, seus laços com a escola ou atividades estudantis, suas relações com o trabalho, sua frequência em clubes, festas de aniversários. Enquanto o jovem está envolvido com todas essas atividades, ele se manteria afastado de cometer atos delituosos. E a crença seria a convicção nas leis e normas sociais, na sua legitimidade e no que elas representam. Quanto maior sua convicção, maior seu grau de obediência a essas regras. Por outro lado, as unidades significativas de controle são a família, a escola, o trabalho e a lei, sendo a família a mais importante de todas, pois se o jovem não conseguir criar nenhum grau 177

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O envolvimento seria o grau de interação do indivíduo com as atividades da


de afeição, envolvimento e compromisso com seus familiares, provavelmente terá dificuldades com os demais. Partindo dessas observações, já se percebe que as transformações ocorridas na sociedade brasileira colaboram para o enfraquecimento dos laços familiares. Com o aumento da pobreza e a necessidade de se gerar renda, os pais necessitam trabalhar mais para garantir o sustento da família, e são obrigados a deixarem seus filhos com outras pessoas, ou seja, passam menos tempo em casa cuidando e educando sua prole. Além disso, os divórcios se multiplicam, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE (2017), o número de divórcios em 2017 cresceu 8,3% em relação a 2016, atingindo 373.216, representando quase 35% do número de casamentos realizados e um aumento de mais de 60% em relação a 2007, sendo que a pesquisa não computa as separações informais, de famílias cujos pais não chegaram a se casar e divorciar oficialmente. Esse fato traz ainda mais dificuldades para as mães – que devem se desdobrar – e para os filhos – que se sentem ainda mais sozinhos – que, em muitos casos, são abandonados pelos pais e, consequentemente, crescem sem essa referência, que é muito importante, apesar dos esforços da mãe para suprir todas as necessidades daqueles. Estando os laços familiares enfraquecidos, o sujeito começa a encontrar dificuldades em seus laços com a religião, o desempenho escolar começa a cair e, nessas horas, mais uma vez, o jovem se vê mais vulnerável e atraído por más companhias e caminhos não convencionais. Conforme leciona Trindade (1996, p. 103):

A conduta delinquencial é produto de um controle social ineficiente, de socialização frustrada por pais desinteressados, fracasso escolar, falta de perspectivas profissionais e um sistema legal duvidoso. (…) Os vínculos de afeto do adolescente

Há ainda outras teorias abordadas por Trindade, como a Teoria do Desvio Cultural, para a qual a delinquência juvenil é resultado de um sistema de valores culturais em conflito com aqueles de uma sociedade mais vasta e mais potente. Ou seja, se existe um grupo que desenvolveu uma cultura diferente da cultura mais comumente aceita na sociedade dentro da qual ele está inserido, surge um conflito que pode gerar comportamentos delinquentes. Isso é muito comum entre os jovens, como reforça Trindade (1969, p. 109), “o adolescente,

178

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com os pais, professores e amigos, atuam como um forte detector da delinquência.


desorientado, em crise de identificação, agrupa-se com outros e cria uma subcultura de oposição ao mundo dos adultos”. E, ainda, a Teoria da Tensão (TRINDADE, 1996), que, partindo da Teoria do Controle Social, afirma que a sociedade é formada por um consenso de valores e conclui que a delinquência ocorre quando se criam obstáculos ao alcance das metas criadas, se aproximando, dessa forma, da teoria da anomia de Merton.

3 ASPECTOS PSICOLÓGICOS

As abordagens psicológicas, ao contrário das anteriores, estudam como os conflitos internos de cada pessoa influenciam na delinquência. Naturalmente, suas teorias não são opostas às sociológicas, ou entre si, mas se complementam. Muitas são as vertentes psicológicas que se debruçam sobre o tema, porém neste trabalho serão apresentadas brevemente três delas, consideradas mais relevantes: behaviorismo (WATSON, 1961 citado por TRINDADE, 1996), gestalt (WERTHEIMER; KOLLER; KOFFKA citado por TRINDADE, 1996) e psicanálise (FREUD; FERENCZI; HORNEY citado por TRINDADE, 1996). Para a reflexologia (PAVLOV, 1954 citado por TRINDADE, 1996), os estímulos podem condicionar o comportamento humano. Dessa forma, se um determinado resultado é desejável, basta apresentar ao indivíduo os estímulos adequados que produzam esse resultado – são os chamados reflexos condicionantes, pois a pessoa não o faz conscientemente. O crime, por sua vez, corresponderia a uma confusão nos estímulos aos quais o indivíduo foi exposto. É essa a linha de pensamento do behaviorismo: para condicionar uma pessoa a um ou outro comportamento, ou aptidão, ou resultado, bastariam os estímulos adequados. Se o

ser usada em benefício do delinquente, na medida em que pode ajudá-lo a não repetir os mesmos atos indesejados que o levaram à condição de delinquir. Já a teoria da gestalt destaca a importância da percepção, mas, conforme destaca Trintade (1996, p. 120), “diferentemente dos condutistas, concluíram que a solução para um problema está na reestruturação de um campo perceptual”, ou seja, o delito está associado a uma alteração das percepções do indivíduo, que não correspondem aos estímulos apresentados.

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resultado não foi o esperado é porque os estímulos não foram os corretos. Essa técnica pode


A teoria psicanalítica teve origem em Freud (citado por TRINDADE, 1996), que descobriu, em 1900, o inconsciente humano. A partir de seus ensinamentos, outros estudiosos avançaram na teoria, como Ferenczi (citado por TRINDADE, 1996), para quem a personalidade humana é composta de três elementos, o eu instintivo, o eu real e o eu social, sendo a delinquência o resultado da prevalência de um deles sobre os outros. Outro exemplo de bastante importância é Horney (citado por TRINDADE, 1996). Para ele, a ausência de amor genuíno na relação pais-filhos é responsável por dificuldades posteriores, como a insubmissão, o desapego e a agressividade. Essa afirmação segue a mesma linha da Teoria do Controle Social de Hirsch, citada anteriormente, apresentando a importância dos laços familiares na estabilidade dos jovens bem como o afeto dos pais. Na linha de pensamento behaviorista, quais os estímulos que o jovem brasileiro de classe baixa tem, morando nas periferias, sem emprego ou com subempregos, sem garantias trabalhistas, sem acesso à educação, sem acesso a um sistema de saúde que supra as suas necessidades, sendo marginalizado e privado dos meios necessários para atingir as metas que a sociedade lhe impõe (conforme a teoria de Merton) e sofrendo preconceito social e racial? Verifica-se que os mais vulneráveis a esses fatores são os jovens de classe baixa, mesmo que não sejam os únicos que cometam delitos, mas certamente esses estímulos não são os adequados para atingir os padrões de comportamento que a sociedade espera. Na linha dos estudos sobre a personalidade, uma teoria bastante difundida é a Teoria dos Cinco Fatores (PASSOS; LAROS, 2014). Essa teoria prevê a existência de cinco grandes traços de personalidade: a abertura para experiência, a conscienciosidade, a extroversão, o neuroticismo e a agradabilidade. A abertura para experiência consiste no grau de disposição para vivenciar novos ambientes, obter novos conhecimentos, novas ideias – normalmente associado a pessoas curiosas, intelectuais e imaginativas. A conscienciosidade é a tendência para demonstrar autodisciplina, orientação para os deveres e foco nos objetivos, são pessoas

dos impulsos. A extroversão é a facilidade para interagir com outras pessoas, expor suas ideias e fazer novas amizades. O neuroticismo, também chamado de instabilidade emocional, é a tendência para experimentar emoções negativas, como raiva ou ansiedade. Pessoas com alto grau de neuroticismo estão mais predispostos a encarar situações normais como ameaçadoras e são mais vulneráveis ao stress. Por fim, a agradabilidade, ou amabilidade, é a capacidade de construir relações saudáveis, cooperativas, agradáveis e harmoniosas. Diversos são os estudos feitos acerca dessa teoria, observando a interação entre esses fatores e sua incidência em um ou outro grupo de pessoas. Dentre eles, Gleason e outros 180

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que preferem o comportamento planejado ao espontâneo – seria a capacidade de autocontrole


(2004), em estudo feito na Universidade do Texas, cujo objetivo era explorar a contribuição da personalidade a esse comportamento nesse período, em seu aspecto da amabilidade, considerado como especialmente importante para entender o comportamento agressivo na adolescência. Descobriu-se que a amabilidade é mais intimamente associada com processos e resultados relacionados à agressão em adolescentes. Ou seja, a amabilidade é um atributo que tende a ser menor em adolescentes e vai crescendo conforme a idade. Outra contribuição para o entendimento do quanto à personalidade pode influenciar no elevado número de jovens na população carcerária é o estudo de Branje e outros (2007), da Universidade de Utrecht e Radboud, na Holanda. Nele, o objetivo era examinar o desenvolvimento da personalidade na adolescência e num período prolongado da vida adulta, e foi demonstrado que a personalidade se desenvolve não apenas durante adolescência, mas também na idade adulta. Entretanto, a descoberta mais interessante para este trabalho foi que o desenvolvimento na personalidade relacionado à idade sugere que os indivíduos se aproximam da maturidade e adaptação. Segundo Branje e outros (2007, p. 45-62):

A ideia de desenvolvimento normativo para uma maior adaptação sugere que com a idade os indivíduos tornam-se mais agradáveis, conscienciosos, emocionalmente estáveis e abertos, e um pouco menos extrovertidos. Em geral, estudos transversais revelaram que os adolescentes são maior em Extroversão e Estabilidade Emocional e menor em Amabilidade e Conscienciosidade do que adultos.

A pesquisa reforça a ideia da investigação de Gleason e outros (2004) no que diz respeito à menor amabilidade nos jovens e amplia com a ideia de que os jovens também possuem menor conscienciosidade do que adultos. Ou seja, possuem menor autocontrole e autodisciplina, o que contribui para a prática de atos não convencionais e o desenvolvimento

de jovens delinquentes em situação de cumprimento de pena no Brasil. Na linha dos transtornos de personalidade, Trindade (2011) traz importantes considerações. Para ele, os transtornos têm início na adolescência ou começo da idade adulta e consiste em um “padrão persistente de vivência íntima ou comportamento que se desvia acentuadamente das expectativas da cultura do indivíduo” (TRINDADE, 2011, p. 146). Dentre os diversos tipos de transtornos citados pelo autor, o mais importante para o presente trabalho é o transtorno antissocial. Este seria uma incapacidade de conformar-se às normas sociais e a um padrão persistente de desconsideração e violação dessas normas bem

181

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de relações desagradáveis, consistindo em mais um fator que corrobora com o grande número


como dos direitos dos outros, podendo incluir comportamentos delinquentes, com ausência de ansiedade e culpa. Segundo Trindade (2011, p. 452):

Embora a atividade delinquente possa começar a qualquer idade, sabe-se que inicia no contexto escolar, por volta dos 10-11 anos, acelera até atingir o pico por volta dos 15-16 anos, e decresce no final dos 20 e no decurso dos 30 anos de idade. Somente em um número pequeno de agentes – os psicopatas (Hare 1970, 2002 e 2003) – a delinquência ficaria ativa até aproximadamente os 45 anos, quando então entra num processo de remissão, o que não quer dizer que não existam infrações e infratores mesmo além dessa faixa etária.

Essa percepção de Trindade está em perfeita consonância com os dados coletados pelo INFOPEN (2016), que mostra que 55% da população carcerária, incluindo os três regimes de cumprimento de pena, é composta de jovens de 18 a 29 anos, que é o objeto do presente estudo.

4 ASPECTOS BIOLÓGICOS

As teorias biológicas são aquelas que estudam os fatores endógenos, internos ao indivíduo, que influenciam em seu comportamento delituoso. Desde a teoria de Lombroso (citado por TRINDADE, 1996), para quem o homem delinquente não se faz, mas nasce, até os dias de hoje, vários são os estudiosos do assunto, porém neste trabalho serão apresentadas três das principais vertentes das teorias biológicas. A endocrinocriminologia parte da ideia central de que as glândulas existentes no

quais têm a propriedade de operar processos vitais de síntese e de desintegração das matérias que constituem o protoplasma (parte viva da célula, capaz de reagir a estímulos), influenciam no crescimento e constituição do corpo, bem como na configuração psíquica do indivíduo (TRINDADE, 1996). Naturalmente, não são elas um fator decisivo ou determinante na configuração do indivíduo como delinquente, aliás, nenhum fator biológico o é, pois, como já visto, a origem do crime deve ser analisada por um conjunto de fatores, endógenos (internos) e exógenos (externos). 182

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organismo humano, responsáveis pelos diversos hormônios que o corpo produz e necessita, os


No entanto, ainda segundo Trindade (1996), alterações nas glândulas paratiroideas, por exemplo, podem influenciar uma pessoa a cometer delitos face à irritabilidade que causam, tornando o sujeito mais agressivo. Ou, então, os distúrbios da glândula pineal, que podem estar relacionados a crimes de ordem sexual. Outra corrente é a geneticista (TRINDADE, 1996), que acredita que as informações genéticas não devem ser desconsideradas. O estudo dessa vertente se debruça sobre a estrutura cromossômica dos indivíduos. O ser humano possui 23 pares de cromossomos, totalizando 46, sendo 22 pares autossômicos e 01 par de cromossomos sexuais, sendo XX para mulheres e XY para homens. No entanto, o processo de composição da carga genética está sujeito a acidentes, como a trissomia do par 21, que causa o mongolismo. Assim como esta, outras anomalias podem acontecer na formação dos cromossomos, dente elas a síndrome de Jacobs, que consiste em uma duplicidade do cromossomo Y presente nos homens, tornando o par sexual XYY. Esta anomalia é relacionada ao comportamento agressivo e encontrada em condenados por crimes violentos. Ademais, segundo Ey (1978 citado por TRINDADE, 1996) estudos têm confirmado a existência de uma relação entre o cariótipo XYY e a delinquência precoce, o que, por sua vez, é o objeto do presente estudo. De acordo com Trindade (1996, p. 91): Vários estudos parecem confirmar uma frequência significativamente maior de XYY em sujeitos criminosos, quando comparados com a população em geral (…). Indivíduos com a síndrome XYY apresentam coeficiente intelectual (QI) entre 60 e 80, são impulsivos e de pouca afetividade. Possuem reduzida capacidade de previsão e tendência precoce a delinquir. (grifo nosso)

Por fim, as teorias somatotípicas e somatocaracterológicas possuem expoentes como

tema, motivo pelo qual os estudos de Kretschmer foram eleitos para representar essa vertente. Kretschmer (citado por TRINDADE, 1996) classificou os indivíduos com base nas suas características morfológicas em Leptossômicos, Atléticos e Pícnicos. Os primeiros têm predomínio do eixo longitudinal, é uma figura magra, suja e pálida. Rosto pequeno, nariz pontiagudo, braços longos e ossos pronunciados nas extremidades. Tórax e abdômen delgados. Tende a um envelhecimento precoce, ao isolacionismo e à introversão. Os segundos são fortes, com potente desenvolvimento ósseo e muscular. Traços faciais brutos, estatura média, ombros salientes, tórax robusto, ventre denso, pele grossa e estirada. E os terceiros

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Kretschmer, Sheldon e La Senne. Não é o fim deste trabalho esgotar todas as teorias acerca do


apresentam forte desenvolvimento das cavidades viscerais, predomínio do abdômen, tendência à obesidade, aspecto flácido. É adiposo e com desenvolvimento latitudinal. Tende à calvície com a idade. Possui membros curtos, são sociáveis, bondosos, alegres, extrovertidos e ativos. A partir dessa classificação, concluiu que os pícnicos possuem maior capacidade de adaptação, respondendo melhor às exigências sociais. Não têm tendência a delinquir, mas se o fizessem, a probabilidade é que seja tardiamente e responderiam bem ao tratamento penitenciário, tendendo à ressocialização. Os leptossômicos, diferentemente, apresentam independência do meio, insociabilidade e gosto pela individualidade. Apreciam o isolamento e evitam o contato direto com as pessoas. Possuem conduta reservada e quando chegam à ação, foi previamente articulada. Não agem pela emoção, costumam ser racionais. Já os atléticos seriam aqueles que possuem maior tendência a delinquir. São os delinquentes por excelência. Fazem valer sua condição de força e vantagem física. Essa teoria se aproxima muito das ideias de Lombroso e foi fortemente criticada por apresentar estereótipos definidos para os criminosos e os não criminosos, estigmatizando todo um grupo de pessoas que possuam essas mesmas características, sem levar em consideração o contexto social e todas as variáveis que podem influenciar o comportamento do indivíduo. Atualmente, serve mais como fonte de pesquisa histórica da evolução dos estudos sobre criminologia do que como fundamento científico.

5 ASPECTOS OBJETIVOS

Após análise de fatores de cunho subjetivo sobre os motivos que levam ao fato de a população carcerária ser mais jovem, passa-se a uma análise de dados objetivos observados

De acordo com Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (2017), 54% dos condenados receberam penas de até no máximo oito anos de prisão. Se forem consideradas também as penas entre 08 e 15 anos, pois nem todos são sentenciados ao limite máximo desse intervalo, esse número passa a 77% (gráfico 1). Ainda que a pesquisa não tenha conseguido obter dados sobre 100% dos condenados, a amostra foi bastante representativa, com 63%.

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pelo INFOPEN.


GRÁFICO 1 – Tempo de pena 0,35 31% 0,3 0,25

23%

0,2 16% 0,15 10%

0,1 0,05

8% 4% 2%

4%

1%

1%

0 Até 6 Entre 6 Entre 1 Entre 2 Entre 4 Entre 8 Entre 15 Entre 20 Entre 30 Entre 50 meses meses e ano e 2 anos e 4 anos e 8 anos e anos e anos e anos e anos e 1 ano anos anos anos 15 anos 20 anos 30 anos 50 anos 100 anos

Fonte: Infopen, jun. 2016.

Levando em consideração tudo que foi analisado como fatores que podem levar os jovens a cometerem mais crimes que pessoas mais velhas, percebe-se que a precoce população carcerária também pode se justificar, objetivamente, pela quantidade de pena aplicada a mais da metade dos condenados. Para que um indivíduo permaneça cumprindo pena após os 40 anos de idade, por exemplo, é necessário que ele tenha cometido um crime muito grave, a ponto de receber uma grande quantidade de pena, ou então que ele esteja entre a exceção, os psicopatas – segundo afirma Trindade, citado acima – seriam aqueles em que as características de delinquência permanecem até idades mais avançadas. Ainda segundo esse levantamento, no que diz respeito ao estado civil, cerca de 60%

solteira, além dos 3% de separados e divorciados, totalizando 63% (gráfico 2). Além disso, entre aqueles de quem se conseguiu coletar dados na pesquisa, que foi de apenas 9% do total, 54% dos homens não possuem filhos (gráfico 3). Embora a amostra sobre filhos tenha sido pequena, e não se possa chegar a conclusões sobre a totalidade da população em cumprimento de pena, o dado serve como estimativa. GRÁFICO 2 – Estado Civil

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da amostra, que foi de 64% do total de pessoas cumprindo pena privativa de liberdade, é


1% 2% 1% 9%

28% 60%

Solteiro (a) União Estável Casado (a) Separado (a) judicialmente Divorcido (a) Viúvo (a)

Fonte: Infopen, jun. 2016.

GRÁFICO 3 – Homens com filhos

12% 14% 53%

Sem filhos 1 filho 2 filhos Mais de 2 filhos

21%

Fonte: Infopen, jun. 2016.

Percebe-se que esses dados se aproximam da Teoria do Controle Social de Hirsch, já citado neste trabalho, no que diz respeito aos laços familiares e ao controle que eles têm sobre

obrigações familiares e menos pessoas com quem se apegar e se preocupar, da mesma forma que, no caso de não ter filhos, não teria para quem ser exemplo. Com relação à escolaridade, tem-se que 51% dos presos possui apenas o ensino fundamental incompleto, além dos 4% de analfabetos e 6% de alfabetizados sem cursos regulares, totalizando 61% (gráfico 4). Mais uma vez a teoria de Hirsch pode ser comprovada na prática, tendo em vista que os laços com a escola é um dos elementos de controle de sua teoria.

186

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a conduta do ser humano. Nota-se que homens solteiros e sem filhos, em teoria, teriam menos


GRÁFICO 4 - Escolaridade

1% 9%

6%

Analfabeto

4% 15%

14% 51%

Fundamental incompleto Médio incompleto Superior incompleto Acima de superior completo

Alfabetizado (sem cursos regulares) Fundamental completo Médio completo Superior completo

Fonte: Infopen, jun. 2016.

Além de se aproximar da teoria de Hirsch, a falta de uma educação de qualidade expõe uma debilidade da sociedade brasileira no sentido de não conseguir proporcionar aos brasileiros, de maneira gratuita e igual, esse direito tão básico garantido pela Constituição. É fato que o jovem que tem seus direitos negados, e especialmente este, fica marginalizado, muito mais exposto a fatores de risco e a se envolver com más companhias e atividades ilícitas, pois, além da não ter boas perspectivas para o futuro, fica com seu tempo ocioso, sem nenhuma atividade produtiva. Novamente, a população mais atingida é a de baixa renda, que não pode pagar por uma educação de qualidade e fica na dependência do Estado, que não consegue suprir suas necessidades. Para Daniel Cerqueira (2016, p.33)2, “fica claro também que o Estado brasileiro não apenas não consegue efetivar políticas públicas bem-sucedidas para mitigar crimes, como

ao concluir que a qualidade das escolas públicas varia de acordo com as regiões das cidades, sendo melhores em bairros mais ricos.

2

CERQUEIRA, Daniel. Trajetórias individuais, criminalidade e o papel da educação. Boletim de Análise Político-Institucional, n. 9, p. 27-35, jan./jun. 2016. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/artigo/9/trajetorias-individuais-criminalidade-e-o-papel-da-educacao>. Acesso em: 29 abr. 2019.

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ele próprio é um dinamizador da violência, ao investir na perpetuação das cidades partidas”,


6 CONSIDERAÇÕES FINAIS De acordo com o que foi apresentado, percebe-se que os motivos que levam ao precoce encarceramento no Brasil devem ser analisados em conjunto, considerando seus aspectos sociológicos, psicológicos, biológicos, bem como o sistema penal com todas as suas nuances, desde a política criminal até a aplicação da quantidade de pena aos infratores. A análise de qualquer um dos fatores isolados não seria capaz de explicar esse fenômeno, pois, na maioria das vezes, restaria a pergunta: por que nem todas as pessoas que se enquadram nessa característica cometem delitos? Conclui-se, ainda, que a população de baixa renda está mais vulnerável a transgressões, principalmente se usar como norte as teorias sociológicas, no que diz respeito à sua maior incapacidade de atingimento de metas sociais – por seu baixo poder aquisitivo –, conforme a Teoria da Anomia, ou então pela maior facilidade de possuir elementos de controle mais enfraquecidos, conforme a Teoria do Controle Social. E, ainda, a Teoria psicológica do Behaviorismo, que atribui aos estímulos recebidos parcela da responsabilidade pelos resultados alcançados. Esses aspectos – somados com a ineficiência do Estado em adotar políticas públicas capazes de mitigar os efeitos da grandiosa desigualdade social e garantir aos cidadãos de todas as classes direitos considerados básicos pela própria Constituição do país, como saúde, educação e trabalho – podem ter um efeito devastador para os jovens brasileiros, e, consequentemente, para toda a sociedade, na medida em que as consequências se voltam contra ela posteriormente. Dentre essas consequências, pode-se ressaltar que, se a falta de educação pode ser um estímulo ao processo de delinquência, após delinquir, o jovem, que já não teve oportunidade de aprender e de se profissionalizar adequadamente, continua sem tê-la. Dados

de ensino. Com relação ao direito ao trabalho, apenas 15% dessa população se envolve em atividades laborais. Logo, em vez de se ressocializar, o detento torna-se ainda mais delinquente e, quando solto, seja em regime semiaberto, aberto, condicional ou término da pena, tem grandes chances de voltar a delinquir. Em pesquisas futuras, no entanto, pode-se fazer um estudo comparado da população carcerária brasileira com as de outros países, como Estados Unidos, por exemplo, para analisar como essas mesmas teorias influenciam em suas populações prisionais, levando em consideração as diferenças sociais e políticas de cada um. 188

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do INFOPEN mostram que apenas 12% da população prisional está envolvida em atividades


REFERÊNCIAS

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Acesso em: 18 abr. 2019.


PASSOS, Maria Fabiana; LAROS, Jacob Arie. O modelo dos cinco grandes fatores de personalidade: revisão de literatura. 2014. Disponível em: <https://www.researchgate.net/publication/272181115_O_modelo_dos_cinco_grandes_fatore s_de_personalidade_Revisao_de_literatura>. Acesso em: 18 abr. 2019.

PINTO, Hélio Pinheiro. Teoria da anomia segundo Robert King Merton e a Sociedade criminógena: seria o delito uma resposta à frustração de não ser bem sucedido na vida?. Revista da ESMAL. Alagoas, n. 6, p. 39-51, nov. 2017. Disponível em: <revistadaesmal.tjal.jus.br/index.php/revistaEletronicaEsmal/article/download/78/24>. Acesso em: 19 abr. 2019.

TRINDADE, Jorge. Delinquência juvenil: uma abordagem transdisciplinar. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996.

TRINDADE, Jorge. Manual de psicologia jurídica para operadores do direito. 6. ed. Porto Alegre: Livrara do Advogado, 2011.

THE EARLY JAIL IN BRAZIL: A MULTIDISCIPLINARY ANALYSIS

ABSTRACT More than half of the Brazilian prisoners is composed of young people aged between 18 and 29 years. This work aims to study the reasons by making

a

multidisciplinary

analysis,

including

sociological,

psychological and biological theories, as well as objective data

analyzed in a multifaceted way, so that none isolated aspect can explain the problem and that the poorest population is more vulnerable to most of the factors studied, although rich people also commit crimes. For this, it makes use of qualitative data, by the phenomenological method. Keywords: Prison population. Young. Social connections.

190

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analysis on the subject. It concludes that the phenomenon must be


A REFORMA AGRÁRIA NO BRASIL: ELEMENTOS PARA O DEBATE Maciana de Freitas e Souza1 Francisco Vieira de Souza Junior2

RESUMO O presente trabalho pretende refletir sobre a reforma agrária no Brasil e a atuação do Estado nesse processo. Na primeira seção, discute-se o papel do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Na segunda, apresenta-se a importância da reforma agrária e seus limites no contexto neoliberal. A terceira e última parte, consiste em analisar os conflitos no campo. A metodologia utilizada foi uma pesquisa bibliográfica e documental, com base na perspectiva do materialismo histórico dialético. Conclui-se que o Estado tem contribuído para estender o domínio do agronegócio, com vistas à ampliação e a reprodução do capital.

“[...] Em usinas escuras, homens de vida amarga e dura produziram este açúcar branco e puro com que adoço meu café nesta manhã em Ipanema”. (Ferreira Gullar)

1

Bacharela em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Pós-graduada em Saúde Pública, com ênfase em Saúde da Família pela Faculdade Vale do Jaguaribe. 2 Licenciado em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Bacharel em Administração pela Universidade Potiguar (UnP). Graduando em Direito pelo Centro Universitário Facex.

191

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Palavras-chave: Reforma agrária. Estado. Agronegócio.


1 INTRODUÇÃO

Com o processo de redemocratização política, a luta dos movimentos sociais pelo acesso à terra ganha mais espaço na dinâmica societária. No entanto, esse processo é marcado posteriormente pelo contexto neoliberal. O Estado, especialmente a partir da segunda metade da década de 1990, passa a atuar como pilar fundamental de sustentação do capital, com mudanças estruturais no processo de produção capitalista e, por um lado, com consequentes desmontes no campo dos direitos trabalhistas e sociais. O objetivo geral deste texto é analisar a questão agrária no Brasil, e se propõe a trazer algumas considerações sobre a atuação do Estado. Desse modo, pretende-se compreender quais são os rebatimentos do projeto neoliberal para a reforma agrária. A análise se desenvolve a partir de uma pesquisa bibliográfica e documental, de natureza fundamentalmente qualitativa. Será referenciado o método materialismo histórico, enquanto instrumento de apreensão da realidade social em movimento. Para tanto, além desta breve introdução, o texto contém mais quatro seções. A primeira parte irá traçar alguns elementos a respeito do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a luta pelo direito a terra no Brasil. O segundo item focará na importância da reforma agrária e os desafios para sua efetividade no contexto neoliberal. A terceira parte irá dialogar sobre a questão agrária e o aumento da violência no campo. A quarta seção, por sua vez, apresentará as considerações finais, com uma síntese dos elementos centrais do texto e apontamentos sobre a realidade nacional. Com base nesses passos, entende-se que esse estudo é importante para pensar sobre a questão agrária no país, como também compreender o papel de resistência dos trabalhadores rurais com vistas à garantia de direitos, em especial o Movimento dos Trabalhadores Rurais

2 O MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA E A LUTA PELA TERRA NO BRASIL

Com a chegada dos europeus em solo brasileiro, iniciou-se a exploração direta das riquezas do território nacional. Desde a sua formação, é notório o caráter predatório da agricultura introduzida pelos colonizadores no Brasil, marcada pela monocultura extrativista, pelos latifúndios improdutivos e pela extrema desigualdade na distribuição das terras. O 192

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Sem Terra (MST).


resultado desse modelo de desenvolvimento se faz sentir ainda hoje, “mantendo o Brasil em uma posição subalterna na divisão da produção de commodities em escala mundial” (FERNANDES e outros, 2017, p. 03)3. É importante mencionar que o descontentamento com a situação do campo no período republicano foi de fundamental importância para que diversos movimentos, que tinham como base a questão agrária, surgissem. Exemplos desse fato são a formação das ligas camponesas no nordeste e as Revoltas de Canudos e do Contestado. Nesse período, as discussões sobre a reforma agrária passam a fazer parte da pauta política. Nesse sentido, Fernandes conceitua a questão agrária como “[...] o conjunto de problemas relativos ao desenvolvimento da agropecuária e das lutas de resistência dos trabalhadores, que são inerentes ao processo desigual e contraditório das relações capitalistas de produção” (2001, p. 23). Segundo Fernandes (2001), o processo de formação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) inicia-se na década de 1980, quando trabalhadores rurais passam a se reunir em diversas experiências de ocupações de terras nos estados do Sul – São Paulo e Mato Grosso do Sul. Nesse período, ao analisar a conjuntura brasileira, pode-se identificar a emergência e o desenvolvimento do contexto de luta pela democracia e crítica ao modelo agrário implantado no período da Ditadura Militar. De acordo com o sítio eletrônico do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), esse processo histórico levou a classe trabalhadora a formar o movimento que hoje está organizado em 24 estados nas cinco regiões do país. No total, são cerca de 350 mil famílias que conquistaram a terra por meio da luta e da organização dos trabalhadores rurais. Deve-se ressaltar que o movimento tem como objetivos centrais: Lutar pela terra; Lutar por Reforma Agrária; Lutar por uma sociedade mais justa e fraterna.

de um modelo de produção agrícola que leve em conta a questão ambiental. Vale destacar que o movimento não foi construído somente pela necessidade de resistência e reivindicação das pessoas sem terra, mas também como um processo de luta descrito na história do trabalhador rural no país. Como menciona Caldart4 (2001, p. 207): “[...] é fruto de uma questão agrária que é estrutural e histórica no Brasil. Nasceu da articulação das lutas pela terra, que foram 3

FERNANDES, B. M. et. al. A Questão Agrária na Segunda Fase Neoliberal no Brasil. Núcleo de Estudos, Pesquisas e Projetos de Reforma Agrária, 2017. Disponível em: <https://www.alainet.org/pt/articulo/18339>. Acesso em: 07 ago. 2019 4 CALDART, Roseli Salete. O MST e a formação dos sem-terra: o movimento social como princípio educativo. Estudos Avançados, São Paulo, v. 15, p. 207-224, dez. 2001. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ea/v15n43/v15n43a16.pdf>. Acesso em 21 jul. 2019.

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O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra demostra, ainda, a importância


retomadas a partir do final da década de 70, especialmente na região Centro-Sul do país e, aos poucos, expandiu-se pelo Brasil inteiro”. Analisada historicamente, fica claro que a questão agrária, além de ser um elemento central na formação brasileira, apresenta desafios para a classe trabalhadora. Em conformidade com a realidade, e com vistas a garantir melhores condições socioeconômicas aos povos campesinos, a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 186, demarca a função social da terra, considerando os princípios de uso adequado do solo e o bem-estar dos trabalhadores por meio de direitos trabalhistas.

Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I - aproveitamento racional e adequado; II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

Em termos objetivos, o agronegócio tem promovido desigualdades e violações de direitos humanos, como também riscos ao meio ambiente e à biodiversidade em favor do crescimento econômico. Na concepção de Delgado (2010, p. 93), o agronegócio “é uma associação do grande capital agroindustrial com a grande propriedade fundiária”. Esse contexto tem dificultado cada vez mais as possibilidades de resistência de quem está na luta há muito tempo, luta que une saberes e vivências pra re(existir) às reincidentes forças de grupos hegemônicos, que perpetuam a segregação, propondo e construindo outras formas de viver e acessar a propriedade. Como aponta Stédile (2013, p. 25), líder do estabelecimentos agrícolas do país controlam 80% do valor da produção”. Segundo indica Fernandes (2005, p. 37), com a redemocratização do país, o Estado não deixou de formar alianças com a burguesia agrária, suas características principais denotam um modelo de “caráter concentrador, predador, expropriatório e excludente para dar relevância somente ao caráter produtivista”. Em síntese, é válido reconhecer que o Estado brasileiro tem atuado no sentido contrário aos princípios constitucionais, nota-se que a função social da terra não tem sido cumprida, e que neste cenário estão presentes situações análogas ao trabalho escravo, além de 194

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Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, no Brasil, “10% de todos os


crimes ambientais, disputas por terras e conflitos com os movimentos campesinos. Tal realidade mostra que o Estado neoliberal tem priorizado o modelo do agronegócio, que tem como eixo a exploração do trabalho, bem como a criminalização contra a luta social e a luta pela terra. Como afirma Oliveira (2010, p. 287):

Ao mesmo tempo em que este desenvolvimento avança reproduzindo relações especificamente capitalistas, implantando o trabalho assalariado, produz também, igual e contraditoriamente, relações camponesas de produção, a peoagem e suas diferentes formas de escravidão pela dívida etc., todas necessárias a sua lógica de desenvolvimento.

Durante a década de 1990, o governo de Fernando Henrique Cardoso seguiu uma agenda neoliberal de privatizações, e, nessa direção, as políticas públicas tornaram-se segundo plano. Nos anos que se seguiram de governo Lula, observa-se a continuidade da lógica de alianças que priorizam a reprodução do capital com aumento da concentração fundiária e expansão do agronegócio. O período Neodesenvolvimentista5, inaugurado com Lula e seguido por Dilma Rousseff, proporcionou, na esfera agrária, um conjunto de políticas voltadas ao desenvolvimento rural, com a criação de assentamentos e acesso aos programas sociais. Contudo, os fatores de continuidade da política neoliberal vistos nos anos 1990 permaneceram. Como assinala Pomar (2009, p. 177):

Marcha-se para uma certa aliança, entre correntes contraditórias, de que é necessário incorporar à produção agrícola todas as forças possíveis, na perspectiva de aumentar substancialmente a produção de alimentos e de biocombustíveis. Isto introduz nas questões agrícola e agrária brasileiras elementos novos, criando uma situação que

Na mesma perspectiva, segundo Delgado (2010, p. 82), a ação do Estado, nesse período, tem como prioridade o capital financeiro e, assim, contribui para a manutenção da concentração fundiária e para as estratégias produtivas das grandes corporações agrícolas.

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[...] o desenvolvimento capitalista virtuoso capaz de conciliar crescimento com equidade. A supervalorização dos fatos considerados positivos e a pura e simples desconsideração dos aspectos negativos da realidade alimentam a mitologia de que a economia brasileira estaria passando por um ciclo endógeno de crescimento com distribuição de renda e aumento da soberania nacional. Sampaio (2012, p. 680-681).

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justifica o assentamento rápido dos 3 a 4 milhões de trabalhadores sem-terra.


“Esse arranjo da economia política é altamente adverso ao movimento da reforma agrária e às políticas alternativas de desenvolvimento pela via camponesa”. Com o Golpe de Estado de 2016, que culmina na destituição da presidenta Dilma Rousseff, o Presidente interino Michel Temer, na intenção de manter níveis econômicos satisfatórios, para mencionar alguns dos retrocessos, determina cortes orçamentários nas ações e políticas agrárias com a Medida Provisória nº 7596. Essa medida, na prática, significa o desmonte das pautas relativas aos conflitos fundiários no país e das políticas públicas direcionadas aos trabalhadores rurais e sem terras. Com a ascensão da extrema direita, as medidas propostas pelo governo Bolsonaro abrem totalmente as portas para os interesses do capital e da burguesia agrária, o que significará retrocessos do ponto de vista social, dificultando a concretização de uma reforma agrária que possa atender às reais necessidades da população, somando-se ao fato de que busca criminalizar essas lutas e as lideranças que delas fazem parte. Portanto, com a ofensiva neoliberal e o avanço do agronegócio no Brasil, torna-se necessário o processo de resistência e organização da classe trabalhadora, a luta dos movimentos sociais é de fundamental importância, com vistas a um modelo de desenvolvimento que possa assegurar melhorias nas condições de vida para os povos campesinos. A retomada de ideias e bandeiras originais do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra é oportuna e necessária.

3 A IMPORTÂNCIA DA REFORMA AGRÁRIA E OS DESAFIOS PARA SUA EFETIVIDADE

e para o acesso ao trabalho, como também tem a intenção de ampliar a agricultura familiar, com vistas à efetivação de serviços e direitos sociais ao povo do campo. A potência dos movimentos sociais e o destaque do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra como

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BRASIL. Medida Provisória n° 759, de 2016. Dispõe sobre a regularização fundiária rural e urbana, sobre a liquidação de créditos concedidos aos assentados da reforma agrária e sobre a regularização fundiária no âmbito da Amazônia Legal, institui mecanismos para aprimorar a eficiência dos procedimentos de alienação de imóveis da União, e dá outras providências. Congresso Nacional, Brasília.

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A luta pela reforma agrária é de fundamental importância para a soberania alimentar


referência em produção orgânica na América Latina7 evidencia que outros modelos de desenvolvimento são possíveis. Como informa Bruno (2009, p. 114), o agronegócio se constitui enquanto “(...) política unificadora de interesses das classes e grupos dominantes no campo e expressão do processo de construção da hegemonia e de renovação dos espaços de poder”. Nesse contexto, os movimentos sociais têm o papel de buscar a concretização de seus direitos por meio da luta social, pois é somente com a organização política que é possível assegurar as garantias fundamentais. Segundo a apresentação do documento estatal II Plano Nacional de Reforma Agrária:

A reforma agrária é mais do que um compromisso e um programa do governo federal. Ela é uma necessidade urgente e tem um potencial transformador da sociedade brasileira. Gera emprego e renda, garante a segurança alimentar e abre uma nova trilha para a democracia e para o desenvolvimento com justiça social. A reforma agrária é estratégica para um projeto de nação moderno e soberano. (2004, p. 05)

Para Silva Filho8 (2015, p. 01), com a Constituição Federal de 1988 a reforma agrária tem como objetivo “[...] o conjunto de medidas que visam a promover melhor distribuição da terra, mediante modificações no regime de sua posse e uso, a fim de atender aos princípios de justiça social e ao aumento da produtividade”. Desse modo, a reforma agrária deve ser entendida como um processo amplo, que vai além da aquisição de terra, uma vez que deve proporcionar um modo de existência que garanta segurança, liberdade e solidariedade aos trabalhadores rurais. Embora signatário dos principais tratados internacionais de direitos humanos, no

possam trazer de fato mudanças sociais para a classe trabalhadora. Sob essas bases:

Para o neoliberalismo [a reforma agrária] é uma política compensatória, que tem o objetivo de compensar os camponeses pela concentração de riqueza, em que o capital faz uma pequena concessão territorial como condição de subordinar os

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SPERB, Paula. Como o MST se tornou o maior produtor de arroz orgânico da América Latina. BBC News Brasil, Nova Santa Rita, 07 maio 2017. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-39775504>. Acesso em: 21 jul. 2019. 8 SILVA FILHO, Francisco Cláudio Oliveira. A Reforma Agrária na Constituição Federal de 1988 e o desenvolvimento econômico do Brasil – Efetividade e Limites. Disponível em. <http://urca.br/ered2008/CDAnais/pdf/SD3_files/Francisco_SILVA_FILHO.pdf>. Acesso em: 21 jul. 2019.

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Brasil ainda há um extenso caminho para a efetiva implementação de políticas e ações que


camponeses ao modelo hegemônico de desenvolvimento da agricultura. Para o pósneoliberalismo é uma política de distribuição de terras para a produção da renda familiar por meio de um conjunto de políticas públicas voltadas ao mercado institucional, ao mercado capitalista e ao fortalecimento da agroindústria familiar, entre outras. (FERNANDES e outros, 2017, p.05).

Outra reflexão que vem nesta perspectiva é feita por Derbli (2007), quando discute a questão do princípio de vedação de retrocesso social nas políticas públicas. Segundo o autor, tais direitos fundamentais precisam ser concretizados e mantidos, com vistas à dignidade da pessoa humana, pois trata- se de questões essenciais para cidadania.

A particularidade do princípio da proibição de retrocesso social está, pois, na prevalência do caráter negativo de sua finalidade. Dizemos prevalência porque existe, ainda que em menor escala, um elemento positivo na finalidade do princípio em tela: é dever do legislador manter-se no propósito de ampliar, progressivamente e de acordo com as condições fáticas e jurídicas (incluindo-se as orçamentárias), o grau de concretização dos direitos fundamentais sociais, através da garantia de proteção dessa concretização à medida que nela se evolui (DERBLI, 2007, p. 324).

De um lado, tem-se a Constituição Federal de 1988, que determina a função social da propriedade, e de outro, tem-se a adoção de medidas de rigidez por parte do Estado, bem como as alianças com a burguesia agrária, com vistas ao avanço do agronegócio para atender à lógica do capital. Considerando que os processos são históricos e transitórios, torna-se, desse modo, importante elevar o nível de organização coletiva e de consciência da classe trabalhadora. Por isso, acredita-se que as ações coletivas/ocupações são fundamentais para impedir mais retrocessos. Segundo Delgado (2008, p. 4):

esta visão, tudo é colocado como atraso. Mas o atraso é justamente esse modelo, essa aliança do grande capital com os grandes latifúndios. O atraso é priorizá-lo em detrimento do crescimento industrial, do setor de serviços, da agricultura sustentável, da participação familiar.

Assim, a atuação estatal tem se mantido a favor das exigências dos Organismos Internacionais e do mercado financeiro, com ênfase em ações para os povos campesinos que não levam em conta a redistribuição e desapropriação de terras pelo Estado. Explicitadas

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[...] há uma orquestração nacional em defesa do modelo primário-exportador. Contra


essas ideias, faz-se importante enfatizar como a questão agrária se manifesta hoje no Brasil e o processo de violência no campo.

4 A QUESTÃO AGRÁRIA E A VIOLÊNCIA NO CAMPO

No cenário no qual emerge e se desenvolve a questão agrária, pode-se notar um aumento da violência contra os povos do campo, em especial a líderes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Neste contexto de resistências, é notório observar que a questão agrária passa a ser vista de forma repressiva, na contramão de um debate público sério que possibilite respostas em defesa da reforma agrária e dos movimentos sociais de luta pela terra. Martins (1991, p. 202) defende que os conflitos rurais atuais se originam historicamente de uma “desorganização das relações de trabalho que se disseminaram no país com a crise do trabalho escravo, no século XIX, e o fim da escravidão”. A atuação da Comissão Pastoral da Terra, no país, ocorreu em função dos conflitos políticos de ocupação da Amazônia, sendo criada em 1975 pela igreja católica, com o objetivo de contribuir no processo de reforma agrária do Brasil e assessorar os trabalhadores rurais. As questões da violência advinda de conflitos agrários são fundamentais para que se repense o modelo de desenvolvimento vigente. Em sua publicação Conflitos no Campo Brasil 2018, a Comissão Pastoral da Terra tornou público os registros. De acordo com o documento (COMISSÃO PASTORAL DA TERRA, 2018), em 2018, cerca de 960.630 pessoas foram atingidas, contra 708.520 pessoas em 2017. Isso ressalta um aumento de quase 36% de pessoas envolvidas em conflitos do campo, em relação ao ano anterior. No caso específico dos conflitos que envolvem a questão

Os registros da Comissão Pastoral da Terra também denunciam que, no período entre 1985 e 2018, 1.938 trabalhadores e trabalhadoras foram assassinados em conflitos no campo, gerando um total de 1.466 ocorrências. Desse total, somente 117 responsáveis pelos assassinatos foram julgados, tendo sido condenados apenas 101 executores e 33 mandantes. Fernandes (2005, p. 26) define os conflitos como:

[...] o estado de confronto entre forças opostas, relações sociais distintas, em condições políticas adversas, que buscam por meio da negociação, da manifestação, da luta popular, do diálogo, a superação, que acontece com a vitória, a derrota ou o

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da terra, observa-se que em 2018 houve um crescimento de 11% em relação ao ano anterior.


empate. Um conflito por terra é um confronto entre classes sociais, entre modelos de desenvolvimento, por territórios. O conflito pode ser enfrentado a partir da conjugação de forças que disputam ideologias para convencerem ou derrotarem as forças opostas. Um conflito pode ser esmagado ou pode ser resolvido, entretanto a conflitualidade não. Nenhuma força ou poder pode esmagá-la, chaciná-la, massacrála. Ela permanece fixada na estrutura da sociedade, em diferentes espaços, aguardando o tempo de volta, das condições políticas de manifestação dos direitos.

Nesse contexto, a Comissão Pastoral da Terra tem denunciado o baixo índice de resolução das denúncias levadas ao Judiciário e considera que o aumento da violência está relacionado ao crescimento do agronegócio no território brasileiro e o poder coercitivo do Estado sobre os movimentos sociais. Santos (2000, p. 04) menciona que “um dos traços marcantes desta forma de violência consiste na liquidação física dos opositores nos conflitos fundiários, bem como no aspecto ostensivo dos assassinatos, com a impunidade dos mandantes e executores.” Santos (2000, p. 05) resume o processo de violência no campo enquanto “uma violência difusa, de caráter social, político e simbólico, envolvendo tanto a violência social como a violência política”. É importante considerar que essa conjuntura não é consequência apenas de fatores econômicos, desencadeia-se dos limites da democracia brasileira, dos processos de controle penal do Estado, assim como dos resultados produzidos pela política de conciliação de classes. Pode-se considerar que esta violência política tem como eixo:

A atuação da bancada ruralista nos últimos anos tem sido intensa com instrumentos legislativos contra os direitos indígenas, como a PEC 215 – projeto de autoria do deputado Almir Moraes de Sá, do PR, de Roraima, que transfere do Executivo para o Legislativo a palavra final sobre a demarcação de terras indígenas. “Muitos deputados têm feito discurso de ódio e incitação à violência contra comunidades lideranças indígenas e seus apoiadores”, ressalta Buzatto. Nas contas do secretário executivo do CIMI, entre 2015 e 2016 houve mais de 30 ataques armados de paramilitares e jagunços, comandados por fazendeiros. (AMENI, 2017, p.15-16)9.

Esta dinâmica se traduz em ações regressivas nas condições de vida dos trabalhadores, como o processo de rigidez das políticas públicas, levado a cabo pelos 9

AMENI, Cauê Seigner. Democracia já tem quase 2 mil assassinatos políticos no campo. Jornal Extra Classe, Porto Alegre, 9 mar. 2017. Disponível em: <www.extraclasse.org.br/movimento/2017/03/democracia-ja-temquase-2-mil-assassinatos-politicos-no-campo/>. Acesso em: 21 jul. 2019.

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tradicionais e organizações de apoio e isso tem insuflado a ação armada contra


governos neoliberais, como também na destituição dos direitos humanos, das liberdades democráticas e da justiça social. Atualmente, o grande desafio do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra é impedir mais retrocessos e lutar para a garantia dos direitos fundamentais. Neste sentido Mattei (2016, p. 248) menciona que:

Tendo clareza que está em curso uma grande ofensiva do capital sobre o processo produtivo rural, que, na prática, representa uma remontagem da modernização conservadora da agricultura que havia sido implementada durante o regime militar, porém interrompida durante o período de crises nas duas últimas décadas do século XX, analisa-se que tal retomada se dá via expansão primária da economia brasileira sob a liderança do agronegócio, considerado o inimigo comum para todos os atores desse campo político.

Pode-se concluir que o Estado brasileiro tem contribuído para a acentuada concentração fundiária e expansão do agronegócio. O modelo de desenvolvimento agrário vigente está voltado para a reprodução do capital, tal contexto decorre da facilidade para a força de trabalho e se expressa na precariedade das condições de vida dos trabalhadores rurais. Desse modo, como afirma o sociólogo Florestan Fernandes (2008, p. 58) às “(...) fases novas não eliminam as anteriores; ao contrário, coexistem e engendram um sistema econômico capitalista segmentado, no qual as diferentes estruturas compõem um todo”. Assim, no universo agrário, as políticas em curso pelo neoliberalismo estão mais convenientes às classes dominantes e cumprem um importante papel no processo de manutenção do desenvolvimento capitalista no Brasil. Portanto, percebe-se que – no que diz respeito às políticas hoje empregadas – o avanço do agronegócio se configura enquanto reflexo da situação nacional, uma vez que o

acesso à terra, bem como os conflitos no campo, elementos que fazem parte de uma dinâmica societária que tem primazia pelo lucro.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao tratar do período colonial, a literatura indica que a questão agrária aparece como elemento central, porém somente no período da Ditadura Militar é possível notar o 201

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investimento nas necessidades sociais é cada vez menor, e daí decorrem as desigualdades no


fortalecimento das organizações políticas camponesas. No Brasil, a luta pela terra vem se intensificando com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, sua formação teve início na década de 1980, quando trabalhadores rurais passam a se reunir em diversas experiências de ocupações de terras. O objetivo deste texto foi discutir a questão agrária no Brasil e os desafios para a sua efetividade a partir da crise estrutural do capital. Como visto, se constitui como desafio do Estado cumprir adequadamente as suas obrigações, para concretizar o que oferece no plano formal, no que se refere à função social da propriedade. Entende-se que é importante fortalecer os movimentos sociais do campo e ampliar o trabalho de base, a articulação institucional e a incidência política. É preciso também que seja criada uma agenda pública pelo Estado, tendo como horizonte o aprofundamento democrático e o desenvolvimento sustentável. A interlocução entre as referências levantadas levam a concluir que a política econômica e social dos governos neoliberais está voltada para a produção agrária com vistas à exportação e, desse modo, apresenta dificuldades no que concerne à implantação de uma reforma agrária efetiva. Trata-se de uma atuação marcada por mecanismos de consenso e políticas com o objetivo de manter a ordem capitalista. Portanto, com a introdução do projeto neoliberal, teve continuidade a extrema concentração de renda e terra, assim como o aumento dos conflitos no campo, ou seja, as pautas dos trabalhadores acabaram sendo neutralizadas. Na fase atual, a respeito do papel político do Estado brasileiro, com as mudanças e retrocessos em curso, tem-se a necessidade de expandir o processo de resistência e, por isso, se torna cada vez mais fundamental a

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participação política dos trabalhadores nos movimentos sociais.


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ABSTRACT The present work intends to reflect on the agrarian reform in Brazil and the State action. The first section discusses the role of the Landless Rural Workers Movement (LRWM). The second presents the importance of agrarian reform and its limits in the neoliberal context. The third part consists of analyzing the conflicts in the field. The methodology used was a bibliographical and documentary research, based on the perspective of dialectical historical materialism.

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THE AGRARIAN REFORM IN BRAZIL: ELEMENTS FOR DEBATE


Concluded that the State has contributed to extending the field of agribusiness, with a view to the expansion and reproduction of capital.

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Keywords: Agrarian reform. State. Agribusiness.

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PESSOAS

COM

DEFICIÊNCIA:

A

QUESTÃO

DA

DIFERENÇA

E

DA

INCAPACIDADE Jéssica Regina Alves da Silva1

RESUMO O presente artigo aborda o processo de reconhecimento da capacidade civil das pessoas com deficiência intelectual e de que maneira as alterações no Código Civil de 2002, por meio da Lei nº 13.146/2015, repercutiram no Direito de Família, mostrando o quão capacitista era a legislação brasileira. Ademais, demonstra como a desvinculação dessas pessoas à incapacidade absoluta garantiu-lhes direitos básicos, em sintonia com a Constituição Federal de 1988. Palavras-chave: Pessoas com deficiência. Direito de família.

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Bacharelanda do curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

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Capacitista. Direitos básicos.


1 INTRODUÇÃO

A grande proposta deste artigo é provocar reflexões sobre o quanto o ordenamento jurídico evoluiu ao revogar o inciso II do Art. 3º do Código Civil de 2002, o qual dispunha: “Art. 3º São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil: [...] II – os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos”. E, por meio dessa alteração normativa, trouxe questionamentos como: por que o Código Civil de 1916 os nominava enquanto “loucos de todos os gêneros”? Até que ponto poderia o judiciário taxar as deficiências, nos seus mais diversos tipos e níveis de severidade, limitantes para o exercício da vida civil? Hodiernamente, certo é que deveríamos pensar as pessoas com deficiência e enxergálas gozando de “capacidade legal em igualdade de condições que as demais pessoas em todos os aspectos da vida”, conforme o Art. 12 da Convenção de Nova York. Nesse sentido, atendendo aos parâmetros legais e constitucionais, deve-se assegurar a elas o amplo direito ao voto, ao casamento, à inserção no mercado de trabalho, à movimentação dos seus dados bancários, etc. Por esta razão, o trabalho em referência foi dividido em quatro tópicos principais, a fim de proporcionar o melhor entendimento do tema, os quais falam sobre o contexto histórico da incapacidade civil da pessoa com deficiência no ordenamento jurídico brasileiro; as alterações provocadas pela Convenção de Nova York e a Lei nº 13.146/2015. E ainda, o impacto e repercussão dessas mudanças no Direito de Família; tudo isso sob a perspectiva de um concluinte do curso de Direito e pai de uma criança com Síndrome de Down.

Certo é que, quando se usa a palavra louco, a primeira coisa que vem à cabeça é o seu emprego no senso comum, o hábito diário de, preconceituosamente, considerar maluco aquele com divergência de pensamento ou de atitude, ou até mesmo algo relacionado à mente, ao estudo psiquiátrico das diversas doenças que afetam a capacidade neurológica das pessoas. No entanto, jamais emerge a utilização da expressão louco no ordenamento jurídico, que dirá naquelas legislações que se dizem promotoras da segurança. Mas, afinal, qual relação tem a loucura com o ordenamento jurídico?

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2 “LOUCOS DE TODO O GÊNERO?”


Sabe-se que as deficiências de cunho psíquico interessam a essa área, na medida em que determinam as capacidades, mais especificamente, as voltadas para a prática dos atos da vida civil, os quais permitem a realização de fatos, contratos, negócios, enfim, que expressam vontade. Isso porque os atos jurídicos são norteados pela vontade e as deficiências mentais, por sua vez, pelos fatores de ordem psíquica. Nesse sentido, ao Direito cabe, com base nas ciências que estudam os aspectos neurológicos e psiquiátricos, precisar os limites da razoabilidade para legislar, a fim de criar parâmetros e definir critérios que garantam a segurança das relações jurídicas. Todavia, não era o que ocorria nesse ramo até a Convenção de Nova York e a Lei nº 13.146/2015, que instituiu a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência. Ora, segundo o Código Civil de 1916 – Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916 –, eram “absolutamente incapazes de exercer pessoalmente aos atos da vida civil: I - Os menores de dezesseis ano; II - Os loucos de todo o gênero; III - Os surdos-mudos, que não puderem exprimir a sua vontade; IV - Os ausentes, declarados tais por ato do juiz”. Para tal legislação, o termo “loucos de todo o gênero” abarcava as pessoas com qualquer tipo de deficiência mental ou intelectual. Do dispositivo, extrai-se a atécnia e impropriedade para classificar os níveis de incapacidades cognitivas, sobretudo, quando isso significava a vedação das práticas diretas de atos da vida civil, pois pouco importava a gravidade da deficiência mental, se estava ou não apto para titularidade dos direitos e obrigações, não tinha simplesmente a possibilidade de exercê-lo de maneira direta, uma vez que era absolutamente incapaz. Logo, o que se via no ordenamento jurídico era um claro e sonoro emprego do capacitismo, uma verdadeira hierarquização preconceituosa das pessoas em função das suas aptidões, definindo enquanto incapazes de trabalhar, de frequentar escola de ensino regular, de cursar uma universidade, de amar, de se sentir desejado, todos aqueles com certa limitação neurológica. Em suma, estava impregnada, na sociedade civil e no meio jurídico, a

em relação aos padrões corporais/funcionais hegemônicos. Vale frisar que isso pouco mudou com a chegada do Código Civil de 2002, posto que esse classificava como absolutamente incapazes aqueles que “por enfermidade ou doença mental” não apresentassem discernimento suficiente para as práticas dos atos da vida civil, conforme dispunha o Art. 3º, inciso II; e listava como relativamente incapazes, nos incisos II e III do Art. 4º, os ébrios habituais, os viciados tóxicos e os deficientes e excepcionais com discernimento reduzido. Nesta linha de pensamento, manteve, assim, o status de incapaz

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naturalização do ideal capacitista de considerar determinadas pessoas inferiores e incompletas


atribuído ao deficiente mental grave, o qual estava sujeito à curatela e até a nulidade dos atos praticados diretamente por ele. Tal realidade só começou a sofrer transformações significativas com a busca das legislações contemporâneas pela revisão dos níveis e tipos de incapacidade relacionados ao exercício direto dos atos da vida civil. Isto significa dizer que somente houveram transformações, efetivamente, quando o Direito passou a caminhar junto às evoluções da psiquiatria, psicanálise e ciências afins, repensando a definição “loucos de todo gênero” para determinar a incapacidade e suas consequências.

3 A CONVENÇÃO DE NOVA YORK E O ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA (LEI 13.146/2015)

A Constituição Federal de 1988 foi de extrema relevância nesse processo de reconhecimento das pessoas com deficiência enquanto capazes de realizar os atos da vida civil, porque foi ela que deu o pontapé inicial à inclusão, ao respeito à dignidade da pessoa humana e à diversidade, e em salvaguardar os direitos humanos em todas as suas dimensões, a todas as pessoas, indistintamente. Contudo, o enfoque aqui são os grandes transformadores do Código Civil de 2002: a Convenção de Nova York e a Lei nº 13.146/2015, originária da incorporação da primeira na regulamentação do Direito brasileiro. Nesta perspectiva, a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e o seu Protocolo Facultativo foi assinada em Nova York, no dia 30 de março de 2007, e seu objetivo era “promover, proteger e assegurar o exercício pleno e equitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e

Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas.

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promover o respeito pela sua dignidade inerente”. Em seu Art. 1º definia que:


Entretanto, enquanto maneira de afirmar a igualdade de condições entre as pessoas com deficiência e as demais pessoas, em todos os aspectos da vida, a Convenção de Nova York salientou em seu Art. 3º os seguintes princípios gerais:

O respeito pela dignidade inerente, a autonomia individual, inclusive a liberdade de fazer as próprias escolhas, e a independência das pessoas; b) A não discriminação; c) A plena e efetiva participação e inclusão na sociedade; d) O respeito pela diferença e pela aceitação das pessoas com deficiência como parte da diversidade humana e da humanidade; e) A igualdade de oportunidades; f) A acessibilidade; g) A igualdade entre o homem e a mulher; h) O respeito pelo desenvolvimento das capacidades das crianças com deficiência e pelo direito das crianças com deficiência de preservar sua identidade.

Destarte, ao ser ratificada, a partir do Decreto Legislativo nº 186, de 09 de julho de 2008, em vigor para o Brasil, no plano jurídico externo, desde 31 de agosto de 2008, e promulgada pelo Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009, data de início de sua vigência no plano interno, com força de Emenda Constitucional, as pessoas com deficiência passaram a não ser mais incluídas, finalmente, entre os absolutamente incapazes de exercer seus direitos. Esta evolução jurídica foi ainda maior com a Lei nº 13.146/2015, mais conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência, a qual estabeleceu uma nova redação para o Art. 3º do Código Civil de 2002, tornando somente os menores de 16 (dezesseis) anos absolutamente incapazes, revogando, pois, o inciso II, das “pessoas com enfermidade ou deficiência mental”, e qualificando como relativamente incapazes os que, por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade. Além disso, ao incorporar, em seu Art. 84, os ditames do Art. 12 da Convenção de Nova York, já citado anteriormente, a Lei nº 13.146/2015 passou a instituir a capacidade

uma pessoa enquanto capaz ou incapaz, ainda que em grau severo. De acordo com Pérez:

O mesmo art. 84, em seus parágrafos 1º e 2º, revisou o instituto da curatela, conferindo-lhe contornos mais específicos. Destacou, em primeiro lugar, a sua natureza de medida protetiva excepcional e limitada a questões patrimoniais e negociais. E vedou, de forma expressa, sua aplicabilidade aos chamados direitos da personalidade, ou direitos existenciais, como o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à saúde, à privacidade e outros. A curatela deverá ser imposta em processo judicial regular e as restrições aos atos do deficiente curatelado

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como regra, deixando a deficiência de ser causa determinante para taxar, de maneira isolada,


serão definidas em atenção às peculiaridades do seu caso, apuradas e definidas por equipe multidisciplinar, devendo perdurar, a medida, apenas pelo tempo em que se fizer necessária.

Ao lado da medida da curatela, a Lei nº 13.146/2015 instituiu um novo mecanismo de proteção ao deficiente, inserindo, no Código Civil de 2002, o Art. 1.783-A, que se trata da tomada de decisão apoiada. Por meio de tal instituto, o deficiente terá a possibilidade de, caso seja de seu interesse, solicitar a designação de duas pessoas, com as quais mantenha proximidade e vínculo de confiança, para lhe prestarem apoio na tomada de decisões, fornecendo-lhe informações e aconselhamento. Assim, as pessoas com deficiência conquistaram o livre desenvolvimento da sua personalidade, uma vez que a curatela assumiu um caráter excepcional e restrito apenas aos atos de natureza patrimonial e negocial, dando espaço para a instituição da tomada de decisão apoiada que, conforme declara Nelson Rosenvald2 (2015), possibilita ao beneficiário a conservação da capacidade de fato, pois “mesmo nos específicos atos em que seja coadjuvado pelos apoiadores, a pessoa com deficiência não sofrerá restrição em seu estado de plena capacidade”, isto é, embora solicite um apoio para a prática de atos da vida civil, em nada tal medida prejudicará a capacidade legal do apoiado, a qual permanecerá integral. Com esse entendimento, a 3ª Câmara Cível do TJ/RN deu provimento à Apelação Civil interposta pelo Ministério Público contra sentença a qual declarou relativamente incapaz um homem que sofreu acidente vascular cerebral e, mesmo lúcido, teve curadora nomeada. Ressaltou o magistrado que:

[...] é indiscutível que a curatela deixou de ser um modelo de interdição, para ser uma medida protetiva e temporária, a ser aplicada de forma excepcional e extrema, apenas no interesse exclusivo da pessoa com deficiência, e não de parentes ou

inegável a impossibilidade do Sr. Paulo Francisco da Silva ser submetido ao regime de curatela, posto que tal decisão vai de encontro a toda nova sistemática e fundamentos trazidos pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência, podendo, ainda, como dito pelo recorrente, o mesmo ajuizar ação de Tomada de Decisão Apoiada, nos termos do art. 1.783- A, §§1º a 11 do Código Civil3.

2

ROSENVALD, Nelson. Estatuto da Pessoa com Deficiência: 11 perguntas e respostas. GENJurídico. Disponível em: <http://genjuridico.com.br/2015/10/05/em-11-perguntas-e-respostas-tudo-que-voce-precisa-paraconhecer-o-estatuto-da-pessoa-com-deficiencia>. Acesso em: 20 jun. 2019. 3 TJ-RN. AC: 20170123908 RN. Rel. Desembargador Amaury Moura Sobrinho. j. 20.02.2018. 3ª Câmara Cível.

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terceiros, incidindo, geralmente, em negócios jurídicos patrimoniais. Logo, resta


Diante disso, resta claro que a pessoa com deficiência mental não pode ser mais declarada absolutamente incapaz e nem relativamente incapaz, se puder exprimir sua vontade, sendo mais indicado o ajuizamento da ação de Tomada de Decisão Apoiada, a qual, sem dúvidas, beneficiou enormemente pessoas com impossibilidades física ou sensorial (obesos mórbidos, cegos, sequelados de AVC, etc.) e com deficiência psíquica ou intelectiva, que não têm impedimento, porém possuem limitações em expressar a sua vontade. Nessa perspectiva, percebe-se que o instituto veio promover autonomia para elas, ao contrário de cercear seus direitos, como faziam os Códigos Civis de 1916 e 2002, antes da instituição da Convenção de Nova York e da Lei nº 13.146/2015.

4 REPERCURSSÕES NO ÂMBITO DO DIREITO DE FAMÍLIA

No que se refere às revogações e mudanças ocorridas no Direito Civil, a fim de promover a plena inclusão social das pessoas com deficiência, em prol da sua dignidade humana, merece destaque o Art. 6º da Lei nº 13.146/2015, o qual dispõe:

Art. 6º A deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para: I casar-se e constituir união estável; II - exercer direitos sexuais e reprodutivos; III exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar; IV - conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória; V - exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária; e VI - exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas.

muitos anos negados, pois quando se imaginaria ver uma pessoa com Síndrome de Down ou Autismo casando, tendo vida sexual ativa, reproduzindo, adotando, enfim, construindo uma família? Dentro dos parâmetros lançados pelo Código Civil de 1916, jamais! Isso foi tão positivo que o Art. 1.518 do Código Civil de 2002 passou a ter a seguinte redação: “Até a celebração do casamento podem os pais ou tutores revogar a autorização”. Veja, ao não haver mais qualquer menção ao curador, a pessoa com deficiência passou a ter plenitude no exercício das suas capacidades civis, a ser alguém apto para decidir com quem quer se casar, qual o regime de bens será adotado, se quer ou não ter filhos, etc. 212

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Tal artigo proporcionou às pessoas com deficiência direitos de personalidade por


O Art. 1.548 teve seu inciso I totalmente revogado, pois dizia ser nulo o casamento contraído por enfermo mental sem o necessário discernimento para os atos da vida civil. Tornando, assim, válido o casamento da pessoa com enfermidade mental, de modo que não mais é passível de nulidade. O Art. 1.550, que faz referência à nulidade relativa, acrescentou o §2º, dispondo que: “a pessoa com deficiência mental ou intelectual em idade núbia poderá contrair matrimônio, expressando sua vontade diretamente ou por meio de seu responsável ou curador”. Por fim, o Art. 1.557 promoveu alterações no inciso III, em que é anulável casamento por erro essencial quanto à pessoa, porém, que não se refira à deficiência; e no inciso IV, o qual foi revogado integralmente, pois considerava erro essencial “a ignorância, anterior ao casamento, de doença grave que, por sua natureza, torne insuportável a vida em comum ao cônjuge enganado”. Frisa-se que o parágrafo segundo do Art. 1.550 é alvo de uma série de críticas por ser considerado uma afronta ao ato personalíssimo da vontade no Instituto do Casamento, posto que escancara possibilidades de fraudes no matrimônio decorrentes da expressão dos responsáveis ou curadores. Mas, é sabido que o objetivo de tais reformas nos artigos mencionados visa garantir e efetivar a igualdade de condições matrimoniais, valendo-se da dignidade humana e inclusão social às pessoas com deficiência. E, no que concerne a possibilidade de pessoas com deficiência constituírem União Estável, é importante destacar que não existem impedimentos. Ela possui parâmetros semelhantes aos do casamento civil, adotando quase todos os efeitos jurídicos típicos de uma relação familiar, difere apenas na vontade do casal em viver sem burocracias legais, uma vez que há uma preferência pela constituição da família através de uma simples união, sem qualquer formalismo exigido para o casamento. No entanto, tal união não será reconhecida se forem identificados os impedimentos

relação que não puder ser convertida em casamento. Mas, do contrário, toda e qualquer pessoa que não possuir os impedimentos do artigo acima é digna de constituir união estável, se comprovada for a relação contínua, pública e duradoura. Em suma, tanto o casamento quanto a união estável, com a vigência da Lei nº 13.146/2015, passaram a ser materializados de forma benéfica para as pessoas com deficiência, até para aquelas sem aparente discernimento para a prática dos atos da vida civil, tendo como norte princípios como o da dignidade da pessoa humana, da igualdade e

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previstos no Art. 1.521 do Código Civil de 2002, pois não se caracteriza união estável a


afetividade, possibilitando a este grupo uma efetiva inclusão social, independentemente das diferenças físicas e/ou mentais de qualquer gênero.

5 A SÍNDROME DE DOWN: DA INCAPACIDADE À CAPACIDADE CIVIL

Manuelito Reis (2016), em seu trabalho de conclusão de curso (TCC), para fins de formação em Direito, resolveu falar sobre os efeitos provocados pela Lei nº 13.146/2015 na realidade das pessoas com Síndrome de Down, mas não de uma forma comum e genérica, mas a partir da sua visão enquanto pai do Bernardo, uma criança portadora da Síndrome. A princípio, fala-se na verdadeira quebra de paradigma no seio da sociedade brasileira com a nova abordagem acerca da condição civil da pessoa com deficiência intelectual, pois essas pessoas passaram a ser detentoras de ampla autonomia civil. No entanto, levanta o caráter excessivamente protetivo de alguns pais, ao dizer que muitos irão se opor ao novo entendimento e buscar o Judiciário para interdição absoluta de seus filhos, justamente por não confiar na sua completa independência ou ter medo de como será o exercício dessa capacidade civil. E, a partir daí, lança o seguinte questionamento:

Afinal, até que ponto as pessoas com deficiência não estarão expostas a risco social e jurídico, ainda que tenhamos a certeza, confirmada por inúmeros casos observáveis e até pela posição de geneticistas renomados, de que elas têm reais condições intelectuais e cognitivas para expressar vontade e decidirem sozinhas questões delicadas como o casamento, o planejamento familiar e a disposição patrimonial, dentre tantas outras que são comuns na vida de qualquer um de nós? (REIS, 2016, p.

Ora, estarão tão expostas quanto qualquer outra pessoa sem limitações físicas ou psíquicas que vivam em sociedade. Há que se reconhecer que, bem como todas as demais pessoas do país, as com deficiência também são indivíduos e cidadãos e, portanto, possuem os mesmos direitos fundamentais consolidados na Constituição Federal de 1988. A partir disso, Manoelito, muito sabiamente, cita a manifestação do Juiz Luiz Cláudio Broering em sentença negatória de pedido de liminar para interdição de jovem com Síndrome de Down proposto pela família, datada de outubro de 2015, às vésperas da entrada em vigor da Lei Brasileira de Inclusão: 214

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de internet).


Justifico a decisão, porque atualmente os detentores da Síndrome de Down tem tido grande progressão na capacidade cognitiva, podendo concluírem seus estudos, trabalharem e até casar. Deficiência não é incapacidade [...]. A sociedade precisa entender que diferença não é sinônimo de incapacidade (REIS, 2016, p. de internet).

Argumento tão claro e existente na realidade brasileira que permitiu o estudante fazer uma amostragem de casos reais, como o de Débora Seabra: natalense, professora da educação infantil, escritora infantil (premiada na área), palestrante no Brasil, e no mundo, sobre inclusão e combate ao preconceito; Kallil Assis Tavares, aprovado em 2012 no vestibular da Universidade Federal de Goiás (UFG) para o curso de Geografia, fora do regime de cotas, sendo o primeiro aluno com Síndrome de Down na Instituição; Fernanda Honorato, repórter no semanal Programa Especial, voltado ao tema da inclusão, na TV Brasil; e Cíntia Carvalho Bento, casada e com um filho, o qual não tem Síndrome de Down, que na época do seu nascimento era o trigésimo primeiro caso registrado no mundo. Logo, percebe-se não serem as deficiências que assustam, e sim o cerceamento dos direitos das pessoas portadoras de tais limitações a partir da ideia de que são incapazes só porque são diferentes. O casamento de uma pessoa sem deficiência não garante que ela não será enganada, do mesmo modo que a sua ida ao trabalho, à escola ou universidade não prevê segurança ou capacidade de defesa contra o bullying, ou outras situações inerentes à vida em sociedade. A deficiência é apenas uma diferença, e não uma incapacidade. Todos são iguais perante a lei e devem gozar dos princípios basilares da Constituição Federal de 1988, tal como

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante dos fatos expostos, é possível perceber que, no que se refere às pessoas com deficiência, houve um grandioso salto da incapacidade absoluta para a plena capacidade quanto aos atos da vida civil, salto esse somente possível a partir da Convenção de Nova York e da Lei nº 13.146/2015, as quais promoveram o verdadeiro reconhecimento das PcD’s (Pessoas com Deficiência) pelo ordenamento jurídico e pela sociedade, assegurando a todas os mesmos direitos cabíveis à população em geral.

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a dignidade da pessoa humana.


Inúmeras são as críticas a respeito desse entendimento por acreditarem que, com isso, o Poder Judiciário desconsiderará toda e qualquer deficiência como limitante para o exercício de atos civis, o que não procede, tendo em vista que o Código Civil de 2002, agora, apresenta somente uma maior maleabilidade na análise da severidade das deficiências, restringindo direitos nos quesitos patrimoniais e negociais, se necessário for, e entendendo, enfim, que independentemente das limitações inerentes a determinados indivíduos, eles são tão seres sociais e cidadãos quanto os demais, e devem deter iguais direitos personalíssimos ao trabalho digno, ao afeto, dentre outros para o gozo pleno da vida. Por tudo isto, conclui-se que, ressalvados os casos de incapacidade relativa transitória ou permanente que efetivamente impeça a pessoa com deficiência de exprimir vontade, todas elas terão seus direitos civis e humanos assegurados. Deficiência é sinal de diferença, e não de incapacidade.

REFERÊNCIAS

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Direitos das Pessoas com Deficiência: protocolo facultativo à Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência: Decreto legislativo nº 186, de 09 de julho de 2008: Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009. -- 4. ed., rev. e atual. – Brasília: Secretaria de Direitos Humanos, Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência, 2011.

LÔBO, Paulo. Com avanços legais, pessoas com deficiência mental não são mais incapazes. 16 de agosto de 2015. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2015-ago-

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Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (2007). Convenção sobre os


16/processo-familiar-avancos-pessoas-deficiencia-mental-nao-sao-incapazes>. Acesso em: 18 jun. 2019. PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Todo gênero de louco – uma questão de capacidade. Revista Brasileira de Direito de Família. vol. 1, abril-junho/1999 do IBDFAM, Ed. Síntese. p. 5265.

PÉREZ, Cândido. Aspectos da capacidade civil da pessoa com deficiência à luz da Lei nº 13.146/15. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5782, 1 maio 2019. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/66152>. Acesso em: 17 jun. 2019.

REIS, Manuelito. A Síndrome de Down: da incapacidade a capacidade civil. Abordagem conceitual, histórica e social. Jusbrasil. 2016. Disponível em: <https://msreisjr.jusbrasil.com.br/artigos/449247210/sindrome-de-down-da-incapacidade-acapacidade-civil>. Acesso em: 21 jun. 2019. STOLZE, Pablo. Deficiência não é causa de incapacidade relativa – a brecha autofágica. 15 de agosto de 2017. Disponível em: <https://www.lfg.com.br/conteudos/artigos/geral/deficiencia-nao-e-causa-de-incapacidaderelativa-a-brecha-autofagica>. Acesso em: 18 jun. 2019.

PEOPLE WITH DEFICIENCY: THE QUESTION OF DIFFERENCE AND

ABSTRACT This article deals with the process of recognizing the civil capacity of people with intellectual disabilities and how the changes in the 2002 Civil Code, through Law Nº 13.146/2015, reflected in Family Law, showing how enabling the brazilian legislation. In addition, it demonstrates how their detachment from absolute incapacity guaranteed them basic rights, in line with the 1988 Federal Constitution.

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INABILITY


Keywords: People with deficiency. Family law. Capacitist. Basic

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rights.

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CONSTITUCIONALIDADE DA INCIDÊNCIA DO ISS SOBRE OS ROYALTIES PAGOS PELO FRANQUEADO AO FRANQUEADOR Iago de Sousa Reis 1 Victor Frank Corso Semple2

RESUMO O artigo analisa a constitucionalidade da incidência do Imposto Sobre Serviço nos royalties pagos pelo franqueado ao franqueador. Utilizouse como metodologia a revisão de literatura. O objetivo do trabalho é orientar a discussão para além da inclusão do contrato de franquia (franchising) na Lei Complementar nº 116/2003. Dessa forma, a primeira parte apresenta o conceito da espécie contratual e a legislação vigente

no

país.

Posteriormente,

a

segunda

discute

a

constitucionalidade da referida incidência tributária. Assim, o texto conclui-se

sintetizando

as

ideias

e

apresentando

possíveis

Palavras-chave:

Constitucionalidade.

Imposto

Sobre

Serviço.

Franchising. Contrato de franquia.

1

Graduando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Pesquisador e bolsista pelo CNPq e pelo Centro de Pesquisa em Direito Constitucional Comparado (CPDCC/UnB). Membro da Clínica EIXOS – Judiciário e Cidadania (UnB). 2 Graduando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Pesquisador do Centro de Pesquisa em Direito Constitucional Comparado (CPDCC/UnB). Membro do grupo de pesquisa em Poder Constituinte do Povo (FD/UnB). Estagiário no Supremo Tribunal Federal.

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aprimoramentos à legislação acerca do sistema de franquias no Brasil.


1 INTRODUÇÃO O juízo de constitucionalidade da incidência do Imposto Sobre Serviço – ISS sobre os royalties pagos pelo franqueado ao franqueador é um tema ainda pouco explorado academicamente pela doutrina. Por outro lado, criou-se no país uma série de precedentes que abordaram a matéria. No presente momento, o debate encontra-se para solução na instância extraordinária no Supremo Tribunal Federal. A discussão encontra-se pendente de análise em recurso extraordinário com repercussão geral já reconhecida. Dada a importância desse tema, o presente artigo irá elaborar um estudo sobre o juízo de constitucionalidade da incidência do ISS sobre os royalties pagos pelo franqueado ao franqueador. Para tanto, serão abordados os aspectos introdutórios e históricos do sistema de franquias no Brasil e no mundo. Será analisada a Lei nº 8.955/1994 (Lei de Franquia). Será feita uma construção histórica do posicionamento do Supremo Tribunal Federal – STF ao longo das últimas décadas. Será investigada a definição do que seja serviço, para verificar se preenche os requisitos do Imposto Sobre Serviço de Qualquer Natureza. Serão fixados os aspectos principais da formação da relação jurídica envolvendo franqueado e franqueador. Por fim, serão sugeridos possíveis aprimoramentos à Lei nº 8.955/1994. No que diz respeito à metodologia, foram desenvolvidas pesquisas bibliográficas, cujo objetivo foi fazer um mapeamento de produções acadêmicas que discutiram esse tema anteriormente. Além disso, fez-se um estudo documental a fim de melhor compreender a Lei nº 8.955/1994, bem como as posições adotadas pelo Supremo Tribunal Federal ao longo das últimas décadas. Quanto à abordagem do problema, trabalhou-se com uma pesquisa qualitativa. foi: “é constitucional a incidência do ISS sobre os royalties pagos pelo franqueado ao franqueador nos contratos de franquia?”. O objetivo é apresentar os resultados das investigações acerca do juízo de constitucionalidade do ISS sobre os referidos pagamentos efetuados entre os consulentes. Em relação ao método de pesquisa, realizaram-se buscas na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações (BDTD) e em outras bases de dados jurídicas. Diversos foram os livros doutrinários utilizados no presente artigo, sobretudo de Direito Empresarial, Direito Tributário e Direito Financeiro.

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A pergunta-chave que proporcionou a elaboração da presente investigação científica


2 ASPECTOS HISTÓRICOS E INTRODUTÓRIOS SOBRE O CONTRATO DE FRANQUIA NO BRASIL E NO MUNDO

Franchising é um contrato de franquia destinado à organização de empresas. O mesmo é a conjunção de outros dois, quais sejam a licença de uso de marca e a prestação de serviços de organização de empresa (COELHO, 2017, p. 104). O termo franchising deriva da palavra francesa franch, do qual decorrem os vocábulos franchisage e francher. Francher, por sua vez, significa outorga de privilégios (CRETELLA NETO, 2003, p. 46). Há bastante divergência sobre o surgimento dos contratos de franquia. Entretanto, as primeiras notícias acerca da formação de tais acordos são da década de 1860, logo após o término da Guerra de Secessão Americana (1861-1865). A sua primeira aparição ocorreu nos Estados Unidos, sendo atribuída a uma empresa chamada Singer Sewing Machine Company (BARROSO, 2002, p. 16). Essa companhia queria expandir seus negócios, porém sem a necessidade de criar novas filiais. Para isso, fez acordos com pequenos comerciantes, concedendo-lhes o uso de sua marca e tecnologia e transferindo, para estes, os riscos desse novo sistema. Outra grande companhia que fez uso do sistema de franquias, ainda no século XIX, foi a General Motors. A referida sociedade, em 1898, começou a expandir seu grupo econômico por meio de franquias, estabelecendo técnicas padronizadas de distribuição de produtos. Hoje em dia, duas grandes empresas são as expoentes e maiores nomes no ramo do sistema de franquias: Coca-Cola e McDonald’s. Inclusive, muitos consideram erroneamente a

de ter sido essa companhia o maior exemplo e usuária de franquias nas últimas décadas. No Brasil, também há dúvidas sobre o início e o primeiro contrato de franquia celebrado. Contudo, a maioria da doutrina considera a fabricante de calçados Stella como sendo a primeira franquia nacional (BARROSO, 2002, p. 20). Arthur de Almeida Sampaio, primeiro franqueador da Stella, é considerado o expoente desse sistema no país. A principal característica de um sistema de franquias é a prestação de serviços de organização empresarial. Isto é, significa, na prática, que o franqueado terá acesso a um conjunto de informações e conhecimentos que proporcionarão a redução dos riscos

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rede de fast-food McDonald’s como sendo a difusora do mencionado sistema, talvez pelo fato


empresariais na criação de um estabelecimento franqueado (COMPARATO, 1978, p. 377). Fábio Ulhoa Coelho assim classifica um sistema de franchising (2006, p. 440):

Normalmente, o franqueado dispõe de recursos e defesa constituir uma empresa comercial ou de prestação de serviços. Contudo, não tem os conhecimentos técnicos e de administração e economia geralmente necessários ao sucesso do empreendimento nem os pretende ter. Do outro lado, há o franqueador, titular de uma marca já conhecida dos consumidores, que deseja ampliar a oferta de seu produto ou serviço, mas sem as despesas e riscos inerentes à implantação de filiais.

O contrato de franquia possui como sujeitos de sua relação o franqueador e o franqueado, sem que, contudo, haja uma relação de subordinação entre eles (MARTINS, 1997, p. 486). Há uma autonomia relativa entre os consulentes que diz respeito somente às obrigações pactuadas, sem que um responda pelos atos praticados exclusivamente pelo outro. O franqueador deve ser necessariamente uma pessoa jurídica, titular da marca, serviço ou outro bem objeto do contrato de franquia. Um franqueado, por outro lado, não precisa ser necessariamente pessoa jurídica, podendo ser pessoa natural. Esta é a parte comprometida a distribuir o objeto do contrato. O objeto do acordo de franquia pode ser variável, dada a complexidade desse vínculo jurídico, podendo ser, por exemplo, marca, produtos ou serviços (SILVA, 2009. p. 87). Sob a ótica do franqueador, a utilização do contrato de franquia opera efeitos no sentido de expansão de seus negócios sem a necessidade de criação de novos estabelecimentos. Do ponto de vista do franqueado, significa o investimento em uma marca já consolidada no mercado de consumidores e o aproveitamento das expertises administrativas e empresariais já adquiridas pelo franqueador.

Caso seja por prazo determinado, esse período não pode ser muito curto, devendo representar um significativo lapso temporal que oportunize ao franqueado a possibilidade de recuperar seus investimentos feitos no sistema de franquia. Na hipótese de ser por prazo indeterminado, enquanto uma parte não notificar a outra sobre seu desejo de não mais continuar nessa relação jurídica, o contrato será renovado automaticamente. Nessa convenção, o franqueador disponibiliza e autoriza o uso de sua marca (DINIZ, 1999, p. 47-48), além de prestar serviços de organização empresarial, ao passo que o franqueado paga royalties pelo uso dessa marca e remunera os serviços de organização empresarial, assim como disposto no contrato (FARINA, 1994, p. 451-454). Há uma relação 222

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O contrato de franquia pode ser por prazo determinado ou até mesmo indeterminado.


de subordinação mitigada, e não de subordinação plena, tendo em vista que o franqueado precisará observar as diretrizes gerais e específicas definidas pelo franqueador. Permite-se, com o sistema de franquias, que o franqueado entrante adquira certo número de clientes que já estavam atraídos pelo franqueador (SHERMAN, 2004, p. 11-12). No Brasil, o crescimento dos contratos de franquia começou na década de 1970, embora tenha aumentado abruptamente no início da década de 1990. Até 1994 não havia legislação nacional que regulasse o mencionado sistema. Assim, a falta de uma normatização específica fez com que fosse criada a Associação Brasileira de Franchising – ABF, em 1987, cujo objetivo inicial era padronizar entre seus associados o contrato de franquia. Os empresários brasileiros, talvez devido à pouca expertise com esse tipo de sistema, começaram a firmar contratos de franquia sem disponibilizar a prestação dos serviços de organização de empresa, que é o ponto central nesse método de atuação. Tal problema ocasionou uma série de conflitos entre franqueadores e franqueados. Diante desses desacordos, em 1994 foi editada a Lei nº 8.955, cujo objetivo era disciplinar a formação do contrato de franquia. O art. 2º da Lei nº 8.955/1994 definiu franquia empresarial como sendo o sistema pelo qual um franqueador cede ao franqueado o direito de uso de marca ou patente associado a alguns outros direitos. São eles o direito de distribuição exclusiva ou semi-exclusiva de produtos ou serviços e, eventualmente, também o direito de uso de tecnologia de implantação e de administração de negócio ou sistema operacional desenvolvido ou detido pelo franqueador. Tal relação, segundo a referida lei, se estabelece mediante remuneração direta ou indireta, sem que, no entanto, fique caracterizado vínculo empregatício. Percebe-se, com isso, que a legislação brasileira, em alguma medida, tentou proteger a vulnerabilidade do franqueado em face do franqueador, pois tentou garantir ao franqueado

vantagens e desvantagens do negócio. Outra característica fundamental do contrato de franquia é a atipicidade, tendo em vista que a Lei nº 8.955/1994 não estabelece condições, termos, garantias, obrigações e encargos, mas apenas se restringe a garantir ao franqueado a supracitada disponibilidade de dados indispensáveis ao juízo de ponderação. A Lei nº 8.955/1994, em seu art. 3°, criou a figura da Circular de Oferta de Franquia – COF. Esse instrumento funciona como um verdadeiro dossiê de informações contendo dados e documentos que devem ser entregues pelo franqueador ao possível franqueado. Para tal concessão, ainda é determinado que haja antecedência mínima de dez dias antes da 223

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amplo acesso às informações necessárias para a formação de um juízo de ponderação entre as


assinatura do contrato ou pré-contrato ou ainda do pagamento de qualquer tipo de taxa pelo franqueado ao franqueador ou à empresa ou pessoa ligada a este, sob pena de anulabilidade do contrato, devolução de todos os valores pagos e indenização, consonante ao art. 3° da Lei nº 8.955/1994. Normalmente, as informações constantes na Circular de Oferta de Franquia costumam estar apresentadas em cinco capítulos: i) perfil do franqueador; ii) perfil da franquia; iii) perfil do franqueado ideal; iv) obrigações do franqueador e direitos do franqueado e; v) obrigações do franqueado. No capítulo sobre o perfil do franqueador, costuma-se estar exposta a forma societária e os últimos exercícios financeiros. No capítulo sobre o perfil da franquia, coloca-se o potencial de desenvolvimento do negócio, as pendências judiciais do grupo econômico, uma descrição detalhada sobre o funcionamento do empreendimento e das atividades que o possível franqueado pensa em assumir e o nome dos franqueados e daqueles que se desligaram do sistema nos últimos doze meses, bem como a situação das marcas e patentes abrangidas pelo contrato de franquia perante o Instituto Nacional de Propriedade Intelectual – INPI. No capítulo acerca do perfil do franqueado, estabelecem-se as características obrigatórias ou preferenciais que devem ser atendidas pelo referido consulente, de acordo com o inc. V do art. 3° da Lei nº 8.955/1994. No que se refere ao capítulo das obrigações do franqueador e direitos do franqueado, o que importa, de início, é verificar se há presença da cláusula de territorialidade, isto é, se foram estabelecidos limites de atuação dentro de um determinado território. Depois, analisa-se a indicação dos serviços de organização empresarial garantidos pelo contrato, como serviços de supervisão da rede, treinamento dos empregados do franqueado, distribuição de manuais, escolha de pontos, layout e etc. Por fim, no capítulo sobre as obrigações do franqueado, expõe-se as atividades a serem empenhadas por tal parte e

capital), abrangendo as taxas de filiação (taxas de franquia) e a caução a ser prestada pelo franqueado. Cabe ressaltar que os valores referentes às taxas de franquia e à caução devem ser exatos, enquanto que os demais itens do investimento podem ser valores aproximados. Caso o franqueado manifeste adesão ao sistema de franquia, a Circular de Oferta de Franquia deve vir acompanhada do modelo de contrato-padrão e, se for o caso, também do pré-contrato-padrão de franquia adotado pelo franqueador, com texto completo, além, inclusive, dos respectivos anexos e prazo de validade, de acordo com o inc. XV do art. 3° da Lei nº 8.955/1994.

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os valores a serem colocados pelo interessado no sistema de franquia (aporte inicial de


A Lei nº 9.279/1996, que regula direitos e obrigações relativos à propriedade industrial, em seu art. 211, exige que os contratos de franquia sejam registrados e depositados no INPI. Essa exigência não representa, todavia, empecilhos aos requisitos de validade e eficácia do documento entre as partes. Isto é, o contrato de franquia, mesmo que não registrado no INPI, será plenamente válido e eficaz entre os envolvidos, de modo que a ausência dessa formalidade não poderá ser invocada pelo franqueador, ou franqueado, a pretexto de descumprimento de qualquer obrigação estipulada. Entretanto, o registro perante o INPI torna-se importante quando da análise de efeitos perante terceiros. Logo, o registro e depósito é fundamental para que o contrato de franquia possa produzir tais impactos, em especial o Fisco e demais autoridades monetárias, dado que a ausência dessa condição acarreta a não dedução fiscal dos royalties e nem a remessa de dinheiro para o exterior (COELHO, 2017, p. 108-109). Cumpre observar, novamente, que o registro de franquia no INPI é apenas condição de eficácia do contrato de franquia perante terceiros. No entanto, essa afirmação só é relevante quando o franqueador ou franqueado possui direitos perante terceiros. Na hipótese de franqueador ou franqueado ser devedor em face de terceiros credores, a condição de eficácia do registro para operar efeitos perante terceiros não mais poderá ser considerada, tendo em vista que estes não poderiam ser prejudicados, pois estaria configurado um fato de excludente de responsabilidade.

3 CONSTITUCIONALIDADE DA INCIDÊCIA DO ISS SOBRE OS ROYALTIES PAGOS NO CONTRATO DE FRANQUIA

esses entes se impulsionassem a querer tributar a atividade de franquia dentro da categoria de Imposto Sobre Serviço – ISS, antigo Imposto Sobre Serviço de Qualquer Natureza – ISSQN. O fato gerador seriam os royalties pagos pelo franqueado ao franqueador. Em um primeiro momento, o fundamento para essa tributação foi a inclusão das franquias no conceito legal de locação de bens móveis, que era um serviço tributável pelo ISS, conforme o item 52 (atual item 79) da lista anexa ao Decreto-lei nº 406/1966, que dispõe sobre as normas gerais de Direito Financeiro. Entretanto, essa polêmica ressurgiu com a edição da Lei Complementar nº 116/2003, que, em seu item 17.8, incluiu a franquia como

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As dificuldades econômicas de boa parte dos municípios brasileiros fizeram com que


serviço tributável. A questão passou a ser a seguinte: o contrato de franquia caracteriza realmente um serviço? Primeiramente, é preciso ressaltar que somente podem ser tributáveis serviços que tenham conteúdo econômico (BARRETO, 2005, p. 31). Assim sendo, é imprópria a definição de que o serviço é que é tributável (MELO, 2008, p. 38). Na verdade, o que pode ser tributável é a prestação do serviço que tenha conteúdo econômico (HARADA, 2008, p. 34). Feitas essas breves considerações, chega-se à conclusão de não ser possível a tributação de serviços potenciais. Isto é, o fato gerador do ISS é sempre a prestação de um serviço com conteúdo econômico, refletindo, assim, uma situação de fato, diferentemente da hipótese de serviço potencial, que é aquele que potencialmente poderá vir a ser prestado. Assim leciona Aires Barreto (2005, p. 72):

A hipótese de incidência do ISS e do ICMS, relativamente a serviços, é um estado de fato: a concreta prestação de serviços, sob o regime de direito privado, em caráter negocial, pouco importa se houve celebração de contrato de prestação de serviços. Se estes não forem efetivamente prestados, não se há falar em incidência nem de ICMS nem de ISS. É que, como visto, o ISS e o ICMS não são impostos sobre atos jurídicos. Quando se admite caber incidência do ISS (ou de ICMS) sobre os serviços de transporte e de comunicação, como previsto pelo art. 155, II, da CF, tem-se, por certo, que se está diante de fato concreto, de efetiva, e não potencial, prestação do serviço considerado.

Outra questão-chave a ser comentada é sobre a definição do que seja serviço: tanto a Constituição Federal quanto a legislação infraconstitucional não fixaram o referido conceito. Entretanto, à luz dos limites impostos pelo art. 110 do Código Tributário nacional, a doutrina tentou formular a noção de serviço sob o prisma sistemático delineado pela Constituição

serviço configura uma obrigação de fazer, e não de dar; ii) deve ser prestada em favor de terceiro; iii) não pode haver vínculo de subordinação, mas, sim, operar efeitos em caráter de independência, razão pela qual excluem-se os serviços prestados pelos trabalhadores aos seus empregadores, bem como pelo servidores públicos; iv) deve ser habitual, e não meramente eventual; v) deve ser objeto de circulação econômica; e, por fim, vi) o serviço deve ser prestado em regime de direito privado, por pessoa física ou jurídica, excluindo-se o serviço regido por direito público, em que há imunidade tributária, exceto para os prestados em regime de concessão ou permissão a agentes privados.

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Federal. Algumas conclusões foram feitas (BALEEIRO, 2013, p. 491): i) a prestação de


A Constituição Federal, em seu art. 156, inc. III, define que cabe aos municípios instituir impostos sobre serviços de qualquer natureza não compreendidos no art. 155, inc. II, a serem definidos por Lei Complementar. Logo, os municípios possuem competência apenas para tributar os serviços de qualquer natureza que a Lei Complementar defina (MACHADO, 2002, p. 346). Assim sendo, é ineficaz “Lei Municipal que institua o ISS sobre serviço não incluído no elenco criado por Lei Complementar” (BASTOS, 1996, p. 265). Há, no entanto, quem entenda, sob a ótica da autonomia municipal, que é desnecessária Lei Complementar para definir quais seriam os serviços sujeitos à tributação pelo ISS. Ademais, apesar de parte da doutrina defender, sob a ótica da autonomia municipal, que é desnecessária Lei Complementar para definir quais seriam os serviços sujeitos à tributação pelo ISS, o Supremo Tribunal Federal tem entendido que a discriminação dos serviços por Lei Complementar federal não fere a autonomia municipal, bem como ser taxativa a lista de serviços anexados na Lei nº 116/2003. Cite-se como exemplo: RE nº 361.829, Rel. Min. Carlos Velloso, 2ª Turma, j. em 13.12.2005, DJ 24.02.2006; RE nº 71.177, Rel. Min. Rodrigues Alckmin, Plenário, j. em 18.04.1974; RE nº 77.183, Rel. Min. Aliomar Baleeiro, Plenário, j. em 19.04.1974; RE nº 100.858, Rel. Min. Carlos Madeira, 2ª Turma, j. em 12.11.1985; RE nº 90.183, Rel. Min. Thompson Flores, 1ª Turma, j. em 07.08.1979 e; RE nº 105.477, Rel. Min. Francisco Rezek, 2ª Turma, j. em 09.08.1985. Não há dúvida, portanto, que o rol de serviços definidos na Lei Complementar nº 116/2003 é taxativo. Entretanto, o simples fato de uma atividade ter sido acrescentada a esse rol não significa por si só que poderá haver tributação de ISS, tendo em vista que certas atividades podem não ser realmente serviços (VELLOSO, 2018, p. 174). Caso a referida Lei Complementar inclua em seu rol atividade que não seja serviço, tal dispositivo deverá ser declarado inconstitucional. Não é porque a Constituição Federal

tributação do ISS que esse mesmo diploma legal poderá ampliar o conceito de serviço sistematicamente aferido da própria Constituição Federal. Assim, toda essa explicação sobre ISS e serviço é de extrema valia para se adentrar ao tema principal deste tópico, qual seja, a constitucionalidade da incidência do ISS sobre os royalties pagos pelo franqueado ao franqueador. Na relação jurídica envolvendo franqueado e franqueador, eventual obrigação de fazer, como atividade-meio, não transformaria essa atividade numa prestação de serviço (VELLOSO, 2018, p. 179), dado que a natureza do contrato de franquia é essencialmente comercial. Com isso, não há possibilidade de tributação dessa prestação por Imposto Sobre 227

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conferiu à Lei Complementar a tarefa de definir quais serão os serviços que sofrerão


Serviço. Destarte, não é possível isolar essas atividades-meio com o objetivo de configurá-las como prestação de serviços (BAPTISTA, 2005, p. 371). Conforme dito no início deste tópico, os municípios afirmavam que o contrato de franquia se equiparava ao contrato de locação de bens móveis, que foi introduzido ao rol de serviços do Decreto-lei nº 406/1968 inicialmente pela Lei nº 834/1969 (item 52) e mantido pela Lei Complementar nº 59/1987 (item 79). O STF, em um primeiro momento, entendeu ser constitucional a incidência do ISS sobre a locação de bens móveis. Destaca-se: RE nº 115.103, Rel. Min. Oscar Corrêa, 1ª Turma, j., em 22.03.1988 e; RE nº 112.947, Rel. Min. Carlos Madeira, 2ª Turma, j., em 19.06.1987. Entretanto, ressalta-se que o Supremo não se pronunciou sobre a constitucionalidade da incidência do ISS sobre os contratos de franquia. Porém, referido tema voltou a ser debatido pela Suprema Corte, que mudou seu entendimento acerca da constitucionalidade da incidência do ISS sobre os contratos de locação de bens móveis. O precedente que marcou essa mudança de interpretação foi o RE nº 116.121, Rel. Min. Octavio Gallotti, Plenário, j. em 11.10.2000. Esse precedente, julgado no ano de 2000, é anterior à Lei Complementar nº 116/2003, que voltou a colocar os contratos de franquia no rol de serviços tributáveis por ISS (itens 17.8 e 10.4), e também anterior à nova sistemática de repercussão geral do Recurso Extraordinário. No mais, esse julgamento limitou-se a analisar a constitucionalidade apenas dos contratos de locação de bens móveis, sem se referir aos contratos de franquia. Por fim, cumpre acentuar que, em relação a contratos de locação de bens móveis, o assunto restou pacificado, sendo, inclusive, editada a Súmula Vinculante nº 313. O Superior Tribunal de Justiça (STJ), em precedente histórico, de relatoria do Ministro Luiz Fux, analisando a incidência do ISS sobre os contratos de franquia, tendo como

prestação de serviço (obrigação de fazer), escapando, portanto, da esfera da tributação do ISS pelos Municípios. Trata-se do Ag no REsp nº 953. 840, Rel. Min. Luiz Fux, 1ª Turma, j. em 20.08.2009. Apesar do precedente histórico do STJ, o Supremo Tribunal Federal ainda não se pronunciou sobre a constitucionalidade da incidência do ISS sobre os royalties pagos pelo franqueado ao franqueador. O referido tema deve ser enfrentando em breve pela Suprema Corte, tendo em vista o reconhecimento da repercussão geral da matéria nos autos do Recurso 3

Súmula Vinculante nº 31: É inconstitucional a incidência do imposto sobre serviços de qualquer natureza - ISS sobre operações de locação de bens móveis. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal).

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parâmetro a Lei Complementar nº 116/2003, julgou que a operação de franquia não constitui


Extraordinário nº 603.136, de relatoria do Ministro Gilmar Mendes. Os autos estão conclusos e o processo encontra-se parado desde 31 de março de 2017. Ressalta-se, ainda, que o Superior Tribunal de Justiça possui dois informativos de jurisprudência em que o tribunal decidiu por afastar a incidência do ISS sobre os serviços prestados em razão do contrato de franquia. São eles: Informativo nº 199, em que citam-se o REsp nº 189.225, AgRg no AG nº 436.886, REsp nº 221.577 e REsp nº 403.799 e também o Informativo nº 363, em que citam-se o REsp nº 912.036, AgRg no AG 757.416, AgRg no AG nº 748.334 e AgRg no REsp nº 658.392. Todas essas considerações feitas até aqui devem ser analisadas quando da realização do julgamento do Recurso Extraordinário nº 603.136. Não é possível, de antemão, prever qual será a decisão do Supremo Tribunal Federal. Entretanto, por todo o exposto, é preciso já estar claro que a mera inclusão do contrato de franquia na Lei Complementar nº 116/2003 não é suficiente para a tributação do Imposto Sobre Serviço. Será preciso analisar se se trata realmente de uma prestação de serviço.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Lei nº 8.955/1994 confere atipicidade ao contrato de franquia, dado que não dispõe sobre o conteúdo dessa relação contratual. A lei, portanto, não regula de maneira exauriente a relação jurídico-contratual entre franqueador e franqueado, mas apenas disponibiliza maiores informações ao franqueado entrante para que ele possa fazer uma boa opção empresarial. A Lei nº 8.955/1994 é comumente colocada como sendo de autoria do deputado Magalhães Teixeira, tendo sido aprovada em todas as comissões sem que houvesse grande

Franchising, foram rejeitadas pela Câmara dos Deputados quando o projeto retornou do Senado Federal. Desde a promulgação da Lei nº 8.955/1994, vários encontros e fóruns foram realizados com o intuito de promover discussões que inspirassem soluções e aperfeiçoamentos dessa lei. A doutrina, então, dedicou-se a estabelecer correções a imperfeições técnicas e fortalecimentos das questões já bem desenvolvidas na legislação sobre o sistema de franquias. Cabe, portanto, apresentar algumas dessas sugestões de aperfeiçoamento à mencionada normatização.

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participação popular. As emendas que foram propostas, todas pela Associação Brasileira de


O art. 2º da Lei nº 8.955/1994 dispõe que: “A franquia empresarial é o sistema pelo qual um franqueador cede ao franqueado o direito de uso de marca ou patente [...]”. Referido dispositivo fala em cessão. Na verdade, melhor seria trocar o termo cessão por autorização (licença) para o uso da marca, dado que ceder seria transferência de direito a outrem, o que, ao certo, não ocorre nos contratos de franquia. Assim, o que é regulado pelo contrato de franquia não se trata de uma transferência de direitos, mas, sim, autorização (licença) para uso da marca. A própria Lei nº 9.279/1996 (Lei de Propriedade Industrial ou LPI) possui capítulo específico sobre licenças. Não se está afirmando que não haja previsão legal para cessão de uso de marca, mas, sim, que o contrato de franquia não trata de cessão, e sim de licença de uso de marca. Essa distinção é nítida quando analisados os arts. 134 a 135, que tratam da cessão de marca, e os arts. 139 a 141 da Lei nº 9.279/1996, que tratam de licença de uso de marca. Assim dispõe o art. 139 da Lei nº 9.279/1996: “O titular de registro ou o depositante de pedido de registro poderá celebrar contrato de licença para uso da marca, sem prejuízo de seu direito de exercer controle efetivo sobre as especificações, natureza e qualidade dos respectivos produtos ou serviços”. Outro ponto a ser aperfeiçoado é a redação do inc. IX do art. 3º da Lei nº 8.955/1994. O referido dispositivo dispõe que na Circular de Oferta de Franquia deve conter a relação completa de todos os franqueados, subfranqueados e subfranqueadores da rede, bem como dos que se desligaram nos últimos doze meses com nome, endereço e telefone. Isto é, estabeleceu-se que seriam necessárias apenas informações dos que se desligaram nos últimos doze meses. Essa relação de um ano é muito curta para que o franqueado entrante tenha maior noção dos motivos que levaram esses a se retirarem do sistema de franquias. A sugestão, deste modo, é aumentar o prazo de um ano para dois anos (24 meses). Esse dispositivo passaria a ter a seguinte redação: “relação completa de todos os nos últimos 24 meses, com nome, endereço e telefone”. Outro possível aprimoramento da Lei nº 8.955/1994 diz respeito à transparência acerca do prazo contratual a ser estabelecido e às condições de renovação do contrato. O art. 3º, que cuida dos elementos que devem constar na Circular de Oferta de Franquia, não trata desses dois elementos. O ideal, então, seria que os pontos sugeridos fossem incrementados a esse artigo, a fim de conferir maior segurança, previsibilidade e transparência ao franqueado entrante. Feitas essas observações, conclui-se que, embora precise ser aprimorada em alguns pontos específicos, a Lei nº 8.955/1994 tem exercido grande papel na regulação dos sistemas 230

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franqueados, subfranqueados e subfranqueadores da rede, bem como dos que se desligaram


de franquia. Sem essa lei, o sistema de franquias no Brasil estaria fadado ao fracasso. Portanto, é de se elogiar a importância dessa legislação no ordenamento jurídico positivo. Os aprimoramentos sugeridos são apenas maneiras de se fazer com que a normatização acompanhe as transformações sociais que ocorrem desde 1994, ano de edição da Lei nº 8.955, que é, inclusive, anterior à própria Lei nº 9.279/1996 (1996). O sistema de franquias é um importante segmento mercadológico nacional. Pesquisa divulgada recentemente pela Associação Brasileira de Franchising mostra que esse setor tem formalizado mais de 1 (um) milhão e 300 (trezentos) mil postos de trabalho, o que, per si, gerou um aumento de 2,05% em relação aos resultados desse ramo no 4º trimestre de 20184. Por fim, cabe retomar que o Supremo Tribunal Federal deverá decidir nos próximos anos acerca da constitucionalidade da incidência do ISS sobre os royalties pagos pelo franqueado ao franqueador. Isto deve ser feito quando da realização do julgamento do Recurso Extraordinário nº 603.136. Por todo o exposto ao longo deste artigo, a conclusão a que se chega é pela inconstitucionalidade da incidência do Imposto Sobre Serviço sobre os royalties pagos pelo franqueado ao franqueador.

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2008.


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CONSTITUTIONALITY OF ISS INCIDENCE ON ROYALTIES OWED BY THE FRANCHISEE TO THE FRANCHISOR

ABSTRACT The article analyzes the constitutionality of the Service Tax levied on royalties paid by the franchisee to the franchisor. The methodology used was the literature review. The purpose of this article is guiding the discussion beyond the inclusion of the franchising contract in Complementary Law 116/2003. Thus, the first part introduces the concept of the franchising agreement and deals with the current legislation in the country. This way, the second part discusses the constitutionality of the referred tax incidence. At last, the text ends summarizing the ideas and presenting possible improvements to the franchising statutes in Brazil. Keywords:

Constitutionality.

Tax

over

service.

Franchising.

FIDES, Natal, V. 10, n. 2, jul./nov. 2019.

Franchise contract.

233


O ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL NO SISTEMA PENITENCIÁRIO BRASILEIRO E A ADPF 347 Daniel Lima de Almeida1

RESUMO Através da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 3471, o presente artigo tem o intuito de discutir acerca do estado de coisas inconstitucional no sistema penitenciário brasileiro. Assim, aborda-se o sistemático problema da inconstitucionalidade das prisões brasileiras por meio de uma pesquisa de caráter qualitativo e de natureza bibliográfica. A perspectiva presente, portanto, implica em uma busca pelo cumprimento efetivo dos direitos fundamentais, respaldados na Constituição e em outras legislações. Para o aprimoramento das funções estatais, torna-se preciso pensar a reconstrução das suas estruturas, de modo a transformar a realidade

Palavras-chave:

Estado

de

coisas

inconstitucional.

Sistema

penitenciário. Direitos fundamentais.

1

Graduando em Direito pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Bolsista de iniciação científica do CNPq.

234

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social através do sentido da Constituição.


1 INTRODUÇÃO

O presente estudo tem o objetivo de analisar, com repercussão teórica, a realidade prática do sistema carcerário brasileiro frente aos direitos e às garantias fundamentais respaldados na Constituição Federal de 1988, em outras legislações infraconstitucionais e em tratados internacionais. A constitucionalização dos direitos humanos significa, para a humanidade, a garantia e efetividade de seu pleno gozo, de maneira a impossibilitar, teoricamente, a sobreposição do Estado em relação às liberdades e garantias individuais e coletivas dos cidadãos. Um direito fundamental, portanto, é o que emite a mensagem de respaldo e de respeito, no que tange aos eminentes valores de uma sociedade politicamente organizada e fundada em uma Constituição de cunho garantista. A historicidade da experiência constitucional aponta que um Estado Democrático de Direito não consegue funcionar, de fato, sem uma justiça constitucional que assegure a efetividade dos valores e direitos humanos, expressos em sua Constituição. Sendo assim, urge o exercício do controle de constitucionalidade, por parte das Cortes Constitucionais, com o intuito de evitar omissões e ações que visem a extinguir ou sonegar, em nome da conservação e ampliação dos privilégios das classes dirigentes, os direitos e as garantias fundamentais dos indivíduos e da coletividade como um todo. Dessa forma, em setembro de 2015, diante do chamado estado de coisas inconstitucional no sistema penitenciário brasileiro, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), requerente, ingressou com medida cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347, Distrito Federal, junto ao Supremo Tribunal Federal (STF). Trata-se, portanto, da diligência que objetiva atenuar a situação desumana vivenciada

2 DA REALIDADE INCONSTITUCIONAL DO SISTEMA PENITENCIÁRIO BRASILEIRO O relatório (STF, 2015)2 menciona que – presente o quadro do sistema penitenciário nacional de superlotação carcerária, as condições desumanas de custódia, a violação massiva e persistente de direitos fundamentais e as falhas estruturais – deverá ser designado o caso de 2

STF. ADPF 347-DF. Pleno. Rel. Min. Marco Aurélio. j. 09.09.2015. DJe-31 19.02.2016. Disponível em: < http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=10300665>. Acesso em: 01 de jan. 2019.

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em diversos conjuntos prisionais do Brasil, cujo relator era o ministro Marco Aurélio.


estado de coisas inconstitucional. Assim, a conjuntura citada é decorrente de falhas estruturais e da falência de políticas públicas, e sua modificação depende de medidas abrangentes de natureza normativa, administrativa e orçamentária. Aponta-se, no relatório apresentado no acórdão, portanto, que o cabimento da medida cautelar, através da via eleita, torna-se possível ante o preenchimento dos requisitos próprios: violação de preceitos fundamentais decorrentes de atos do Poder Público e inexistência de outro meio eficaz de sanar a lesividade (STF, 2015). Assim, consta no relatório que:

[...] a superlotação e as condições degradantes do sistema prisional configuram cenário fático incompatível com a Constituição Federal, presente a ofensa de diversos preceitos fundamentais consideradas a dignidade da pessoa humana, a vedação de tortura e de tratamento desumano, o direito de acesso à Justiça e os direitos sociais à saúde, educação, trabalho e segurança dos presos. (STF, 2015, p. 8).

Para expor as razões de tais adversidades, o requerente, no relatório trazido pelo acórdão, adverte que a União estaria contingenciando recursos do Fundo Penitenciário Nacional (FUNPEN) e abdicando de repassá-los aos Estados-membros, apesar de encontrarem-se disponíveis e serem necessários à melhoria do quadro. O Poder Judiciário, conforme aduz, não segue os arts. 9.3 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos3 e 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos4, nos quais é previsto o direito à audiência de custódia. O Poder Legislativo estaria, influenciado pela mídia e pela opinião pública, estabelecendo políticas criminais insensíveis ao cenário prisional e contribuindo para a superlotação dos centros prisionais e para a falta de segurança na sociedade, de modo a fazer

PSOL destaca a conjuntura de:

[...] celas imundas e insalubres, proliferação de doenças infectocontagiosas, comida intragável, temperaturas extremas, falta de água potável e de produtos higiênicos básicos, homicídios frequentes, espancamentos, tortura e violência sexual contra os presos, praticadas tanto por outros detentos quanto por agentes do Estado, ausência de assistência judiciária adequada, bem como de acesso à educação, à saúde e ao 3

Pacto internacional sobre direitos civis e políticos. Disponível <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0592.htm>. Acesso em: 31 de jan., 2019. 4 Convenção americana sobre direitos humanos. Disponível <https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm>. Acesso em: 31 de jan., 2019.

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em: em:

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referência à produção de legislação simbólica, expressão de populismo penal (STF, 2015). O


trabalho. Enfatiza estarem as instituições prisionais dominadas por facções criminosas. Salienta ser comum encontrar, em mutirões carcerários, presos que já cumpriram a pena e poderiam estar soltos há anos. (STF, 2015, p. 9).

Ao constatar os presentes aspectos do sistema carcerário brasileiro, o partido enfatiza “serem as prisões verdadeiros infernos dantescos” (STF, 2015, p. 9), visto que se fala de um quadro, o qual desrespeita a própria dignidade humana e é totalmente inapropriado para habitar cidadãos. É um conjunto que compromete a segurança da sociedade, uma escola do crime, onde há a mistura entre encarcerados com variados graus de periculosidade, de maneira a afastar a possibilidade de reabilitação e a contribuir para que os números de reincidência cheguem a 70% (STF, 2015). Como consta no relatório do acórdão:

[...] outro fato a contribuir para a superlotação é o uso abusivo da prisão provisória. Segundo relatórios do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, 41% dos presos brasileiros estão nessa condição. Alega a banalização da adoção da medida constritiva antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, evidenciando-se uma “cultura do encarceramento”. Aponta, mais, inexistir separação, nos presídios, entre os presos provisórios e os definitivos. (STF, 2015, p. 11).

Perante o exposto, o requerente da ADPF 347 provocou a Corte Suprema, com o propósito de intervir na gravidade dos fatos, a partir da invocação do “papel contramajoritário próprio das cortes constitucionais, em proteção da dignidade de grupos vulneráveis” (STF, 2015, p. 12), visto a situação de penúria pela qual o estado de coisas inconstitucional perdura. Então, é próprio do Poder Judiciário a atenção para aquilo que, por vezes, a sociedade não deseja se preocupar. E é por tais razões que o cargo de ministro da Suprema Corte consta na Constituição Federal de 1988, art. 95, inc. I, como vitalício, para, quando necessário,

não é um poder político, mas, diferentemente, jurisdicional. Postulou, portanto, o PSOL, que seja determinado: a) aos juízes e tribunais – que lancem, em casos de determinação ou persistência de prisão provisória, a fundamentação expressa pela qual não aplicam medidas cautelares alternativas à privação de liberdade, estabelecidas no art. 319 do Código de Processo Penal (STF, 2015); b) aos juízes e tribunais – que, seguidos os arts. 9.3 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos e 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, realizem, em até noventa

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desagradar, sem renúncias, a força da opinião pública e de clamores sociais, pois o Judiciário


dias, audiências de custódia, de maneira a viabilizar o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária no prazo de 24 horas, contados do momento da prisão (STF, 2015); c) aos juízes e tribunais – que considerem, fundamentadamente, o quadro caótico do sistema penitenciário brasileiro no momento de implemento de cautelares penais, na aplicação da pena e durante o processo de execução penal (STF, 2015); d) aos juízes – que estabeleçam, quando possível, penas alternativas à prisão, ante a circunstância de a reclusão ser sistematicamente cumprida em condições muito mais severas do que as admitidas pelo arcabouço jurídico (STF, 2015); e) ao juiz da execução penal – que abrande os requisitos temporais para a fruição de benefícios e direitos dos presos, como a progressão de regime, o livramento condicional e a suspensão condicional da pena, quando constatadas as condições de cumprimento da pena mais severas do que as previstas na ordem jurídica, em razão do quadro do sistema carcerário, de modo a preservar a proporcionalidade da sanção (STF, 2015); f) ao juiz da execução penal – que abata, da pena, o tempo de prisão, se constatado que as condições de cumprimento foram significativamente mais severas do que as previstas na ordem normativa, de forma a compensar o ilícito estatal (STF, 2015); g) ao Conselho Nacional de Justiça – que coordene mutirão carcerário a fim de revisar todos os processos de execução penal, em curso no país, que envolvam a aplicação de pena privativa de liberdade, com o objetivo de adequá-los às medidas pleiteadas nas alíneas e e f (STF, 2015); h) à União – que libere as verbas do Fundo Penitenciário Nacional e deixe de realizar novos contingenciamentos (STF, 2015).

O Tribunal, por maioria, deferiu a proposta do ministro Roberto Barroso, ora reajustada, de concessão de cautelar de ofício, para que se determine à União e aos Estadosmembros, especificamente ao Estado de São Paulo, que encaminhem ao Supremo Tribunal Federal informações sobre a situação prisional. Vencidos os ministros Marco Aurélio, Relator que reajustou o voto, Luiz Fux, Cármen Lúcia e o Presidente Ricardo Lewandowski, na conformidade da ata do julgamento e das respectivas notas taquigráficas (STF, 2015). Das oito cautelares solicitadas, duas avançaram: as alíneas b e h. A seguir, os fundamentos da recepção das duas proposições e, posteriormente, a análise dos votos vencedores que fizeram negar as demais requisições. 238

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2.1 Dos votos vencedores


2.1.1 Da recepção da alínea b – as audiências de custódia

Por maioria de votos e com a iniciativa do ministro-relator, Marco Aurélio, a alínea b foi deferida, e determinou-se aos juízes e tribunais que, observados os arts. 9.3 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos e 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, realizem, em até noventa dias, audiências de custódia, de maneira a viabilizar o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária no prazo máximo de 24 horas, contados do momento da prisão (STF, 2015). Sobre os tratados internacionais, Edson Fachin afirma que o Pacto de São José da Costa Rica possui status supralegal, conforme entendimento firmado pela Corte Suprema, e, nos termos do art. 5º, §1º, da Constituição Federal de 1988, suas normas têm aplicação imediata, portanto, não podem ter suas implementações diferidas ao fim da assinatura dos respectivos convênios de cooperação técnica. Nesse sentido, a cultura jurídica precisa dar efetividade aos compromissos firmados pela República Federativa do Brasil e às normas positivadas democraticamente pelos debates no âmbito do Poder Legislativo e sancionadas pelo Poder Executivo (STF, 2015). De acordo com o art. 5º, § 3º, da Constituição Federal de 1988, os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos de seus respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais, de forma que o intérprete constitucional é proibido de abdicar de acordos firmados legalmente. Ingo Wolfgang Sarlet (2018), em vista disso, assevera que os tratados internacionais possuirão hierarquia de direito constitucional derivado, incumbindo, no máximo, sua declaração de inconstitucionalidade por violação dos

cláusulas pétreas da Constituição Federal de 1988. O Poder Judiciário, assim, possuirá a tarefa de fiscalizar os ritos democráticos e a compatibilidade dos tratados com a Constituição Federal de 1988, caso o Legislativo e o presidente não observem tal enquadramento. Trata-se, pois, da função contramajoritária do âmbito jurisdicional, de modo a revelar o aspecto de defesa da integridade da Constituição Federal de 1988 frente às vontades políticas existentes que possam desconsiderar seus conteúdos fundamentais.

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requisitos formais ou, eventualmente, a prevalecer tal entendimento, por violação das


2.1.2 Da recepção da alínea h – os contingenciamentos da União e a liberação de verbas do Fundo Penitenciário Nacional

Em relação à alínea h, por maioria e nos termos do voto do relator, foi deferida a cautelar para determinar à União que libere o saldo acumulado do Fundo Penitenciário Nacional, para utilização com a finalidade para a qual foi criado, abstendo-se de realizar novos contingenciamentos. Foram vencidos, em menor extensão, os ministros Edson Fachin, Roberto Barroso e Rosa Weber, que fixavam prazo de até sessenta dias, a contar da publicação desta decisão, para que a União procedesse à adequação para o cumprimento determinado (STF, 2015). No que tange ao descontingenciamento dos recursos, Marco Aurélio assevera que a violação da dignidade da pessoa humana e do mínimo existencial autoriza a judicialização do orçamento, especificamente, se considerado o fato de que recursos legalmente previstos para o combate a esse quadro são contingenciados, anualmente, em valores muito superiores aos efetivamente realizados, apenas para alcançar metas fiscais (STF, 2015). Concernente ao pedido de intervir no que seria de responsabilidade política de outros poderes da República, Marco Aurélio argumenta que “a forte violação de direitos fundamentais, alcançando a transgressão à dignidade da pessoa humana e ao próprio mínimo existencial justifica a atuação mais assertiva do Tribunal” (STF, 2015, p. 31).

2.1.3 Das cautelares indeferidas

Foram indeferidas as alíneas a, c, d, e, f e g. As solicitações de a, c e d foram indeferidas por Edson Fachin, Roberto Barroso, Teori Zavascki, Rosa Weber e Gilmar

Barroso, Teori Zavascki, Rosa Weber e Ricardo Lewandowski, e Cármen Lúcia considerou a cautelar prejudicada. A f foi indeferida por unanimidade. Acerca da alínea g, Marco Aurélio, Teori Zavascki, Luiz Fux, Cármen Lúcia e Ricardo Lewandowski optaram por indeferi-la, e Rosa Weber a considerou prejudicada. Em relação aos benefícios e direitos dos presos, o relator adverte que há disciplina legal que não pode ser flexibilizada em abstrato, visto que a contagem de tempo para a fruição desses direitos há de ser feita caso a caso, observando-se os parâmetros legais. Quanto ao pedido de compensação do tempo de custódia definitiva, falta previsão legal para tanto (STF, 2015). Roberto Barroso, assim, afirma: 240

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Mendes. Por seu turno, a e, também negada, foi descartada por Edson Fachin, Roberto


A primeira medida cautelar, [...], a da letra “a”, é a que pede ao Tribunal que cautelarmente imponha o dever de os juízes e Tribunais motivarem por que não aplicaram as medidas cautelares alternativas à prisão. Eu estou de pleno acordo com esse pedido, mas ele já decorre necessariamente da legislação. É o que decorre, a meu ver, do art. 93, IX, da Constituição, do art. 315 do Código de Processo Penal e do art. 282, § 6º, também do Código de Processo Penal. (STF, 2015, p. 74)Erro! Indicador não definido.

Sobre a medida cautelar requerida na alínea c, Barroso adverte que concorda com as teses apresentadas, mas afirma que já decorre do arcabouço normativo vigente (STF, 2015). Além disso, a alínea d foi indeferida. No entanto, se a regra está no arcabouço jurídico, e o juiz não a cumpre, alguma medida deveria ser tomada pela Corte Suprema, pois essa situação compromete a confiança que deve ser inerente ao Estado e, consequentemente, ao Judiciário, já que a segurança jurídica e as pretensões de previsibilidade se consideram prejudicadas. Com isso, Gomes Canotilho (2000) assevera que a segurança jurídica e a proteção da confiança no Estado exigem: (1) fiabilidade, clareza, racionalidade e transparência dos atos do poder; (2) de forma que, em relação a eles, o cidadão veja garantida a segurança nas suas disposições pessoais e nos efeitos jurídicos dos seus próprios atos. A segurança jurídica faz-se fator fundamental para o dever ser do Judiciário. As regras de motivação das decisões judiciais estão contidas no sistema normativo, o que, teoricamente, impossibilitaria o magistrado de utilizar sua autoridade judiciária para descartar as leis vigentes. Teori Zavascki cita que há mecanismos próprios na instituição do Poder Judiciário para resolver este problema, mas o impasse é de teor generalizado, pois contribui para a imensa quantidade de recursos que sobrecarregam as instâncias superiores (STF, 2015). Assim, uma decisão corretiva do STF, com a finalidade de respaldar a

papel imprescindível que a Suprema Corte dispõe para determinar que o ordenamento jurídico nacional deve ser cumprido e respeitado, principalmente, pelo corpo dos magistrados, os quais têm a colossal responsabilidade, no Direito Penal, de decidir sobre a liberdade de indivíduos. Luigi Ferrajoli, portanto, menciona: Se, com efeito, “juris-dição” designa um procedimento de comprovação dos pressupostos da pena que se expressa em assertivas empiricamente verificáveis e refutáveis, qualquer atividade punitiva expressamente contrária a este esquema é

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Constituição Federal de 1988 e as normas infraconstitucionais, seria possível. Tratar-se-ia do


algo

distinto

de

jurisdição.

Trata-se,

precisamente,

de

uma

atividade

substancialmente “administrativa” – ou, se quisermos, “política” ou “governativa” – caracterizada por formas de discricionariedade que, ao afetar as liberdades individuais, inevitavelmente desembocam no abuso. (FERRAJOLI, 2002, p. 37)

O magistrado possui o papel jurisdicional, não político, visto que deve ser imparcial e impessoal no momento de subsunção, de maneira que não se admite fazer sobrepor suas preferências pessoais às regras jurídicas componentes do sistema normativo. Ainda, conforme Gomes Canotilho (2000), há duas dimensões do Estado como comunidade juridicamente organizada: (1) o Estado é um esquema aceitável de racionalização institucional das sociedades modernas; (2) o Estado constitucional é uma tecnologia política de equilíbrio político-social, através da qual se combateram dois arbítrios imbricados a modelos anteriores: a autocracia absolutista do poder e os privilégios orgânico-corporativo medievais. Dessa forma, constituído pelos três poderes, o Estado, com suas responsabilidades e seus deveres, não pode abdicar de suas tarefas e selecionar quais artigos da Constituição pretende cumprir, visto que ela se trata de um contrato social com garantias individuais e coletivas. O soberano obriga-se a exercer as atividades jurisdicional e política, de modo que os indivíduos por ele protegidos se sintam, de fato, portadores de direitos e deveres, já que a confiança nas instituições democráticas consta como fator fundamental no sistema de tripartição dos poderes. Com isso, o modo jurisdicional de atuar deve assegurar a todos os cidadãos os atos proclamados na Constituição sem restrições, de forma a incluir os direitos dos encarcerados e dos acusados e a fazer justiça, portanto, à chamada racionalização do Estado moderno, de maneira a não ser arbitrário, mas a combater o arbítrio. Se o quadro de estado de coisas inconstitucional fora construído por imprudência do próprio Estado, inserido o próprio Judiciário, este, na ADPF analisada, precisaria dar

deferidas, assim, as alíneas a, c, d, e e g, o que faria atenuar o grave problema das condições dos presídios. Acerca da relação entre democracia e constitucionalismo, torna-se necessário analisar o papel de alguns contributos que o constitucionalismo possibilitou à própria democracia. Em sentido material, torna-se, contemporaneamente, improvável citar uma democracia que não possua o sistema de freios e contrapesos. Para além da tese da separação dos poderes do Estado, há o princípio contramajoritário que rege determinadas instituições da República, como ocorre com o Poder Judiciário, o qual, ainda que suas decisões venham a

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respostas efetivas ao dramático sistema penitenciário, o que não ocorreu, pois não foram


desagradar a maioria da população e da opinião pública, deverá ter por base a Constituição, para a tomada de decisões, inclusive a de proteger minorias. Nessa linha, se os outros poderes atacarem qualquer cláusula pétrea ou norma jurídica de forma indevida, caberá ao Judiciário, utilizando-se da sua força contramajoritária, a defesa incondicional dos dispositivos jurídicos. É através do constitucionalismo que a democracia formal poderá se transformar em democracia material, de modo a concretizar a divisão de poderes e de competências através da institucionalização de decisões. Sem o constitucionalismo, pois, a democracia seria simplesmente a imposição da vontade do povo, ou seja, seria possível haver uma decisão majoritária que desvirtuasse a própria democracia, inviabilizando-a. A democracia é, assim, dependente do constitucionalismo.

2.2 Dos votos vencidos

Foram indeferidas as cautelares em relação às alíneas a, c e d, vencidos os ministros Marco Aurélio, Luiz Fux, Cármen Lúcia e o Presidente, ministro Ricardo Lewandowski, que as deferiram. Acerca da alínea e, ela foi indeferida, vencido, em menor extensão, o ministro Gilmar Mendes. E, por unanimidade, foi indeferida a cautelar em relação à alínea f. Em relação à alínea g, por maioria e nos termos do voto do Relator, o Tribunal julgou prejudicada a cautelar, vencidos os ministros Edson Fachin, Roberto Barroso, Gilmar Mendes e Celso de Mello (STF, 2015). O tema do sistema carcerário, por ser pauta impopular, padece de atenção dos governantes, da mídia e da sociedade civil, o que faz com que a intensidade do problema se torne ainda mais grave, de maneira a advir o estado de coisas inconstitucional. Segundo o ministro-relator, essa matéria envolve direitos de um grupo de pessoas não simplesmente

apresentado necessita, portanto, do papel de defesa de minorias que fora concedido ao Supremo (STF, 2015). Ante essa situação vexaminosa, verifica-se a manutenção de elevado número de presos para além do tempo de pena fixado, evidenciada a inadequada assistência judiciária. Os reclusos, muitas vezes, não possuem sequer informações sobre os processos criminais (STF, 2015, p. 28). Roberto Mangabeira Unger (1979) assinala, assim, que somente uma entidade que, de algum modo, se ponha acima dos grupos em conflito pode limitar os poderes de todos os grupos e alegar uma posição de imparcialidade, impessoalidade ou harmonia providencial que 243

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estigmatizado, mas também cuja dignidade humana é tida por muitos como perdida. O quadro


justifique a sua exigência de submissão. Como citou Marco Aurélio, o Judiciário possui o papel contramajoritário, o qual permite que a instituição republicana, sem renúncias, desagrade a opinião pública ou a população, pois é dever do magistrado do STF dar atenção, quando provocado, aos não ouvidos pelo sistema político, posto que são diferentes pontos de atuação. Já que a maioria constrói a política, o Judiciário haverá de ser potente órgão de combate aos desmandos e injustiças, atendendo, portanto, aos esquecidos. É somente um corpo imparcial e impessoal que permitirá a realização do papel posto. Ademais, o perverso quadro de estado de coisas inconstitucional concede ao Supremo a possibilidade de intervir judicialmente em decisões que, em parte, seriam de outras entidades – as políticas, principalmente, do Executivo, não só a União, mas, de modo semelhante, o Poder Executivo dos Estados-membros. O assunto é de teor impopular e não se restringe a um local específico, mas, diferentemente, perdura por grande parcela do território nacional e não é tema, a saber, de eleições, por não ser de interesse dos indivíduos e dos próprios políticos, de forma geral. Logo, trata-se da relação entre constitucionalismo e democracia, visto que o primeiro seria o modo de controle da vontade da maioria, o que configura um sentido de democracia amplo. A democracia, assim, não deve se limitar à simples validade da soberania popular, mas, por outro lado, deve possuir mecanismos que possam incluir todos na esfera democrática, o que seria possível, na perspectiva analisada, com a associação apontada, já que o direito é portador da possibilidade de emissão de aspectos jurídicos para o controle de fatores políticos. Edson Fachin, por seu turno, promove atenção à questão do grau de escolaridade dos detentos, com base em estudos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O ministro cita que esse índice é extremamente baixo – aproximadamente, oito em cada dez

Sobre a distância entre administração da justiça e cidadãos, Boaventura de Sousa Santos argumenta:

[...] é tanto maior quanto mais baixo é o estrato social a que pertencem e que essa distância tem como causas próximas não apenas fatores econômicos, mas também fatores sociais e culturais, ainda que uns e outros possam estar mais ou menos remotamente relacionados com as desigualdades econômicas. (SANTOS, 2000, p. 170)

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pessoas presas estudaram, no máximo, até o ensino fundamental (STF, 2015).


O que o ministro Edson Fachin apresenta possui imbricação com a ineficiência do Estado em promover educação, que consta no art. 205 da Constituição Federal de 1988. Assim, é objetivo da República preparar o indivíduo, através da educação, para o mercado de trabalho, entretanto, as entidades responsáveis não o cumprem, de maneira a aumentar, posteriormente, a violência. O Estado se mostra ineficaz tanto na prestação de direitos básicos, a exemplo da educação, quanto na gestão de seus presídios, também infringindo direitos fundamentais. A tese inferida por Boaventura de Sousa Santos relaciona-se ao fator trazido por Edson Fachin, posto que o nível educacional dos cidadãos, diretamente ligado aos fatores de renda e cultura, proporciona o distanciamento de classes sociais desfavorecidas à administração da justiça. A presente conjuntura constitui, além das condições já citadas, o aprisionamento em massa de inocentes, visto que grande parte dos encarcerados não teve sentença penal condenatória transitada em julgado, condição constituinte da culpa, como emana do art. 5º, inc. LVII, da Constituição Federal de 1988. Luiz Fux entende que, se a lei obriga o juiz a motivar, e ele não motiva, há um estado de coisas inconstitucional, porque, também na Constituição Federal de 1988, está determinado que os juízes motivem as prisões provisórias e definitivas, e apliquem as medidas cautelares. É por isso que o tal estado de coisas inconstitucional obriga que, além da subsunção, a jurisdição constitucional faça valer um efeito pedagógico. Trata-se, então, de uma tentativa de salvaguardar os ditames expostos pelo ordenamento jurídico (STF, 2015). Em linha semelhante, o art. 5º, inc. III, da Constituição Federal de 1988, designa que ninguém poderá ser exposto a atos de tortura, nem a tratamento desumano ou degradante – trata-se de um mandamento da legislação suprema do país, refletido na dignidade da pessoa humana. O Estado legitima-se a partir da Constituição Federal de 1988, mas, de forma contrastante, no caso aqui explicitado, não reverbera em tal ponto os procedimentos emanados

de coisas inconstitucional. O ministro Gilmar Mendes certifica que, ao lado das normas disciplinadoras da cautelar em sede de ADPF, há disposto no art. 461 do Código de Processo Civil (CPC), o qual dá ao julgador o poder de conceder “tutela específica da obrigação” (STF, 2015, p. 137) e determinar “providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento” (STF, 2015, p. 137). Além disso, o ministro Celso de Melo assegura que a inércia estatal em tornar efetivas as imposições constitucionais revela inaceitável gesto de desprezo pela Constituição Federal de 1988 e configura comportamento que traduz um sentimento de desapreço pela 245

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dela, o que se revela como contradição, de maneira a confirmar, como consequência, o estado


autoridade, pelo valor e pelo alto significado de que ela se reveste. Assim, nada mais nocivo, perigoso e ilegítimo do que elaborar uma Constituição sem a vontade de fazê-la cumprir integralmente ou, então, de apenas executá-la com o propósito subalterno de torná-la aplicável somente nos pontos que se mostrarem convenientes aos desígnios dos governantes (STF, 2015). Por isso, Gomes Canotilho (2000, p. 1435) caracteriza a Constituição como “ordem jurídica fundamental do Estado”, o que gera a pretensão de estabilidade na sua forma e a busca da capacidade de abertura para mudanças no seio do político. Nesse sentido, a Constituição advém de um contrato social que deve ser cumprido – trata-se do guia político de uma nação. Incluindo-se os representantes políticos do povo, buscar-se-ia, através dela, a estabilidade social e o respeito às garantias de todos – não importando quem seja o destinatário – sempre dentro dos limites estabelecidos pelo texto. E, além disso, a legislação constitucional é capaz de fornecer maneiras variadas de resolução de problemas da vida cotidiana, inclusive de possibilitar que ela seja objeto de mutação e, ainda, que os atos normativos infraconstitucionais sejam modificados, para atender melhor aos interesses dos destinatários, o que não ocorre, constatado o estado de coisas inconstitucional. Em decorrência da supremacia constitucional, todos os atos normativos do Poder Público devem estar de acordo com o ideal constitucional, formal e materialmente. Os direitos constitucionais, portanto, por estarem codificados, devem ser respeitados tanto pelos cidadãos em geral, como pelos representantes do povo. 2.3 O estado de coisas inconstitucional – seu descompasso em relação à ordem humanitária de direitos e garantias fundamentais

Com todas as adversidades elencadas no que tange ao descumprimento do

submetida à instituição citada. Boaventura de Sousa Santos adverte para:

[...] a importância crucial dos sistemas de formação e de recrutamento dos magistrados e a necessidade urgente de os dotar de conhecimentos culturais, sociológicos e econômicos que os esclareçam sobre as suas próprias opções pessoais e sobre o significado político do corpo profissional a que pertencem, com vista a possibilitar-lhes um certo distanciamento crítico e uma atitude de prudente vigilância pessoal no exercício das suas funções numa sociedade cada vez mais complexa e dinâmica. (SANTOS, 2000, p. 174)

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ordenamento jurídico vigente pelo Judiciário, faz-se necessário analisar o campo em que está


Dessa forma, o magistrado, embutido no sistema do Direito e no campo próprio dos tribunais, necessita, tanto quanto saber acerca de proposições jurídicas, compreender o sistema ao qual pertence. Assim, requer-se prudência no exercício de sua função para que analise os aspectos vinculados ao significado da norma jurídica, e esclarecimento sobre os impactos de suas decisões. É por tal razão que Boaventura de Sousa Santos infere que o problema, mais do que do próprio magistrado, está na sua preparação, no modo como as escolas de direito alinham os futuros profissionais dos tribunais. Nesse sentido, as decisões judiciais devem ser fundamentadas, imprescindivelmente, de modo racional, com base no ordenamento jurídico e na dinâmica social. Ainda, Pierre Bourdieu, também explanando sobre a realidade dos tribunais, afirma:

[...], o juiz, ao invés de ser sempre um simples executante que deduzisse da lei as conclusões diretamente aplicáveis ao caso particular, dispõe antes de uma parte de autonomia que constitui sem dúvida a melhor medida da sua posição na estrutura da distribuição do capital específico de autoridade jurídica, os seus juízos, que se inspiram numa lógica e em valores muito próximos dos que estão nos textos submetidos, têm uma função de invenção. (BOURDIEU, 2002, p. 222-223)

A discricionariedade conferida ao magistrado não pode ser confundida com o arbítrio – o parâmetro confiável que se cobra do juiz é o de que sua decisão esteja fundada em bases sólidas de teoria e de regras jurídicas expostas no sistema jurídico, além de, sempre que necessário, visar aos princípios. O Direito Penal é o campo mais acirrado da área jurídica, justamente, por envolver a liberdade de um cidadão, o que impossibilita o juiz de fazer a interpretação arbitrária das leis e de utilizar seu capital específico de autoridade jurídica para inventar o direito conforme suas posições particulares.

que podem substituir a prisão, o que, teoricamente, atenuaria os problemas do sistema carcerário brasileiro. Além disso, reza o art. 93, inc. IX, da Constituição Federal de 1988, que as decisões judiciais deverão ser fundamentadas. Assim, o garantista Luigi Ferrajoli assinala: “é por força da motivação que as decisões judiciárias resultam apoiadas, e portanto, legitimadas, por asserções, enquanto tais verificáveis e falsificáveis ainda que de forma apropriada” (2002, p. 497). Conforme mandamento da ordem jurídico-constitucional vigente, as decisões judiciais devem ser fundamentadas, mas a cultura judiciária nacional é divergente, o que contribui demasiadamente para o quadro de estado de coisas inconstitucional, de forma a 247

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De acordo com o Código de Processo Penal, art. 319, há variadas formas de punição


afastar o garantismo penal e a provocar ainda mais violência na sociedade. E, se o juiz cometer algum equívoco ao fundamentar judicialmente uma decisão sobre o meio de punição para certo cidadão, tal proferimento possui potencial para ser corrigido por um tribunal. O STF optou por indeferir a alínea a, ao afirmar, por maioria, que a fundamentação das decisões judiciais já decorre de mandamento constitucional. No entanto, como assevera o ministro Luiz Fux, o comando já consta no ordenamento jurídico, mas os magistrados não o cumprem. Dessa maneira, a Suprema Corte, que deveria levar a rigor seu eminente papel de guardiã da Constituição Federal de 1988, equivocou-se ao não emitir uma medida pedagógica e determinar que as decisões judiciais deveriam ser motivadas acerca do âmbito citado. Ainda, pelo mesmo argumento que foi negada a alínea a, a c, também indeferida, não deveria ter sido, visto que há desvinculação, no caso, do juiz à norma. Aqui, portanto, torna-se válido o argumento do ministro Luiz Fux, com vista a proferir uma medida pedagógica de cumprimento das leis vigentes, já que estas estão sendo postergadas, mas a tese não foi aderida pela maioria dos ministros. De modo semelhante, os direitos elencados no art. 9.3 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos e no art. 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos também merecem respeito, pois os ritos legais para a recepção constitucional foram cumpridos, o que impede o arbítrio judicial em escolher quais pontos do ordenamento jurídico pretende cumprir, pois a audiência de custódia é garantia básica do acusado. Há, certamente, quantidade inadequada de magistrados no Poder Judiciário, proporcionando certa ineficiência nos tribunais. Entretanto, o acusado não pode arcar com uma deficiência do Estado, que se estende para os tribunais do Poder Judiciário, porque que é direito consagrado do acusado a audiência de custódia em prazo determinado – o que possibilitou ao STF acatar a medida solicitada na alínea b. Faz-se necessário citar a importância da consideração dos direitos humanos para tratar o estado de

sistema carcerário que Cezar Roberto Bitencourt ressalta:

Nos últimos tempos houve significativo aumento da sensibilidade social em relação aos direitos humanos e à dignidade do ser humano. A consciência moral está mais exigente nesses temas. Essa maior conscientização moral não tem ignorado os problemas que a prisão apresenta e o respeito que merece a dignidade dos que, antes de serem criminosos, são seres humanos. (2018, p. 183-184)

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coisas inconstitucional. E é por razão de dá-los um status imprescindível no concernente ao


Assim, diante do quadro conturbado apresentado na ADPF 347, seria cabível e preciso que a alínea d fosse deferida. É impreterível que a mensagem de respeito aos direitos humanos ressoe na sociedade e, no caso aqui explicitado, nos magistrados. Estes são responsáveis por observar o princípio da proporcionalidade da pena e as condições das prisões pátrias, pois é importante a aplicação de outras formas de punição do indivíduo que comete um ilícito penal, observado o princípio da proporcionalidade, componente do garantismo penal. O abrandamento das regras dos requisitos temporais para os benefícios dos presos seria um meio plausível para cumprir a Constituição Federal de 1988, visto que o acusado não deve sofrer pena mais grave da qual foi imposta, trata-se da proporcionalidade da sanção, o que faria ser correta a aprovação da alínea e. No entanto, levando-se em conta que as regras acerca dos benefícios fossem abrandadas, não justificaria acatar a alínea f, justamente por decorrer da medida requerida anteriormente e já constar como meio justo para atingir os fins constitucionais. E, por consequência, a alínea g, sendo aprovada em menor extensão, de maneira a não ser considerado o requerimento f, obedeceria aos moldes da e. Assim, o CNJ coordenaria mutirões carcerários, com o intuito de revisar os procedimentos de prisão no país, podendo-se adequar, quando necessário, ao conteúdo emitido no item e, visto o quadro caótico de estado de coisas inconstitucional. Acerca do requerimento h, a judicialização da questão justifica-se exatamente pelo objeto da ação, que é de descumprimento de preceitos fundamentais. Assim, Daniel Sarmento menciona que:

[...] o Poder Judiciário tem um papel essencial na concretização da Constituição brasileira. [...], o ativismo judicial se justifica no Brasil, pelo menos em certas

do funcionamento da própria democracia (2011, p. 101-102)

Deve ser de responsabilidade de todos os poderes constituídos a avaliação da efetividade dos direitos fundamentais. Quando há abusos acerca destes por um poder político, o Judiciário possui o papel de, em acordo com a Constituição Federal de 1988, intervir. Assim, Canotilho (2000) assegura que os direitos fundamentais cumprem a função de direitos de defesa dos cidadãos sob uma perspectiva dupla: (1) constituem, num plano jurídicoobjetivo, normas de competência negativa para o Poder Público, proibindo fundamentalmente

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searas, como a tutela de direitos fundamentais, a proteção das minorias e a garantia


as ingerências destes na esfera jurídica individual; (2) implicam, num plano jurídicosubjetivo, o poder de exercer positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões do Poder Público, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos (liberdade negativa). Por fim, poderia ser questionado se indivíduos presos merecem ser defendidos através dos direitos humanos. Lynn Hunt assegura que “os direitos humanos requerem três qualidades encadeadas: devem ser naturais (inerentes nos seres humanos), iguais (os mesmos para todo mundo) e universais (aplicáveis por toda parte)” (HUNT, 2009, p. 19) – o que configura sua natureza fundamental para a estrutura de uma sociedade politicamente organizada.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Seguindo os rituais constitucionais de tais direitos, uma democracia, para ser plena e fazer justiça ao seu nome, deve garantir a todos a efetividade da norma constitucional no que tange à dignidade da pessoa humana, pois os direitos fundamentais são, literalmente, fundamentais para uma democracia consolidada e respeitada, não apenas no papel, mas na realidade social. Assim, há um descompasso entre teoria constitucionalizada e prática, pois a realidade social do sistema penitenciário nada tem a ver com os direitos adquiridos durante duras lutas históricas – os quais são sonegados nestes ambientes que violentam a dignidade humana de inúmeras maneiras. Configura-se, então, uma ameaça gravíssima à ordem constitucional, à segurança jurídica e à democracia brasileira.

controle de constitucionalidade, visando à fiscalização das ações e omissões do Poder Público frente aos direitos humanos, expressos no bloco constitucional. Assim, coíbe-se que o Executivo se omita de suas responsabilidades de âmbito garantista, para com a efetividade dos direitos e garantias fundamentais.

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Demonstra-se imprescindível a atuação dos órgãos jurisdicionais competentes para o


REFERÊNCIAS

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral 1. 24. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 5. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2000.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

HUNT, Lynn. A invenção dos direitos humanos: unia história. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pósmodernidade. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2000.

SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. 7. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.

SARMENTO, Daniel. O neoconstitucionalismo no Brasil: riscos e possibilidades. In: FELLET, André Luiz Fernandes; PAULA, Daniel Giotti de; NOVELINO, Marcelo (Org.). As

UNGER, Roberto Mangabeira. O Direito na sociedade moderna: contribuição à crítica da teoria social. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.

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novas faces do ativismo judicial. Salvador: JusPodivm, 2011. p. 73-113.


THE

UNCONSTITUTIONAL

STATE

OF

AFFAIRS

IN

THE

BRAZILIAN

PENITENTIARY SYSTEM AND THE ADPF 347

ABSTRACT Through the Claim of Non-compliance with a Fundamental Precept (ADPF) nยบ347, this article aims to discuss about the unconstitutional state of affairs in the brazilian penitentiary system. Thus, the systematic problem of unconstitutionality of the brazilian prisons is addressed through a qualitative and bibliographical research. The present perspective, therefore, implies a search for the effective fulfillment of the fundamental rights supported by the Constitution and other laws. For the improvement of state functions, it is necessary to think about the reconstruction of its structures in order to transform social reality through the meaning of the Constitution. Keywords: Unconstitutional state of affairs. Penitentiary system.

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Fundamental rights.

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A RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DO ESTADO: UMA ANÁLISE DO INSTITUTO NO DIREITO BRASILEIRO Renata Grazielle Ferrão Marques1

RESUMO Este trabalho estuda a Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado, analisando as teorias que serviram como norte na evolução histórica do instituto, bem como as mudanças legislativas que foram surgindo até se delinear nos moldes atuais. Além disso, observa-se as teorias atualmente adotadas pela Constituição e pela doutrina e, igualmente, a questão dos pressupostos da responsabilidade civil e de suas excludentes. Palavras-chave: Administração pública. Responsabilidade civil

1

Pós-graduanda em Direito Processual pelo Centro Universitário do Rio Grande do Norte (UNI-RN). Bacharela em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Advogada no Escritório José Delgado & Dutra.

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extracontratual do Estado. Danos morais.


1 INTRODUÇÃO É indiscutível que, nos tempos atuais, enfrenta-se diversos tipos de riscos, criados, sobretudo, em razão do grande avanço científico e tecnológico que vem ocorrendo na sociedade, sendo esta a razão de se ter convencionado denominá-la de sociedade de risco, conforme Beck (2006, p. 18). É de se ter em mente que a referida expressão está ligada não somente ao aumento das situações de risco, mas também diante da interferência da sociedade na criação de novas conjunturas entendidas como potencialmente geradoras de risco, em especial, as advindas do avanço tecnológico e das fortes intervenções no meio ambiente. Assim, pode-se realçar, como ponto desencadeador da qualificação das sociedades contemporâneas como sociedades de risco, a questão da velocidade em que se processam as rotinas das pessoas e o crescente progresso tecnológico, que termina por desencadear uma rápida obsolescência dos objetos produzidos e consumidos. Vindo, por vezes, a causar acidentes, além da questão da violência, dos riscos causados por transportes, etc. A existência de tais riscos é observada tanto em relações privadas, quanto nas relações que são travadas pelo Poder Público, mormente naquelas entre os particulares e o Estado, tendo em vista a ampla escala em que elas se processam. Nessa perspectiva, entende-se que a noção de responsabilidade está diretamente atrelada a tais riscos, haja vista o fato de se estar sujeito a eventuais danos que possam se originar em função de tais ameaças, que, por sua vez, demandam a devida reparação por parte do agente causador, como reflexo da justiça social. Tendo isso em vista, não se pode olvidar que a responsabilidade civil extracontratual do Estado é um instituto muito caro ao ordenamento pátrio, exatamente pelo fato de ser a ente estatal ou de seus servidores no exercício de suas funções. Com isso, busca-se compreender, neste artigo, a sistemática da responsabilidade civil extracontratual do Estado no ordenamento brasileiro, levando em consideração as nuances que a permeiam, desde a sua evolução histórica até os dias atuais no contexto externo, e, sobretudo, no âmbito do Brasil. Inclusive, considerar-se-á as teorias que exerceram influência e contribuíram para que o instituto se desenvolvesse nos moldes que hoje se conhece. Além disso, intenta-se perscrutar acerca dos seus pressupostos e das suas excludentes. Convém destacar, ainda, que este trabalho utilizará uma metodologia teóricodescritiva, especialmente, na modalidade bibliográfica, tanto em meios impressos, quanto em 254

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partir dela que os cidadãos podem buscar a reparação pelos danos causados a eles por parte do


suportes eletrônicos. Também, far-se-á estudo da legislação pátria, da mesma forma, haverá apreciação das ideias difundidas na doutrina, especialmente a nacional, e na jurisprudência conexa à temática.

2 A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO A responsabilidade civil, conforme Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona Filho (2017, p. 855), pode ser conceituada como instituto que se origina a partir da inobservância e consequente violação de um dever originário, decorrendo disso, uma obrigação sucessiva cujo intuito é a reparação dos eventuais danos sofridos. Assim, a compreensão do termo responsabilidade, em âmbito jurídico, faz pressupor a existência de uma obrigação anterior que foi descumprida. Essa ideia de quebra de um dever sucessivo advém, inclusive, da própria etimologia da palavra responsabilidade, que deriva do vocábulo latino spondere, cujo significado é garantir, prometer algo. Uma vez conceituada a responsabilidade civil em sua acepção mais ampla, faz-se mister para o entendimento deste trabalho explicar o conceito de responsabilidade civil do Estado. Percebe-se que a responsabilidade civil do Estado diz respeito, consoante o entendimento de Marcelo Rebelo de Souza e André Salgado Matos (2008, p. 11), ao encargo que os entes da Administração Pública possuem em indenizar os prejuízos por eles causados (ou por seus agentes), quando do exercício de suas atividades. Em semelhante raciocínio, Marçal Justen Filho (2018, p. 1238) conceitua a responsabilidade civil do Estado como obrigação que surge de uma ação ou omissão antijurídica imputável ao Estado, fazendo existir o dever de indenizar os terceiros pelos danos Observe-se que, neste artigo, será analisada apenas a modalidade extracontratual da responsabilidade civil do Estado – decorrente da violação de um dever legal, por meio da prática do que se considera ato ilícito, que ocorre quando são desrespeitados os direitos de outrem –, haja vista que a responsabilidade civil contratual do Estado é embasada em princípios próprios atinentes aos contratos administrativos. Desse modo, faz-se necessário entender, conforme explica Maria Sylvia Di Pietro (2016, p. 789-790), que diversamente do que acontece na seara do Direito Privado, a responsabilização estatal pode se dar não só a partir de condutas contrárias ao Direito que causem danos (ilícitas), mas também a partir de condutas lícitas: 255

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materiais e morais sofridos.


Ao contrário do direito privado, em que a responsabilidade exige sempre um ato ilícito (contrário à lei), no direito administrativo ela pode decorrer de atos ou comportamentos que, embora lícitos, causem a pessoas determinadas ônus maior do que o imposto aos demais membros da coletividade. Pode-se, portanto, dizer que a responsabilidade extracontratual do Estado corresponde à obrigação de reparar danos causados a terceiros em decorrência de comportamentos comissivos ou omissivos, materiais ou jurídicos, lícitos ou ilícitos, imputáveis aos agentes públicos.

É importante ter em mente que a responsabilidade civil do Estado se norteia por princípios próprios, diversos daqueles que embasam a responsabilidade civil no seu contexto privado, haja vista que as situações ensejadoras de danos, são distintas e, por vezes, mais intensas. Nesse sentido, Bandeira de Mello (2010, p. 997) explica: Com efeito: seja porque os deveres públicos do Estado o colocam permanentemente na posição de obrigado a prestações multifárias das quais não se pode furtar, pena de ofender o Direito ou omitir-se em sua missão própria, seja porque dispõe do uso normal de força, seja porque seu contato onímodo e constante com os administrados lhe propicia acarretar prejuízos em escala macroscópica, o certo é que a responsabilidade estatal por danos há de possuir fisionomia própria, que reflita a singularidade de sua posição jurídica. Sem isto, o acobertamento dos particulares contra os riscos da ação pública seria irrisório e por inteiro insuficiente para resguardo de seus interesses e bens jurídicos.

Com isso, não é difícil perceber que diante do fato de o Estado resguardar os direitos ofender os bens jurídicos que as desenvolvidas pelos particulares, necessitando assim, de uma proteção diferenciada e que assegure aos cidadãos seus interesses e direitos.

3 TEORIAS DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO A noção de responsabilidade civil do Estado, tal qual se conhece hoje, foi fruto do desenvolvimento de diversas teorias que surgiram na tentativa de explicar e conceituar o

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e garantias fundamentais, as atividades por ele exercidas acabam por trazer maiores riscos de


instituto. Nesse sentido, é fundamental analisar a evolução delas para ter uma compreensão mais apurada do instituto da responsabilidade civil do Estado atualmente. É importante lembrar que nem sempre o Estado foi responsável pelos danos que causava. No período absolutista, imperava a ideia de irresponsabilidade do Estado, consagrada nas seguintes frases: Le roi ne peut mal faire (o rei não pode agir mal) e The king can do no wrong (o rei não pode errar), remontando a noção de soberania inquestionável à época existente, pois, se havia a compreensão de que responsabilizar o Estado, seria como nivelar o monarca ao mesmo patamar de um súdito, situação impensável naquele contexto, tendo em vista que resultaria em desrespeito e desmoralização da autoridade do rei. Ocorre que, pouco a pouco, as ideias foram mudando. Passou-se a questionar e entender que manter o Estado irresponsável configuraria uma grande injustiça àqueles que fossem lesados pelo exercício das atividades estatais. Essa noção de irresponsabilidade quedou ultrapassada no século XIX, quando se passou a admitir que houvesse alguma responsabilização dos danos relacionados às atividades estatais, desde que provada a culpa, acolhendo-se as teorias civilistas que se baseavam nesse elemento. Convém dizer que a responsabilidade decorrente dos danos provocados na realização das atividades estatais era, em um primeiro momento, atribuída aos funcionários causadores dos prejuízos, cuja reparação era paga com seu patrimônio, pois o erário não podia ser atingido pelas indenizações. No entanto, de acordo com Cavalieri Filho (2014, p. 283), se o patrimônio do funcionário fosse insuficiente, a reparação restava frustrada, dada a sua insolvência. Isto ocorria porque se tinha a noção de que o Estado e seus funcionários seriam sujeitos distintos, e, por isso, os atos do agente não obrigavam o Estado. A justificação que havia para a responsabilização única dos funcionários estatais se chamava de atos de império, quanto atos de gestão. No que atine aos primeiros, compreendiase por de império aqueles revestidos por todas as prerrogativas e privilégios soberanos, enquanto os atos de gestão diziam respeito aos atos praticados em condições de igualdade com os particulares, no controle de serviços e do patrimônio. Embora as teorias civilistas tenham servido como norte para a responsabilidade civil do Estado durante certo período, à medida que novos estudos foram se desenvolvendo nessa matéria, elas já não eram suficientes para explicá-la. A noção de culpa individual contida nas teorias civilistas chegou a não conseguir mais suprir essas demandas, pois passou-se a compreender que a culpa não era exatamente de 257

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dava pelo fato de que o Estado, na realização de suas atividades, praticava tanto o que se


determinado funcionário, mas sim decorrente das falhas ou mau funcionamento dos serviços prestados pelo ente estatal. Nesse sentido foi que se desenvolveu a primeira teoria publicista: a teoria da culpa anônima, ou faute du service. Para essa corrente, a culpa deixava de ser atrelada a determinado funcionário, vinculando-se à noção de que haveria responsabilidade estatal pelas meras falhas, mau funcionamento ou funcionamento retardado do serviço público. É importante deixar claro que essa modalidade não se trata de responsabilidade objetiva, mas sim subjetiva, pois ainda remanesce a ideia de culpa, não sendo determinada apenas em razão de um nexo de causalidade. Porém, é preciso lembrar que a culpa não está ligada a uma pessoa determinada, e, por vezes, é presumida, dada a dificuldade que se haveria para a vítima provar que o dano sofrido adveio da atuação estatal, transferindo esse ônus ao Estado, o qual passou a ter que se desincumbir do dano que supostamente provocou, demonstrando que não teve culpa. Nesse ínterim, percebe-se que se costuma reputar que o marco da responsabilização estatal surgiu na França, em 1873, com o Caso Blanco, ou arrêt blanco, julgado pelo Conselho de Estado. Tal evento diz respeito à Agnès Blanco, uma garota de cinco anos, que foi atropelada por um vagonete pertencente a uma empresa estatal de manufatura de tabaco de Bordeaux, que saiu do estabelecimento subitamente, deixando a menina gravemente ferida, cuja perna foi amputada em virtude do acidente. O pai de Agnès, inconformado, levou a questão a juízo a fim de que restasse decidido que o Estado era responsável por indenizar os danos causados à menina. Este caso foi de suma importância, pois serviu de divisor de águas, uma vez que o Tribunal de Conflitos firmou a competência do Conselho de Estado para julgar as demandas de danos causados a particulares pelo Estado, visto que foi reconhecida existência de João Caupers (2009, p. 322) explica que o desenvolvimento da responsabilidade civil do Estado é sustentado por três razões: Foram três os principais factores que determinaram a evolução no sentido da responsabilização do Estado: a) A consolidação e aprofundamento do princípio da legalidade; b) Os reflexos das concepções organicistas no enquadramento jurídico da relação entre o Estado e o funcionário, que acarretaram a susceptibilidade de imputação aos entes públicos dos danos emergentes dos actos ilegais materialmente praticados pelos seus funcionários, solução mais adequada à necessidade de garantir

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princípios autônomos, diversos dos que pautam o direito privado nessa disciplina.


efetivamente o regular exercício do poder público; c) O alargamento da intervenção económica, social e cultural do Estado.

Assim sendo, faz-se mister assimilar que a concepção de responsabilidade civil do Estado evoluiu no sentido de que a culpa seria um elemento dispensável, ainda que considerada na modalidade da culpa anônima. Essa mudança ocorreu, sobretudo, com fins de se ampliar a atribuição do ônus de reparar os danos causados na realização de suas atividades. Posto que se havia chegado ao entendimento de que o Poder Público deveria responder pelos danos por ele causados. Bastando, para tanto, existir nexo causal entre o prejuízo e a conduta, consagrando então, a responsabilidade civil objetiva, fundada na teoria do risco administrativo. Tal modificação de entendimento ocorreu diante das transformações sociais advindas das inovações tecnológicas e novas formas de trabalho, pois, com elas, tornou-se mais frequente a ocorrência de acidentes que acarretavam danos injustos e terminavam por ensejar na incapacidade de muitas vítimas, que ficavam com dificuldades de conseguir provar culpa. Assim, considera-se que a objetivação da responsabilidade civil é fruto da influência do conteúdo valorativo das normas principiológicas (sobretudo o princípio da legalidade) nas normas de direito privado, haja vista o ideal de solidariedade, dignidade e igualdade, em face da individualidade dos particulares que prevalecia anteriormente. Dessa forma, observa-se que teoria do risco administrativo se baseia na teoria do risco criado, entendendo-se que quem desenvolve uma atividade capaz de gerar riscos deve ser responsável por reparar os danos que eventualmente decorram da realização desses serviços causados aos demais indivíduos. Por analogia, chegou-se à conclusão de que a atividade realizada pela Administração Pública, por si, é criadora de riscos aos administrados, e, que tais riscos podem vir a ensejar teoria do risco administrativo. Faz-se mister registrar, que o Estado se torna responsável pela reparação dos danos causados a partir da realização de suas atividades, porque deve garantir segurança aos administrados. Assim, quando essa incolumidade não é garantida, faz surgir para as vítimas o direito de serem indenizadas de modo independentemente de culpa. Tal pensamento foi norteado a partir dos princípios da equidade e da igualdade na distribuição dos compromissos sociais, porquanto, o fundamento maior da responsabilidade é a ideia de Estado de Direito. 259

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danos, seja pelo funcionamento normal ou anormal de tais serviços, caracterizando assim, a


Nessa mesma linha de raciocínio, Cavalieri Filho (2014, p. 287) explica que: Em apertada síntese, a teoria do risco administrativo importa atribuir ao Estado a responsabilidade pelo risco criado pela sua atividade administrativa. Esta teoria, como se vê, surge como expressão concreta do princípio da igualdade de dos indivíduos diante dos encargos públicos. É a forma democrática de repartir os ônus e encargos sociais por todos aqueles que são beneficiados pela atividade da Administração Pública. Toda lesão sofrida pelo particular deve ser ressarcida, independentemente de culpa do agente público que a causou. O que se tem que verificar é, apenas, a relação de causalidade entre a ação administrativa e o dano sofrido pelo administrado.

A outra teoria que trata da responsabilidade civil do Estado, também na modalidade objetiva, é a do risco integral. Nesta teoria, o criador dos riscos responde pelos danos sofridos ainda que eles não decorram da realização das atividades. Assim, basta o exercício de determinadas atividades consideradas potencialmente danosas para haver reparação, na eventualidade de um dano. Por esse motivo é que tal teoria se resguarda a situações excepcionais. É importante perceber que a distinção entre esta teoria e a do risco administrativo se dá no fato de que nessa última a responsabilidade civil pode vir a ser elidida, desde que provada a existência de algum dos excludentes da responsabilidade civil: a) fato exclusivo da vítima; b) o fato de terceiro e c) o caso fortuito e a força maior. Enquanto a teoria do risco integral não comporta qualquer excludente.

4 A EVOLUÇÃO DA RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DO

A responsabilidade civil do Estado, no Brasil já independente, desenvolveu-se sem passar pela fase da irresponsabilidade. Tal afirmativa se justifica a partir do texto da primeira constituição do país, a Constituição do Império de 1824, que já consagrava em seu artigo 179, inciso XXIX2, a ideia de responsabilidade civil por parte dos funcionários, quando estes causavam danos por meio de ação ou omissão no exercício de suas funções.

2

BRASIL. Constituição (1824). Rio de Janeiro. Disponível <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao24.htm>. Acesso em: 10 maio 2019.

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em:

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ESTADO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO


No entanto, embora houvesse a previsão de responsabilidade para os funcionários estatais, é de se perceber que a figura do Imperador era considerada inatingível, sob a qual não poderia recair qualquer responsabilização. Conforme o artigo 99 da Constituição do Império de 1824, era prevista a inviolabilidade e imunidade do Imperador. A Constituição de 1891, a primeira após a proclamação da República, caminhava na mesma direção de sua antecessora, atribuindo responsabilidade ao funcionário do Estado, conforme se observa do artigo 823 da Constituição de 1891. Sérgio Cavalieri (2014) considera que, embora não houvesse, nas primeiras constituições brasileiras, dispositivos que tratassem exclusivamente da responsabilidade civil do Estado, não significava, por isso, que o Estado seria considerado irresponsável e o encargo de indenizar seria atribuído tão somente aos seus funcionários que provocassem danos no exercício de seus ofícios. Mas sim, que a interpretação dada era no sentido de que ambos eram solidariamente responsáveis pelos prejuízos causados pelos agentes estatais, necessitando, para tal, que houvesse prova da culpa. No plano infraconstitucional, o primeiro diploma a versar diretamente acerca da responsabilidade civil do Estado foi o Código Civil de 1916, em seu artigo 154 abaixo transcrito. Observe-se que, cronologicamente, o Código Civil de 1916 entrou em vigor entre a vigência da primeira Constituição da República e a Constituição de 1934. As pessoas jurídicas de Direito Público são civilmente responsáveis por atos dos seus representantes que nessa qualidade causem danos a terceiros, procedendo de modo contrário ao Direito ou faltando a dever prescrito por lei, salvo o direito regressivo contra os causadores do dano.

A modalidade adotada da responsabilidade era a subjetiva, baseada nas teorias Cavalieri Filho (2014, p. 289) explica que a redação do dispositivo deu margem a interpretações no sentido de que o diploma civil estaria acolhendo a modalidade objetiva da responsabilidade civil do Estado: É preciso que se diga, entretanto, que, ainda na vigência do art. 15 do Código Civil de 1916, alguns autores, valendo-se da já mencionada ambiguidade da sua redação, 3

BRASIL. Constituição (1891). Rio de Janeiro. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constituicao91.htm>. Acesso em: 10 maio 2019. 4 BRASIL. Lei nº 3071, de 1 de janeiro de 1916. (Vide alterações) Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Código Civil. Rio de Janeiro, RJ, 1 jan. 1916.

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civilistas. Nesse sentido, o funcionário público era enxergado como preposto do Estado.


começaram a sustentar a tese da responsabilidade civil objetiva do Estado, inspirados nas ideias que prevaleciam na França e em outros países europeus. Destacam-se, nesse período, os nomes de Rui Barbosa, Pedro Lessa, Amaro Cavalcante e outros. Em luminosos votos, proferidos no Supremo Tribunal Federal, os Mins. Orozimbro Nonato e Filadelfo Azevedo esboçaram nitidamente o alcance da teoria do risco administrativo. De onde se conclui, que, também entre nós, a responsabilidade objetiva do Estado chegou primeiro à jurisprudência, para depois se transformar em texto legal.

A Constituição de 1934 já previa expressamente no seu artigo 1715 e parágrafos a ideia de solidariedade na responsabilização entre o funcionário e o Estado pelos danos causados aos particulares no exercício de suas funções. É importante notar que tal Constituição não havia se desvencilhado da responsabilidade subjetiva, necessitando ainda de prova da culpa, consoante se denota do § 2º do artigo em questão. A Constituição de 1937, outorgada por Getúlio Vargas, que vigorou durante o período do Estado Novo, conforme explicou João de Oliveira (2001, p. 97-98), não trouxe modificações em matéria de responsabilidade civil do Estado. Pois, basicamente, repetiu o texto da constituição anterior, suprimindo os parágrafos de natureza processual. A Constituição de 1946 possui grande importância no que atine à matéria de responsabilidade civil, pois foi a partir dela que se consagrou a responsabilidade civil do Estado em sua modalidade objetiva em seu artigo 1946, tal qual conhecemos. Assim, o elemento culpa se tornou dispensável para haver a responsabilização do Estado, necessitando de prova, tão somente, na ação de regresso contra o funcionário causador do dano, prevista no parágrafo único do referido artigo. Cumpre perceber que, do mesmo modo que no Código Civil de 1916, não se tratou da responsabilidade das pessoas físicas e jurídicas de direito privado prestadoras de serviço direito privado, com a responsabilidade civil subjetiva, pautada na ideia de prova da culpa. Quanto às Constituições do período do Regime Militar, respectivamente a Constituição de 1967 e Constituição de 1969, nada foi alterado. Nesse sentido, explica Di Pietro (2016 p. 795):

5

BRASIL. Constituição (1934). Rio de Janeiro. Disponível <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constituicao34.htm>. Acesso em: 10 maio 2019. 6 BRASIL. Constituição (1946). Rio de Janeiro. Disponível <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao46.htm>. Acesso em: 10 maio 2019.

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em: em:

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público. Diante disso, depreende-se que para essas pessoas deveria se manter o regime de


A Constituição de 1967 repete a norma em seu artigo 105, acrescentando, no parágrafo único, que a ação regressiva cabe em caso de culpa ou dolo, expressão não incluída no preceito da Constituição Anterior. Na Emenda nº 1, de 1969, a norma foi mantida no artigo 107.

Já a Constituição de 5 de outubro de 1988, vigente no Brasil, consagrou a responsabilidade civil do Estado no Capítulo VII, que trata da Administração Pública, em seu artigo 37, § 6º. Definindo que, tanto as pessoas jurídicas de direito público, como as pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público devem responder perante os danos causados por seus agentes a terceiros, de maneira objetiva. É importante a ressalva feita no sentido de que é necessária a prova de culpa ou dolo na ação regressiva do Estado contra o responsável, estabelecendo que nessas demandas a responsabilidade é subjetiva. Com isso, é possível verificar que tal dispositivo seguiu os moldes da responsabilidade objetiva para o Estado, legitimada em nosso ordenamento desde a Constituição de 1946, conforme já destacado, inovando apenas no sentido de que dispôs o mesmo regime de responsabilização para as pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos, que o fazem por meio de concessão ou permissão. João de Oliveira (2001, p. 101-102) explica que estender essa responsabilização às pessoas jurídicas de direito privado foi uma justa consequência, haja vista o fato de que elas gozam em sua atuação das mesmas condições e benefícios que o Poder Público, devendo, por conseguinte, arcar com os mesmos encargos. Destaque-se também, que a teoria do risco administrativo foi adotada pela Constituição de 1988, tendo em vista que a ideia de reparação se encontra vinculada à de dano causado pelo agente prestador de serviço público no exercício de suas funções. existência de nexo causal entre o prejuízo e a conduta, contando com a possibilidade de ser elidida, se o dano houver se originado por caso fortuito, força maior, fato exclusivo da vítima ou fato de terceiro. Nessa esteira, destaca Cavalieri Filho (2014, p. 289): O exame desse dispositivo revela, em primeiro lugar, que o Estado só responde objetivamente pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros. A expressão seus agentes, nessa qualidade, está a evidenciar que a Constituição adotou expressamente a teoria do risco administrativo como fundamento da

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É relevante considerar, que nessa teoria, a responsabilidade fica caracterizada pela


responsabilidade da Administração Pública, e não a teoria do risco integral, porquanto condicionou a responsabilidade objetiva do Poder Público ao dano decorrente da sua atividade administrativa, isto é, aos casos em que houver relação de causa e efeito entre a atuação do agente público e o dano. Sem essa relação de causalidade, como já ficou assentado, não há como e nem por que responsabilizá-lo objetivamente.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal se harmoniza com a compreensão da doutrina majoritária em relação ao acolhimento da teoria do risco administrativo, conforme se verifica dos seguintes acórdãos AgR no AI 577908/GO7 e AgR no AI 636814/DF8. Quanto à teoria do risco integral, no ordenamento brasileiro, destaque-se que ela apenas foi adotada em matéria de Direito Ambiental, conforme o art. 225, § 3º e em caso de ocorrência danos nucleares, nos termos do art. 21, XXIII, d, ambos da Constituição de 1988. Note-se que essa teoria possui uma abrangência restrita em razão de não comportar excludentes de responsabilidade, e por isso se resguardar a situações excepcionais. Posteriormente, é interessante registrar que o Código Civil de2002 disciplinou a questão da responsabilidade civil do Estado no seu art. 43, que reproduziu a norma constante do art. 15 do diploma civil anterior. É de se salientar que tal dispositivo entrou em vigor já defasado diante do texto da Constituição de 1988, justamente por não tratar da situação das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público. Perceba-se que foi tratado nos parágrafos anteriores a respeito de como se desenvolveu o instituto da responsabilidade civil extracontratual do Estado brasileiro, dando enfoque à perspectiva atual, resguardada pela Constituição de 1988 em seu artigo 37, § 6º. Assim, foi observado que o teor do citado dispositivo denota a regra geral para os casos de responsabilidade civil que envolvem condutas comissivas por parte de seus agentes. foram delimitadas pela Constituição, ficando, com isso, ao encargo da doutrina e da jurisprudência, o que, por vezes acabou gerando controvérsias acerca dessa temática. No entanto, boa parte da doutrina compreende e sustenta que nos casos em que houve omissão por parte do Estado, o fato de não ter havido uma conduta faz levar à compreensão de que a responsabilidade civil extracontratual do estado, nesses casos, seja subjetiva, dada à ausência de ação por parte dos entes da Administração Pública. 7

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, AgR no AI 577908/GO. T2. Relator Min. Gilmar Mendes. j. 30.09.2008. DJU 20.11.2008. 8 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, AgR no AI 636814/DF. T2. Relator Min. Eros Grau. j. 22.05.2007. DJU 15.06.2007.

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Diante disso, deve-se chamar a atenção para o fato de que as condutas omissivas não


Desse modo, percebe-se que nas situações em que houver uma omissão há uma mitigação da regra de que a responsabilidade civil extracontratual do Estado é sempre objetiva. Aponta-se como consequência desse entendimento, o fato de que aquele que vier a sofrer algum dano decorrente de alguma omissão estatal terá o dever de comprovar que este dano resultou de culpa da Administração, para só assim ser indenizado. A ideia de omissão remete à existência de culpa, pelo fato de que sempre que houver omissão por parte da Administração, essa omissão necessariamente deve constituir um ato ilícito, decorrente de imprudência, imperícia ou negligência, cuja culpa precisa restar demonstrada. Em

contrapartida,

Sérgio

Cavalieri

(2014,

p.

297)

compreende

que

a

responsabilidade civil extracontratual do Estado em casos de omissão deve seguir a regra do art. 37, § 6º e ser, portanto, objetiva. O autor explica que o entendimento acerca do ato ilícito se desenvolveu de modo amplo, satisfazendo-se pela existência de uma contrariedade entre a conduta e o dever jurídico imposto pela norma. Observe-se que, a partir dessa percepção, não se faz qualquer referência ao elemento subjetivo culpa, o que findaria por haver responsabilização na modalidade objetiva, também, nesses casos de omissão. Porém, observa-se que a melhor compreensão acerca da disciplina da responsabilidade civil do Estado por condutas omissivas deve se considerar a diferenciação entre omissão genérica e omissão específica. Nessa linha, tem-se que a omissão genérica consistiria naquela em que inexiste dever individualizado de agir, e por essa razão, a responsabilidade civil do Estado deve ser omissão por parte do Estado, este deve ser responsabilizado objetivamente.

5 PRESSUPOSTOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO

Uma vez explicado o conceito e evolução histórica da responsabilidade civil do Estado, é necessário tratar dos requisitos ensejadores do instituto. Entende-se que a responsabilidade civil extracontratual do Estado se configura na presença de alguns pressupostos que a torna concreta, sendo eles: a) uma conduta (ação ou omissão); b) 265

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subjetiva. Já nos casos em que existe previsão do dever individualizado de agir e ocorre uma


normalmente ilícita (contrária ao direito); c) que ocasione dano, d) devendo este dano ser diretamente relacionado à conduta, ou seja, deve guardar nexo de causalidade. Ante o que já se explicou, sabe-se que o Estado se responsabiliza objetivamente pelos danos causados a terceiros, com base na teoria do risco. Desse modo, nos termos do já citado artigo 37, parágrafo 6º da Constituição de 1988, basta haver um dano e que ele seja decorrente de uma conduta praticada por agente estatal de pessoa jurídica pública ou privada prestadora de serviço público para que os prejuízos causados devam ser reparados. Dentre os mencionados requisitos, no que pertine ao dano, este se trata de ofensa, que pode se dar tanto na esfera patrimonial da vítima, acarretando decréscimo de seus bens, como também pode atingir a integridade moral do indivíduo lesado, ferindo seus direitos personalíssimos. Quando o dano atinge o patrimônio material do ofendido, conforme Antônio Santos (2016) ele se consubstancia em uma perda, podendo recair, efetivamente, nos recursos da vítima, caracterizando o que se convém chamar de danos emergentes. Ou, por outro lado, pode vir a recair naquilo que o ofendido deixou de aferir em virtude do prejuízo ocorrido, configurando os lucros cessantes. Quanto ao dano de natureza extrapatrimonial, mais conhecido como dano moral, diz respeito à violação aos direitos personalíssimos de um indivíduo, ou seja, à sua dignidade. Embora por muito tempo tenha se discutido sobre a questão da reparabilidade dos danos morais, em virtude de sua dificuldade de estimá-lo, hoje a reparação por danos morais é indiscutível e encontra respaldo na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, incisos V e X. Inclusive, com a Súmula 379 do Superior Tribunal de Justiça, passou-se a admitir a cumulação de indenizações por danos morais e materiais. Ainda nessa temática, cabe explicar que a ofensa capaz de configurar o dano moral causando, com isso, sérios traumas, angústias, sofrimentos e vexações na esfera psicológica da vítima. Em consequência disso, cunhou-se, por meio da jurisprudência, a expressão mero dissabor para afastar responsabilização por danos morais, quando no caso concreto, o trauma sofrido não superar aborrecimentos rotineiros. Cavalieri Filho (2014, p. 111) explica que o mero dissabor não está abarcado pelo dano moral, não havendo, assim, que se falar em indenização nesses casos, pois essas 9

BRASIL. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Súmula nº <http://www.stj.jus.br/docs_internet/SumulasSTJ.pdf>. Acesso em: 01 abr. 2019.

266

37.

Disponível

em:

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deve ser de uma magnitude que exorbite a esfera de aborrecimentos da normalidade cotidiana,


situações se encontram presentes na normalidade da vida das pessoas, seja em chateações que ocorrem no ambiente de trabalho, no trânsito ou na convivência com outras pessoas. Além disso, defende ser certo fazer essa distinção, porquanto se ela não fosse feita, estar-se-ia banalizando os danos morais. Nesse ínterim, percebe-se que é fundamental compreender a noção de dano para assimilar o modo que se processa a indenização, porquanto não se pode perder de vista que a responsabilidade civil tem como uma de suas principais funções a reparação dos danos causados. Sabe-se que esta é aferida de acordo com a extensão do dano, conforme o disposto no caput do artigo 944 do Código Civil de 2002. Em relação ao dano material, observa-se, que no geral, não se enfrenta dificuldade para quantificá-lo, haja vista que as perdas, quando não podem ser restituídas in natura (da mesma natureza), normalmente, são expressas em dinheiro. Porém, nota-se que com relação aos danos morais, sua quantificação se procede de modo distinto. Conforme foi mencionado, a temática do dimensionamento do dano moral, embora trouxesse inquietação para determinar sua fixação, observou-se que a lei estabelecia, desde o Código Civil de 1916, que a quantia fosse arbitrada pelo juiz, com base em sua prudência. Saliente-se que, de acordo com as lições de Cavalieri Filho (2014, p. 125), não se pode admitir que os danos morais se tornem uma fonte de lucro para aquele que o aufere, evitando o enriquecimento sem causa. Mas, deve suprir, tão somente, o dano experimentado pela vítima. Para que isso ocorra, é necessário que o julgador se norteie pelos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade no momento de estabelecer o valor devido dos danos morais. Não se pode olvidar que a quantia determinada deve ser suficiente para aplacar o mal experimentado pela vítima, considerando o poder econômico do causador do dano, visto que a servir até como punição em desfavor daquele que com seu agir prejudicou terceiros. O Superior Tribunal de Justiça, visando aplacar as possíveis dificuldades no arbitramento de danos morais, estabeleceu padrões de indenizações para nortear os magistrados e tribunais locais no momento de fixar e revisar essas reparações extrapatrimoniais. Essas decisões do STJ são pautadas em critérios objetivos, chamado de método bifásico, conforme notícia do Superior Tribunal de Justiça (2016, p. de internet). Nessa divisão, é dada em sua primeira fase a indenização em um valor inicial, respeitando os interesses jurídicos da vítima e considerando o que foi julgado em situações semelhantes. No 267

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indenização tem um viés pedagógico de desestimular a prática de condutas danosas, além de


segundo momento, parte-se para determinação definitiva da quantia indenizatória, avaliando então, as especificidades do caso concreto para, com isso, fixar o valor final. Esses critérios determinados pelo STJ têm por fim mitigar a questão da subjetividade que permeia as decisões que fixam danos morais, além de se buscar evitar excessos ou valores diminutos em relação a cada caso concreto.

6 EXCLUDENTES DA RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DO ESTADO Foi explicado anteriormente que o ordenamento brasileiro adotou a teoria do risco administrativo para a questão da responsabilidade civil do Estado consagrada no artigo 37, § 6º da Constituição de 1988. Nesse sentido, destaca-se como consequência da aplicação desta teoria o fato de que a necessidade de reparação por parte do Estado se verifica desde que presentes o dano e a relação de causalidade entre o prejuízo ocorrido e a conduta estatal. Assim, embora não seja levada à discussão a existência de culpa nessa modalidade de responsabilização, o Estado pode vir a se eximir da reparação dos danos causados se demonstrar que não deu causa à lesão, ou seja, que o nexo causal entre o dano e a conduta foi rompido. Pois, se não há relação entre a conduta e o prejuízo, não há que se falar em responsabilidade, já que o nexo de causalidade é pressuposto para existir a responsabilidade civil do Estado. Define-se como capazes de suprimir a responsabilização do Estado, uma vez que afastam o nexo causal: o fato exclusivo da vítima, o fato de terceiro e o caso fortuito e a força É fácil compreender o modo pelo qual o fato exclusivo da vítima consiste em excludente de responsabilidade civil do Estado, haja vista que não há como imputar reparação a pessoa diversa daquela que, apenas com sua conduta, deu causa aos danos sofridos. Conforme elucida Cavalieri Filho (2014, p. 86), nas situações que geram culpa exclusiva da vítima, há um agente que aparenta ser o causador do dano, enquanto na realidade é apenas uma simples ferramenta para ocasionar o prejuízo. Quanto ao fato exclusivo de terceiro, é importante que se entenda que, nesses casos, o agente causador do dano é um sujeito diverso da vítima e do suposto responsável.

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maior.


Não se pode perder de vista que o fato exclusivo de terceiro necessita ser inteiramente capaz de romper com o nexo causal entre a conduta do agente aparente e da vítima, caracterizando-se por ser independente, imprevisível e inevitável. Por isso, concorda-se com a opinião do citado autor de que o Estado não pode ser, em todo e qualquer caso, responsabilizado por atos predatórios de terceiros, tais quais assaltos em via pública, em transportes ou por saques em estabelecimentos comerciais, pois embora tenha o dever de manter a ordem e a segurança, não se trata de garantidor universal para toda e qualquer hipótese, salvo se ficar nitidamente demonstrado que em determinada situação concreta houve omissão por parte do Poder Público. Com relação às excludentes denominadas de caso fortuito e força maior, é interessante compreender que parte da doutrina não se preocupa em distingui-las. Porém, cabe dizer que uma diverge da outra pelo fato de a força maior, que normalmente se trata de um fenômeno da natureza, é dotado de previsibilidade, graças às tecnologias atualmente disponíveis, porém, costuma ser irresistível, incontrolável, pelo ser humano. Ao passo que o caso fortuito é resistível, contudo, imprevisível. Ressalta-se a importância de perceber a diferença conceitual de fortuito externo e fortuito interno. Sabe-se que ambos, conforme explicado, são imprevisíveis. No entanto, o fortuito externo diz respeito a situações que não possuem relação intrínseca com a atividade desenvolvida, enquanto o fortuito interno, já consistiria em circunstância inerente ao serviço executado. Desse modo, a consequência que existe nessa diferenciação é que, nos casos de fortuito externo, por não ser parte imanente ao ofício executado, é possível exonerar-se da responsabilidade civil nessas hipóteses, o que não ocorreria com o fortuito interno, haja vista

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS A responsabilidade civil extracontratual do Estado se faz presente ao longo de toda história constitucional no Brasil e, desde o princípio, não se vislumbrou completa irresponsabilidade por parte do ente estatal, embora nesse contexto a responsabilidade fosse atribuída a um funcionário que respondia perante os danos causados com o seu patrimônio. Entendeu-se que o instituto evoluiu da responsabilidade subjetiva, baseada na ideia de culpa, primeiramente conforme as teorias civilistas passando a uma noção de culpa 269

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o dever de se precaver perante os riscos atrelados aos serviços públicos.


anônima que fosse imputada à Administração Pública, tendo em vista os riscos inerentes às suas atividades, até chegar à responsabilidade objetiva, que dispensa a prova de culpa. Observou-se que o pensamento jurisprudencial possui extrema importância no que atine à evolução e amadurecimento da responsabilidade civil extracontratual do Estado, haja vista o crescente número de riscos que permeiam a atividade estatal e a consequente ocorrência das mais variadas causas que ensejam as demandas indenizatórias, requerendo dinamicidade e capacidade interpretativa por parte dos julgadores ao enfrentar essas ações. Assim, a sistemática da responsabilidade civil extracontratual do Estado atualmente consolidada pela Constituição Federal de 1988 de fato é reflexo da justiça social, sobretudo em razão de os cidadãos poderem buscar a reparação pelos danos causados a eles por parte do ente estatal ou de seus servidores no exercício de suas funções. Porém, deve-se consignar que o Estado também só deve vir a ser responsabilizado diante de alguma conduta que seja realmente de sua parte, não podendo ser garantidor universal de qualquer evento danoso, a menos que se esteja no campo de abrangência da teoria do risco integral.

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NONCONTRACTUAL CIVIL LIABILITY OF THE STATE: AN ANALYSIS OF THE

ABSTRACT This research investigates the institute of Noncontractual Civil Liability of the State, analyzing the theories that have grounded the historical evolution of the institute, as well as the legislative changes that were emerging until delineating in the current molds. In addition, observing the theories currently adopted by the Constitution and the doctrine. It also analyses the assumptions of civil liability and its excludents.

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INSTITUTE IN BRASILIAN LAW


Keywords: Public administration. Noncontractual civil liability of the

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State. Moral damages.

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FUNÇÃO REGULATÓRIA DA ANATEL EM FACE DA NOVA PLATAFORMA TECNOLÓGICA WHATSAPP Sophia Fátima Morquecho Nôga1

RESUMO O WhatsApp tornou-se um aplicativo popular, inclusive como ferramenta de mercado pelo setor empresarial. Diante disso, emergem críticas que alegam uma suposta concorrência desleal, e empresas de telecomunicações brasileiras pleiteam a regulação do programa pela Anatel. Através da pesquisa bibliográfica e documental, constata-se que, enquanto agência reguladora do campo das telecomunicações, somente poderia existir a fiscalização do WhatsApp pela Anatel se este for considerado operadora do meio, ao invés de plataforma tecnológica. Diante da ausência de autonomia operacional pelo Whatsapp, dependente da conexão de internet, surge a necessidade de

aplicativo. Palavras-chave:

Liberdade.

Anatel.

Regulação.

Whatsapp.

Telecomunicações. “A história nos ensina que a liberdade e a democracia caminham lado a lado. Quando tombam, tombam juntas.” 1

Mestranda em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Bacharela em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Advogada OAB/RN. Integrante do grupo de pesquisa Direitos Fundamentais e a Linguagem no Direito Criminal.

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se estabelecer considerações sobre a possibilidade de regulação deste


(Noberto Bobbio)

1 INTRODUÇÃO

O WhatsApp - cujo nome é uma brincadeira com o trocadilho da língua inglesa what’s up? (e aí?) - é um aplicativo gratuito para a troca de mensagens disponível para smartphones que é utilizado por mais de um bilhão de pessoas em mais de 180 países do globo para manter contato com qualquer interlocutor, independente de tempo e espaço. No Brasil, paira sobre o aplicativo uma possível ilegalidade, considerando que resta alheio à regulação por parte da Agência Nacional de Telecomunicações – Anatel. Considerando essa reflexão inicial, a presente pesquisa tem como escopo maior compreender se, diante da legislação pátria, é possível a regulamentação do referido aplicativo pela Anatel. Partindo desse objetivo maior, há de se perfazer uma análise minuciosa acerca da própria natureza do Whatsapp. Soma-se a isso, a necessidade de um estudo relativo aos limites de competência da Anatel. Feito isto, há de se ter a construção de um arsenal capaz de embasar uma resposta satisfatória sobre a possível regulação do aplicativo ora em análise pela agência reguladora. Para tanto, será feito, primeiramente, um esboço acerca da liberdade econômica no ordenamento jurídico brasileiro, bem como uma análise sobre como a Carta Magna de 1988 incorporou esse instituto em face da nova ordem econômica que se estabelecia. Posteriormente, o estudo se dirigirá às Agências Reguladoras, especialmente a Anatel, à luz da Lei n° 9.472 de 1997, atentando para as funções conferidas pelo legislador a referida autarquia. Por conseguinte, será realçada a diferença entre regulação e

listadas. Seguindo essa linha intelectiva, será tratado como o WhatsApp funciona, para se obter uma análise do liame entre os serviços oferecidos pelas operadoras de telefonia móvel, as ferramentas disponíveis no aplicativo e a incidência da Lei 9.472/97, que dispõe sobre a organização dos serviços de telecomunicações, a criação e funcionamento de um órgão regulador e outros aspectos institucionais. Com isso, pretende-se verificar se existe uma linha divisora que distingue o que seria serviço de comunicação e as facilidades disponibilizadas pelo aplicativo ora em análise. Além

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regulamentação sendo, portanto, uma distinção essencial à compreensão das conjecturas aqui


disso, se restar constatada essa distinção, cabe destacar quais são os limites e critérios adotados para tanto. A realização de tal mister assume maior relevância social ao considerar que se trata de um aplicativo utilizado como mecanismo de comunicação corriqueira pelos brasileiros, e têm preferência nacional perante outros como Facebook e Mensseger. Dessa forma, uma possível regulação do Whatsapp surtiria impacto na vida de grande parte dos brasileiros. Para desenvolver esses objetivos, serão utilizados como método a pesquisa bibliográfica e descritiva acerca do tema. Em se tratando de pesquisa jurídica, serão ainda usadas como fonte a legislação brasileira vigente sobre a matéria e os julgados considerados relevantes para a temática ora abordada. Sendo assim, é através dessa metodologia que se irá estruturar o eixo para a construção teórica, de base científica, relativamente à uma conclusão sobre a regulação do Whatsapp pela Anatel.

2 INCORPORAÇÃO DA LIBERDADE ECONÔMICA NO BRASIL Em várias declarações de direitos2, desde a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1783, a liberdade econômica vem sendo reiteradamente positivada. Essa necessidade de reafirmação pode ter suas razões facilmente compreendidas ao se lançar um breve olhar na história e perceber que a dificuldade na busca pela concretização daquele direito remete há tempos. Desde o feudalismo, notadamente no clássico exemplo de Leo Huberman (1986, p. 18), quando da luta pela conquista da liberdade da cidade de Abbeville, na França medieval, o povo intencionava ter independência, da terra e todo meio de produção de riquezas. Naquele

contrassenso, ao passo em que, em tese, era difundido um espírito de liberdade mercantil de um lado, mas, no entanto, persistiam as limitações de um poder governante, de outro. Incorporando a essência desse pensamento, o princípio da liberdade de iniciativa foi tratado pela primeira vez no Édito de Turgot, na França, em nove de fevereiro de 1776 e

2

No âmbito de proteção global dos direitos humanos há a salvaguarda de tal liberdade no art. 22 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, no art. 1º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos. Já no âmbito de proteção regional, especificamente no interamericano, em cuja abrangência geográfica está inserido este estudo, tais direitos são tutelados no art. 22 da Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem e no art. 16 da Convenção Americana de Direitos Humanos.

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contexto, a busca por essa conquista foi liderada, notadamente, pelos mercadores. Havia um


inscreveu-se plenamente no Decreto d’Allarde, de dois de março de 1791 e inspirou a Lei Le Chapelier – decreto de quatorze de junho de 1791. Levando em consideração esse princípio, o Brasil desde a Constituição Imperial de 1824, em seu art. 179, inciso XXIV, deixou claro seu comprometimento em resguardar tal direito que, com a Carta Magna de 1988, resta indubitável. Nesse sentido, depreende-se da leitura dos artigos 1º, IV e 170, caput, que a livre iniciativa constitui fundamento da República Federativa do Brasil e da ordem econômica brasileira (CERVO, 2017, p. 01). A Carta Magna de 1988 admite a intervenção estatal em menor grau, tão somente para servir de balizas para a concretização da seguridade social, sem, contudo, comprometer a atuação dos agentes privados, já que essa atuação deve se dar sempre a favor e nunca contra o mercado (RIZZI, 2017, p.01). Dessa forma, é também protegida a livre concorrência, como derivação da proteção à liberdade econômica e princípio da ordem econômica. Logo, a livre concorrência consiste essencialmente na possibilidade de ampla atuação no mercado, sem exclusões ou discriminações sociais (TABAK, 2015, p.321-345). Com ela, pode-se assegurar igualdade de condições a todos os agentes, sem privilégios, aproximando-se de um ideal de justiça. Dessa maneira, ao Estado passa a ser atribuída a função de normatizar e regular a economia, com vistas a reprimir quaisquer práticas caracterizadoras de abuso do poder econômico que tenham o propósito de eliminação da concorrência. A importância dessa atividade sobreleva quando se reconhece que o índice de liberdade econômica é diretamente proporcional ao crescimento econômico. É dizer que ao se estimular a elevaçaõ do grau de liberdade econômica de um país, estar-se-ia proporcionando uma aceleração do crescimento da economia (FRIEDMAN, 2014, 143). Neste ambiente descrito, a intervenção estatal é mínima, mas esta interseção em que esse avanço econômico possível, como um sistema jurisdicional e um a rede fiscalizatória e garantidora de direitos bem estruturada (BENDER, SONAGLIO, ZAMBERLAN, 2013, p. 244).

3 AGÊNCIAS REGULADORAS

Com a alteração do modelo de Estado liberal para regulador, ocorre a ampliação da atividade regulatória do ente estatal, surgindo, assim, as agências reguladoras. Há de se 276

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ela acontece é essencial, trata-se da necessidade do fortalecimento das instituições que tornam


constatar que a criação dessas agências acontece em um cenário de desestatização e privatização de atividades que outrora eram dominadas pelo próprio Estado. Diante dessa nova realidade, emerge a imprescindibilidade de o governo fiscalizar a prestação de serviços públicos desenvolvidos pela iniciativa privada, com o intuito de impedir abusos econômicos, desvios de finalidade e prejuízos aos interesses da coletividade. Isso porque, há uma tendência política de substituição do liberalismo em excesso por exigências de ordem pública econômica e social. Com isso, há uma limitação da autonomia individual, em primazia ao interesse da coletividade (GRINOVER, 1994, p. 286). Tendo em vista essa transferência de encargos para a iniciativa privada, convém notar, outrossim, a importância de o Estado exercer o controle indiretamente sobre as atividades econômicas, as quais possuem relevância para a coletividade (NOHARA, 2002, p. 37). Por essas razões, através da regulação, busca-se a organização e sistematização dessas atividades (JUSTEN FILHO, 2018, p. 13-41). São características das agências reguladoras a subordinação à regime especial, o que, por sua vez, lhe confere maior autonomia em relação aos demais entes da Administração Direta, traduzida em independência administrativa e financeira, poder de regulamentação e estabilidade dos seus dirigentes que possuem mandato por prazo determinado. Esses empregados somente podem vir a ser demitidos por meio de processo administrativo disciplinar ou por condenação judicial transitada em julgado. Visando a consecução da finalidade de controlar a prestação dos serviços prestados pelas empresas, as agências reguladoras estabelecem normas para o setor, além de medidas, ações de Governo, controle e fiscalização de seguimentos de mercado. Para tanto, no Brasil, existem dez agências reguladoras, quais sejam a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), a Agência Nacional de Petróleo (ANP), a Agência Nacional de Energia Elétrica

Sanitária (Anvisa), a Agência Nacional de Águas (ANA), a Agência Nacional do Cinema (Ancine), a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), a Agência Nacional dos Transportes Terrestres (ANTT) e a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac). 3.1 Regulação x regulamentação Cumpre ressaltar, neste momento, que a regulação – desenvolvida pelas agências reguladoras – não se confunde com regulamentação. Esta última relaciona-se ao desempenho da função normativa, de caráter abstrato e geral, a ser observada por todos aqueles que se 277

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(Aneel), a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), a Agência Nacional de Vigilância


enquadrarem como sujeitos que, por praticarem determinada conduta, são abrangidos pela sua incidência. Trata-se do desenvolvimento de uma operação materialmente legislativa praticada pelo Poder Executivo (ALMEIDA, 2005, p. 75). Em contrapartida, a regulação é mais ampla, abstrata e qualitativamente distinta. Neste conceito, são abarcados os diversos mecanismos adotados pelo Estado com o fito de organizar as atividades econômicas. Ele faz isso tanto através da concessão de serviço público, como pelo exercício do poder de polícia. Dessa forma, a regulação pode se manifestar por meio de atos de regulamentação – enquanto processo de criação de normas -, aplicação das regras, fiscalização da sua observância e, em caso de descumprimento, a aplicação de punições aos que a infringirem. Tais normas possuem natureza repressiva e promocional, já que buscam disciplinar as ações dos agentes privados e públicos, e surgem para alinhar a economia com os valores fundamentais e políticos do país. Por isso, há de se notar que a regulação econômico-social se consubstancia na atividade estatal que intervêm obliquamente sobre o comportamento dos sujeitos públicos e privados, de maneira permanente e sistemática com o fito de implementar as políticas de governo e a realização dos direitos fundamentais (JUSTEN FILHO, 2005, p. 126). Para tanto, a Carta Magna de 1988, em seu artigo 174, deixa cristalino que o Estado deve adotar uma posição garantista e regulatória. Sendo que para a concretização desse fim, o Estado busca se valer das agências reguladoras para alcançar níveis razoáveis de qualidade e justiça social, que inspiraram a desestatização. 3.2 Agência Nacional de Telecomunicações

criada no Brasil, em 5 de novembro de 1997, pela Lei Geral de Telecomunicações (Lei 9.472, de 16 de julho de 1997). Foi concebida com o intuito de promover a fiscalização e o desenvolvimento das telecomunicações no País, diante do novo modelo estatal que estava sendo implantado e como reflexo da mudança de paradigma proposta com a Carta Magna de 1988. Tem como valores a Capacitação Institucional, Segurança Regulatória, Transparência e Participação social (ANATEL, 2017, p.01). Nesse espectro, é pertinente esclarecer que se entende por telecomunicações, à luz do art. 60, da Lei Geral de Telecomunicações (LGT), o conjunto de atividades que possibilita a

278

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A Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) foi a primeira agência reguladora


oferta da comunicação à distância, por meio de telegrafia, telefonia, satélites, micro-ondas ou qualquer processo eletromagnético de informações de qualquer natureza. Relativamente à natureza jurídica da Anatel, é importante observar que trata-se de autarquia de regime especial integrante da Administração Pública Federal indireta - como toda e qualquer agência reguladora - vinculada ao Ministério das Comunicações, sem, contudo, estar subordinada a nenhum órgão de governo. Ademais, possui personalidade jurídica de direito público e independência administrativa e financeira, tem poderes de outorga, regulamentação e fiscalização, para atuar em busca da finalidade de proteger o cidadão. Além da sede, localizada em Brasília, no Distrito Federal, a Anatel possui unidades espalhadas nas capitais do país. Sua divisão orgânica compreende o Conselho Diretor, Conselho Consultivo, Assessoria Internacional, de Relações com os Usuários, Parlamentar e de Comunicação Social, e Técnica, Procuradoria, Ouvidoria, Auditoria, Corregedoria e várias Superintendências (ANATEL, 2017, p.01). O órgão máximo da Anatel é o Conselho Diretor, composto por cinco membros eleitos pelo Presidente da República e aprovados pelo Senado, para cumprir mandato de cinco anos. Com essa estabilidade, tenciona a consagração da independência funcional e gerencial dos dirigentes. Ademais, inexiste subordinação hierárquica no âmbito dessa autarquia, sendo vedado ao Poder Executivo a interferência em suas decisões, uma vez que este ente tem a liberdade para estipular quais metas e qualidades são consideradas adequadas ao funcionamento das atividades das empresas reguladas. Financeiramente, a Anatel, tem seu orçamento previsto na Lei Orçamentária Anual (LOA). Quando da sua instalação, teve investimento do Executivo, com repasses do Ministério das Comunicações e do Fundo de Fiscalização das Telecomunicações (FISTEL). Atualmente, a sua receita advém de taxas de fiscalização, instalação e funcionamento, pagas pelas empresas delegatárias; de

Cumpre realçar, que a Anatel é competente tanto para fiscalizar as atividades das concessionárias de serviços de telecomunicações, como para solucionar conflitos exitentes entre elas e seus usuários. Além disso, cabe a esta agência o controle da política tarifária e a imposição de sanções a quem descumprir com as normas, de modo a obstar abusos e promover a concorrência e diversidade de serviços, com padrões de qualidade que atendam as necessidades dos clientes.

4 WHATSAPP: CONCEITO E ATRIBUTOS 279

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modo que a quantia resultante será revertida no FISTEL.


WhatsApp é um programa para diversas plataformas de smartphones, funcionando como um aplicativo que possibilita a troca de mensagens instantâneas com um interlocutor ou vários interlocutores – os grupos -, o compartilhamento de fotos, áudios, vídeos, localização ou documentos; e, inclusive, a realização de chamadas de voz e vídeo, independentemente da distância e em qualquer lugar do mundo (SOARES, 2017, p. 01). Todos esses serviços são oferecidos aos usuários gratuitamente, sem qualquer contraprestação ou taxa. Fundado em 2009 por Jan Koum e Brian Acton que, juntos, passaram quase vinte anos no Yahoo, o WhatsApp recentemente uniu-se ao Facebook em 2014, sem, contudo, deixar de ser um programa independente (WHATSAPP, 2017, p. 01). A proposta finalística do software surgiu como uma alternativa ao sistema de SMS convencional oferecido pelas operadoras de telefonia. Destaque-se que as mensagens e ligações disponibilizadas pelo WhatsApp, em suas últimas versões, são protegidas com criptografia de ponta-aponta, de modo a impossibilitar o acesso delas por terceiros, incluindo pelo próprio utilitário. O WhatsApp funciona com o número de telefone do usuário. Logo, para usufruir dos serviços oferecidos, basta ter acesso à internet – seja rede sem fio, seja dados móveis -, instalar o aplicativo na loja e adicionar o número dos contatos na lista telefônica do aparelho, de modo que, automaticamente, aqueles que também possuem a plataforma em seus celulares aparecerão na lista de contatos do sistema. O aplicativo disponibiliza, ainda, a tecnologia de notificações push3, ou seja, o empurrão no envio das mensagens, de modo que estas sejam recebidas instantaneamente, por meio da notificação. Com o envio dessa notificação informando a chegada de uma nova mensagem, essa tecnologia proporciona, através de um clique, o redirecionamento do usuário ao utilitário. Acresce a isso outros recursos oferecidos, tais como as confirmações de leitura e a criação de grupos de até duzentos e cinquenta e seis participantes. Com essa gama de benefícios disponibilizados, as pequenas empresas foram um catalisador para o novo serviço de negócios da WhatsApp, considerando que os micromercados usavam seu

assinalar o papel de essencialidade que este aplicativo assumiu no cotiano não apenas do cidadão comum, mas também no ramo empresarial (HEINRICH, 2017, p. 01).

5 POSSIBILIDADE DE REGULAÇÃO PELA ANATEL

3

Push significa empurrar em inglês.

280

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serviço para manter contato com centenas de clientes a partir de um único smartphone. É importante


O ponto fulcral para constatar se o aplicativo em comento deve ser regulamentado pela Anatel ou não, é verificar se este oferece serviço de telecomunicação aos seus usuários. Assim, deve-se observar que o referido mecanismo apenas disponibiliza chamadas de voz entre os usuários do próprio aplicativo, em virtude dos dados transmitidos pelas operadoras reguladas. Nesse sentido, destaca-se que não é possível, por exemplo, fazer uma ligação para um telefone fixo, ou para alguém que não tenha o aplicativo instalado no seu aparelho celular, tampouco quando o smatphone esteja desconectado da rede de dados ou wireless4. Como se depreende, o WhatsApp só é hábil a prover seus recursos se valendo da plataforma tecnológica da internet. Inexiste independência operacional que faça este programa alçar a qualidade de operadora de telecomunicação. Trata-se, na verdade, de espécie de serviço de valor adicionado à rede de telecomunicações (ARAÚJO, 2017). Em contrapartida, as empresas de comunicação defendem que o WhatsApp por representar concorrência desleal em face das entidades do ramo, precisaria ser considerado fornecedor de serviços de telecomunicações, posição esta que se opõe aos interesses do consumidor (GRINOVER, 1994, p. 62). Consoante o empresariado, o aplicativo deveria ser enquadrado nas hipóteses de incidência da LGT. Por essa visão, ele teria de ser fiscalizado pela Anatel, submetendo-se, por conseguinte, à concessão ou autorização da agência reguladora. Além disso, haveria incidência do recolhimento de tributos sobre suas operações, como a tributação incidente sobre o setor de telecomunicações por ativação de cada linha móvel. Esse quantum corresponde a cerca de vinte e seis reais para a ativação de cada linha móvel e treze reais anuais de taxa de funcionamento (MEISTER SCORSIM, 2017, p. 01). De acordo com a empresa de pesquisa e análise de Londres Ovum, o setor de

2018 para aplicativos como o WhatsApp (MENDLER, 2017, p.01). Isso ocorrerá devido à perda de receita de chamadas internacionais e tarifas de roaming que as empresas do ramo receberam anteriormente dos clientes. É pertinente ressaltar, que o posicionamento adotado pelo Presidente da Anatel, João Rezende, foi no sentido de que não é competente para impor regime de licença, obrigações ou fiscalizar o WhatsApp, tendo em vista que não se trata de serviço de telecomunicação. Do mesmo modo, não se aplica a ele a LGT (PÚBLICO, 2017, p.01).

4

Rede de dados sem fio.

281

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telecomunicações perderá trezentos e oitenta e seis bilhões de dólares americanos entre 2012 e


Desta forma, diante do fato de que o WhatsApp somente permite as chamadas de voz entre os seus usuários se existir uma empresa fornecedora de serviços de internet, prioritariamente, este não pode ser caracterizado um serviço de telecomunicação e, portanto, não deve ter o mesmo tratativo que as operadoras. Posta assim a questão, é de se dizer que enquanto as empresas de telecomunicações são reguladas pela LGT, o WhatsApp, por ser uma empresa de tecnologia, é regulado pela lei do Marco Civil da Internet.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Levando em consideração o exposto, ressalta-se que o perfil do consumidor mundial está sofrendo mudanças, e os usuários dos serviços de telecomunicações estão abandonando o consumo do plano de voz, ao passo que almejam maiores pacotes de dados, fato que torna necessário uma readequação por parte das operadoras. A Carta Magna de 1988 é clara ao limitar a intervenção estatal na ordem econômica, e quando esta se fizer necessária, deverá ser sempre a favor e nunca contra o mercado. A equiparação do WhatsApp às operadoras de telefonia seria uma desvirtuação forçada e um retrocesso que, indubitavelmente, possui o condão de prejudicar o consumidor. Diante desse impasse, a solução mais acertada para empresas de telecomunicações seria oferecer aos consumidores um serviço de dados mais rápido. Aplicativos como o WhatsApp são criados com uma finalidade social que oferece muito mais do que chamadas e texto. Eles permitem que as pessoas se conectem em um nível mais profundo, o que nesta fase atual de desenvolvimento será difícil para as empresas interromperem. A capacidade limitada de oferecer apenas um produto, dados, fará com que as

a serviços com valores mais baixos. Dentro de alguns mercados emergentes, o aplicativo ora em análise tem sido banido, possivelmente devido ao fato de tirar parte do mercado das empresas de telecomunicações ou em razão da criptografia envolta da transmissão de dados que oferece. Em essência, considerando

os

argumentos

suscitados,

seria

mais

acertado

que

empresas

de

telecomunicações procurassem outras formas de diversificar a oferta para se manter relevante nos próximos anos, ao invés de impor um intervencionismo forçado e flagrantemente inconstitucional.

282

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companhias do ramo da informação recorram à tentativa de competir em preços, o que levará


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em desenvolvimento. PESQUISA & DEBATE, SP, volume 24, n. 2. 2013.


HEINRICH, Erik. Telecom companies count $386 billion in lost revenue to Skype, WhatsApp, others. Disponível em: <http://fortune.com/2014/06/23/telecom-companiescount-386-billion-in-lost-revenue-to-skype-whatsapp-others/>. Acesso em: 29 nov. 2017.

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ANATEL REGULATORY FUNCTION IN FACE OF THE NEW TECHNOLOGICAL PLATFORM WHATSAPP ABSTRACT WhatsApp became a popular application, including as a marketing tool by the business sector. As a result, criticisms emerge alleging alleged unfair competition, and Brazilian telecommunications bibliographic and documentary research, it’s found that, as a regulatory agency in the field of telecommunications, the supervision of WhatsApp by Anatel could only exist if it’s considered the operator of the environment, rather than a technological platform. In the absense of operational autonomy by Whatsapp, dependent on the internet connection, there is a need to establish considerations on the possibility of regulation of this application. Keywords:

Freedom.

Telecommunications. 285

Anatel.

Regulation.

Whatsapp.

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companies claim Anatel's regulation of the program. Through


O REALISMO JURÍDICO CLÁSSICO DE JAVIER HERVADA: DEFINIÇÃO E CONCEITOS BÁSICOS Arthur Lopes Campos Cordeiro1 RESUMO O presente artigo tem como objetivo expor, de forma introdutória, elementos básicos da jusfilosofia de Javier Hervada, que é denominada realismo jurídico clássico pelo próprio autor. Essa exposição será dividida em duas partes. Na primeira, será explicado o que Hervada quer dizer com realismo jurídico clássico, fornecendo, assim, uma definição para esses termos. Na segunda, conceitos básicos de sua jusfilosofia serão esclarecidos. Nesta seção, serão apresentadas respostas a questionamentos recorrentes na Filosofia do Direito: “o que é o direito?”; “o que é a justiça?”; “o Direito é uma arte ou uma ciência?”

1 INTRODUÇÃO Por que se faz necessária a exposição do pensamento de mais um filósofo do Direito contemporâneo? Para responder essa pergunta, é preciso reconhecer o atual panorama da Filosofia do Direito (bem como da Filosofia em geral). Em nosso momento histórico marcado 1

Graduando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Pesquisador de Iniciação Científica sob orientação da Prof. Dra. Karine Salgado, bolsista do CNPq.

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Palavras-Chaves: Realismo Clássico. Justiça. Direito. Neotomismo.


pela queda e rejeição de grandes sistemas (uma das principais características da chamada “pós-modernidade”), não há um pensamento filosófico que consiga se impor como dominante. Se, nos séculos XVII e XVIII, a jusfilosofia era dominada pelo jusnaturalismo racionalista e individualista e, no início do século passado, era o positivismo jurídico a corrente de pensamento que se impunha, hoje, não há respostas consideradas satisfatórias aos principais problemas da Filosofia do Direito. Nesse contexto, faz-se necessário o estudo do pensamento de autores que tentam dar uma resposta aos principais problemas jusfilosóficos. Contudo, não é só por isso que o pensamento de Javier Hervada merece ser exposto. Hervada não é um autor com ideias revolucionárias. Na verdade, ele volta aos juristas romanos, a Aristóteles e a Santo Tomás de Aquino (bem como aos canonistas medievais) e, sobre os ombros desses gigantes, visa desenvolver um pensamento capaz de responder satisfatoriamente os questionamentos universais da jusfilosofia. Há, evidentemente, um motivo para, ainda hoje, existir disciplinas de Direito Romano nas faculdades de Direito. Também há motivos para que Aristóteles seja amplamente estudado nos cursos de Filosofia e para que sua Ética a Nicômaco esteja presente nas aulas de Filosofia do Direito. Por fim, há uma razão para que Tomás de Aquino seja considerado o maior filósofo de uma religião que existe há dois mil anos. Assim, é prudente que, em um momento no qual nenhuma resposta nos satisfaz, voltemos àqueles que já nos deram respostas satisfatórias e àqueles filósofos do Direito que percorreram este caminho antes de nós (e Hervada é um dos mais importante desses pensadores).

2 QUEM É JAVIER HERVADA? Antes de analisar o pensamento de Hervada, faz-se necessário uma breve exposição de alguns dados biográficos do autor. Francisco Javier Hervada Xiberta nasceu em Barcelona, catedrático de Direito canônico e Eclesiástico do Estado e professor emérito de Filosofia do Direito e Lei Natural. É autor de inúmeros livros sobre Direito Canônico e Filosofia do Direito. Sobre o primeiro tópico, deve-se destacar a Introdução ao Estudo do Direito Canônico, os Colóquios Propedêuticos sobre o Direito Canônico, os Pensamentos de um Canonista na Hora Presente, etc. Já no âmbito da jusfilosofia, suas principais obras são: O que é o Direito?, Lições Propedêuticas de Filosofia do Direito e a Introdução Crítica ao Direito Natural. 287

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Espanha, no dia 7 de fevereiro de 1934. É doutor em Direito e em Direito Canônico,


3 O REALISMO JURÍDICO CLÁSSICO Hervada se define como realista, termo à primeira vista que parece fazer referência ao chamado “realismo moderado” defendido por Santo Tomás de Aquino e uma das posições na chamada querela dos universais2. Contudo, não é isso que seu termo realista quer dizer. Sua filosofia recebe o nome de realista, porque considera que o direito é a res iusta (coisa justa). Sendo assim, o realismo, no âmbito da Filosofia do Direito, diz respeito a uma forma de compreender o direito que, segundo Hervada, é comum a “Aristóteles, [a]os juristas romanos, [a] Tomás de Aquino e [aos] juristas em geral até o momento no qual o direito subjetivo adquiriu a primazia” (HERVADA, 1988, p. 7, tradução nossa) e que, na contemporaneidade, tem como seu maior representante Michel Villey. Entretanto, cabe um questionamento: será que o termo tomista (ou, como é mais comum, neotomista) não seria suficiente para encaixar a jusfilosofia de Hervada? Se sim, por que a insistência no termo “realismo jurídico clássico”? Se não, o que o faz rejeitar o termo neotomista? Primeiramente, há aproximações entre o neotomismo e o realismo de Hervada. Afinal, ele reconhece que “todo sistema ou teoria do direito se assenta necessariamente em um sistema filosófico, especialmente a antropologia e a teoria do conhecimento” (HERVADA; IVARS; 2008, p. 32, tradução nossa) e ele mesmo afirma que “o sistema filosófico em que se funda minha concepção do direito é o tomista, que permeia todo meu pensamento jurídico”

Para mim, Tomás de Aquino sempre representou um apreciável ponto de partida, nunca de chegada. (…) Do fundamento dos ensinos do Aquinate, eu logo construí (…) meu próprio edifício, sob minha exclusiva autoria e, por tanto, sob minha plena e total responsabilidade. Neste sentido, não sou um autor tomista nem um jurista tomista, (…) como tantos autores que se inscrevem no neotomismo, os quais se limitam a expor de modo mais ou menos afortunado o dito por Santo Tomás (…) Assim, pois, eu não sou um tomista no sentido em que habitualmente se atribui – e se atribuem – este adjetivo a muitos filósofos ou teólogos chamados tomistas ou neotomistas (HERVADA; IVARS, 2008, p. 34, tradução nossa).

2

A querela dos universais foi uma discussão medieval acerca da natureza dos universais. Nas palavras de Julian Marías: “Os universais são os gêneros e as espécies e opõem-se aos indivíduos. A questão é saber que tipo de realidade corresponde a esses universais?” (In: SCHERER, 2018, p. 158). A posição tomista frente a esse problema é chamada de realismo moderado e defende que “o universal não existe como uma res [coisa] separada do ente nem como mero nome, mas, antes, in re. Nas palavras de Santo Tomás: ‘Os universais (...) não são realidades subsistentes, senão que só têm ser [habent esse] nos singulares.’”. (In: SCHERER, 2018, p. 158).

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(HERVADA; IVARS; 2008, p. 32, tradução nossa). Entretanto, ele também salienta que:


Dessa forma, Hervada reconhece que ele, com seu realismo jurídico clássico, e os neotomistas foram influenciados pelos mesmos autores. Contudo, ele discorda de como se deu essa influência. Para ele, os neotomistas foram influenciados mais pelo De Legibus (Tratado sobre as Leis) que pelo De Iustitia et Iure (Tratado sobre a Justiça e o Direito) – ambos da Suma Teológica – (o que contribuiu para uma abordagem mais normativista por parte desses autores), mas, em seu pensamento, ocorreu o contrário. Portanto, podemos concluir que Hervada é um tomista, mas não um seguidor do neotomismo normativista e, por isso, se encaixa no realismo jurídico clássico. O realismo de Hervada é também jurídico. Caso compreendamos de forma equivocada o termo realismo, podemos pensar que Hervada quer apenas dizer que sua filosofia realista é uma jusfilosofia: logo, é um realismo jurídico. Entretanto, o termo jurídico também tem um significado mais profundo. Com a palavra “jurídico”, Hervada afirma que o seu realismo concebe que a fonte de juridicidade é o justo e a justiça e não o poder. Assim, enquanto o normativismo considera que o conceito central da construção sistemática da ciência jurídica é a norma, o realismo considera que é a relação jurídica (a relação “que existe entre dois ou mais sujeitos, por causa dos seus respectivos direitos ou coisas que lhe pertencem” [HERVADA, 1990?, pp. 42-43]). Portanto, o realismo jurídico é a jusfilosofia que compreende o direito como a res iusta (coisa justa) e que vê a relação jurídica como centro da ciência jurídica. Com o termo clássico, podemos entender duas coisas distintas. Primeiramente, pode ser tomado como uma tentativa de se distanciar do realismo jurídico escandinavo e americano. Contudo, ainda que seja um uso válido, não é por isso que Hervada afirma que seu pensamento se encaixa no paradigma do realismo jurídico clássico. Se o realismo jurídico é a jusfilosofia que compreende o direito como a res iusta (coisa justa), o realismo jurídico clássico é a que compreende a res iusta (coisa justa) (e, consequentemente, o direito) como a coisa que é sua do titular. Assim, pode existir outra forma de realismo jurídico (no sentido que espanhol, se encaixava seu pensamento quando compreendia a res iusta (coisa justa) como a realidade social justamente ordenada. Assim, fica exposto o que Hervada entende como realismo jurídico clássico. Entretanto, será que Hervada não pode ser um realista jurídico clássico e um neotomista? Além disso, também não é possível afirmar que o realismo jurídico clássico contemporâneo é uma das correntes do neotomismo (afinal, todo realista clássico parece seguir a filosofia de Santo Tomás)? 289

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Hervada dá ao termo), como, por exemplo, o realismo conceitual, no qual, segundo o próprio


A segunda pergunta é interessante de ser respondida primeiro. Apesar do realismo jurídico clássico ter Santo Tomás como autor mais proeminente, não é necessário ser tomista para ser realista clássico. E quem prova isso é o principal autor realista, segundo o próprio Hervada, da contemporaneidade: Michel Villey. Como bem pontuado por Rodolfo Vigo, pode-se razoavelmente duvidar até que ponto Villey adere a Aristóteles e a Santo Tomás da mesma forma. Nas palavras de Rodolfo Vigo, “nos parece verificar uma forte adesão [de Villey] ao Estagirita que rapidamente neutraliza o Aquinate” (VIGO, 2003, p. 16, tradução nossa). Portanto, parece que Villey “lê Santo Tomás desde Aristóteles” (VIGO, 2003, p. 16, tradução nossa). É só assim que é possível explicar o fato de Villey descartar do mundo jurídico a justiça legal e a lei (restringindo o âmbito dessa à moral), entre outras considerações alheias ao pensamento tomista. Desse modo, a filosofia de Villey, ainda que indubitavelmente realista, não é tomista, mas sim romano-aristotélica. Portanto, nem todo realista clássico é (neo)tomista e nem todo (neo)tomista é realista clássico, já que existem neotomistas normativistas. Entretanto, Hervada pode ser visto como um realista clássico e, ao mesmo tempo, como um neotomista. Afinal, como já mencionado, Hervada afirma que o sistema filosófico de Santo Tomás é o que sustenta seu pensamento. Na verdade, podemos definir o pensamento de Hervada de três formas. A primeira, a adotada pelo autor, é denominá-lo o realismo jurídico clássico3. Entretanto, como há um realismo jurídico clássico que não é tomista (o de Villey), podemos considerar seu pensamento como um realismo jurídico clássico tomista4 – nesse caso, o realismo jurídico clássico seria o gênero e o tomista seria uma espécie. Podemos também definir seu pensamento por outro ponto de vista. Nesse caso, ele seria um autor do movimento neotomista, que seria um movimento composto por autores realistas e autores normativistas. Assim, ele seria um neotomista (gênero) realista (espécie). A última classificação, conquanto seja interessante por evidenciar claramente a que neotomista. A primeira, por sua vez, apesar de situar Hervada e Villey na mesma corrente, é obscura para os que não conhecem essa escola de pensamento, já que não evidencia a ligação desse realismo com Aristóteles e Santo Tomás.

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Ou apenas realismo clássico. Ou apenas realismo clássico tomista. 5 Hervada sempre enfatiza que o pensamento de Villey foi fundamental para que ele se tornasse um realista clássico. 4

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escola filosófica Hervada se filia, tem o problema de separá-lo de Villey5 – que não é um


A segunda, entretanto, apresenta as vantagens das outras duas: ela evidencia a ligação de Hervada com o aristotelismo tomista e o coloca na mesma corrente de pensamento que Villey– o realismo jurídico clássico. Além disso, ela serve para mostrar a principal diferença entre Hervada e Villey: o primeiro é tomista – e, por isso, faz parte do realismo jurídico clássico tomista –; o segundo não o é (conquanto tenha Santo Tomás em alta estima) – e, portanto, não é um realista clássico tomista. Portanto, consideramos essa a melhor forma de classificar o pensamento de Hervada.

4 POR QUE EXISTE A ARTE DO DIREITO? Hervada deixa bem claro que o Direito é uma ciência prática e que ciência prática é sinônimo de arte. Este termo arte tem significado técnico dentro da tradição aristotélicotomista na qual ele se insere. Segundo Daniel Scherer, tomista brasileiro, “arte é, em sentido estrito, recta ratio factibilium (reta razão no fazer); e, em sentido amplo, um ordenamento racional das operações do homem sobre certa matéria, para adaptá-la de melhor forma com o fim de cumprir determinada utilidade” (SCHERER, 2018, pp. 31-32). Hervada, entretanto, simplifica tal classificação e afirma que uma arte é “saber fazer as diversas coisas” (HERVADA, 2006, p. 9). Ora, se o Direito é algo prático, faz-se necessário perguntar o que o jurista sabe de prático Hervada nos responde dizendo que é o justo e, portanto, o jurista é o “técnico da justiça”, o que desvela o que é justo na sociedade e que sabe do justo e do injusto. Contudo, como o próprio filósofo reconhece, essa resposta parece insatisfatória para os ouvidos modernos. O justo é algo utópico e especulativo e, portanto, não pode estar mais longe da “ciência prática” que Hervada quer que creiamos ser o Direito. Hervada, entretanto, pede que voltemos à Roma Antiga. Naquela civilização marcada do justo)” (D.1.1.1.) e a Iurisprudentia (Ciência do Direito) como “iusti atque iniusti scientia (ciência do justo e do injusto)” (D.1.1.10.2.). Sendo assim, “talvez a justiça e o justo sejam menos pretensiosos ou utópicos do que parece e não seja mais ou menos difícil conhecer o que é justo do que averiguar o que é legal” (HERVADA, 2006, p. 10). E o justo não é nada mais que o objeto da ciência (prática) do direito: o próprio direito. Por sua vez, o injusto é a lesão do direito. Desse modo, só podemos considerar a justiça e o justo como utópicos caso consideremos o direito uma utopia. 291

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pelo espírito prático, os juristas definiram o Direito como “ars boni et aequi (arte do bom e


Após esses esclarecimentos introdutórios, faz-se necessário responder à questão que dá nome a esta seção: “Por que existe a arte do Direito?” Para tanto, precisamos de um ponto de partida, e o de Hervada é um de fácil constatação: as coisas (deve-se entender esse termo em uma acepção mais extensiva, não apenas no sentido de bens, mas também funções, obrigações, etc, estão repartidas. Ora, “nem tudo é de todos [e] nem tudo é da coletividade humana” (HERVADA, 1990?, p. 22). E é uma exigência da vida humana que as coisas “estejam repartidas e, consequentemente, atribuídas a diferentes sujeitos” (HERVADA, 2006, p. 17), já que a existência de uma sociedade, por si só, implica, no mínimo, uma divisão de funções e tarefas, e, dessas repartições, nasce o meu, o seu, o dele; nasce o direito. Portanto, é possível concluir com Hervada dizendo: “que nem tudo esteja atribuído a todos é uma necessidade social, que origina o fato de as coisas estarem repartidas. E, estando as coisas repartidas, há direitos. Havendo direito, existe a arte do direito.” (HERVADA, 2006, p. 18)

5 A JUSTIÇA Além da arte do Direito, outro importante conceito do pensamento de Hervada é a justiça. E, dado a tradição filosófica na qual se insere, não é de se surpreender que ele subscreve à definição clássica: a justiça consiste em dar a cada um o que é seu e dar a cada um seu direito (HERVADA, 2002, p. 22; HERVADA, 2008, p. 66) (fórmulas idênticas, já que, para Hervada, “seu direito” e “o que é seu” tem o mesmo significado). Partindo da definição tradicional, expõe algumas características da justiça. A primeira delas, e evidente após analisar a definição, é o fato da justiça suceder ao direito: é posterior a ele e não o antecede. “Se a justiça é a virtude de dar a cada um o que é seu, seu direito, para que possa agir é preciso que exista o ser de alguém, seu direito; do pressupõe o direito e, “sem direito preexistente, não é possível a ação justa ou ato de dar a cada um seu direito” (HERVADA, 2008, p. 95). Assim, pode-se falar em uma “primazia do direito sobre a justiça” (HERVADA, 2008, p. 96). Hervada, em seu “O que é o Direito?: a moderna resposta do realismo jurídico”, aclara essa explicação por meio de um exemplo. Se um patrão e um empregado combinam um salário mensal de 1200 euros e o patrão paga apenas 720 euros, esse é um ato injusto e o empregado poderá ir ao juiz exigir o pagamento devido ou, em outras palavras, seu direito. 292

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contrário, como dar o seu, seu direito?” (HERVADA, 2006, p. 25) A justiça, portanto,


Contudo, se o salário combinado for de 720 euros e, por conta de aumento no custo de vida ou outros fatores, o empregado for ao juiz exigir um salário maior, o juiz se absterá: o salário maior é uma aspiração, o direito dele são 720 euros e a aspiração, a não ser que haja uma cláusula no contrato que preveja correções salariais automáticas, não é assunto de justiça (HERVADA, 2006, p. 26). Tal explicação não é nada satisfatória, afinal “não há aspirações dos homens que sejam justas em sentido próprio?” (HERVADA, 2006, p. 26) Hervada nos responde: “pode ser que haja, mas em tal caso trata-se de verdadeiros direitos. [...] Quando as aspirações são verdadeiros direitos e, em consequência, a justiça intervém, é óbvio que se trata de direitos preexistentes e anteriores ao direito positivo; isto é, de direito natural” (HERVADA, 2006, p. 27). E é por isso que há leis que são injustas, porque elas “lesam o direito natural, ou seja, porque atribuem coisas a pessoas diferentes daquelas às quais foram atribuídas anteriormente por direito natural, ou negam a titularidade de algo a quem o tem por direito natural, ou atribuem coisas a quem por direito natural é negado” (HERVADA, 2006, p. 27). Dessa forma, o fato de existir um “direito injusto” não prova que a justiça antecede o direito, mas sim que há um direito anterior ao direito positivo que “este não pode debilitar ou anular” (HERVADA, 2006, p. 27): o direito natural. O direito natural, “todo direito que o homem tem em virtude de sua natureza – de sua condição de pessoa” (HERVADA, 2006, p. 23) –, é o “truque da fórmula da justiça” (HERVADA, 2006, p. 24). A justiça, sem o direito natural, consistiria em dar ao homem os direitos dados pelas leis determinadas pelos homens. E isso é intolerável para o ser humano, já que é evidente que as leis humanas são insuficientes e, muitas vezes, injustas (insuficiência e injustiça que são medidas pela adequação da lei ao direito natural). Se se rejeita o direito natural, a justiça se torna vazia ou se transforma em algo relativo ou pouco concreto e, por isso, ele é o “truque da fórmula da justiça”. Outra característica da justiça é sua relação com a igualdade. Contudo, a igualdade A igualdade da justiça consiste em dar a todos o que lhes corresponde e, por isso, trata todos igualmente. A representação já tradicional da justiça, uma mulher com olhos vendados, nos ajuda a compreender outra face da igualdade da justiça: ela não faz acepção de pessoas. Assim, ela foca apenas do direito de cada um. Essa mesma representação tradicional traz essa mulher de olhos vendados com uma balança e o fiel da balança demonstra outro aspecto da igualdade: a justiça dá a cada um o que é seu e não a mesma coisa e, por isso, trata todos

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característica da justiça não é a mesma a que, por exemplo, aspiram os políticos igualitaristas.


igualmente no que são iguais e de modo proporcional no que são diferentes (nisso, ela se difere do igualitarismo, que é uma forma de injustiça). A terceira característica da justiça é o fato dela ser um ato secundário. Ou seja, ela pressupõe um ato primário, de domínio ou poder, que constitui o direito. Como já foi dito, as coisas estão repartidas. A justiça não faz a divisão dos bens, “não reparte originariamente as coisas” (HERVADA, 2006, p. 37), ela “atua em relação à divisão já feita” (HERVADA, 2006, p. 37). E, “se a atual divisão de bens tem aspectos injustos, isso se deve ao fato de que nós, seres humanos, dividimos as coisas contrariando alguns direitos preexistentes: os que compõem o direito natural” (HERVADA, 2006, p. 37). Nesse sentido: Quando se fala de uma atual repartição injusta de bens e se postula uma redistribuição justa, ao mesmo tempo que se nega o direito natural, das duas uma: ou trata-se de uma incongruência, ou representa uma tentativa de substituir o justo por ideologias. Em ambos os casos, a justiça fica prejudicada (HERVADA, 2006, p. 38).

Novamente, Hervada dá um exemplo para aclarar o que foi dito (HERVADA, 2006, p. 38). Se uma pessoa A reparte seus bens por testamento entre B, C e D (sem ter nenhuma obrigação legal ou natural), estamos diante de uma divisão primária. Aqui, A não exerce justiça, já que não deve nada a ninguém. Quando A morre, os bens serão repartidos conforme o testamento e esta divisão é de justiça, mas é uma divisão segunda. Assim, sempre há uma “divisão primeira (feita por lei, costume, pacto ou obrigação natural), que não é própria da justiça. A justiça, por si só, não reparte as coisas, mas pressupõe uma divisão já estabelecida pela natureza, por lei humana ou por pacto.” (HERVADA, 2006, p. 39) Outras características de justiça podem ser percebidas ao analisar de forma mais minuciosa a fórmula tradicional. Iniciemos com o termo “dar”. Primeiramente, deve-se entender que o termo dar tem um sentido genérico, podendo significar entregar, respeitar, devolver, transferir ou mesmo desalojar. Assim, dar “significa toda a ação ou omissão em cuja virtude uma coisa passa para – ou permanece em – poder efetivo daquele a quem tal poder natureza, etc.)” (HERVADA, 1990?, p. 28). Para que esse “dar” seja possível (e, consequentemente, o ato de justiça), é necessário que as coisas estejam repartidas (como já vimos). Contudo, também é necessário que coisas estejam ou possam estar em poder de outras. Em outras palavras, as coisas de cada um podem passar à esfera de poder de outra pessoa e permanecerem suas: “uma coisa é ter juridicamente e outra é ter de fato” (HERVADA, 2008, p. 104). E, assim, encontramos outra

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corresponde legitimamente, isto é, em virtude de um título jurídico (contrato, lei, costume,


característica da justiça: a alteridade ou subjetividade (já que ela sempre reclama dois sujeitos – aquele de quem é a coisa e aquele que a tem e a devolve, a dá, ou que pode lesá-la e a respeita). Ainda analisando o “dar”, também é preciso afirmar que ele consiste em ato e não uma norma. Desse modo, não é correto substituir o “dar” da fórmula, por um “deve dar-se”. A justiça não é um mandamento, mas um hábito de vontade que consiste no cumprimento de um mandamento e dever, mas que não é o próprio dever: “uma coisa é o dever e outra distinta a conduta que cumpre o dever” (HERVADA; IVARS, 2009, p. 594, tradução nossa). A justiça, como qualquer virtude, consiste numa disposição potencial do sujeito (hábito) e “não é norma (Sollen) mas fato (uma qualidade) (Sein)” (HERVADA, 1990?, p. 28). Por fim, o “dar” da fórmula ainda tem mais um significado. Ele não se limita a declarar direitos ou não interferir, mas ele oferece meios para que esses direitos possam efetivamente se realizar. Portanto, a ação justa “não consiste tanto em declarar que todos tenham direito ao ensino e à educação, como em dar, proporcionar os meios para que todos possam receber ensino e educação” (HERVADA; IVARS, 2009, p. 595, tradução nossa). Depois de se analisar o “dar”, deve-se prosseguir para a análise do “a cada um”. Essas palavras significam, primeiramente, que a justiça “olha os homens um a um, não em multidão” (HERVADA, 1990?, p. 31). Assim, apesar de visar à sociedade inteira, a justiça “dá seu direito a cada um, pessoa por pessoa, indivíduo por indivíduo, coletividade por coletividade” (HERVADA, 2006, p. 33) e olha apenas a condição de sujeito de direito da pessoa, sem se preocupar com outras circunstâncias e sem fazer acepção de pessoas (como já dito mais acima). Desse modo, a justiça não se confunde com a “‘justiça do grupo’ que não hesita em atacar o direito dos indivíduos” (HERVADA, 2006, p. 34). O “a cada um” também nos auxilia a entender aspectos fundamentais da própria arte jurídica e do ofício do jurista. Ele nos mostra que a arte do direito consiste “na arte de discernir o justo entre pessoas concretas” (HERVADA, 1990?, p. 31) e, portanto, é para o caso termo, compreenderemos que a arte jurídica não é, em última instância, formada por conceitos, sistemas ou teorias gerais: eles só servem se estiverem a serviço do que é justo em cada caso. Por fim, falta analisar a parte final da definição tradicional. Segundo ela, a justiça consiste em dar a cada um o que é seu (ou somente o seu) e em dar a cada um o seu direito. Primeiramente, Hervada afirma que, como as duas fórmulas são correspondentes, o direito e o seu (ou o que é seu) são sinônimos (isso será tratado mais a frente ao comentarmos acerca do 295

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concreto que ela (e, consequentemente, o jurista) existe. Assim, se prestarmos atenção no


direito). Além disso, afirma que o seu (e, consequentemente, o direito) é uma coisa. Este termo “coisa” é plurivalente. Assim, o direito pode ser uma coisa material ou imaterial (como, por exemplo, o poder de mando), um bem ou um mal (como uma pena por conta de um delito), uma pessoa, uma atividade humana, um animal ou conjunto de animais, etc. Além de ser uma coisa, o seu é uma coisa externa. Essa exterioridade é fundamental na justiça, porque “o ato de justiça baseia-se em que a titularidade, a posse ou o uso e desfrute de uma coisa podem ser interferidos ou estão em poder de outra pessoa distinta daquela a quem corresponde” (HERVADA, 1990?, p. 33). Deve-se ressaltar que exterioridade não significa que a coisa deve ser captável em si mesma pelos sentidos, mas apenas que a coisa, por conta de alguma manifestação exterior, é objeto de relações humanas e, assim, capaz de ser captada ou interferida por outros. O termo seu também é plurivalente. Apesar de evocar a ideia de propriedade, este não é o único sentido que o termo tem na fórmula tradicional. Afinal, as coisas podem ser “suas” de várias formas: o proprietário de uma casa, com razão, diz que ela é sua, entretanto aquele que a alugou também diz, com razão, que ela é sua. Assim, o seu “quer dizer uma atribuição exclusiva, que algo está destinado a um sujeito com exclusão dos demais, segundo diferentes modos de atribuição e pertencimento” (HERVADA, 2008, p. 107, grifo nosso). O termo “seu”, ainda, nos leva a perceber uma característica da justiça já exposta anteriormente: o fato dela pressupor o direito (seu e direito são termos equivalentes em sua fórmula). E, por fim, ele nos proporciona uma reflexão acerca do papel da justiça na sociedade. Com o “seu”, podemos concluir a análise da virtude no pensamento de Hervada. Essa virtude propõe dar o que é seu e nada mais (ou menos) que isso. Assim, ela não consiste em “dar a cada qual o que necessita, nem o que leva à felicidade, nem ao desenvolvimento” (HERVADA, 2006, p. 39). A sociedade justa não pode ser um ideal: a justiça é um ponto de partida, um princípio e uma base, mas, por ser o mínimo que estamos obrigados nas relações humanas, amizade, ajuda, solidariedade ou liberalidade?

6 O DIREITO Após a análise da justiça, continuaremos a analisar a última partícula da definição tradicional: o “seu”. Contudo, agora, o chamaremos pelo nome mais usual nos livros 296

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não é o suficiente. Uma sociedade somente justa é insuportável: nela, onde está a caridade,


jurídicos: direito. Então, podemos realizar o questionamento que dá nome a uma das principais obras de Hervada: “o que é o direito?” Primeiramente, deve ser dito que o direito é um universal, porque este conceito “expressa traços próprios de entidades comuns e universais de todo direito” (HERVADA, 2008, p. 117). Mas a que este conceito faz referência? É necessário entender, antes de responder essa pergunta, que direito é um termo polissêmico e que várias realidades relacionadas com o mundo do direito passaram a receber esse nome. Assim, para analisar “qual realidade recebe o nome de direito em sentido próprio e primário” (HERVADA, 2008, p. 124), é preciso, antes, perceber quantas realidades distintas são chamadas de direito. Tomás de Aquino afirma que o termo direito foi empregado originalmente para significar a própria coisa justa; depois, derivou para denominar a arte que discerne o que é justo, o lugar onde se outorga o direito e, por fim, a sentença dada pelo juiz. Francisco de Vitoria (um dos grandes nomes da Escola de Salamanca), por sua vez, diz que há três acepções de direito: o justo ou o objeto da justiça, a arte do direito e a lei. Outros autores, como V. Cathrein, afirmam que as acepções principais do direito são: o seu ou o justo, a norma ou lei e o direito subjetivo. Hervada concorda com a visão de Cathrein. Desse modo, qual dessas três realidades é o direito em sentido próprio e primário, “sendo as outras direito no sentido de ser elementos da realidade jurídica, mas denominandose direito em sentido lato por sua relação com o direito em sentido próprio e estrito?” (HERVADA, 2008, p. 132). Para responder essa pergunta, precisa-se escolher uma perspectiva, segundo Hervada, e a perspectiva escolhida pela Filosofia do Direito é a perspectiva jurídica, a do jurista. Assim, o direito em sentido primário é o objeto do ofício do jurista, ou seja, o objeto da justiça (o que a justiça o leva a dar). Seria, então, esse sentido primário a lei? Isso gera um pequeno problema: “afirmar que a lei é o direito em sentido próprio quer dizer que a arte do direito é a ars legum (arte das leis). Porém isso significa, principalmente, a arte de fazer as leis” (HERVADA, 2008, p. 133). evidentemente, podem auxiliar na criação de uma lei, mas sua função é consultiva: quem cria a lei é o poder legislativo do regime político em questão. Mas, a arte do direito não pode ser a arte de interpretar as leis? A resposta é não. Ainda que interpretar as leis seja algo fundamental para o ofício do jurista, sua função não termina aí: “sua função é dizer e determinar o justo, seja legal, seja distributivo, seja corretivo-comutativo” (HERVADA, 2008, p. 134). Negar que o direito em sentido primário seja a lei não é negar a importância da lei para a realidade jurídica. Mas, é sim negar uma inversão no ofício do jurista que o transforma 297

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Contudo, quem elabora as leis não são os juristas, mas os políticos. Os juristas,


em um mero aplicador da lei. Se isso for verdade, o jurista não está na esfera da justiça, mas na esfera da política: sua função se torna “garantir o desenvolvimento da vida social de acordo com as leis” (HERVADA, 2008, p. 134) e não dizer o que é justo nas relações sociais. No fundo, este conceito de direito “está elaborado pela perspectiva política e não pela perspectiva jurídica, que é a perspectiva do jurista” (HERVADA, 2008, p. 134). Assim, como dito acima, este conceito não pode ser o conceito primário para a Filosofia do Direito, que adota uma perspectiva jurídica (ainda que o possa ser para a Filosofia Política). Então, será que é o direito subjetivo o direito em sentido primário? Antes de respondermos, é preciso saber que Hervada define o direito subjetivo como “uma faculdade de fazer, omitir ou exigir algo” (HERVADA, 2006, p. 44). E, sobretudo, como uma faculdade de exigir. Pois bem, em sua obra Colóquios Propedêuticos ao Direito Canônico (HERVADA, 2002, p. 31-32), Hervada traz uma ilustração que nos auxilia a entender porque o direito subjetivo não é o direito em sentido primário. Suponha que A e B estão em uma relação de justiça (jurídica), porque A deve a B o que a este pertence. Caso A não dê a B o que o deve, B pode exigir a satisfação da dívida (ele tem a faculdade de exigir). Assim, a dívida tem prioridade ontológica à faculdade de exigir, porque B pode exigir a coisa que lhe é devida. E esta coisa é devida, porque pertence a ele (porque é sua). Portanto, o centro da relação jurídica é a coisa devida por um sujeito a outro por pertencer a este último e é esta coisa que a justiça (e o homem justo) dá. Esta coisa (o seu) é o direito no sentido primário. Caso o devedor não dê o bem que constitui o justo (o direito, o seu), aparece a faculdade de exigir. Assim, o direito subjetivo como facultas exigendi (faculdade de exigir) é um derivado no direito em sentido próprio (a coisa justa, devida). Entretanto, o que dizer do direito subjetivo como faculdade de ter e de fazer? Ora, “as coisas que constituem o direito podem ser corpóreas ou incorpóreas, como uma função e um poder” (HERVADA, 2008, p. 167) e, por isso, o direito (a coisa justa) pode ser uma faculdade de ter ou de fazer. Portanto, ou o direito subjetivo é simplesmente direito ele (como a faculdade de exigir). Agora, podemos definir o que é o direito: “direito é aquela coisa que, estando atribuída a um sujeito, que é seu titular, é devida a esse, em virtude de uma dívida em sentido estrito” (HERVADA, 2008, p. 136). Evidentemente, o direito não é a coisa em si, mas ela enquanto relacionada com alguns sujeitos na situação complementar atribuição-dívida. O direito não é nada mais que o objeto da ação justa (o objeto da justiça, aquilo que a justiça dá) e, consequentemente, da arte do jurista (a arte de “desvelar o que é justo nas relações sociais” 298

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(coisa justa, devida a alguém) ou é uma manifestação do direito, um elemento consequente a


[HERVADA, 2006, p. 10] ou, em outras palavras, dizer o direito). Sendo assim, é o mesmo que o justo (objeto da justiça) e que o seu enquanto devido (por isso, a correspondência entre as duas fórmulas da justiça – dar a cada um o que é seu e dar a cada um o seu direito).

7 JAVIER HERVADA E SANTO TOMÁS DE AQUINO É interessante analisar as respostas de Santo Tomás – o principal nome do realismo clássico (ou realismo tomista). Diferentemente de Hervada, o Santo Tomás não analisa tão profundamente a arte jurídica. Contudo, ele afirma que o nome direito também é aplicado a uma arte (a arte que Hervada chama de arte jurídica): a “arte de discernir o que é justo” (TOMÁS DE AQUINO, 2005 – Suma Teológica, II-II, Q. 57, 1, ad. 1)6. O espanhol, por sua vez, afirma que a arte do jurista é a arte que desvela o que é justo na sociedade. Em outra obra, ele afirma que o ofício do jurista (a arte que Santo Tomás chama de direito) “é uma arte [...] um saber que implica discernir: o discernimento entre o justo e o injusto” (HERVADA, 2008, p. 53). No que diz respeito direito propriamente dito, Santo Tomás aprofunda mais. O pensador dedica uma questão (II-II, Q. 57) de sua Suma Teológica para a reflexão de temas relativos ao direito. No primeiro artigo dessa questão, ele questiona se o direito é o objeto da justiça. Assim, ele expõe que o direito é um termo análogo 7. O sentido primário do direito é o de objeto da justiça (a própria coisa justa). Desse modo, ainda que a arte jurídica e o lugar onde se aplica o direito possam ser chamados de direito (na época de Santo Tomás, o que chamamos de tribunal também era chamado de direito – ius), é o objeto da justiça que é propriamente o direito. A lei, por sua vez, também não é propriamente direito, mas a regra do direito. Hervada apenas expande e atualiza a ideia do termo direito como análogo. Assim, ele direito subjetivo, a arte jurídica e a lei8) são análogos. Além disso, se aproxima, novamente, de Santo Tomás ao defender que a lei não é direito. Entretanto, assim como Santo Tomás, 6

Suma Teológica, II-II, Q. 57, 1, ad. 1 “A analogia [...] é uma modalidade de atribuição de um predicado a múltiplos sujeitos por razões parcialmente iguais e parcialmente diferentes” (SCHERER, 2018, p. 48). Em outras palavras, “temos analogia, quando o termo é comum e a realidade significada, nem inteiramente a mesma nem inteiramente diferente, mas implica uma relação e uma semelhança entre os diversos entes aos quais é atribuído: o homem é são, a cor da fisionomia é são, o alimento é são” (HUGÓN, 1998, p. 57). 8 O tribunal é excluído, porque, atualmente, ninguém o chama de direito. 7

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defende que o sentido primário do direito é o de objeto da justiça e que os outros sentidos (o


Hervada afirma que ela “cumpre a função de regra e medida do justo e muitas vezes cria títulos de direito (causa do direito)” (HERVADA, 2008, p. 134). Por fim, precisa-se analisar o tratamento que ambos dão à virtude da justiça. Os dois adotam a definição clássica da justiça como a virtude de dar a cada um o seu direito9. A diferença entre os dois nesse ponto reside apenas no enfoque dado. Santo Tomás, diferentemente de Hervada, não realiza uma análise termo a termo da fórmula, mas uma análise geral fórmula e também analisa a virtude da justiça sob um prisma mais ético que propriamente jurídico (ainda que suas análises tenham lançado bases para a compreensão realista do direito). Desse modo, pode-se afirmar que Hervada, como dito pelo próprio autor, tem Santo Tomás como seu ponto de partida e, portanto, seu pensamento jurídico é mesmo permeado pelo sistema tomista. Contudo, realmente o Santo Tomás não é o ponto de chegada de Hervada. Tendo Santo Tomás como base, ele erigiu seu sistema jurídico, atualizando o pensamento tomista quando necessário e refletindo sobre temas pouco ou nada refletidos por Santo Tomás.

8 CONSIDERAÇÕES FINAIS Os elementos da filosofia de Hervada tratados no decorrer desse artigo nos auxiliam a compreender melhor o que é seu realismo jurídico clássico10. Primeiramente, seu conceito de direito é distinto do defendido pela maioria dos juristas modernos: estes consideram que o direito, primeiramente, é a norma (sendo, por isso, chamados de normativistas), enquanto Hervada entende que o direito é uma coisa devida a um sujeito (e, portanto, se denomina realista – de res, coisa em latim). Com essa resposta também é possível perceber que seu realismo é clássico: a res justa (coisa justa), em seu pensamento, tem o mesmo significado O trajeto que Hervada faz para alcançar suas conclusões acerca do que é o direito, por sua vez, demonstra porque seu realismo é jurídico. A perspectiva do filósofo do direito, para ele, é a perspectiva do jurista e da justiça. Não cabe, aqui, ao se questionar o que é o direito, respostas influenciadas pela política ou por outro campo que não o da arte jurídica. É 9

Cf. Suma Teológica, II-II, Q. 58, 1. Preferimos utilizar o termo usado pelo próprio Hervada nessa conclusão. Entretanto, o que foi dito no início desse texto continua sendo defendido: a melhor forma de definir seu pensamento é denominando-o realismo jurídico clássico tomista. 10

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que tem nas filosofias de Aristóteles e Santo Tomás– ela é a coisa devida a alguém.


partindo da virtude de dar a cada um o seu e da arte de desvelar o que é justo nas relações sociais que se encontra o sentido primário do direito (que não é nada mais que o objeto da justiça). Por fim, é evidente que ainda há elementos fundamentais em seu pensamento que não foram abordados aqui. Dentre estes, cabe destacar o direito natural, a lei natural e o direito canônico (afinal, Hervada, além de filósofo do direito, é um canonista). Contudo, os três principais conceitos de seu pensamento são a arte jurídica, a justiça e o direito. São estes que definem o que é seu realismo e são eles o ponto de partida do qual o estudo daqueles decorre. Portanto, para uma introdução à jusfilosofia de Hervada, são os conceitos fundamentais (afinal, não é coincidência o fato do autor iniciar suas principais obras tratando desses temas)11.

REFERÊNCIAS HERVADA, Javier. Lições Propedêuticas de Filosofia do Direito. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008. HERVADA, Javier. Crítica Introdutória ao Direito Natural. Porto: RÉS-Editora, [1990?]. HERVADA, Javier. O que é o direito? A moderna resposta do realismo jurídico. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2006. HERVADA, Javier. Coloquios Propedéuticos sobre el Derecho Canónico. Pamplona: Navarra Gráficas Ediciones, 2002.

n. 2, p. 7-19, 1988.

11

Os capítulos II, III e IV de sua obra “O que é o direito?” abordam, respectivamente, os temas da arte do direito, da justiça e do direito. Na “Crítica Introdutória ao Direito Natural”, a arte do direito é tratada no capítulo I, a justiça nos capítulos I e II e o direito no capítulo II. Os capítulos IV, V e VI das Lições Propedêuticas de Filosofia do Direito abordam, respectivamente, os temas do ofício do jurista (a arte jurídica), a justiça e o direito.

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HERVADA, Javier. Apuntes para una exposición del realismo jurídico clásico. Díkaion, Chía,


HERVADA, Javier. IVARS, Javier Escrivá. Relectura de la obra científica de Javier Hervada. Preguntas, diálogos y comentarios entre el autor y Javier Hervada (Parte I). Pamplona: Servicio de Publicaciones de la Universidad de Navarra, 2008. HERVADA, Javier. IVARS, Javier Escrivá. Relectura de la obra científica de Javier Hervada. Preguntas, diálogos y comentarios entre el autor y Javier Hervada (Parte II). Pamplona: Servicio de Publicaciones de la Universidad de Navarra, 2009. HUGÓN, Padre Édouard. Os Princípios da Filosofia de São Tomás de Aquino. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998. SCHERER, Daniel. A Raiz Antitomista da Modernidade Filosófica. Formosa: Edições Santo Tomás, 2018. TOMÁS DE AQUINO, Santo. Suma Teológica: Volume VI. São Paulo: Edições Loyola, 2005.

Universidad de Navarra. Búsqueda de Personas: Hervada. Disponível em: <https://www.unav.edu/web/guest/buscador-avanzado?profesores=Hervada>. Acesso em: 01 mai. 2019.

VIGO, Rodolfo. El Iusnaturalismo Actual: De M. Villey a J. Finnis. Cidade do México: Distribuciones Fontamara, 2003.

ABSTRACT This article aims to expose, in an introductory way, basic elements of Javier Hervada's jusphilosophy, which is called classical legal realism by the author himself. This exhibition will be divided into two parts. In the first, it will be explained what Hervada means by classical legal realism, thus providing a definition for these terms. In the second, 302

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JAVIER HERVADA'S CLASSICAL LEGAL REALISM: DEFINITION AND BASIC CONCEPTS


basic concepts of his jusphilosophy will be clarified. In this section, answers to recurring questions in the Philosophy of Law will be presented: “what is law?”; “What is justice?”; "Is law an art or a science?"

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Keywords: Classical Realism. Justice. Law. Neo-thomism.

303


A

SUBNOTIFICAÇÃO

ENQUANTO

CARACTERÍSTICA

MARCANTE

DO

ESTUPRO NO CONTEXTO BRASILEIRO Khadja Vanessa Brito de Oliveira1

RESUMO O objetivo deste estudo é analisar a subnotificação enquanto característica presente no panorama geral do crime de estupro, na sociedade brasileira. A pesquisa se deu mediante investigação de dados anualmente divulgados, acerca das características raciais, sociais, culturais e econômicas que permeiam a existência do estupro atualmente. E, enquanto problema de saúde pública, o estupro demonstrou sua outra face, a da invisibilidade. A questão da subnotificação sempre acompanhou os crimes sexuais e, atualmente, em que pese as políticas públicas em busca de sanar o problema, ainda existe.

1 INTRODUÇÃO

A violência, enquanto categoria histórica, sempre esteve presente na vida em sociedade. Em todas as civilizações, épocas e contextos, a violência foi utilizada como um instrumento de perpetuação de força e poder de um indivíduo ou grupo em detrimento de 1

Graduanda do curso de Direito da UFRN.

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Palavras-chave: Brasil. Estupro. Subnotificação.


outro. Possuindo uma figura tipicamente reprovável, a violência é geralmente associada a grandes atos, como guerras e massacres, ou a condutas cruéis, como assassinatos e tortura. No entanto, através da história, a violência se perpetuou nos mais diversos meios, assumindo um lugar cada vez maior dentro da esfera da liberdade sexual. No decorrer dos séculos, a violência sexual existiu sob o caráter da normalidade, sem receber os olhares reprováveis, costumeiramente associados aos demais atos agressivos praticados em sociedade. Atualmente, a violência sexual é definida como a violação da dignidade de outrem através do uso da força, coerção, intimidação ou violência psicológica, de modo a obter vantagens de cunho sexual. Esses atos são considerados crime e possuem tipificação expressa no Código Penal, que discrimina os tipos de violência sexual e busca oferecer uma efetiva proteção às vítimas. Entretanto, a herança milenar de invisibilização desse tipo de crime ainda é uma realidade oculta dentro do cenário brasileiro. A desinformação e o silenciamento sistêmico e culturalmente arraigado dos indivíduos pertencentes a grupos vulneráveis, como mulheres e crianças, gera situações absurdas dentro do contexto da violência sexual, como o fato apontado em pesquisas de que apenas 10% dos casos de estupro, no Brasil, chegam ao conhecimento da polícia. Medo de morte, vergonha e sentimento de culpa são os principais motivos apontados para a falta de denúncia por parte das vítimas. A cultura de culpabilização destas existente no Brasil faz com que frases como o que você estava fazendo na rua a essa hora e com essa roupa? e você tem certeza que foi estupro mesmo? sejam consideradas normais e, portanto, passíveis de repetição constante, gerando nas vítimas o sentimento de humilhação e corroborando com um dos maiores problemas relativos à violência sexual na atualidade: a subnotificação. Assim, tendo em vista a importância desse estudo e dos problemas a ele

âmbito nacional, valendo-se de dados oficiais de notificação lançados ano após ano. Partindo da análise desses dados e dando especial enfoque ao estupro, o estudo se debruçará sobre o porquê de as pesquisas não condizerem com a realidade, bem como sobre a omissão enquanto elemento configurador do mapa da violência sexual no Brasil.

2 VIOLÊNCIA SEXUAL

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relacionados, o presente trabalho busca analisar a evolução dos casos de violência sexual em


A violência é um fenômeno social atemporal que afeta a saúde das comunidades nas quais se manifesta, sendo considerado um problema estrutural geralmente causado por distúrbios políticos, econômicos ou culturais. A Organização Mundial da Saúde (1996) define violência como o uso intencional da força física ou do poder, por meio de ameaça ou vias de fato, contra si próprio, outra pessoa ou um grupo que resulte ou possa resultar em lesão, morte, dano psicológico ou desenvolvimento prejudicado. Enquanto disfunção inerente à sociedade, a violência se expressa das mais diversas formas, entre elas, a violência sexual. Essa ramificação abrange todo e qualquer ato em que uma pessoa, em situação de poder, com uso da força ou mediante coerção, intimidação ou violência psicológica, obriga outra pessoa, de qualquer sexo ou idade, a ter, presenciar ou participar de interações sexuais, ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade (BRASIL, 2016). Os atos de violência sexual estão tipificados no Título IV do Código Penal e possuem outras regulamentações em leis específicas, como a Lei 12.845/13, que dispõe sobre o atendimento obrigatório e integral de pessoas em situação de violência sexual, e a Lei 11.340/06, que cria mecanismos de contenção da violência doméstica e familiar contra a mulher (é popularmente conhecida como Lei Maria da Penha, pois foi uma mulher chamada Maria da Penha que ensejou a sua criação). No entanto, a despeito das leis, os crimes de violência sexual adquiriram um crescimento sistemático na última década, tornando-se um problema de saúde pública a ganhar espaço nos mais diversos setores sociais, principalmente naqueles que englobam integrantes dos dois maiores grupos de risco: as mulheres e as crianças. Segundo o Código Penal, os crimes de violência sexual consistem em: estupro, violência sexual mediante fraude, importunação sexual, assédio sexual, registro não autorizado da intimidade sexual, corrupção de menores, satisfação da lascívia mediante a

estupro ou pornografia, bem como o mantimento de casa de prostituição, a prática de rufianismo e o tráfico internacional de pessoas para fim de exploração sexual. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública (FBSP, 2018) divulgou as estatísticas referentes ao número de estupros e tentativas de estupro praticados no ano de 2017. Os números chegaram a 61.032 casos, o que significou um aumento de quase 6 mil em comparação a 2016, o ano anterior. Atualmente, a análise do crescimento constante no número de casos representa um desafio em âmbito nacional. Somente no ano de 2015, no

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presença de criança ou adolescente, favorecimento da prostituição, divulgação de cena de


Brasil, 40% das mulheres e 35% dos homens relataram ter sofrido alguma forma de agressão sexual (WINZER, 2016).

2.1 Cultura do estupro no Brasil

A expressão cultura do estupro significa, basicamente, a banalização da violência e a normatização de costumes nocivos ao bem-estar em sociedade. Dentro da chamada cultura do estupro, não se ensina a não estuprar, mas, sim, a não ser estuprada. As pioneiras na criação e utilização desse termo foram as feministas dos anos 70 (SANTOS, ALVES, 2015), que o fizeram com a finalidade de desenvolver a consciência social, a partir de casos de estupro publicados estatisticamente. Dentre os elementos constituintes de uma sociedade baseada na cultura do estupro, estão a culpabilização da vítima e a ignorância acerca dos problemas por ela passados. Nesse aspecto, a vítima é ensinada a tomar cuidados para não ser assediada ou violentada física ou psicologicamente; e, em contraponto, o meio fiscalizador se ocupa em buscar formas de justificar a violência sofrida (SANTOS, ALVES, 2015). Segundo relatórios publicados pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2014), os números alarmantes de casos de estupro no Brasil existem desde a primeira pesquisa publicada, em 2013, já ultrapassando, na atualidade, a marca de 50.000 casos por ano. No entanto, o termo cultura do estupro só passou a ser nacionalmente utilizado a partir do ano de 2016, ocasião em que uma série de estupros coletivos foram noticiados e geraram grande comoção. Sobre isso, discorre Santos e Alves (2015, p. 52):

Como efeito, duas vertentes se desenvolveram e cresceram. A primeira, a consciência, decorrente de crescentes ocorrências e estopim de casos publicados

em função da primeira, uma rede de comunicação gerada pela necessidade de medidas mais eficazes e busca por soluções minimizadoras da barbárie que se construiu entre estudiosos e vítimas contribuintes do processo.

Embora a cultura do estupro atinja toda a sociedade, não é possível afirmar que ela se aplica a todos igualmente. Esse condicionamento social parte de um sistema muito maior de desigualdades, no qual a estrutura de pensamento reforça o modelo de interação baseado na dominação de determinado grupo em detrimento de outro. Dessa forma, algumas categorias se encaixam no grupo de vulnerabilidade, dentre elas, as mulheres e crianças, que, dentro da 307

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estatisticamente; no entanto com incidências assombrosamente maiores. A segunda,


história, sempre foram invisibilizados e postos à mercê de uma hierarquia culturalmente construída e imposta como natural.

2.1.1 Primeiro grupo vulnerável: mulheres

As ciências sociais se utilizam da palavra gênero como uma construção teórica para sistematizar desigualdades socioculturais entre homens e mulheres, que, além de repercutirem nas vidas dos dois sexos, impõem normas de comportamento a cada um deles, criando figuras de dominação e submissão. Nesse sentido, define-se como violência de gênero os atentados, com base no sexo, ao bem-estar físico, social ou psicológico de determinado sujeito ou grupo. E, no contexto brasileiro, o gênero mais atingido pela violência sexual é o feminino. Segundo nota técnica divulgada pelo Sistema de Informações de Agravo de Notificação, do Ministério da Saúde (CERQUEIRA; COELHO, 2014), 89% dos casos de estupro configuram como vítimas pessoas do sexo feminino. Dentro da perspectiva de uma sociedade marcada pela cultura do estupro, esse dado encontra respaldo nas falas de 58,5% dos homens brasileiros que afirmam, segundo pesquisa divulgada pelo IPEA (2014, p. 3), que “se as mulheres soubessem se comportar haveria menos estupros”. Teles e Melo (2017, p. 7) afirmam: “A violência contra a mulher carrega um estigma como se fosse um sinal no corpo e na alma da mulher. É como se alguém tivesse determinado que se nem todas as mulheres foram espancadas ou estupradas ainda, poderão sê-lo qualquer dia desses. Está escrito em algum lugar, pensam.” A construção histórica de uma suposta superioridade masculina, atrelada aos ideais de uma sociedade excessivamente marcada pelo machismo, faz com que as mulheres sejam objetificadas e apresentadas enquanto seres passíveis de sofrerem violência sexual. Segundo a Pesquisa Nacional de Vitimização (CRISP; DATAFOLHA; SENASP, 2013), o medo de

casa, sendo 7,6% o índice de mulheres que temem ser vítimas de agressão por parte de companheiro ou ex-companheiro.

2.1.2 Segundo grupo vulnerável: crianças

Outro grupo considerado vulnerável é o das crianças e adolescentes. Conforme dados retirados do Observatório da Criança e do Adolescente, a quantidade de casos de estupro notificados contra esse grupo social no ano de 2016 ultrapassou os 16 mil. Entre o ano de 308

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agressão sexual atinge 26,2% das mulheres, que sofrem, inclusive, com violências dentro de


2011 e o de 2017, conforme o Ministério da Saúde, o aumento de notificações foi de 83% (BRASIL, 2018). O estupro, enquanto crime silencioso, muitas vezes acontece dentro da casa das próprias vítimas, e, nesses casos, as crianças são as mais afetadas. Ainda segundo o Ministério da Saúde (BRASIL, 2018, p. 1):

As violências contra crianças e adolescentes são consideradas problemas de saúde pública e violação dos direitos humanos, e geram graves consequências nos âmbitos individual e social. As violências sexuais contra essa população afetam meninas e meninos e muitas vezes ocorrem nos espaços doméstico, familiar e escolar, o que não garante visibilidade na esfera pública e dificulta o acesso aos serviços de saúde.

O abuso infantil é decorrente do fato de as crianças, muitas vezes, não terem noção do que estão sofrendo. As crianças e adolescentes tendem a confiar em pessoas do seu ciclo familiar ou de amizade e, quando a violência sexual acontece, elas nem sequer se dão conta de que aquilo é problemático. A força, ameaça ou incapacidade fazem com que as crianças e adolescentes sejam encaixados num grupo vulnerável no mapa do estupro no Brasil.

2.2 Mudanças legislativas nos crimes sexuais promovidas pela Lei nº 13.718

Originariamente o Código Penal tratava os crimes sexuais como crimes contra os costumes, tutelando, sobretudo, os crimes contra a mulher. Contudo, não se pode confundir essa tutela como uma proteção à mulher – pelo contrário – pois, calcada em ideais patriarcais, a redação originária se pautava no controle da sexualidade da mulher, a exemplo da valoração que se fazia entre o estupro de uma mulher virgem e uma mulher que era prostituta (HAUSCHILD; JOHNER; ALBRECHT, 2018).

uma alteração legislativa dos crimes sexuais, que, anteriormente, eram chamados de crimes contra os costumes. Em 2009, houve o advento da Lei nº 12.015, que deixou de tutelar os crimes somente contra a mulher e passou a referir-se a crimes contra a dignidade sexual de qualquer dos sexos. Essa alteração promoveu mudanças nos tipos penais até então tutelados, passando, por exemplo, a juntar o crime de atentado violento ao pudor e o crime de estupro. Nesse momento, o Código Penal passou a prever, em seu art. 213, o estupro como conjunção carnal ou como qualquer ato libidinoso.

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Com a mudança gradual da mentalidade existente na sociedade, tornou-se necessária


Embora a reforma do Código Penal, pela Lei nº 12.015/09, tenha alterado a tutela dos crimes sexuais, criou-se certa polêmica sobre a aplicação do crime de estupro, em determinadas situações em que se entendia que a gravidade da conduta não poderia ser equiparada ao crime. Apesar de o Código Penal conter diversos tipos penais que tratavam dos crimes sexuais, houve uma omissão legislativa com relação aos crimes de potencial ofensivo menor que o de estupro e maior que o de contravenção penal de importunação pública ao pudor (HAUSCHILD; JOHNER; ALBRECHT, 2018). Um exemplo de situação que se chocou com essa lacuna normativa foi a do homem que ejaculou em uma mulher em um transporte coletivo. Esse fato aconteceu no ano de 2017 e acendeu os clamores da população, que passou a questionar-se se a conduta se enquadraria no crime de estupro, previsto pelo art. 213 do Código Penal, ou na contravenção penal de importunação pública ao pudor, prevista no art. 61 da Lei de Contravenções Penais. Após os diversos clamores para a criação de um novo tipo penal que abarcasse esses casos específicos de assédio, foi promulgada a Lei nº 13.718/2018, que introduziu no Código Penal o crime de importunação sexual, regulado pelo art. 215-A, o qual prevê pena de reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, à prática de ato libidinoso contra alguém e sem a sua anuência, com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro. Além do novo tipo penal, a Lei implementou algumas novas modificações, dentre elas a transformação dos crimes contra a dignidade sexual em crimes ajuizados mediante ação pública incondicionada. Outra mudança foi a retirada do dispositivo ofensa ao pudor e o estabelecimento de causas de aumento de pena, para os crimes contra a liberdade sexual e crimes sexuais contra vulneráveis. Também foi definido como causa de aumento de pena o estupro corretivo e o coletivo.

Fazendo uma análise de dados, observa-se que o estupro, enquanto problema de saúde pública, perpetua-se ano após ano na sociedade brasileira. Os números aumentam periodicamente, e pouco se consegue fazer para diminuir a incidência desse tipo de crime. Diversos fatores influenciam na forma, no modo e no lugar onde ocorrem os estupros, e características, como escolaridade, classe social e raça da vítima, também são elementos responsáveis pela maior ou menor incidência de estupros em determinado grupo. Um estudo divulgado pelo IPEA, no ano 2017 (CERQUEIRA; COELHO; FERREIRA, 2017), fez uma análise crítica acerca dos fatores sociais e situacionais que 310

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2.3 Análise do mapa do estupro no Brasil


influenciaram o aumento dos casos de estupro, no Brasil, entre os anos de 2011 e 2014. Os dados apontaram que os agressores são, em 94,5% dos casos, homens, e as vítimas são, em sua maioria, crianças e adolescentes. Com relação aos critérios de raça e cor, os grupos mais acometidos pela violência foram os pardos e brancos; e, no que diz respeito à escolaridade, os mais atingidos foram aqueles com ensino médio completo. Além disso, a pesquisa apontou que outro grupo atingido pela violência sexual é o das pessoas com deficiências físicas ou mentais. Enquanto, em geral, 36,2% das vítimas possuíam um histórico de estupros anteriores, entre as pessoas que apresentavam alguma deficiência, as vítimas recorrentes de estupro eram 42,4% (CERQUEIRA; COELHO; FERREIRA, 2017). No que tange a relação entre o autor e a vítima, a situação é variável. Nos casos de estupro de crianças, 40% dos estupradores pertenciam ao grupo familiar próximo. Já no caso de pessoas com mais de 18 anos, os agressores eram, em geral, desconhecidos da vítima. Quanto à incidência de fatores externos, a pesquisa demonstrou que os estupros tendem a acontecer em dias úteis; e, quando os autores eram conhecidos da vítima, o horário de preferência era a tarde, enquanto no caso de pessoas desconhecidas, os estupros ocorreram mais na parte da noite.

3 SUBNOTIFICAÇÃO DOS CASOS DE ESTUPRO

O aumento anual no número de casos de estupro levanta uma problemática: o que estaria aumentando: os estupros ou as notificações? Segundo nota técnica divulgada pelo IPEA (CERQUEIRA; COELHO, 2014), estima-se que, a cada ano, no Brasil, 0,26% da população sofre violência sexual, o que indica que há, anualmente, 527 mil tentativas ou casos

Apesar do pequeno percentual de denúncias, o estupro é um tipo de violência sexual cada vez mais reportado. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicado em 2018, referente ao ano de 2017, traz um aumento considerável com relação ao ano anterior. Enquanto, em 2016, o número de casos registrados foi de aproximadamente 55 mil, em 2017, o valor subiu para 61 mil, demonstrando um crescimento de quase 10%. Pesquisas são lançadas periodicamente com o fito de analisar o mapa da violência sexual no Brasil, entretanto, os dados referentes ao estupro são muito difíceis de se trabalhar. A sociedade brasileira se desenvolveu em torno de uma mentalidade conservadora que pune e 311

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de estupros consumados no país, dos quais apenas 10% são reportados à polícia.


julga as vítimas desse tipo de violência, transformando o estupro em um tabu extremamente nocivo, que dá aos autores do crime maior liberdade para agir e às vítimas uma série de receios para denunciar. Segundo Drezett (2003, p. 37): “No Brasil, a maior parte das mulheres não registra queixa por constrangimento e humilhação, ou por medo da reação de seus conhecidos e autoridades. Também é comum que o agressor ameace a mulher de nova violência caso ela revele a que sofreu.” A vergonha, a humilhação e o sentimento de culpa acometem as vítimas, que, intimidadas pelos julgamentos que irão receber, calam-se e lidam, sozinhas, com esse problema. O primeiro desafio para os indivíduos violentados é produzir provas contra o agressor. Muitas delegacias não possuem áreas preparadas o suficiente para lidar com as consequências e implicações causadas pelo estupro, e acabam por amedrontar as vítimas. Além disso, a produção das provas necessárias para seguir com o processo também desestimula e afasta a vítima. Grande parte dos casos de estupro não deixa marcas de violência física. Um número significativo desse tipo de crime é praticado com o uso de armas de fogo ou ameaça, o que faz com que, muitas vezes, não sejam detectados sinais clínicos de violência externa. Além disso, nos casos de ferimentos vaginais, para Drezett (2003), são verificadas taxas de apenas 10% de traumatismos extragenitais e de 3% de danos genitais entre adolescentes, com números semelhantes para mulheres adultas. A crença de que a polícia não pode fazer nada com relação ao caso também silencia muitos indivíduos vítimas de estupro. O ambiente da delegacia, mesmo as especializadas em crimes praticados contra mulheres, é opressor e impessoal; e, por vezes, reproduz o senso comum, emitindo julgamentos prévios ou reflexos da sociedade machista, desestimulando as vítimas a procederem com a denúncia. Outro fator que desencoraja a denúncia é o fato de que ações desse tipo acabam, por

comentários e perguntas como: Mas o que você estava fazendo na rua a essa hora?; Andar com essa roupa é pedir para ser estuprada; Mulher tem que se dar ao respeito; Não pode andar por aí desacompanhada; Mas você tinha bebido muito, tem certeza de que não foi consensual?; Se estivesse em casa, isso não teria acontecido. E, para uma pessoa que já teve sua individualidade violada, não é fácil lidar com as críticas sociais.

A violência sexual é a mais cruel forma de violência depois do homicídio, porque é a apropriação do corpo da mulher – isto é, alguém está se apropriando e violentando

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vezes, saindo da seara judicial e ganhando publicidade na sociedade, que costuma fazer


o que de mais íntimo lhe pertence. Muitas vezes, a mulher que sofre esta violência tem vergonha, medo, tem profunda dificuldade de falar, denunciar, pedir ajuda. (GONÇALVES, s.d. citado por DIP, 2017, p. de internet2).

Um outro motivo que impede as denúncias é o medo imposto pelo agressor. Muitas vezes, o autor do crime é amigo ou parente da vítima, o que a faz temer pela vida no caso de uma eventual soltura. Por exemplo, se uma jovem denuncia o padrasto abusador, e ele é condenado, ao sair da prisão, provavelmente, ele voltará para casa pronto para se vingar da vítima, que, muitas vezes, está sem amparo algum. Frequentemente, a decisão de denunciar não é apoiada nem mesmo pelos familiares próximos, que ou não acreditam na versão da vítima ou apenas não querem ter problemas posteriores. Outra questão muito séria é a do estupro dentro do casamento. Um dos mecanismos de funcionamento da sociedade gira em torno do controle do corpo feminino. Historicamente, a mulher foi vista como um objeto pertencente ao homem e, como tal, completamente submisso a ele. No decorrer dos séculos, as mulheres foram vistas como escravas sexuais, cujo corpo era aberto aos homens, e o comportamento poderia ser, por eles, controlado. Nesse diapasão, a violência sexual dentro do casamento sempre esteve presente nas mais diferentes culturas. Atualmente, segundo o Sistema de Indicadores de Percepção Social, divulgado pelo IPEA (2014), quase 60% da população brasileira acredita que toda mulher sonha em casar e constituir família. Dos entrevistados, 14% concordou totalmente com a ideia de que uma mulher casada deve satisfazer o marido, e 27% concordou parcialmente. Esses números demonstram que o estupro no casamento ainda é uma realidade presente e atuante na vida dos brasileiros. Desse modo, mulheres casadas que optam por denunciar o marido por estupro

justiça e adquirir legitimidade social para a denúncia.

4 CONSEQUÊNCIAS DA SUBNOTIFICAÇÃO

2

DIP, Andrea. Violência sexual no casamento: precisamos falar sobre isso. Cientista que virou mãe, 2017. Disponível em: <https://www.cientistaqueviroumae.com.br/blog/textos/violencia-sexual-no-casamentoprecisamos-falar-sobre-isso>. Acesso em: 06 jun. 2019.

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acabam percorrendo um caminho muito árduo para conseguir comprovar o crime perante a


O estupro é o reflexo de uma sociedade patriarcal e machista que incentiva a violência e a dominação. Considerado um problema estrutural, o estupro ameaça não só as vítimas, mas toda a sociedade e, em quase todo o mundo, esse crime se perpetua das mais diversas formas, tendo como uma de suas faces o silêncio. Segundo o Atlas da Violência (FBSP; IPEA, 2018), apenas 15% dos casos de estupro ocorridos nos Estados Unidos da América são notificados, o mesmo número de notificações que ocorrem na Austrália, por exemplo. Uma das principais consequências da subnotificação é o fato de que, ao se ocultar um problema, poucas são as medidas tomadas para resolvê-lo. Desse modo, mesmo que o estupro seja considerado um problema de saúde pública, ele é muito mais difícil combater, por se tratar de um mal invisível que atinge diversas pessoas sem, no entanto, ser posto à mostra. A falta de políticas efetivas para o combate ao estupro, por sua vez, ocasiona um número cada vez maior de casos, o que faz com que esse crime se torne um problema sistêmico e crescente. A sociedade que cresce em torno do aumento progressivo dos índices de estupro tende a naturalizar a prática desse crime, cultivando uma cultura violenta, dominadora e preconceituosa que ameaça o bem-estar comunitário. As vítimas de estupro nessa sociedade sofrem consequências psicológicas sérias e, por vezes, irreversíveis. As sequelas desse crime tornam a política social como um todo mais suscetível a outros problemas, como a desordem e a radicalização da violência, gerando uma sociedade egoísta que negligencia os problemas em prol da manutenção de condutas nocivas aos demais cidadãos.

5 CONSIDEREÇÕES FINAIS

Diante do que foi apresentado, é possível entender o estupro como um fenômeno

os projeta em indivíduos por meio da violência. Devido ao alto grau de reprovabilidade da conduta, o estupro é atualmente considerado crime em quase todo o mundo e, especificamente no Brasil, possui tipificação expressa no Código Penal, sendo, inclusive, enquadrado na categoria de crime hediondo, por ser visto como uma das maiores violências à liberdade individual. Entretanto, apesar de ser uma conduta reprovável, a qual se tenta combater, o estupro ainda é um grande tabu, o que faz com que os números de casos sejam muito maiores que as notificações. A desconfiança com relação à vítima e as constantes tentativas de justificar o ato 314

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cultural fruto de uma sociedade machista e dominadora que, para não assumir seus problemas,


desestimulam as denúncias, fazendo com que o crime de estupro assuma uma faceta muito prejudicial para o bem-estar da sociedade: a do silêncio. Como já apresentado no trabalho, as consequências disso são as mais diversas. Pouco se sabe até que ponto a subnotificação está, de fato, moldando a sociedade brasileira. No entanto, acredita-se que os pontos negativos, cada vez mais, sobressaem-se e deixam transparecer a imagem de uma sociedade doente, na qual os indivíduos são egoístas e incapazes de se importar com a realidade que os cerca. Apesar dos constantes projetos de lei buscando reduzir o problema da subnotificação, ele ainda é um fato que persistirá enquanto a sociedade não se mobilizar para educar os autores do crime e proteger as vítimas.

REFERÊNCIAS

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WORLD HEALTH ORGANIZATION. Violence: a public health priority. Geneva: World Health Organization, 1996.

THE UNDERREPORTING OF RAPE AS A FEATURE IN BRAZIL

ABSTRACT This study aims to analyse underreporting as a feature of the overview of rape in the Brazilian society. The research was conducted through an annually reported data investigation on racial, social, cultural and economic features along nowadays rape existence. Therefore, as a public health issue, rape has shown its another face – of invisibility. The underreporting situation has always followed sexual crimes and currently, despite the effort of public policies to solve the problem, it

Keywords: Brazil. Rape. Underreporting.

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still exists.


A CRISE DO DIREITO PENAL NA PÓS-MODERNIDADE: POR UMA EIDÉTICA PENAL Gabriel Pereira da Silva1

RESUMO Todas as mudanças no meio social, tecnológico e científico, ocorridas no último século, nos direcionaram ao que alguns estudiosos chamam de pós-modernidade. Verifica-se que essa nova era é marcada pela tecnização da sociedade, a qual levou a uma desconstrução ontológica do homem hodierno. Partindo de uma visão fenomenológica, fundada nas lições de Aquiles Côrtes Guimarães, o presente trabalho pretende de forma sucinta e introdutória, analisar a influência desse homem da pós-modernidade na percepção do Direito contemporâneo, sobretudo, na seara penal e como a atitude fenomenológica pode nos ajudar a resolver os dilemas engendrados no mundo pós-moderno.

1 INTRODUÇÃO O presente trabalho nasce em meio aos dilemas encontrados ao longo dos estudos iniciais sobre a fenomenologia, método e corrente filosófica desenvolvida por Edmund 1

Bacharelando do curso de Direito pela Universidade Cândido Mendes (UCAM) - Campus de Jacarepaguá (RJ). Atualmente exerce a função de estagiário junto ao Ministério Público Federal no Rio de Janeiro (MPF/PRR-2). E-mail: <gps_rj@hotmail.com>.

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Palavras-chave: Fenomenologia. Direito penal. Pós-modernidade.


Husserl no início do século XX. Assim sendo, por se tratar de uma iniciação ao pensamento do filósofo aplicado, sobretudo, às ciências jurídicas no referente ao seu viés penal, as reflexões a seguir não pretendem de forma alguma apresentar uma exposição sistemática sobre o tema. Nesse viés, o nosso escopo é apenas fomentar a curiosidade, principalmente, nos juristas acerca da visão fenomenológica aplicada ao Direito penal e como essa pode nos ajudar a resolver os problemas engendrados em tempos pós-modernos. O Direito apresenta-se como um ser uno, contudo, mostra-se em diferentes perspectivas (tributário, civil, entre outros). A concepção penal das ciências jurídicas nasce em meio à crise axiológica humana, a transmudação dos valores, uma vez que surge para conter uma anomia social. Tendo em vista essa contenção, pontua Batista (2011, p. 21) que alguns autores entendem ser a função do Direito penal a garantia das condições de vida da sociedade, o combate ao crime, a preservação dos interesses do indivíduo e do corpo social. Outrossim, defende Batista (2011, p. 21), que as limitações da função e da essência do Direito Penal não devam ser aceitas de forma tão resignada. No entanto, persuadidos pelos ensinos de Guimarães (2013) acerca da aplicação da fenomenologia às ciências jurídicas, se esboçará ao longo do trabalho uma possível definição da função do Penal. Nesse viés, tem-se que ao lidar diretamente com valores essenciais ao homem, como a liberdade, esse ramo do Direito, ao contrário do que se vê hodiernamente, deve ser encarado de forma mais rigorosa para que se possa reduzir os equívocos provocados nessa área. Não obstante a isso, verifica-se que as grandes mudanças sociais, tecnológicas e científicas do último século deram início ao que alguns estudiosos intitulam ser a pós-modernidade. Dessa forma, observa-se que as características marcantes dessa nova sociedade são sua rápida mutabilidade e sua fragilidade basilar, propriedades essas, as quais alguns autores defendem que motivou uma verdadeira crise. Á vista disso, discorrer-se-á ao longo dessa reflexão o fato gerador da atual crise que

que o levam a evidenciar o mundo a partir de uma atitude natural, em que se evidenciam as coisas não como elas mesmas – em carne e osso, em termos fenomenológicos2 –, mas sim, a partir de pré-conceitos e pré-juízos, afluindo na irreal percepção da essência e ideia das

2

A fenomenologia caracteriza-se por ser uma ciência intuitiva da essência dos objetos, a corrente filosófica proposta pelo pai da fenomenologia pretende o retorno às coisas mesmas (DARTIGUES, 2003, p. 13). A expressão em carne e osso é utilizada em inúmeros textos de natureza fenomenológica, conforme verifica-se por exemplo em DARTIGUES, 2003, p. 85; GUIMARÃES, 2013, p.2, entre outros, essa frase exemplifica a situação dos objetos em sua existência originária.

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encontra-se na fragmentariedade do homem pós-moderno e na sua crise ontológica, fatores


coisas, no presente estudo, o Direito Penal. Dessarte, pode-se dizer que o presente trabalho está dividido em três partes, nas quais abordam-se de forma autônoma algumas seções.

2 CONCEPÇÃO DO DIREITO À LUZ DA FENOMENOLOGIA DE AQUILES CÔRTES E A FUNÇÃO DO DIREITO PENAL Em um primeiro contato com as ciências jurídicas3 são apresentadas basicamente duas ideias acerca do que é o Direito. A primeira diz respeito à matéria como uma elaboração humana, nestes termos, defende Batista (2011, p. 18), que o Direito “é um produto do homem, da sua natureza, do seu trabalho, ele é produzido pelo grupamento humano e pelas condições concretas em que se estruturam e se reproduzem”. Ainda nesse viés, tem-se a segunda concepção, onde as ciências jurídicas são apresentadas como sinônimo de Lei, tal pensamento dá-se por influência direta do chamado positivismo jurídico, o qual foi rigorosamente apregoado por Hans Kelsen, em seus estudos, e ainda se faz presente no meio jurídico contemporâneo. Nessa sequência, partindo de uma visão sociológica acerca do Direito, temos Miranda Rosa (2004, p. 43), que o entende como fato social, defendendo-o como “uma manifestação de uma das realidades observáveis na sociedade”. Além disso, aduz o autor que essa esfera é um resultado da realidade social, na qual nasce condicionada pelo seu meio – a coletividade – e torna-se condicionante dessa mesma realidade social. Por outro lado, influenciado pela fenomenologia de Husserl, aponta Guimarães (2013, p. 178), que o Direito é “um objeto criado pela consciência humana, destinado a garantir a obrigatoriedade da coexistência dos indivíduos”. Nessa mesma linha de pensamento, aponta o autor que o fenômeno jurídico pertence à região ontológica,

intencionado pelo homem, conclui o estudioso que essa matéria é um ser de múltiplos sentidos e significações5. Importa dizer que sob o olhar fenomenológico as ciências jurídicas

3

A fim de evitar continuamente o uso do vocábulo Direito, utilizar-se-á como sinônimo durante essa narrativa a expressão ciência jurídica. 4 A fim de evitar continuamente o uso do vocábulo objeto, utilizar-se-ão como sinônimos ao longo dessa narrativa as palavras fenômeno e pensamento (cogito). 5 Nesse sentido leciona Guimarães (2013, p. 179): Já afirmamos que Direito é um objeto cultural posto pelo homem. Enquanto objeto, ele é um X de uma multiplicidade de sentidos e significações. Portanto, Direito é o conjunto de significações e sentidos que nele descobrimos como objeto.

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evidenciando-se primeiramente como objeto cultural. Sendo assim, enquanto pensamento4


não são normas/regras, elas não se confundem com a ordem jurídica, essa é a representação do fenômeno Direito6. Assim sendo, a resposta fenomenológica ao o que é o Direito? É uma das que mais se adequam a realidade, visto que comumente as respostas apresentadas não se atentam a pergunta formulada, geralmente se responde ao o que é isso? Como resposta do o que isso faz? Uma vez que mais importa a utilidade ao sentido, geralmente entende-se o Direito pelo seu agir, não por sua essência, constata-se como fato social, controle social, normas jurídicas, entre outros. Outrossim, a fenomenologia, ao contrário dessas respostas, busca enxergar o sentido do Direito e ao responder perguntas como: o que é o Direito? Tem-se uma simplificação, a qual destaca as ciências jurídicas como um fenômeno, um objeto da consciência humana, e por considerar a consciência não como um efeito psíquico em si, mas sempre como consciência de algo7, observa-se o direito como um instrumento da intencionalidade dessa consciência humana. Pois bem, entendendo-o como fenômeno chega-se à conclusão de que ele é uno e que suas ramificações, são na verdade, manifestações em certas situações no mundo da vida, as quais definem o agir do Direito em face de determinadas ocorrências. Dessa forma, quando tratamos sobre a administração pública ele poderá se manifestar como Direito Administrativo, Direito Tributário, entre outros. No âmbito contratual, poderá emergir como Direito Civil, Direito Empresarial (ou Comercial), quando abordamos algo na esfera da segurança pública observa-se seu agir como Direito Penal8.

A visada fenomenológica procura intuir a essência do objeto, sob essa perspectiva reduzir o ser do Direito ao Ordenamento Jurídico, consiste em afirmar que o ser é na verdade sua representação. Portanto na visão de Guimarães (2013, p. 180), o Ordenamento Jurídico é apenas a concreção do Direito, sendo a essência do Direito pertencente ao conteúdo referencial da vivência da justiça, nesse sentido leciona o autor: Por mais que as leis sejam modificadas, permanece a ideia de Direito. [...] A ideia de Direito é precedida do sentimento de Direito. O sentimento do Direito é a fonte originária de toda organização jurídica. Sendo a destinação do Direito a realização da justiça, existe entre todos os povos uma pré-compreensão do justo e do injusto. Desta forma, a essência do Direito não está na lei, mas na ideia de justiça (GUIMARÃES, 2013, p. 42). 7 Em sua formação originária, Husserl dedicou seus estudos aos campos da matemática e da lógica, posteriormente, ao conhecer os trabalhos de Franz Brentano, especialmente sua obra Psicologia do Ponto de Vista Empírico (1874), passou a dedicar-se às suas preocupações filosóficas. O ponto nevrálgico de toda a pesquisa do pai da fenomenologia situa-se justamente na preocupação com a consciência, a qual tomará um novo significado para Husserl. Em seu entendimento a consciência não é um fenômeno psíquico, mas sim intencionalidade, haja vista que não há consciência vagando pelo espaço (GUIMARÃES, 2013, p. 34). A intencionalidade da consciência, ou o ato (SALANSKIS, 2006, p. 47) significa que a consciência é sempre consciência de algo (DARTIGUES, 2003, p.18), ou seja, a consciência só é propriamente consciência se dirigida a algo, intencionalizada. 8 A visão que se adota acerca do Direito nesse trabalho é que ele é uno e indivisível. Dessa forma, ao referir-se sobre os ramos do Direito, preferir-se-á tê-los como manifestações do ser Direito em certas situações no mundo da vida. Portanto, ao mencionar os ramos do Direito, utilizar-se-á nesse trabalho o vocábulo como no lugar de

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Portanto, falar sobre o Penal é na verdade enunciar sobre a face que o Direito tem relacionado a certos atos praticados no mundo da vida. Por isso, antes de se abordar a função desse ramo deve-se ter em mente os seguintes aspectos: (i) o Direito é uno; (ii) a essência do Direito é a ideia de Justiça; (iii) a função do Direito como um todo é nas palavras de Guimarães (2013, p. 178) “garantir a obrigatoriedade da coexistência em sociedade”, ou em outros termos, a segurança jurídica. Nesse prisma, a diferença entre a funcionalidade do Penal e a função do Direito reside na atuação específica daquele, visto que a função do Direito sempre será garantir a obrigatoriedade da coexistência em sociedade. O Penal, por sua vez, atuará sempre em sua esfera própria, ou seja, no âmbito do direito de punição do Estado (Viés Subjetivo) e na coercibilidade dos indivíduos por meio de normas jurídicas (Viés Objetivo) sua existência é possível devido às ações ou omissões delitivas e sua funcionalidade é corrigir as ações que desestabilizam a coexistência em sociedade. Nesse sentido leciona Prado (2005, p. 53): “O Direito Penal é o setor ou parcela do ordenamento jurídico público interno que estabelece as ações ou omissões delitivas, cominando-lhes determinadas consequências jurídicas – penas ou medidas de segurança”. Outrossim, afirma Zaffaroni et al (2003, p. 658), “A função responsável do direito penal, neste marco, é a de expressar teoricamente que o que é não deve ser, e operar, através das agências jurídicas, para que deixe de ser no menor tempo possível”. Dessarte, verifica-se que em um sentido amplo a função do Direito Penal é garantir a coexistência humana, uma vez que está ligada à funcionalidade do Direito como um todo9. Todavia, em seu sentido estrito, a função penalista diz respeito ao agir da ciência jurídica em seu âmbito puramente criminal, ou seja, é garantir a coexistência em sociedade através dos

3 PROLUSÃO À FENOMENOLOGIA HUSSERLIANA: ATITUDE NATURAL E ATITUDE FENOMENOLÓGICA

no, por entender o ramo como manifestação do ser em uma determinada situação, por exemplo, não se abordará a manifestação do ser no Direito Civil, mas sim como Direito Civil, uma vez que não existe Direito puramente civil, existe o Direito que pode se manifestar em seu aspecto Civil. 9 O sentido amplo está ligado ao ser do Direito como um todo, em seu manifestar genérico, por contrário, o sentido estrito está ligado ao Direito manifesto em situações específicas, no presente estudo, o âmbito penal. 10 Essa afirmação, por ora, não tem a pretensão de debater os limites do âmbito penal do Direito.

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seus possíveis meios de persecução penal.10


Primordialmente, o presente trabalho não tem a presunção de analisar de forma profunda a fenomenologia, haja vista o vasto campo de conhecimento contido nessa área, sua complexidade e a densidade dos escritos de Edmund Husserl e seus ex-alunos. Diante disso, o intuito dessa seção tem a finalidade de apenas informar pontos relevantes para a pesquisa, além de elucidar de uma maneira sintética e introdutória o pensamento construído por Husserl em seus diversos escritos e sua aplicabilidade ao Direito, tomando por base os ensinos do Dr. Aquiles Côrtes Guimarães (2013). Nesse prisma, a fenomenologia na concepção de Guimarães (2010, p. 15), trata-se de uma atitude e não um método propriamente dito, a qual visa à descoberta dos sentidos e significados dos objetos, por meio da intuição. No entanto, como constata Fontes (2013, p. 20-21), a grande virada do pensamento husserliano, está na intuição proposta pelo filósofo, em que ao substituir a experiência pela intuição, Husserl apresenta uma percepção das essências que até então destoa de todas as intuições apresentadas. Segundo as constatações de Dartigues (2002, p. 21), a intuição apresentada pelo pai da fenomenologia se funda na chamada atitude fenomenológica, a qual conduz à redução fenomenológica que consiste em suspender provisoriamente11 toda a realidade tal como se concebe o senso comum, para se alcançar aquilo que é pelo que é, portanto, atingir-se a essência que é o núcleo invariante do fenômeno. Desse modo, o objetivo da fenomenologia é o retorno das coisas a elas mesmas, em carne e osso, na famosa expressão fenomenológica, é apreender aquilo que é pelo que é. Portanto, a fenomenologia caracteriza-se por ser uma atitude que visa à essência dos objetos, o sentido das coisas. De acordo com a explicação de Guimarães (2013b, p. 35): “[a] fenomenologia é o esforço em busca do aprofundamento da compreensão do mundo, numa

4 O HOMEM HODIERNO E A CRISE DA PÓS-MODERNIDADE

Com bem destacou Reale (2002, p. 497), no domínio das ciências físicas, as palavras quase sempre possuem um sentido claro, o qual não admite confusões, contudo, se para um físico ou um químico os termos são em geral previamente estabelecidos e unívocos, nas ciências sociais ou humanas, encontram-se palavras com multiplicidade de sentidos/razões e é 11

O termo usado originalmente pela fenomenologia é epoché, Husserl a traduziu em sua obra Ideias I (1913) como colocação entre parênteses (Einklammerung) (SALANSKIS, 2006, p. 44).

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tentativa de colocar em questão os supostos fundamentos das ciências naturais”.


sobre esta égide que se inserem os vocábulos pós-modernidade, hipermodernidade, modernidade tardia e tantos outros sinônimos encontrados no âmago desses ramos que abarcam vastos (des)conceitos sobre o tema. Nessa lógica, tem-se que a ideia de pós-modernidade é um tanto complexa e polêmica dentro das ciências sociais e da filosofia, uma vez que não há unanimidade quanto ao uso do termo. Com isso, autores como Paulo Sergio Weyl (2008, p. 89), defendem que a expressão é equivocada e o que se entende por pós-modernidade não existe, o que de fato há é a modernidade, no entanto, outros como Zaffaroni et al. (2003, p. 646), entendem que é um termo equívoco, usado com frequência em sentido pejorativo, contudo, em sua obra adotam o entendimento de que o vocábulo denota “o pensamento que nega os grandes relatos, que abarca horizontes fragmentários, limitados, de desagregação permanente”. Ainda nessa análise, Bittar (2009, p. 109), atesta que essa divergência aponta para a primeira característica da pós-modernidade, a incapacidade de gerar consensos. Para o autor, esta nova era está relacionada com a crise da modernidade e com a necessidade de revisão dessa. Nesta linha de raciocínio, entende Bittar (2009, p. 115), que a pós-modernidade “tratase de um estado reflexivo da sociedade ante as suas próprias mazelas, capaz de gerar um revisionismo completo de seu modus actuandi et faciendi [modo de atuar e agir]”. Acerca dessa era, Pessoa (2013, p. 2), constata que:

Pensar sobre a pós-modernidade seria identificar e tentar entender um estado de crise que alcançou sua generalidade em relação aos saberes humanos. Há um abandono de crenças, valores e ideologias que afetam diretamente e de maneira agressiva a forma de pensar e de viver do homem, que já não consegue mais ser uno, pois a sociedade pós-moderna tende ao pluralismo, o que ocasiona a fragmentação da identidade do sujeito.

estudiosos apontam para uma crise no tempo presente. Seguindo essa linha, autores como Stuart Hall (PROLETTO; KREUTZ, 2014, p. 200) irão identificar que o sujeito pós-moderno se encontra numa crise de identidade, uma vez que diferentemente do sujeito do iluminismo, indivíduo centrado e dotado de capacidades de razão, ou do sujeito sociológico – presente no mundo moderno e que não é independente, tendo em vista que se forma pela relação que estabelece com os outros –, o sujeito pós-moderno não possui uma identidade definida. Por esse ângulo, observa-se que tal fato dá-se pela fragmentariedade do homem pósmoderno, conforme leciona Braga Júnior (2015, p. 82), “no mundo hodierno o que está 324

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Diante disso, por mais que não haja unanimidade quanto ao termo utilizado, muitos


interessando é o infinitamente pequeno como as nanotecnologias, as micropartículas”. Tal constatação, na visão do autor, conduz a uma redução do homem a um gene, um operário, um profissional, uma máquina, um instrumento. Verifica-se que tais fatos levam a pensar o homem não como um ser dotado de racionalidade e sentimentos, mas sim um ser-objeto, mensurado pela sua capacidade de realizar atividades. Assim sendo, a tecnicização do mundo, os grandes avanços tecnológicos – os quais, ao mesmo tempo em que destruiu barreiras físicas, construiu barreiras virtuais –, a globalização e as repentinas mudanças da sociedade hodierna afetaram as relações interpessoais e fragmentaram o ser hodierno, tornando-o flexível e destacado do seu próprio eu. Dessa forma, é evidente que a crise pós-moderna funda-se em uma conflagração ontológica, a qual ocasionou um distanciamento do homem de seu ser originário. Nessa linha, Husserl em sua famosa conferência pronunciada em 1935 (HUSSERL, 2002, p. 28), posicionando-se contra o desvio racionalista e, ao mesmo tempo, contra certo irracionalismo, expõe o encaminhamento para uma solução ou superação dessa crise, a fenomenologia.

5 APONTAMENTOS PARA UMA EIDÉTICA DO DIREITO

O homem hodierno, envolto numa crise ontológica, distanciou-se de seu próprio ser, toda a mudança de pensamento trazida pela pós-modernidade o levou a entender-se não por quem é, mas sim pelo que é capaz de realizar. Nesse contexto, essa conflagração que antes afetava o particular de cada homem contagiou a compreensão do ser em conjunto, a sociedade, resultando numa crise ontológica coletiva. Outrossim, como fora apontado anteriormente, partindo de uma perspectiva

humana, o qual enquanto posto pelo homem no mundo possui um sentido polissêmico ou nas palavras de Guimarães (2013, p. 179): “um X de uma multiplicidade de sentidos e significações [..] um X à espera de desocultamento”. Nesse viés, levando-se em consideração que o Direito é um objeto da consciência humana à espera de um desocultamento de seu sentido e que o homem pós-moderno se encontra no âmago de uma crise ontológica. Tem-se, portanto, que a percepção da essência das ciências jurídicas é conduzida de forma errônea, uma vez que sua intuição no cenário pós-

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fenomenológica, entende-se que o Direito é um objeto da intencionalidade da consciência


moderno encontra-se no cerne dessa crise, a qual não se enxerga o objeto pelo mundo vivido, mas pelo mundo idealizado. Nesse ínterim, Câmara (2013, p. 141) constata que: “O direito penal, talvez de modo mais evidente que outras vertentes do campo jurídico, é um âmbito de evidenciação das conturbadas relações entre discurso, realidade e essência”. Isto posto, é no cerne desta crise pós-moderna que se insere o pensamento acerca do Penal. É nesse contexto, que surgem as concepções infundadas dos extremos, a qual de um lado nota-se um discurso baseado no estrito positivismo jurídico-penal e de outro observa-se uma ideia de abolição do penal. Diante disso, tem-se que todas essas pretensões partem de uma atitude natural, a qual não se há uma evidenciação da essência dos objetos, e sim, uma suposição, pretensão, especulação sobre a coisa. Percebe-se que esses discursos partem de uma concepção irrefletida, eivada de pré-conceitos e pré-julgamentos, o pedido por justiça de uma sociedade marcada pelo ressentimento acaba por gerar uma ideia errônea do que é o penal e qual sua essência. Com isso, engendra-se em grande parte da sociedade um discurso positivista penal, o qual dá margem a pensamentos como o chamado “Direito Penal do Inimigo”, idealizado por Jakobs, cuja ideia principal é sintetizada por Wermuth (2011, p. 65): Assim, o papel do Direito Penal do Inimigo não é compensar o dano causado à vigência de uma norma – como ocorre com o Direito Penal do cidadão – mas sim eliminar o perigo representado pelos indivíduos (não pessoas) que se encontram fora da ordem social estabelecida e não oferecem garantias de que voltarão a agir com fidelidade às normas instituídas por esta ordem social.

Noutro giro, a ideia de distanciamento do penal em favor de uma pretensa proposta

pejorativo, dando margem à impunidade. Nesse aspecto, o fato que se constata é que o universo do penal é habitado pela irracionalidade dos sentidos, assim sendo, mister é que se pretenda discutir acerca da essência do penal, pois só a partir de sua essência é que se poderá debater uma saída em relação à crise enfrentada. É nesse sentido, que se insere a proposição de uma eidética do direito penal. Acerca da concepção do que é a eidética, muito bem leciona Guimarães (2013a, p. 173):

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de cunho humanitário/social promove um direcionamento a um garantismo penal num sentido


A eidética é a ciência das essências, como fundamento das ciências de fatos. A eidética do Direito cuida do ser dos fenômenos jurídicos enquanto entes dispostos à mostração de sentidos ao ordenamento da existência humana. Isto implica suscitar a questão mais relevante das ciências jurídicas que diz respeito aos seus fundamentos e à estrutura de essências que constitui o seu universo.

Desse modo, adotar uma redução eidética do Direito, envolve aceitar uma nova atitude frente às seculares ciências jurídicas ou jurisprudenciais, uma atitude fenomenológica, acerca disto, salienta Guimarães (2008, p. 21-22) que: “a fenomenologia é um método de descrição e de evidenciação dos objetos a partir da percepção dos seus sentidos e significados com vistas ao desocultamento do que existe de universal, imutável e irredutível no ser do Direito”. Logo, a redução eidética, o retorno à ideia, parte de uma atitude fenomenológica, em que se evidenciam os objetos a partir da percepção de seus sentidos e significados de forma pura, colocando a consciência de toda transcendência e de todo juízo que se funda na experiência entre parênteses. Nessa perspectiva, aplicada às ciências jurídicas, a colocação em parênteses se dá quando suspendemos provisoriamente as nossas crenças na vigência da dogmática jurídica (lei, doutrina e jurisprudência). A partir disso, encontraremos o fenômeno jurídico em sua forma pura, em carne e osso, na famosa expressão fenomenológica, livre de pré-conceitos ou pré-juízos, a respeito da suspensão provisória das crenças aplicada às ciências jurídicas leciona o autor (GUIMARÃES, 2008, p. 23): A epoché [suspensão provisória] fenomenológica, a colocação do Direito “entre parênteses”, é uma atitude psicológica representada por um regresso à subjetividade, pois o que está posto como objeto de esclarecimento é a conexão entre o ser do

Por conseguinte, é só a partir da redução eidética que se terá o Direito vivido na sua manifestação originária, uma vez que só assim será possível evidenciar seu significado. Logo, é só a partir de sua essência que será capaz de haver uma reflexão jurídica. Dessa forma, ao viver o Direito em sua manifestação originária, nossa consciência não fará distinção entre a realidade vivida e a sua representação no intelecto, porque ter-se-á aqui e agora o vivido como fonte radicalmente verdadeira daquilo que se compreende como Direito.

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fenômeno jurídico e o saber do fenômeno jurídico.


6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir do período do renascimento o ser humano caminha para a perda do seu foco sobre o real e procede dando lugar ao idealizado, tal constatação verifica-se, por exemplo, no plano das ciências, na qual as leis científicas passaram a ser verdadeiras ficções idealizantes (Dartigues, 2003, p. 33). Toda essa idealização presente no imaginário, atrelada às grandes mudanças tecnológicas, sociais e científicas do último século contribuíram para a crise ontológica em que se insere o homem da pós-modernidade Tal conflagração afetou o homem em sua intuição do mundo, influindo na irreal percepção dos fenômenos, não obstante a isso, uma vez que o Direito é um objeto posto à existência por esse sujeito, tem-se que sua natureza é compreendida de forma errônea. Assim sendo, verifica-se que o sistema de justiça manifestado por esse indivíduo não é fundamentado na essência do Direito, no mundo da vida, mas sim em um sistema idealizado, conspurcado por pré-conceitos e pré-juízos. Diante disso, por ser o Direito penal, talvez de forma mais evidente, um âmbito de “evidenciação das conturbadas relações entre discurso, realidade e essência” (CÂMARA, 2013, p. 141), evidencia-se como um dos ramos mais afetados por toda essa crise do pósmodernismo. Esse fato é evidenciado nos pensamentos que se fazem presentes acerca do penal, os quais notam-se um discurso dos extremos. Dessa forma, o que pretende a fenomenologia por meio de uma eidética penal é trazer um discurso racional e equilibrado em meio a esses debates, objetivando uma visão do Direito em seu sentido originário, livre de influências, para que se possa entender o sentido do Direito Penal. Todavia, como pontua Guimarães (2008, p. 31), esse entendimento só “pode ser percebido pelos juristas que acreditam na possibilidade de um conhecimento puro e geral.” Por fim, toda proposição a uma eidética penal visa um processo infinito de esclarecimento da essência da própria consciência humana como razão fundante do Direito. No final, tudo o que se propõe a fazer é na verdade um retorno do homem ao próprio homem ou nas palavras de Guimarães (2008, p. 31), “a recuperação da humanidade da enfermidade do niilismo”.

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apodítico (demonstrativo) do Direito para além da “pureza” enunciativa do positivismo em


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THE CRISIS OF CRIMINAL LAW IN POSTMODERNITY: FOR A CRIMINAL EIDETIC

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na realidade brasileira. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011.


ABSTRACT All the changes in the social, technological and scientific environment that have taken place in the last century, have led us to what some scholars call postmodernity. It appears that this new era is marked by the technization of society, which led to an ontological deconstruction of contemporary man. Starting from a phenomenological vision, founded on the lessons of Aquiles CĂ´rtes GuimarĂŁes, this paper intends to succinctly and introductively analyze the influence of this man of postmodernity on the perception of contemporary law, especially in the penal area and how the phenomenological attitude can help us solve the dilemmas engendered in the postmodern world.

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Keywords: Phenomenology. Criminal Law. Postmodernity.

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ESTUDO

ACERCA

DA

LIMITAÇÃO

DA

ATIVIDADE

HERMENÊUTICA

IMPLEMENTADA PELA LEI 13.467/2017 NO TOCANTE ÀS NEGOCIAÇÕES COLETIVAS Jessica Petrovich Henriques1

RESUMO O poder de decisão do juiz e a necessidade ou não de neutralizá-lo é objeto de intensa discussão na doutrina jurídica. Nesse diapasão, no âmbito do direito do trabalho, ramo no qual não há igualdade de forças entre as partes, há conflito entre a visão conservadora da hermenêutica - que beneficia a autonomia e a segurança jurídica - e a sua visão progressista, que prioriza uma análise ampla e social do direito. Diante disso, o presente artigo procura analisar tal conflito sob a Lei 13.467/2017, no tocante aos seus objetivos e resultados quanto às negociações coletivas de trabalho.

interpretação do magistrado. Reforma trabalhista. Negociações coletivas.

1 INTRODUÇÃO

1

Pós-graduanda em Direito e Processo do Trabalho pela Estácio. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

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Palavras-chave: Hermenêutica jurídica. Limites do poder de


À época da Revolução Industrial, no auge do liberalismo econômico, as relações de trabalho eram ditadas pelo princípio da autonomia da vontade. Isso significa que, no tocante ao vínculo entre empregado e empregador, reinava a plena liberdade entre as partes. Entretanto, tendo em vista o objetivo de aumentar a produtividade das fábricas e reduzir o custo da produção, os empregadores mantinham os empregados sob condições de trabalho sub-humana. Isto é, com longas e extenuantes jornadas de trabalho, falta de equipamentos de proteção e segurança — que culminavam em frequentes acidentes — e impossibilidade de conciliação das atividades laborais com a vida social. Tais circunstâncias tiveram como consequência a organização de movimentos e revoltas dos trabalhadores. Desse modo, após constantes revoltas dos operários, passou-se a reconhecer a existência de excessos por parte dos empregadores, oriundas da falta de regulação das relações de trabalho. Sendo assim, iniciou-se o entendimento de que o Estado necessitava intervir nas relações de trabalho de forma a garantir uma proteção mínima ao trabalhador, que era a parte hipossuficiente do pacto trabalhista. Esse é o prelúdio do direito do trabalho e de seu principal pilar: a proteção do trabalhador frente ao empregador. Nesse sentido, e de forma progressiva, principalmente no âmbito do direito internacional, foi-se expandindo o mínimo de dignidade o qual deveria ser resguardado pelo Estado nas relações laborais, na medida em que evoluía, também, a forma com a qual a força de trabalho era vista enquanto objeto do contrato de trabalho. Essa evolução refletiu-se no ordenamento jurídico interno e a atividade hermenêutica dos juízes passou a ser o principal instrumento de concretização de tais direitos e limites nos casos concretos. Não obstante tal origem da intervenção do Estado nas relações trabalhistas, oriunda do objetivo de proteção à parte mais frágil, com o advento da Lei 13.467/2017 – que implementou a chamada Reforma Trabalhista –, houve a ascensão de uma tese doutrinária que defende a redução na amplitude de interpretação cabível ao magistrado trabalhista no que

autonomia da vontade e da segurança jurídica, mantendo a hermenêutica do juiz trabalhista circunscrita tão somente aos elementos formais do negócio jurídico. Tal postura legislativa, a qual pode ser considerada uma civilização do direito do trabalho – característica que vai de encontro ao ordenamento jurídico atual, que segue a tendência da constitucionalização – alterou de forma considerável o modo com o qual a justiça do trabalho vinha construindo sua jurisprudência. Em face disso, por meio de análise e revisão legislativa e doutrinária, o presente trabalho visa ao estudo dos obstes trazidos pela Lei 13.467/2017 à atividade hermenêutica do 333

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concerne às negociações coletivas de trabalho. Esta tese fundamenta-se em benefício da


juiz do trabalho, assim como suas justificativas e seus impactos no que se refere à negociação coletiva.

2 AS TRANSFORMAÇÕES NAS RELAÇÕES DE TRABALHO

A evolução histórica das relações de trabalho abrange um amplo período com numerosas e complexas variáveis sociais. Nesse sentido, não é o escopo do presente trabalho exaurir o processo transformativo do trabalho e do direito do trabalho. Desse modo, apresentar-se-á um recorte que contextualiza a discussão pretendida, analisando os marcos históricos de maior importância para a evolução da relação laboral: a lógica econômica liberal, a revolução industrial e as origens da Organização Internacional do Trabalho – OIT. O pilar inicial da doutrina econômica liberal era o desenvolvimento da produção e do mercado de forma livre, sem interferência estatal. Dessa maneira, ao Estado caberia apenas o papel de garantir as condições políticas que permitissem a autorregulação do mercado e a lógica da ampla concorrência. Esse era o contexto econômico do final do século XVIII, início do século XIX: a crença na intervenção mínima do Estados nos fatos e relações sociais. Nessa direção, Polanyi (1989, p. 64) defende que a crença dos liberais no progresso espontâneo, resultante da autorregulação do mercado, tornou-os cegos para o papel do governo na economia do país, o qual consiste, frequentemente, em modificar a velocidade das mudanças, às vezes acelerando-a, às vezes a freando – caso a caso. Dessarte, com a regência dos valores liberais, a sociedade se transformou em simples variável do sistema econômico, vulnerável às alterações causadas pela especulação e pela busca do lucro. Isso porque, sendo uma doutrina cuja base teórica é o desenvolvimento por meio da produção e do acúmulo de capital, o liberalismo e a economia de mercado

pelas relações sociais da época, são as relações sociais que passam a ser confinadas no sistema econômico (Polanyi, 1989, p. 91-92). Inserido nesse contexto econômico, o trabalho à época da revolução industrial era marcado pelo sacrifício dos operários de todas as esferas de suas existências, pelo bem da produção das fábricas. Por conseguinte, as jornadas eram extremamente longas para todos os trabalhadores, inclusive mulheres e crianças – que constituíam a mão-de-obra mais barata. Ilustrando este cenário, Fohlen (1965, p. 39) exibe uma entrevista com o pai de crianças que trabalhavam nas fábricas. Essa entrevista, feita por uma comissão especial 334

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transformam a sociedade em auxiliar do mercado. Isto é, ao invés de a economia ser marcada


instaurada para apurar as condições de trabalho infantil, expõe um relato de acidentes de trabalho, má alimentação causada pela exaustão, descanso insuficiente entre jornadas e intervalos insuficientes intrajornada, além de impactos da exaustão na vida familiar:

1. Pergunta: De que horas as crianças vão à fábrica? Resposta: Durante seis semanas elas foram às três horas da manhã e voltaram às dez horas da noite. 2. P: Quais eram as pausas concedidas para descansar ou comer durante essas dezenove horas? R: Quinze minutos para o café da manhã, meia hora para o almoço e quinze minutos para beber. 3. P: Você tinha muita dificuldade para acordar suas filhas? R: Sim, a princípio tínhamos que sacudi-las para acordá-las e para que se levantassem e se vestissem antes de ir para o trabalho. 4. P: Quanto tempo dormiam? R: Nunca iam para a cama antes das 11 horas, após dar-lhes algo para comer e depois minha esposa costumava passar toda a noite em vigília por temer não as acordar na hora certa. 5. P: De que horas eram acordadas? R: Geralmente, minha mulher e eu nos levantávamos às duas horas da manhã para vesti-las. 6. P: Desse modo tinham somente quatro horas de repouso? R: Escassamente quatro. (...) 9. P: As crianças estavam cansadas com esse regime? R: Sim, muito. Mais de uma vez adormeciam com a boca aberta. Era preciso sacudi-las para que comessem. 10. P: Suas filhas sofreram acidentes? R: Sim, a mais velha, na primeira vez que foi trabalhar, prendeu o dedo numa engrenagem até depois da articulação e ficou cinco semanas no hospital de Leeds.2 (FOHLEN, 1965, p. 39, tradução nossa.)

Diante dessa situação de penúria humana no ambiente de trabalho, passou a haver pressão social para a melhoria das condições laborais do trabalhador. No entanto, uma vez que o empregador era o detentor dos meios de produção, o empregado não possuía poder de

2

Tradução nossa. No original: “1. Pregunta: ¿A qué hora van las chiquillas a la fábrica? Contestacián: Durante seis semanas han ido a las tres de la mañana, y han terminado a las diez de la noche. 2. P.: ¿Qué pausas se autorizaban durante estas diecinueve horas para descansar o comer? C.: Un cuarto de hora para el desayuno, media hora para el almuerzo, un cuarto de hora para beber. 3. P.: ¿Tenía usted mucha dificultad en despertar a sus hijas? C.: Sí, al principio teníamos que zarandearlas para despertarlas, y luego ponerlas de pie y vestirlas antes de mandarlas al trabajo. 4. P.: ¿Cuanto tiempo dormían? C.: Nunca podíamos meterlas en la cama antes de las once, cosa de darles algo de comer, y entonces mi mujer acostumbraba a pasarse toda la noche en vela ante el temor de no despertarlas a su hora. P.: ¿A qué hora solían despertarlas? C.: Generalmente mi mujer y yo nos levantábamos a las dos de la mañana para vestirlas. P.: ¿Así que solamente tenían cuatro horas de sueño? C.: Escasamente cuatro. P.: ¿Cuánto tiempo duró esta situación? C.: Unas seis semanas. P.: ¿Solían trabajar desde las seis de la mañana hasta las ocho y media de la tarde? C.: Sí, eso es.” (FOHLEN, 1965, p. 39).

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barganha para, individualmente, alterar sua realidade.


Todavia, paulatinamente, a necessidade de melhoria das condições de trabalho foi ganhando espaço e apoio social, inclusive de alguns proprietários de meios de produção, como Robert Peel – dono de uma fábrica da indústria algodoeira. Fortalecia-se, dessarte, o entendimento de que o Estado necessitava intervir na relação de trabalho de forma a tornar possível algum tipo de equilíbrio de poderes entre os envolvidos. A primeira dessas intervenções estatais foi o Health and Morals of Apprentices Act, também denominado Lei de Peel3, promulgada pelo Parlamento do Reino Unido em 1802, após ser proposta por Robert Peel. Sendo aplicável aos aprendizes de até 21 anos de idade, a referida lei trazia uma série de obrigações para os empregadores proprietários de fábricas do Reino Unido que empregassem aprendizes. A Lei de Peel foi a primeira lei de intervenção estatal na relação de trabalho com objetivo de garantir um padrão mínimo de direitos para a parte hipossuficiente da relação, qual sendo, o empregado. Desde então, inaugurou-se uma tendência que logo iria se espalhar para outros diplomas. Tomando como exemplo somente a Inglaterra: em 1833, promulgou-se um Factory Act4, que fixou os nove anos de idade como idade mínima para trabalhar e reduziu a jornada máxima de trabalho de crianças entre nove e treze anos de idade para oito horas diárias. Já em 1847 foi promulgada a Later Factory Legislation5, limitando a jornada máxima de jovens (entre treze e dezoito anos) e mulheres a dez horas por dia Tal evolução da proteção aos trabalhadores na legislação passou a ser observada, também, nos textos constitucionais. A primeira Constituição a inserir em seu corpo temas de direitos humanos do trabalhador foi a Constituição do México de 19176, que, em seu art. 1237, REINO UNIDO. Health and moral of apprentices act: an act for the preservation of the health and morals of apprentices and others, employed in cotton and other mills, and cotton and other factories. London, 1802. Disponível em: http://www.educationengland.org.uk/documents/acts/1802-factory-act.html. Acesso em: 30 jul. 2019. 4 REINO UNIDO. Factory Act. London: Parliament of UK, 1833. Disponível em: https://www.parliament.uk/about/livingheritage/transformingsociety/livinglearning/19thcentury/overview/factor yact/. Acesso em: 13 ago. 2019. 5 REINO UNIDO. Later Factory Legislation. London: Parliament of UK, 1847. Disponível em: https://www.parliament.uk/about/livingheritage/transformingsociety/livinglearning/19thcentury/overview/laterfa ctoryleg//. Acesso em: 13 ago. 2019. 6 MÉXICO. [Constituição (1917)]. Constitución Política de los Estados Unidos Mexicanos. Cidade do México. Disponível em: http://www.ordenjuridico.gob.mx/Constitucion/1917.pdf. Acesso em: 22 ago. 2019. 7 Art. 123: I.—La duración de la jornada máxima será de ocho horas. II.—La jornada máxima de trabajo nocturno será de siete horas. Quedan prohibidas las labores insalubres o peligrosas para las mujeres en general y para los jóvenes menores de diez y seis años. III.—Los jóvenes mayores de doce años y menores de diez y seis, tendrán como jornada máxima la de seis horas. El trabajo de los niños menores de doce años no podrá ser objeto de contrato. IV.—Por cada seis días de trabajo deberá disfrutar el operario de un día de descanso, cuando menos. V.—Las mujeres, durante los tres meses anteriores al parto, no desempeñarán trabajos físicos que exijan esfuerzo material considerable. En el mes siguiente al parto disfrutarán forzosamente de descanso, debiendo percibir su salario íntegro y conservar su empleo y los derechos que hubieren adquirido por su contrato. En el

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determinava que a jornada máxima dos trabalhadores seria de oito horas, que a jornada máxima de trabalho noturno seria de sete horas e que o trabalho insalubre ou perigoso era proibido às mulheres e aos menores de dezesseis anos.

Ainda, para os jovens com mais de

doze e menos de dezesseis anos de idade, limitava-se a jornada de trabalho a seis horas diárias e proibia-se o trabalho antes dos doze anos, assim como inseria-se mecanismos de proteção às gestantes e lactantes. Sucedendo tal contexto, o próximo passo da intervenção estatal nas relações de trabalho foi a internacionalização ocorrida, principalmente, após a criação da Organização Internacional do Trabalho – OIT.

2.1 Internacionalização dos direitos humanos e a mão-de-obra como mercadoria

O início da consolidação dos direitos humanos no âmbito internacional, com a criação de instrumentos para garantir-lhes eficácia, é apontado, de forma uníssona pela doutrina, como tendo ocorrido no período pós-Segunda Guerra Mundial, com a criação da Organização das Nações Unidas – ONU. No entanto, anteriormente a esse período, houve importantes marcos na defesa e garantia dos direitos humanos, em especial no âmbito do direito do trabalho. Nessa lógica, em resposta às condições de trabalho degradantes que existiam à época da Revolução Industrial até a Primeira Guerra Mundial, atingiu-se consenso internacional acerca da necessidade de intervenção na esfera das relações de trabalho. Assim, analisar-se-á o ápice de tal consenso, o qual guarda maior relação com o presente trabalho: a criação da Organização Internacional do Trabalho. Observa-se, a princípio, que no tocante aos precedentes históricos que culminaram na ênfase da proteção internacional dos direitos humanos dos trabalhadores e na elaboração de Trabalho – OIT como o personagem principal. Isso porque, logo após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), em 1919, os países aliados e associados8 assinaram com a Alemanha o Tratado de Paz de Versalhes9, 10, no qual período de la lactancia tendrán dos descansos extraordinarios por día, de media hora cada uno, para amamantar a sus hijos. 8 Estados Unidos da América, Reino Unido, França, Itália, Japão, Bélgica, Bolívia, Brasil, China, Cuba, Equador, Grécia, Guatemala, Haiti, Hejaz, Honduras, Libéria, Nicarágua, Panamá, Peru, Polônia, Portugal, Romênia, Estado dos Eslovenos, Croatas e Sérvios, Reino de Siam (Tailândia), Tchecoslováquia e Uruguai. 9 Tratado de paz com a Alemanha: tratado de Versalhes. 28 jun. 1919. Disponível em: https://www.loc.gov/law/help/us-treaties/bevans/m-ust000002-0043.pdf. Acesso em: 30 jul. 2019.

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um sistema de proteção global de tais direitos, tem-se a Organização Internacional do


foram regulamentadas condições e obrigações as quais promoveriam a cooperação internacional e alcançariam a paz e a segurança internacional11. Em vista disso, na Parte XIII do Tratado foi determinada a constituição da Organização Internacional do Trabalho, a qual surgia como inovação no direito internacional. Isso porque, pela primeira vez, tinha-se uma organização internacional que não pretendia regulamentar a relação de direitos entre Estados, mas, sim, focar nos indivíduos e na garantia de um núcleo mínimo de direitos, dignidade e bem-estar nas relações de trabalho. Nesse diapasão, o preâmbulo da Constituição da Organização Internacional do Trabalho12 expõe os motivos de sua criação. Desse modo, a partir da explanação de que a paz duradoura somente poderia ser atingida quando baseada na justiça social, e, sendo as condições de trabalho existentes no período dotadas de tamanha injustiça, dificuldades e privações para muitos trabalhadores, a melhoria de tais condições seria urgente. Incluiu-se, em face disso, nesta constituição, o estabelecimento de um máximo de horas trabalháveis por dia e por semana, assim como a regulação da oferta de trabalho, a proteção de crianças, jovens e mulheres, o reconhecimento do princípio da livre associação, entre outras provisões13. Ademais, anexa à referida Constituição, que se debruça sobre as questões formais, procedimentais e organizacionais da Organização, está a Declaração de objetivos e propósitos

BRASIL. Decreto nº 13.990, de 12 de janeiro de 1920. Promulga o Tratado de Paz entre os países aliados, associados e o Brasil de um lado e de outro a Alemanha, assinado em Versailles em 28 de junho de 1919. Brasília, Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1910-1929/D13990.htm. Acesso em: 20 ago. 2019. 11 Tradução nossa. “Treaty of Versailles. Part I: The high contracting parties, in order to promote international co-operation and to achieve international peace and security (…) agree to this Covenant of the League of Nations”. 12 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. [Constituição (1946)], de 09 de outubro de 1946. International Labour Organization Constitution. Montreal. Disponível em:https://www.ilo.org/dyn/normlex/en/f?p=1000:62:0::NO:62:P62_LIST_ENTRIE_ID:2453907:NO#amendme nts. Acesso em: 13 ago. 2019. 13 No original: “Whereas universal and lasting peace can be established only if it is based upon social justice; and whereas conditions of labour exist involving such injustice, hardship and privation to large numbers of people as to produce unrest so great that the peace and harmony of the world are imperilled; and an improvement of those conditions is urgently required; as, for example, by the regulation of the hours of work, including the establishment of a maximum working day and week, the regulation of the labour supply, the prevention of unemployment, the provision of an adequate living wage, the protection of the worker against sickness, disease and injury arising out of his employment, the protection of children, young persons and women, provision for old age and injury, protection of the interests of workers when employed in countries other than their own, recognition of the principle of equal remuneration for work of equal value, recognition of the principle of freedom of association, the organization of vocational and technical education and other measures; Whereas also the failure of any nation to adopt humane conditions of labour is an obstacle in the way of other nations which desire to improve the conditions in their own countries; The High Contracting Parties, moved by sentiments of justice and humanity as well as by the desire to secure the permanent peace of the world, and with a view to attaining the objectives set forth in this Preamble, agree to the following Constitution of the International Labour Organization.”

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10


da Organização Internacional do Trabalho – OIT, denominada Declaração da Filadélfia14, de 1944, a qual esmiúça os princípios materiais dos quais busca proteger e concretizar. Sendo assim, no primeiro capítulo, o qual reafirma os princípios fundamentais nos quais a Organização Internacional do Trabalho – OIT se baseia, tem-se a determinação de que a mão-de-obra não é uma mercadoria15, indo de encontro à ideologia liberal que regia as relações de trabalho até o momento. Isso porque, no liberalismo econômico, todos os elementos do sistema produtivo são reduzidos à lógica de mercado. Desse modo, todos – abrangendo também os trabalhadores, por meio da venda de sua força de trabalho – são convertidos em mercadoria. Essa postura desemboca nas condições de trabalho, já explanadas, existentes à época da Revolução Industrial. Considerar a força de trabalho como mercadoria não coaduna com os direitos humanos – defendidos pela Declaração da Filadélfia e ratificados pelo Brasil por meio do Decreto n°. 25.696/1948. Isso porque, como ensina Polanyi (1989, p. 113), a força de trabalho não pode ser modificada ou utilizada sem que se vejam afetados os seres humanos portadores dessa mercadoria peculiar. Nessa direção, ao analisar a força de trabalho como mercadoria, estudo de Offe retrata que a força de trabalho não é propícia para seguir as leis do mercado, pois:

(...) ao contrário de todas as outras mercadorias, a oferta da força de trabalho tende a crescer quando a demanda (e os salários) cai, porque nessas condições a possibilidade de não participação no mercado de trabalho torna-se crescentemente impraticável por razões econômicas. (OFFE, 1989, p. 42)

Desse modo, vê-se que a natureza alimentar do salário recebido pelo trabalhador,

relevante diferencial da força de trabalho. Por isso, o trabalhador não pode, tal como faz um vendedor com sua mercadoria em tempos de baixa na demanda, reduzir – também – a oferta de sua força de trabalho para a venda posterior em condições econômicas mais propícias, pois sua sobrevivência está diretamente relacionada ao recebimento do salário.

14

Declaração de 10 de maio de 1944. Declaration concerning the aims and purposes of the international labour organisation (Declaration of Philadelphia). Filadélfia. Disponível em:https://www.ilo.org/dyn/normlex/en/f?p=1000:62:0::NO:62:P62_LIST_ENTRIE_ID:2453907:NO#declarati on. Acesso em: 13 ago. 2019. 15 No original: “I - The Conference reaffirms the fundamental principles on which the Organization is based and, in particular, that: (a) labour is not a commodity;”.

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assim como sua imprescindibilidade para que possa garantir uma vida digna, constituem


Com isso, percebe-se que a ótica liberal aplicada às relações de trabalho culmina em um modelo trabalhista prejudicial ao trabalhador e falho em sua lógica. Destarte, ao igualar a força de trabalho com uma mercadoria, nega-se o aspecto histórico dos resultados já obtidos com tal modelo, distanciando as relações trabalhistas dos direitos humanos.

3 O RETORNO À LÓGICA LIBERAL E A REDUÇÃO DO PODER DE INTERPRETAÇÃO DO MAGISTRADO NAS ALTERAÇÕES DA LEI 13.467/2017 Na exposição de motivos do Projeto de Lei 6.787/201616, que viria a se tornar a lei 13.467/2017, diz-se que um dos objetivos da reforma trabalhista é a “valorização da negociação coletiva entre trabalhadores e empregadores”. Essa valorização dar-se-ia por meio de uma menor intervenção dos magistrados na interpretação das negociações coletivas, beneficiando a autonomia da vontade e a segurança jurídica no direito do trabalho. Nestes termos, defendeu o Congresso Nacional que:

(...) esses pactos laborais vêm tendo a sua autonomia questionada judicialmente, trazendo insegurança jurídica às partes quanto ao que foi negociado. Decisões judiciais vêm, reiteradamente, revendo pactos laborais firmados entre empregadores e trabalhadores, pois não se tem um marco legal claro dos limites da autonomia da norma coletiva de trabalho. (BRASIL, 2016)

Dessa forma, a Lei 13.467/2017 foi justificada pelo Congresso Nacional como garantidora da vontade coletiva no direito do trabalho, a qual vinha - defende-se - sendo violada pela amplitude do poder de interpretação judicial.

Dentre as principais bandeiras defendidas na exposição de motivos da Lei 13.467/2017 estavam a primazia da segurança jurídica, alcançada por meio da valorização da autonomia da vontade coletiva – um princípio democrático e incentivado, inclusive, pela

16

BRASIL. Projeto de Lei nº 6.787, de 23 de dezembro de 2016. Altera o Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943 - Consolidação das Leis do Trabalho, e a Lei nº 6.019, de 3 de janeiro de 1974, para dispor sobre eleições de representantes dos trabalhadores no local de trabalho e sobre trabalho temporário, e dá outras providências. Brasília. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2122076. Acesso em: 20 ago. 2019

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3.1 A autonomia da vontade coletiva


Organização Internacional do Trabalho, em sua Convenção n°. 9817,

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, promulgada pelo

Brasil por meio do Decreto nº 33.196, de 1953. Nesse sentido, o principal instrumento da Lei 13.467/2017 que visa ao alcance de tais objetivos é o art. 611-A, o qual exemplifica direitos que podem ser modificados por meio de negociação coletiva, alcançando primazia com relação à legislação trabalhista positivada. Dentre as flexibilizações possibilitadas pelo referido dispositivo legal, têm-se a flexibilização da jornada de trabalho, do banco de horas, dos intervalos intrajornada para refeição, o enquadramento do grau de insalubridade do trabalho exercido e a prorrogação da jornada em ambientes insalubres sem a licença prévia das autoridades competentes19. Ademais, o mesmo dispositivo determina que os magistrados do trabalho devem considerar válidas as negociações coletivas nas quais não haja contrapartidas recíprocas. Ou seja, devem ser aceitas aquelas negociações coletivas nas quais somente uma das partes permite que seus direitos sejam flexibilizados, sem haver qualquer tipo de compensação nos direitos da outra parte. Nessa senda, observa-se que a nova legislação, a Lei 13.467/2017, na realidade, traz o retorno das políticas governamentais brasileiras da época do Plano Real. Sobre esse fato, Krein (2007, p.72 apud VOGEL, 2010, p. 157) ensina que, nos anos de 1990, as negociações coletivas sofreram uma alteração em seu escopo, deixando de ser mecanismo de ampliação de direitos para se tornarem “mecanismo para a barganha de direitos, em troca da manutenção dos empregos”. Dessa forma, não obstante a valorização da vontade coletiva trazida pela Lei 13.467/2017, observa-se que esta norma legal se dá em circunstâncias nas quais o resultado das negociações será o de precarização de direitos. De todo modo, o legislador, aplicando limites às flexibilizações permitidas pelo art. 611-A – que tem caráter meramente exemplificativo, tratando-se de rol aberto para a adição ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Convenção nº 98, de 01 de junho de 1949. Direito de sindicalização e de negociação coletiva. Genebra, 1949. Disponível em: https://www.ilo.org/brasilia/convencoes/WCMS_235188/lang--pt/index.htm. Acesso em: 20 ago. 2019. 18 Convenção 98, OIT: “Art. 4. Deverão ser tomadas, se necessário for, medidas apropriadas às condições nacionais, para fomentar e promover o pleno desenvolvimento e utilização dos meios de negociação voluntária entre empregadores ou organizações de empregadores e organizações de trabalhadores com o objetivo de regular, por meio de convenções, os termos e condições de emprego.” 19 Nestes termos: “Art. 611-A. A convenção coletiva e o acordo coletivo de trabalho têm prevalência sobre a lei quando, entre outros, dispuserem sobre: I - pacto quanto à jornada de trabalho, observados os limites constitucionais; II - banco de horas anual; III - intervalo intrajornada, respeitado o limite mínimo de trinta minutos para jornadas superiores a seis horas; (...) XII - enquadramento do grau de insalubridade; XIII - prorrogação de jornada em ambientes insalubres, sem licença prévia das autoridades competentes do Ministério do Trabalho; (...) § 1º No exame da convenção coletiva ou do acordo coletivo de trabalho, a Justiça do Trabalho observará o disposto no § 3º do art. 8º desta Consolidação; § 2º A inexistência de expressa indicação de contrapartidas recíprocas em convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho não ensejará sua nulidade por não caracterizar um vício do negócio jurídico(...)”

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de demais direitos – inseriu o art. 611-B, o qual, com seu rol taxativo, determina quais direitos não poderão ser objetivo de negociação coletiva para supressão ou redução. Portanto, deixou claro que os direitos do art. 611-A são passíveis de livre diminuição. Esse dispositivo de limitação da autonomia da vontade coletiva repete os direitos sociais expressos na Constituição Federal Brasileira. Todavia, em seu parágrafo único, faz uma ressalva aos limites, de modo a permitir uma maior flexibilização de direitos. Nestes termos: “Art. 611-B (...) Parágrafo único. Regras sobre duração do trabalho e intervalos não são consideradas como normas de saúde, higiene e segurança do trabalho para os fins do disposto neste artigo.” (BRASIL, 2017, grifos nossos). Dessa forma, o referido artigo, cujo objetivo declarado é a proteção dos direitos constitucionais mínimos do trabalhador, acaba por retirar desse rol a duração da jornada de trabalho e os intervalos. O argumento pata tal é de que nem o tempo trabalhado – e sua forma de distribuição durante a jornada de trabalho – nem os intervalos – tais como para alimentação e descanso – são abrangidos pelo conceito de normas de saúde, higiene e segurança do trabalho, para os fins do dispositivo. De tal modo, admite-se que a retirada desses temas do conceito de normas de saúde, higiene e segurança do trabalho não é uníssono ou habitual, pois, caso fosse, não existiria o porquê de inserir a destacada ressalva. Desta maneira, o legislador insere tal reserva para possibilitar a flexibilização de direitos para os quais a redução não é aceita. Nesse sentido é o ensinamento de Alvarenga (2016, p. 95), apontando como um dos principais limites à negociação coletiva o respeito às “normas imantadas por uma tutela de interesse público – como as regras sobre saúde, segurança, higiene e medicina do trabalho”, as quais, portanto, não admitem transação. Tamanha flexibilização nos direitos dos trabalhadores é defendida na exposição de motivos do já referido Projeto de Lei 6.787/2016, com o argumento de que, no âmbito do

do trabalho. Sob esta ótica, é utilizado um trecho do voto do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, para ratificar tais alterações. Nestes termos:

3. A discussão da hipossuficiência foi recentemente objeto de análise do Supremo Tribunal Federal, quando julgou a ação contra o plano de dispensa incentivada do BESC/Banco do Brasil, na discussão do RE 590415 / SC. O Ministro Luís Roberto Barroso em seu voto sustenta que "no âmbito do direito coletivo, não se verifica, portanto, a mesma assimetria de poder presente nas relações individuais de trabalho. Por consequência, a autonomia coletiva da vontade não se encontra sujeita aos

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direito coletivo do trabalho, não há a mesma hipossuficiência que existe no direito individual


mesmos limites que a autonomia individual." Prossegue o Ministro em seu voto destacando que "embora, o critério definidor de quais sejam as parcelas de indisponibilidade absoluta seja vago, afirma-se que estão protegidos contra a negociação in pejus os direitos que correspondam a um “patamar civilizatório mínimo”, como a anotação da CTPS, o pagamento do salário mínimo, o repouso semanal remunerado, as normas de saúde e segurança do trabalho, dispositivos antidiscriminatórios, a liberdade de trabalho etc. Enquanto tal patamar civilizatório mínimo deveria ser preservado pela legislação heterônoma, os direitos que o excedem sujeitar-se-iam à negociação coletiva, que, justamente por isso, constituiria um valioso mecanismo de adequação das normas trabalhistas aos diferentes setores da economia e a diferenciadas conjunturas econômicas." (BRASIL, 2016, grifos nossos).

Conforme exposto acima, observa-se que o próprio trecho trazido pelo Congresso Nacional como defesa da razoabilidade das permissões de flexibilização promovidas pela Lei 13.467/2017 garante, em rol exemplificativo, a salvaguarda das normas de saúde, segurança e higiene do trabalho – normas essas que acabaram por ser, também, flexibilizadas pelo parágrafo único do art. 611-B. Não obstante a referida observação, tem-se que a flexibilização nos direitos dos trabalhadores implantada pela Lei 13.467/2017 foi justificada pela hipossuficiência reduzida das negociações coletivas. Diate disso, é relevante fazer alguns breves apontamentos acerca da situação sindical no Brasil após o advento da referida legislação. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IBGE apresentou dados de que, em 2017, o país atingiu a menor taxa de trabalhadores sindicalizados desde 2012: 14,4%20, um número que demonstra a baixa adesão do trabalhador brasileiro ao modelo sindical adotado no país. Dessa maneira, aponta-se que a Lei 13.467/2017 não trouxe nenhum dispositivo que da Organização Internacional do Trabalho – OIT21, a qual defende a pluralidade sindical, por meio da livre e espontânea criação e associação a sindicatos.

20

LOSCHI, Marina; BENEDICTO, Marcelo. Sindicalização cai para 14,4% em 2017, a menor taxa em cinco anos. Agência IBGE Notícias, 8 set. 2018. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencianoticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/22954-sindicalizacao-cai-para-14-4-em-2017-a-menor-taxa-em-cincoanos. Acesso em: 20 ago. 2019. 21 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Convenção nº 87, de 1948. Liberdade Sindical e Proteção Ao Direito de Sindicalização. São Francisco, 17 jun. 1948. Disponível em: https://www.ilo.org/brasilia/convencoes/WCMS_239608/lang--pt/index.htm. Acesso em: 27 set. 2019.

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visasse à aproximação do modelo sindical brasileiro às recomendações da Convenção n° 87


A referida Convenção não foi ratificada pelo Brasil por não se coadunar com o princípio da unicidade sindical, o qual não admite a criação de mais de uma entidade sindical para a mesma categoria, em uma mesma base territorial. Ademais, a Lei 13.467/2017 trouxe dispositivos capazes de fragilizar os sindicatos, ao tornar a contribuição sindical - antes obrigatória na ordem de um dia trabalhado ao ano facultativa. Essa ação, somada à falta de período de transição, resulta na redução da liberdade orçamentária dessas instituições. Seguindo esta linha intelectiva, o Ofício 391/201722, enviado pela Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho – ANAMATRA à Organização Internacional do Trabalho – OIT, denunciou o sucateamento das entidades sindicais. Estas, que, com a redução brusca de recursos financeiros e engessamento pelo princípio da unicidade sindical tornaramse fragilizadas e, ao mesmo tempo, com o art. 611-A, poderosas o suficiente para que suas negociações tenham primazia sobre a legislação trabalhista. Essa combinação de fragilização e poder deixa os trabalhadores, também, em situação de fragilidade. Nesta forma:

(...) a proposta faz com que as negociações deixem de ser fonte de realização de direitos fundamentais ou instrumentos de abertura da cláusula constitucional de melhoria da condição social dos trabalhadores. As negociações ganham força de lei e prevalecem sobre outras leis em típicas situações de flexibilização, no sentido de redução de direitos, nas diversas hipóteses elencadas, dentre elas parcelamento de férias; livre pactuação no cumprimento de jornada, com limite mensal de 220 horas; intervalo intrajornada (respeitado o mínimo de 30 minutos); regime a tempo parcial com maior número de horas; dentre outros. Pondera-se que se o país objetivava estabelecer reforma trabalhista que pretendesse privilegiar o negociado sobre o legislado, caberia, em primeiro lugar, providenciar reforma sindical, a fim de evitar o aniquilamento dos Sindicatos, possibilitando o reequilíbrio das finanças e das atividades precípuas de representação e negociação coletivas, de maneira autônoma

condições de negociar sobre matérias tão relevantes. (ANAMATRA, 2017, p. 2).

O referido ofício da Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho – ANAMATRA foi objeto de análise na 108th International Labour Conference23, da

22

ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS MAGISTRADOS DA JUSTIÇA DO TRABALHO. Ofício à Organização Internacional do Trabalho nº 391/2017. Brasília, 01 jun. 2017. Disponível em: https://www.anamatra.org.br/files/OficiosGuy.Trabalhista.pdf. Acesso em: 20 ago. 2019. 23 INTERNATIONAL LABOUR CONFERENCE, 108., 2019, Genebra. Discussions: general survey, serious failures and individual cases (Brazil, C. 98). Genebra: International Labour Organization, 2019. 47 p. Disponível

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e independente, com a garantia de que os Sindicatos, efetivamente, tenham


Organização Internacional do Trabalho – OIT, realizada em 2019. Como resultado, o Brasil foi inserido na lista de países em monitoramento devido a possíveis violações aos direitos trabalhistas assegurados em Convenções da OIT por esses ratificados. Nessa direção, a Organização Internacional do Trabalho – OIT, embora tenha reconhecido a importância da valorização das negociações coletivas, requereu 24, dentre outras ações, que o governo brasileiro realizasse ações para efetivar a redução da amplitude e da generalidade das flexibilizações permitidas pelos arts. 611-A e 611-B da Lei 13.467/2017. Isso porque, segundo a Organização, tais dispositivos abriam brechas para negociações coletivas prejudiciais aos trabalhadores. Convergindo com este sentido argumentativo está a lição de Kalil (2017, p. 139) que defende ser a negociação coletiva, teleológica e historicamente pensada para a melhoria das condições do trabalho. Dessa forma, não é possível vislumbrar a possibilidade de utilizar o referido instrumento para prejudicar o padrão de qualidade já existente nas relações trabalhistas, sob a pena de violar princípios constitucionais tais como o da dignidade da pessoa humana e o da vedação do retrocesso social. Em vista desse contexto, insta relevar também a lição de Von Ihering (2008, p. 46) de que nenhum direito – seja individual ou coletivo – está livre do risco da subtração, pois, “ao interesse do titular do direito em defendê-lo sempre se contrapõe, na sua esfera, o interesse de outrem em desrespeitá-lo”. Dessa maneira, no âmbito do direito do trabalho, não se pode prescindir do princípio da proteção ao trabalhador, ainda que se trate de acordos e convenções coletivas, pois, para que seja valorizada a autonomia coletiva dos envolvidos, há a necessidade de ambas as partes terem de fato autonomia para a barganha. Nessa linha de pensamento, Vignoli (2010, p. 66) ensina que seriam necessários sindicatos fortes e com reais poderes de representatividade para que se garantisse o princípio

em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---ed_norm/--relconf/documents/meetingdocument/wcms_670146.pdf. Acesso em: 19 ago. 2019. 24 No original: “While emphasizing the importance of obtaining, in so far as possible, tripartite agreement on the basic rules of collective bargaining, the Committee requests therefore the Government to take the necessary measures, in consultation with the representative social partners, for the revision of sections 611-A and 611-B of the CLT so as to specify more precisely the situations in which clauses derogating from the legislation may be negotiated, as well as the scope of such clauses. The Committee requests the Government to provide information on any progress in this regard. It also requests the Government to communicate detailed information on the number of collective agreements and accords signed in the country, as well as on the number, content and scope of the clauses derogating from the legislation included in those accords and agreements”.

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protetor, próprio do direito do trabalho, nas negociações coletivas.


3.2 Segurança jurídica, interpretação judicial e concretização de direitos nas negociações coletivas

O princípio da segurança jurídica consta na exposição de motivos do já referido Projeto de Lei 6.787/2016 – em conjunto com a autonomia da vontade coletiva – como objetivo principal das alterações na legislação trabalhista. O principal instrumento utilizado pelo Legislativo para a operacionalização desse objetivo foi o art. 8º, §§ 2º e 3º da Lei 13.467/2017, que determina:

Art. 8º - As autoridades administrativas e a Justiça do Trabalho, na falta de disposições legais ou contratuais, decidirão, conforme o caso, pela jurisprudência, por analogia, por eqüidade e outros princípios e normas gerais de direito, principalmente do direito do trabalho, e, ainda, de acordo com os usos e costumes, o direito comparado, mas sempre de maneira que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público. § 2° Súmulas e outros enunciados de jurisprudência editados pelo Tribunal Superior do Trabalho e pelos Tribunais Regionais do Trabalho não poderão restringir direitos legalmente previstos nem criar obrigações que não estejam previstas em lei. § 3° No exame de convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho, a Justiça do Trabalho analisará exclusivamente a conformidade dos elementos essenciais do negócio jurídico, respeitado o disposto no art. 104 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), e balizará sua atuação pelo princípio da intervenção mínima na autonomia da vontade coletiva. (BRASIL, 2017).

Tal dispositivo é objeto de discussão acerca da sua validade constitucional, bem como de seus efeitos pretendidos. No entendimento de Maurício Godinho Delgado e Gabriela Neves Delgado (2017, p. 80), o artigo e seus parágrafos são inconstitucionais por

violarem o princípio da separação dos poderes e da independência do Poder Judiciário. Os autores defendem que tal dispositivo tenta instaurar uma separação social, pois o Poder Judiciário não poderia examinar afrontas à Constituição e à legislação trabalhista que estivessem inseridas no conteúdo das negociações coletivas. Portanto, não seria válido – para os trabalhadores abrangidos pelas normas coletivas – “o patamar civilizatório mínimo fixado pela Constituição da República, pelas normas internacionais internalizadas pelo Brasil e pela legislação federal trabalhista” (DELGADO; DELGADO, 2017, p. 81).

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obstaculizarem a efetivação dos “direitos sociais fundamentais de caráter trabalhista”, além de


Além disso, o referido dispositivo demonstra que o legislador considerou a amplitude dos poderes de interpretação do juiz trabalhista como algo antagônico ao princípio da segurança jurídica, adotando uma posição doutrinária conservadora, dotada de formalismo. Em crítica a tal posição doutrinária, Jackman (1996, p. 303-304), ao dissertar sobre o exame dos direitos sociais pelas Cortes e a possibilidade dessas de dotá-los de exequibilidade, aponta para o fato de que entender essa interpretação dos juízes, concretizando direitos, como inimiga da democracia, é negar o papel das Cortes como locais de enfrentamento aos comportamentos antidemocráticos do Parlamento25. É, portanto, argumentar a exclusão do Poder Judiciário do sistema de freios e contrapesos o qual sustenta a teoria da separação dos poderes moderna. Nesse diapasão, aponta-se o ensinamento de Bobbio (1995, p. 223) ao explanar que – no tocante à hermenêutica e à jurisprudência – há duas correntes que podem ser seguidas, sendo, as duas, ideologias. Tais ideologias podem ser do tipo conservador ou do tipo progressista na medida em que entendem a realidade na qual estão inseridas como algo positivo, e, portanto, algo a ser conservado, ou a entendem como algo negativo, e, assim, algo a ser mudado. Dessa maneira, a interpretação do direito e a construção da jurisprudência pelos magistrados não é passível de ser realizada apenas com critérios formais e objetivos. Nesse sentido, defende Bobbio que:

(...) a interpretação do direito feita pelo juiz não consiste jamais na simples aplicação da lei com base num procedimento puramente lógico. Mesmo que disto não se dê conta, para chegar à decisão ele deve sempre introduzir avaliações pessoais, fazer escolhas que estão vinculadas ao esquema legislativo que ele deve aplicar.

Sendo assim, a jurisprudência meramente formal não só não é possível como, igualmente, não seria algo desejável, pois, ao podar a liberdade de interpretação do magistrado, institucionaliza a lógica liberal e patrimonial às relações de trabalho. Isso, como trabalhado anteriormente, agrava as desigualdades sociais e coloca o trabalhador em situação de intensa hipossuficiência frente ao seu empregador. Nessa senda, cabe destacar que se torna anacrônica a adoção da figura do juiz boca da lei, personagem pertencente ao período pós-absolutista, no qual o objetivo estatal era a 25

No original: “The view that justiciable social rights are inimical to democracy fails to recognize the role of the courts as an avenue for challenges to the antidemocratic behavior of Parliament.”

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(BOBBIO, 1995, p. 237)


redução ao máximo dos poderes hermenêuticos dos magistrados, temendo a repetição dos excessos absolutistas. Não coaduna, entretanto, com o Estado Democrático de Direito. Feliciano, nesse mesmo sentido, ensina:

A hipótese de um Poder Judiciário não criativo, com um corpo de magistrados que apenas repita os textos de lei e adapte a vontade histórica do legislador aos casos concretos, em modo de pura subsunção formal, não atende aos pressupostos políticos do Estado Democrático de Direito. (...) A Magistratura torna-se incapaz de refletir a diversidade e a pluralidade do pensamento jurídico. E é menos apta a preservar as minorias contra os ímpetos das maiorias políticas, que ditam os textos de lei. É que tampouco a “lei” é um fenômeno empiricamente abstrato ou neutro, na exata medida em que o Estado, nos seus vários níveis, não é neutro. Ele sofre pressão de grupos extremamente fortes que atuam dentro das burocracias estatais, nas secretarias, nas assembleias (...). Assim, reservar ao juiz o papel de mero enunciador da lei é, em verdade, retirá-lo do jogo “checks and balances”, vergastando um dos mais importantes mecanismos da forma republicana de governo. (FELICIANO, 2016, 544-545)

Dessa maneira, a interpretação das normas jurídicas não é separável de uma escolha ideológica. No art. 8º, §§ 2º e 3º da Lei 13.467/2017, o legislador escolheu a ideologia conservadora, que reduz a amplitude dos poderes de interpretação dos magistrados, bem como a profundidade da análise do caso concreto, adotando um tipo de civilização do direito do trabalho. Isso limitou a análise das negociações coletivas aos requisitos formais do negócio jurídico, previstos no Código Civil Brasileiro, quais sejam: I - agente capaz; II - objeto lícito, possível, determinado ou determinável; e III - forma prescrita ou não defesa em lei. Assim, a Lei 13.467/2017 escolheu retirar do juiz a possibilidade de analisar materialmente as negociações coletivas, mesmo com amplo leque de direitos trabalhistas que

trabalhadores e fragiliza a justiça do trabalho, na medida em que a esvazia de relevância material.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A intervenção estatal nas relações de trabalho teve em seu cerne a necessidade de proteção. Isso porque, conforme os resultados históricos demonstraram, a lógica liberal 348

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podem ser flexibilizados. Essa postura obstaculiza a concretização dos direitos dos


aplicada às relações trabalhistas culminava no abuso de poder por parte dos empregadores e em péssimas condições de trabalho para os empregados. Houve, então, consenso acerca da necessidade de garantia de um conjunto mínimo de direitos ao trabalhador, hipossuficiente em relação a seu empregador, de modo a limitar a autonomia da vontade das partes envolvidas nos contratos de trabalho. Nessa ambiência, na medida em que amadureciam as ideias de direitos humanos, aumentavam-se os direitos garantidos aos trabalhadores. Dessarte, a força de trabalho deixou de ser considerada uma mercadoria para passar a ser vista como elemento indissociável da pessoa humana do trabalhador. Por conseguinte, na hermenêutica trabalhista, a primazia não era mais da autonomia da vontade e intervenção mínima, mas, sim, da proteção ao empregado. Nessa direção, a interpretação do direito do trabalho focava na concretização dos direitos humanos do trabalhador e na ampliação das garantias trabalhistas, de modo a servir como equilíbrio de forças na relação de trabalho. Entretanto, com o advento da Lei 13.467/2017, houve profundas mudanças no eixo interpretativo do direito do trabalho. Assim, viu-se a ascensão da primazia da segurança jurídica e da autonomia da vontade, resultando em exacerbadas possibilidades de flexibilização de direitos, com grande potencial de precarização para os trabalhadores. Demonstrou-se, em vista disso, que, embora a exposição de motivos da Lei 13.467/2017 defendesse a valorização da autonomia da vontade coletiva, os resultados das alterações foram a fragilização dos sindicatos – engessados pela manutenção da unicidade sindical e desprovidos de autonomia financeira – e o aumento de direitos trabalhistas passíveis de redução. Diante disso, observa-se, também, que, em nome da segurança jurídica, a hermenêutica trabalhista foi tolhida de sua natureza protetiva e reduzida à análise formal,

ao se justificar como modernização do direito laboral, a Lei 13.467/2017 regrediu o magistrado à boca da lei, mero enunciador de requisitos formais inserido na ilusão de neutralidade. Desse modo, é possível concluir que a referida legislação trabalhista realizou, no que se refere à análise das negociações coletivas, alterações com natureza de civilização do direito do trabalho, isto é, passou a tratar o direito do trabalho como se direito civil fosse. E, ao fazêlo, institucionalizou a hipossuficiência do trabalhador, uma vez que lhe dá o mesmo

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objetiva e anacrônica dos direitos dos trabalhadores nas negociações coletivas. Desta maneira,


tratamento dado às partes nas relações civis, nas quais os envolvidos são indivíduos em situação de igualdade de forças. Portanto, por meio de análise da Lei 13.467/2017 e de suas justificativas, chega-se à conclusão de que não só sua exposição de motivos não se sustenta teoricamente, mas suas alterações fazem o direito do trabalho regredir em seus objetivos e princípios. Nesse diapasão, camuflada pelo argumento da segurança jurídica, conclui-se que seus efeitos são – ao menos no que concerne as negociações coletivas – de um lado, a fragilização e flexibilização dos direitos dos trabalhadores, e, de outro, o engessamento da justiça do trabalho, de modo a impossibilitar a defesa dos interesses dos hipossuficientes.

REFERÊNCIAS

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STUDY ON THE LIMITATION OF HERMENEUTICS ON COLLECTIVE BARGAININGS IMPLEMENTED BY LAW 13.467/2017

ABSTRACT

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http://pct.capes.gov.br/teses/2010/31004016061P6/TES.PDF. Acesso em: 10 ago. 2019.


The judge's ruling power and the need to neutralize it or not have been the subject of intense debate in legal doctrine. This way, regarding labor law, a branch in which there is no power equality between the parties, there is a conflict between the conservative view of hermeneutics - that benefits autonomy and legal certainty - and its progressive view, which prioritizes a broad social analysis of the law. Face with that, the present paper will analyze this conflict under law 13.467/2017, regarding its objectives and results concerning collective bargaining. Keywords: Legal hermeneutics. Limits of the judge’s interpretation

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power. Labor reform. Collective bargaining.

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EXTRAFISCALIDADE TRIBUTÁRIA: NOTAS SOBRE SEU LIMITE A PARTIR DO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE Ricardo Luiz Muniz de Souza Filho1

RESUMO O presente trabalho estuda os limites da extrafiscalidade tributária, realizando um corte a partir do princípio da legalidade. A atuação extrafiscal tem sido usada recorrentemente pela Administração Pública, contudo, ela deve observar os limites impostos pela Constituição Federal a fim de não violar os direitos fundamentais dos contribuintes. Pretende-se pesquisar, então, como a legalidade tributária molda a discricionariedade administrativa na utilização extrafiscal

dos

tributos.

Para

tanto,

utilizou-se

do

método

bibliográfico, com apoio em legislação, doutrina e jurisprudência, e argumentativo-dissertativo. Conclui-se que, ainda que dentro da

às normas jurídicas, especialmente à finalidade legalmente prevista. Palavras-chave: Extrafiscalidade. Limitação. Princípio da legalidade. “Taxation without representation is tiranny”. (James Ortis)

1

Mestrando em Constituição e Garantia de Direitos pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Especializando em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET). Bacharel em Direito pela UFRN. Advogado.

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discricionariedade administrativa, a extrafiscalidade deve se submeter


1 INTRODUÇÃO

Não é de hoje que o excesso de tributação incomoda os contribuintes. Em verdade, o início do processo de limitação do poder absoluto, que na Europa continental importaria nos movimentos constitucionalistas, com a Magna Carta, em 1215, já contava com a previsão de não tributação sem representação (no taxation without representation), que depois serviria como lema para a Revolução Americana (taxation without representation is tirrany). No Brasil, a tentativa separatista mais célebre, a Inconfidência Mineira, teve como razão a cobrança obscena do quinto, tributo com alíquota de 20% (vinte por cento ou, como faz mais sentido nomear, um quinto). Modernamente, todavia, a tributação, além do tradicional viés arrecadador, também passou a ser usado pelos entes tributantes como ferramenta de intervenção no domínio econômico-social. Ocorre que, perseguindo apenas uma finalidade, os direitos dos cidadãoscontribuintes já se encontravam ameaçados pelo constante apetite insaciável do fisco, agora eles também estão em cheque pelo recorrente ímpeto de regulação e opressão da sua vontade sobre a particular. Ocorre que a relação entre contribuinte e fisco, independentemente do posicionamento ideológico e amoral que ocupe, deve sempre se pautar pelo direito positivo, a fim de que tenha juridicamente validade e legitimidade. Essa, portanto, é a primeira premissa adotada no presente trabalho: o recorte temático fazer-se-á dentro da Ciência Pura do Direito. Não é que os outros aspectos do mundo fenomênico sejam de menor importância, é que, para a análise científica do Direito, eles são irrelevantes. Em seguida, dentre as inúmeras possibilidades de recorte do tema, escolheu-se o aspecto mais recente da tributação – a extrafiscalidade – e, com o privilégio de definir-lhe constitucionalismo moderno – a legalidade. Isso, pois, conforme se verá a seguir, a atuação extrafiscal dos entes tributantes, em razão da própria natureza do instituto, na edição de atos administrativos discricionários. Em outras palavras, aparentemente, haveria uma derrogação (ou ao menos mitigação) do princípio da legalidade tributária. Seria possível, portanto, afastar o princípio balizador do Estado de Direito? Essa é a primeira questão a que se pretende responder. Ato contínuo, diante da resposta encontrada, investigar-se-à como e quais limites o princípio da legalidade impõe à extrafiscalidade tributária.

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limites, diante também das incontáveis possibilidades, optou-se pelo princípio fundante do


Para tanto, discorrer-se-á sobre o instituto da extraficalidade, bem como se estudará o princípio da legalidade e, por último, esses dois tópicos serão relacionados entre si, utilizando-se o segundo como baliza para o primeiro. Cada tópico supracitado será explicitado em forma de um capítulo próprio. Por fim, anota-se que o trabalho adotará o método bibliográfico, com apoio em legislação, doutrina e jurisprudência, e argumentativodissertativo.

2 EXTRAFISCALIDADE TRIBUTÁRIA

As modalidades de intervenção do Estado na/sobre a economia derivam da permissibilidade constitucional. A Constituição Federal, ao delinear um Estado Democrático e Social de Direito, limita as formas de intervenção do Estado na/sobre a economia, bem como impõe o dever dessa, pelos meios legítimos, para a concretização dos objetivos constitucionais (MELLO, 2013, p. 806). A Constituição Federal, a partir do art. 170, trata da Ordem Econômica e, em seus arts. 173 e 174, lança as normas norteadoras da relação entre o Estado brasileiro e a economia, conforme se vê:

Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei. Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento,

Assim, o Estado brasileiro possui contornos de Estado Regulador e Subsidiário ditados pela Constituição Federal: seu art. 173 garante subsidiariedade da intervenção do Estado na economia, apenas nos casos de imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo; e, por sua vez, o art. 174 determina que o Estado brasileiro irá regular a atividade econômica, dando-lhe orientação constitucional. Dessa forma, a exploração direta da atividade econômica fica a cargo dos particulares, contudo, o Estado pode a fiscalizar, incentivá-la e a planejar, a fim de que a propriedade privada cumpra sua finalidade social e a sociedade como um todo se desenvolva. 355

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sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.


Nesses termos, a Constituição Federal elegeu o livre-mercado como modelo econômico vigente no país (NUSDEO, 2014, p. 176). Contudo, deve-se observar que, de outra banda, a intervenção do Estado na/sobre a economia é um dever constitucional, haja visto a sua obrigação de manter o mercado saudável, nos termos consagrados pela Constituição Federal como princípios da ordem econômica, conforme entendimento exarado pelo Supremo Tribunal Federal no AgRg no RE 632.644/DF2. Conforme ensina Eros Roberto Grau (2015, p. 143-144), as forma de intervenção do Estado na/sobre a economia se dividem em três: i) absorção ou participação; ii) direção; e iii) indução. Ainda, destaca-se a distinção entre intervenção na economia e intervenção sobre a economia: quando o Estado atua como agente econômico, está-se diante de uma intervenção na economia; por sua vez, quando o Estado age como agente regulador da atividade econômica, ele intervém sobre a economia. A primeira trata-se de uma forma de intervenção do Estado na economia, diferindo apenas se atua como agente econômico, por meio de monopólio (absorção) ou em regime de competição (participação). As duas últimas são modalidades de intervenção do Estado sobre a economia. No caso da direção, o Estado impõe normas de comportamento de observância compulsória para os agentes econômicos, sob pena de sanção. Já na indução, o Estado induz o comportamento dos agentes econômicos por meio de incentivos ou desincentivos, que podem, ou não, serem seguidos pelos agentes econômicos. Mesmo que, em regra, não possa atuar diretamente no mercado, o Estado pode o moldar ao tentar induzir o comportamento dos agentes econômicos. Tal possibilidade deriva da construção teórica do homo economicus, isto é, do homem que se comporta de acordo com as regras do mercado (NUSDEO, 2014, p. 117-118).

precisamente, nessas premissas. Assim, agindo de acordo com suas funções próprias, o Estado altera a conformação natural do mercado, criando benefícios ou dificuldades, induzindo, livremente, os agentes econômicos a adotarem certas condutas, a fim de maximizarem seus lucros. Diversas são as maneiras do Estado intervir na economia por indução: desde o aumento (ou direcionamento) do gasto público, abertura de linhas de crédito subsidiadas, 2

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. AgRg no RE 632.644/DF. 1T, Rel. Min. Luiz Fux, julgamento 10.4.2012, DJe 10.5.2010.

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A intervenção do Estado sobre o domínio econômico por indução pauta-se,


diminuição ou aumento da alíquota de impostos, criação de agências reguladoras e instruções normativas etc. É certo, porém, que no Estado Democrático e Social de Direito a extrafiscalidade tributária tem ganhado maior relevo como ferramenta indutora (SCHOUERI, 2015, p. 41). Tem-se, então, que as normas tributárias indutoras são espécies de normas tributárias, contudo, especiais, pois servem de instrumento para o Estado intervir na ordem econômica por meio da indução (ELALI, 2007, p. 106). Ocorre que toda norma tributária possui função fiscal e extrafiscal. A função fiscal ocorre na consumação do recebimento dos tributos no erário público, tem, assim, uma função mediada com a arrecadação. Mas, além dessa, há uma função imediata, de indução dos agentes econômicos: é que, constituindo ônus ao contribuinte, altera a alocação natural de recursos, ao induzir o comportamento dos agentes privados (SCHOEURI, 2015, p. 41). A norma tributária indutora tem a pretensão de intervir na conduta do contribuinte para que ele aja de maneira a concretizar a finalidade social protegida por ela, diferenciandose, assim, das demais normas tributárias (LEÃO, 2015, p. 45). Assim, apesar de toda norma tributária possuir as funções fiscal e extrafiscal, a doutrina separa as normas tributárias em fiscais e extrafiscais, levando-se em consideração o seu objetivo precípuo ser a concretização de uma ou da outra finalidade (MACHADO, 2014, p. 69; MENKE, 2008, p. 98-100). A extrafiscalidade é, pois, a dimensão finalista e intervencionista do tributo. (TORRES, 2013, p. 187) A finalidade do legislador ao instituí-la, portanto, é o que a difere das normas tributárias fiscais. Isso, porque, a indução, enquanto antítese da neutralidade, é a concretização do fim que a norma tributária indutora almeja. Nesse ponto é importante salientar que o objeto da norma tributária indutora, isso é, a conduta que ela pretende influir, deve ser um ato lícito, já que o ilícito não pode ser coibido

conforme visto anteriormente, as condutas que o Estado deseja impedir devem ser proibidas por normas diretivas, que intervém na economia por direção e sob pena de sanção pelo seu descumprimento (ELALI, 2007, p. 106). Conclusivamente, a função extrafiscal é a função instrumental do tributo para a intervenção indutora do Estado sobre a economia, por meio de recomendação ao contribuinte, induzindo-o a adotar determinadas condutas mediante benefício econômico proporcionado pela norma jurídica.

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pela via tributária. (LEÃO, 2015, p. 43; ELALI, 2007, p. 105-106). No mesmo sentido,


3 PRINCÍPIO DA LEGALIDADE

Por sua vez, quanto ao princípio da legalidade, é imperioso anotar em primeiro lugar sua relação intrínseca ao conceito de Estado de Direito. Conforme preceitua José Afonso da Silva (2017, p. 114-115), o Estado de Direito fundamenta-se em três tripés: i) a previsão de três poderes independentes e harmônicos entre si; ii) a garantia de um rol de direitos fundamentais; e iii) a submissão ao império da lei. Nesse sentido, pontua-se que tais elementos são consequência dos já citados movimentos constitucionalistas, que visavam a redução do poder absolutista em benefício da garantia de direitos dos cidadãos. Nesse sentido, José Joaquim Gomes Canotilho (2003, p. 51) aponta que:

Constitucionalismo é a teoria (ou ideologia) que ergue o princípio do governo limitado indispensável à garantia dos direitos em dimensão estruturante da organização político-social de uma comunidade. Neste sentido, o constitucionalismo moderno representará uma técnica específica de limitação do poder com fins garatísticos. O conceito de constitucionalismo transporta, assim, um claro juízo de valor. É, no fundo, uma teoria normativa da política, tal como a teoria da democracia ou a teoria do liberalismo.

Com efeito, a Declaração dos Direitos dos Homens e dos Cidadãos prevê expressamente, em seu art. 16, que “A sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição”. É em razão disso que José Joaquim Gomes Canotilho (2003, p. 52) conceitua a constituição moderna como (a) um documento escrito que cria uma organização jurídico-

poder político de maneira tendente a deixá-lo limitado e moderado. É de notar-se que a Constituição Federal se enquadra no recorte dogmático ora proposto. Veja-se. Seu art. 1º prevê que “A República Federativa do Brasil (...) constitui-se em Estado Democrático de Direito (...)”; já o seu art. 2º determina que “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”; e, por fim, seu Título II trata “Dos Direitos e Garantias Fundamentais” e seu Capítulo I “Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos”.

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política, (b) que possui um conjunto de garantias e direitos fundamentais e (c) que organiza o


Nesse sentido, as disposições constitucionais funcionam como limites aos poderes do Estado moderno, o Estado de Direito (ou Estado Constitucional), garantindo os direitos fundamentais de todos os cidadãos. Põe, deste modo, fim a ideia de um poder absoluto. O poder-administrador fundamenta-se no interesse da coletividade, sendo o primeiro e mais caro o respeito às normas constitucionais, incluindo-se aí os direitos e garantias fundamentais. Nesse sentido, Ferreira Filho (2012, p. 21) retoma os fundamentos e finalidades do Estado constitucional:

A supremacia do Direito espelha-se no primado da Constituição. Esta, como lei das leis, documento escrito de organização e limitação do Poder, é uma criação do século das luzes. Por meio dela busca-se instituir o governo não arbitrário, organizado segundo normas que não pode alterar, limitado pelo respeito devido aos direitos do Homem.

Assevera, concordando, Canotilho (2003, p. 98):

O Estado de direito cumpria e cumpre bem as exigências que o constitucionalismo salientou relativamente à limitação do poder político. O Estado constitucional é, assim, e em primeiro lugar, o Estado como uma constituição limitadora do poder através do império do direito. As ideias do governo de leis e não de homens, de Estado submetido ao direito, de constituição como vinculação jurídica de poder (...).

O Estado de Direito funda-se no princípio da legalidade, que dele derivam dois postulados: (i) o princípio da supremacia ou prevalência de lei e (ii) o princípio da reserva de lei (CANOTILHO, 2003, p. 256).

Do seu turno, o segundo significa que apenas a lei em sentido estrito pode criar obrigações para os cidadãos. Assim, o Estado agora encontra-se pautado pela legalidade, e somente a lei pode criar obrigações para o particular. Nesse sentido, o art. 5º, inciso II, da Constituição Federal afirma que é direito fundamental do cidadão não ser “obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”; e o art. 37 que a “administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade”.

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Do primeiro depreende-se que a Administração Pública se encontra vinculada à lei.


Em outras palavras, a Constituição Federal positivou a Teoria da vinculação positiva da Administração pela legalidade (positive Bindung), qual seja que a Administração Pública somente pode fazer o que é permitido pela lei (quae non sunt permissae prohibita intelli guntur); diferentemente, aos particulares é permitido fazer tudo que não seja proibido (permissum videtur in omne quod no prohibitum). No plano do Sistema Tributário Nacional, o princípio da legalidade encontra-se encartado na Constituição Federal em seu art. 150, inciso I. Assim, é vedado aos entes políticos exigirem ou aumentar tributos sem lei que o estabeleça. É, portanto, o princípio da legalidade tributária. Sobre esse princípio, Paulo de Barros Carvalho (2013, p. 167) define-o como o mandamento que afirma que “pessoas políticas de direito constitucional interno somente poderá instituir tributos, isto é, descrever a regra-matriz de incidência, ou aumentar os existentes, majorando a base de cálculo ou a alíquota, mediante expedição de lei”. Por sua vez, Humberto Ávila (2005, p. 279) defende que a legadalide tributária possui caráter multidimensional. Dessa forma, o princípio da legalidade existe tanto como regra, princípio e postulado (ÁVILA, 2005, p. 282). Nesses termos, a legalidade-regra é uma norma de competência, uma norma de procedimento, uma norma de delimitação material de competência e uma norma de reserva de competência (ÁVILA, 2005, p. 284). Quanto à legalidade-princípio, o doutrinador ensina que essa norma se encontra sob uma flexibilidade hermenêutica maior, que serve como orientação para interpretação e aplicação do sistema jurídico de maneira integrada e coerente, podendo, nesse caso, ser objeto de restrição, maior ou menor (ÁVILA, 2005, p. 287-288). Por último, a legalidade-postulado é uma norma que fundamenta exigências ou proibições de natureza eminentemente hermenêutica. No caso, que a obrigação tributária seja

sejam provenientes da lei (ÁVILA, 2005, p. 288-289). Contudo, o constituinte excluiu alguns impostos da necessária observância desse princípio constitucional da ordem tributária que limita o poder de tributar dos entes políticos. Nos termos do art. 153, §1º, da Constituição Federal, é “facultado ao Poder Executivo, atendidas as condições e os limites estabelecidos em lei, alterar as alíquotas dos impostos enumerados nos incisos I, II, IV e V”.

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determinável com base na lei, proibindo, assim, a criação de obrigações tributária que não


Tomando o imposto de importação como exemplo, vê-se que a exceção tem como escopo dar eficácia ao referido imposto, por sua natureza extrafiscal. (MACHADO, 2014, p. 315). Em outros termos, se ele funciona como ferramenta para regular a política econômica externa e cambial, não faz sentido esperar o trâmite legislativo para a majoração ou diminuição de alíquotas, porquanto, diante da dinâmica do comércio internacional, a norma indutora precisa ter incidência e efeitos imediatos. (BALEEIRO, 2015, p. 293) Entretanto, deve-se observar que a norma insculpida no art. 153, §1º, não importa em exceções ao princípio da legalidade, previsto no art. 150, inciso I, todos da Constituição Federal. O que se tem, em verdade, são duas normas que vigem de maneira harmônica. Essa é a lição de Carrazza (2015, p. 337):

(...). Não há, neste dispositivo constitucional, qualquer exceção ao princípio da legalidade. Apenas o Texto Magno permite, no caso, que a lei delegue ao Poder Executivo a faculdade de fazer variar, observadas determinadas condições e dentro dos limites que ela estabelecer as alíquotas (não as bases de cálculo) dos mencionados impostos. De fato, se o Poder Executivo – por especial ressalva do Texto Magno – só pode alterar as alíquotas dos supracitados impostos atendidas as condições e os limites estabelecidos em lei, como haveremos de sustentar que eles aceitam serem criados ou aumentados por norma jurídica diversa da lei? Na verdade, o Executivo não cria as alíquotas destes impostos, mas, simplesmente, as altera, dentro dos lindes prefixados pelo legislador. Alterar, como é cediço, pressupõe algo preexistente. Só se altera o que já está posto. No caso, só se alteram as alíquotas dentro dos limites e condições que a lei previamente traçou. Se a lei não estabelecer limites mínimo e máximo para as

Esse é também o entendimento do Supremo Tribunal Federal, conforme se vê no AgRg no RE 959.274/SC3, nestes termos:

Direito Tributário. Agravo Regimental em Recurso Extraordinário. Taxa de utilização do SISCOMEX. Majoração por Portaria do Ministério da Fazenda. Afronta à Legalidade Tributária. Agravo regimental provido. 1. É inconstitucional a majoração de alíquotas da Taxa de Utilização do SISCOMEX por ato normativo 3

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. AgRg no RE 959.274/SC. 1T, Rel. Min. Rosa Weber, Rel. para Acórdão Min. Roberto Barroso, j. 29.08.2017, DJe 13.10.2017.

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alíquotas, o Executivo nada poderá fazer, neste particular.


infralegal. Não obstante a lei que instituiu o tributo tenha permitido o reajuste dos valores pelo Poder Executivo, o Legislativo não fixou balizas mínimas e máximas para uma eventual delegação tributária. 2. Conforme previsto no art. 150, I, da Constituição, somente lei em sentido estrito é instrumento hábil para a criação e majoração de tributos. A Legalidade Tributária é, portanto, verdadeiro direito fundamental dos contribuintes, que não admite flexibilização em hipóteses que não estejam constitucionalmente previstas. 3. Agravo regimental a que se dá provimento tão somente para permitir o processamento do recurso extraordinário (grifo nosso).

Dessa forma, com apoio na doutrina citada e no precedente do Supremo Tribunal Federal, reputa-se que o princípio da legalidade não encontra seu conteúdo normativo esvaziado, mesmo que diante dos tributos extrafiscais que receberam tratamento constitucional diferenciado no tocante a sua observância.

4 LIMITES IMPOSTOS À EXTRAFISCALIDADE TRIBUTÁRIA PELO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE

Como toda atividade administrativa do Estado, o poder de tributar (indutivamente) encontra limite na Constituição Federal. O estudo dos limites às normas tributarias indutoras encontra importância na medida que a finalidade não é mais a arrecadação e, dessa forma, os limites ao poder de tributar enfrentam um novo paradigma (a intervenção no domínio econômico) para que evite arbitrariedades por parte do Estado (LEÃO, 2015, p. 37). Nesse sentido, o poder de tributar deve ser exercido dentro da respectiva competência tributária do ente político, a fim de que as balizas jurídicas sejam mantidas intactas. Isso, pois, a estrita observância da competência é o que mantém o poder estatal de

Assim, o Estado não pode intervir na economia por meio dos tributos de maneira livre. Ele deve conformar seu poder à competência tributária, ainda que na edição de normas tributárias indutoras, respeitando os limites constitucionalmente impostos, conforme definido pelo Supremo Tribunal Federal no RE 205.193/RS4.

4

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RE 205.193/RS. 1ª Turma, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento 25.2.1997, DJ 6.6.1997.

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tributar jurídico, e não mera arbitrariedade (MACHADO, 2014, p. 27-28).


Em primeiro lugar, são limites naturais às normas tributárias indutoras os direitos e garantias individuais, pois, como visto, são limites constitucionais ao poder estatal. Conforme assentado pelo Supremo Tribunal Federal no Repr. 1.077/RJ5:

Em suma: a prerrogativa institucional de tributar, que o ordenamento positivo reconhece ao Estado, não lhe outorga o poder de suprimir (ou de inviabilizar) direitos de caráter fundamental, constitucionalmente assegurados ao contribuinte (...).

Além disso, repisa-se que as normas tributárias indutoras são espécies de normas tributárias. Destarte, deve-se aplicar a elas o regime jurídico-tributário determinado pela Constituição Federal, em especial as limitações ao poder de tributar (LEÃO, 2015, p. 59-63; TORRES, 2013, p. 63-64). Somados a esses, por atuarem diretamente na ordem econômica, as normas tributárias indutoras devem observar os princípios arrolados pela Constituição Federal no tocante à atividade econômica, uma vez que eles são os fins balizadores da interferência do Estado na economia. Assim, incluem-se os princípios constitucionais da ordem econômica como limites às normas tributárias indutoras. (LEÃO, 2015, p. 62-63) Destarte, em razão do corte proposto pelo presente trabalho, analisar-se-á somente os limites impostos à extrafiscalidade pelo princípio da legalidade. Contudo, desde já, deixa-se explicito que existem outras normas igualmente importantes que limitam a atuação extrafiscal da Administração Pública. Assim, destaca-se as normas regras, princípios e postulados. Tais viéses do princípio da legalidade impõem que o ente político tributante se atenha a sua competência, tanto quanto ao procedimento e ao conteúdo material, razão pela qual sua atividade deve se pautar no

Com efeito, retoma-se as dicções dos art. 150, I, e 153, §1º, da Constituição Federal. Da leitura e interpretação sistêmica, é possível inferir que somente é possível exigir ou aumentar tributo por meio de lei em sentido estrito; e, soma-se a isso, que ao imposto de importação, ao imposto de exportação, ao imposto de produtos industrializados e ao imposto sobre operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou valores mobiliários é facultado que o Poder Executivo (1) altere suas alíquotas, (2) atendidas as condições e (3) os limites (4) estabelecidos em lei. 5

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Repr. 1.077/RJ. Pleno, Rel. Min. Moreira Alves, DJU 28.9.1984.

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estrito cumprimento dos preceitos traçados na Constituição Federal.


Consequentemente, (1) o princípio da legalidade tributária não permite que a Administração Pública, com fundamento no art. 153, §1º, da Consituição Federal, altere qualquer critério que não o elemento alíquota do critério quantitativo da regra-matriz de incidência tributária dos impostos expressamente elencados pelo texto constitucional. Em seguida, (2) vê-se a necessidade de o Poder Executivo motivar e fundamentar o ato que altera o referido elemento, nos termos e condições previstos pela legislação fiscal. Logo após, (3) tem-se que a alteração da alíquota não se dá de maneira inovativa no ordenamento jurídico: em verdade, deve-se observar os limites – isto é, parâmetros máximo e mínimo – das alíquotas impostos e previstos na lei. Por fim, (4) mesmo que óbvia, ainda é um limite a esse ato estatal-tributário: deve haver permissivo legal expresso permitindo a referida discricionariedade administrativa. Dessa forma, os limites 1, 3 e 4 são de fácil aferição visto o cárater objetivo de suas normas-regras. Mas, o contrário ocorre com o limite 2. Ainda que haja disicplinamento legal acerca das condições para alteração da alíquota, a subsunção dos fatos sociais à linguagem jurídica e, por conseguinte, constituição de fatos jurídicos depende única e exclusivamente das provas acostadas ao procedimento administrativo. Nesse sentido, a fim de garantir o controle da Administração Pública, resguardar os direitos fundamentais dos cidadãos-contribuintes, o Estado de Direito e o conteúdo normativo do Princípio da Legalidade, é necessário a observância das condições previstas na lei e, portanto, da finalidade interventiva da lei que possibilita a ação extrafiscal. Caso contrário, haverá a subversão do Constitucionalismo, resultando em pura arbitrariedade e em um ato rechaçado pelo Direito, tanto no tocante à validade quanto à legitimidade.

Em primeiro lugar, discutiu-se o conceito de extrafiscalidade. Iniciando pelas modalidades de intervenção do Estado na/sobre a economia, viu-se que é dever-poder estatal regular o domínio econômico a fim de garantir o desenvolvimento nacional saudável e competitivo. Ainda, anotou-se que a extrafiscalidade é forma de intervenção do Estado sobre a economia por meio da indução, isto é, criando benefícios e/ou ônus aos cidadãos/contribuintes para induzir as condutas para àquelas socialmente desejáveis, nos parâmetros constitucionais dos regime-jurídicos constitucionais econômicos e sociais. 364

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS


Em paralelo, viu-se o conteúdo normativo do princípio da legalidade. Partiu-se do recorte histórico dos movimentos constitucionalistas e da finalidade das constituições, bem como da formação dos Estados de Direito (Constitucionais). Assim, anotou-se que o princípio da legalidade é pedra basilar do Estado de Direito, possuindo tanto conteúdo normativo como princípio da supremacia (ou prevalência) de lei como quanto princípio da reserva de lei. Quanto ao Sistema Tributário Nacional, entendeu-se que o referido princípio possui caráter multimensional. Contudo, investigou-se também os casos em que aparentemente o constituinte excepcionou alguns impostos de sua validade. Mas, terminou-se vendo que, na verdade, inexiste antinomia entre as normas constitucionais do princípio da legalidade e da que permite a extrafiscalidade pela alteração da alíquota pelo Poder Executivo federal. Ao final, analisou-se as limitações impostas pelo princípio da legalidade à extrafiscaliadde tributária. Pontuou-se que em função da norma extrafiscal ser uma norma tributária indutora, aplica-se a ela as limitações próprias do regime-jurídico constitucionaltributário. Em paralelo, por ter finalidade interventiva no campo socioeconômico, também aplicam-se como limites o regramento constitucional referente a área de afetação, por pretender alterar a dinâmica social da referida área. Contudo, diante do tema proposto, recortou-se os limites advindos pelo princípio da legalidade , confrontando diretamente os art. 150, inciso I, e art. 153, §1º, todos da Constituição Federal. Chegou-se a conclusão de que são 4 (quatro) as limitações impostas pelo texto constitucional, quais sejam: não há permissão para que a Administração Pública altere qualquer critério que não o elemento alíquota do critério quantitativo da regra-matriz de incidência tributária dos impostos expressamente elencados pelo texto constitucional; há a necessidade de o Poder Executivo motivar e fundamentar o ato que altera o referido elemento, nos termos e condições previstos pela legislação fiscal; a alteração da alíquota não se dá de parâmetros máximo e mínimo – das alíquotas impostos e previstos na lei; e deve haver permissivo legal expresso permitindo a referida discricionariedade administrativa. Diante de todo o exposto, vislumbrou-se que, apesar da Constituição Federal prever hipóteses em que o Poder Executivo federal possa alterar as alíquotas de certos tributos de maneira discricionária, tal ato deve se pautar sempre em acordo com o Direito, a fim de que possua validade e legitimidade. Nesse sentido, o controle de sua finalidade foi considerado elemento essencial para definir os contornos possíveis de atuação da extrafiscalidade e, assim, a limitar. 365

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maneira inovativa no ordenamento jurídico: em verdade, deve-se observar os limites – isto é,


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TAXATION EXTRAFISCALITY: NOTES ABOUT ITS LIMIT FROM THE PRINCIPLE OF LEGALITY

ABSTRACT This paper studies the limits of taxation extrafiscality, making a cut from the principle of legality. Extrafiscal action has been used

with the limits imposed by the Federal Constitution in order not to violate the fundamental rights of taxpayers. Therefore, it’s intended to investigate how tax legality shapes administrative discretion in the extrafiscal use of taxes. For this, we used the bibliographic method, supported

by

legislation,

argumentative-dissertative.

doctrine It’s

and

concluded

jurisprudence, that,

even

and within

administrative discretion, the extrafiscality must be subject to legal rules, especially to the purpose provided for by law. 367

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recurrently by the Public Administration, however, it must comply


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Keywords: Extrafiscality. Limitation. Principle of legality.

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A GARANTIA FUNDAMENTAL À DURAÇÃO RAZOÁVEL DO PROCESSO E A BUSCA POR UM PROCESSO PENAL FINITO Sêmely Clície Rodrigues Batista Lira1

RESUMO O presente artigo tem como objetivo estudar a garantia fundamental à duração razoável do processo, entendendo a sua necessidade de efetivação no âmbito da Justiça Criminal. Ao longo do trabalho, serão investigados os sentidos e espécies normativas sobre as quais a duração razoável do processo pode se revelar, a fim de que seja estabelecido um conceito para o termo jurídico. Por fim, será abordado a possibilidade de estabelecimento de um prazo máximo para a existência do processo penal no tempo, como meio de buscar estabelecer limites ao poder punitivo do Estado. Palavras-chave: Justiça criminal. Duração razoável do processo.

1 INTRODUÇÃO

1

Mestranda em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Membro colaborador do Grupo de Pesquisa Direitos Fundamentais e a Linguagem no Direito Criminal. Membro Colaborador dos Projetos de Pesquisa: a) O Direito Criminal como corpo normativo construtivo do sistema de proteção dos direitos e garantias fundamentais, nas perspectivas subjetiva e objetiva b) Criminalidade violenta e diretrizes para uma política de segurança pública no Estado do Rio Grande do Norte. Servidora Pública. Advogada.

369

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Garantia fundamental.


Quando estudamos a duração razoável do processo, é possível entender que, embora essa garantia constitucional esteja posta na Constituição desde 2004, na prática, tal norma tão imprescindível ao Estado Constitucional de Direito, ainda encontra problemas para a sua efetivação. Nesse contexto, a dilação excessiva do processo criminal pode tornar-se uma verdadeira sanção estatal, tanto para os réus inocentes, como para os culpados. Além disso, a busca pela efetivação da garantia fundamental à duração razoável do processo transcende a esfera de direitos do acusado para se revelar como problema estrutural da Justiça Criminal. Ao passo que, as relações sociais vão exigindo celeridade e ações incisivas do Estado, sob pena da atuação estatal na esfera penal perder o seu significado. Então, em uma sociedade pós-moderna, em que o tempo exerce um papel extremamente relevante na vida das pessoas, o Estado precisa adequar o seu sistema de justiça à sociedade do seu tempo. Nesse sentido, buscando entender que o direito de acesso à justiça, hoje, não compreende simplesmente o direito de ter um julgamento, mas ter um julgamento em um tempo razoável.

2 A DURAÇÃO RAZOÁVEL DO PROCESSO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

A duração razoável do processo é uma garantia fundamental, na qual, segundo o art. 5º, LXXVIII, da Constituição: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”. Analisando seus antecedentes, é possível observar que o direito da duração razoável do processo penal2 foi incorporado ao nosso ordenamento jurídico a partir da ratificação do Pacto de São José da Costa Rica3 pelo Brasil, em 1992. E esse direito encontra-se posto,

liberdade pessoal" e "Garantias judiciais", respectivamente. Veja:

Artigo 7. Direito à liberdade pessoal

2

Ao tratar da duração razoável do processo na ordem constitucional de 1988, Silva Júnior (2012, p. 53-54) relembra que, sem constar de forma explícita na redação originária da Constituição de 1988 antes da Emenda n. 45, de 2004, o direito afeto do causado à duração razoável do processo já vinha sendo reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal - STF, enquanto direito implícito do nosso sistema constitucional e desdobramento do devido processo legal, além de encontrar respaldo na Convenção Americana de Direitos Humanos. 3 COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Pacto de são José da costa rica. Disponível em: <http://www.cidh.oas.org.basicos/portugues/c.convenção_americana.htm>. Acesso em: 22 jul. 2019.

370

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explicitamente, nos artigos 7 e 8, do referido diploma, possuindo como subtítulos “Direito à


(...) 5. Toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais e tem direito a ser julgada dentro de um prazo razoável ou a ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo. 6. Toda pessoa privada da liberdade tem direito a recorrer a um juiz ou tribunal competente, a fim de que este decida, sem demora, sobre a legalidade de sua prisão ou detenção e ordene sua soltura se a prisão ou a detenção forem ilegais. Nos Estados Partes cujas leis prevêem que toda pessoa que se vir ameaçada de ser privada de sua liberdade tem direito a recorrer a um juiz ou tribunal competente a fim de que este decida sobre a legalidade de tal ameaça, tal recurso não pode ser restringido nem abolido. O recurso pode ser interposto pela própria pessoa ou por outra pessoa. Artigo 8. Garantias judiciais 1. Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.

Em 2004, com a reforma do judiciário regulamentada pela Emenda Constitucional nº 45, o direito à duração razoável do processo, que já estava reconhecido pelo Pacto de São José da Costa Rica, foi positivado em nossa Carta Magna e passou a ter status de norma constitucional. Consequentemente, o Estado brasileiro passou a obrigar-se, externa e internamente, a garantir o direito à duração razoável do processo. Então, a partir do marco da reforma do judiciário de 2004, o direito à duração razoável do processo tornou-se uma garantia fundamental.

jurídico brasileiro, é possível aprofundar o estudo sobre o tema e compreender como essa garantia fundamental comporta-se no nosso sistema jurídico. Dessa maneira, estamos diante de um tema recorrente e desafiante que envolve a morosidade do judiciário e a expectativa social por uma justiça mais célere. Assim, conforme Silva Júnior (2019, p. 53), a busca por soluções ao problema apresentado deve ter como ponto de partida a análise e definição do termo duração razoável do processo. Nessa temática, é importante destacar que a duração razoável do processo possui natureza jurídica de norma constitucional e compreende uma garantia fundamental, visto que 371

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Após entender como a duração razoável do processo foi incorporada no ordenamento


está posta na Constituição no rol dos direitos e garantias fundamentais. Do mesmo modo, também representa um princípio constitucional de grande importância para a jurisdição como um todo, uma vez que norteia o funcionamento do judiciário e impulsiona a celeridade na tramitação dos processos. Como também, pode se relevar como regra em nosso sistema jurídico, nos casos de comandos normativos responsáveis por estabelecerem prazos para atos e procedimentos processuais. Além disso, é fundamental buscar compreender os sentidos que a duração razoável do processo pode assumir no nosso sistema jurídico. Por essa razão, sem prejuízo de outras abordagens, trataremos da duração razoável do processo como desdobramento do direito de acesso à justiça; como dever do Estado; e, por último, como direito subjetivo da parte.

2.1 Desdobramento do direito de acesso à justiça

O direito à duração razoável do processo também pode ser visto como um desdobramento do direito de acesso à justiça, art. 5º, XXV, da Constituição: "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito". De acordo com esse pensamento, o direito de acesso à justiça compreende não somente o direito de peticionar e de inafastabilidade do judiciário, mas também, de ter uma resposta penal tempestiva, no tempo certo. Em outras palavras, ter efetivado o direito de acesso à justiça compreende também a compatibilização do processo à garantia fundamental à duração razoável do processo. Portanto, o processo penal deve durar por um tempo que seja considerado razoável. Nesse sentido, Rangel (2017, p. 45) aduz que: "A razoabilidade do prazo de duração do processo é a garantia do exercício da cidadania na medida em que se permite que todos possam ter acesso à justiça, sem que isso signifique demora na prestação jurisdicional".

acesso à justiça e o direito à duração razoável do processo, demonstrando que o acesso ao judiciário não significa tão somente ter direito a uma resposta estatal, mas, ter essa resposta em um tempo razoável. Além disso, quando estamos falando da duração razoável do processo como desdobramento do direito de acesso à justiça é possível também compreender essa garantia fundamental como um exercício da cidadania a que se propõe o Estado Democrático de Direito.

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Através dessa afirmação, Rangel estabelece uma relação direta entre o direito de


2.2 Dever do Estado

A duração razoável do processo também pode ser entendida como um dever do Estado, no sentido de que é função do Estado garantir uma prestação jurisdicional em um tempo razoável para as partes e para a sociedade como um todo. Desse modo, para que o Estado faça um bom uso do seu jus puniendi (o direito de punir) é preciso que o processo penal ocorra à luz da Constituição, ou seja, cumprindo as normas constitucionais, sobretudo, sem escorregar no cumprimento da duração razoável do processo, pois a sua violação pode macular o processo por completo. Além disso, quando tratamos da duração razoável do processo como dever do Estado, é possível pensar nas expectativas que a sociedade deposita no Estado, confiando-lhes a realização da justiça no prazo razoável. Nesse sentido:

A morosidade do Judiciário é o centro de toda e qualquer abordagem crítica que lhe é feita, especialmente no âmbito criminal. Isso porque ela alimenta, decisivamente, o sentimento de impunidade que se reaviva sempre que algum fato criminoso é explorado pela mídia (SILVA JÚNIOR, 2012, p. 53).

Por isso, quando entendemos a prestação jurisdicional no tempo razoável como um dever do Estado não só em relação às partes envolvidas no processo, mas a comunidade como um todo, compreendemos a sociedade como parte interessada no processo, haja vista que nela se desperta o sentimento de realização de justiça quando os casos penais são solucionados. De outro modo, quando os delitos cometidos ficam por muito tempo sem uma resposta estatal, a morosidade do judiciário pode ser interpretada como impunidade aos infratores. Então, o sentimento de descredibilidade da justiça é despertado na sociedade e, comumente,

Dessa maneira, o cumprimento da duração razoável do processo é um dever do Estado, assim como, a prestação jurisdicional no tempo certo reveste o processo penal de legitimidade e não gera o sentimento de impunidade na população. Além disso, a duração razoável do processo é dada como uma obrigação estatal assumida perante as partes e a sociedade, uma vez que o Estado deve punir os transgressores, mas não pode ele mesmo, utilizando a expressão de Piero Calamandrei, desrespeitar as regras do jogo4 (ROSA, 2018). 4

O processo penal encarado pela análise da Teoria dos Jogos é estudado, no Brasil, pelo professor Alexandre de Morais da Rosa, na obra: A Teoria dos Jogos Aplicada ao Processo Penal. A partir da ideia trazida por Piero Calamandrei da Itália.

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exacerbado pela mídia.


2.3. Direito subjetivo da parte

Além de desdobramento do direito de acesso à justiça e dever do Estado, a duração razoável do processo penal também é um direito subjetivo da parte. Quando um processo se delonga excessivamente no tempo, perdurando além do tempo necessário para a sua existência, o direito do acusado de ter um julgamento dentro de um prazo razoável é violado. Para essa situação, a duração razoável do processo apresenta-se como um direito subjetivo da parte e deve ser suscitada ao órgão jurisdicional competente. Dessa forma, a efetivação do direito à duração razoável do processo é realizada no caso concreto, por meio de reclamação da parte, a qual postula a realização de algum ato processual, geralmente, o encerramento da instrução criminal, a prolação de uma sentença e/ou o julgamento de uma ação ou recurso. Desse modo, quando o Estado descumpre ou ameaça violar tal garantia, as partes devem fazer uso do seu direito subjetivo de exigir do Estado a prestação jurisdicional no tempo certo. Apesar disso, a Justiça Criminal não está a serviço só das partes, mas da sociedade com um todo, conforme já mencionado. Portanto, a resposta penal tempestiva é devida não só às partes, mas à toda comunidade. Por essa razão, ser direito subjetivo da parte não anula a duração razoável do processo ser também um dever do Estado e um desdobramento do exercício de cidadania, considerando que essa garantia fundamental pode assumir várias perspectivas. Ademais, quando a finalidade da pena é a recuperação do infrator, mais do que nunca a resposta penal ao caso concreto exige celeridade (SILVA JR., 2012, p. 53). Revela o art. 59 do Código Penal – CP que a pena possui a finalidade de reprovação e prevenção, segue:

personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime:

Sobre os fins da pena, a doutrina apresenta outros ideais como a função integralizadora, ressocializadora e pedagógica, além da função de reprovação e prevenção apresentada no Código Penal. Porém, quando ocorre a dilação processual excessiva, a pena parece perder o seu caráter de prevenção e assume a função meramente repressiva. Isso

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Art. 59 - O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à


porque, quando o processo penal se delonga excessivamente no tempo e o réu convive normalmente em sociedade, sem que volte a delinquir, a finalidade preventiva da pena perde o sentido de sua existência e a pena passa a ter caráter meramente repressivo.

3 EM BUSCA DE UM CONCEITO

A duração razoável do processo, que de início não recebeu essa nomenclatura, é uma garantia processual que nasce na era das Constituições. O primeiro documento histórico a reconhecer tal garantia foi a Carta Magna Inglesa de 1215 5, nela ficou estabelecido no art. 40, que: “A ninguém venderemos, a ninguém negaremos ou retardaremos direito ou justiça”. Ademais disso, no século XVIII, Beccaria levantou a discussão sobre o assunto, quando tratou da rapidez da pena, na obra Dos Delitos e das Penas (BECCARIA, 2013, p. 77-79). Posteriormente, o termo duração razoável do processo passou a ser usado como expressão definidora do que seria a garantia processual de ser julgado dentro de um prazo razoável. Atualmente, não há um consenso doutrinário na classificação normativa do preceito jurídico duração razoável do processo, podendo ser entendido como um conceito jurídico indeterminado, ou uma norma programática. Em que pese isso, inegavelmente, a duração razoável do processo possui natureza jurídica de garantia processual, fundamental, visto que está encartada na Constituição, assim como, constitui um princípio constitucional explícito. Assim, a duração razoável do processo é um direito subjetivo público e também um dever jurídico do Estado e carece de melhor definição e conceituação, em razão de ser um preceito jurídico vago e indeterminado (NICOLITT, 2014, p. 39-40). Outros autores classificam a duração razoável do processo como norma programática. RANGEL (2017, p. 43) afirma que: “A regra é inócua. Não diz nada. Não diz o que é prazo razoável de um

garantia fundamental é preciso analisar suas características, seus titulares e garantidores e o seu sentido e alcance em nosso sistema jurídico. Apesar da doutrina apresentar essa divergência quanto à classificação normativa, fazendo com que não haja um entendimento pacífico, importa ressaltar que, a duração razoável do processo compreende uma garantia fundamental a ter um julgamento definitivo dentro de um prazo razoável. Ademais, a forma como o direito à duração razoável do 5

Carta Magna (1215). Disponível em: <http://corvobranco.tripod.com/dwnl/magna_carta.pdf>. Acesso em 29 ago. 2019.

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processo. Trata-se de uma norma programática”. Nesse passo, para melhor entender essa


processo está posto na Constituição revela a natureza de princípio da espécie normativa em epígrafe, considerando a amplitude de seu alcance e interpretação, além da sua carga valorativa e o seu caráter de abstração e conformação. Indubitavelmente, a duração razoável do processo penal é um princípio norteador da jurisdição como um todo. As afirmações feitas acima não vão de encontro à constatação de que o direito à duração razoável do processo deveria ser melhor regulamentado. Isso porque o reconhecimento da relevância de tal princípio é, inclusive, pressuposto para fundamentar a necessidade de regulamentação infraconstitucional de tal garantia processual, a fim de impulsionar a sua efetivação. Até mesmo porque, embora o direito à duração razoável do processo esteja posto na Constituição desde 2004, na prática, essa garantia fundamental ainda encontra dificuldades de efetivação.

3.1 Princípio

A duração razoável do processo faz parte de um conjunto de garantias mínimas que o Estado deve assegurar aos indivíduos. Nesse sentido, o modelo garantista de Ferrajoli determina o estabelecimento de limites mínimos para a atuação estatal como próprio desdobramento do Estado Constitucional de Direito (FERRAJOLI, 2014). Nesse prisma, olhar para a duração razoável do processo como princípio é defender a sua interpretação e aplicação imediata, na busca pela concretização de tal garantia fundamental. Os princípios, além de exercerem função norteadora e interpretativa, também possuem função normativa, portanto, devem ser concretizados, incidem diretamente sobre os fatos e exigem aplicação imediata. Nesse viés, o art. 5º, § 1º, da Constituição, aduz que “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. Dessa forma, sendo a duração razoável uma garantia fundamental, conforme já dito, ela reclama

Como também, a natureza de princípio da duração razoável do processo revela um maior grau de abstração, característica da própria espécie normativa. Isso porque os princípios assumem uma maior carga axiológica valorativa, por meio de enunciados de conteúdo finalístico, nos quais sobrepesam valores passíveis de serem aplicados nas mais diversas situações possíveis, dado o seu caráter de abstração. Notoriamente, considerando que a duração razoável do processo figura-se nos preceitos acima elencados que descrevem as características dos princípios, é possível vislumbrar a natureza de princípio na espécie normativa. 376

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aplicação imediata e está apta a produzir efeitos na ordem jurídica vigente.


3.2 Regra

As regras, juntamente com os princípios, compõem as espécies do gênero norma. As regras são comandos normativos que, geralmente, exprimem obrigações. Em outras palavras, são espécies normativas que possuem caráter impositivo, visto que expressam imperatividade quando permitem, impõem ou proíbem determinada conduta. No direito brasileiro, apesar de não existir um prazo estabelecido para o Estado conduzir o processo penal no tempo, o direito à duração razoável do processo também pode ser reconhecido como uma regra. Isso porque, ao longo da legislação infraconstitucional, em especial, no Código Processual Penal, são estabelecidos prazos para a duração de atos e procedimentos. Para essas previsões normativas, quando há estabelecimento de prazo, objetiva-se tutelar o direito à duração razoável do processo. Em que pese isso, por não existir um prazo máximo para o Estado julgar definitivamente um processo penal, a garantia fundamental à duração razoável do processo revela-se como norma programática, portanto, necessitando de regulamentação para alcançar efetividade. Nesse ponto, é importante destacar que, embora o Código Processual Penal estabeleça os prazos de 30, 60 e 90 dias para o encerramento dos procedimentos sumário, ordinário e do tribunal do júri, respectivamente, consoante os artigos 531, 400 e 412 do Código Processual Penal, tais prazos são impróprios. Portanto, os descumprimentos não implicariam quaisquer consequências de natureza administrativa, cível ou penal à autoridade judiciária violadora. Então, embora o direito à duração razoável do processo possua status de garantia fundamental, pelo menos na esfera penal, ele ainda encontra sérias dificuldades para efetivação. Isso em razão de não existir o prazo máximo estabelecido para a existência de um

fiscalização de cumprimento de prazos pelas autoridades judiciais.

4 ESTABELECENDO UM LIMITE PARA ESTADO CONDUZIR O PROCESSO PENAL NO TEMPO

Estabelecer um prazo limite para a existência do processo penal no tempo é buscar dar efetividade à norma constitucional da duração razoável do processo, que possui aplicação 377

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processo penal, assim também, por o Estado não dispor de mecanismos eficientes de


imediata, por estar no rol dos direitos e garantias fundamentais. A regulamentação legislativa da duração razoável do processo penal representa o estabelecimento de limites para o Estado conduzir o processo penal no tempo. Dessa forma, estabelecer um prazo para o processo existir no tempo é também buscar entender que o poder punitivo do Estado não pode ter um caráter absoluto. Não só porque a garantia fundamental à duração razoável do processo é um direito fundamental do cidadão, como também, porque se faz necessário estabelecer limites para a ação estatal de conduzir um processo penal e dentre essas principais limitações deve estar o tempo. Então, em uma sociedade pós-moderna, em que o tempo6 exerce um papel extremamente relevante na vida das pessoas, muito mais que as estruturas ruptivas de separação no espaço, ele é também responsável por dar significado a pena (MESSUTI, 2003, p. 33). Por essa razão, é preciso limitar o poder Estatal de conduzir o processo penal no tempo, pois o processo penal que se delonga excessivamente pode tornar-se mais doloroso do que a própria pena material imposta, tornando-se uma verdadeira sanção estatal. Nesse sentido, quando fala sobre o tempo, Lopes Jr. (2015, p. 73) aduz que: (...) o Direito Penal e o Processo Penal são provas inequívocas de que o EstadoPenitência (usando a expressão de LOIC WACQUANT) já tomou ao longo da história, o corpo e a vida, os bens e a dignidade do homem. Agora, não havendo mais nada o que retirar, apossa-se do seu tempo.

A partir dessa afirmação, é possível compreender que, ao longo da história, fez-se necessário proteger o direito à vida, à integridade física, à propriedade e à dignidade dos cidadãos frente às atuações do Estado. E agora, não só esses direitos, como também o direito à duração razoável do processo, como pressuposto do próprio direito de cidadania e de acesso à

processo deve ser um instrumento utilizado para impedir que o Estado se aposse, de maneira arbitrária e absoluta, do tempo das pessoas. 6

Ao tratar da duração razoável do processo penal, Lopes Jr. (2015, p. 69-72) faz uma breve introdução sobre o rompimento do Paradigma Newtoniano e o surgimento da Teoria da Relatividade de Einstein com o intuito explicar o conceito de tempo subjetivo. Para Newton, o tempo era absoluto, universal e linear, portanto, não dependia de seu objeto e observador. Já para Einstein o tempo seria relativo e variável conforme a posição e o deslocamento do observador. Então, rompendo com o Paradigma Newtoniano, a Teoria da Relatividade de Einstein sustenta que a percepção de tempo seria diferente para cada um de nós, introduzindo um conceito de tempo subjetivo, enquanto grandeza relativa. Apesar disso, a relatividade do tempo e o conceito de tempo subjetivos não são reconhecidos pelo Direito Penal e Processual Penal, que considera o tempo como absoluto e uniforme para todos.

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justiça, revela-se como um dever estatal. Dessa forma, a garantia à duração razoável do


E embora a garantia à duração razoável do processo pareça ser um direito simplesmente a serviço do acusado, ela não se resume a isso, posto que a prestação jurisdicional penal tempestiva é também um dever do Estado à vítima, à família e à sociedade como um todo. Nesse sentido, ter uma justiça criminal célere, eficiente e um processo penal constitucionalizado é também um direito da sociedade relacionado com a realização do Estado Constitucional de Direito. Além disso, quando falamos de duração razoável do processo, é fundamental também estudar como se posiciona a doutrina em relação à contagem dos prazos. Nesse sentido, importa destacar que, quanto ao estabelecimento de um prazo para a duração razoável do processo, a doutrina divide-se em duas correntes, uma defende a doutrina do não prazo e a outra a doutrina do prazo fixo. A doutrina do prazo fixo busca estabelecer um prazo para a duração do processo penal como meio de assegurar uma maior efetividade à garantia fundamental à duração razoável do processo. Já doutrina do não prazo entende que, mesmo não existindo a possibilidade de estabelecer um prazo limite de duração do processo penal no tempo, a garantia fundamental à duração razoável do processo penal tem aplicação imediata. Portanto, para essa última corrente, a inexistência de um prazo estabelecido não pode ser invocada para negar o direito do acusado a ter um julgamento dentro de um prazo considerado razoável.

4.1 Doutrina do não prazo

A doutrina do não prazo é uma nomenclatura utilizada para explicar o caso dos países que não estabelecem prazos limites para a duração do processo penal no tempo. Para essa corrente, não é possível estabelecer um prazo porque cada processo exigiria um tempo de duração específico, conforme as peculiaridades de cada caso.

Processual Penal, já são encontrados artigos que estabelecem prazos para a duração dos procedimentos. Por exemplo, o art. 531, do Código Processual Penal, estabelece um prazo de 30 dias para a conclusão do procedimento sumário, o art. 400, do Código Processual Penal, estabelece um prazo de 60 dias para o encerramento do procedimento ordinário e o art. 412, do Código Processual Penal, estabelece um prazo de 90 dias para a conclusão do procedimento do tribunal do júri. Assim como, a Constituição Federal não afirma de forma expressa que a duração razoável do processo deve ser regulamentada por lei específica.

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Além disso, para os defensores dessa doutrina no Brasil, ao longo do Código


Em resumo, essa doutrina entende como inviável a possibilidade de estabelecer um prazo fixo para a duração do processo penal por meio de cálculos aritméticos. No entanto, afirma ser possível estabelecer critérios7 capazes de identificar se há ou não dilações processuais indevidas8 no processo penal. Para Lopes Jr. (2015, p. 77), a doutrina do não prazo é a adotada em nosso país, tendo em vista que o Brasil não estabelece um prazo limite para o processo penal durar no tempo e até mesmo quando o Código Processual Penal estabelece prazos para a realização de determinados atos e procedimentos não há sanções cabíveis em casos de descumprimentos. Assim, para esse autor, não prazo significa: "ausência de prazos processuais com uma sanção pelo descumprimento". É importante destacar que a doutrina do não prazo, apesar de negar a necessidade de estabelecimento de um prazo, defende a aplicação imediata da garantia fundamental à duração razoável do processo, quando identificado, no processo penal, dilações processuais indevidas. A partir de uma análise da jurisprudência, é possível observar que tribunais superiores adotam a doutrina do não prazo. O Supremo Tribunal Federal – STF entende que é necessário aferir a duração razoável do processo à luz das particularidades do caso levando em consideração, principalmente, a complexidade da causa, sentido que versam as seguintes

Os primeiros critérios estabelecidos para identificar se houve dilação processual indevida foram determinados a partir do caso Wemhoff, julgado em 1968 pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos - TEDH. A partir desse caso, o TEDH julgou se houve razoabilidade na prisão cautelar e, consequentemente, dilação processual indevida, com base nos seguintes critérios (LOPES, 2015, p. 77): "a) duração da prisão cautelar; b) a duração da prisão cautelar em relação à natureza do delito, à pena fixada e à provável pena a ser aplicada em caso de condenação; c) os efeitos pessoais que o imputado sofreu, tanto de ordem material como moral e outros; d) a influência da conduta do imputado em relação à demora do processo; e) as dificuldades de investigação do caso (complexidade dos fatos, quantidade de testemunhas e réus, dificuldades probatórias etc.); f) a maneira como a investigação foi conduzida; g) a conduta das autoridades judiciais". Esse caso estabeleceu o que ficou chamado de doutrina dos sete critérios, influenciando na doutrina que hoje é utilizada pelo TEDH, a doutrina dos três critérios básicos, que possui como parâmetros: a) complexidade do caso; b) atividade processual do acusado; c) conduta das autoridades judiciárias. 8 O termo dilação processual indevida é uma das nomenclaturas utilizadas por Lopes Jr. (2015, p. 76) para caracterizar o processo penal que se delonga excessivamente no tempo. Mas, segundo o autor a nomenclatura mais apropriada seria (de) mora jurisdicional, porque refere-se ao conceito de mora no sentido dever de adimplemento obrigacional de prestação da tutela jurisdicional devida.

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decisões: HC 173609 SP9, HC 172137 SP10, HC 168888 AL11, HC 170316 AL12e HC 162649 PA13. Do mesmo modo, o Superior Tribunal do Justiça – STJ também segue a doutrina do não prazo, quando afirma nos habeas corpus de nº HC 461763 ES 2018/0190569-014, HC 404971 SP 2017/0150098-015, HC 495053 SP 2019/0054129-516, HC 445890 SP 2018/0087816-317 e HC 452103 SP 2018/0126977-918, que a aferição da razoabilidade da duração do processo não se efetiva de forma meramente aritmética ou por critérios matemáticos. Assim, para analisar a duração razoável do processo, o Superior Tribunal do Justiça entende que elementos como particularidade da causa e pluralidade de acusados devem ser levados em consideração, além das atividades do órgão jurisdicional. Por muitas vezes, o direito a duração razoável do processo penal vem sendo discutido por meio de Habeas Corpus por excesso de prazo na prisão preventiva. Assim, extrapolado o prazo para o encerramento da instrução criminal, a prisão preventiva deve ser revogada. Nessa construção, seguem os julgados do Tribunal Regional Federal da 5ª Região: HC

08029342320174050000 SE19, HC 08029308320174050000 SE20, HC 449391 MG

2018/0109683-721, HC 482974 GO 2018/0327785-822e RHC 109757 AL 2019/0076764-623.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Habeas Corpus nº 173609 SP. Rel. Min. Luiz Fux. j. 05/08/2019. Dje. pub. 07/08/2019. 10 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Habeas Corpus nº 172137 SP. Rel. Min. Gilmar Mendes. j. 05/06/2019. Dje. pub. 07/06/2019. 11 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Habeas Corpus nº 168888 AL. Rel. Min. Luiz Fux. j. 19/03/2019. Dje. pub. 21/03/2019. 12 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Habeas Corpus nº 170316 AL. Rel. Min. Luiz Fux. j. 25/04/2019. Dje. pub. 29/04/2019. 13 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Habeas Corpus nº 162649 PA. Rel. Celso de Mello. j. 26/04/2019. Dje. pub. 30/04/2019. 14 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Habeas Corpus nº 461763 ES 2018/0190569-0. 6ª Turma. Rel. Min. Antônio Palheiro. j. 25/09/2018. Dje. pub. 22/10/2018. 15 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Habeas Corpus nº404971 SP 2017/0150098-0. 6ª Turma. Rel. Min. Antônio Palheiro. j. 26/09/2017. Dje. pub. 09/10/2017. 16 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. ______. Habeas Corpus nº495053 SP 2019/0054129-5. 6ª Turma. Rel. Min. Antônio Palheiro. j. 16/05/2019. Dje. pub. 30/05/2019. 17 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Habeas Corpus nº445890 SP 2018/0087816-3. 6ª Turma. Rel. Min. Antônio Palheiro. j. 19/06/2018. Dje. pub. 01/08/2018. 18 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Habeas Corpus nº452103 SP 2018/0126977-9. 6ª Turma. Rel. Min. Antônio Palheiro. j. 04/09/2018. Dje. pub. 19/09/2018. 19 TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 5ª REGIÃO. Habeas Corpus nº 08029342320174050000. 4ª Turma. Rel. Des. Rubens de Mendonça Canuto. j. 21/05/2017. 20 TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 5ª REGIÃO. Habeas Corpus nº 08029308320174050000 SE. 4ª Turma. Rel. Des. Rubens de Mendonça Canuto. j. 21/05/2017. 21 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Habeas Corpusnº449391 MG 2018/0109683-7. 6ª Turma. Rel. Min. Antônio Palheiro. j. 09/10/2018. Dje. pub. 24/04/2019. 22 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Habeas Corpus nº 482974 GO 2018/0327785-8. 6ª Turma. Rel. Min. Antônio Palheiro. j. 02/04/2019. Dje. pub. 10/05/2019. 23 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº109757 AL 2019/0076764-6. 5ª Turma. Rel. Min. Reynaldo da Fonseca. j. 09/04/2019. Dje. pub. 06/05/2019.

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4.2 Doutrina do prazo fixo

Além da doutrina do não prazo, há também a doutrina do prazo fixo. Sendo esta última a que mais nos aproximamos. Para essa doutrina, deve ser fixado um prazo máximo para a duração do processo penal e por meio desse prazo é possível analisar se houve ou não dilação processual indevida e violação à duração razoável do processo no caso concreto. Segundo a doutrina do prazo fixo, a garantia fundamental à duração razoável do processo seria uma norma programática, que necessita de regulamentação para que possa ganhar efetividade. Por essa razão, surge a necessidade de estabelecer um prazo para que a norma constitucional não esteja no plano meramente formal e atinja seus fins sociais. No mesmo sentido, Casara (2004, p. 127-128):

O dever legal de se fixar por lei o prazo de duração razoável da relação jurídica deriva da própria natureza do Estado Democrático de Direito. Assim, somente após a manifestação dos representantes do povo, e em obediência aos princípios da legalidade e do devido processo legal, se estará dando integral cumprimento ao estabelecido no diploma de direitos humanos.

E embora tal norma necessite de regulamentação especial para ganhar efetividade, a inexistência de um prazo fixo não pode ser via oblíqua para negar a aplicação imediata da garantia fundamental à duração razoável do processo. Eis o ponto em que convergem a doutrina do não prazo e a doutrina do prazo fixo. A doutrina do prazo fixo não nega a incidência imediata da garantia fundamental à duração razoável do processo, mas tão somente, propõe a fixação de um prazo como caminho para o comando constitucional ganhar

cidadão em razão da atividade persecutória do Estado é de tal forma violenta que o menor excesso causa estragos de difícil reparação. Evidente assim a necessidade de precisar os termos inicial e final relevantes para a aferição da duração do processo”. Assim, é importante também destacar que a doutrina do prazo fixo encontra fundamentação no princípio da legalidade e defende o critério aritmético de soma dos prazos dos atos que compõem um determinado procedimento até o trânsito em julgado da última decisão, como parâmetro ideal para definir o prazo razoável de existência de um processo penal no tempo.

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efetividade. Com efeito, adverte NICOLITT (2014, p. 69) que: “A agressão imposta ao


Além disso, para essa doutrina, pouco importam os prazos que se apresentam de forma isolada para determinados atos e procedimentos no Código Processual Penal, considerando que ela propõe a fixação de um prazo máximo para a duração do processo penal como um todo. Desta maneira, é possível compreender que, segundo a doutrina do prazo fixo, a garantia fundamental à duração razoável do processo encontra problemas para sua efetivação no âmbito da justiça criminal, em razão da necessidade de criar uma lei que regulamente tal direito, estabelecendo um prazo máximo para a duração do processo penal. Esse seria um dos caminhos na busca pela efetivação de uma garantia fundamental tão importante, evitando-se que a ação do Estado processar alguém transcenda limites fixados em lei.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como um dos aspectos mais importantes do processo penal, a garantia fundamental à razoável duração do processo é um tema que gera controvérsias e ocupa o foco das discussões na busca por uma justiça criminal mais célere. Nesse sentido, a estipulação de um prazo máximo para o Estado conduzir o processo penal no tempo apresenta-se como um dos caminhos na busca pela efetivação da garantia fundamental à razoável duração do processo no âmbito da justiça criminal. Além disso, determinar um prazo máximo para a existência do processo penal no tempo é buscar estabelecer limites, para que o direito do Estado em conduzir o processo penal no tempo não seja absoluto. Nessa esteira, é possível construir um modelo de processo penal que mais se aproxime da conformação com os direitos e garantias fundamentais do Estado Constitucional de Direito, em especial, da duração razoável do processo. Sem contar que, a

compreende não só o direito de ter um julgamento, mas de tê-lo dentro de um prazo razoável.

REFERÊNCIAS

BECCARIA, Cesare Bonesana. Dos delitos e das penas. Tradução de J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

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concepção do direito de acesso à justiça, dentro de uma lógica constitucional de processo,


CASARA, Rubens; VASSAL, Mylène. O ônus do tempo no processo: uma abordagem à luz do devido processo legal interamericano. Revista Movimento da Magistratura Fluminense pela Democracia. n.1. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

MESSUTI, Ana. O tempo como pena. São Paulo, RT, 2003.

NICOLITT, André. A Duração Razoável do Processo. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

RANGEL. Paulo. Direito Processual Penal. 25. ed. São Paulo: Atlas, 2017.

ROSA, Alexandre de Morais da. A teoria dos jogos aplicada e processo penal: a short introduction. 3. ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2018.

SILVA JÚNIOR, Walter Nunes da. Reforma tópica do processo penal: inovações aos procedimentos ordinário e sumário, como o novo regime das provas, principais modificações do júri e as medidas cautelares pessoais (prisão e medidas diversas da prisão). 3. ed. Rio de Janeiro: OWL, 2019.

THE

PROCEEDINGS

AND

THE

SEARCH

FOR

A

FINITE

CRIMINAL

PROCEEDING

ABSTRATC The present paper has the objective to study the fundamental guarantee to reasonable duration of proceedings, understanding its necessity of enforcement in the context of criminal justice. Throughout this study, it will be investigated the senses and normative

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THE FUNDAMENTAL GUARANTEE FOR THE REASONABLE DURATION OF


species that reasonable duration of proceedings can reveal, in order to establish a concept for the judicial term. At last, it will be shown the possibility of establish a limit period of existence for the criminal process, as a mean of seeking the establishment of limits to the punitive power of state. Keywords: Criminal justice. Reasonable duration of the process.

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Fundamental guarantee.

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A ADEQUADA OCUPAÇÃO DOS CARGOS PÚBLICOS SEGUNDO MICHAEL WALZER: ANÁLISE NO CONTEXTO BRASILEIRO Alan José de Oliveira Teixeira1

RESUMO A ocupação dos cargos públicos e os critérios adotados para tal fim são debatidos desde a Idade Antiga. Hoje, a realização de certames tem se consolidado como critério predominante. Todavia, observa-se, no século XXI, um profundo desvio de finalidade nos critérios e na procedimentalidade adotados pelos concursos públicos no Brasil. Assim, pretendeu-se uma incursão na igualdade complexa como fator de otimização nesse campo, tendo em vista a teoria de justiça proposta pelo comunitarista Michael Walzer e sua compatibilidade com a Constituição Federal de 1988. Palavras-chave: Cargos públicos. Certames públicos. Direito

1 INTRODUÇÃO

1

Graduando em Direito pelo UNICURITIBA. Membro da Red Iberoamericana Juvenil de Derecho Administrativo – RIJDA (2019). Foi membro do grupo de pesquisa “A Justiça Política e o Direito Eleitoral no Estado Democrático de Direito”, sob orientação do Prof. Dr. Roosevelt Arraes. Orcid iD: <https://orcid.org/0000-0002-0604-4149>.

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Constitucional. Igualdade complexa. Michael Walzer.


Os critérios de ocupação dos cargos públicos são alvos de debates jurídicos e políticos no mundo, desde a Idade Antiga. Rotatividade e hereditariedade, dentre os critérios empregados ao longo da história, foram alguns dos mais utilizados. Atualmente, tem-se consolidado, como critério predominante para o preenchimento dos cargos, nos Estados democráticos contemporâneos, a realização de concursos públicos. No Brasil, há resquícios da ideia de concorrência pública nas legislações imperiais, mas foi a Constituição de 1934 o marco histórico de sua obrigatoriedade. Outrossim, a Constituição Federal de 1988 possui previsão expressa de sua realização no art. 37, inc. II. O certame público, que possui viés originariamente pluralista, é uma tentativa de promover a igualdade simples na seara dos cargos públicos. Todavia, observa-se, no século XXI, um profundo desvio de finalidade – desvirtuamento de institutos jurídicos ou dos propósitos de adoção pelos Estados – nos critérios e na procedimentalidade dos concursos públicos no Brasil, que servem como verdadeiros filtros e desconsideram o princípio democrático e, especialmente, a relevância da atividade pública. Assim, faz-se necessária a incursão na igualdade complexa como fator de otimização na ocupação dos cargos públicos, tendo em vista a teoria de justiça proposta pelo comunitarista Michael Walzer, à luz das ideias de qualificação e relevância. Estudou-se a filosofia de Michael Walzer no âmbito dos certames brasileiros, com o intuito de investigar critérios que otimizem e legitimem o concurso como instrumento pluralista e democrático na seara da igualdade complexa. As pesquisas se desenvolveram em referenciais bibliográficos, tais como literatura especializada, jurisprudência, precedentes e textos jurídico-normativos. Primeiramente, investigou-se minuciosamente a previsão constitucional, abordando as particularidades brasileiras e, posteriormente, problematizou-se a questão da concorrência

Michael Walzer, que apresenta o conceito de igualdade complexa. Após, expôs-se os critérios de qualificação e relevância no provimento dos cargos públicos, utilizando como paradigma decisão do Supremo Tribunal Federal. Por fim, teceu-se considerações a respeito dos critérios de concorrência nos certames públicos, expondo seu elo com o neoconstitucionalismo e os valores fundamentais; e, em seguida, apresentou-se as considerações finais.

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pública no Brasil. A partir disso, buscou-se definir a proposta de justiça distributiva de


2 CERTAME PÚBLICO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E O PROBLEMA NA DEFINIÇÃO DE CRITÉRIOS PARA OCUPAÇÃO DOS CARGOS PÚBLICOS

Um olhar histórico permite constatar que o provimento dos cargos públicos nas diferentes sociedades foi feito por meio de diversos critérios ao longo da história, dentre os quais: sorteio, compra e venda, herança, arrendamento, livre nomeação absoluta, livre nomeação relativa, eleição e concurso (MAIA; QUEIROZ, 2007, p. 3). No Brasil, a legislação imperial buscou timidamente traçar os primeiros contornos de um processo que se pretendia imparcial para a admissão de cidadãos em cargos públicos. Todavia, o marco histórico se deu com a Constituição de 1934, que trouxe o princípio do concurso público expressamente no texto constitucional (MAIA; QUEIROZ, 2007, p. 8). Hoje, o Estado brasileiro é regido pela Constituição Federal de 1988, também conhecida como Constituição Cidadã, pois, entre outras coisas, reservou os artigos 37 e seguintes para tratar do regime jurídico de Direito Administrativo, o que abarca a ocupação dos cargos públicos, cuja possibilidade é aberta, em regra, a todos os cidadãos. Assim, o referido texto constitucional buscou conferir um caráter democrático à forma de acesso aos cargos, empregos e funções públicas, adotando o regime de concurso para esse fim. Democrático, porquanto todos os cidadãos, assim como os estrangeiros na forma da lei, têm amplo acesso ao certame, desde que cumpridos os requisitos legais, hoje postos pelos editais – os quais fazem lei entre os concursandos. Na esteira de Celso Antônio Bandeira de Mello (2014, p. 285), o que a Constituição Federal de 1988 visou primando pela acessibilidade foi “[...] ensejar a todos iguais oportunidades de disputar cargos ou empregos na Administração direta e indireta”. Convencionou-se, no presente trabalho, a indistinção entre concurso público e processo seletivo, haja vista que este cada vez mais se confunde com aquele, além de que há

resta-se a necessidade de conceituar concurso público, além de expor suas finalidades originais. Para Michael Walzer (2003, p. 179), filósofo estadunidense, a ideia de concurso público atual estabelece um tipo de igualdade simples na esfera dos cargos públicos, tratandose, pois, de um funcionalismo público universal. Portanto, “os cargos devem ser conquistados em concorrência pública” (WALZER, 2003, p. 179), cujo escopo é a meritocracia perfeita. Assim define o papel dos certames:

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incerteza na significação de processo seletivo público (MELLO, 2014, p. 285). Diante disso,


De fato, contudo, esse resultado feliz exige atuação concreta do Estado: aplicação de exames, definição de critérios para formação e diplomação, regulamentação dos métodos de seleção e recrutamento. Só o estado pode combater as consequências particularizantes da iniciativa individual, do poder do mercado e dos privilégios empresariais, e garantir a todos os cidadãos oportunidades iguais de atingir os padrões universais (WALZER, 2003. p. 179).

Márcio Maia e Ronaldo de Queiroz (2007, p. 6) realizam abordagem do concurso público como fruto da França de Napoleão, no embate com seus opositores, com posterior generalização. Em uma ideia de subsidiariedade, concebem que o concurso público:

[...] sobressai-se como o melhor processo de recrutamento de agentes públicos e o menos inconveniente, na medida em que não constitui um sistema meramente aleatório como o sorteio; não trata o cargo público como objeto mercantil ou de sucessão hereditária, como o arrendamento, a compra e venda e a herança; não adota como critério de escolha do agente público a valoração puramente discricionária ou de natureza eminentemente político-econômica, como a livre nomeação e a eleição.

Na mesma linha, vale expor o conceito levantado por Fabrício Motta (2010, p. 4), que entende o certame público como um “[...] procedimento administrativo indispensável à eficácia do direito fundamental de disputar, em igualdade de condições, os cargos e empregos públicos.” A finalidade desse procedimento, ainda na linha do autor supracitado, é “[...] identificar os mais aptos, mediante critérios meritórios objetivos, para ocupar os cargos e empregos públicos com vocação de permanência.” (MOTTA, 2010, p. 8). Em que pese o concurso, dentro dessa lógica preliminar, aparente um critério louvável ao provimento dos cargos públicos, percebe-se, na contemporaneidade, uma banalização de tal critério no que se refere ao conteúdo – para ser fiel à terminologia

Todos os conceitos e a evolução constitucional apresentados apontam para um escopo claro: o concurso público visa à seleção dos mais qualificados para o exercício da função pública. Tal teste seletivo se generalizou tanto no acesso à educação superior pública, como no acesso aos cargos públicos (MAIA; QUEIROZ, 2007, p. 22). O impasse objetivamente trabalhado no presente trabalho pode ser visualizado nos editais dos certames que regem o procedimento, mas o problema descortina-se ainda mais claramente nas provas escritas.

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constitucional – das provas (e títulos).


A título de exemplificação, no ano de 2017, o Ministério Público de Minas Gerais publicou edital de concurso público para Promotor de Justiça Substituto. Da prova preambular, constata-se a cobrança de questão versando sobre a ineficaz Teoria da Graxa ou Teoria do Vampiro, que versa sobre corrupção em seu aspecto positivo. Veja-se:

QUESTÃO 9. Sobre a teorização constitucional: I. O fenômeno da constitucionalização simbólica com a padronização de um simbolismo jurídico invariavelmente fomenta o surgimento do Estado Vampiro. II. A teoria da graxa sobre rodas valoriza a corrupção como um aspecto positivo, com a possibilidade de implemento do crescimento econômico. III. A teoria discursiva do direito procura equacionar o discurso de fundamentação e o de aplicação do direito, de modo a colocar no primeiro o ponto final de equilíbrio do sistema dentro da solução dos conflitos. IV. A concepção de justiça formatada a partir do véu da ignorância rompe o vínculo de equidade entre os atores de um discurso jurídico (MINISTÉRIO PÚBLICO DE MINAS GERAIS, 2017).

Vê-se, pois, inúmeras críticas a questões desse gênero, haja vista a inexistência de dialeticidade entre o conteúdo avaliado e a aptidão necessária para o exercício do cargo concorrido. Isso porque, ao contextualizá-la, não se percebe sua relevância em um concurso de Promotor de Justiça. Some-se que a teoria em apreço é doutrina isolada e pouco estudada no Direito Penal2. Em Procedimento de Controle Administrativo perante o Conselho Nacional do Ministério Público, o Relator Conselheiro Valter Shuenquener de Araújo determinou a anulação da questão em apreço, em sede de liminar. Segundo sustentou, “a Comissão do Concurso ingressou em campo que não guarda nenhuma base sólida e profundidade teórica

(CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO, 2017, p. 4). Afirmou ainda que a Banca “discorreu sobre teorias desconhecidas no meio jurídico, na medida em que não possuem embasamento na legislação, em doutrina consagrada ou em súmulas ou jurisprudências dos Tribunais Superiores” (CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO, 2017, p. 4) e fez referência à Resolução CNMP nº 14/2006, que veda prova

2

STRECK, Lenio Luiz. A concursocracia, a Teoria da Graxa e os testículos despedaçados. Consultor Jurídico, São Paulo, abr. 2017. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2017-abr-06/senso-incomum-concursocraciateoria-graxa-testiculos-despedacados>. Acesso em: 07 out. 2019.

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relevante para ser cobrada em concurso para ingresso em carreira do Ministério Público”


preambular formulada com base em entendimentos doutrinários divergentes ou jurisprudência não consolidada dos tribunais. Outro exemplo recente foi a previsão, em edital para concurso público na Polícia Militar do Paraná, do que seria masculinidade, critério que faria parte do perfil profissiográfico do futuro agente. Seria dizer que o cadete deveria ter a capacidade de “não se impressionar com cenas violentas, suportar vulgaridades, não se emocionar facilmente, tampouco demonstrar interesse em histórias românticas e de amor” (PARANÁ, 2017, p 21). Tendo isso em vista, constata-se que determinados concursos públicos servem hoje como verdadeiros filtros, e o seu planejamento é incoerente com os fins democráticos expressos na Constituição Federal de 1988. Por isso, é necessário ler o pluralismo democrático que deve residir nos certames públicos à luz da igualdade complexa, a fim de otimizar os critérios de ocupação dos cargos públicos, em uma proposta de justiça distributiva em Michael Walzer.

3 JUSTIÇA DISTRIBUTIVA, IGUALDADE SIMPLES E IGUALDADE COMPLEXA: MONOPÓLIO E PREDOMÍNIO

Antes de explanar a justiça complexa de Walzer, é pertinente comparar e distinguir as acepções de justiça distributiva entre alguns teóricos da justiça. A noção de justiça distributiva remonta a Aristóteles, que entende essa vertente da teoria do justo como a distribuição, entre os membros da comunidade política, das vantagens, riquezas e honras (TORRES, 1995, p. 99). Esse é com certeza um conceito basilar de justiça distributiva, de onde os estudiosos que sucederam ao Estagirita deitaram cuidadosas observações.

fundamentada na justiça social e na justiça distributiva. Segundo Castilho (2009, p. 96), atendo à doutrina de Rawls, a identificação da justiça na forma supramencionada está atrelada às “[...] instituições sociais elementares da sociedade, na hipotética e idealizada escolha consensual levada a efeito na Posição Original, engendrada por indivíduos tomados apenas na sua condição de ser humano racional.” Objetivamente, Robert Dahl (2012, p. 258) concebe que “[...] a justiça distributiva requer uma distribuição justa de recursos cruciais – poder, riqueza, renda, educação, acesso ao conhecimento, oportunidades de desenvolvimento pessoal e valor próprio e outros”. 391

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John Rawls (1997), em sua Teoria da Justiça, procura traçar uma doutrina imparcial,


Foco do presente estudo, Michael Walzer desenvolve uma teoria dos bens. O norteamericano analisa a distribuição dos bens sociais na sociedade, mas, além da perspectiva da igualdade simples, propõe uma teoria da igualde complexa. Sustenta uma definição de justiça distributiva como circunstância em que “[...] as pessoas concebem e criam bens, que então distribuem entre si” (WALZER, 2003, p. 6). Walzer ainda estuda seis proposições da teoria dos bens, sendo este o caminho para explicar o pluralismo das possibilidades distributivas. Primeiramente, assume que “[...] 1. Todos os bens de que trata a justiça distributiva são bens sociais. Não são e não podem ser avaliados de maneira idiossincrática” (WALZER, 2003, p. 6). Ou seja, os bens, sejam eles econômicos ou políticos, são postos em mesmo plano, no plano social. O cientista social alega que “[...] 2. Homens e mulheres assumem identidades concretas devido ao modo como concebem e criam, e depois possuem e empregam os bens sociais” (WALZER, 2003, p. 7). Depreende-se desta máxima que os indivíduos são protagonistas no processo de distribuição dos bens sociais, influenciados por seus históricos de transações. O comunitarista sintetiza:

3. Não existe conjunto concebível de bens fundamentais ou essenciais em todos os mundos morais e materiais – senão tal conjunto deveria ser concebido de maneira tão abstrata que teria pouca utilidade ao se pensar em determinadas distribuições. [...] 4. Mas é o significado dos bens que define sua movimentação. Os critérios e os acordos distributivos não são intrínsecos ao bem em si, mas ao bem social. Se entendermos o que ele é, o que significa para aquele para quem é um bem, entenderemos como, por quem e por quais motivos deve ser distribuído (WALZER, 2003, p. 8).

Além disso, os bens sociais fundamentais devem ser observados dentro das particularidades de cada sociedade. Não existe, por si só, um ideal abstrato de bem social fundamental. O elemento historicidade pode ser extraído da proposição a seguir: “[...] 5. Os significados sociais são históricos em caráter; portanto, as distribuições, justas e injustas, mudam com o tempo” (WALZER, 2003, p. 9). Por derradeiro, a sexta proposição: “6. Quando os significados são diferentes, as distribuições devem ser autônomas. Todo bem social ou conjunto de bens sociais constitui,

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Do supratranscrito infere-se que nem todos os bens sociais devem ser distribuídos.


por assim dizer, uma esfera distributiva dentro da qual só são apropriados certos critérios e acordos” (WALZER, 2003, p. 10). Aqui, constata-se a parte central de toda a teoria walzeriana e o preciso elo com os certames públicos: as esferas distributivas são, em regra, autônomas. Antecipando uma indagação futura, diz-se que a esfera econômica, por exemplo, não deve influenciar critérios e acordos em outra esfera distributiva. A igualdade complexa, como se analisará nos tópicos seguintes, pretende evitar a extrapolação das esferas de distribuição. O esforço de compreensão da teoria de justiça de Walzer enseja o entendimento dos conceitos de predomínio e de monopólio. O que pode ser predominante e monopolizado é o bem. Walzer (2003, p. 11) esclarece em sua obra: “Chamo um bem de predominante se os indivíduos que o possuem, por tê-lo, podem comandar uma vasta série de outros bens. É monopolizado sempre que apenas uma pessoa, monarca no mundo dos valores – ou um grupo, oligarcas – o mantém com êxito contra todos os rivais.” A predominância, segundo o teórico, relaciona-se à ideia de usar os bens sociais sem as limitações dos significados intrínsecos da esfera (influência) (WALZER, 2003, p. 11). O monopólio utiliza-se da predominância para controlar os bens sociais. E se tal situação não perpetua o estado das coisas, aumenta a desigualdade social. E assim, [...] tudo o que é bom passa às mãos daqueles que têm o que há de melhor. Basta possuir o melhor para que o resto venha a reboque. Ou, para trocar de metáfora, o bem predominante é convertido em outro bem, em muitos outros, segundo o que quase sempre parece um processo natural, mas é, na verdade, mágico, uma espécie de alquimia social (WALZER, 2003, p. 12).

Em suma, existem bens sociais que são predominantes em sua esfera de justiça. Tais

predominante em outros bens fora de sua esfera originária (própria), incidindo em outras esferas da vida. Isso permite, em termos práticos, conversões em prestígio, oportunidade e poder (TAVARES, 2009, p. 7220). Daí surge o conflito social, pois o grupo monopolista – aqueles que detêm o bem predominante – deseja manter a conversão dos bens sociais nesse sentido, ao passo que outros grupos sociais procuram lutar por uma nova configuração na conversão dos bens sociais (TAVARES, 2009, p. 7220).

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bens, pela força, são monopolizáveis. Tal monopólio pode converter o bem social


Uma das formas de conter essa conversão é por meio da igualdade simples, que se projeta no problema do monopólio, haja vista que essa concepção de igualdade sustenta a multiplicidade por meio do processo de conversão, estendendo-se a todos os bens sociais (WALZER, 2003, p. 16). Nessa perspectiva, todos deveriam ter acesso a tudo: nenhum bem poderia ser monopolizado se todos fossem predominantes. Michael Walzer (2003, p. 16) entende que o regime de igualdade simples é instável por conta da volatilidade do mercado e da economia, o que implica um círculo vicioso do processo de desigualdade, pois esta assume nova forma, com novos bens predominantes. Assim, o professor propõe a igualdade complexa, que, diferentemente do que foi acima assegurado com relação à igualdade simples, projeta-se no problema do predomínio, haja vista a necessidade de “[...] analisar o que significaria estreitar o âmbito dentro do qual determinados bens são conversíveis e defender a autonomia das esferas distributivas” (WALZER, 2003, p. 20).

4 IGUALDADE COMPLEXA EM MICHAEL WALZER: OS CRITÉRIOS DE QUALIFICAÇÃO E RELEVÂNCIA NO PROVIMENTO DOS CARGOS PÚBLICOS

Em apertada síntese, Walzer propõe como possível solução ao impasse da desigualdade evitar o predomínio do bem, ao invés do monopólio (TAVARES, 2009, p. 7220), conforme exposto no item anterior. Visa, pois, a evitar a falsa solução de um sistema igualitário absoluto (TAVARES, 2009, p. 7220). Difere-se, ainda, o regime de igualdade complexa da tirania. A igualdade complexa é

[...] O contrário da tirania. Define um conjunto de relações de modo que torne

situação de nenhum cidadão em uma esfera ou com relação a um bem social pode definir sua situação em qualquer outra esfera, com relação a qualquer outro bem. Assim, pode-se preferir o cidadão X ao cidadão Y para cargos políticos e, então, os dois serão desiguais na esfera política. Mas não serão desiguais em geral, contanto que o cargo de X não lhe conceda vantagens sobre Y em qualquer outra esfera – atendimento médico superior, acesso a escolas melhores para os filhos, oportunidades empresariais etc. Contanto que o cargo não seja um bem predominante, que em geral não seja conversível, os detentores de cargos políticos permanecerão, ou pelos menos podem permanecer, em relação de igualdade com as pessoas que são governadas por eles (WALZER, 2003, p. 23-24).

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impossível o predomínio. Em termos formais, a igualdade complexa significa que a


Ou seja, o princípio basilar do regime de igualdade citado é a separação das diferentes esferas sociais, impedindo contaminações que possam afetar as posições em outras esferas (ESTÊVÃO, 2002, p. 110). Contrapõe-se, portanto, à tirania social: “[...] substitui a tirania social pela qual um grupo utiliza o seu monopólio de um bem para controlar o acesso a outros bens ou para transformar o seu sentido social” (ESTÊVÃO, 2002, p. 110). Miller (1995 citado por ESTÊVÃO, 2002, p. 110) percebe tal noção de justiça como uma cidadania igual, pois “[...] quanto mais bens sociais houver menos existirá a probabilidade de os indivíduos poderem ser ‘ordenados socialmente na base de sua performance numa esfera apenas’”. Consoante o descrito no segundo item deste texto, o acesso aos cargos públicos é hoje universalizado e plural, especialmente no Brasil. As visões precedentes de trabalho foram, aos poucos, substituídas pelo funcionalismo público, estabelecendo uma espécie de igualdade simples (WALZER, 2003, p. 179). Michael Walzer, a despeito disso, defende a observância das peculiaridades de cada cargo público, dispensando generalizações oriundas de um funcionalismo público universal. Para o filósofo, há cargos que exigem formação demorada ou qualidades especiais, de sorte que nem todos podem ser médicos, engenheiros, diretores de hospital, assim como nem todos podem trabalhar nas fábricas mais bem-sucedidas ou agradáveis (WALZER, 2003, p. 182). Defende, além do exposto, uma visão global dos processos de seleção operacionalizados para o provimento dos cargos públicos, pois deve-se impor limites às prerrogativas dos qualificados, sem acabar com o seu monopólio. O autor continua: Quaisquer que sejam as qualidades que resolvamos exigir – conhecimentos de latim, ou a capacidade de passar num exame, fazer um discurso, ou fazer os melhores

reivindicações tirânicas de poder e privilégios. Os detentores de cargos devem ser rigidamente mantidos fiéis às finalidades do cargo. Assim como exigimos comedimento, também exigimos humildade. Se esses dois requisitos fossem devidamente entendidos e postos em prática, a distribuição de cargos avultaria menos no pensamento igualitário do que acontece atualmente (WALZER, 2003, p. 183).

O filósofo político sustenta um sistema misto para o provimento dos cargos públicos: um funcionalismo público universal e um funcionalismo público mais restrito.

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cálculos de custo/benefício – devemos fazer questão de que não se tornem a base de


No que se refere ao funcionalismo público universal, parte-se da noção de igualdade de oportunidades, que leva à meritocracia. Todavia, há diferenças entre qualificação e mérito (e meritocracia) que impedem qualquer abstração simplificadora no sentido da distribuição dos cargos por mérito (WALZER, 2003, p. 184), pois “[...] para muitos cargos, só se exigem qualificações mínimas; um número bem grande de candidatos pode realizar bem o serviço, e nenhuma formação adicional os habilitaria a realizá-lo melhor” (WALZER, 2003, p. 184). Acerca da diferença entre mérito e qualificação supramencionada, Walzer (2003, p. 185) deduz: “[...] O mérito implica um tipo bem restrito de merecimento, tal que o título precede a seleção, ao passo que a qualificação é uma ideia muito mais vaga” (WALZER, 2003, p. 185). Por conseguinte, o cargo não pode ser merecido. O funcionalismo público universal, consoante se infere da obra em apreço, implica um exame universal para o provimento dos cargos públicos (WALZER, 2003, p. 189). Assim:

Se considerássemos todos os cargos como prêmios e distribuíssemos (e redistribuíssemos) tanto os títulos quanto os postos específicos com base no mérito, a estrutura social resultante seria a meritocracia. A distribuição desse tipo, com esse nome, é sempre defendida pelas pessoas que pretendem, creio, garantir consideração somente aos qualificados, e não cargos aos que merecem. Porém, supondo-se que existem algumas pessoas comprometidas com a criação de uma meritocracia restrita, vale parar um pouco para analisar os méritos filosóficos e práticos dessa ideia. Não há como fundar uma meritocracia, a não ser exclusivamente com base no histórico dos candidatos. Daí o vínculo íntimo entre a meritocracia e os exames, pois o exame produz um registro simples e objetivo. O funcionalismo público universal requer um exame universal para o funcionalismo público (WALZER, 2003, p. 189).

Destaque-se, Walzer parece ser adepto de uma ideia além dos testes e provas no

tendo em conta o funcionalismo público universal que propõe. Os concursos públicos – transpondo parte da teoria walzeriana para o aspecto basilar deste estudo – restam restritos a avaliarem de modo equitativo e a pautarem tal avaliação restritivamente ao aspecto da qualidade e da relevância (WALZER, 2003, p. 195), muito embora a igualdade sempre seja aproximada. As qualidades supramencionadas compreendem as qualificações, que são “[...] qualidades precisas ou importantes para determinado cargo” (WALZER, 2003, p. 197). A acepção de importância é, claramente, passível de infindáveis debates, mas há que se admitir

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concurso público, com vistas a tornar a seleção para os cargos mais democrática e coerente,


os limites de um processo seletivo público (WALZER, 2003, p. 197). Precisa-se, pois, objetivamente, definir quais posturas, valores, conhecimentos um cargo requer (WALZER, 2003, p. 197). As qualidades importantes, nesse sentido, “[...] são inerentes ao exercício do cargo, abstraído da experiência” (WALZER, 2003, p. 197-198). Na esteira da crítica contemporânea aos concursos públicos – lembre-se da teoria da graxa e da masculinidade –, Walzer (2003, p. 199) tece considerações sobre o atual estado de coisas:

Não passam de maneiras convencionais de reduzir o número de candidatos; e, se os candidatos tiverem oportunidades iguais de se preparar para esses concursos, os exames não são obrigatoriamente questionáveis. Porém, à medida que seu uso impeça as promoções na hierarquia dos cargos com base na experiência e no desempenho, deve-se resistir a eles, pois o que queremos é o melhor desempenho no emprego, e não no exame.

Por último, a ideia de relevância possui uma clara dificuldade prática. Afinal de contas, como é possível definir critérios objetivos de relevância nos mais diversos processos de seleção pública? Existem casos que servem de ilustração e norte para a definição de critérios relevantes ou não às seleções realizadas por meio de certame público. Walzer (2003, p. 199) afirma que no caso do nepotismo fica claro: o parentesco não é critério relevante de seleção. No âmbito brasileiro também é possível traçar paralelos de qualificação e relevância no que toca ao provimento dos cargos públicos. Referência é a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário nº 898.450, em que se discutiu a

5 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E O TAMANHO DA TATUAGEM

O caso da tatuagem que chegou ao plenário do Supremo Tribunal Federal versou sobre uma cláusula disposta no edital que disciplinou o certame público para Soldado da Polícia Militar do Estado de São Paulo. A referida disposição proibia a ostentação de tatuagens que extrapolassem os limites de tamanho definidos pelo Estado, além das restrições à cor e à imagem atentatória à moral e aos bons costumes.

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relevância do tamanho de uma tatuagem.


O Recurso Extraordinário nº 898.450/SP foi julgado pelo plenário do Supremo, em agosto de 2016, e foi fixada a seguinte tese: “Editais de concurso público não podem estabelecer restrição a pessoas com tatuagem, salvo situações excepcionais em razão de conteúdo que viole valores constitucionais”3. Em determinadas passagens do voto do Relator, Ministro Fux, verificam-se questões diretamente relacionadas a este estudo, dentre elas, a questão fundamental de otimização e maximização do pluralismo democrático para o acesso a cargos públicos: a igualdade complexa e os critérios de qualificação e relevância. Do acórdão que reconheceu a repercussão geral da questão constitucional comentada, extrai-se trecho que contém em seu plano de fundo a ideia de importância e qualificação:

Uma genérica alegação de que o edital é a lei do concurso não pode, em hipótese alguma, implicar ofensa ao texto constitucional, mormente em uma circunstância em que eventual exigência editalícia não se revelar proporcional quando em cotejo com as atribuições a serem desempenhadas no cargo a ser provido 4.

Outrossim, o voto proferido em agosto de 2016, no plenário do Supremo Tribunal Federal, tornou a ideia walzeriana mais prática, o que serve de parâmetro a casos semelhantes: “[...] assim, são inadmissíveis, porquanto inconstitucionais, restrições ofensivas aos direitos fundamentais, à proporcionalidade ou que se revelem descabidas para o pleno exercício da função pública objeto do certame”5. Em suma, “[...] para o acesso a cargos públicos devem estar estritamente relacionados com a natureza e as atribuições das funções a serem desempenhadas”6. Como se vê, o provimento de cargos públicos na seara brasileira deve adotar a relevância e a qualificação como critérios de justiça distributiva, sobretudo após a questão

Assim, sem prejuízo de a presença de uma tatuagem não ter aprioristicamente correlação alguma com a capacidade de um cidadão de ocupar um cargo na 3

STF. RE 898.450/SP. Rel. Min. Luiz Fux, 17 de agosto de 2016, p. 83. Disponível em:

<http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=311915149&ext=.pdf>. Acesso em: 10 out. 2019. 4

STF. RE 898.450 RG/SP. Rel. Min. Luiz Fux, 27 de agosto de 2015, p. 7. Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=307689283&ext=.pdf>. Acesso em: 10 out. 2019. 5 STF. RE 898.450/SP. Rel. Min. Luiz Fux, 17 de agosto de 2016, p. 18. Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=311915149&ext=.pdf>. Acesso em: 10 out. 2019. 6 STF. RE 898.450/SP. Rel. Min. Luiz Fux, 17 de agosto de 2016, p. 18. Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=311915149&ext=.pdf>. Acesso em: 10 out. 2019.

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constitucional posta. Por fim, concluiu o Ministro Fux:


Administração, é cediço que alguns tipos de pigmentações podem simbolizar ideias, valores e representações inaceitáveis sob uma ótica plural e republicana e serem, pour cause capazes de impossibilitar o desempenho de uma determinada função pública 7.

Desse modo, conforme supratranscrito, o STF admitiu, teoricamente, a possibilidade de adoção de critérios que visem a evitar a ofensa a valores fundamentais da Constituição Federal de 1988, como seria no caso de a tatuagem incorporar discursos de ódio, racistas etc. Tal postulado permite a observação de possível caráter comunitarista da Constituição Federal de 1988, porquanto tal vertente filosófica admite a incorporação de soluções jurídicas na proteção de direitos transindividuais (TAVARES, 2010, p. 5460). Além disso, percebe-se a necessidade de se adotar a justiça