12ª Edição da FIDES

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CRIMES CONTRA AS RELAÇÕES DE CONSUMO V.6, n.2, jul./de z. 2015. I S S N 2177-1383.


Editoras-Gerais: Bruna Brandl Cañete Flávia Monique da Silva Veras Marques Diretoria de Editoração: Camila Diógenes de Mendonça Carolina Faria Collier de Oliveira João Paulo Brandão Cortez Lorrany Ritter Vilela Luiza Arcoverde Pinto Priscila Silva de Amorim Raissa Tavares de Araújo Thais do Nascimento Cortez

CAPA: Crimes contra as relações de consumo Edição da capa e Diagramação: Paulo André Magalhães www.pauloandrepa.com.br

Revista de Filosofia do Direito, do Estado e da Sociedade

FIDES, Natal, v. 6, n. 2, jul./dez. 2015 ISSN 2177-1383


EDITORIAL:

AS RELAÇÕES DE CONSUMO E A PROTEÇÃO DO ESTADO A proteção e defesa dos consumidores constitui matéria de imensurável relevância social, haja vista o consumo ser prática intrínseca aos seres humanos. Consumimos, seja por necessidade, seja por vaidade, desde que nascemos ao momento em que deixamos de existir. Com o decorrer dos anos, as relações de consumo passaram a adquirir maior complexidade. Deixou-se de lado o mero escambo de mercadorias e o mercado simplificado e deu-se vez a intensas relações dos mais variados modos e dos mais diversificados produtos e serviços. A evolução das relações de consumo, apesar de ter sido, em grande parte, benéfica ao consumidor, uma vez que este se vê diante de inúmeras possibilidades para satisfação de seus desejos, trouxe consigo situações indesejadas. O superendividamento, a exposição a inúmeras publicidades de conteúdo enganoso e abusivo, além da compra de produtos potencialmente nocivos configuram casos recorrentes em nossa sociedade. Nesse sentido, seguindo a tendência internacional e adequando-se à nova realidade, a Constituição Federal de 1988 se preocupou em elencar, no rol dos direitos fundamentais, a defesa do consumidor, assim aclamando em seu artigo 5º, XXXII “O Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”. Foi então que, a partir do mencionado dispositivo, surgiu, em 1990, mediante a promulgação da Lei 8.078, o Código de Proteção e Defesa do Consumidor - CDC -, conjunto de normas voltado à tutela daqueles que, devido a sua peculiar característica de vulnerabilidade frente aos fornecedores e dominadores do mercado, merecem especial tratamento por parte do Estado. O microssistema consumerista, voltado à proteção e defesa dos consumidores, é formado não só pelo CDC, como também por leis espaças de conteúdo civil e penal. Nesse diapasão, merece especial destaque a tutela penal, tendo em vista o fato de que o consumidor, por vezes, devido a sua vulnerabilidade técnica, jurídica, fática ou informacional ter direitos fundamentais como a honra, a dignidade, a saúde e a segurança violados, direitos estes de importância incontestável. Diante disso, a proteção penal surge da necessidade de prestação jurisdicional frente à relevância dos bens jurídicos a serem tutelados. É, na imprescindibilidade da proteção penal, que se torna evidente a magnitude das relações de consumo e a dimensão na qual esta está inserida. Com efeito, verifica-se que o ordenamento jurídico brasileiro tem caminhado no sentido certo, a fim de alcançar a efetiva proteção daqueles que, mesmo figurando o polo passivo da relação, desempenham papel primordial no contexto do desenvolvimento econômico.

Natal, 25 de outubro de 2015. Conselho Editorial da Revista FIDES.


SUMÁRIO ARTIGOS CIENTÍFICOS CONVIDADOS

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ADMINISTRANDO VIDAS SECAS: ENSAIO SOBRE OS RELATOS DE GRACILIANO RAMOS EM SUA EXPERIÊNCIA COMO PREFEITO DE PALMEIRA DOS ÍNDIOS/AL Morton Luiz Faria de Medeiros

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AFINAL, PARA QUE SERVE A PENA? A TRAGÉDIA DA AUTORIDADE? Bernardo Montalvão

LAUDATO SI: UM NOVO, NECESSÁRIO E APROFUNDADO OLHAR SOBRE 20 AA CRISE SOCIOAMBIENTAL NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA Marise Costa

40

ATIVIDADE CURRICULAR EM COMUNIDADE E SOCIEDADE (ACCS) E OS POVOS TRADICIONAIS: EXPERIÊNCIA DE CAMPO DO CURSO DE DIREITO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA Júlio César de Sá da Rocha Roberta Nascimento da Silva

49

BREVES PONDERAÇÕES ACERCA DO INSTITUTO (COLABORAÇÃO) PREMIADA APÓS A LEI Nº 12.850/2013 Andreo Aleksandro Nobre Marques

56

COMUNICANDO SOBRE O DIREITO A PARTIR DA COMUNICAÇÃO Bernardo Montalvão

63

HIPERCONSUMO E COISIFICAÇÃO DA NATUREZA: A ÉTICA DECRESCIMENTO NO COMBATE AO DESPERDÍCIO DE ALIMENTOS. Leônio José Alves da Silva

73

O NEOCONSTITUCIONALISMO E A CONCRETIZAÇÃO DA DIGNIDADE DA PESSOA IDOSA Ricardo Maurício Freire Soares Gilson Alves de Santana Júnior

DA

DELAÇÃO

DO


97

OS DIREITOS HUMANOS EM ROBERTO MANGABEIRA UNGER Pedro Lino de Carvalho Júnior

116

QUEM É MESMO EMPREGADO? DILEMAS DA SUBORDINAÇÃO JURÍDICA E O RETORNO DA DEPENDÊNCIA Murilo C. S. Oliveira

ARTIGOS CIENTÍFICOS

125

A ADVOCACIA DE COMPLIANCE COMO FORMA DE PREVENÇÃO À LAVAGEM DE DINHEIRO André Marinho Medeiros Soares de Sousa

135

A DISTORÇÃO NO USO DE MEDIDAS PROVISÓRIAS NA SEARA TRIBUTÁRIA E SEUS REFLEXOS NA ILEGALIDADE DA MP 685/2015 Paulo Vítor Avelino Silva Barros

150

A FALÊNCIA DO ESTADO SOMALI E A PIRATARIA EM ÁGUAS INTERNACIONAIS: UMA ABORDAGEM ILUSTRADA A PARTIR DO FILME “CAPITÃO PHILLIPS” Magno Francisco Sátiro Catão Marcos Paulo Dias de Almeida

163

A NOVA LEI DE FALÊNCIAS E SUA EFETIVIDADE PRÁTICA Bruna Agra de Medeiros

176

A INTERFERÊNCIA DO PODER EXECUTIVO NOS ORÇAMENTOS DO PODER JUDICIÁRIO E DO MINISTÉRIO PÚBLICO: SEPARAÇÃO DOS PODERES E IMPACTOS NO EXERCÍCIO DE SUAS FUNÇÕES INSTITUCIONAIS Júlio César Souza dos Santos

192

A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO EM RAZÃO DE ATO JURISDICIONAL Breno Alexei Rodrigues de Oliveira


207

A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO NOS CRIMES COMETIDOS CONTRA TRANSGÊNEROS DENTRO DOS PRESÍDIOS MASCULINOS BRASILEIROS Anna Beatriz Alves de Oliveira Tallita de Carvalho Martins

218

A RESPONSABILIDADE CIVIL PELO ABUSO DO DIREITO À LIBERDADE DE EXPRESSÃO EM CONFLITO COM OS DIREITOS DA PERSONALIDADE: UMA ANÁLISE DO CASO DAS BIOGRAFIAS NÃO AUTORIZADAS. Elizângela Isidoro da Silva Renan Emanuel Alves Pinto

227

DIREITO DO CONSUMIDOR E A RESPONSABILIZAÇÃO POR PUBLICIDADE ENGANOSA E ABUSIVA: ANÁLISE DO CASO DO CONTRATO DE FORNECIMENTO DE INTERNET MÓVEL ILIMITADO POR EMPRESAS DE TELEFONIA MÓVEL. Cecilia Ethne Pessoa de Oliveira Gabriela Mariel Moura de Azevedo

244

FAMÍLIAS PARALELAS: UMA ANÁLISE DA VIABILIDADE DO RECONHECIMENTO JURÍDICO DE UNIÕES CONJUGAIS CONCOMITANTES COMO ENTIDADES FAMILIARES Luciana Ramos da Silva

258

OS DIREITOS HUMANOS COMO NORTEADORES DO DIREITO NO ÂMBITO DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS: A APLICABILIDADE DA TEORIA DE JUSTIÇA DE JOHN RAWLS NA ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS João Victor Gomes Bezerra Alencar

275

O PROCEDIMENTO DE ARRECADAÇÃO DO ICMS: O CONFAZ E A REGULAÇÃO DO SERVIÇO DE TV POR ASSINATURA Matheus Luiz Maciel Holanda

286

PROJETO DE IRRIGAÇÃO SANTA CRUZ DO APODI SOB A PERSPECTIVA DA VIOLAÇÃO AO DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS Lina Celeste Silva Jacinto


300

UMA ANÁLISE DA MODULAÇÃO PRO FUTURO DOS EFEITOS DA DECISÃO COMO INSTRUMENTO DE MANUTENÇÃO DA ORDEM JURÍDICA Valéria Cristina Romão Oliveira

LITERATURA E DIREITO

316

DIREITO ROMANO E COMMON LAW Edilson Pereira Nobre Júnior


ADMINISTRANDO VIDAS SECAS: ENSAIO SOBRE OS RELATOS DE GRACILIANO RAMOS EM SUA EXPERIÊNCIA COMO PREFEITO DE PALMEIRA DOS ÍNDIOS/AL

Pode parecer incompreensível que se pretenda construir um arrazoado destinado a propor uma visão crítica sobre o Direito Administrativo (propósito deste livro) voltando os olhos para o passado – a não ser que esse olhar atenda à sedutora tentação de cotejar tal passado com o presente, a fim de cantar loas aos tempos de hoje, à eficiência e às maravilhas da Pós-Modernidade, e prenunciar como se está próximo do almejado futuro em que a Administração Pública se apresente purificada das nódoas que historicamente a maculam. No entanto – anuncia-se desde já – não é esse o propósito deste ensaio: antes, busca-se enxergar, nos relatórios formulados por Graciliano Ramos como Prefeito do Município de Palmeira dos Índios/AL, nos anos de 1929 e 1930, como muitos dos obstáculos por ele enfrentados, há mais de oitenta anos, continuam sobrevoando em seu voo negro em círculos altos, muitas administrações moribundas, como os urubus por ele descritos em sua obra Vidas Secas (RAMOS, 1992a, p. 10). Tais relatórios1 (RAMOS, 2013) eram dirigidos ao Governador do Estado de Alagoas e foram publicados no Diário Oficial estadual, a fim de lhes dar publicidade. Neles se sumariam as ações de Graciliano como Prefeito do pequeno município do interior, para cujo cargo fora eleito em 1927 com 433 votos, e se colhem, como se pretende demonstrar neste trabalho, diretrizes (como a da publicidade, já referida) até hoje perseguidas pelo sistema jurídico brasileiro em relação à Administração Pública. Anote-se, de antemão, que a então vigente Constituição de 1891 não trazia qualquer enunciação de princípios regentes da Administração Pública (como expressamente previsto pela

*

Professor da UFRN, Promotor de Justiça no RN, Mestre em Direito (UFRN) e Doutorando em Ciências Jurídicas (UFPB)

1  Foram eles precedidos por outro, dirigido ao Conselho Municipal (equivalente às atuais Câmaras de vereadores), para demonstrar o estado em que se encontrava a Prefeitura quando da assunção do cargo – cuidado que muitos gestores públicos olvidam, seja por desapego à necessária publicidade, seja para não contrariar o gestor anterior, de quem fora correligionário.

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Morton Luiz Faria de Medeiros*

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atual Constituição brasileira em seu art. 37, caput), e reservava ao Município um solitário artigo (art. 68) de flagrante vagueza, conforme percebeu Baleeiro (2001, p. 41), em nítido desprestígio à autonomia municipal. A rigor, nem mesmo havia previsão de impostos municipais – o que só passou a ocorrer a partir da Constituição de 1934 (art. 13) – tendo Leal (2012, p. 151) destacado que as rendas municipais, e mesmo as dos Estados – das quais eram dependentes – eram ínfimas, redundando na concentração de recursos públicos pela União, algo não muito distante do vigente pacto federativo brasileiro. Eis por que os relatórios de Graciliano demonstravam tanta preocupação com as (reduzidas) receitas e despesas2 do Município, tomando ele, por isso, providências para a redução dos gastos inúteis, como os com telegramas, que, embora custassem pouco relativamente à quantia orçada, eram demasiados para os resultados alcançados, consoante evidenciado em sua descrição sarcástica: Não há vereda aberta pelos matutos, forçados pelos inspectores, que prefeitura do interior não ponha no arame, proclamando que a coisa foi feita por ella; comunicam-se as datas historicas ao governo do Estado, que não precisa disso; todos os acontecimentos politicos são badalados. Porque se derrubou a Bastilha um telegrama; porque se deitou uma pedra na rua um telegrama; porque o deputado F. esticou a cannela um telegrama. Dispendio inutil. Toda a gente sabe que isto por aqui vai bem, que o deputado morreu, que nós choramos e que em 1559 D. Pero Sardinha

Tal relato também serve como crítica à utilização de recursos públicos para propaganda dos feitos do administrador público sem qualquer benefício para os munícipes. Ainda hoje, veem-se peças publicitárias de governos que “põem no arame” suas realizações, obras e feitos, proclamados como desforço exclusivamente pessoal do detentor do poder, olvidando que a publicidade governamental prevista no § 1.º do art. 37 da atual Constituição deve ter caráter educativo, informativo ou de orientação social, e não servir para promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos. Para abreviar as dificuldades orçamentárias, Graciliano não recorreu à sanha da oneração tributária dos “[...] matutos de pequeno valor, ordinariamente raspados, escorchados, esbrugados pelos exactores”, tais como a personagem Fabiano, que sentiu o peso da atuação predatória do cobrador3 da Prefeitura mesmo quando pôs a venda seu porco magro (RAMOS, 1992a, p. 94). Em vez disso, extinguiu “[...] favores largamente concedidos a pessoas que não precisavam deles” (RAMOS, 2013, p. 37), encarregando, por exemplo, um advogado e seis cobradores para fazer com que os contribuintes com poderio econômico abandonassem a cômoda posição de pagar ao Município “[...] se querem, quando querem e como querem” (RAMOS, 2013, p. 28).

2  Em seus relatórios, Graciliano faz menção a diversas despesas municipais, destacando-se: iluminação e limpeza públicas, estradas, saúde (“Posto de hygiene”) e educação (“Instrucção”). 3

Sua obra Vidas Secas, igualmente, é coalhada de referências à atividade do cobrador municipal (RAMOS, 1992a, pp. 28, 37, 94 e 95).

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foi comido pelos Cahetés. (RAMOS, 2013, p. 28)

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de discricionariedade, escolhendo as mais urgentes, dentre todas as obras exigidas (RAMOS, 2013, p. 39). Justifica assim sua postura em relação à esperada construção de novo cemitério5, postergada porque “[...] os trabalhos a que me aventurei, necessários aos vivos, não me permittiram a execução de uma obra, embora útil, prorogavel. Os mortos esperando mais algum tempo. São os municipes que não reclamam” (RAMOS, 2013, p. 38). Mantinha rigoroso compromisso com o princípio da impessoalidade, demonstrado com sinceridade rara entre detentores de mandato eletivo: “Não favoreci ninguem. Devo ter commettido numerosos disparates. Todos os meus erros, porem, foram erros da intelligencia que é fraca” (RAMOS, 2013, p. 33). Nesse diapasão narra-se um dos causos mais inspiradores. Havendo Graciliano proibido que se soltassem animais nas ruas, certa vez chegou-lhe o cobrador constrangido, o que logo despertou a curiosidade do Prefeito: “Que aconteceu, homem?” Seu fiel funcionário informou-lhe, então, que achara umas vacas de seu pai, Sebastião, zanzando à toa, a que Graciliano retorquiu: “E você?” Respondeu, temeroso: “Fiz nada não”. Seguiu-se a reprimenda do Prefeito: “Pois faça, lavre a multa. Prefeito não tem pai” (RAMOS, 1992b, p. 33). 4  Exemplo desse compromisso (a contragosto) com o cumprimento dos contratos administrativos foi a avença para fornecimento de energia elétrica, assim descrita nas palavras de Graciliano: “Apesar de ser negocio referente a claridade, julgo que assignaram aquillo ás escuras. É um bluff. Pagamos até a luz que a lua nos dá” (RAMOS, 2013, p. 38). 5  A Constituição de 1891, então vigente, trazia preceito específico para determinar o caráter secular dos cemitérios e atribuir sua gestão à autoridade municipal (art. 72, § 5.º), o que persiste até os dias de hoje.

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Contra essa prática de atentado à moralidade, ainda muito corriqueira nesses prados, o Ministério Público tem exigido, por exemplo, de Prefeitos Municipais que se furtam à cobrança do IPTU para não se indispor com seus eleitores, a relação dos devedores de tributos municipais (dentre os quais se encontram, mais das vezes, os grandes empresários, pecuaristas, autoridades locais), advertindo-os de que o ato de agir negligentemente na arrecadação de tributo ou renda constitui típico ato de improbidade (art. 10, X, da Lei n.º 8.429/92). Abdicou, assim, da prática do fisiologismo que persiste em se manter na Administração Pública, que apenas beneficia os que entendem correto “[...] proceder sempre com a maxima condescendencia, não onerar os camaradas, ser rigorosos apenas com os pobres diabos sem protecção, diminuir a receita, reduzir a despesa aos vencimentos dos funcionários, que ninguem vive sem comer” (RAMOS, 2013, p. 43-4), muitas vezes agraciados com gratificações que Graciliano fez questão de reduzir (RAMOS, 2013, p. 38). Quanto a estes, aliás, atento à necessária eficiência, tratou de defenestrar os abundantes funcionários apadrinhados, “[...] que faziam politica e os que não faziam coisa nenhuma”, deixando os que “[...] não se enganam em contas” (RAMOS, 2013, p. 26). Mas fez questão de reconhecer o mérito dos que, mesmo mal remunerados (RAMOS, 2013, p. 38), reputou como os verdadeiros responsáveis pelas realizações de seu governo, situando sua virtude, tão-somente, em escolhê-los e vigiá-los (RAMOS, 2013, p. 43). Ainda que apresentasse essa peculiar hierarquia de prioridades, não abandonou o respeito à legalidade, tanto que honrou a realização das despesas determinadas no orçamento, conquanto com elas não concordasse (RAMOS, 2013, p. 26)4, mas quando podia exercia o poder

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Combateu bravamente os “innumeros prefeitos” (RAMOS, 2013, p. 25), detentores de micropoderes que se apossam da coisa pública como se fosse negócio particular, exclusivo. E, afinal, logrou exercer sua missão pública no estrito cumprimento de princípios normativos que então sequer tinham assento constitucional, como a publicidade, a moralidade, a eficiência, a legalidade e a impessoalidade. Não soa despropositado, afinal, que, depois de tanta austeridade e aversão à politicagem reinante à época, o “Velho Graça” tenha apresentado sua carta de renúncia ao Governador antes do fim de seu mandato: suas ideias eram muito avançadas para aplicação naqueles tempos – quiçá, mesmo hoje se tenha dificuldade de vivenciá-las na Administração Pública brasileira, para desconsolo das muitas vidas secas a ela confiadas...

REFERÊNCIAS BALEEIRO, Aliomar. Constituições brasileiras: 1891. Brasília: Senado Federal e Ministério da Ciência e Tecnologia, Centro de Estudos Estratégicos, 2001. LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. 7. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. RAMOS, Ricardo. Graciliano: retrato fragmentado. São Paulo: Siciliano, 1992. RAMOS, Graciliano. Relatórios de Graciliano Ramos publicados no Diário Oficial. Maceió: Imprensa Oficial Graciliano Ramos, 2013.

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RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 63. ed. Rio de Janeiro, São Paulo: Record, 1992.

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AFINAL, PARA QUE SERVE A PENA? A TRAGÉDIA DA AUTORIDADE? Bernardo Montalvão*

RESUMO: O texto pretende fazer a crônica da tragédia da autoridade.

Para tanto, o texto toma como ponto de partida o problema do direito de punir da autoridade. Afinal, o ato de punir é um grande desafio à manutenção de toda e qualquer autoridade. Palavras-chave: Sanção. Autoridade. Legitimidade.

“Eu é que não me sento no trono de um apartamento, com a boca escancarada cheia de dentes, esperando a morte chegar. Porque longe das cercas embandeiradas que separam quintais, no cume calmo do meu olho que vê, assenta a sombra sonora de um disco voador” SEIXAS, Raul. Música: Ouro de tolo

Esta pergunta, ao longo da história, já recebeu, como se sabe, muitas respostas. Há quem diga que a pena tem por finalidade a retribuição. Há os que dizem que ela objetiva a prevenção de futuros delitos. Entre esses, há os que asseguram que ela se presta a reintegrar o condenado à sociedade. Sem falar naqueles que afirmam, com toda segurança, que ela serve para intimidar a sociedade como um todo e que, por isso, utiliza o condenado como exemplo.

* Professor-Assistente na disciplina de Teoria do Direito junto à Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professor de Processo Penal da Universidade Católica do Salvador - UCSAL; Professor Convidado da Fundação Escola Superior do Ministério Público da Bahia - FESMIP; Professor Convidado da Escola da Magustratuta da Bahia; Professor Convidado da Especialização em Ciências Criminais da Fundação Faculdade de Direito vinculada ao PPGD-UFBA. Mestre em Direito Público pela UFBA (Universidade Federal da Bahia). Pós-Graduado Lato Sensu em Ciências Criminais pela Fundação Faculdade de Direito vinculada ao Programa de Pós-Graduação da UFBA.

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1 AS TENTATIVAS DE RESPOSTA.

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Há, ainda, aqueles que afirmam que ela se destina tanto a retribuir como a prevenir. Existem, também, os que asseveram que ela serve para garantir ao condenado um mínimo de direitos durante o cumprimento da pena. Mas, afinal, para que ela serve? Há quem afirme que ela serve para orientar a sociedade, uma vez que indica os comportamentos permitidos e os proibidos. Há quem jure que ela serve para intimar o autor do delito. Há, também, aqueles que afirmam, categoricamente, que ela se destina a restabelecer a confiança depositada na norma jurídica. Como se não bastasse todas essas respostas, há, ainda, aqueles que sustentam que ela se destina a aplacar o clamor social. Mas há, também, os que dizem que ela se presta a fazer justiça. Com o que não concordam outros mais céticos, que preferem defender que ela serve para oprimir as classes sociais menos favorecidas economicamente. Ao que, outros respondem que ela,na verdade, se presta a “tratar” os indivíduos perigosos. Mas, finalmente, para que serve a pena? E será que a pena, o castigo, a sanção tem uma finalidade? Será? Como se viu, muitos, muitos autores já tentaram responder esta pergunta. Mas, por favor, me perdoe pela insistência, nada quero insinuar com esta repetição de perguntas, mas será que a pena tem uma finalidade? Será que ela é um meio para alcançar um determinado objetivo? Ou será que ela não teria fim? E será que há fim? Ou o fim, na realidade, é apenas o meio? Nem o começo, nem o próprio fim, mas apenas o meio? Afinal, “no princípio existia o verbo, e o verbo estava com Deus, e o verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por ele; e sem ele nada foi feito.”1.

Como toda pergunta exige uma tentativa de resposta, e como diversas tentativas já foram feitas ao longo do tempo, será que seria inteligente enveredar pelo mesmo caminho? Será que o caminho é a trilha de tijolos amarelos que leva ao Mundo Fantástico de Oz?2 Será que há caminho? Ou será que a ideia de que há um caminho não é mais uma das tentações que Mefistófeles coloca no caminho de Fausto?3 Que Deus é esse, vingativo e ardiloso, que a todo o momento coloca a sua criatura, o seu filho, diante da maça vermelha e aos cuidados da serpente? Será, então, que o caminho para esta pergunta, ou para qualquer pergunta, é tentar respondê-la? Ou será que este caminho, nãoé, em verdade, um labirinto, a penitência imposta a Sísifo por Hades por ter tentado lhe enganar?4 Se desse ouvidos ao discurso do bom samaritano, aquele que prescreve que “amai-vos uns aos outros, como vos amei”, seria tentado, agora, neste momento, a afirmar que a pena, 1

DIVERSOS AUTORES, 1979, p.1156.

2  Citação do filme de, O Mundo Fantástico de Oz. Ele foi criado como uma sequência não oficial do O Mago de Oz. Foi feito pela Walt Disney Pictures e não aprovado pela MGM, a companhia que fez o filme clássico de 1939 (a MGM tinha os direitos sobre o filme do Mago, mas a Disney possuía direitos sobre os últimos livros de Oz). O filme foi dirigido por Walter Murch. 3  GOETHE, 2004. 4  COMMELIN, 1997, p. 200.

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2 UMA NOVA POSSIBILIDADE DE RESPOSTA?

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5  “Erro do livre-arbítrio. – Hoje não temos mais compaixão pelo conceito de ‘livre-arbítrio’: sabemos bem demais o que é – o mais famigerado artifício de teólogos que há, com o objetivo de fazer a humanidade ‘responsável’ no sentido deles, isto é, de torná-la deles dependente... Apenas ofereço, aqui, a psicologia de todo ‘tornar responsável’. – Onde quer que responsabilidades sejam buscadas, costuma ser o instinto de querer julgar e punir que aí busca. O vir-a-ser é despojado de sua inocência, quando se faz remontar esse ou aquele modo de ser à vontade, a intenções, a atos de responsabilidade: a doutrina da vontade foi essencialmente inventada com o objetivo da punição, isto é, de querer achar culpado. Toda a velha psicologia, a psicologia da vontade, tem seu pressuposto no fato de que seus autores, os sacerdotes à frente das velhas comunidades, quiseram criar para si o direito de impor castigos – ou criar para Deus esse direito...”, cf. NIETZSCHE, 2006, p. 45-46. 6  DIVERSOS AUTORES. 1979, p. 1068. 7  ALIGHIERI, DANTE. 2011.

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o castigo, a penitência, se presta, em realidade, a alcançar uma determinada finalidade, a de ressocializar o condenado. Mas como a ingenuidade é amiga da trapaça, já não cometo o erro de Abraão, que deu atenção às palavras desse Deus “misericordioso”. E é por esse motivo, mas não apenas por ele, que desconfio que a verdadeira finalidade da pena, se é que ela tem uma, é levar o pecador a reincidir. Afinal, não haveria melhor maneira de manter o herege sobre controle, pois se puni-lo uma vez é uma grande demonstração de força, induzi-lo a pecar novamente, por “livre e espontânea vontade”, é a estratégia ideal para perpetuar o castigo. Foi, por isso, aliás, que o sermão do “livre-arbítrio”5 foi criado, para permitir que o pecador se sentisse culpado. E, uma vez culpado, reconhecesse a autoridade do Padre em penitenciá-lo, tornando-se dependente dele. Estava a criado o mistério da autoridade. Ou, como preferem os beatos: eis o mistério da fé! Mas, enquanto o enigma não é desvendado, a primeira reação do servo é dizer: – Senhor, eu não sou digno que entreis em minha morada, mas dizei uma só palavra e eu serei salvo6. Contudo, o que é ser salvo? É resgatar o pecador do mundo das trevas? Ou seria atravessar o rio Aqueronte, junto com Virgílio, no barco de Caronte?7 Ser salvo é conhecer o inferno, estando vivo, e retornar para contar a história? Ser salvo é atravessar os nove círculos do inferno e ser apresentado a Deus graças à intervenção de São Bernardo junto à Virgem Maria? Ou, em lugar disso, ser salvo seria está eternamente condenado a pecar? Afinal, só se salva quem um dia pecou. E quem nunca pecou que atire a primeira pedra! Mas, quem define o que é pecado?Quem define a indulgência para que o pecador possa entrar no reino dos céus? O problema do pecado não é o pecado. Nem tampouco a penitência que será dada pela autoridade. O verdadeiro problema é a salvação. E quem nos salva dos homens de boa vontade? Logo, se alguém é salvo, a pergunta não é: como é possível se salvar?Nem, muito menos, se existe salvação, afinal promessas não deixam de serem promessas, caso não sejam cumpridas. Toda norma – moral, jurídica, ou religiosa –, é uma promessa. A promessa de que uma expectativa de comportamento será estabilizada. Mas, qual seria, então, a pergunta? A pergunta é a mais elementar de todas: quem se salva? Quem se salva de quem? Seria o mortal que se salva do tártaro? Seria o delinquente que se salva da penitenciária? Seria o Cristo que se salva do peso da cruz? Será? Ou, na verdade, seria o carrasco que se salva da vítima? O Deus que se salva dos mortais? O grande Zeus que se salva da ira de seu pai, Cronos? Será? Não sei. O certo é que em toda oração há um testemunho de obediência, assim como em toda pena há um reconhecimento de culpa, uma oportunidade para o batismo dos pagãos, uma chance para evangelizar os infiéis,

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um momento para converter o súdito em delinquente. Não para converter o delinquente. Mas, sim, para convertê-lo em delinquente. Eis o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo!

Mas não se deixe encantar pela possibilidade dessa resposta: de que a pena tem como finalidade a reincidência do delinquente. Ela é só uma resposta. Mais uma resposta. E não, e nem nunca será, a resposta. Toda resposta é apenas uma tentativa de decidir uma questão, de tranquilizar o espírito dos beatos da resposta e dos pecadores que perguntam, de aplacar a insegurança colocada pela dúvida, mas não é a solução. A resposta não dissolve a interrogação, apenas a coloca sobre controle, neutraliza. Logo, a resposta, para ser uma boa resposta, precisa convencer a todos; auditório e palestrante. Precisa persuadir tanto a quem faz a pergunta como a quem dá a resposta. Precisa ser convincente tanto para quem está questionando a autoridade quanto para a própria autoridade que acredita na sua resposta. Como se vê, o segredo de toda resposta é ter a capacidade de despertar a confiança dos crédulos. E, talvez, a igreja com maior número de fiéis seja a igreja castradora da razão moderna. A igreja que prometeu ao povo do Egito a terra de Canaã. Uma terra nunca encontrada. O certo é que o maior desafio de qualquer resposta, não é provocar a adesão de quem formulou a dúvida, mas, sim, preservar a crença de quem deu a resposta. “É mais fácil um camelo entrar pelo buraco da agulha, que um rico entrar no reino dos céus”8. É mais fácil uma resposta, ou uma nova resposta, despertar a crença de algumcético, do que a mesma resposta preservar eternamente a crença dos incautos. Portanto, a resposta não é a porta de saída do labirinto, mas a porta que dá acesso a um novo labirinto. E que labirinto é este no qual o homem se encontra perdido? A linguagem, este catálogo de metáforas e metonímias extintas derivado do instinto9 de sobrevivência humana. O instinto que inclina o homem a está sempre aberto a acreditar em algo. E a maior de todas as crenças humanas é a que o homem deposita na linguagem. E o que é isso que a razão moderna tenta a todo custo manter sobre controle? O que é isso, o instinto? Uma finalidade inconsciente. Um objetivo que orienta o agir humano, mas sobre o qual o homem não tem o menor controle. Mas, apesar disso, a razão moderna, de forma instintiva, tomada pela sensação atávica de insegurança, tenta a todo custo controlá-lo. Eis o paradoxo da racionalidade instintiva! Quanto maior é a pretensão da razão de tornar provável o improvável, maiores são as peripécias da linguagem10. Essa aranha astuciosa que controlaas suas presas graças à teia da comunicação, esse espaço de multiplicação de mensagens11, no qual

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DIVERSOS AUTORES, 1979, p. 1234.

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NIETZSCHE, 1995, p. 91-96.

10  Apenas a título de exemplo, convém lembrar o problema da tradução. Como bem assinala Jacques Derrida: “a tradução é um compromisso sempre possível, mas sempre imperfeito entre duas línguas”. Cf. DERRIDA, 2007, p.7. 11  DE GIORGI, 2006, p. 191-196.

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3 O PROBLEMA DA RESPOSTA.

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é improvável que as presas se comuniquem12. Por conseguinte, o que é a resposta? Ela é, em si, a própria Caixa de Pandora. Quanto maior for a curiosidade humana em abrir a caixa e tentar decifrar o mistério da linguagem, ou em tentar saber para que serve a pena, mais complicada se torna a charada da existência, o truque da linguagem, a mágica da crença, enfim, mais complicado se torna justificar a auréola de toda autoridade.Por isso, a esperança foi o único item remanescente na caixa. Como nos advertiu Zaratustra, esse Deus, chamado razão moderna, é cruel, ele toma sempre o cuidado de que os seus fiéis não coloquem sua doutrina, seus dogmas em xeque. É, por isso, que toda grande história não tem fim, mas recomeço. Não o recomeço. Mas um dos recomeços. E para recomeçar é preciso ter esperança. E quem tem esperança, espera. Espera pela revelação. Espera pela resposta. Espera pelo milagre. Enfim, quem espera, espera por alguém, ou por alguma coisa. Mas, por que espera? Porque acredita na velha máxima aristotélica, aquela que diz: para todo efeito, há uma causa13. Porém, ela é uma dessas grandes mentiras14repetidas pela ciência15. Assim como a ressocialização é a grande mentira da pena, a prevenção é a grande mentira de Feuerbach e a retribuição foi uma das grandes mentiras contadas por Kant e Hegel. Aliás, o Direito está repleto de aforismas mentirosos. E talvez, o mais mentiroso deles seja: o juiz conhece o direito16. Por isso, senhores usuários da língua, doutrinadores da resposta correta, defensores da verdade, enfim, autoridades desse maravilhoso mundo velho chamado modernidade, escutem as palavras do louco: “‘Para onde foi Deus?’, exclamou, ‘é o que lhes vou dizer. Matamolo... vocês e eu! Somos nós, nós todos, os seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguimos esvaziar o mar? Quem nos deu uma esponja para apagar o horizonte inteiro?”17. Elas poderão adverti-lhes do presente que bate à porta. Não do futuro que está por vim, mas

13  “Causa e efeito. Costumamos empregar a palavra ‘explicação’, quando a palavra correta seria ‘descrição’, para designar aquilo que nos distingue dos estágios anteriores de conhecimento e de ciência. Sabemos descrever melhor do que nossos predecessores; explicamos tão pouco como eles. Descobrimos sucessões múltiplas onde o homem e o sábio, ingênuos das civilizações precedentes, viam apenas duas coisas, ‘causa’ e ‘efeito’, como se dizia; aperfeiçoamos a imagem do devir, mas não fomos além dessa imagem. Em cada caso, a série de ‘causas’ se apresenta mais completa; deduzimos que é preciso que esta ou aquela coisa tenha sido precedida para que se lhe suceda outra; mas isso não nos leva a compreender nada. (...) Só operamos com coisas que não existem: linhas, superfícies, corpos, atómos, tempos divisíveis; como havia de existir sequer possibilidade de explicar quando começamos por fazer de qualquer coisa uma imagem, a nossa imagem! (...) Causa e efeito: trata-se de uma dualidade que certamente nunca existirá; assistimos, na verdade, a uma continuidade de que isolamos algumas partes; do mesmo modo que nunca percebemos mais do que pontos isolados em um movimento, isto é, não o vemos, mas o inferimos. A rapidez com que se fazem notar certos efeitos induz-nos em erro, mas essa rapidez só existe para nós. Nesse segundo de rapidez há um multidão de fenômenos que nos escapam. Uma inteligência que visse a causa e efeito como uma continuidade, e não como um esfacelamento arbitrário, a inteligência que visse a vaga dos acontecimentos negaria a ideia de causa e de efeito e de qualquer condicionalidade”, cf. NIETZSCHE, 2005, p. 105. 14 “A mentira. - Por que, na vida cotidiana, os homens normalmente dizem a verdade? - Não porque um deus tenha proibido a mentira, certamente. Mas, em primeiro lugar, porque é mais cômodo; pois a mentira exige invenção, dissimulação e memória. (Eis por que, segundo Swift, quem conta uma mentira raramente nota o fardo que assume; pois para sustentar uma mentira ele tem que inventar outras vinte). Depois, porque é vantajoso, em circunstâncias simples, falar diretamente ‘quero isto, fiz isto’ e coisas assim; ou seja, porque a via da imposição e da autoridade é mais segura que a da astúcia...”, cf. NIETZSCHE, 2005, p. 54. 15 “Ciência dos venenos. São necessárias muitas coisas reunidas muitas coisas para que se possa formar o pensamento filosófico! E todas estas forças necessárias têm de ser treinadas, cultivadas e inventadas separadamente! Mas, consideradas isoladamente, produziam um efeito completamente diferente daquele que produzem agora, que se limitam e se disciplinam reciprocamente no pensamento científico: agiram como venenos.”, cf. NIETZSCHE, 2005, p. 106. 16  SOBOTA, 1996, p. 129. 17  NIETZSCHE, 2005, p. 111.

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12  LUHMANN, 1999, p.39-45.

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do agora que já chegou. O dia em que a terra parou! O dia em que se tornou problemático todo e qualquer discurso de legitimação, em que a justificativa da autoridade tem cada vez mais dificuldade de obter a adesão. Para onde foi a magia, o encanto, a mística da autoridade?18 Sendo certo que a autoridade calcula o custo-benefício de sua decisão, não é menos certo que nenhum cálculo calcula o incalculável. Em todo discurso, e com a decisão não é diferente, há algo de místico, pois há “ali um silêncio murado na estrutura violenta do ato fundador. Murado, emparedado, porque esse silêncio não é exterior à linguagem”19, mas ínsito a ela. Logo, é preciso admitir que o “o direito é essencialmente desconstruível, ou porque ele é fundado, isto é, construído sobre camadas textuais interpretáveis e transformáveis (e esta é a história do direito, a possível e necessária transformação, por vezes a melhora do direito), ou porque seu fundamento último, por definição não é fundado”20. Em suma, “a desconstrução é a justiça”21!

Logo, talvez ela seja, por mais paradoxal que isso possa parecer, o momento mais fértil para invenção de novos discursos legitimadores e deslegitimadores da autoridade. O momento mais fértil para testar novos discursos legitimadores. O momento mais oportuno para avaliar a substituição de um discurso por outro. Afinal, o discurso que resiste aos questionamentos endereçados ao poder de punir, é, em princípio, o discurso mais capacitado a legitimar o ordenamento jurídico estatal. Parece haver algo de semelhante entre o discurso que legitima o poder constituinte originário e aquele que justifica o poder de punir da autoridade. Parece haver algo de semelhante entre o poder do soberano que decide sobre a exceção (sobre o momento mais apropriado para descartar o Estado Democrático de Direito) (Schmitt) e o poder do soberano que decide sobre a institucionalização e manutenção da pena privativa de liberdade (Foucault). Mas, afinal, qual seria mesmo a finalidade da pena?

18  “Em algum remoto recanto do universo, que se deságua fulgurantemente em inumeráveis sistemas solares, havia uma vez um astro, no qual animais astuciosos inventaram o conhecimento. Foi o minuto mais audacioso e hipócrita da ‘história universal’: mas, no fim das contas, foi apenas um minuto. Após alguns respiros da natureza, o astro congelou-se, e os astuciosos animais tiveram que morrer”, cf. NIETZSCHE, 1997, p. 25. 19

DERRIDA, 2007, p. 25.

20  Ib., idem., p. 26. 21

Ib., idem., p. 27.

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Por isso, a pergunta pela finalidade da pena. Porque talvez a pena seja o melhor momento para observar o exercício da autoridade. Não porque se queira saber qual é a finalidade que ela pretende alcançar. A finalidade é apenas uma parte do truque da autoridade. Não porque se queira saber o que é a pena. Isso é um problema dos estudiosos dos dogmas penais, e não é esse o objeto do presente trabalho. Mas, sim, porque a pena talvez seja o momento de maior vulnerabilidade de qualquer autoridade, o momento em que a legitimidade dela fica mais exposta a questionamentos.

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REFERÊNCIAS: ALIGHIERI, DANTE. Divina comédia. Tradução: João Trentino Ziller. São Paulo:Atelier Editorial, 2011. COMMELIN, P. Mitologia Grega e Romana. Tradução: Eduardo Brandão. 2ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 200. DE GIORGI, Rafaelle. Direito, tempo e memória. Tradução: Guilherme Leite Gonçalves. São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 191-196. DERRIDA, Jacques. Força de lei. O fundamento místico da autoridade. Tradução: Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 25. DIVERSOS AUTORES. Bíblia Sagrada (Antigo Testamento. Novo Testamento. Evangelhos. Atos dos Apóstolos). Tradução da Vulgata pelo Pe. Matos Soares. 35ª edição. São Paulo: Edições Paulinas, 1979, p. 1234. GOETHE, Johann Wolfgang von. Fausto: primeira parte da tragédia. Tradução: Jenny Klabin Segall. Rio de Janeiro: Editora 34, 2004. LUHMANN, Niklas. A improbabilidade da comunicação. Tradução: Anabela Carvalho. Lisboa: Editora Vega, p.39-45. NIETZSCHE, Friedrich. Sobre verdade e mentira. Tradução: Fernando de Moraes Barros. São Paulo: Editora Hedra, 1997, p. 25. NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A Gaia Ciência. Tradução: Heloisa Graça Burati. São Paulo: Rideel, 2005, p. 106.

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Da retórica. Tradução: Tito Cardoso e Cunha. 1ª edição. Lisboa: Vega, 1995, p. 91-96. NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Humano, demasiado humano. Tradução: Paulo César de Souza. 4ª reimpressão. São Paulo: Companhias das letras, 2005, p. 54. SOBOTA, Katharina. “Não mencione a norma!”.Anuário dos Cursos de Pós-graduação em Direito,n. 7. Tradutor: João Maurício Adeodato. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 1996, p. 129.

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NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Crepúsculo dos ídolos – Como se filosofa com o martelo. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 45-46.

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AFTER ALL, WHAT IS WORTH? THE TRAGEDY OF AUTHORITY? ABSTRACT

The text aims to chronicle the tragedy of authority. Therefore, the text takes as its starting point the problem of the right of punishing authority. After all, the act of punishing is a major challenge to the maintenance of all authority.

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Key-words: Sanction. Authority. Legitimacy.

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A LAUDATO SI1: UM NOVO, NECESSÁRIO E APROFUNDADO OLHAR SOBRE A CRISE SOCIOAMBIENTAL NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA Marise Costa*

RESUMO: O texto se propõe a expor os principais aspectos da Carta Encíclica Laudato Si, conhecida como Encíclica Verde, publicada, em 2015, pela Igreja Católica; documento que veio trazer à tona a crise socioambiental contemporânea, chamando a atenção de todos - católicos ou não – sobre a importância e urgência no cuidado com o ambiente e com o elemento humano; revelando, de modo inconteste, a interdependência entre pobreza e meio ambiente. Objetiva contribuir para o inevitável debate que se deve travar sobre o tema, especialmente no âmbito da academia, lócus privilegiado do conhecimento e da formação social. Palavras-chave: Sociedade. Crise Socioambiental. Laudato Si. Encíclica Verde.

Chegando aos meados da segunda década do século XXI temos, em grande parte do Planeta, um acirramento dos problemas ambientais e sociais surgidos a partir da segunda metade do século XX; o que suscita a necessidade de olharmos atentamente para o cenário posto e buscar formas de enfrentamento. Sem descurar dos graves problemas que afligem a Humanidade na atualidade, destaca-se, no campo ambiental, os graves problemas de escassez de água (em quantidade e qualidade) 1

Tradução em português: Louvado Seja.

Professora Adjunta do Departamento de Direito Público da UFRN, Procuradora Municipal de Natal/RN, Doutora em Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFRN (Área de concentração: Urbanização, Projetos e Políticas Físico-Territoriais), com estágio de doutoramento na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra-Portugal; Mestre em Direito Público – DPU/UFRN, Graduada e Especialista em Serviço Social – DESSO/UFRN. *

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1 INTRODUÇÃO

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e de disposição do lixo, associados aos inegáveis efeitos das mudanças climáticas; enquanto no âmbito social, indiscutivelmente, se coloca o alarmante problema dos refugiados políticos, que ganhou enorme visibilidade no ano de 2015. Ainda que os efeitos desses problemas ambientais e sociais sejam sentidos pela sociedade em geral, não se pode negar que as classes sociais mais pobres são afetadas com maior intensidade. Por outro lado, já temos, na seara do Direito Internacional, diversas normas voltadas à proteção dos direitos humanos e ao meio ambiente; que garantiriam, se adotadas pelos países compromissários, uma realidade social mais equânime e um ambiente (urbano e rural) equilibrado, onde os recursos naturais pudessem garantir tanto a qualidade de vida das atuais como das futuras gerações. Ciente de que a problemática social e ambiental vivenciada na contemporaneidade deriva de uma teia de fatores, dentre os quais os econômicos e políticos se revelam mais expressivos, se exige uma profunda reflexão sobre o estágio de evolução no qual se encontra a Humanidade, onde as questões sociais e ambientais (que aqui passaremos a denominar socioambientais) se colocam como centrais, ainda que muitas vezes não sejam vistas nem postas como tais nas discussões políticas e no campo das políticas econômicas. Enxergando essa realidade e refletindo profundamente sobre ela, um recente documento publicado, em 2015, pela Igreja Católica – a Carta Encíclica Laudato Si sobre o Cuidado da Casa Comum, também conhecida como Encíclica Verde - veio trazer à tona a crise socioambiental contemporânea; chamando a atenção de todos - católicos ou não – sobre a importância e urgência do cuidado com o ambiente e com o elemento humano; revelando, de modo inconteste, a interdependência entre pobreza e meio ambiente. Colocando a questão da finitude e esgotabilidade dos recursos naturais no Planeta (visto como a nossa casa comum) e a falta de cuidado dos indivíduos com o ambiente em que vivem e do qual fazem parte, o documento chama a atenção para a necessidade de uma mudança radical no comportamento da Humanidade a partir da constatação de que, se não atrelados ao progresso social e moral, a evolução científica e tecnológica e o desenvolvimento econômico se voltarão contra o próprio indivíduo. Destacando-se a riqueza e profundidade do documento - que, mais que ser o magistério social da Igreja Católica, se coloca como um verdadeiro instrumento educativo para a tomada de consciência e ação em face da crise socioambiental que permeia a vida do Planeta – iremos aqui pontuar seus principais aspectos, de modo a contribuir para o inevitável debate que se deve travar, especialmente no âmbito da academia, lócus privilegiado do conhecimento e da formação social O texto foi construído a partir da leitura completa da Encíclica Laudato Si e a seleção, sob o nosso olhar, de seus principais aspectos. Ciente de que a exposição que passa a ser realizada certamente não possui o mérito de pontuar todas as ideias contidas na Carta Papal, o esforço despendido teve como principal objetivo possibilitar uma primeira aproximação com o documento, entendido como um grande marco de tratamento teórico da questão so-

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cioambiental contemporânea.

2 QUESTÕES SOCIOAMBIENTAIS CENTRAIS Posicionando-se com relação a cada uma das questões que passarão a ser expostas, destaca-se, preliminarmente, que o documento elege eixos que, segundo se encontra ali consignado, atravessam a Encíclica inteira; como: a relação íntima entre os pobres e a fragilidade do Planeta, a convicção de que tudo está estreitamente interligado no mundo, a crítica do novo paradigma e das formas de poder que derivam da tecnologia, o convite a procurar outras maneiras de entender a economia e o progresso, o valor próprio de cada criatura, o sentido humano da ecologia, a necessidade de debates sinceros e honestos, a grave responsabilidade da política internacional e local, a cultura do descarte e a proposta dum novo estilo de vida. (PAPA FRANCISCO, 2015, P.15) Como questões socioambientais centrais, a Encíclica Laudato Si traz à tona: o problema da poluição e das mudanças climáticas; a questão da água; a perda de biodiversidade; a deterioração da qualidade de vida humana e degradação social e a desigualdade planetária. a) Sobre a poluição e o clima Com relação ao problema da poluição e mudanças climáticas, o documento chama atenção para a questão da produção desmedida de resíduos associada à cultura do descarte. Lembra que a exposição aos poluentes atmosféricos produz uma vasta gama de efeitos sobre a saúde, particularmente dos mais pobres, provocando milhões de mortes prematuras. Nesse contexto, destaca que:

Colocando a questão do clima (visto como bem comum) como um problema global com graves implicações ambientais, sociais, económicas, distributivas e políticas, e um dos principais desafios para o Planeta, conclama a Humanidade à tomada de consciência quanto à necessidade de mudanças de estilos de vida, de produção e de consumo; lembrando que a alta concentração de gases de efeito de estufa (dióxido de carbono, metano, óxido de azoto, e outros) na atmosfera deriva do modelo de desenvolvimento baseado no uso intensivo de combustíveis fósseis, que está no centro do sistema energético mundial. Nesse contexto, o Papa lembra da prática crescente de desflorestamento e da mudança na utilização do solo principalmente para monocultura agrícola; o que incide sobre a disponibilidade dos recursos naturais, com forte impacto na biodiversidade do Planeta. Alia-se a esse quadro o aumento do nível do mar, o que, conforme pontua o documento, pode criar situações de extrema gravidade, considerando que

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ainda não se conseguiu adotar um modelo circular de produção que assegure recursos para todos e para as gerações futuras e que exige limitar, o mais possível, o uso dos recursos não-renováveis, moderando o seu consumo, maximizando a eficiência no seu aproveitamento, reutilizando e reciclando-os. (PAPA FRANCISCO, 2015, P.20)

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1/4 da população mundial vive à beira-mar ou muito perto dele, e a maior parte das megacidades estão situadas em áreas costeiras. Quanto aos efeitos das mudanças climáticas sobre os países em desenvolvimento e as populações mais fragilizadas economicamente, o documento lembra que tais camadas sociais vivem, muitas vezes, em lugares particularmente afetados por fenómenos relacionados com o aquecimento global, e os seus meios de subsistência dependem fortemente das reservas naturais e dos chamados serviços do ecossistema, como: a agricultura, a pesca e os recursos florestais. Destaca-se, ainda, que, por não possuírem disponibilidade econômica nem recursos que lhes permitam adaptar-se aos impactos climáticos ou enfrentar situações catastróficas, e por gozarem de reduzido acesso a serviços sociais e de proteção, tais populações se colocam bastante vulneráveis às consequências das alterações climáticas. b) Sobre a água A questão da água também se coloca, naquele documento, como um grande problema de caráter socioambiental. Colocando em pauta a importância da água potável e limpa para a vida humana e para a sustentabilidade dos ecossistemas terrestres e aquáticos; o documento levanta a carência desse recurso, notadamente em grandes cidades e no caso da população mais pobre, que, em geral, não tem acesso ao mesmo, em qualidade e quantidade suficiente, o que termina por trazer consequências mais graves às crianças. Em paralelo, é destacado que, em alguns lugares, cresce a tendência para se privatizar este recurso escasso, tornando-se uma mercadoria sujeita às leis do mercado; fato que suscita a constatação de que “o acesso à água potável e segura é um direito humano essencial, fundamental e universal, porque determina a sobrevivência das pessoas e, portanto, é condição para o exercício dos outros direitos humanos” (PAPA FRANCISCO, 2015, P.26)

Colocando a perda de biodiversidade como decorrência de formas imediatistas de entender a economia e a atividade comercial e produtiva (onde o uso de agrotóxicos é um forte exemplo); o documento pontua que tal perda “implica simultaneamente a perda de espécies que poderiam constituir, no futuro, recursos extremamente importantes, não só para a alimentação mas também para a cura de doenças e vários serviços”.(PAPA FRANCISCO, 2015, P.27) Nesse cenário, a Encíclica pontua a ausência de análise cuidadosa dos impactos das atividades econômicas na biodiversidade (muitas vezes analisando-se apenas efeitos pontuais no solo, na água e no ar); o que termina por afetar, irremediavelmente, a existência de muitas espécies da flora e da fauna, essenciais para o equilíbrio dos ecossistemas. A transformação de zonas úmidas em terrenos agrícolas, o desaparecimento dos ecossistemas constituídos por manguezais e a extração descontrolada dos recursos pesqueiros são colocados na Carta como exemplos dos efeitos desastrosos dessa falta de cuidado com a biodiversidade no ambiente ter-

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c) Quanto à biodiversidade

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restre ou aquático. d) Quanto à deterioração da qualidade de vida humana e a degradação social Postas tais principais questões, o documento vem dar visibilidade à deterioração da qualidade de vida humana e degradação social como efeitos da degradação ambiental decorrente do modelo atual de desenvolvimento e da cultura do descarte sobre a vida das pessoas. Colocando em tela a insustentabilidade que se constata em muitas cidades do Planeta, o documento pontua como mazelas: a poluição proveniente de emissões tóxicas, os problemas de transporte, a poluição visual e acústica, o excesso de consumo de energia e água, a falta de espaços verdes suficientes associada à privatização dos espaços públicos, em contraponto a locais de especial beleza em áreas seguras e privatizadas. Como componentes sociais da mudança global, que derivam dos efeitos de algumas inovações tecnológicas no âmbito laboral, é destacada: a exclusão social, a desigualdade no fornecimento e consumo da energia e outros serviços, a fragmentação social, o aumento da violência e o aparecimento de novas formas de agressividade social, o narcotráfico e o consumo crescente de drogas entre os mais jovens, associado à perda de identidade. Tais principais evidências demonstram, conforme o documento, que “o crescimento nos últimos dois séculos não significou, em todos os seus aspectos, um verdadeiro progresso integral e uma melhoria da qualidade de vida”. (PAPA FRANCISCO, 2015, P.35) e) Sobre a desigualdade planetária

o esgotamento das reservas pesqueiras prejudica especialmente as pessoas que vivem da pesca artesanal e não possuem qualquer maneira de a substituir, a poluição da água afeta particularmente os mais pobres que não têm possibilidades de comprar água engarrafada, e a elevação do nível do mar afeta principalmente as populações costeiras mais pobres que não têm para onde se transferir. O impacto dos desequilíbrios atuais manifesta-se também na morte prematura de muitos pobres, nos conflitos gerados pela falta de recursos e em muitos outros problemas que não têm espaço suficiente nas agendas mundiais. [(PAPA FRANCISCO, 2015, p.38)]

No mesmo caminho, o documento pontua a enorme desigualdade entre classes (o que parece revelar, na prática, que alguns se sintam mais humanos que outros, como se tivessem nascido com maiores direitos), vez que, enquanto alguns vivem um ambiente de miséria degradante, sem quaisquer possibilidades de melhoria, outros não sabem sequer o que fazer com o

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Realizando uma análise integrada entre a degradação ambiental e a degradação social, o documento prescreve que “não podemos enfrentar adequadamente a degradação ambiental, se não prestarmos atenção às causas que têm a ver com a degradação humana e social”; a partir da principal constatação de que a deterioração do meio ambiente e a da sociedade afetam de modo especial os mais frágeis do Planeta. Como exemplos claros dessa inter-relação, destaca que:

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que têm, ostentando vaidosamente uma suposta superioridade e deixando atrás de si um nível de desperdício tal que seria impossível generalizar sem destruir o Planeta. Diante dessas constatações, o Pontífice traz o inevitável reconhecimento de que “uma verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma abordagem social, que deve integrar a justiça nos debates sobre o meio ambiente, para ouvir tanto o clamor da terra como o clamor dos pobres”. [(PAPA FRANCISCO, 2015, p.39)] Isso obriga, segundo a Carta Papal, a pensar numa ética das relações internacionais; o que releva uma verdadeira dívida ecológica, particularmente entre os países do Norte e os países do Sul, ligada a desequilíbrios comerciais com consequências no âmbito ecológico e com o uso desproporcionado dos recursos naturais efetuado historicamente por alguns países. Nisso se inclui os danos causados pela exportação de resíduos sólidos e líquidos tóxicos para os países em desenvolvimento e pela atividade poluente de empresas que fazem nos países menos desenvolvidos aquilo que não podem fazer nos países que lhes dão o capital. Como resultado, conforme análise do Papa, surgem, muitas vezes, graves danos humanos e ambientais, como: desemprego, aldeias sem vida, esgotamento de reservas naturais, desflorestamento, empobrecimento da agricultura e pecuária local, crateras, colinas devastadas, rios poluídos e qualquer obra social que já não se pode sustentar, quando aquelas empresas se retiram. Nesse contexto, o documento traz a previsibilidade de que o esgotamento de alguns recursos pode contribuir para o surgimento de novas guerras, que causem danos graves ao meio ambiente e à riqueza cultural dos povos; o que se agrava quando se pensa em energia nuclear e armas biológicas. Diante da fragilidade econômica, institucional e tecnológica das regiões e países mais pobres, é necessário, conforme pontua o documento, que os países desenvolvidos contribuam para resolver essa dívida social e ambiental.

No contexto das questões socioambientais levantadas, a Carta Papal suscita alguns aspectos que contribuem decisivamente para a manutenção do quadro de crise socioambiental posto na sociedade contemporânea; como o que denomina fraqueza das reações, onde se insere a fraqueza da reação política internacional (muitas vezes submissa ao setor financeiro e tecnológico). Nessa análise destaca a ausência da cultura necessária para enfrentar a crise socioambiental instalada e a necessidade de construir lideranças que tracem caminhos, procurando dar resposta às necessidades das gerações atuais, considerando os direitos das gerações futuras. Para tanto, julga indispensável: a criação de um sistema normativo que inclua limites invioláveis e assegure a proteção dos ecossistemas, antes que as novas formas de poder derivadas do paradigma tecnoeconômico acabem por arrasá-los não só com a política, mas também com a liberdade

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3 QUESTÕES CORRELACIONADAS

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e a justiça”. [(PAPA FRANCISCO, 2015, p.43)]

Por outro lado, a Encíclica destaca três questões que se colocam absolutamente interligadas: paz, justiça e conservação da criação, que, conforme posto naquele documento, não poderão ser tratadas individualmente. Na análise realizada, tratando sobre o destino comum dos bens, o Pontífice lembra que a tradição cristã nunca reconheceu como absoluto ou intocável o direito à propriedade privada, e salientou a função social de qualquer forma de propriedade privada. Reportando-se à consequências práticas dessa premissa, lembra o que foi explicitado pelos bispos do Paraguai: Cada camponês tem direito natural de possuir um lote razoável de terra, onde possa estabelecer o seu lar, trabalhar para a subsistência da sua família e gozar de segurança existencial. Este direito deve ser de tal forma garantido, que o seu exercício não seja ilusório mas real. Isto significa que, além do título de propriedade, o camponês deve contar com meios de formação técnica, empréstimos, seguros e acesso ao mercado. [(PAPA FRANCISCO, 2015, p.74)]

No que se refere ao meio ambiente, a Encíclica lembra ser o mesmo um bem coletivo, património de toda a Humanidade e responsabilidade de todos; de modo que, aquele que possui uma parte desse bem deve administrá-la em benefício de todos.

Invocando o magistério do Papa João Paulo II, a Laudato Si coloca em pauta a inter-relação entre o cuidado/melhoria do ambiente no Planeta com as mudanças profundas nos estilos de vida, nos modelos de produção e de consumo e nas estruturas consolidadas de poder que regem as sociedades; o que é posto como imprescindível na contemporaneidade. Nesse sentido, propõe que se dê atenção ao paradigma tecnocrático dominante que guia o ser humano e sua ação no mundo. Reconhecendo o enorme poder da tecnologia, traz a preocupação com a falta de uma formação e desenvolvimento humanos para o uso desse poder. Destacando a globalização do paradigma tecnocrático, suscita a atenção para a ideia de crescimento infinito ou ilimitado, que tanto entusiasmou os economistas, os teóricos das finanças e da tecnologia, desconsiderando a fragilidade dos bens naturais. Reconhecendo a não neutralidade dos produtos da técnica e sua influência no condicionamento de estilos de vida, diz que o paradigma tecnocrático tende a exercer seu domínio também sobre a economia e a política; que, postas em função do lucro, desconsideram as consequências negativas para o ser humano. Colocando em pauta o discurso de que a economia e a tecnologia resolverão os problemas ambientais e que os problemas da fome e da miséria no mundo serão resolvidos simplesmente com o crescimento do mercado, diz que o mercado, por si mesmo, não garante o

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4 A CRISE ECOLÓGICA E O COMPORTAMENTO HUMANO

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desenvolvimento humano integral nem a inclusão social. Conforme a Carta Papal, se, por um lado, se tem um “superdesenvolvimento dissipador e consumista”, por outro se constata, de modo inadmissível, “situações de miséria desumanizadora”; que, como destaca, não são enfrentadas de forma eficiente pelas instituições econômicas e programas sociais [(PAPA FRANCISCO, 2015, p.86)]. Ainda na análise do comportamento humano, a fragmentação do saber é posta, pelo Pontífice, como um fator que, de forma frequente, leva a perda do sentido da totalidade, das relações que existem entre as coisas e do horizonte alargado que se necessita para a devida compreensão da vida e do ambiente que a cerca. Nesse contexto, traz à tona sintomas que demostram o equívoco do paradigma dominante que guia a sociedade na contemporaneidade, quais sejam: a degradação ambiental, a ansiedade, a perda do sentido da vida e da convivência social. Nas lúcidas palavras do Papa: A cultura ecológica não se pode reduzir a uma série de respostas urgentes e parciais para os problemas que vão surgindo à volta da degradação ambiental, do esgotamento das reservas naturais e da poluição. Deveria ser um olhar diferente, um pensamento, uma política, um programa educativo, um estilo de vida e uma espiritualidade que oponham resistência ao avanço do paradigma tecnocrático. Caso contrário, até as melhores iniciativas ecologistas podem acabar bloqueadas na mesma lógica globalizada. Buscar apenas um remédio técnico para cada problema ambiental que aparece, é isolar coisas que, na realidade, estão interligadas e esconder os problemas verdadeiros e mais profundos do sistema mundial. (...) Todavia é possível voltar a ampliar o olhar, e a liberdade humana é capaz de limitar a técnica, orientá-la e colocá-la ao serviço doutro tipo de progresso, mais saudável, mais humano, mais social, mais integral. [(PAPA FRANCISCO, 2015, p.87-88)]

Colocando-se diante dessa realidade, a Encíclica suscita a urgência de se avançar numa “corajosa revolução cultural”, que seja capaz de:

Trazendo à análise o que denomina de “crise do antropocentrismo moderno e suas consequências”, e partindo da ideia de que “a crise ecológica é uma expressão ou uma manifestação externa da crise ética, cultural e espiritual da modernidade”, a Encíclica coloca a importância de se curar todas as relações humanas fundamentais, onde se incluem alguns caminhos, como o descarte da cultura do relativismo prático (que reduz as pessoas a objeto) e a exigência de defesa do trabalho (necessidade intrínseca à natureza humana, que faz parte do sentido da vida, do desenvolvimento humano e da realização pessoal) diante de uma economia centrada na busca do progresso tecnológico direcionado à diminuição dos custos de produção e

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abrandar a marcha para olhar a realidade doutra forma, recolher os avanços positivos e sustentáveis e ao mesmo tempo recuperar os valores e os grandes objetivos arrasados por um desenfreamento megalómano. [(PAPA FRANCISCO, 2015, p.89)]

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redução de postos de trabalho.

5 O CAMINHO DA ECOLOGIA INTEGRAL (DIMENSÕES HUMANAS E SOCIAIS)

visão consumista do ser humano, incentivada pelos mecanismos da economia globalizada atual que tende a homogeneizar as culturas e a debilitar a imensa variedade cultural, que é um tesouro da Humanidade. [(PAPA FRANCISCO, 2015, p.110)]

Nesse contexto, o documento coloca a necessidade de, ao invés de se homogeneizar ações e soluções, se ter em conta a complexidade das problemáticas locais, que requerem a participação ativa dos habitantes a partir de suas realidades concretas. Completando a visão da integralidade da ecologia, o Pontífice chama a atenção para a ecologia da vida cotidiana, que se refere aos comportamentos e ações adotadas nos espaços onde as pessoas vivem (considerando que os ambientes onde vivemos influem sobre a nossa

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Buscando caminhos para enfrentamento da crise ecológica da atualidade, a Encíclica suscita uma reflexão sobre os diferentes elementos duma ecologia integral, que inclua claramente as dimensões humanas e sociais. Partindo da concepção da ecologia, como o estudo das relações entre os organismos vivos e o ambiente onde se desenvolvem (numa constante inter-relação), a Encíclica suscita a necessidade de se refletir e discutir sobre as condições de vida e de sobrevivência duma sociedade, colocando em pauta a questão dos modelos de desenvolvimento, produção e consumo. Assim, destacando que não existem duas crises separadas (uma ambiental e outra social), mas uma única e complexa crise socioambiental, o documento coloca a importância de se buscar soluções integrais que considerem as interações dos sistemas naturais entre si e com os sistemas sociais. Nesse sentido, as diretrizes para a solução dessa crise requerem, segundo a Carta, uma abordagem integral para “combater a pobreza, devolver a dignidade aos excluídos e, simultaneamente, cuidar da natureza”. [(PAPA FRANCISCO, 2015, p.108)] Nesse contexto, o documento chama a atenção para uma necessária ecologia econômica, capaz de induzir a considerar a realidade de forma mais ampla, onde a proteção do meio ambiente se constitua parte integrante do processo de desenvolvimento, não sendo considerada de forma isolada. Na mesma análise, destaca a importância da ecologia social, que traz a ideia de que o estado de saúde das instituições sociais (desde à família à comunidade internacional) tem consequências no ambiente e na qualidade de vida humana. Como mais um aspecto da integralidade da ecologia, tem-se, nos termos da Carta Papal, a necessidade de proteção do patrimônio histórico, artístico e cultural, que traz como essência a necessidade de se salvaguardar as identidades culturais originais das comunidades e o cuidado com as riquezas culturais da Humanidade, no seu sentido mais amplo; o que traduz a essência de uma ecologia cultural, que deve se colocar em contraposição à:

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maneira de ver a vida, sentir e agir). Segundo o documento: Dada a relação entre os espaços urbanizados e o comportamento humano, aqueles que projetam edifícios, bairros, espaços públicos e cidades precisam da contribuição dos vários saberes que permitem compreender os processos, o simbolismo e os comportamentos das pessoas. Não é suficiente a busca da beleza no projeto, porque tem ainda mais valor servir outro tipo de beleza: a qualidade de vida das pessoas, a sua harmonia com o ambiente, o encontro e ajuda mútua. Por isso também, é tão importante que o ponto de vista dos habitantes do lugar contribua sempre para a análise da planificação urbanista. [(PAPA FRANCISCO, 2015, p.116)]

A partir dessa compreensão, o Pontífice considera a necessidade de cuidar dos espaços comuns, dos marcos visuais e das estruturas urbanas que melhoram o sentido de pertencimento, a sensação de enraizamento, o sentimento de “estar em casa dentro da cidade que nos envolve e une” (PAPA FRANCISCO, 2015, p.117); destacando que

Nesse contexto, a Encíclica considera como questão central da ecologia humana, o grave problema de falta de habitação que se verifica em muitas partes do mundo, destacando a importância da propriedade da casa para a dignidade das pessoas e o desenvolvimento das famílias. Sobre esse tema, diz o Papa que “se num lugar concreto já se desenvolveram aglomerados caóticos de casas precárias, trata-se primariamente de urbanizar estes bairros, não de erradicar e expulsar os habitantes” (PAPA FRANCISCO, 2015, p.118); o que demonstra sua sensibilidade para o grave problema das frequentes remoções de comunidades situadas em áreas precárias em várias partes do mundo. Nessa mesma análise aponta, ainda, para a necessária criatividade de se integrar bairros precários numa cidade acolhedora, possibilitando o convívio e a integração dos diferentes (o que considera um novo fator de progresso). Compondo seu magistral pensamento sobre a ecologia da vida cotidiana, o Pontífice ainda destaca a questão do transporte nos centros urbanos e necessidade de se dar prioridade ao transporte público e sua imprescindível melhoria e, no ambiente rural, a necessidade de enfrentamento da situação de abandono e desleixo que sofrem alguns habitantes das áreas rurais, onde não chegam os serviços essenciais e onde existem trabalhadores reduzidos a situações de escravidão. Fica claro, no texto, a relação dessas questões à dignidade da pessoa humana. Arrematando sua compreensão sobre a ecologia integral, o Pontífice considera a interconexão da mesma com a noção de bem comum; princípio que entende desempenhar um papel central e unificador na ética social e que pode ser compreendido como “o conjunto das condições da vida social que permitem, tanto aos grupos como a cada membro, alcançar mais plena e facilmente a própria perfeição”. [(PAPA FRANCISCO, 2015, p.121)] Nesse contexto, o Pontífice diz que o bem comum “pressupõe o respeito pela pessoa

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toda a intervenção na paisagem urbana ou rural deveria considerar que os diferentes elementos do lugar formam um todo, sentido pelos habitantes como um contexto coerente com a sua riqueza de significados. [(PAPA FRANCISCO, 2015, p.117)]

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humana enquanto tal, com direitos fundamentais e inalienáveis orientados para o seu desenvolvimento integral”; além de exigir “dispositivos de bem-estar e segurança social e o desenvolvimento dos vários grupos intermédios, aplicando o princípio da subsidiariedade”. [(PAPA FRANCISCO, 2015, p.121)] Considerando o quadro de desigualdade social verificado na sociedade mundial atual, onde se constata uma privação progressiva de acesso a direitos humanos fundamentais, o documento destaca que “o princípio do bem comum torna-se imediatamente, como consequência lógica e inevitável, um apelo à solidariedade e uma opção preferencial pelos mais pobres”. [(PAPA FRANCISCO, 2015, p.121-122)] Diante dessa profunda reflexão, o documento conclama à prática da justiça intergeracional que, além de albergar a capacidade para pensar seriamente nas futuras gerações, suscita a necessidade de alargar o horizonte das nossas preocupações, pensando naqueles que, na atualidade, permanecem excluídos do desenvolvimento. Assim, como se encontra consignado na Encíclica, “para além de uma leal solidariedade entre as gerações, há que reafirmar a urgente necessidade moral de uma renovada solidariedade entre os indivíduos da mesma geração”. [(PAPA FRANCISCO, 2015, p.125)]

6 PERCURSO PARA O DIÁLOGO

Para enfrentar os problemas de fundo, que não se podem resolver com ações de países isolados, torna-se indispensável um consenso mundial que leve, por exemplo, a programar uma agricultura sustentável e diversificada, desenvolver formas de energia renováveis e pouco poluidoras, fomentar uma maior eficiência energética, promover uma gestão mais adequada dos recursos florestais e marinhos, garantir a todos o acesso à água potável. (..) Sabemos que a tecnologia baseada nos combustíveis fósseis – altamente poluentes, sobretudo o carvão mas também o petróleo e, em menor medida, o gás – deve ser, progressivamente e sem demora, substituída. [(PAPA FRANCISCO, 2015, p.128)]

Destacando o fato de que, nas últimas décadas, as questões ambientais deram origem a um amplo debate público, que fez crescer importantes espaços de compromisso e dedicação também no âmbito da sociedade civil, a Carta Papal registra a lentidão da política e da indústria para enfrentamento de tais desafios. Consignando o importante papel do movimento ecológico mundial, o documento deixa claro que:

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A partir de toda a análise desenvolvida, o documento se propõe a delinear grandes percursos de diálogo para enfrentamento do quadro de autodestruição que envolve a sociedade contemporânea. Nesse sentido, propõe algumas linhas de orientação e ação. Em um primeiro momento coloca em pauta a imprescindibilidade de um diálogo sobre o meio ambiente na política internacional. Diz o documento:

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Nesse tema chama a atenção para o conteúdo de Declarações advindas da Conferência de Estocolmo (1972)2 e da Conferência do Rio (1992)3 sobre meio ambiente; dentre as quais: a obrigação de quem contaminar assumir economicamente os custos derivados; o dever de se avaliar o impacto ambiental de toda e qualquer obra ou projeto; o compromisso de se estabilizar as concentrações de gases de efeito estufa na atmosfera para inverter a tendência do aquecimento global; uma agenda com um programa de ação e uma convenção sobre biodiversidade e a declaração sobre princípios em matéria florestal. Contudo, registra que os acordos internacionais celebrados naqueles encontros tiveram um baixo nível de implementação, porque não se estabeleceram adequados mecanismos de controle, revisão periódica e sanção das violações; continuando, os princípios ali enunciados, a requererem caminhos eficazes e ágeis de realização prática. O documento não deixa, entretanto, de reconhecer as experiências positivas derivadas dos debates internacionais sobre o meio ambiente, como a Convenção de Basileia sobre os resíduos perigosos; a Convenção sobre o comércio internacional das espécies da fauna e da flora selvagens ameaçadas de extinção e a Convenção de Viena para a proteção da camada de ozônio e sua respectiva implementação através do Protocolo de Montreal. Porém, o mesmo pontua que, no cuidado com a biodiversidade, com a desertificação e com o combate às mudanças climáticas, os avanços foram muito menos significativos. Dedicando-se atenção especial à questão das mudanças climáticas, que abrange o tema da redução de gases de efeito estufa, o documento papal destaca a necessária honestidade, coragem e responsabilidade que são requeridas, sobretudo dos países mais poderosos e mais poluentes. Cita, nesse aspecto, a Conferência das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável, denominada Rio+204, onde foi emitida uma Declaração final, que considera extensa mas ineficaz e diz que “as negociações internacionais não podem avançar significativamente por causa das posições dos países que privilegiam os seus interesses nacionais sobre o bem comum global” [(PAPA FRANCISCO, 2015, p.131)]. Continuando na análise desse tema, o Pontífice destaca que, para diminuição de emissão de gases poluentes, algumas estratégias indicam a internacionalização dos custos ambientais, com o perigo de impor aos países de menores recursos, pesados compromissos de redução de emissões comparáveis aos dos países mais industrializados. Segundo o documento, a impo2  Como foi popularmente denominada a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, realizada na cidade de Estocolmo, na Suécia, em 1972. 3  Denominação dada à Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, também denominada Cúpula da Terra, realizada no Rio de Janeiro, em 1992. 4  Tal Conferência, realizada pelas Organizações das Nações Unidas – ONU, no Rio de Janeiro, no ano de 2012, se coloca como o marco mais atual do debate internacional sobre a problemática socioambiental contemporânea.

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as cimeiras mundiais sobre o meio ambiente dos últimos anos não corresponderam às expectativas, porque não alcançaram, por falta de decisão política, acordos ambientais globais realmente significativos e eficazes. [(PAPA FRANCISCO, 2015, p.129)]

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sição destas medidas penaliza os países mais necessitados de desenvolvimento; trazendo “uma nova injustiça sob a capa do cuidado do meio ambiente”. Nesse contexto, lembra da concepção das responsabilidades comuns, porém diferenciadas, considerando que, como disseram os bispos da Bolívia, os países que foram beneficiados por um alto grau de industrialização, à custa duma enorme emissão de gases com efeito de estufa, têm maior responsabilidade em contribuir para a solução dos problemas que causaram,. [(PAPA FRANCISCO, 2015, p.132)]

indispensável a maturação de instituições internacionais mais fortes e eficazmente organizadas, com autoridades designadas de maneira imparcial por meio de acordos entre os governos nacionais e dotadas de poder de sancionar. [(PAPA FRANCISCO, 2015, p.134)]

Percorrendo o caminho para o diálogo, o documento considera necessário que o mesmo se faça também no âmbito das políticas nacionais e locais. Entendendo que as questões relacionadas com o meio ambiente e com o desenvolvimento econômico também exigem atenção a essas políticas (nacionais e locais), são colocadas como funções inadiáveis de cada Estado o planejamento, a coordenação, o controle e o sancionamento dentro do respectivo território; o que implica numa regulação através do Direito, que estabelece as regras para as condutas per-

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Tratando da estratégia de compra-venda de “créditos de emissão”, o Papa considera a possibilidade de ocorrer uma nova forma de especulação; que, como argumenta, não ajuda a reduzir a emissão global de gases poluentes, nem implica na mudança radical que se necessita; mas, ao contrário, pode permitir o sustento do consumo excessivo de alguns países e setores. Nos termos postos no documento, no âmbito dos países pobres, as prioridades devem ser a erradicação da miséria e o desenvolvimento social dos seus habitantes; paralelamente ao enfrentamento do “nível escandaloso” de consumo de alguns setores privilegiados da população, à melhoria do combate à corrupção e ao desenvolvimento de formas menos poluentes de produção de energia (devendo, para isso, contar com a ajuda dos países que cresceram muito à custa da atual poluição do Planeta). Nesse contexto, destaca, ainda, a prática de descarte de resíduos e instalação de indústrias altamente poluentes em países de maior fragilidade institucional e o problema crescente dos resíduos marinhos e da proteção das áreas marinhas. E considera que urgem acordos internacionais que se cumpram (dada a escassa capacidade das instâncias locais para intervirem de maneira eficaz) e que estabeleçam regime de governança para toda a gama dos chamados bens comuns globais. Colocando em pauta que, no século XXI, se assiste uma perda de poder dos Estados nacionais - sobretudo porque a dimensão econômico-financeira, de carácter transnacional, tende a prevalecer sobre a política – considera:

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mitidas à luz do bem comum. Conforme as palavras do Papa:

Assim, nos termos postos no documento, uma estrutura política e institucional deve incentivar as boas práticas, estimular a criatividade que busca novos caminhos, facilitar as iniciativas pessoais e coletivas em âmbito local; enfrentando os desafios de agir, a partir de grandes princípios da agenda ambiental, pensando no bem comum a longo prazo, sem sucumbir a interesses eleitoreiros. Considerando a insuficiência de atendimento às regras jurídicas, muitas vezes devido à corrupção, entende o Papa que se requer a ação incisiva da população, através de organismos e associações não governamentais, compelindo os governos a desenvolverem normativas, procedimentos e controles mais rigorosos. Desse modo, o controle do poder político (nacional, regional e municipal) pelos cidadãos, segundo o Pontífice, é condição para se combater os danos ambientais. Ademais, no seu pensar, “as legislações municipais podem ser mais eficazes se houver acordos entre populações vizinhas para sustentarem as mesmas políticas ambientais”. [(PAPA FRANCISCO, 2015, p.138)] Afirmando que não se pode pensar em receitas uniformes, já que há problemas e limites específicos de cada país ou região, o Pontífice destaca que, a nível nacional e local sempre haverá muito o que fazer; utilizando-se medidas e tecnologias voltadas, por exemplo, à poupança energética, ao favorecimento de modalidades de produção industrial com a máxima eficiência energética e menor utilização de matérias-primas e à retirada do mercado de produtos pouco eficazes (do ponto de vista energético) ou mais poluentes. Além disso, o Pontífice considera indicada: uma boa gestão dos transportes ou técnicas de construção e restruturação de edifícios que reduzam o seu consumo energético e o seu nível de poluição; uma ação política local orientada para a alteração do modo de consumo; o desenvolvimento de uma economia de resíduos e reciclagem, para a proteção de determinadas espécies e a programação de uma agricultura diversificada com a rotação de culturas; a melhoria agrícola de regiões pobres, através de investimentos em infraestruturas rurais; a facilitação de formas de cooperação ou de organização comunitária que defendam os interesses dos pequenos produtores e salvaguardem da predação os ecossistemas locais, além de outras medidas e ações voltadas à sustentabilidade. Contudo, o documento destaca indispensável o elemento da continuidade, vez que, como destaca, não se podem modificar as políticas relativas às alterações climáticas e a proteção ambiental todas as vezes que muda um governo. Nesse sentido, coloca a importância da pressão da população e das instituições.

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Os limites que uma sociedade sã, madura e soberana deve impor têm a ver com previsão e precaução, regulamentações adequadas, vigilância sobre a aplicação das normas, contraste da corrupção, ações de controle operacional sobre o aparecimento de efeitos não desejados dos processos de produção, e oportuna intervenção perante riscos incertos ou potenciais. [(PAPA FRANCISCO, 2015, p.136)]

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No caminho do enfrentamento da questão socioambiental o Papa ainda propõe o diálogo e transparência nos processos decisórios. Nesse percurso suscita importantes considerações, dentre as quais: a) importância de previsão de impacto ambiental dos empreendimentos e projetos5 através de processos políticos transparentes e sujeitos a diálogo; elaborado de forma interdisciplinar, transparente e independente de qualquer pressão económica ou política e unido à análise das condições de trabalho e dos possíveis efeitos na saúde física e mental das pessoas, na economia local e na segurança; b) a necessidade de se obter consensos entre os vários atores sociais no âmbito de iniciativas econômicas com potencial poluidor; o que possibilita se colocar em pauta diferentes perspectivas, soluções e alternativas, dando-se prioridade aos moradores locais; c) o abandono da ideia de “intervenções” sobre o meio ambiente, para dar lugar a políticas pensadas e debatidas por todas as partes interessadas; d) a compreensão que a participação (requerida) da sociedade não se reduza à decisão inicial sobre um projeto, mas implique também em ações de controle ou monitoramento constante; e) a sinceridade e verdade nas discussões científicas e políticas, sem se limitar a considerar o que é permitido ou não pela legislação. Na mesma linha do diálogo e transparência, o documento destaca a necessidade de que, em se tratando de eventuais riscos para o meio ambiente que possam afetar o bem comum presente e futuro, “as decisões sejam baseadas num confronto entre riscos e benefícios previsíveis para cada opção alternativa possível” (PAPA FRANCISCO, 2015, p.141); o que, conforme o Pontífice, vale sobretudo

Considerando a cultura consumista, que dá prioridade ao curto prazo e aos interesses privados, o Papa alerta para a possibilidade de ocorrerem análises demasiado rápidas ou a ocultação de informação no estudo de empreendimentos e iniciativas econômicas que possam ocasionar dano ao ambiente. Nesse sentido, preleciona: Em qualquer discussão sobre um empreendimento, dever-se-ia pôr uma série de perguntas, para poder discernir se o mesmo levará a um desenvolvimento verdadeiramente integral: Para que fim? Por qual motivo? Onde? Quando? De

5  O Pontífice destaca que um estudo de impacto ambiental não deveria ser posterior à elaboração de um projeto produtivo ou de qualquer política, plano ou programa.

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quando um projeto pode causar um incremento na exploração dos recursos naturais, nas emissões ou descargas, na produção de resíduos, ou então uma mudança significativa na paisagem, no habitat de espécies protegidas ou num espaço público. [(PAPA FRANCISCO, 2015, p.142)]

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que maneira? A quem ajuda? Quais são os riscos? A que preço? Quem paga as despesas e como o fará? Neste exame, há questões que devem ter prioridade. Por exemplo, sabemos que a água é um recurso escasso e indispensável, sendo um direito fundamental que condiciona o exercício doutros direitos humanos. Isto está, sem dúvida, acima de toda a análise de impacto ambiental duma região. [(PAPA FRANCISCO, 2015, p.142)]

Nesse contexto traz à tona o princípio da precaução, objeto da Declaração do Rio de 19926, considerando que o mesmo permite a proteção dos mais fracos (que dispõem de poucos meios para se defender) e a suspensão e modificação de um projeto que possa causar dano grave e irreversível ainda que não haja uma comprovação indiscutível Na mesma análise, destaca a regra da inversão do ónus da prova, que tem como essência a necessidade de haver, por parte daquele que deseja realizar uma atividade ou instalar um empreendimento potencial ou efetivamente poluidor, a demonstração objetiva e contundente de que a atividade ou empreendimento proposto não vai gerar danos graves ao meio ambiente ou às pessoas que nele habitam. Encerrando a análise a respeito do percurso para uma mudança do quadro de insustentabilidade socioambiental posto na sociedade atual, o Papa diz que a política e economia, em diálogo, devem se voltar à plenitude humana (PAPA FRANCISCO, 2015, p.144). Nesse sentido, preleciona que “a política não deve submeter-se à economia, e esta não deve submeter-se aos ditames e ao paradigma eficientista da tecnocracia”. (PAPA FRANCISCO, 2015, p.144). Lembra, nessa análise, que:

Trazendo à tona as crises financeiras dos anos 2007 e 2008, diz, o Pontífice, que ali se colocava o momento para o desenvolvimento de uma nova economia, mais atenta aos princípios éticos e a uma nova regulamentação da atividade financeira especulativa e da riqueza virtual; o que não ocorreu pois, segundo o mesmo, não houve uma reação que fizesse repensar os critérios obsoletos que continuam a governar o mundo. Aduzindo a irracionalidade que muitas vezes ocorre no setor produtivo, o Papa considera que não se enfrenta, com energia, o problema da economia real, aquela que torna possível, por exemplo, que se diversifique e melhore a produção, que as empresas funcionem adequadamente, que as pequenas e médias empresas se desenvolvam e criem postos de trabalho. [(PAPA FRANCISCO, 2015, p.147)]

6  Segundo o qual “quando existem ameaças de danos graves ou irreversíveis, a falta de certezas científicas absolutas não poderá constituir um motivo para adiar a adopção de medidas eficazes”. [(PAPA FRANCISCO, 2015, p.142-143)].

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a salvação dos bancos a todo o custo, fazendo pagar o preço à população, sem a firme decisão de rever e reformar o sistema inteiro, reafirma um domínio absoluto da finança que não tem futuro e só poderá gerar novas crises depois duma longa, custosa e aparente cura. [(PAPA FRANCISCO, 2015, p.144)]

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Nessa análise, a Carta Papal convida todos ao convencimento de que reduzir um determinado ritmo de produção e consumo, pode dar lugar a outra modalidade de progresso e desenvolvimento. E que os esforços para um uso sustentável dos recursos naturais não podem se considerados gasto inútil, mas um investimento que poderá proporcionar outros benefícios económicos a médio prazo. Nesse caminho, diz, o Pontífice, que se trata de abrir caminho a oportunidades diferentes, o que não implica em limitar a criatividade humana nem o seu sonho de progresso, mas em orientar esta energia por novos canais e novas formas de desenvolvimento sustentável e equitativo. Devendo-se, inclusive, aceitar um certo decréscimo do consumo em algumas partes do mundo, com o fornecimento de recursos para que se possa crescer de forma saudável noutras partes. Nesse aspecto, o Papa Francisco enfatiza não ser suficiente conciliar, a meio termo, o cuidado da natureza com o ganho financeiro, ou a preservação do meio ambiente com o progresso; vez que os meios-termos, nesse campo, são apenas um pequeno adiamento do colapso. Em suas precisas palavras:

Diante dessa análise, considera uma distorção conceitual o princípio da maximização do lucro que tende a ignorar os custos sociais e ambientais7 desde que se aumente a produção. Diz, assim, que só se poderia considerar ético um comportamento em que os custos económicos e sociais derivados do uso dos recursos ambientais comuns fossem reconhecidos de maneira transparente e plenamente suportados por quem deles usufrui e não por outras populações nem pelas gerações futuras. Indagando o lugar da política, e considerando que a própria política é muitas vezes responsável pelo seu próprio descrédito (devido à corrupção e à falta de boas políticas públicas), o Papa diz que precisamos de uma política “que pense com visão ampla e leve por diante uma reformulação integral, abrangendo num diálogo interdisciplinar os vários aspectos da crise” (PAPA FRANCISCO, 2015, p.150-151); não deixando espaço para que alguns grupos econômicos se apropriem do poder do Estado, se apresentando como benfeitores8. Nesse sentido, diz que 7

Como a derrubada de uma floresta, a desertificação de um território, a destruição da biodiversidade ou o aumento da poluição.

8  Inclusive sentindo-se autorizados a não observar certas normas até se chegar às diferentes formas de criminalidade organizada, tráfico de pessoas, narcotráfico e violência, todas muito difícil de erradicar, segundo o Papa.

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Trata-se simplesmente de redefinir o progresso. Um desenvolvimento tecnológico e económico, que não deixa um mundo melhor e uma qualidade de vida integralmente superior, não se pode considerar progresso. Além disso, muitas vezes a qualidade real de vida das pessoas diminui – pela deterioração do ambiente, a baixa qualidade dos produtos alimentares ou o esgotamento de alguns recursos – no contexto dum crescimento da economia. Então, muitas vezes, o discurso do crescimento sustentável torna-se um diversivo e um meio de justificação que absorve valores do discurso ecologista dentro da lógica da finança e da tecnocracia, e a responsabilidade social e ambiental das empresas reduz-se, na maior parte dos casos, a uma série de ações de publicidade e imagem. [(PAPA FRANCISCO, 2015, p.148-149)]

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uma estratégia de mudança real exige repensar a totalidade dos processos, pois não basta incluir considerações ecológicas superficiais enquanto não se puser em discussão a lógica subjacente à cultura atual”. [(PAPA FRANCISCO, 2015, p.151)]

Considerando que uma política sã deveria ser capaz de assumir esse desafio, e suscitando a necessidade de um diálogo das religiões com as ciências, preleciona, o Pontífice, que a gravidade da crise na qual a sociedade se encontra nos obriga, a todos, a pensar no bem comum, prosseguindo pelo caminho do diálogo.

Diante de toda a aprofundada reflexão realizada, o Pontífice considera que, em que pese a necessidade de muitas mudanças na sociedade, a maior delas deve ocorrer no âmbito da humanidade, na consciência dos homens e mulheres que habitam o Planeta. Uma consciência basilar, em suas palavras, permitiria o desenvolvimento de novas convicções, atitudes de estilos de vida. Conforme Francisco, “surge, assim, um grande desafio cultural, espiritual e educativo que implicará longos processos de regeneração”. (PAPA FRANCISCO, 2015, p.155). Nesse sentido, o documento aponta para alguns caminhos, que passam a ser pontuados9. 1. A busca por um novo estilo de vida, que seja capaz de resistir ao condicionalismo psicológico e social que é imposto pelo mercado de consumo e onde os consumidores possam exercer sua responsabilidade social. 2. Uma nova educação ambiental, onde se inclua uma crítica aos “mitos” da modernidade baseados na razão instrumental (individualismo, progresso ilimitado, concorrência, consumismo, mercado sem regras) e venha a recuperar “os distintos níveis de equilíbrio ecológico: o interior consigo mesmo, o solidário com os outros, o natural com todos os seres vivos, o espiritual com Deus” (PAPA FRANCISCO, 2015, p.160). Nas palavras de Francisco, essa nova educação na responsabilidade ambiental pode incentivar vários comportamentos e hábitos diários, que terão incidência direta e importante no cuidado do meio ambiente. Uma educação onde seja difundido um novo modelo relativo ao ser humano, à vida, à sociedade e à relação com a natureza, em contraposição ao modelo consumista, transmitido pelos meios de comunicação social e através dos mecanismos eficazes do mercado. 3. Uma conversão ecológica (no sentido dinâmico de uma mudança duradoura), que, além de individual, se faça em âmbito comunitário. Para tanto, o Pontífice traz várias convicções da fé cristã e lembra do exemplo de São Francisco de Assis. 4. Alegria e paz, refletidas no retorno à simplicidade que, como lembra o Papa, per-

9  No documento ainda se encontram itens que expressam a fé cristã e que, em razão da natureza deste texto, não serão trazidos à colação. São eles: sinais sacramentais e descanso celebrativo; a Trindade e a relação entre as criaturas; a Rainha de toda a criação; para além do sol e Oração pela nossa Terra.

FIDES, Natal, v.6 , n. 2, jul./dez. 2015.

7 POR UMA MUDANÇA INDIVIDUAL E COLETIVA

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mite saborear pequenas coisas, agradecer pelo que se tem (sem apego) e o não lamento por aquilo que não se possui. Uma vida simples, onde se encontre prazer e felicidade em coisas simples, que não se relacionem ao consumo. Uma integridade da vida humana, onde a humildade, a sobriedade feliz e a paz e harmonia interna estejam sempre presentes. 5. Uma fraternidade universal, que se expressa no amor civil e político, na responsabilidade para com os outros e o mundo, em atitudes de bondade e honestidade. O amor social (nos planos político, económico, cultural) seria a chave do desenvolvimento autêntico e uma norma constante e suprema do agir, nos impulsionando a pensar em grandes estratégias que detenham eficazmente a degradação ambiental e incentivem uma cultura do cuidado que permeie toda a sociedade. Nesse contexto, o Papa destaca as ações comunitárias e de associações que intervêm em prol do bem comum, defendendo o meio ambiente natural e urbano e que buscam a construção de um mundo melhor.

Chegando ao final da exposição sobre (o que consideramos) os principais aspectos da Encíclica Laudato Si, que expressam a riqueza teórico-prática do documento, e nos permite compreender as principais questões que perpassam a crise socioambiental na sociedade contemporânea, entendemos que estão postos os caminhos que se colocam para o seu enfrentamento. Ciente de que tais caminhos se encontram inseridos em uma complexa realidade, pensamos que da análise realizada através daquela Carta é possível se evidenciar o papel de cada um dos atores sociais, em âmbito local, regional, nacional ou internacional no sentido de buscar a mudança do quadro de insustentabilidade socioambiental posto. É de se reconhecer que, ainda que expressando a orientação de uma religião especifica, o documento analisado possui enorme visibilidade mundial, especialmente considerando a importância do Papa Francisco, que, embora a frente de uma Igreja (Católica), vem se revelando um grande líder mundial; o que indica a concreta possibilidade de ser suscitado, em âmbito global, uma reflexão profunda sobre suas ideias expostas naquele documento. Posto, na Laudato Si, um novo, necessário e aprofundado olhar sobre a crise socioambiental posta na sociedade contemporânea, no cerne da qual todos estamos inseridos, pensamos que, diante das reflexões ali suscitadas, cabe-nos, como acadêmicos e, principalmente, como habitantes do Planeta no século XXI, trazê-las para o nosso cotidiano e ações diárias, de modo a contribuir com a mudança que se deseja ver no mundo, no caminho que já nos foi ensinado por Mahatma Gandhi.

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8 CONSIDERAÇÕES FINAIS

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REFERÊNCIAS PAPA FRANCISCO. Carta Encíclica Laudato Si sobre o Cuidado da Casa Comum: Roma. 2015. Disponível em: http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/ papa-francesco_20150524_enciclica-laudato-si.html. Acesso em 12 set.

FIDES, Natal, v.6 , n. 2, jul./dez. 2015.

Agência Ecclesia. Laudato si: Papa ajuda a entender interdependência entre «ecologia» e «pobreza». Agência Ecclesia. Portugal, 11 set. 2015. Disponível em: http://www.agencia. ecclesia.pt/noticias/nacional/laudato-si-papa-ajuda-a-entender-interdependencia-entreecologia-e-pobreza/. Acesso em 20 set. 2015

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ATIVIDADE CURRICULAR EM COMUNIDADE E SOCIEDADE (ACCS) E OS POVOS TRADICIONAIS: EXPERIÊNCIA DE CAMPO DO CURSO DE DIREITO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA Júlio César de Sá da Rocha*

RESUMO: Este trabalho busca refletir sobre a experiência da Ação Curricular em Comunidade e em Sociedade (ACCS) “História do Direito, meio ambiente e comunidades tradicionais: historicidade e afirmação de direitos” no Curso de Direito da Universidade Federal da Bahia. De outra forma, suscita como problematização a reflexão como e em que medida atividade de extensão pode romper com a construção dogmática hegemônica nos cursos jurídicos, baseada no “direito dos códigos” ao invés do “direito concreto, das ruas, da sociedade, dos grupos vulneráveis”. A ACCS “História do Direito, Meio Ambiente e Comunidades Tradicionais: Historicidade e Afirmação de Direitos” objetiva a implementação do ensino, da pesquisa e extensão, por meio da análise teórica e prática dos conflitos jurídicos que envolvem os povos e comunidades tradicionais e o consequente mapeamento dos danos gerados a estas comunidades, com diálogos com o direito ambiental, geografia e antropologia. A metodologia da pesquisa-ação e da abordagem etnográfica são utilizadas nas atividades de campo do curso de direito da Universidade Federal da Bahia. Palavras-chave: Direito. Extensão. Povos e comunidades tradicionais.

* Vice-Diretor da FDUFBA. Professor Adjunto III da UFBA. Professor Adjunto B da UNEB (Campus XIX). Mestre e Doutor em Direito pela PUC São Paulo. Pós-Doutor em Antropologia pela FFCH UFBA. Professor coordenador da ACCS “História do Direito, meio ambiente e comunidades tradicionais: historicidade e afirmação de direitos”. Coordenador do Grupo de Pesquisa Historicidade do Estado e do Direito (CNPq). Do Mestrado em Ecologia Humana e Gestão Socioambiental (UNEB), do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFBA (Mestrado e Doutorado) e do Mestrado Profissional em Segurança Pública, Justiça e Cidadania (UFBA). ** Graduanda em Ciências Sociais pela UFBA. Bacharela Interdisciplinar em Humanidades com concentração em Relações Internacionais pela UFBA e Bacharela em Direito pela FABAC (Faculdade Baiana de Ciências). Bolsista-Monitora da ACCS “História do Direito, meio ambiente e comunidades tradicionais: historicidade e afirmação de direitos”.

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Roberta Nascimento da Silva**

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1 INTRODUÇÃO: A EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA E A UFBA

PE. Com a aprovação da Resolução pelo Conselho Superior de Ensino, Pesquisa e Extensão da Universidade Federal da Bahia, o aproveitamento da Ação Curricular em Comunidade e em Sociedade (ACCS) para integralização curricular dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação da UFBA foi regulamentado como requisito obrigatório nos currículos. Este trabalho busca refletir sobre a experiência da Ação Curricular em Comunidade e em Sociedade (ACCS) ”História do Direito, meio ambiente e comunidades tradicionais: historicidade e afirmação de direitos” no Curso de Direito da Universidade Federal da Bahia. De outra forma, suscita como problematização a reflexão como e em que medida atividade de extensão pode romper com a construção dogmática hegemônica nos cursos jurídicos, baseada no “direito dos códigos” ao invés do “direito concreto, das ruas, da sociedade, dos grupos vulneráveis”. A hipótese formulada é que extensão universitária como produto da ACC, atividade inserida nos currículos da graduação da UFBA, possibilitou que o Curso de Direito pudesse ser influenciado por práticas diferenciadas de caráter extensionista, crítica e emancipatório.

2 O DIREITO VAI EM BUSCA DA COMUNIDADE E A ACCS HISTÓRIA DO DIREITO, DIREITO AMBIENTAL E POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS

1  UFBA. Proext divulga resultados do Edital ACC 2011.2. UFBA, Bahia, 20 jun. 2011. Disponível em: <https://www.ufba.br/noticias/ proext-divulga-resultados-do-edital-acc-20112>. Acesso em: 10 set. 2015.

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O conceito de extensão universitária definido pelo Fórum Nacional de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras (1987) permite a afirmação da extensão como “processo educativo, cultural e científico que articula o ensino e a pesquisa de forma indissociável e viabiliza a relação transformadora entre Universidade e Sociedade, conforme indica o Plano Nacional de extensão Universitária”1. A atividade de extensão pode ser compreendida como caminho único de prestação de serviço à comunidade ou como caminho recíproco (duplo) de interação entre universidade e comunidade. A extensão universitária a partir da primeira experiência do projeto UFBA em Campo possibilitou a acumulação de experiência da relação com comunidades e nasce em 1987, como proposta da Pró-Reitoria de Extensão da UFBA, que resultou como produto a ACC, atividade inserida nos currículos da graduação da UFBA em 2001. A Ação Curricular em Comunidade e em Sociedade (ACCS) é componente curricular, modalidade disciplina, de cursos de Graduação e de Pós-Graduação, com carga horária mínima de dezessete horas semestrais, em que estudantes e professores da UFBA, em uma relação com grupos da sociedade, desenvolvem ações de extensão no âmbito da criação, tecnologia e inovação. A atuação promove o intercâmbio, a reelaboração e a produção de conhecimento sobre a realidade com perspectiva de transformação, conforme indica a Resolução nº 01/2013 do CONSE-

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[...] a extensão também é uma construção ou (re)construção de conhecimento,

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A atividade de extensão na Faculdade de Direito da UFBA não é algo novo, ela remonta a antiga Faculdade Livre de Direito da Bahia, criada em 1891, integrada à Universidade da Bahia em 1946 e federalizada em 1956. Da análise de documentos históricos contidos no Memorial da Faculdade, observa-se atividade de campo desde o início do século passado. É extremamente interessante o registro de aula na “Ilha de Itaparica” da disciplina Economia Política com alunos e alunas da Faculdade em 1912. Na primeira década do século passado pode ser registrada a participação de estudantes em peças teatrais, como a “Viúva Alegre” no cineteatro Politeama. Nas décadas de 20 e 30 existem registros da continuidade das ações culturais fora das dependências da Faculdade de Direito. Outro exemplo da atividade de extensão da FDUFBA é o Serviço de Assessoria Jurídica, o SAJU, criado por estudantes da Faculdade de Direito há mais de 50 anos, possui larga experiência em diálogos com setores sociais diversos, compreendendo a assessoria jurídica e a assistência judiciária individual. Cabe registrar que na década de 60, a Faculdade de Direito representava local de referência para segmentos da cultura e intelectualidade, denominada “Era Edgar Santos” (Reitor da Universidade Federal da Bahia), contando entre seus alunos nomes como Glauber Rocha, João Ubaldo Ribeiro e Raul Seixas. A participação dos estudantes em atividades extensionistas é destacada, como a produção cultural e debates da Revista Ângulos, destaque na Bahia. Na contemporaneidade, cabe registro das atividades do UFBA em Campo e a participação de estudantes de direito de caráter de extensão. A primeira Atividade Curricular em Comunidade da Faculdade de Direito foi coordenada pelo professor Heron Santana Gordilho, com trabalho na temática do “Direito Animal”, em 2009. Por sua vez, em 2011 foi iniciada a ACC “História do Direito, meio ambiente e comunidades tradicionais: historicidade e afirmação de direitos”, coordenada pelo autor. A atividade foi proposta com o objetivo de realizar analise sobre os direitos dos povos e comunidades tradicionais, através da identificação e mapeamento de conflitos ambientais, relacionados às demandas coletivas dos grupos vulneráveis no Estado da Bahia, em especial povos Indígenas, de Remanescentes de Quilombos, Marisqueiras e Pescadores, Povo de Santo e Povos do Campo (A PROEXT avaliou 29 propostas que se submeteram ao Edital ACC 2011.2). A metodologia aplicada está baseada no diálogo entre práxis e teoria, com articulação da pesquisa-ação e da abordagem etnográfica, combinando aportes teóricos do direito, da história do direito, antropologia, sociologia e geografia com mapeamento de conflito socioambiental A experiência pedagógica tem levado a (o) discente a vivências de convívio social, onde o mesmo busca fazer uma correlação com os aportes teóricos sugeridos na referência bibliográfica, nos debates em sala de aula desta atividade de ensino/extensão e na visita de campo como momento de contato com a realidade. De outra forma, Thiollent expressa de forma categórica que (2002, p. 2):

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envolvendo, além dos universitários, atores e públicos com culturas, interesses, níveis de educação diferenciados. A construção extensionista não está limitada aos pares, abrange uma grande diversidade de públicos externos.

E adiante pontua que a metodologia pode abranger tanto a pesquisa e extensão, isto é, “em todas as áreas onde o conhecimento possa ser efetivamente mobilizado, orientado para analisar problemas reais e para buscar soluções, tendo em vista transformações úteis para a população (a curto ou médio prazo)” (Thiollent, 2002, p. 2), O conhecimento da ACCS é co-construído e passa pela reflexão-na-ação e propõe-se crítico e emancipatório.

Nos semestres de Atividade Curricular em Comunidade diversas foram as comunidades visitadas. A prioridade de diálogo da ACCS “História do Direito, meio ambiente e comunidades tradicionais: historicidade e afirmação de direitos” em sido o estudo e a interlocução com grupos vulneráveis, especialmente povos e comunidades tradicionais. Os povos e comunidades tradicionais podem ser conceituados como grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição. Em novembro de 2011 a primeira ida a campo foi organizada para ocorrer em um final de semana. E houve visita então para a Comunidade do Quilombo do Rio dos Macacos, localizada em Aratu, no município de Simões Filho/Bahia. O conflito relatado pela comunidade e presenciado pelos estudantes se estabelece com a Marinha do Brasil que reclama para si a titularidade e consequente expropriação dos moradores de território na referida localidade. Talvez a mais forte experiência a ser relatada foi a restrição de entrada e saída da comunidade e a agressão perpetrada por militar contra liderança da comunidade, a Sra. Rose Meire dos Santos Silva, com pistola sendo colocada na “cabeça” da liderança quilombola. A situação do quilombo Rio dos Macacos contempla ação judicial em curso, intervenção de órgãos como DPU (Defensoria Pública da União), AGU (Advocacia Geral da União), MPF (Ministério Público Federal), Ministério da Defesa (MD) e SEPPIR (Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial). A Comunidade Tradicional seguinte que se manteve contato foi com o povo de santo do terreiro Seja Hundé, mais conhecido como a Roça do Ventura - na Cidade de Cachoeira. Dessa maneira foi possível entender a dinâmica da comunidade em seu espaço sagrado que é o Terreiro e como esse espaço pode sofrer influências da expansão urbana desordenada. E como atos administrativos do Estado podem preservá-lo para que toda a sociedade possa ter acesso esse conhecimento tradicional. Estreitou-se laços com essa comunidade e pode-se ouvir relatos de intolerância com participação na II ª Caminhada do Povo de Santo do Recôncavo. No mesmo Município de Cachoeira esteve-se no Quilombo Kaonge, situado no Vale

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3 VISITAS TÉCNICAS DA ACCS: NOTAS DE UM DIÁRIO DE CAMPO

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do Iguape, e os estudantes conheceram uma comunidade quilombola organizada, que participava do Conselho Comunitário do Iguape, mas que enfrentava problemas com a regularização fundiária junto ao INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). O grupo esteve nessa comunidade em outra oportunidade no período da V ª Festa da Ostra, onde foi possível rever moradores e líderes locais e ver toda a comunidade reunida. Restando sem dúvidas para os estudantes, a concepção que a resistência aos conflitos vem desde o período colonial, e que continua até hoje na relação entre os remanescentes quilombolas desta localidade e os proprietários de terras circunvizinhas. A mesma percepção de uma relação conflituosa foi visualizada no semestre seguinte em que houve a visita técnica em Rio de Contas, distante 565 Km da Capital Baiana. Visitou-se à Comunidade Quilombola da Barra, onde houve acolhimento no Centro de Múltiplo Uso do Quilombo e lá existiu contato com o artesanato local, uma das fontes de economia daquela comunidade, além da agricultura. Lá se soube que aquela comunidade havia sido formada a partir do deslocamento forçado dos quilombolas de Riacho das Pedras após a inundação de suas terras para a construção da Barragem do Rio Brumado. Foi possível para os estudantes contextualizar com o que fora teorizado em sala de aula a respeito da crise energética pela qual o Brasil passa e adoção do uso das Barragens e Hidrelétricas como modelo para gerar energia e atender o poder público e o capital nacional e internacional. Resta aos descendentes dessas comunidades tradicionais atingidas a esperança de uma indenização em processo que tramita na Justiça Federal. O contato com a Comunidade de Mato Grosso (Rio de Contas) foi impactante uma vez que essa comunidade é formada por pessoas brancas (caucasianas) de origem portuguesa. O que fora confirmado pelo guia que nos levou ao local, já que o acesso a Mato Grosso é extremamente difícil. Essa vila que nasceu da colonização portuguesa ainda mantém nos seus moradores traços europeus. E possivelmente que os manterá por longos anos haja vista eles se casarem entre si. Apesar da relação de proximidade com as comunidades Quilombolas, o casamento dos moradores da antiga Vila de Santo Antonio do Mato Grosso quase sempre de forma endogâmica. Para o grupo não fora relatado nenhum caso de conflito social ou ambiental sofrido por aquela localidade. A Ilha do Paty, a exemplo da Comunidade Quilombola do Kaonge, foi outra localidade em que a ACCS esteve mais de uma vez. A ilha integra o Município de São Francisco do Conde, o acesso se fez através do distrito de Mataripe, onde está localizada a Refinaria Landulpho Alves/Petrobras. O objetivo foi visitar a comunidade e entender como se dava a vida das pessoas que dependem do barco para fazer travessia até a comunidade. A partir do relato de pessoas ligadas à Associação de Moradores, ouviu-se a história de formação da comunidade e como se dá a relação desta com a Refinaria que desenvolve atividade potencialmente poluidora. O que para os alguns moradores não seria um problema, não sentem ou não percebem nenhum tipo de poluição ambiental considerável. Um fato que foi amplamente discutido na aula seguinte quando do retorno da visita técnica e nos relatórios de campo, foi o fato de que os moradores do Paty não se consideram remanescentes quilombolas, mesmo com alguns relatos de que ali fora “terra

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de nego fugido”. A comunidade não se auto identifica como remanescente quilombola, requisito para a titulação de uma comunidade remanescente quilombola. Já em Salvador no segundo semestre de 2013, foi realizada visita ao primeiro Terreiro Tombado do Brasil, o Ilê Axê Iyá Nassô Oká, mais conhecido como a Casa Branca do Engenho Velho. Nesse espaço sagrado o grupo foi recebido por Ekedy Sinha (Mãe Pequena) que explicou didaticamente o que era o Candomblé, de que forma era o funcionamento e a dinâmica de um Terreiro. Falou das árvores sagradas, das antigas fontes de água que existiam na região da Vasco da Gama e que atualmente, às custas de um crescimento desenfreado e sem harmonia com o meio ambiente, foram aterradas. Ela apresentou o barracão, local em que são realizadas as festividades dos Orixás. Ficou claro que o povo de santo ainda é extremamente perseguido e atacado de várias formas, desde a imposição de pagamento de impostos a que estão isentos, invasão dos terreiros e retirada e destruição de imagens sagradas, até mesmo relatos de violência a praticantes e e sacerdotes por segmentos intolerantes à religião. No semestre seguinte a ACCS não foi oferecida pois sentiu-se a necessidade de uma reorganização conceitual e metodológica, com adoção de um texto-base por semestre (livro), formas de avaliação continuada e definição da comunidade e tarefa a ser desempenhada com os grupos vulneráveis indicados. E dessa forma no semestre letivo de 2014.2 deu-se prosseguimento com a disciplina e tendo como foco o debate acerca do que seria desenvolvimento sustentável para as comunidades tradicionais. E com isso preparou-se duas visitas técnicas, após importante debate com a professora Andréa Zhouri (antropóloga e professora da UFMG). A primeira visita técnica foi para Santo Amaro e lá conheceu-se a realidade das vítimas do Chumbo da Fábrica Plumbum, com morte de mais de mil pessoas e contaminação de mais de vinte mil, sendo considerado um dos mais graves acidentes ambientais do Brasil. E a segunda visita a campo foi para o Sul da Bahia, onde se esteve no Assentamento Rural Terra Vista em Arataca e na Aldeia Tupinambá Tikum em Olivença, Ilhéus. No Assentamento houve contato com uma comunidade rural altamente organizada, inclusive contando com uma Escola Profissionalizante baseada a partir de experiências e vivências agroecológicas. É importante ressaltar que a visita à Arataca e a Olivença foi proposta desde o primeiro semestre de oferecimento da ACCS. E só foi possível agora após os conflitos na região estarem sob controle, uma vez que os assentados e os índios Tupinambás viviam sob ameaça. No dia seguinte a equipe foi levada pelo Cacique Ramon Ytajibá à Aldeia Tikum em Olivença, distrito de Ilhéus e desfrutou-se de uma vivência em um território indígena. O cacique contou a história do seu povo, guerreiro desde tempos remotos até os momentos atuais, em que envolvem instabilidades em torno de um povo que tem como bastião a preservação da sua terra e a retomada de terras tradicionais ocupadas irregularmente por fazendeiros. Além das atividades de visita técnica o ACCS tem gerado produtos de extrema relevância como a produção de capítulos do livro “Direito ambiental, conflitos socioambientais e comunidades tradicionais” (EDUFBA, 2015), mapeamentos de conflitos, apresentação de resu-

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mos em encontros acadêmicos, apoio direto a comunidades (suporte jurídico na solicitação de tombamento no Terreiro de Oxumaré, apoio e demanda de audiência pública com Ministério Público no Terreiro do Ventura, petição ao Ministério Público Federal do Pará sobre incidentes na Terra Indígena Munduruku, apoio aos I e II Congressos de Direito dos Povos e Comunidades Tradicionais (2012 e 2014) e apoio no curso livre de Direito dos Povos e Comunidades Tradicionais (MAM – Museu de Arte Moderna, 2013). Ademais, a ACCS articula-se o com o “Grupo de Pesquisa Historicidade do Estado e do Direito: interações sociedade, comunidades tradicionais e meio ambiente” (UFBA) e com o Núcleo de extensão de defesa de direitos dos povos e comunidades tradicionais” (UFBA). Atualmente, diante das atividades desenvolvidas pela ACCS com lideranças dos povos e comunidades tradicionais, a Universidade Federal da Bahia autorizou a criação do primeiro “Curso de Especialização em Direito dos Povos e Comunidades Tradicionais” a ser oferecido entre 2016-2017, com aprovação nas instâncias da Faculdade de Direito (Programa de Pós-Graduação em Direito da UFBA e Congregação da Faculdade de Direito da UFBA) e Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão. O curso será oferecido de forma gratuita e na modalidade Ensino à Distância (EAD) e atividades presenciais contempladas em quatro polos no Estado da Bahia.

A construção da atividade de extensão parte da concepção da noção de dupla dimensão de aprendizado recíproco e proximidade entre instituição de ensino e comunidade. Não pode ser compreendida como atividade “caritativa”, “assistencialista”, mas formativa e inclusiva, crítica e emancipatória. A ACCS “História do Direito, meio ambiente e comunidades tradicionais: historicidade e afirmação de direitos” inicia suas atividades em 2011, contabilizando no semestre de 2015.1 sua sétima edição. A proposta tem tido objetivo de analisar os direitos dos povos e comunidades tradicionais por meio de referenciais teóricos e experiências de visita de campo. Por fim, a ACCS representa oportunidade de conhecimento do direito numa perspectiva não-dogmática, construindo a percepção de que as comunidades possuem algo a ensinar aos estudantes e docente. Talvez a maior conquista seja a compreensão de que o direito incorpora a realidade social subjacente. É prudente, por conseguinte, ressaltar, nas escritas finais que compreendem este encaminhamento conclusivo, a importância da construção de teoria e prática contra hegemônica no ensino-pesquisa-extensão no curso de direito. Reiteramos, portanto, esta é uma construção em temporalidade não-linear, com caráter dialético e que incorpora a dimensão de cidadania plena a ser efetivada para grupos vulneráveis.

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4 CONCLUSÃO

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REFERÊNCIAS ACSELRAD, Henri. O que é justiça ambiental. 1. ed. Rio de Janeiro: Garamond, 2009. LAPLANTINE, F. Aprender antropologia. 1. ed. 14. Reimpressão. Porto Alegre: Brasiliense, 2003. MACEDO, Roberto Sidnei. Etnopesquisa crítica, etnopesquisa-formação. 2. ed Brasília: Liber Livro, 2010. MATOS, Agrimaria Nascimento. Trabalho, identidade e processos de mudança: etnografia de uma comunidade do recôncavo baiano. Tese de pós-graduação em antropologia – Faculdade de filosofia e ciências humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2011. MOREIRA, H.; CALEFFE L.G. Metodologia da pesquisa para o professor pesquisador. 1. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2007. OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. O trabalho do antropólogo. 2 ed. Brasília/São Paulo: Paralelo Quinze/Unesp, 1998. ROCHA, Julio Cesar de Sá da & SERRA, Ordep. Direito ambiental, conflitos socioambientais e comunidades tradicionais. 1. ed. Salvador: EDUFBA, 2015. THIOLLENT, Michel. Metodologia da Pesquisa-ação. 7. ed. São Paulo: Cortez; 1996. THIOLLENT, Michel. Construção do conhecimento e metodologia de extensão. In: I CBEU – Congresso Brasileiro de Extensão Universitária, 2002, João Pessoa.

ABSTRACT This paper seeks to reflect on the experience of Curriculum in Action Community and Society (ACCS) “history of law, environment and traditional communities: historicity and the affirmation of rights” in the Law School of the Federal University of Bahia. Otherwise, it raises as questioning reflection how and to what extent extension activity can break away from the dogmatic hegemonic construction in the legal courses, based on the “law codes” instead of “specific right, the streets, society, vulnerable groups “. The ACCS “History of Law, Environment and Traditional Communities: Historicity and

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THIOLLENT. Michel, ARAÚJO FILHO, Targino de, SOARES, Rosa Leonôra Salerno. (coord.) Metodologia e experiências em projetos de extensão. 1.ed. Niterói-RJ: EDUFF, 2000.

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Rights of Affirmation� objective the implementation of teaching, research and extension, through theoretical and practical analysis of legal disputes involving peoples and traditional communities and the consequent mapping of the damage caused to these communities, dialogue with the environmental law, geography and anthropology. The methodology of action research and ethnographic approach are used in field activities at Federal University Law School. Keywords: Law. Extension. Peoples and traditional communities.

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BREVES PONDERAÇÕES ACERCA DO INSTITUTO DA DELAÇÃO (COLABORAÇÃO) PREMIADA APÓS A LEI Nº 12.850/2013

Este ligeiro apontamento não tem maiores pretensões. Buscará apenas divisar e discutir, quiçá mais divisar, algumas questões que estão relacionadas com o instituto da colaboração premiada no Direito brasileiro. A colaboração premiada apareceu pela primeira vez entre nós por intermédio dos artigos 7º e 8º, parágrafo único, da Lei nº 8.072/90. O primeiro dos referidos dispositivos acrescentou o § 4º ao art. 159, do Código Penal, que tipifica o delito de extorsão mediante sequestro, enquanto o segundo deles, por sua vez, estabelecia, em relação ao crime que era denominado de quadrilha ou bando, descrito no art. 288, do Código Penal, o seguinte: “O participante e o associado que denunciar à autoridade o bando ou quadrilha, possibilitando seu desmantelamento, terá a pena reduzida de um a dois terços.” Inicialmente, portanto, a colaboração premiada somente podia ser aplicada ao delito de extorsão mediante sequestro cometida por quadrilha ou bando ou ao próprio delito de quadrilha ou bando, conferindo ao agente delator uma causa de diminuição da pena de um a dois terços em ambas as hipóteses, exigindo no primeiro caso que o agente denunciasse o crime à autoridade e que sua conduta facilitasse a libertação do sequestrado, enquanto, no segundo caso, requerendo que a delação possibilitasse o desmantelamento do bando ou quadrilha. Outras hipóteses de colaboração premiada surgiram posteriormente, através, dentre outras, das leis 9.034/95, 9.080/95, 9.613/98, 9.807/99 e 11.343/06. Foi o art. 1º, § 5º, da Lei nº 9.613, de 3 de março de 1998, referente aos crimes de lavagem de dinheiro ou de ocultação de bens, direitos e valores, que trouxe, pela primeira vez, a

* Mestre em Direito Constitucional. Especialista em Direito Processual Civil e Processual Penal. Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Juiz de Direito.

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Andreo Aleksandro Nobre Marques*

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possibilidade de perdão judicial em caso de colaboração do agente à persecução penal1. A Lei nº 12.850, de 2 de agosto de 2013, que revogou a Lei nº 9.034/95 e teve um período de 45 (quarenta e cinco) dias de vacatio legis a partir de sua publicação oficial (ver os artigos 26 e 27 do referido diploma), trouxe algumas inovações ao instituto da colaboração premiada no que tange aos delitos cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos de reclusão, ou que sejam de caráter transnacional, cometidos em organização criminosa. Porém, antes de tratar das inovações trazidas pela Lei nº 12.850/2013 ao instituto da colaboração premiada, convém tecer alguns comentários sobre sua legitimidade. Realmente, uma primeira inquietação que surge com o tema colaboração premiada diz respeito a um suposto desprestígio do caráter ético do Direito Penal, por razões utilitaristas, ao se permitir a concessão de prêmios ao coautor ou partícipe de crime que resolva prestar informações elucidativas da atividade criminosa, em detrimento de seus comparsas2. Conforme ilustra Walter Nunes da Silva Júnior3, o tema não passou despercebido de Beccaria, que teria aproveitado a oportunidade para ilustrar que o prêmio prometido a quem denunciasse companheiros deveria ser regulado por lei e não simplesmente ficar ao crivo do juiz ou tribunal. Realmente, o milanês Cesare Beccaria, em passagem de sua célebre obra Dei delitti e delle pene, nos brindou com as seguintes reflexões, que merecem ser transcritas, em especial porque deixou transparecer sua opinião de que, moralmente falando, a lei não deveria incentivar a traição:

1  Dispõe o art. 1º, caput, §§ 1º, 2º e 5º, da Lei nº 9.613/1998: “Art. 1º Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal: Pena – reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos, e multa. § 1º Incorre na mesma pena quem, para ocultar ou dissimular a utilização de bens, direitos ou valores provenientes de infração penal: I – os converte em ativos lícitos; II – os adquire, recebe, troca, negocia, dá ou recebe em garantia, guarda, tem em depósito, movimenta ou transfere; III – importa ou exporta bens com valores não correspondentes aos verdadeiros(...) § 5º A pena poderá ser reduzida de um a dois terços e ser cumprida em regime aberto ou semiaberto, facultando-se ao juiz deixar de aplicá-la ou substituí-la, a qualquer tempo, por pena restritiva de direitos, se o autor, coautor ou partícipe colaborar espontaneamente com as autoridades, prestando esclarecimentos que conduzam à apuração das infrações penais, à identificação dos autores, coautores e partícipes, ou à localização dos bens, direitos ou valores objeto do crime.” (Destacou-se). 2  Nesse sentido, sustentam Alice Bianchine, Luiz Flávio Gomes, Rogério Sanches Cunha e William Terra de Oliveira, ao comentarem o art. 41, da Lei de Drogas, que: “Dogmaticamente é muito questionável que o agente culpado seja beneficiado com ‘prêmios penais’ em razão de condutas colaboradas pós-delituais. Razões de política-criminal utilitarista (razões utilitárias), entretanto, nos últimos tempos, estão preponderando sobre princípios éticos ou dogmáticos. A luta contra a criminalidade organizada, sobretudo, vem abrindo novos horizontes (que eram impensáveis no tempo do Direito penal liberal.” (GOMES, Luiz Flávio; CUNHA, Rogério Sanches (coord.) Legislação criminal especial. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 274). 3  SILVA JÚNIOR, Walter Nunes. Curso de direito processual penal: teoria (constitucional) do processo penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 763.

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Alguns tribunais prometem a impunidade ao cúmplice do delito grave que denuncie os seus companheiros. Um tal expediente tem os seus inconvenientes e as suas vantagens. Os inconvenientes são que a nação autoriza a traição, detestável mesmo entre os celerados, porque são menos funestos para uma nação os delitos de coragem do que os de cobardia, pois a primeira não é frequente, porque só espera uma força benéfica e directriz, que leve a conspirar pelo bem público, e a segunda é mais comum e contagiosa, e cada vez mais se concentra em si mesma. Além disso, o tribunal mostra a sua própria incerteza, a fraqueza da lei, que implora a ajuda de quem a ofende. As vantagens são a prevenção de delitos importantes e que, sendo

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Estaria, assim, o Direito Penal, ao permitir a premiação do agente de crime que delata seus comparsas, incentivando ou apoiando no seio social a prática de condutas antiéticas? É possível falar em um Código de Ética dos criminosos ou mesmo é possível falar de uma ética que não seja universal? A proteção de bens jurídicos, um dos escopos do Direito Penal, autorizaria o desprestígio da ética no campo das relações humanas? Perceba-se, em contraponto, que, para alguns, não haveria nenhuma pretensão de universalidade no dever imposto ao agente envolvido em uma ação delituosa de não denunciar seus parceiros, até porque uma ação dessa natureza estaria justamente voltada contra os bens jurídicos mais importantes da coletividade5. Nem tanto ao céu, nem tanto à terra, penso. Creio que seja possível falar sim em uma ética própria a qualquer grupo social, mesmo de pessoas que se envolvam casualmente ou se dediquem perenemente ao cometimento de delitos. Ética, no léxico, do latim ethica e do grego ethiké, termo relacionado à filosofia, é o “estudo dos juízos de apreciação referentes à conduta humana suscetível de qualificação do ponto de vista do bem e do mal, seja relativamente a determinada sociedade, seja de modo absoluto.”6 Há um entendimento generalizado que abomina a conduta daquele que, a despeito de fazer parte de um grupo, resolve informar condutas a uma pessoa externa ou superior que tenha o poder de infligir algum tipo de admoestação ou punição. Assim, ocorre, por exemplo, em uma sala de aula, quando um dos estudantes “entrega” um colega que cometeu alguma conduta desautorizada pelo regimento escolar ao professor, coordenador ou diretor, que, sem a delação, provavelmente não descobriria ou sequer suspeitaria da incursão na falta disciplinar. Igualmente, em um ambiente de trabalho, quando um dos colegas espreita os demais para, tendo

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BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2009. Cap. XXXVII, p. 147-148.

5  Nessa outra vertente, inquirindo se haveria uma “ética afastada de quaisquer considerações morais”, já que “a revelação da existência do crime é a revelação da existência de uma conduta evidentemente contrária à ética e ao Direito”, cf. PACELLI, Eugênio. Curso de processo penal. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2013. p. 803-804. 6  FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio século XXI: o dicionário da língua portuguesa. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. pp. 848-849.

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patentes os seus efeitos e ocultos os seus autores, atemorizam o povo; além disso contribui-se para demonstrar que quem não é fiel às leis, isto é, ao público, é provável que não o seja ao privado. Parecer-me-ia que uma lei geral que prometesse a impunidade ao cúmplice delator de qualquer delito seria preferível a uma declaração especial num caso particular, porque assim preveniria as uniões, com o temor que cada cúmplice teria de ser o único a expor-se; o tribunal não contribuiria para tornar audazes os celerados ao verem requerida a sua ajuda, num caso particular. Uma tal lei, todavia, deveria acompanhar a impunidade com a expulsão do delator... Mas em vão me atormento a mim próprio para apagar o remorso que sinto ao autorizar as sagradas leis – monumento da pública confiança, base da moral humana – à traição e à dissimulação.4

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7  Compartilhando do mesmo entendimento, afirmando que a “colaboração serve de defesa indireta”, Walter Nunes da Silva Júnior acrescenta o seguinte: “No instante em que o acusado está cooperando, ele está, igualmente, defendendo-se, pois a efetividade e eficiência da defesa não se confundem com a tese de exculpação ou de negativa de autoria, podendo, em muitos casos, ser exercida apenas no sentido de que, na condenação, o juiz leve em consideração circunstâncias determinantes para a aplicação de pena menos grave (reconhecimento de circunstâncias judiciais, atenuantes e de causas de diminuição de pena, de concurso formal ou de crime continuado, etc.), de substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos ou de aplicação do perdão judicial.” (Curso de direito processual penal: teoria (constitucional) do processo penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 766).

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oportunidade, comunicar o fato ao chefe comum, seja por que motivos for. Será que não podemos falar em ética nessas hipóteses, pelo menos no sentido da ética específica que se espera dos componentes dos variados agrupamentos menores do corpo social? Será que a conduta daquele que funciona como um alcaguete ou dedo-duro não é em geral desprezada pela maioria das pessoas? E será, então, que não há uma pretensão de universalidade no sentimento de desaprovação da conduta daqueles que resolvem delatar seus iguais? Para qualquer grupo, inclusive para aquele cuja finalidade seja a prática de crimes, a delação feita por um comparsa nada mais é que uma traição, logo um comportamento reprovável e não esperado por aqueles que o compõe. Assim, a questão primordial não reside em discutir se há ou não um comportamento antiético na conduta daquele que delata companheiros de crime, mas sim se não é legítima a iniciativa estatal de conceder prêmios a quem assim atue, uma vez que a organização estatal prima pela boa convivência da coletividade como um todo, mesmo que às custas das regras do bom viver dos agrupamentos menores nela existentes. Vê-se, então, que há um interesse prevalecente, de um número maior de pessoas, relacionado à repressão e prevenção de condutas atentatórias dos bens jurídicos eleitos como os mais expressivos da coletividade em geral que não pode ser desprestigiado apenas porque, para seu conveniente atendimento, será necessário que se incentive o descumprimento de códigos de ética ou de conduta de agrupamentos menores da sociedade. Por outro lado, nota-se também que mesmo que o comportamento do delator agrida, como se acredita que agride, o código de conduta de seu grupo, o fato de ter tomado parte da empreitada autoriza que, querendo, fale tudo o que sabe, seja porque intimamente arrependido, seja porque acredite em uma redenção perante o agrupamento social maior, e isso, repita-se, pelo simples fato de estar envolvido, por também lhe dizer respeito. Nessa toada, é de se ter em vista que na delação o prêmio pode ser encarado como algo bom pelo indivíduo envolvido com uma ação criminosa, de maneira que, em que pese corresponda a uma atitude reprovável na ótica dos comparsas, pode ser compreendida como abrangida pelo direito à ampla defesa7, cujos fundamentos residem em nossa própria Constituição. Perceba-se que o dever de depor imposto à generalidade de pessoas somente se justifica nos casos em que o depoente não esteja envolvido no delito, até porque, por razões históricas, fundadas principalmente no princípio de humanidade, é garantido o direito ao silêncio e à não incriminação a qualquer pessoa que esteja sendo investigada ou processada criminalmente. Logo é possível concluir que a conduta do agente envolvido na prática delituosa de entregar seus comparsas é antiética do ponto de vista do grupo criminoso, em que pese não o

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8

Cf., no Informativo do Supremo Tribunal Federal nº 480, o julgamento do HC 90.688/PR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski.

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seja do ponto de vista da coletividade, de maneira que é legítima a iniciativa do grupo social de agraciar com certos prêmios o delator corresponsável pelo delito, a fim de, com isso, possibilitar a reprovação e também a prevenção de condutas atentatórias dos bens jurídicos mais importantes da sociedade. Parece que a legitimidade da premiação da colaboração deveria ser afastada nos casos em que a lei concedesse a completa impunidade do colaborador. Nada parece justificar que aquele que atuou no crime possa se ver livre completamente de punições apenas porque desbaratou um esquema e informou todos os envolvidos que eventualmente poderiam não ser descobertos pela atuação estatal regular. Não obstante a afirmação feita no parágrafo anterior, a possibilidade de perdão judicial àquele que colabora com a investigação e com o processo criminal é amplamente aceita como uma medida que não colide com a Constituição, é dizer, pelo menos o Supremo Tribunal Federal não inquinou de inconstitucional a opção do legislador pela premiação do delator ou colaborador, inclusive com o alcance de causa extintiva da punibilidade8. Ocorre que, agora, isto é, desde a vigência da Lei nº 12.850/2013, foi criada pelo legislador uma espécie de “perdão ministerial”. De fato, o § 4º, do art. 4º, do referido diploma legal, diz o seguinte: “§ 4o Nas mesmas hipóteses do caput, o Ministério Público poderá deixar de oferecer denúncia se o colaborador: I - não for o líder da organização criminosa; II - for o primeiro a prestar efetiva colaboração nos termos deste artigo.” Será que é possível juridicamente este perdão ministerial? Não deve passar despercebido que a sistemática prevista pelo art. 4º, caput e parágrafos, da Lei nº 12.850/2013, exige que o juiz homologue o acordo de colaboração. Mas o que garante que o delator realmente continuará colaborando com a Justiça, após a homologação do acordo, sabendo que sua punibilidade está extinta e que não poderá mais ser processado? Diga-se que, até hoje, embora a Constituição da República tenha concedido ao Ministério Público a titularidade da ação penal, não conferiu ao Parquet o poder de escolha entre denunciar ou não, até porque o interesse que está em jogo quando se está diante de um crime é sempre de conotação pública, e, como tal, na maior parte das vezes, com exceções justificadas em outros pressupostos, indisponível. Parece-me que a decisão final sobre a extinção da punibilidade deve sempre ficar a cargo da autoridade jurisdicional competente, que inclusive deverá avaliar se a colaboração prestada realmente foi com uma tal intensidade que justifique a isenção de pena, ou, em caso contrário, se em menor grau, com algum dos outros prêmios não tão benéficos ao agente delator, como a diminuição da pena ou a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos. Só ao final do processo, portanto, é que seria possível avaliar, por exemplo, se houve a “identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas”, a “revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2009. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio século XXI: o dicionário da língua portuguesa. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. GOMES, Luiz Flávio; CUNHA, Rogério Sanches (coord.) Legislação criminal especial. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.

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criminosa”, a “prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização criminosa” ou a “recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa”. Atente-se que, nos termos do § 1º, do mencionado dispositivo, a concessão do benefício, em qualquer caso, levará em conta “a personalidade do colaborador, a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercussão social do fato criminoso e a eficácia da colaboração.” Será que é possível avaliar todos esses dados antes do decurso de todo o processo, quando se sabe que, na maioria das vezes, nem mesmo a inteira tramitação de um processo criminal fornece os referidos elementos? Como conceder a isenção de pena em um crime cometido por organização criminosa cujo produto ou proveito recuperado foi ínfimo? Será que a gravidade e a repercussão social do fato criminoso não são coisas praticamente impossíveis de verificação antes de que a maioria dos comparsas sejam denunciados, processados e julgados? E quanto à eficácia da colaboração, considerando esses mesmos fatores? Impende, portanto, que o controle sobre a impunidade do delator seja feita por terceira pessoa, imparcial, a fim de que sejam protegidos de uma forma mais ampla o interesse de toda a sociedade, nunca sendo demais lembrar que a premiação da delação é uma medida de cunho utilitarista, em detrimento de certos valores éticos, em que pese justificada por interesses sobranceiros da sociedade. Realmente, só o juiz teria a isenção suficiente para premiar com a medida mais adequada, inclusive porque estaria afastado do calor das negociações, não havendo porque se deixar influenciar, por exemplo, com o desejo, que seria escuso, de obter alguma promoção pessoal. E mais, o transcorrer de todo o processo é que permitiria ao juiz descobrir a justa medida em relação à delação que houvesse sido feita. Apenas assim seria possível proteger, concomitantemente, o interesse geral de elucidação, repressão e prevenção de crimes, e o interesse do delator. Para concluir, gostaríamos de ressaltar que essas são inquietações iniciais de quem somente agora começou a se debruçar sobre o tema, certamente passíveis de inúmeras críticas, mas que servem para demonstrar que ainda há muito a ser discutido e desenvolvido acerca da colaboração premiada.

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PACELLI, Eugênio. Curso de processo penal. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2013.

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SILVA JÚNIOR, Walter Nunes. Curso de direito processual penal: teoria (constitucional) do processo penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

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COMUNICANDO SOBRE O DIREITO A PARTIR DA COMUNICAÇÃO Bernardo Montalvão*

RESUMO: O presente texto pretende apresentar, de forma introdutória e didática, o direito a partir de uma perspectiva comunicacional. Isto porque, a partir da comunicação, é possível conceber o direito como uma grande tecnologia apta a lidar com os desafios impostos por uma sociedade hipercomplexa. Palavras-chave: Comunicação. Direito. Tecnologia.

1 COMPORTAMENTO, COMUNICAÇÃO E NORMA.

* Professor-Assistente na disciplina de Teoria do Direito junto à Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professor de Processo Penal da Universidade Católica do Salvador - UCSAL; Professor Convidado da Fundação Escola Superior do Ministério Público da Bahia - FESMIP; Professor Convidado da Escola da Magustratuta da Bahia; Professor Convidado da Especialização em Ciências Criminais da Fundação Faculdade de Direito vinculada ao PPGD-UFBA. Mestre em Direito Público pela UFBA (Universidade Federal da Bahia). Pós-Graduado Lato Sensu em Ciências Criminais pela Fundação Faculdade de Direito vinculada ao Programa de Pós-Graduação da UFBA. 1  “Entendemos, neste contexto, por sociedade um sistema de interações, comportamentos mutuamente dirigidos e referidos uns aos outros, formando uma rede de relações. Definimos comportamento como estar em situação. Quem está em situação transmite mensagens, quer queira quer não. Comportar-se é estar em situação com os outros, os endereçados das mensagens, os quais também estão em situação. De onde, comportamento é troca de mensagens, comunicação”. Cf. FERRAZ JR, 2015, p. 74. 2  “Em primeiro lugar, temos uma propriedade do comportamento que dificilmente poderia ser mais básica e que, no entanto, é frequentemente menosprezada: o comportamento não tem oposto. Por outras palavras, não existe um não-comportamento ou, ainda em termos mais simples, um indivíduo não pode não se comportar. Ora, se está aceito que todo o comportamento, numa situação interacional, tem valor de mensagem, isto é, é comunicação, segue-se que, por muito que o indivíduo se esforce, é-lhe impossível não comunicar. Atividade ou inatividade, palavras ou silêncio, tudo possui um valor de mensagem; influenciam outros e estes outros, por sua vez, não podem não responder a essas comunicações e, portanto, também estão comunicando”, cf. WATZLAWICK; BEAVIN; JACKSON, 2007, p. 44.

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O que é o comportamento? Uma comunicação!1 Todo comportamento transmite uma mensagem! Uma mensagem que pode ser veiculada por diferentes mídias. O silêncio, a fala, a escrita, o gesto, a expressão facial, dentre outras. Todos eles comportamentos. Comportamentos que sempre comunicam algo. E não há como ser diferente. Afinal, mesmo quando não se quer comunicar algo a alguém, comunica-se, pelo menos, que não se quer comunicar2. Ou seja, não há comportamento que não seja uma comunicação.

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3

LUHMANN, 2006, p. 39

4

MORIN, 2011, p. 57.

5  LUHMANN, 1983, p. 45-52. 6  LUHMANN, 1983, p. 45-52 7

CAPRA, 1996, p. 133-146.

8

LUHMANN, 1980, p.30.

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Por conseguinte, e por este ângulo de observação, a comunicação é um dogma. Porém, não um dogma em razão da fé de quem nele acredita. Mas, sim, um dogma em razão da sua capacidade de resistir as refutações em sentido contrário. E, como dogma, ela, a comunicação, viabiliza a convivência social, pois só há convivência onde há comunicação3. Contudo, onde há comunicação, pode haver ruído. E é isto que é o conflito, um ruído de comunicação. Logo, a mesma comunicação que viabiliza o convívio social, é a mesma que o expõe ao constante risco de conflito. O que já revela um outro aspecto da comunicação, a sua ambivalência. Pois, quanto maior for o volume de comunicação, maior será o risco de que aconteça um ruído. Esta, aliás, é uma das lições de Edgar Morin4. Mas, o que é, em si, a comunicação? Ela é o elemento mais básico do sistema social. Ela é um fenômeno complexo, contingente e seletivo5. Complexo, porque sempre admite, em tese, um maior número de possibilidades de realização do que aquela que foi concretizada. É dizer, ela sempre poderia ser diferente do que acabou sendo. Seletiva, porque ela sempre implica na concretização de uma de suas diferentes possibilidades de manifestação. E contingente, porque há sempre a possibilidade de que o sentido que foi selecionado não coincida com aquele que se quis transmitir, como ensina NiklasLuhmann6. Em outras palavras, quem diz algo, diz uma das mil coisas que poderia dizer. E, ao dizer, seleciona uma das possibilidades de sentido que poderia dizer. Porém, ao selecionar uma das possibilidades de sentido, há sempre o risco de ser mal compreendido. Isto é, de quem o escuta entenda algo diferente do que o emissor pretendia dizer. O que já revela que a comunicação é, em si, improvável e, por isso, também, ambivalente. O certo é que a comunicação é aquilo sem o qual não há sociedade. E, quando se fala aqui em sociedade, não se deve reduzir a observação e imaginá-la, apenas, como um grande conglomerado de indivíduos e instituições. Ela é muito mais do que isso. Ela, a sociedade, é uma grande rede de comunicação. Uma rede onde todos e tudo se encontram incluídos, e não apenas os homens. Uma rede de comunicação entre programas, partículas, vírus, bactérias e outros microrganismos. Enfim, esta grande rede chamada vida, sobre a discorre Fritjof Capra7. Neste sentido, a vida em sociedade, na realidade, não é, em si, apenas a interação entre seres humanos. É possível dizer, a partir desta perspectiva, que o sistema social, a vida no seu todo, é, na verdade, um grande sistema dentro do qual se encontram diferentes e intercomunicantes subsistemas. Subsistemas que, apesar de serem autorreferentes8, não deixam de se relacionar com o ambiente externo a eles, isto é, com os outros subsistemas. Em outras palavras, se recorrêssemos à biologia, isto significaria dizer que o sistema da vida é um grande sistema

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9

CAPRA, 1996, p. 133-146

10  HEIDEGGER, 2009, p. 20-22. 11  FERRAZ JR, 2015b, p. 11-17. 12  FERRAZ JR, 2015b, p. 11-17. 13  LUHMANN, 2006, p. 40. 14  FERRAZ JR, 2015a, p. 57-58.

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que engloba diferentes dimensões que estão todas entrelaçadas entre si sem que nenhuma delas se encontre hierarquicamente acima da outra9. Ou seja, o sistema das abelhas é autorreferente, mas, ao mesmo tempo, se intercomunica com o sistema das formigas, o qual, por sua vez, se intercomunica com o sistema dos seres humanos, e assim sucessivamente. Ora, quando se percebe que a vida é uma grande rede de comunicação e que a convivência social entre os seres humanos não é uma ilha isolada destes demais subsistemas (do subsistemas das bactérias, do subsistema dos insetos, do subsistema dos vírus e etc.), logo, se conclui que, qualquer que seja a decisão tomada pelo homem e o comportamento que daí resulte, ela poderá ter repercussão sobre os demais subsistemas. E esta consciência, que o homem do século XIX não possuía, poderá dar à ciência e, em especial, ao direito uma pequena medida dos desafios que ele, em pleno século XXI, se verá obrigado a enfrentar, como já havia advertido Heidegger10. E um destes desafios será o de estabilizar a comunicação11, minimizando as possibilidades de ruído. Não porque o ruído seja, em si, algo nefasto à comunicação. Não, não o é. O ruídoé apenas uma comunicação que não foi equalizada. O que não impede que, futuramente, venha a sê-lo. Logo, o ruído não resulta apenas de um mal-entendido durante a comunicação. Ele, também, poderá decorrer, como conflito que é, de uma desobediência. Ou seja, da vontade deliberada de querer desobedecer. Não porque a comunicação não foi bem compreendida, ou porque não se reconhece, naquele que prescreve uma ordem, a devida autoridade para fazê-lo, mas, sim, porque se deseja testar os limites de sua autoridade e, com isso, a margem de sintonia da comunicação. E, por isso, a norma lança mão de diferentes técnicas de estabilização da comunicação12, como, por exemplo, a ameaça de que uma sanção venha a ser aplicada ou, ainda, a promessa de uma premiação. No entanto, uma coisa é certa, o ruído, sem dúvida, desperta o jurista para uma necessidade: é preciso desenvolver uma tecnologia capaz de estabilizar a comunicação. E uma das ferramentas mais importantes desta tecnologia comunicacional é a norma. Por conseguinte, a norma pressupõe o conflito, e não a sintonia. Afinal, não há sintonia sem norma, nem conflito sem convivência, nem convivência sem comunicação13. Convém, então, perguntar: o que é, então, a norma? Uma proposta? Não. Porque ela não é apenas a mensagem que se transmite. Uma prescrição? Não. Porque ela não é só a relação que há entre os interlocutores. O que, então, ela seria? Uma tecnologia da comunicação14. E, por quê? Porque a comunicação engloba, a um só tempo, tanto uma proposição quanto uma prescrição. Uma proposição, que é a mensagem que se quer comunicar. E uma prescrição, que é o tipo

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de relação que há entre aqueles que se comunicam. Ora, se o comportamento é uma comunicação, e a norma pretende estabilizá-la, não é difícil concluir que a norma, enquanto tecnologia da comunicação, é uma tecnologia que pretende controlar os comportamentos. Sucede, porém, que ela, a norma, não é a tecnologia comunicacional em si. A tecnologia comunicacional não se reduz a ela. Ela é apenas um dos programas, desta grande tecnologia da comunicação chamada Direito15. Mas, se isto é certo, então, não basta concluir que a norma é um programa da tecnologia comunicacional do Direito, é preciso destacar, ainda, que ela, enquanto resultado de uma decisão – do legislador, do juiz, ou de qualquer outra autoridade –, poderá apresentar repercussões sobre outros subsistemas sociais16. Repercussões previsíveis ou imprevisíveis, mas que, de qualquer modo, importarão em alguma consequência para o próprio subsistema do direito. O que colocará para o jurista um novo desafio, qual seja, não basta decidir o conflito, é preciso fazê-lo com a menor perturbação social possível17. Ou seja, não basta controlar os comportamentos e decidir os conflitos jurídicos, é preciso, também, controlar as eventuais repercussões geradas pela decisão que foi tomada. Porém, apesar de tal esforço, tudo indica que o conflito jurídico decidido pelo Direito, quase sempre, por força do próprio Direito, se torna um conflito ainda mais complexo18. Como, aliás, parece sugerir João Maurício Adeodato19. Em outras palavras, o mesmo Direito que se presta a decidir os conflitos jurídicos, é o mesmo que potencializa a complexidade do conflito jurídico que já foi decidido. E conflito jurídico complexo, é conflito com um número ainda maior de possibilidades de concretização. É conflito que envolve um maior número de variáveis. Um bom exemplo é a sentença penal condenatória. Por meio dela se decide um tipo de conflito jurídico, o delito. Mas, ao fazê-lo, sobretudo por meio da pena privativa de liberdade, assume-se o risco de que o condenado venha a reincidir e quea penitenciária se converta em engrenagem de fomento e proliferação das organizações criminosas.Ainda que não compartilhe, na íntegra, da ideia aqui esboçada, convém analisar, a respeito, a lição de Juarez Cirino dos Santos20.

Deste modo, o Direito, esta grande tecnologia da comunicação, cumpre uma das funções mais relevantes ao sistema social: a de viabilizar a convivência. E viabilizar a convivência, 15  FERRAZ JR, 2015a, p. 58. 16  LUHMANN, 1980, p.42. 17  FERRAZ JR, 2015b, p. 59. 18  “A razão ‘analítica’ é de pouca valia nesse enfrentamento do risco. As explicações estatísticas, por exemplo, não podem auxiliar muito nesse ponto, assim como as informações e estratégias fornecidas pelo campo das técnicas, que são adequadas a sistemas triviais, mas não a sistemas complexos. Sistemas triviais são aqueles que, para um estímulo (input, pergunta) fornecem uma reação (output, resposta), ao passo que sistemas complexos são aqueles que utilizam como inputs seus próprios outputs, vale dizer, que começam suas operações a partir de si mesmos. O direito é um sistema complexo, assim como a própria sociedade em que se insere e à qual se volta, tentando controla-la, daí a retroalimentação característica” Cf. ADEODATO, 2011, p.177. 19  ADEODATO, 2011, p.178-179. 20  SANTOS, 2005, p. 14-38.

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2 O DIREITO COMO UMA TECNOLOGIA COMUNICACIONAL.

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3 CONCLUSÃO A partir do que foi dito até aqui, o que é possível concluir? Primeiro, que o direito não soluciona conflitos jurídicos, antes os decide. Decidir não é o mesmo que solucionar. Solucionar é uma ideia muito simplória e ingênua. Própria dos iluminados do século XVIII. Até porque solucionar, pressupõe a capacidade de eliminar, de dissolver o conflito. Como se o sistema jurídico

21  FERRAZ JR, 2015a, p. 64-65. 22  FERRAZ JR, 2015a, p. 232-235.

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sem pressupor a inexistência de conflito, não é função das mais fáceis. Antes o contrário, é imaginar o Direito como uma tecnologia comunicacional bastante sofisticada. Uma tecnologia capaz de estabilizar a comunicação a partir da sua capacidade de processamento do ruído. Dito de outro modo, uma tecnologia capaz de reduzir a complexidade da comunicação com vistas a decidir os conflitos jurídicos. E uma tecnologia com este grau de sofisticação não foi construída de uma hora para outra. Nem é obra acabada que tenha sido imaginada de uma só vez. Muito pelo contrário. É tecnologia em constante processo de atualização. Uma tecnologia que é resultado de um longo processo de evolução. E que, como toda evolução, está sujeita a avanços e retrocessos em sua programação. Pois, quando se aprende a diferença entre evolução e progresso, logo se descobre que a evolução, quando é evolução, não é obra de um só programador. Pois bem. Esta tecnologia comunicacional desenvolveu, ao longo do tempo, por força da diferenciação social e, por consequência, do surgimento de novos subsistemas sociais (política, economia, religião etc.) e da interação entre eles, três diferentes modelos operacionais que, apesar de suas especificidades, se encontram acoplados entre si. Estes modelos operacionais, em conjunto, viabilizam o funcionamento do subsistema jurídico e, com isso, a decidibilidade dos conflitos jurídicos. Estes modelos, como anota Tercio Sampaio Ferraz Jr21. são: o modelo analítico, o modelo hermenêutico e o modelo empírico. Cada modelo desempenha uma função específica a qual implica, por sua vez, no funcionamento, do outro. E os três, em conjunto, conseguem cumprir, a contento, a tarefa de decidir os conflitos jurídicos. Sendo assim, o modelo analítico, por meio das teorias da norma e do ordenamento jurídico, simplifica o conflito social, transformando-o em conflito jurídico. O que faz, dentre outras formas, por meio de uma operação de seleção e descarte. Mas não apenas por meio dela. Por sua vez, o modelo hermenêutico se encarrega da tarefa de traduzir a língua do legislador para língua do magistrado, o que faz graças a uma terceira língua, a língua hermenêutica22. Uma língua susceptível a um projeto hegemônico de poder. E, por fim, o modelo empírico, encarregado de construir a decisão jurídica e imunizá-la contra possíveis críticas. Afinal, mais importante que a decisão, é que ela tenha a capacidade de provocar a aceitação por parte de quem irá ser submetido a ela.

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fosse uma alquimia capaz das maiores proezas, que nem Nicolas Flamel poderia imaginar. E como, de há muito já se sabe, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma. E com o Direito, em tempos de sociedade hipercomplexa23, não parece ser diferente. Então, o que vem a ser decidir? Decidir é pôr o conflito sob controle, segundo o código do subsistema jurídico. Logo, decidir não tem qualquer relação com solucionar, vez que a decisão pressupõe que os conflitos sociais são complexos e, como tais, requerem tecnologias igualmente complexas. Tecnologias que tenham a capacidade de lidar com a diferenciação social24, reconhecendo-a, ao invés de negá-la. Tecnologias que tenham a capacidade de reduzir a complexidade dos conflitos sociais. E é isto que faz o sistema. Reduz a complexidade do conflito social, transformando-o em conflito jurídico. E ele, o conflito jurídico, tem a sua própria operacionalidade, os seus próprios programas, papéis e agentes. Eis o que é o direito: uma grande tecnologia de comunicação. Uma tecnologia que deve saber se valer do senso comum para potencializar a performance de seu funcionamento.

REFERÊNCIAS ADEODATO, João Maurício. Uma teoria retórica da norma jurídica e do direito subjetivo. São Paulo: Editora Noeses, 2011, p.177 CAPRA, Fritjof. A teia da vida. Tradução: Newton Roberval Eichemberg. São Paulo: Editora Cultrix, 1996. FERRAZ JR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão e dominação. São Paulo: Editora Atlas, 2015 a. - Direito, retórica e comunicação: subsídios para uma pragmática do discurso jurídico. São Paulo: Editora Atlas, 2015 b.

LUHMANN, Niklas. A improbabilidade da comunicação. Tradução: Anabela Carvalho. Lisboa: Editora Vega, 2006. - Legitimação pelo procedimento. Tradução: Maria da Conceição Côrte-Real. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1980.

23  NEVES, 2006, p.11-17. 24  NEVES, 2006, p. 11-17.

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HEIDEGGER, Martin. Introdução à filosofia. Tradução: Marco Antônio Casanova. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2009.

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- Sociologia do direito I. Tradução: Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Editora Tempo Brasileiro, 1983. MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulinas, 2011. NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil: o Estado Democrático de Direito a partir e além de Luhamnn e Habermas. São Paulo: Martins Fontes, 2006. SANTOS, Juarez Cirino dos. Teoria da pena: fundamentos políticos e aplicação judicial. Curitiba: ICPC; Lumen Juris, 2005. WATZLAWICK, Paul; BEAVIN, Janet H.; JACKSON, Don D. Pragmática da comunicação humana: um estudo dos padrões, patologias e paradoxos da interação. Tradução: Álvaro Cabral. São Paulo: Editora Cultrix, 2007. COMMUNICATING ON THE RIGHT FROM THE COMMUNICATION

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ABSTRACT: This paper intends to present introductory and didactic way, right from a communication perspective. This is because, from the communication, it is possible to conceive of the law as a great technology able to deal with the challenges posed by a hypercomplex society. Keywords: Communication. Right. Technology.

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HIPERCONSUMO E COISIFICAÇÃO DA NATUREZA: A ÉTICA DO DECRESCIMENTO NO COMBATE AO DESPERDÍCIO DE ALIMENTOS. Leônio José Alves da Silva*

RESUMO: O presente artigo discorre sobre a sociedade de hiperconsumo, suas principais características, o processo gradativo de coisificação da natureza (crença de preço dos bens ambientais), a ilusão da sociedade de abundância e sua repercussão na economia e modelo de consumo atual. Apresenta a cultura e ética do decrescimento como principal ferramenta de combate ao desperdício de alimentos no mundo, com ênfase à legislação francesa e outras práticas no direito comparado europeu. Palavras-chave: Hiperconsumo. Decrescimento. Desperdício de alimentos.

Inegavelmente a obra de François Ost representa um divisor crítico sobre a influência do Direito na proteção ambiental e os caminhos perseguidos para uma indispensável mudança de mentalidade sobre a percepção do ser humano em torno dos recursos naturais. Denuncia a lentidão na mudança de comportamentos e o ciclo de repetição dos legisladores em conceber recursos naturais como fontes inesgotáveis de energia a serviço da propriedade1. * Professor Associado de Direito Civil – UFPE CCJ. Professor Colaborador de Direito Ambiental – UFPEPRODEMA. Coordenador do Grupo de Pesquisa Tutela dos Interesses Difusos – CNPq. Pós-Doutorado em Direito – Universidade Federal de Santa Catarina. Pós-Doutorando em Direito – Universidade de Coimbra. Pós-Doutorando em Direito – Università degli Studi di Messina. Pós-Doutorando em Direito – UM1 – Montpellier. 1  “A tese fundamental desta obra é que a nossa época perdeu, pelo menos depois da modernidade, o sentido do vínculo e do limite das suas relações com a natureza. As duas grandes representações actualmente observáveis desta relação são disso testemunha: a que faz da natureza um objecto e a que, por uma simples alteração de signo, a transforma em sujeito. Será necessário tomar a medida exacta desta dupla redução, antagónica e contudo solidária, para colocar de novo e em novos moldes a questão ecológica. A dialéctica do vínculo e do limite ajudar-nos-á nesse propósito, o que permitirá definir os termos duma natureza-projecto: o que fazemos da natureza e o que ela faz de nós. Esboça-se aí um novo campo de interdependência, que designamos como «meio», e em relação ao qual a questão do «justo» pode ser recolocada com alguma hipótese de sucesso”. OST, François. A natureza à margem da Lei: a ecologia à prova do Direito. Lisboa: Instituto Piaget, 1995. p. 10.

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1. INTRODUÇÃO

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Questiona o processo legitimador de coisificação da natureza, onde haveria preço para todos os bens disponíveis, além da sua classificação no modelo eurocêntrico de legislação (notadamente o processo de codificação na Europa); a propriedade é reforçada como dogma absoluto e inquestionável, no início da codificação e, lentamente, sofre limitações quanto ao modo de exercício; todo o processo de constitucionalização do direito privado, inserção da função socioambiental da propriedade e demais princípios norteadores da conduta humana em prol da justiça social não foram suficientes para reduzir a velocidade de apropriação dos bens naturais e do próprio ser humano pelo ser humano. Tal é a crítica feita por François Ost sobre a comercialização de produtos derivados de material genético humano (patenteamento de células humanas) e reprodução industrial de plantas para fins urbanísticos2. O atual século XXI não nos legou o problema da coisificação; suas origens são anteriores e hoje aprofundadas, em virtude, principalmente, da expansão mundial da cultura tecnológica em detrimento da cultura humanista, onde o propósito do ter ocupa o lugar do ideal ser. A quantificação da natureza e todos os seus recursos, resulta de uma gradativa espoliação do ser humano sobre os limites de regeneração e essência dos recursos, surgindo uma postura de ignorância ou desprezo pelo fator sagrado dos bens naturais3.

2 A “ECONOMIA DO DESPERDÍCIO” E A “TRAGÉDIA DOS COMUNS”

2  “A natureza é precisamente, tanto na <f>vcnç grega como na natura latina, o que nasce, o que não cessa de ganhar existência, o que se dá permanentemente. O dado é igualmente um dom que apela, antes de mais, à passividade do acolhimento e à abertura da gratidão. Este dom, que relembra que nem tudo está disponível e é fabricável, é também condição do simbólico: uma vez que nem tudo é passível de ser dominado, abre-se um desvio onde têm origem o sentido e o trabalho de significação. Sem mesmo falar do sagrado, é muito simplesmente a possibilidade de fazer sentido que garante o vínculo reconhecido em relação ao dado natural”. OST, François. A natureza à margem da Lei: a ecologia à prova do Direito. Lisboa: Instituto Piaget, 1995. p. 12. 3  “Em compensação por este enraizamento perdido, a modernidade sonhava com um mundo novo produzido pelo cogito soberano. «Depois de nós, o melhor dos mundos», pensar-se-ia. Mas interrogamo-nos, hoje, se este projecto de ilimitabilidade não seria tão irresponsável como a atitude dos que dizem «depois de nós, o cataclismo». Os modernos tinham razão em pensar que o homem não se reduz à natureza, e que a sua libertação em relação a esta é o sinal mais seguro da sua humanidade; mas fizeram mal em esquecer que o limite (aqui a diferença homem-natureza), se por um lado separa e distingue, é também aquilo que liga. O limite é uma «diferença implícita», dizíamos nós. Retendo apenas a diferença e ocultando a implicação, os modernos conduziram-nos pela via da ilimitabilidade e da irresponsabilidade”. OST, François. A natureza à margem da Lei: a ecologia à prova do Direito. Lisboa: Instituto Piaget, 1995. p. 13 4  “Do exposto ate agora, chegamos a uma segunda conclusão, igualmente paradoxal: apesar de os recursos naturais disponíveis terem uma utilidade praticamente vital para os agentes economicos35, e apesar de serem cada vez mais escassos, eles estão sujeitos a uma tal intensidade de exploração pelo Homem que, em muitos casos, os faz aproximarem-se a passos largos da extinção. Esta situação absurda reflecte alguma “miopia” dos agentes económicos, que, incapazes de ver ao longe, não se apercebem de que, tomando decisões económicas com base em dados de curto prazo, estão a “cavar a sua própria sepultura” alheios as consequências futuras que, a médio ou longo prazo, decorrerão das suas decisões de hoje.’ ARAGÃO, Alexandra. O principio do poluidor pagador: pedra angular da politica comunitária do ambiente / Alexandra Aragão; coordenadores [da serie] Antonio Herman Benjamin, Jose Rubens Morato Leite. – São Paulo: Inst. O Direito por um Planeta Verde, 2014.p.25..

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A sociedade de massa também difundiu a cultura de categorias de bens sem utilidade exclusiva, onde a exploração desenfreada dos recursos naturais é corrente diante da comunhão de seu uso (bens comuns); tal situação impõe uma inadiável revisão dos conceitos e características dos bens livres e bens raros4 e, concomitantemente, o cuidado para não agravarmos a denominada “tragédia dos comuns”,

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consubstanciada nos efeitos da degradação dos recursos naturais5.

3. A ILUSÃO DA “SOCIEDADE DA ABUNDÂNCIA” Ao mesmo tempo que temos a impressão de poder reproduzir a natureza e controlar suas reações, surge a falsa ideia de uma sociedade de abundância6 que não presta contas ao meio ambiente e muito menos se preocupa em reduzir seus níveis de consumo ou desperdício, pois os recursos naturais seriam, em tal concepção, fontes inesgotáveis de energia para a produção desenfreada; todas as questões a envolver o consumo passam, antes, pela ótica das valorações ambientais, ou seja, é impossível debater o direito do consumidor sem antes ter em mente as orientações do direito ambiental; aliás, qualquer disciplina jurídica não pode ser estudada isoladamente e, muito menos, sem a preocupação interdisciplinar de outras ciências como a economia, geografia, história, medicina, antropologia, sociologia, engenharias e outros ramos.

4 A LEGISLAÇÃO FRANCESA SOBRE O DESPERDÍCIO ALIMENTAR

5  “Os falsos conceitos de bens “livres”, de res communes e de res nullius, conduziram a um fenómeno conhecido como a “tragédia dos comuns”, referencia aos efeitos sociais e economicamente perniciosos da acelerada e irresponsável delapidação dos recursos ambientais comuns. São vários os sucessivos actos da tragédia dos comuns: • Em primeiro lugar, não havendo limitação monetária da procura, não ha qualquer estimulo para uma utilização parcimoniosa dos recursos naturais. Surge a “economia de desperdício”; • Depois, não sendo as res nullius apropriáveis individualmente, não ha alguém especificamente interessado, como seria o caso do proprietário, em limitar a utilização eventualmente abusiva destes bens; • Por fim, como sao bens aos quais o acesso e livre44, inibem comportamentos de cooperação entre os utilizadores com vista a limitar o seu uso, e, por maioria de razão, inibem a adopção de medidas ou procedimentos técnicos de “renovação” ou “purificação” dos recursos. Efectivamente, sendo livre o acesso aos bens, mesmo que um determinado utilizador não pudesse ou não quisesse cooperar, seria impossível exclui-lo dos benefícios do melhoramento da do ambiente para que não contribuiu, diluindo-se os ganhos da cooperação pelos não cooperantes, ou “free riders”. Em suma, todos estes factores se conjugaram para desenvolver e enraizar, nos Homens em geral e nos agentes económicos em particular, aquilo a que Leite de Campos chamou “mentalidade predatória” do ambiente, exteriorizada através de uma sistemática, generalizada e irresponsável delapidação dos recursos naturais”. ARAGÃO, Alexandra. O principio do poluidor pagador: pedra angular da politica comunitária do ambiente / Alexandra Aragão; coordenadores [da serie] Antonio Herman Benjamin, Jose Rubens Morato Leite. – São Paulo: Inst. O Direito por um Planeta Verde, 2014.p.27. 6  A crença moderna de que a abundância é a condição necessária e suficiente para a felicidade deixou de ser uma evidência: resta saber se a recuperação da sabedoria não constitui, por seu turno, uma outra forma de ilusão. (...) A civilização consumista distingue-se pelo lugar central que ocupam os objectivos do bem-estar e a procura de uma vida melhor para nós próprios e para os que nos são próximos. (...) As nossas sociedades são cada vez mais ricas: no entanto, um número cada vez maior de pessoas vive em condições precárias e tem de economizar em todos os pontos de seu orçamento, com o dinheiro a tornar-se uma preocupação cada vez mais obsessiva. Temos acesso a cuidados de saúde cada vez melhores, mas isso não impede que muitos de nós se tornem hipocondríacos crónicos. (...) As solicitações hedonistas são omnipresentes: a inquietação, a decepção, a insegurança social e pessoal aumentam. Estes são alguns dos aspectos da sociedade de hiperconsumo a civilização da felicidade paradoxal”. LIPOVETSKY, Gilles. A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. Lisboa: Edições 70, 2007. p.11-12.

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Recentemente, em 2013, 2014 e 2015, a França atualizou sua legislação sobre a produção agrícola, pesca e produção animal e vegetal, incorporando práticas contra o desperdício e investindo na educação alimentícia (fomento ao consumo de alimentos mais saudáveis, principalmente contra a obesidade infantil e adulta) e educação ambiental; dentre os temas mais importantes, destacamos a luta contra o desperdício alimentar (gaspillage alimentaire), responsável pela inutilização de milhares de toneladas de alimentos todos os anos no território francês e aumento da emissão de gases pesados, conforme estudo realizado pela FAO, onde China, Estados Unidos, Rússia e índia ocupam os quatro primeiros lugares. (vide Figura 1).

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7  A doação obrigatória dos produtos não vendidos, em tempo hábil ao consumo humano, constitui ferramenta ainda em aperfeiçoamento no direito francês, prevendo as seguintes destinações: a) organizações de caridade, b) indústrias de transformação, c) consumo animal, d) aproveitamento na agricultura de compostagem e f) indústria energética: ”La loi sur le gaspillage alimentaire, une fausse bonne idée ? L’Assemblée nationale a adopté ce jeudi trois amendements visant à limiter le gaspillage alimentaire. Une mesure qui, paradoxalement, inquiète certaines associations. La grande distribution ne pourra plus jeter de nourriture. C’est l’une des mesures phares des amendements au projet de loi sur la transition énergétique déposés par Guillaume Garot, député PS de la Mayenne et ancien ministre délégué à l’Agro-alimentaire, et votés ce jeudi à l’unanimité par l’Assemblée – le texte doit encore passer par le Sénat. Il s’agit d’interdire aux moyennes et grandes surfaces de jeter des produits invendus mais consommables, et donc de les détruire en les aspergeant d’eau de Javel, comme cela se fait aujourd’hui. Comment ? En les obligeant à donner. D’ici juillet 2016, les enseignes de plus de 400 mètres carrés devront signer une convention avec une association caritative pour faire des dons alimentaires. Celles qui ne respecteront pas la loi risquent une contravention de 450 euros maximum – la version définitive de l’amendement a modifié l’amende de 75 000 euros et les deux ans d’emprisonnement inscrits au départ. En dernier recours, les denrées invendues seront destinées à l’alimentation animale, à la méthanisation ou au compost agricole. «Un cadeau empoisonné» Si la mesure a de quoi réjouir les associations, certaines s’inquiètent d’une obligation à donner. «Il ne faut pas que ça se transforme en cadeau empoisonné pour nous», s’alarme Olivier Berthe, le président des Restos du cœur. Les associations doivent pouvoir accepter «seulement les dons dont elles ont besoin, explique-t-il. On doit choisir la qualité et la quantité des produits donnés». Sa crainte : devenir une filière d’écoulement. «On n’est pas des dépotoirs.» Encore faut-il de la place pour stocker ce futur afflux de dons alimentaires. «On ne va pas se mettre à louer d’autres locaux qui nous coûteraient cher!», ajoute-t-il. Une inquiétude partagée par Jacques Bailet, président de la Fédération française des Banques alimentaires. Aujourd’hui, 35% de ses dons alimentaires proviennent des grandes surfaces. S’ils augmentent, cela ne causera selon lui «pas de difficultés» pour stocker les produits qui ont une date de durabilité minimale («à consommer de préférence avant le»), comme les pâtes, le riz ou les biscuits mais ce sera «un vrai problème» pour les produits étiquetés avec une date limite de consommation («à consommer jusqu’au») comme les poissons, les viandes et les laitages qui demandent une plus forte logistique, avec des chambres froides par exemple. «Si les volumes augmentent, il va falloir trouver des moyens logistiques et humains pour les gérer.» D’autant plus que les amendements prévoient aussi d’ouvrir au don les produits sous marque distributeur refusés par les grandes surfaces (pour mauvais étiquetage, par exemple), alors qu’ils sont détruits aujourd’hui. Ce qui augmentera davantage les stocks destinés aux associations. «Les bonnes volontés n’existent pas» Mais Guillaume Garot l’assure, la gestion des dons sera définie en amont dans la convention qui sera signée entre l’Etat, l’association et la grande surface. Forcer les entreprises à donner est selon lui la meilleure solution : «Je reçois depuis trois ans des associations qui manquent de dons alimentaires. Or les bonnes volontés n’existent pas assez et elles stagnent ces derniers temps. Il faut généraliser les bonnes pratiques. La convention permettra de mettre tous les acteurs d’accord et les associations pourront choisir ce dont elles ont besoin.» Jacques Bailet compte sur la bonne volonté des enseignes pour aider les associations dans la logistique, d’autant plus que leurs dons sont déductibles d’impôts. Mais pas sûr qu’elles jouent le jeu. Celles qui donnent aujourd’hui doivent fournir des denrées consommables aux associations mais «ça arrive encore souvent de devoir faire le tri», rappelle le président des Restos du cœur. «La loi se trompe en visant la grande distribution, qui ne représente que 5% du gaspillage alimentaire, s’agace Jacques Creyssel, délégué général de la Fédération du commerce et de la distribution. Et en la matière, nous sommes exemplaires puisqu’on représente déjà 35% des dons alimentaires. Plus de 4 500 magasins ont aujourd’hui signé des conventions avec des associations.» «La question est de mettre chacun devant ses responsabilités», lui répond Guillaume Garot, qui précise que les amendements votés contiennent aussi un volet sur l’éducation à l’alimentation.Si les grandes surfaces sont concernées par le gaspillage alimentaire, les ménages le sont tout autant. Un Français jette 20 à 30 kilos de nourriture par an, dont 7 encore emballés. Cela représente une perte de 100 à 160 euros par personne soit 12 à 20 milliards d’euros pour le gaspillage total en France.“ Disponível em http://www.liberation.fr/societe/2015/05/22/la-loi-sur-le-gaspillage-alimentaire-une-fausse-bonne-idee_1314660

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A legislação institui a obrigação dos supermercados e outros estabelecimentos doarem os alimentos não vendidos, industrializados ou não, antes do seu prazo razoável de consumo, para instituições de caridade ou afins vinculadas aos bancos alimentares da França. Além de medida educativa, possui alto teor preventivo contra o desperdício de alimentos próprios para o consumo que eram completamente inutilizados com o despejar de água sanitária ou outro elemento químico incorporado á natureza quando do seu descarte; observamos, aqui, inúmeras questões éticas que há pouco tempo eram desprezadas pelo direito europeu de um modo geral; inicialmente, a Bélgica criou legislação específica para tanto e serviu de base para outros países legislarem, a exemplo do modelo francês de combate ao desperdício; críticas surgem no setor industrial (reclama da impossibilidade de controle das embalagens e dos níveis de produção) e dos comerciantes (quanto à filiação aos bancos alimentares); contudo, acreditamos tratar-se de mera questão temporal para a absorção da cultura contra o desperdício e o hiperconsumo alimentar (que é a fonte primária do problema).7

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Figura 1. Gráfico representa os percentuais de desperdício alimentar e o aumento da emissão de gases do efeito estufa. Fonte: FAO Food wastage footprint: impact on natural resources. – Top 20 of GHG emitting countries vs. Food wastage

Figura 3. Cenas da campanha contra o desperdício alimentar na França. Fonte: http:// www.mieux-vivre-autrement.com/la-loi-contre-le-gaspillage-alimentaire-est-votee. html#sthash.K2Blbahk.dpbs

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Figura 2. Cenas da campanha contra o desperdício alimentar na França. Fonte: http:// www.conexaoparis.com.br/2015/06/18/franca-luta-contra-o-desperdicio-alimentar/

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5 “DESCONSUMO RELEVANTE” E CULTURA DO DECRESCIMENTO A substituição da economia do desperdício por uma cultura dissuasiva e sustentável passa, necessariamente, pela inversão de valores na cadeia de consumo e a força publicitária mundial (atualmente concentrada na exortação do consumo pelo consumo, ou consumo irresponsável e insustentável), modificando os estamentos da pirâmide de valores ambientais, como a política ambiental e alimentícia sugerida pela FAO/ONU, onde a redução do consumo ocuparia o primeiro lugar com a inversão da base axiológica consumerista e redução do desperdício a patamares desprezíveis. Em Lisboa foi criada a “Cooperativa da fruta feia”, instituição sem fins lucrativos responsável pela comercialização de frutas e vegetais considerados não aptos a concorrer com o mercado e que poderiam ser desperdiçados. (vide Figura 4)

Figura 4. “Cooperativa da fruta feia”, Lisboa – Portugal; principal objetivo é evitar o desperdício alimentar

8  “Quanto às pré-condições do desconsumo como obrigação natural, elas são basicamente a existência física dos produtos ou serviços no mercado e a sua acessibilidade económica. O consumidor só pode cumprir a sua obrigação natural de desconsumo se tiver direito de escolha, tanto materialmente como economicamente. Se não houver produtos alternativos no mercado que lhe permitam fazer escolhas ecologicamente responsáveis, ou se os produtos ou serviços alternativos tiverem preços muita mais elevados do que os produtos equivalentes menos “amigos do ambiente” e. em consequência, esses preços se puderem considerar como inacessíveis ao cidadão médio, então não se pode exigir ao consumidor que leve a cabo a “pré-ciclagem” exigida, a título de obrigação natural, pelo direito anabólico. (...) Por vezes o desconsumo pode originar vantagens individuais. Nesse caso, mais do que uma mera obrigação natural, o desconsumo é um verdadeiro ônus. Estamos a pensar, por exemplo, nas situações em que o Estado cria um tratamento fiscal mais favorável proporcional à contribuição voluntária para o interesse comum da redução de resíduos, como, por exemplo, a renúncia à posse individual de meios de transporte particulares. Neste caso, a partir do momento em que o consumidor tomou a opção pelo desconsumo, e na medida em que vai beneficiar de um tratamento fiscal privilegiado, ele vai estar sujeito a controlos que podem implicar alguma compressão dos seus direitos pessoais: o direito de consumir (não pode comprar um carro novo durante x anos sob pena de perda retroactiva do benefício), o direito à intimidade da vida privada (sujeitar-se à declaração e à fiscalização de trajectos), a liberdade de circulação (dependência relativamente a meios de transporte alheios) etc.” ARAGÃO, Alexandra. O Princípio do Nível Elevado de Protecção e a Renovação Ecológica do Direito do Ambiente e dos Resíduos. Coimbra: Almedina, 2006. p.597-598.

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Reduzir drasticamente e atingir, com o incentivo estatal, o desconsumo relevante8 seria a primeira atitude para preservar recursos ambientais e minimizar impactos intergeracionais; derivadas de tal comportamento surgiriam outras ferramentas complementares, tais como: a reutilização, a reciclagem e o reaproveitamento; o debate do desperdício alimentar, além de interessar diretamente ao direito ambiental, com a possibilidade de redução considerável de energia, água e outros recursos aplicáveis na produção de alimentos, interessa, também, ao campo da ética humana, pois vinculado às questões da justiça social com o combate à fome (vulnerabilidade alimentar), consagradas na agenda permanente da FAO/ONU. (vide Figura 5).

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Figura 5. Gráfico comparativo entre o desperdício alimentar e a emissão de gases carboníferos. Fonte: Food wastage footprint: impacts on natural resources. 2013.

Tal discussão remonta à incessante atividade do saudoso médico, professor universitário e embaixador brasileiro Josué de Castro, que tão bem versou sobre a justiça alimentar na sua obra clássica Geografia da fome9.

9  A obra do pernambucano Josué de Castro ultrapassou fronteiras e repercutiu com amplo poder crítico sobre a conduta dos Estados soberanos no tratamento emprestado ao problema da fome: versou sobre a geografia em seus diferentes aspectos, enfrentou questões econômicas clássicas, tocou em pontos delicados sobre a morte de milhares de pessoas pela péssima distribuição de riquezas e o desperdício alimentar. 10  “In 2011, FAO published a first report assessing global food losses and food waste (FAO 2011). This study estimated that each year, one-third of all food produced for human consumption in the world is lost or wasted. Grown but uneaten food has significant environmental and economical costs. Obviously, this food wastage represents a missed opportunity to improve global food security and to mitigate environmental impacts generated by agriculture. In addition, by 2050, food production will need to be 60 percent higher than in 2005/2007 (Alexandratos & Bruinsma 2012), if production is to meet demand of the increasing world population. Making better use of food already available with the current level of production would help meet future demand with a lower increase in agricultural production. To date, no study has analyzed the impacts of global food wastage from an environmental perspective. It is now recognized that food production, processing, marketing, consumption and disposal have important environmental externalities because of energy and natural resources usage and associated greenhouse gas (GHG) emissions. Broadly speaking, the environmental impacts of food mostly occur during the production phase. However, beyond this general trend, large discrepancies in food consumption and waste-generation patterns exist around the world. In a context of increasing commercial flows, there are significant differences in the intensity of wastage impacts among agricultural commodities, depending on their region of origin and the environmental issue considered. Therefore, it is necessary to assess the environmental impact of this food wastage at a regional level and by commodity type in order to capture specificities and finally draw the global picture.” FOOD AND AGRICULTURE ORGANIZATION OF UNITED NATIONS. Food wastage footprint: impacts on natural resources. 2013. Disponível em: www.fao.org/publications. p.8.

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Sabemos que não se muda o comportamento de uma sociedade com meras políticas repressivas; diferentemente, os movimentos de conscientização e educação ambiental (in casu) explicam a tarefa diuturna de incutir a ideia de finitude dos recursos naturais e o seu respeito e a indispensável transparência em divulgar os problemas relacionados à distribuição e melhor aproveitamento dos alimentos10. (vide Figura 6)

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Figura 6. Estudo comparativo entre a produção de alimentos, por classes, e o desperdício. Fonte: Food wastage footprint: impacts on natural resources. 2013..A agricultura lidera o ranking do desperdício, com a média de 33% de forma absoluta no setor; a distribuição e conservação também representam números alarmantes de 46%. Ausência de logística social com a conservação dos alimentos e intercâmbio de informações constituem fatores relevantes de tal cenário.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS De todos os problemas inerentes à modernidade e à sociedade de hiperconsumo, provavelmente o de maior resistência cultural seja o esvaziamento ético quanto ao limite de fruição das coisas e uso dos recursos naturais; a coisificação da natureza e do próprio ser humano, como ilustra Ost em sua magnífica obra “A natureza à margem da Lei” impressiona pelo poder de síntese e acuidade quanto aos desafios ambientais dos últimos séculos, destacando o fenômeno da coisificação da natureza.

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Figura 7. Demonstra a necessidade da mudança de paradigmas, onde a redução deve ocupar o topo de uma pirâmide, com base invertida. Fonte: http://www.fao.org/nr/ sustainability/pertes-et-dechets-alimentaires

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REFERÊNCIAS ARAGÃO, Alexandra. O principio do poluidor pagador: pedra angular da politica comunitária do ambiente / Alexandra Aragão; coordenadores [da serie] Antonio Herman Benjamin, Jose Rubens Morato Leite. – São Paulo: Inst. O Direito por um Planeta Verde, 2014. ARAGÃO, Alexandra. O Princípio do Nível Elevado de Protecção e a Renovação Ecológica do Direito do Ambiente e dos Resíduos. Coimbra: Almedina, 2006. FOOD AND AGRICULTURE ORGANIZATION OF UNITED NATIONS. Food wastage

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Lipovetsky e Latouche, ao nosso modo de entender, foram os melhores expoentes sobre a autofágica relação entre o hiperconsumo e o abandono da ética por parte da indústria, do mercado publicitário e do próprio consumidor; aproximam-se tais autores em conteúdo, objetivos e alternativas para a preservação do planeta. Talvez, os instrumentos mais poderosos contra o desperdício e a produção indiscriminada, agressiva e inconsequente sejam: o desconsumo relevante e constante educação ambiental. Entretanto, atingir tal patamar demandará um processo contínuo e longo de conscientização com a ferramenta da educação ambiental, pouco utilizada nos países subdesenvolvidos, a exemplo do Brasil e outros países com IDH baixo. Quanto à regulação do mercado publicitário, no Brasil ou no exterior, observamos resistência desmedida à imposição de quaisquer limites em regulamentação, inclusive em relação aos produtos nocivos à saúde individual ou coletiva. O hiperconsumo talvez seja o pilar das maiores agressões à natureza, pois sob o manto da economia liberal de pouca ou nenhuma presença estatal provoca inúmeros desrespeitos a uma série de garantias fundamentais, exigindo mão-de-obra servil, empregando matérias-primas de qualidade/procedência duvidosa, promovendo o endividamento desnecessário, abreviando criminosamente o ciclo de vida de equipamentos, vulgarizando o ato de consumo como satisfação pessoal e acessível a todos os estamentos (v.g. parelhos eletroeletrônicos, tecnologia da informação, veículos e outros utensílios domésticos e serviços). Enfim, reduzir os prejuízos causados com os nossos modelos societários, e suas distintas formas de apresamento da natureza, constitui tarefa que passa por pergunta inadiável a responder: desejamos sinceramente poupar a natureza de nossas escolhas egoísticas ou preferimos espolia-la indiscriminadamente sob a falácia de uma liberdade indistinta de consumo, de uma necessidade infinita de produzir em direção ao pleno emprego ou mesmo de não perder posições no ranking do comércio mundial? Convém destacar que a resposta deveria ter sido feita e estamos atrasados em várias décadas, ou, melhor dizendo, séculos.

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footprint: impacts on natural resources. 2013. Disponível em: www.fao.org/publications. LATOUCHE, Serge. Pequeno tratado do decrescimento sereno. São Paulo: Martins Fontes, 2009. LIPOVETSKY, Gilles. A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. Lisboa: Edições 70, 2007

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OST, François. A natureza à margem da Lei: a ecologia à prova do Direito. Lisboa: Instituto Piaget, 1995.

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O NEOCONSTITUCIONALISMO E A CONCRETIZAÇÃO DA DIGNIDADE DA PESSOA IDOSA Ricardo Maurício Freire Soares* Gilson Alves de Santana Júnior**

INTRODUÇÃO

* Pós- Doutor em Direito pela Università degli studi di Roma. Doutor e Mestre em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Direito (Especialização/Mestrado/Doutorado) da Universidade Federal da Bahia. Professor e Coordenador do Núcleo de Estudos Fundamentais da Faculdade Baiana de Direito. Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros e do Instituto dos Advogados da Bahia. E-mail: ric.mauricio@ig.com.br ** Mestre em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia. Especialista em Direito Público. Professor do curso de graduação da Universidade do Estado da Bahia e do Centro Universitário Estácio-FIB da Bahia. Advogado. E-mail: gilson.sjr@gmail.com

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RESUMO: O artigo propõe uma reflexão sobre o âmbito eficacial do princípio da dignidade da pessoa humana aplicado à pessoa idosa. Para tanto, adota como premissa a concepção de que o mencionado princípio constitui-se em código-diferença do ordenamento jurídico brasileiro, à luz da perspectiva neoconstitucionalista e dentro das premissas pós-positivistas de reaproximação entre o Direito, a moral e a ética, da dimensão normativa princípios jurídicos, do caráter principiológico dos direitos fundamentais e da necessidade de construção de métodos adequados de resolução de antinomias entre princípios jurídicos e entre direitos fundamentais. Finalmente, propõe uma reflexão sobre a necessidade e os fundamentos para a construção de políticas públicas inclusivas e sobre possíveis ameaças à concretização da dignidade da pessoa idosa, lançando um olhar sobre importantes dados estatísticos alusivos ao tema. Palavras-chave: Neoconstitucionalismo. Dignidade da pessoa humana. Pessoa idosa. Políticas públicas inclusivas.

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O pensamento jurídico contemporâneo tem caminhado no sentido de buscar superar as limitações mostradas pelo jusnaturalismo e pelo positivismo jurídico, o primeiro no que tange à falta de segurança jurídica de seus preceitos fundamentais e o segundo no que se refere ao distanciamento entre Direito e ética, o que, ao cabo, propicia um distanciamento entre este e a própria ideia de justiça. Assim, o epicentro do pensamento pós-positivista, consolidado no movimento neoconstitucionalista erigido após o término da II Guerra Mundial, é a dignidade da pessoa humana. Nessa nova perspectiva, reconhece-se o caráter normativo dos princípios jurídicos e o caráter principiológico dos direitos fundamentais, sendo todos estes derivados de um valor fundamental de todo o ordenamento jurídico, qual seja, o princípio da dignidade da pessoa humana. Sendo o valor fundamental do ordenamento jurídico e possuindo um conteúdo semântico aberto, o princípio da dignidade da pessoa humana deve ser interpretado e valorado atendendo às especificidades das situações concretas em que venha a projetar seus mandamentos. Assim, poderão ser extraídos desse princípios diferentes diretrizes e comandos, de modo que cada situação concreta guarde o máximo de proximidade com a ideia-força contida da dignidade humana. Uma outra abordagem importante é a de que a concepção sistêmica do direito pressupõe a existência de um código-diferença, vale dizer, de algum mecanismo responsável pela introjeção, dentro do sistema, dos elementos integrantes do meio-ambiente em que este se insere. No caso do direito, à luz da concepção pós-positivista, este papel é desempenhado pelo princípio da dignidade humana, que atua como premissa interpretativa de qualquer ação pública ou privada ou de qualquer norma jurídica. Assim, será juridicamente aceitável tudo aquilo que guardar correlação com o princípio da dignidade da pessoa humana, ou ao menos aquilo que o princípio não proíba, o que deve ser aplicado também na definição do tratamento jurídico a ser destinado às pessoas idosas, evitando privilégios indevidos, mas também e sobretudo, impedindo que estes não tenham sua situação de vulnerabilidade devidamente tutelada, o que em outro sentido implica em violação à dignidade humana. Ante o exposto, o artigo propõe uma reflexão sobre a concretização da dignidade da pessoa idosa, enquanto manifestação específica do princípio da dignidade da pessoa humana, buscando identificar até que ponto o ordenamento jurídico brasileiro abstratamente considerado e o Poder Publico, através de políticas públicas inclusivas, vêm atendendo às demandas específicas de materialização e efetividade da dignidade da pessoa idosa. Neste percurso, o artigo faz uma análise do princípio da dignidade da pessoa humana dentro do movimento neoconstitucionalista e do pós-positivismo jurídico, bem como examina brevemente ações governamentais voltadas à concretização da dignidade da pessoa idosa e os possíveis obstáculos à sua máxima efetividade no Brasil contemporâneo.

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1 A DIGNIDADE HUMANA COMO CÓDIGO-DIFERENÇA DO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO O processo de afirmação histórica dos direitos humanos, embora tenha transcorrido de maneira eminentemente caótica e alógica, desde as mais remotas civilizações, como bem demonstra Fábio Konder Comparato1, ganhou, após as revoluções liberais burguesas do século XVIII, um grau de concretude jamais visto, a partir da positivação de direitos humanos em tratados internacionais e nas constituições de quase todos os países do mundo. De outro lado, o aprofundamento teórico acerca dos direitos humanos e fundamentais também teve por objetivo e mérito blindar este grupo de direitos contra todo tipo de ação individual ou de Estado que possa significar um enfraquecimento desta categoria de direitos. Por conta disto é que a doutrina vem elencando diversos princípios aplicáveis aos direitos humanos e fundamentais, como por exemplo, a proibição do retrocesso, conforme leciona Canotilho2: [...] o núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efetivado através de medidas legislativas deve considerar-se constitucionalmente garantido, sendo inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que, sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam na prática numa ‘anulação’, ‘revogação’ ou ‘aniquilação’ pura e simples desse núcleo essencial

As diversas concepções neoconstitucionalistas parecem convergir para o entendimento de que o Direito é um constructo axiológico e teleológico, que impõe a compreensão e aplicação de princípios jurídicos, especialmente aqueles de natureza constitucional, de modo a potencializar a realização da justiça, o que se manifesta

1

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, passim.

2  CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 321 3  BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 533 4  TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 361-370. 5  SOARES, Ricardo Maurício Freire. O discurso constitucional da dignidade da pessoa humana: uma proposta de concretização do direito justo no pós-positivismo brasileiro. 2008. 277 f. Tese (Doutorado em Direito) Faculdade de Direito. Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2008, p. 159.

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Pela mesma razão, os direitos fundamentais encontram-se elencados na CRFB/88 como cláusulas pétreas, inscritas no artigo 60, § 4º. A doutrina clássica refere-se com grande entusiasmo às características dos direitos fundamentais como sendo, entre outras, sua universalidade, imprescritibilidade, atemporalidade, indisponibilidade, conforme ensinam Uadi Lammêgo Bullos3 e André Ramos Tavares4. Ainda com o intuito de fazer uma aproximação inicial do tema, a doutrina vem identificando a dignidade da pessoa humana como valor do qual decorrem todos os direitos humanos (e fundamentais), conforme afirma Ricardo Maurício Freire Soares5:

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plenamente com a aplicação do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Decerto, dentre os diversos princípios ético-jurídicos que adquiriram status constitucional nas últimas décadas, merece destaque a dignidade da pessoa humana, porquanto, na esteira do pós-positivismo jurídico, evidencia-se, cada vez de modo mais patente, que o fundamento último e a própria ratio essendi de um Direito justo não é outro, senão o próprio homem, considerado em dua dignidade substancial de pessoa, como um ser que encerra um fim em si mesmo, cujo valor ético intrínseco impede qualquer forma de degradação, aviltamento ou coisificação da condição humana.

A concepção do Direito como sistema autopoiético pressupõe a assimetria entre complexidade do sistema jurídico e supercomplexidade do meio ambiente na sociedade moderna. Diante da complexidade não-estruturada ou indeterminada/ indeterminável do meio ambiente, o Direito positivo construiria complexidade sistêmica estruturada ou determinada/determinável. Para isso, exige-se tanto a autoreferência consistente do sistema jurídico com base no código de diferença entre lícito e ilícito quanto a heterorreferência adequada ao correspondente meio ambiente, a tal ponto que o problema da justiça interna e externa é reduzido, respectivamente,

6  LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate, com a colaboração de Brunhilde Erker, Silvia Pappe e Luis Felipe Segura. México: Herder; Universidad Iberoamericana, 2005. 7

EASTON, David. A System Analysis of Political Life. New York: Wiley, 1965.

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Para prosseguir com este estudo, é imprescindível refletir sobre o papel dos direitos fundamentais como normas principiológicas fundantes do ordenamento jurídico e da dignidade da pessoa humana como código-fonte, de um ordenamento jurídico democrático, uma vez que isto servirá de base para o entendimento sobre a necessidade de afirmação e concretização constante da dignidade da pessoa humana, dos direitos fundamentais e, especialmente, de sua aplicação às pessoas idosas. Para tanto, a teoria sistêmica do direito de Niklas Luhmann6 permite vislumbrar o papel do código-diferença para um sistema e, no caso particular, o papel da dignidade da pessoa humana para o ordenamento jurídico brasileiro. Nascida na biologia, no início do século XX, a teoria dos sistemas foi trazida para o campo da ciência política por David Easton7 em meados do século XX, com o intuito de fazer uma análise mais acurada de campos sociais, em relação ao ambiente em que se inserem. Por sua vez, Luhmann propôs uma teoria sistêmica do Direito, trazendo para a análise desta ciência social as contribuições do campo da biologia e da ciência política. Segundo o autor, o direito é um sistema que tem como função a estabilização de expectativas de condutas, ainda que na prática corra uma frustração destas. Assim, o direito se constitui em um sistema aberto, ou seja, que se comunica com o ambiente social, mas que é capaz de controlar a maneira como o ambiente influencia o sistema, através do monopólio do seu código-diferença. Daí porque o autor afirma que o Direito é um sistema autopoiético.

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à questão desses dois modos de referência sistêmica8.

Todavia, embora o Direito possua um controle sobre seu código-diferença, ele depende do meio ambiente social para determinar quais condutas ou fatos sociais serão juridicamente tutelados, o que acaba dando ao direito um caráter operativamente fechado e cognitivamente aberto.

Pois muito bem, a definição do critério de seleção – código-diferença – do sistema jurídico é um fato social, ou seja, há uma disputa social pela definição de qual deve ser o código-diferença do direito. Em relação ao positivismo jurídico, é possível afirmar que o código-diferença era o lícito/ilícito, o que implica dizer que não havia uma preocupação ética do ordenamento jurídico; antes, os aspectos principais eram a existência, a validade e a eficácia da norma jurídica. Tal modelo, entretanto, foi radicalmente alterado sob os influxos do neoconstitucionalismo, devido à necessidade de se fazer uma reaproximação entre o direito, a ética e a moral, a fim de se construir um sistema jurídico mais protegido contra um modelo político de extrema direita, como ocorreu no período pré II Guerra Mundial, a exemplo do nazismo e do facismo. Assim é que o sistema jurídico neoconstitucional foi reestruturado, passando a adotar o código-diferença justo/injusto, ao mesmo tempo em que atrelou este conceito de justiça à necessidade de concretização dos direitos fundamentais, todos derivados do princípio da dignidade da pessoa humana. Em outras palavras, o compromisso maior do sistema jurídico democrático neoconstitucional é com a materialização da justiça, e não há justiça sem preservação da dignidade da pessoa humana em todas as suas faces, quais sejam, os direitos fundamentais. Assim, no novo paradigma neoconstitucional, o valor e o papel dos princípios jurídicos e dos direitos fundamentais foram profundamente modificados, conforme se demonstrará a seguir.

2 NEOCONSTITUCIONALISMO E O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

8

NEVES, Marcelo. A Constitucionalização simbólica. São Paulo: Acadêmica, 1994, p. 133.

9  ARNAUD, André-Jean; DULCE, Maria José Fariñas. Introdução à análise sociológica dos sistemas jurídicos. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 168.

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Deve-se considerar que a relação que o sistema jurídico mantém com o extrajurídico não é uma relação normativa, mas, nesse caso, uma relação “cognitiva” (“abertura cognitiva do sistema”), porque se trata de um processo auto-regulado (regulado do interior). Isso significa que, na comunicação, a informação ou os “estímulos” externos são transformados pelo sistema, ao longo do processo auto-referencial.9

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O modelo de ciência jurídica que exige o neoconstitucionalismo contrasta com aquele defendido pelo positivismo jurídico. Rejeitam-se, as noções de distanciamento, neutralidade valorativa e função descritiva da ciência jurídica, para incorporar-se às ideias de compromisso, intervenção axiológica, prioridade prática e caráter político do conhecimento científico do Direito. O denominador comum das teorias ditas neoconstitucionalistas parece ser a necessidade de superar um modelo que estabeleça que a ciência jurídica deve ocupar-se exclusivamente de descrever o Direito, através de uma atividade neutra aos valores sociais e alheia ao problema da efetividade do sistema jurídico. A partir do momento em que alguns padrões de moralidade são incorporados às Constituições através dos princípios ético-jurídicos, a tarefa de determinar o que o Direito diz não pode ser concebida como uma atividade totalmente científica ou objetiva, visto que podem entrar em jogo as opiniões e as considerações morais, o que confere verdadeira natureza política à atividade do jurista. Nesse sentido, o neoconstitucionalismo, além de evidenciar que algumas descrições podem ter uma significação política, vem apresentando a virtude de evidenciar que não se deve colocar todos os juízos de valor no mesmo plano e que nem todos os juízos de valor se reconduzem ao âmbito incontrolável da subjetividade. Por fim, verifica-se que o movimento neoconstitucionalista, com a internalização dos valores consubstanciados pelos princípios jurídicos, revela-se favorável à idéia de uma aceitação moral do Direito, resultando na adoção de perspectivas interna e externa de compreensão do fenômeno jurídico. A legitimação do sistema jurídico passa pela busca de um equilíbrio entre os pontos de vista de crítica interna, cujo parâmetro é a Constituição, e de crítica externa, cujo parâmetro é o substrato axiológico da moralidade social. Desse modo, o neoconstitucionalismo, como manifestação do pós-positivismo jurídico, abarca um conjunto amplo de mudanças ocorridas no Estado Democrático de Direito e no Direito constitucional, reaproximando as Constituições do substrato ético dos valores sociais e abrindo espaço para o reconhecimento da força normativa da Constituição e de uma nova interpretação constitucional de base principiológica. Em outras palavras, uma das características mais marcantes do neoconstitucionalismo consiste na freqüente utilização de princípios jurídicos no embasamento de processos hermenêuticos e decisórios, como espécies normativas que permitem conciliar as estimativas de justiça (legitimidade), típicas do jusnaturalismo, com as exigências de segurança (legalidade), próprias do positivismo jurídico. A valorização desses princípios jurídicos vem sendo acompanhada, pari passu, pela progressiva constitucionalização destes cânones éticos, promovendo a transição do modelo formal de Constituição, que a reduz a um mero catálogo de competências e procedimentos – para o paradigma material de Carta Magna, que a eleva ao patamar de repositórios dos valores fundantes do Estado e do conjunto da Sociedade civil.

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10  MORAES, Maria Celina Bodin de. O conceito de dignidade humana: substrato axiológico e conteúdo normativo. In: SARLET, Ingo Wolfgang. Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 107. 11  COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 21.

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Como salienta Maria Moraes10, tais princípios jurídicos, extraídos da cultura, exprimem a consciência social, o ideal ético e, portanto, a noção de justiça presente na sociedade, figurando, portanto, como os valores através dos quais aquela comunidade se organizou e se organiza. É nesse sentido que se deve entender o real e mais profundo significado, marcadamente axiológico, da chamada constitucionalização principiológica, através da qual a Constituição passa a representar o conjunto de valores sobre os quais se constrói, na atualidade, o pacto axiológico fundamental da convivência coletiva. Com a valorização da principiologia constitucional pelo neoconstitucionalismo, torna-se a Carta Constitucional uma expressão viva e concreta do mundo dos fatos e valores, adquirindo uma inegável tessitura axiológica e teleológica. A principiologia de cada Lei Fundamental se converte, assim, no ponto de convergência da validade (dimensão normativa), da efetividade (dimensão fática) e, sobretudo, da legitimidade (dimensão valorativa) de um dado sistema jurídico, abrindo espaço para a constitucionalização do direito justo. As diversas concepções neoconstitucionalistas parecem convergir para o entendimento de que o Direito é um constructo axiológico e teleológico, que impõe a compreensão e aplicação de princípios jurídicos, especialmente aqueles de natureza constitucional, de modo a potencializar a realização da justiça. Decerto, dentre os diversos princípios ético-jurídicos que adquiriram status constitucional nas últimas décadas, merece destaque a dignidade da pessoa humana, porquanto, na esteira do pós-positivismo jurídico, evidencia-se, cada vez de modo mais patente, que o fundamento último e a própria ratio essendi de um Direito justo não é outro, senão o próprio homem, considerado em sua dignidade substancial de pessoa, como um ser que encerra um fim em si mesmo, cujo valor ético intrínseco impede qualquer forma de degradação, aviltamento ou coisificação da condição humana. Segundo Fábio Comparato11, inspirado no pensamento kantiano, a pessoa é um fim em si mesmo, não podendo converter-se em instrumento para a realização de um eventual interesse, pois o ser humano e, de um modo geral, todo ser racional, existe como uma finalidade própria, sem figurar como meio do qual esta ou aquela vontade possa servir-se a seu talante. Pela sua vontade racional, ao contrário das coisas, só a pessoa humana vive em condições de autonomia, isto é, como ser capaz de guiar-se pelas leis que ele próprio edita. Logo, todo homem tem dignidade e não um preço, como as coisas. Sendo assim, o princípio ético-jurídico da dignidade da pessoa humana importa o reconhecimento e tutela de um espaço de integridade físico-moral a ser assegurado a todas as pessoas por sua existência ontológica no mundo, relacionando-se tanto com a manutenção das

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condições materiais de subsistência, quanto com a preservação dos valores espirituais de um indivíduo que sente, pensa e interage com o universo circundante. Como salienta Oscar Vieira12, ao servir de veículo para a incorporação dos direitos da pessoa humana pelo Direito, os direitos fundamentais passam a se constituir numa importante parte da reserva de justiça do sistema jurídico, sobretudo, pela abertura dos direitos fundamentais à moralidade, o que se verifica pela internalização de valores morais, como a dignidade humana. Uma sociedade que respeita os direitos decorrentes da dignidade da pessoa humana pode ser considerada, se não uma sociedade justa, ao menos muito próxima do ideal de justiça. Sendo assim, a dignidade da pessoa humana, sob os influxos do pós-positivismo neoconstitucionalista, converteu-se numa verdadeira fórmula de justiça substancial, passível de ser invocada concretamente pelos sujeitos de direito, sem os limites decorrentes das concepções jusnaturalista e positivista de fundamentação do direito justo. Não é outro o entendimento de David Pardo13, para quem a relação dos princípios com os valores, especialmente dos princípios jusfundamentais com o valor da dignidade, permite identificar a Constituição como um sistema normativo aberto à moralidade social cambiante, o que possibilita afirmar que todo o sistema jurídico recebe irradiação desse sentido de justiça emanado do conjunto dos princípios jusfundamentais e dos direitos fundamentais que os traduzem normativamente. Destarte, convém investigar os elementos que definem esse processo de positivação do direito justo, a partir do suporte axiológico e teleológico do princípio ético-jurídico da dignidade da pessoa humana, desde o processo da internacionalização dos direitos humanos até a sua expressa conversão em normatividade constitucional.

Antes mesmo de seu reconhecimento jurídico nas Declarações Internacionais de Direito e nas Constituições de diversos países, a dignidade da pessoa humana figura como um valor, que brota da própria experiência axiológica de cada cultura humana, submetida aos influxos do tempo e do espaço. Daí porque, longe de ser enclausurada como um ideal metafísico, absoluto e invariável, o princípio da dignidade da pessoa humana deve ser compreendida em sua dimensão histórico-cultural. Decerto, a apreensão do sentido do princípio da dignidade da pessoa humana não se afigura como o produto metódico de procedimentos formais, dedutivos e indutivos, mas, em

VIEIRA, Oscar Vilhena. Direitos fundamentais: uma leitura da jurisprudência do STF. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 37. 13  PARDO, Davi Wilson de Abreu. Os direitos fundamentais e a aplicação judicial do direito. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2003, p. 197. 12

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3 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA EXPERIÊNCIA AXIOLÓGICA DO DIREITO

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14  15

REALE, Miguel. Teoria tridimensional do direito. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 74. Idem. Fundamentos do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais; Universidade de São Paulo, 1972, p. 275.

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verdade, requer um conhecimento de base concreta e real, que repousa sobre valorações. Entendida a cultura como tudo aquilo que é construído pelo homem em razão de um sistema de valores, com o escopo de atender aos seus interesses e finalidades, será possível constatar que o princípio da dignidade da pessoa humana é dotado de um sentido de conteúdo valorativo, pertencente, portanto, ao campo da cultura humana. Disso se apercebeu o tridimensionalismo jurídico, ao conceber o valor da dignidade como fundamento concreto do direito justo. Foi integrado nessa linha de pensamento que Miguel Reale14 desenvolveu a sua teoria tridimensional do Direito. Para ele, sendo a experiência jurídica uma das modalidades da experiência histórico-cultural, compreende-se que a implicação polar fato-valor se resolve, num processo normativo de natureza integrante, cada norma ou conjunto de normas representando, em dado momento histórico e em função de dadas circunstâncias, a compreensão operacional compatível com a incidência de certos valores sobre os fatos múltiplos que condicionam a formação dos modelos jurídicos e sua aplicação. Trata-se de um tridimensionalismo concreto, dinâmico e dialético, visto que estes elementos estão em permanente atração polar, já que o fato tende a realizar o valor, mediante a norma. A norma deve ser concebida como um modelo jurídico, de estrutura tridimensional, compreensiva ou concreta, em que fatos e valores segundo normas postas em virtude de um ato concomitante de escolha e de prescrição (ato decisório), emanado do legislador ou do juiz, ou resultante de opções costumeiras ou de estipulações fundadas na autonomia da vontade dos particulares. Com essa teoria integrativa, Reale rejeita todas as concepções setorizadas de direito (normativismo abstrato, sociologismo jurídico e moralismo jurídico), postulando, assim, uma doutrina que requer a integração dos três elementos constitutivos do direito, numa unidade funcional e de processo, em correspondência com os problemas complementares da validade social (eficácia), da validade ética (fundamento) e da validade técnico-jurídica (vigência). O conhecimento jurídico desponta como uma ciência histórico-cultural e compreensivo-normativa, por ter por objeto a experiência social na medida em que esta normativamente se desenvolve em função de fatos e valores, para a realização ordenada da vida humana. Segundo Reale15, o fundamento último que o Direito tem em comum com a Moral e com todas as ciências normativas deve ser procurado na dignidade intrínseca da própria vida humana, não como entidade abstrata à maneira dos jusnaturalistas, mas como ser racional destinado por natureza a viver em sociedade e a realizar seus fins superiores. Da análise da natureza racional do homem e da consideração de que o homem é por necessidade um animal político, resulta a idéia de que cada homem representa um valor e que a pessoa humana constitui o valor-fonte de todos os valores. A partir deste valor-fonte, torna-se possível alcançar o fundamento peculiar do Direito, remetendo ao valor-fim próprio do Direito que é a Justiça, entendida não

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4 A DIGNIDADE DA PESSOA IDOSA: FUNDAMENTOS PARA POLÍTICAS PÚBLICAS INCLUSIVAS Após as análises até aqui desenvolvidas, é forçoso reconhecer que o conceito de dignidade da pessoa humana pode implicar em manifestações distintas, a depender de sua aplicação concreta. Em outras palavras, a dignidade da pessoa humana resultará em normas jurídicas

16

Ibidem, p. 300.

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como virtude, mas em sentido objetivo como justo, como uma ordem que a virtude justiça visa a realizar. Neste sentido, o Direito se desenvolve porque os homens são desiguais e aspiram à igualdade, inclinando-se para a felicidade e querendo ser cada vez mais eles mesmos, ao mesmo tempo em que aspiram a uma certa tábua igual de valores. Refere o jurisfilósofo que a idéia de Justiça, que, no seu sentido mais geral, exprime sempre proporção e igualdade, é própria da dignidade da pessoa humana, como ente racional e social. Vivendo em sociedade e procurando o seu bem, o homem acaba compreendendo a necessidade racional de respeitar em todo homem uma pessoa, condição essencial para que também possa se afirmar como pessoa. Sendo assim, a idéia de Justiça liga-se, de maneira imediata e necessária, à idéia de pessoa humana, pelo que o Direito, como a Moral, figura como uma ordem social de relações entre pessoas. Na visão de Miguel Reale16, os valores que se ligam necessariamente ao valor-fonte da dignidade da pessoa humana constituem o conteúdo próprio da Justiça e, uma vez traduzidos em preceitos incorporados à cultura, tornam-se eles preceitos universais, comuns a todos os povos e lugares, pelo que toda regra que atualize esses preceitos fundamentais conta com o assentimento dos sujeitos. Ao lado destes preceitos gerais que exprimem a constante ética do Direito, outros há que também servem de fundamento às regras do Direito Positivo, na condicionalidade de cada cultura, representando as infinitas formas de integração dos valores mais altos no desenvolvimento histórico das civilizações em face do lugar e do tempo. Dentro da dimensão valorativa do direito e no campo da fundamentação de sua validade ética, o problema da justiça adquire relevo. O que importa não é a definição da justiça – dependente sempre da cosmovisão dominante em cada época histórica –, mas sim o seu processo experiencial através do tempo, visando a realizar cada vez mais o valor da dignidade da pessoa humana, valor fonte de todos os demais valores jurídicos. Pode-se afirmar que, nesse contexto, a justiça se apresenta como condição transcendental da realização dos demais valores, por ser a base sem a qual os demais valores não poderiam se desenvolver de forma coordenada e harmônica, em uma comunidade de homens livres. É por tal razão que a justiça deve ser entendida como um valor franciscano, na condição de valor-meio, sempre a serviço dos demais valores para assegurar-lhes seu adimplemento, em razão da dignidade da pessoa humana que figura como o valor-fim da ordem jurídica

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diversas em razão da necessidade de sua aplicação material, a fim de concretizar o valor justiça. Tal característica decorre do fato de o conceito de justiça empregado pelo ordenamento jurídico neoconstitucional estar atrelado a um conceito de igualdade material, ou seja, existe a necessidade concreta de se adotar políticas públicas tendentes a corrigir desigualdades materiais ou sociais, a fim de que todas as pessoas possam viver segundo um mesmo parâmetro de oportunidades. A rigor, é a situação de desigualdade entre as pessoas que justifica o tratamento favorecido que o ordenamento jurídico neoconstitucional dá àqueles que se encontram em situação de desvantagem ou vulnerabilidade. Assim, partindo do pressuposto de que a pessoa idosa está em situação de vulnerabilidade ou desvantagem em relação aos não idosos, o ordenamento jurídico brasileiro, sob os influxos do neoconstitucionalismo, destina diversas políticas públicas de atenção à pessoa idosa. A esta altura, cumpre referir quem é a pessoa idosa, segundo o ordenamento jurídico pátrio. Inicialmente, vale ressaltar que a cronologização da vida e a sua separação em fases ou faixas etárias não são biologicamente explicadas, mas são uma produção sócio-cultural. Assim, o conceito de idoso pode variar (como de fato tem variado) a partir de relações e interesses sociais. […] um processo biológico é elaborado simbolicamente com rituais que definem fronteiras entre as idades pelas quais os indivíduos passam e que não são necessariamente as mesmas em todas as sociedades17

Ao longo dos séculos XIX e XX, as classificações das fases da vida e as diferenças de gênero passam a ser gerenciadas por esse sistema dominante de idéias. Instituições e áreas de conhecimento desenvolvidas neste processo histórico colaboram para esta nova compreensão das etapas da vida: a escola, o hospital, o asilo, a pedagogia, a psiquiatria, a demografia, a sociologia, a psicologia, a gerontologia, e a geriatria. Donzélot vai chamar este conjunto de “polícias da família” entendendo por polícia a característica disciplinadora e controladora dessas diferentes instâncias da vida social. Constróem-se, portanto, saberes, práticas e instituições para períodos específicos que, examinados detalhadamente, acabam por gerar novas especialidades, novas formas de controle e novas possibilidades de construções de outras classificações

17  DEBERT, Guita Grin. A antropologia e o estudo dos grupos e das categorias de idade. In: BARROS, Myriam Moraes Lins de (Org.). Velhice ou terceira idade?: Estudos antropológicos sobre identidade, memória e política. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2003, p.51.

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Em sociedades primitivas, a definição das etapas da vida são comumente marcadas por ritos de passagem simbolicamente estabelecidos pelo grupo social e não pela idade cronológica. Modernamente, entretanto, os ritos de passagem foram substituídos por uma consideração cronológica da vida, sujeitando todas as pessoas a uma mesma classificação etária.

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etárias: primeira infância, pré-adolescência, adolescência, maturidade, velhice. E hoje: terceira idade, quarta idade, velhos-jovens, velhos-velhos. Essas temporalidades marcam segregações entre elas, definem e institucionalizam as idades para escolaridade, trabalho, casamento, aposentadoria.18

A título de exemplo, Debert19 menciona que a infância, enquanto categoria etária, só surgiu na idade média. Antes deste período histórico, assim que a pessoa atingia condições físicas para o trabalho, era inserida nesse contexto, razão pela qual a separação entre a infância e a idade adulta só veio a ocorrer devido à necessidade de “[…] construção do adulto como um ser independente, dotado de maturidade psicológica, direitos e deveres de cidadania”20. No que se refere à velhice, esta só veio a ser sedimentada teoricamente a partir da década de 1970, quando os ordenamentos jurídicos ocidentais passaram a destinar políticas públicas específicas de atenção e proteção aos idosos21. No Brasil, atualmente, a pessoa idosa é definida como aquela com 60 anos ou mais de idade (art. 1º da lei 10.741/2003), à qual é sujeito de direitos e garantias especiais, compatíveis com a sua condição de vulnerabilidade. Lei 10.741/2003 Art. 1º É instituído o Estatuto do Idoso, destinado a regular os direitos assegurados às pessoas com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos. Art. 2º O idoso goza de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhe, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, para preservação de sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade.

É facilmente perceptível no Estatuto do idoso o tratamento especial conferido a esta parcela da população, como forma de corrigir as distorções impostas pela idade avançada às condições materiais de fruição da dignidade humana.

18  BARROS, Myriam Moraes Lins de. Velhice na contemporaneidade. In: PEIXOTO, Clarice Ehlers (Org.). Família e envelhecimento. Rio de Janeiro: FGV, 2004, p. 15-16. 19  DEBERT, Guita Grin. A reinvenção da velhice: Socialização e processos de reprivatização do envelhecimento. São Paulo:USP-Fapesp, 2004, p. 43. 20  Idem. A antropologia e o estudo dos grupos e das categorias de idade. In: BARROS, Myriam Moraes Lins de (Org.). Velhice ou terceira idade?: Estudos antropológicos sobre identidade, memória e política. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2003, p 52. 21

Ibidem, p 53.

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Art. 3º É obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do Poder Público assegurar ao idoso, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.

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É com base nesta concepção que o ordenamento jurídico brasileiro incorporou o conceito de “envelhecimento ativo” para orientar as políticas públicas a serem implementadas pelo Estado em atenção à pessoa idosa. O termo “envelhecimento ativo” foi adotado pela Organização Mundial de Saúde no final dos anos 90. Ele procura transmitir uma mensagem mais abrangente do que “envelhecimento saudável”, e reconhecer, além dos cuidados com a saúde, outros fatores que afetam o modo como os indi­víduos e as populações envelhecem. Com esta abordagem, o planejamento estratégico deixa de ter um enfoque baseado nas necessidades biológicas ou de cuidados (que considera as pessoas mais velhas alvos passivos) e passa ter um enfoque baseado nos direitos, o que permite o reconhecimen­ to dos direitos dos mais velhos à igualdade de opor­t unidades e tratamento em todos os aspectos da vida à medida que envelhecem. Esta abordagem apoia a responsabilidade dos mais velhos no exercício de sua participação nos processos políticos e nos outros aspectos da vida em comunidade22.

O que se busca, portanto, não é simplesmente o atendimento das necessidades básicas de cuidado da pessoa idosa, mas sim a viabilização de que esta continue exercendo ativamente suas competências e habilidades no ambiente social, o qual se encontra material e juridicamente preparado para permitir este estado de vida ativa, que extrapola a mera subsistência. Ainda nesse sentido, o Brasil incorporou também ao seu ordenamento jurídico os “Princípios das Nações Unidas para as Pessoas Idosas”23, os quais definem, no âmbito da pro-

Independência 1. Os idosos devem ter acesso a alimentação, água, alojamento, vestuário e cuidados de saúde adequados, através da garantia de rendimentos, do apoio familiar e comunitário e da auto-ajuda. 2. Os idosos devem ter a possibilidade de trabalhar ou de ter acesso a outras fontes de rendimento. 3. Os idosos devem ter a possibilidade de participar na decisão que determina quando e a que ritmo tem lugar a retirada da vida activa. Documentos Legais 4. Os idosos devem ter acesso a programas adequados de educação e formação. 5. Os idosos devem ter a possibilidade de viver em ambientes que sejam seguros e adaptáveis às suas preferências pessoais e capacidades em transformação. 6. Os idosos devem ter a possibilidade de residir no seu domicílio tanto tempo quanto possível. Participação 7. Os idosos devem permanecer integrados na sociedade, participar activamente na formulação e execução de políticas que afectem directamente o seu bem-estar e partilhar os seus conhecimentos e aptidões com as gerações mais jovens. 8. Os idosos devem ter a possibilidade de procurar e desenvolver oportunidades para

22  KEINERT, Tânia Margarete Mezzomo; ROSA, Tereza Etsuko da Costa. Direitos Humanos, envelhecimento ativo e saúde da pessoa idosa: marco legal e institucional. BIS, Bol. Inst. Saúde (Impr.), São Paulo, n. 47, abr. 2009. Disponível em: <http://periodicos.ses.sp.bvs. br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1518-18122009000200002&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 13 mai. 2015. 23  BRASIL. Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Documentos Legais. Disponível em: <http://www.sdh.gov. br/assuntos/pessoa-idosa/legislacao/copy2_of_DOCUMENTOS_LEGAIS.pdf>. Acesso em 13 mai. 2015.

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teção global aos direitos humanos, dezoito diretrizes para o tratamento normativo e social da pessoa idosa. São eles:

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prestar serviços à comunidade e para trabalhar como voluntários em tarefas adequadas aos seus interesses e capacidades. 9. Os idosos devem ter a possibilidade de constituir movimentos ou associações de idosos. Assistência 10. Os idosos devem beneficiar dos cuidados e da protecção da família e da comunidade em conformidade com o sistema de valores culturais de cada sociedade. 11. Os idosos devem ter acesso a cuidados de saúde que os ajudem a manter ou a readquirir um nível óptimo de bemestar físico, mental e emocional e que previnam ou atrasem o surgimento de doenças. 12. Os idosos devem ter acesso a serviços sociais e jurídicos que reforcem a respectiva autonomia, protecção e assistência. 13. Os idosos devem ter a possibilidade de utilizar meios adequados de assistência em meio institucional que lhes proporcionem protecção, reabilitação e estimulação social e mental numa atmosfera humana e segura. 14. Os idosos devem ter a possibilidade de gozar os direitos humanos e liberdades fundamentais quando residam em qualquer lar ou instituição de assistência ou tratamento, incluindo a garantia do pleno respeito da sua dignidade, convicções, necessidades e privacidade e do direito de tomar decisões acerca do seu cuidado e da qualidade das suas vidas. Realização pessoal 15. Os idosos devem ter a possibilidade de procurar oportunidades com vista ao pleno desenvolvimento do seu potencial. 16. Os idosos devem ter acesso aos recursos educativos, culturais, espirituais e recreativos da sociedade.

A situação de vulnerabilidade que justifica o tratamento jurídico diferenciado do qual a pessoa idosa é merecedora decorre, de um lado, das características contemporâneas da sociedade capitalista. Ora, o idoso, no mais das vezes, não tem condições físicas e de saúde para continuar atuando como força produtiva no mercado de trabalho, ao menos não em condições concretas de igualdade face à população jovem. Daí porque a necessidade de destinação de políticas públicas específicas de amparo material e financeiro ao idoso, a exemplo do Benefício de Prestação Continuada da Lei Orgânica da Assistência Social (BPC-LOAS), da aposentadoria, entre outros institutos. Um outro fundamento para o estabelecimento de direitos especiais para a pessoa idosa decorre do próprio paradigma ético da sociedade brasileira e, por conseguinte, do ordenamento jurídico brasileiro. De fato, a ciência jurídica é uma ciência social e, como tal, é profundamente marcada pela sociedade que pretende regular. Retomando a concepção sistêmica de Direito, já trabalhada, percebe-se que o sistema jurídico é do tipo aberto, ou seja, ele é influenciado pelo ambiente em que está inserido, embora adquira certa autonomia através do controle do seu código-diferença.

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Dignidade 17. Os idosos devem ter a possibilidade de viver com dignidade e segurança, sem serem explorados ou maltratados física ou mentalmente. 18. Os idosos devem ser tratados de forma justa, independentemente da sua idade, gênero, origem racial ou étnica, deficiência ou outra condição, e ser valorizados independentemente da sua contribuição econômica.

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24  KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. 7. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 155.

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Desta forma, é forçoso reconhecer que o Direito é uma das formas de regular o convívio social e, como tal, reflete os valores sociais que caracterizam a sociedade regulada. Isto pode ser facilmente percebido ao se comparar ordenamentos jurídicos de povos com base cultural bastante distinta, o que invariavelmente resulta em normatizações distintas para o mesmo fato social. Assim, o ordenamento jurídico brasileiro tem sua gênese e fundamento nos princípios e valores da sociedade brasileira, naquilo que Kelsen já denominava Norma Hipotética Fundamental24 e, conforme já aqui referido, os direitos fundamentais, lastreados no conceito de dignidade da pessoa humana, compõem o núcleo desses princípios e valores fundamentais. Portanto, o paradigma ético da sociedade brasileira exige uma atenção especial às populações vulneráveis, como é o caso da criança e do adolescente, do índio, da pessoa com deficiência, da pessoa em situação de miséria econômica e, também, da pessoa idosa. Curiosamente, as estatísticas demonstram que a população brasileira está envelhecendo rapidamente, ao mesmo tempo em que tem permanecido por cada vez mais tempo no mercado de trabalho. Percebe-se, pois, a necessidade de uma reflexão sobre as regras atinentes à pessoa idosa enquanto força produtiva, vale dizer, é necessário criar o ambiente de trabalho adequado à concretização da dignidade da pessoa idosa, além de lhe garantir condições concretas de atuação no mercado de trabalho, de modo a sua idade não representar uma desvantagem competitiva em relação aos seus concorrentes. Tal preocupação com o envelhecimento ativo decorre não só de uma determinação teórica do Direito, mas também de uma condição prática: a população brasileira está vivendo mais. As estatísticas mostram que a população brasileira está envelhecendo e que os idosos tem exercido um papel cada vez mais ativo na sociedade. A figura abaixo registra, com base nos dados coletados pelo IBGE, que a população de idoso saltou de 4,9% da população brasileira em 1950 para 10,2% da população em 2010, com projeção de 29,7% em 2050.

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Figura 1- Transformações da pirâmide etária brasileira

Fonte: site Brasil Idoso25 Figura 2- Número de pessoas com mais de 60 anos de idade

A expectativa de vida do brasileiro também tem crescido significativamente nas últimas décadas, o que aumenta também a demanda pelo reconhecimento de direitos que materializem a dignidade da pessoa idosa. O aumento da população idosa no Brasil remete com maior intensidade os problemas e as demandas sociais específicas deste grupo para o campo das políticas públicas, haja vista que o Estado precisará destinar cada vez mais recursos públicos para a proteção desta parcela vulnerável da população.

25

Disponível em: <https://brasilidoso.wordpress.com/estatisticas/#jp-carousel-154>. Acesso em 13 mai. 2015.

26  Disponível em: BRASIL. Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos. Dados sobre o envelhecimento no Brasil. Disponível em: < http://www.sdh.gov.br/assuntos/pessoa-idosa/dados-estatisticos/DadossobreoenvelhecimentonoBrasil.pdf> Acesso em 13 mai. 2015.

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Fonte: Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos26

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Figura 3- Expectativa de vida no Brasil

Fonte: site Brasil Idoso27

Paradoxalmente, segundo dados oficiais do governo brasileiro, o país tem experimentado algum avançado na afirmação da dignidade da pessoa idosa, embora ainda esteja muito aquém do que se espera da sétima maior economia do mundo.

Mas a maior contradição, no que tange a concretização da dignidade da pessoa idosa no Brasil, tem sido a restrição a direitos fundamentais dos idosos, conforme abordado no capítulo seguinte.

5 A ALOPOIESE DO DIREITO E A ESCASSEZ DE RECURSOS: AMEAÇAS À DIGNIDADE DA PESSOA IDOSA

27

Disponível em: <https://brasilidoso.wordpress.com/estatisticas/#jp-carousel-154>. Acesso em 13 mai. 2015.

28  BRASIL. Brasil é reconhecido por políticas públicas em favor de idosos. Portal Brasil. Disponível em: < http://www.brasil.gov.br/ saude/2014/01/brasil-e-reconhecido-por-politicas-publicas-em-favor-de-idosos> Acesso em 13 mai. 2015.

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Foram esses avanços que colocaram o Brasil na 31ª posição no ranking dos países que oferecem melhor qualidade de vida e bem-estar a pessoas com mais de 60 anos, segundo o Global AgeWatch Index 2013, da organização não-governamental Help Age International, que luta pelos direitos dos idosos. Os indicadores consideraram quatro áreas-chave: garantia de renda, saúde, emprego e educação, e ambiente social. O Brasil obteve nota 58,9 e seu melhor desempenho foi na categoria garantia de renda, em que ocupou a 12ª posição, graças às transferências de renda implementadas pelo governo brasileiro, como forma de reduzir a desigualdade social. No entanto, no quesito emprego e educação para pessoas entre 55 e 64 anos empregadas, e o grau de instrução dos idosos, o País teve o seu pior desempenho, ficando em 68º lugar. Já nas categorias saúde e ambiente social, o obteve as 41ª e 40ª colocações, respectivamente.28

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Como visto, Luhmann classifica o direito como um sistema autopoiético, isto é, autorreferente, com controle sobre o seu código-diferença. A concepção do Direito como sistema autopoiético pressupõe a assimetria entre complexidade do sistema jurídico e supercomplexidade do meio ambiente na sociedade moderna . Diante da complexidade não-estruturada ou indeterminada / indeterminável do meio ambiente, o Direito positivo construiria complexidade sistêmica estruturada ou determinada /determinável . Para isso, exige-se tanto a auto-referência consistente do sistema jurídico com base no código de diferença entre lícito e ilícito quanto a heterorreferência adequada ao correspondente meio ambiente, a tal ponto que o problema da justiça interna e externa é reduzido, respectivamente, à questão desses dois modos de referência sistêmica

A insuficiente concretização normativa do texto constitucional, no qual todas as instituições referidas são proclamadas, é um sintoma da incapacidade do sistema jurídico de responder às exigências do seu “meio ambiente”. Os direitos fundamentais constituem-se, então, em privilégio de minorias, sobrevivendo, para a maioria da população, quase apenas na retórica político-social dos “direitos humanos”, tanto dos ideólogos do sistema quanto dos seus críticos. A inclusão através do Estado de bem-estar, proclamado na Constituição, é relevante apenas no discurso da realização das normas programáticas num futuro remoto. O desrespeito ao due process of law constitucionalmente festejado é a rotina da prática dos órgãos estatais (especialmente da polícia) com relação às classes populares (à maioria). A politização particularista da administração impede a concretização generalizada dos princípios constitucionais da moralidade e impessoalidade. A corrupção e as fraudes eleitorais impossibilitam a legitimação constitucional (generalizada) do sistema político, que passa, então, a subordinar-se instavelmente aos interesses particularistas de cima e às necessidades concretas de baixo, sendo constrangido a adotar mecanismos substitutivos de “legitimações casuísticas” inconstitucionais (favores, concessões, ajudas e trocas ilícitas).30

29

NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Acadêmica, 1994, p. 113-128.

30  Ibidem, p. 140.

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Entretanto, a realidade dos países periféricos (para utilizar a terminologia do próprio autor) é consideravelmente distinta. Marcelo Neves29 chama a atenção para o fato de que nesses países, o sistema jurídico perde o controle sobre seu código-diferença, devido à influência de outros sistemas, como o político e o econômico, passando então a ser heterorreferente. Isso significa dizer que o sistema jurídico passa a ser definido e a evoluir não por questões de lógica ou de dogmática jurídica, mas por determinações do campo político, econômico, entre outros. A alopoiese do direito tem um efeito devastador sobre a concretização da constituição, uma vez que causa um distanciamento entre a teoria jurídica e a prática jurídico-social, com um consequente esvaziamento dos direitos – inclusive fundamentais – em diversos níveis.

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Tal fenômeno acaba por potencializar a função simbólica da norma jurídica (e da norma constitucional), no sentido de que ela passa a atuar não como instrumento de regulação social e vinculação de condutas, mas como mecanismo de dilação compromissória ou afirmação de valores sem efetividade social. Há um distanciamento entre o sentido latente e o sentido manifesto, de modo que a norma não cumpre mais o papel por ela declarado. Levado ao extremo, o autor denomina este processo de hipertrofia do sentido conotativo da norma jurídico-constitucional como constitucionalização simbólica, ocasionado pela perda, por parte do direito, da autonomia quanto ao seu código-diferença31. De fato, algumas alterações normativas podem ser interpretadas como uma ingerência dos campos político e econômico no campo jurídico (sobretudo no que tange à dignidade da pessoa idosa), uma vez que significaram uma drástica restrição aos direitos fundamentais da pessoa idosa, motivadas por determinações de campos alheios ao jurídico. Um bom exemplo disto foi a taxação de inativos da previdência social (no regime próprio de previdência), conforme dispõe o artigo 40 da Constituição Federal. A taxação de inativos da previdência implica em uma redução do valor líquido recebido pelo aposentado, o qual não será revertido diretamente em seu próprio benefício, o que impactará negativamente sua qualidade de vida em um dos momentos de maior vulnerabilidade de sua trajetória. Constituição Federal

Em outro mote, a escassez de recursos tem sido utilizada como justificativa para a restrição, ou implementação parcial, dos direitos fundamentais, dentre eles os direitos fundamentais da pessoa idosa. A questão de fundo reside em uma suposta impossibilidade financeira de o Poder Público realizar os direitos fundamentais de prestação positiva, uma vez que eles demandam a implementação de políticas públicas e ações afirmativas de natureza econômica. Segundo Gustavo Amaral32, perfilhando-se ao entendimento de Stephen Holmes e Cass Sunstein, a escassez de recursos e a organização democrática do Estado determina que a adoção de medidas alocativas de recursos, com a tomada de decisão acerca de qual direito deve

31  Ibidem, p. 76 – 94. 32  AMARAL, Gustavo. Direito, escassez e escolha: critérios jurídicos para lidar com a escassez de recursos e as decisões trágicas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

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Art. 40. Aos servidores titulares de cargos efetivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, é assegurado regime de previdência de caráter contributivo e solidário, mediante contribuição do respectivo ente público, dos servidores ativos e inativos e dos pensionistas, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial e o disposto neste artigo.

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ser implementado e em que medida33, deve ficar a cargo do poder executivo, o qual recebeu a missão constitucional de executar o orçamento público. Todavia, sendo a dignidade da pessoa humana o valor essencial do código-referência do sistema jurídico neoconstitucional (justo/injusto), não se justifica o sacrifício de direitos fundamentais (ou sua não implementação) antes de se fazer sacrifícios em demandas não fundamentais. Curiosamente, o argumento da escassez de recursos sempre é utilizado quando o assunto é a concretização de direitos fundamentais prestacionais, mas é rapidamente esquecido quando o tema versa sobre interesses da agenda política. Exemplo recente disto foi a aprovação no Congresso Nacional da verba destinada ao fundo partidário em valor aproximadamente 300% (R$ 578.000.000,00) superior à proposta inicial encaminhada pela Presidência da República (R$ 289.000.000,00)34. Figura 4- Valores destinados ao fundo partidário no Brasil

Como, pois, entender plausível a alegação de escassez de recursos para a implementação e ampliação de políticas públicas concretizadoras da dignidade da pessoa idosa? Em verdade, percebe-se uma definição política e econômica das prioridades de inves33  Gustavo Amaral refere-se a tais tomadas de decisão como “escolhas trágicas”, uma vez que resultarão na negativa de direitos fundamentais a alguém, ante uma impossibilidade financeira. O autor menciona que a finitude dos recursos públicos apresenta-se como uma impossibilidade material de atender todas as demandas sociais por direitos fundamentais prestacionais. Em certa medida, assiste razão ao autor, desde que o sacrifício de direitos fundamentais não ocorra antes do sacrifício de demandas não fundamentais. 34  Cf. CRUZ, Valdo; BOGHOSSIAN, Bruno; MAGALHÃES, Vera. Dilma sanciona aumento do fundo partidário para R$ 868 milhões. Folha de São Paulo, São Paulo, 20 abr. 2015. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/poder/2015/04/1619126-dilma-sancionaaumento-do-fundo-partidario-para-r-868-milhoes.shtml>. Acesso em 13 mai. 2015 35  Disponível em: CRUZ, Valdo; BOGHOSSIAN, Bruno; MAGALHÃES, Vera. Dilma sanciona aumento do fundo partidário para R$ 868 milhões. Folha de São Paulo, São Paulo, 20 abr. 2015. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/poder/2015/04/1619126-dilmasanciona-aumento-do-fundo-partidario-para-r-868-milhoes.shtml>. Acesso em 13 mai. 2015.

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Fonte: Folha de S. Paulo35

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timento público no Brasil,e a consequente regulação jurídica, nas quais a atenção à pessoa idosa tem melhorado, mas sem ainda alcançar níveis satisfatórios. Segundo pesquisa do IPEA36, 71% dos municípios brasileiros não têm instituições para idosos, sendo que dois terços das instituições existentes estão localizadas no sudeste e apenas 6,6% são instituições públicas37. Ademais, os idosos ainda são alvo de violência, tanto no ambiente familiar quanto no ambiente social, o que denota a necessidade de políticas públicas de esclarecimento e informação, bem como de amparo ao idoso em situação de violência. A Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos, através do seu Disque-Direitos Humanos (DDH-100), registrou, no ano de 2012, que “[...] 68,7% de violações por negligência, 59,3% de violência psicológica, 40,1% de abuso financeiro/econômico e violência patrimonial, sendo para esta população o maior índice desta violação, e 34% de violência física”38. Esta pesquisa revela a natureza da violência a que o idoso é submetido, em sua maior parte por negligência, o que deixa claro sua situação de vulnerabilidade e a necessidade de o Poder Público desenvolver políticas de amparo a esta população, superando os obstáculos anteriormente referidos.

Com o término deste trabalho, foi possível compreender a transição paradigmática pela qual passou a ciência do Direito, do positivismo jurídico ao pós-positivismo jurídico, identificando as principais transformações teóricas e seus reflexos práticos. Percebeu-se ainda como o pós-positivismo jurídico contribuiu para o desenvolvimento de uma visão neoconstitucionalista do direito, a qual ressignifica o papel da Constituição, das normas jurídicas – princípios e regras – bem como do intérprete do Direito, o qual assume um papel muito mais ativo, no sentido de concretizar os valores constitucionais e a ideia de justiça. Estas constatações permitiram reconhecer o papel desempenhado pelo princípio da dignidade da pessoa humana enquanto código-diferença do ordenamento jurídico brasileiro, bem como a importância da dignidade da pessoa idosa enquanto valor do sistema jurídico neoconstitucional e o papel dos direitos fundamentais a ela atrelados. A mudança do código-diferença lícito/ilícito (positivismo jurídico) para o justo/injusto (pós-positivismo jurídico e neoconstitucionalismo) criam para o ordenamento jurídico e para o poder público um dever de materializar a justiça, tomando por base a dignidade da pessoa

36

Instituto de pesquisa econômica aplicada

37  Cf. 71% dos municípios não têm instituições para idosos. IPEA. 24 mai. 2011. Disponível em: < http://www.ipea.gov.br/portal/index. php?option=com_content&view=article&id=8574:71-dos-municipios-nao-tem-instituicoes-para-idosos&catid=10:disoc&Itemid=9>. Acesso em 20 mai. 2015. 38  BRASIL. Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos. Dados sobre o envelhecimento no Brasil. Disponível em: < http://www.sdh.gov.br/assuntos/pessoa-idosa/dados-estatisticos/DadossobreoenvelhecimentonoBrasil.pdf> Acesso em 25 mai. 2015.

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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

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humana e os direitos fundamentais. Assim, é essencial que a doutrina jurídica caminhe no sentido de dar às normas jurídicas uma interpretação consonante com o paradigma neoconstitucional, dando prevalência à materialização da justiça, em detrimento de manifestações políticas ou econômicas que pretendam reduzir a eficácia ou a efetividade da dignidade da pessoa idosa em atenção a interesses de suporte teórico pragmático.

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ABSTRACT: This article aims to propose a reflection on the scope effectiveness of the principle of human dignity applied to the elderly person. To this end, takes as its premise the idea that the mentioned principle is in code-difference of Brazilian law in the light of neoconstitucionalism perspective and within the post-positivist rapprochement premises between law, morality and ethics, a normative size of legal principles and the principiously character of fundamental rights, as well as the need to build appropriate methods of resolving antinomies between legal principles and fundamental rights. Finally, it proposes a reflection on the need and rationale for building inclusive public policies and on possible threats to the achievement of the dignity of the elderly, casting an eye on important statistics depicting the theme. Keywords: Neoconstitutionalism. Dignity of human person. Elderly person. Inclusive public policies.

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OS DIREITOS HUMANOS EM ROBERTO MANGABEIRA UNGER Pedro Lino de Carvalho Júnior*

RESUMO: A luta pela afirmação dos direitos humanos despontou nos últimos decênios como a linguagem franca na qual se expressam as pretensões emancipatórias de grande parcela da humanidade. No entanto, não são poucas as críticas que lhe são endereçadas, as quais se originam de distintas matrizes teóricas e ideológicas. Sob a égide dessas apreciações mais amplas, esse artigo pretende abordar a visão ungeriana dos direitos humanos e avaliar em que medida poderiam se constituir em um entrincheiramento de posições políticas, a ponto de criar embaraços a seu projeto de construção de uma democracia radical. Palavras-Chave: Direitos humanos. Enfoques críticos. Experimentalismo democrático.

“A imaginação sobre o dogma, a vulnerabilidade sobre a serenidade, as aspirações sobre as obrigações, a comédia sobre a tragédia, a esperança sobre a experiência, a profecia sobre a memória, a inovação sobre a repetição, o pessoal sobre o impessoal, o tempo sobre a eternidade. E, acima de tudo, a vida”.

1 INTRODUÇÃO Os direitos humanos são invocados em toda parte e sob as mais diferentes alegações. Pode-se asseverar, inclusive, que a luta para afirmá-los despontou nos últimos decênios como

* Procurador do Trabalho/PRT5 e Professor Assistente de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Mestre em Direito Econômico (UFBA). Bacharel e Doutorando em Filosofia (UFBA).

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(O homem despertado: imaginação e esperança. Roberto Mangabeira Unger)

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a linguagem franca na qual se expressam as pretensões emancipatórias de grande parcela da humanidade. Malgrado haja um razoável consenso no que concerne à centralidade que ocupam nas sociedades contemporâneas, esta aparente convergência se dissipa, no entanto, tão logo se pretenda definir no que eles se constituem, qual o fundamento que os alicerçam e o alcance da proteção que oferecem. Com efeito, os grandes problemas dos direitos humanos estão centrados em sua conceituação, fundamentação, determinação e realização. De todos estes, o mais grave, sem dúvida, é a dificuldade em efetivá-los. Os fatos falam por si: milhões de pessoas morrem de fome todos os anos; outras tantas sofrem as mais graves privações e opressões. As guerras se multiplicam, enquanto solenes declarações de direitos são proclamadas. Em suma, há um profundo descompasso entre o reconhecimento formal dos direitos humanos, seu discurso garantidor e sua prática. É bem verdade que não ostentam um conteúdo político e jurídico imanente, mas desenvolveram-se como uma espécie de moldura aberta capaz de abrigar as mais distintas aspirações da humanidade. De todo modo, conquanto na esfera internacional exista uma inegável repulsa às flagrantes violações dos direitos humanos, como na prática da tortura e do genocídio, a ponto de existirem diversos instrumentos, ainda débeis, para confrontá-las, o mesmo não se pode afirmar em relação aos direitos sociais e econômicos, os quais são sistematicamente negados ou restringidos a expressiva parcela da população do planeta e, mesmo nos países mais desenvolvidos que chegaram a construir um Estado de Bem-Estar Social, o que se vê hoje é um grande desmonte de tais estruturas por força dos câmbios operados na economia mundial. Como quer que seja, as três principais declarações de direitos que se sucederam historicamente, a Declaração dos Direitos da Virgínia de 1776, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 e, finalmente, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, assim como um vasto conjunto de diplomas normativos que a esta se seguiu, pretendem assegurar ao gênero humano um conjunto de liberdades fundamentais no campo político, econômico e social. Cabe assinalar que somente após a Segunda Guerra Mundial a temática dos direitos humanos ingressou com veemência no cenário internacional como resposta às terríveis atrocidades praticadas durante sua conflagração, de tal maneira que, a partir do seu desenlace, produziu-se uma dinâmica expansionista irrefreável no sentido do reconhecimento das mais amplas posições jurídicas às pessoas, que lhes seriam inerentes pelo simples fato de serem humanas. Na contemporaneidade, a maior parte dos teóricos que se dedica ao seu estudo identifica a existência de pelos menos três “dimensões” ou “gerações” dos direitos humanos. A primeira delas constituída pelos direitos civis e políticos, ou seja, direitos do indivíduo frente ao Estado, direitos, portanto, de cunho “negativo”, que exigem, em regra, uma “abstenção” do ente estatal, dentre os quais o direito à vida, à liberdade, à propriedade e à igualdade perante a lei, prerrogativas estas às quais se agregaram as chamadas liberdades políticas (liberdade de expressão, de voto, de imprensa).

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Os direitos da segunda dimensão seriam os assim denominados direitos sociais e econômicos. Seriam direitos prestacionais, de cunho “positivo”, no sentido de deferir às pessoas determinadas prestações, como saúde, educação, previdências social, trabalho, moradia, dentre outras, demandas estas a serem postas perante o Estado, que haveria de desenvolver programas e políticas públicas para assegurá-las. Por fim, os direitos da terceira dimensão, que beneficiariam o gênero humano coletivamente, como o direito ao meio ambiente hígido, à conservação do patrimônio histórico, a autodeterminação dos povos e outros congêneres, em suma direitos que se buscam associar a uma ideia de solidariedade humana. Sem entrar no debate se existiriam outras gerações de direitos e como estas dimensões interagiriam entre si, é patente que tal enquadramento apresenta, de antemão, uma ambivalência difícil de superar, pois as distintas dimensões dos direitos obedecem a diversos e, por vezes, antagônicos critérios de racionalidade, na medida em que ora pretendem fragilizar o poder do ente estatal, ora desejam sobrecarregá-lo de demandas prestacionais. Não obstante a inegável autoridade que assumiram nos dias que correm, é importante avaliar as críticas de fundo que lhe são endereçadas, para que seja possível contrastá-las com a visão de Roberto Mangabeira Unger acerca do tema, pois ao mesmo tempo em que este reconhece a importância que desfrutam no mundo contemporâneo, como garantias que protegem as pessoas de opressões públicas e privadas e que devem ser mantidas em uma agenda política transformativa, considera que podem significar um entrincheiramento1 de posições políticas, representando um obstáculo ao experimentalismo democrático que defende

Alguns autores sintetizam, em linhas gerais, as principais críticas ao discurso dos direitos humanos, em especial, Edmund Burke, Karl Marx e Hannah Arendt, sendo de especial interesse abordá-las, pois representativas dos mais diferenciados espectros ideológicos. Em suas famosas Reflexões sobre a revolução francesa (2012, p. 223), Edmund Burke, com o objetivo de defender a monarquia na Inglaterra, apontou as fragilidades do discurso dos direitos, acusando-o de se constituir numa metafísica política idealista e racionalista. Para Burke, a política deve ser guiada pelo contexto de cada sociedade em particular, uma vez que envolve juízos práticos e concretos, limitados por necessidades prementes, e jamais por uma teoria de acordo com um plano concebido pela razão, como pretenderam os iluministas franceses. Ademais, por serem abstratos e especulativos, os direitos do homem não seriam factíveis na prática, pois as liberdades e restrições somente podem ser aferidas na singularidade do homem situado, como ele indaga provocativamente: “De que adianta discutir o

1  Na concepção de Unger, significa o grau a que as instituições e preconceitos formadores se fazem imunes à contestação e à revisão em meio à atividade social rotineira.

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2 AS TRADICIONAIS CRÍTICAS AOS DIREITOS HUMANOS

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direito abstrato de um homem a remédios e alimentos? A questão é sobre o método de consegui-los e administrá-los. Nessa deliberação sempre aconselhei que se convoque a ajuda do produtor agrícola e do médico, em vez da ajuda de um professor de metafísica”. A seu juízo, os únicos direitos eficazes seriam aqueles criados pela tradição e pela comunidade, de modo que esta humanidade comum suposta pelas declarações dos direitos seria absolutamente irreal, pois diferentes sociedades conduzem a diversos arranjos institucionais.2 Marx adota uma posição ambígua em relação ao direito. Na sua mais radical objeção as prerrogativas que este assegura, manifestada quando de sua análise da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão dos revolucionários franceses de 1789, vê com simpatia a afirmação dos direitos do cidadão, pois fortalecem uma comunidade política do ser humano como “ser da espécie”,3 ao tempo em que critica acerbamente os cognominados direitos do homem: Nenhum dos chamados direitos humanos ultrapassa, portanto, o egoísmo do homem, do homem como membro da sociedade burguesa, isto é, do indivíduo voltado para si mesmo, para seu interesse particular, em sua arbitrariedade privada e dissociado da comunidade. Longe de conceber o homem como um ser genérico, estes direitos, pelo contrário, fazem da própria vida genérica, da sociedade, um marco exterior aos indivíduos, uma limitação de sua independência primitiva. O único nexo que os mantêm em coesão é a necessidade natural, a necessidade e o interesse particular, a conservação de suas propriedades e de suas individualidades egoístas (Marx, 2000, p. 37).

2  Poucos anos após a publicação da obra de Burke, veio a lume as famosas Anarchical Fallacies: being an examination of the declarations of rights issued during the french revolution, de Jeremy Bentham, na qual o teórico do utilitarismo analisa detidamente a declaração de 1789, acusando-a de confundir o nível descritivo com o prescritivo. Por exemplo, seu artigo primeiro proclama que Men (all men) are born and remain free, and equal in respect of rights. Social distinctions cannot be founded, but upon common utility. Bentham se pergunta: All men are born free? All men remain free? No, not a single man: not a single man that ever was, or is, or will be. All men, on the contrary, are born in subjection, and the most absolute subjection—the sub-jection of a helpless child to the parents on whom he depends every moment for his existence. In this sub-jection every man is born—in this subjection he continues for years—for a great number of years—and the existence of the individual and of the species depends upon his so doing. Haveria, portanto, uma contradição entre a realidade prática, formulada em termos descritivos, e as supostas faculdades de liberdade e igualdade que estariam situadas no plano do dever-ser. In The Collected Works of Jeremy Bentham. Oxford University Press, 1983, p. 498. 3

Ou “ser genérico”.

4  Para Marx os reclamos do direito colocariam as pessoas em situações de concorrência conflitiva, na qual cada sujeito acaba perseguindo seus interesses em detrimento dos interesses alheios, de tal sorte que a ideia de “direitos” acaba estimulando uma espécie de individualismo possessivo, em contraste com o caráter social ou situado de toda atividade humana.

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Coerente com sua posição teórica, Marx enxerga na afirmação dos direitos do homem a semente da dissolução da comunidade, que aparta os seres humanos, cindindo-os, uma vez que demarcam uma esfera privada econômica em contraposição à esfera política.4 Ou seja, ao contrário de Burke, no particular, Marx não criticava os direitos humanos por sua abstração, mas sim por sua concretude, na medida em que buscariam legitimar e naturalizar os valores burgueses. Em seus escritos da maturidade, contudo, notadamente em várias passagens d’O Capital e na Crítica do Programa de Gotha, realça a importância da conquista de determinados direitos, como a redução da jornada de trabalho e as normas de proteção do meio ambiente laboral, a despeito de enxergar nestes avanços tão somente etapas transitórias para o progresso

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ARENDT, Hannah. Op. cit., p. 333.

6  Segundo a ONU, em 2015 o número de pessoas forçadas a ir embora de casa por causa de guerras e conflitos no mundo bateu mais um recorde: quase 60 milhões de pessoas. Várias embarcações afundaram com imigrantes que faziam a travessia do Mediterrâneo, a partir do norte da África em direção a Europa. Desde 1º de janeiro de 2015, a Organização Internacional de Migração (OIM) estima que cerca de 2 mil pessoas morreram no trajeto, cifra que deve superar de longe os 3.200 de 2014. Contudo, a maior preocupação das autoridades europeias atualmente é como proteger suas fronteiras. 7  O discurso dos direitos humanos também tem se prestado a apropriações indevidas, como se vê quando utilizado por nações imperialistas para justificar intervenções militares em países que consideram inimigos.

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da luta socialista. Finalmente, a crítica endereçada por Hanna Arendt que, avaliando o impacto causado pelas guerras e conflitos mundiais do século XX, com seu séquito de centenas de milhares de apátridas, considerou que semelhante situação pôs a nu a situação dos refugiados, revelando a fragilidade dos direitos humanos (Arendt, 2007, p. 510). Deveras, como ressaltou em seus escritos, “a perda dos direitos nacionais levou à perda dos direitos humanos”.5 Ou seja, sem a tutela da soberania de um país determinado, os apátridas e refugiados estão condenados à situação de indivíduos desprovidos dos direitos básicos mais elementares, até porque, em termos concretos, tem-se buscado construir um sistema de proteção em relação aos imigrantes e refugiados que atua contra eles e não para favorecê-los, tal a rigidez das normas anti-imigração vigentes, especialmente nos países europeus.6 A crítica arendtiana apanha em cheio exatamente a pretensa e decantada universalidade dos direitos humanos, que revela, no particular dos despatriados, sua expressão mais ilusória. Não bastassem estas contundentes censuras que são dirigidas ao discurso triunfalista dos direitos humanos, outras ponderações críticas lhe são dedicadas. Alguns se perguntam se eles não seriam a “resposta pós-moderna ao esgotamento das majestosas teorias e grandiosas utopias políticas da modernidade?” (Douzinas, 2009, p. 21). Outros lamentam que houve uma perda de interesse em se discutir questões mais amplas como o tema da justiça, cujo discurso estaria vinculado às teorias do Estado-Nação, forma política que estaria esvaziada em um mundo globalizado, o que conduziu à ênfase na abordagem mais dúctil e abstrata que permite o discurso dos direitos humanos, menos prisioneiro aos cânones ideológicos vigentes (Campbel, 2002, p 254-255). À luz de tais considerações, é momento de refletir acerca da visão ungeriana dos direitos humanos, no propósito de demonstrar que, apesar de enxergá-los como eventual empecilho ao ímpeto de mudança de uma democracia radical, consegue apontar alguns caminhos para atenuar a principal ambiguidade presente no direito em geral e nos direitos humanos7 em particular, qual seja o de se constituírem, na maior parte das vezes, mero instrumento do poder, mas que podem assumir, como Jano, dialeticamente, outra face: um fator de indução às mudanças e transformações sociais. No entanto, antes de avançar nesse sentido, é necessário apresentar um breve panorama do pensamento de Roberto Mangabeira Unger, uma vez que, ao menos no Brasil, o estudo de sua vasta produção teórica não encontrou ainda a merecida atenção nos meios acadêmicos e profissionais.

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3 UNGER E SEU PERCURSO INTELECTUAL: UM BREVE ESBOÇO

jetivismo na esfera jurídica, critica, acidamente, as teses da escola da análise econômica do direito, por considerá-las manifestações ideológicas do liberalismo individualista a serviço da direita conservadora. Conquanto algumas vertentes do movimento dos “crits” tenham se aproximado do desconstrucionismo derridiano, Unger sempre foi considerado um moderado no seio dessa linhagem crítica do pensamento jurídico, pois, ao contrário dos seus mais radicais pensadores - que proclamavam a absoluta indeterminação do direito-, ele sempre enxergou na dimensão jurídica uma esfera objetiva, por conceber que mesmo a política opera conformada por significativas restrições (Altman, 1990, p. 173). Surgiu, posteriormente, Paixão - Um ensaio sobre a personalidade (1998). Ao teorizar sobre as paixões e explicitar a imagem modernista do homem, Unger considera que essa abordagem tem implicações para a compreensão da mente e da sociedade, na medida em que vemo-nos, uns aos outros, como produtos de nossas formas de vida social e de nossas tradições de discursos, em vez de enxergarmos essas tradições e formas enquanto manifestações provisórias de nós mesmos, pelo que, em determinado sentido, a paixão é a experiência de um impulso que pode levar o ser humano a desafiar certas convenções sociais. Nos anos 80, Unger publica uma ambiciosa trilogia: Social theory: Its situation and its task, False necessity e Plasticity into power9, na qual desenvolve abrangente arcabouço de propostas de reconstrução institucional das sociedades, no pressuposto de que são artefatos, criações humanas, e de que os indivíduos são maiores do que qualquer dimensão institucional existente, já que nenhuma forma de vida em sociedade esgota nossos recursos de compreensão 8

Ainda não traduzido para o vernáculo.

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Em parte traduzida para o português, a exemplo de Necessidades falsas. São Paulo: Boitempo Editorial, 2005.

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A extensa obra de Unger se estrutura em alguns eixos fundamentais: a teoria social e política, a teoria jurídica, a economia, a religião e a filosofia, unidos, articulados e mobilizados na direção de uma alargada plataforma de transformação social progressista, o que o levou a rebelar-se contra diversas tendências dominantes no pensamento contemporâneo. Em seu primeiro livro Conhecimento e política (1978), Unger lançou uma erudita e profunda crítica ao liberalismo, ao apontar suas debilidades e insuficiências, ao tempo em que versou sobre temas afins, como a psicologia liberal, o Estado neocapitalista, a teoria do eu e a teoria dos grupos orgânicos. Logo em seguida, publicou outra obra de grande impacto nos meios jurídicos e sociológicos norte-americanos: O Direito na Sociedade Moderna (1976), onde, em confronto com o pensamento tradicional acerca do surgimento do direito como resultado do consenso, enxergou-o derivado exatamente da desintegração da comunidade: o direito seria supérfluo se existisse uma comunhão de expectativas e de valores comuns. Mais adiante, vem a lume o célebre manifesto do Critical legal studies movement. Nesse trabalho,8 Unger, além de apresentar uma contundente censura ao formalismo e ao ob-

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e experiência, que sempre as transcendem. Afora outras obras que conteriam um propósito de divulgação do seu pensamento teórico,10 Unger ainda publicou três livros de grande relevância: Politics: The Central Texts (London: Verso, 1997); The self awakened: pragmatism unbound (Harvard University Press, 2007) e Free trade reimagined. (Princeton: Princeton University Press, 2007).11 No primeiro livro (que condensa os temas da trilogia aludida), bate-se contra o fetichismo institucional e o fetichismo estrutural,12 por compreender que as estruturas sociais e institucionais vigentes no mundo são contingentes e provisórias e não representam o conjunto das melhores práticas disponíveis resultantes de um suposto processo evolutivo, como pretende certas vertentes da teoria política, especialmente quando avaliam as ricas democracias dos países do primeiro mundo. O segundo livro vem a ser sua obra filosófica mais densa. Nele, Unger manifesta sua adesão ao pragmatismo filosófico,13 ao tempo em que se propõe radicalizá-lo, por acreditar que a versão apresentada pelos seus pioneiros e seus sucessores teóricos, seria inadequada, distorcida e truncada. Adotando um tom exortativo e romântico e em um misto de análise teórica e de manifesto, Unger busca a reinvenção da política e proclama que a filosofia, da mesma forma que a poesia, deve se tornar profética. Ao enxergar as sociedades e as pessoas como construções em curso, incompletas e com um futuro radicalmente aberto, insiste que podemos usar a imaginação para transformá-las e não esperar por crises que criem o ambiente propício para tanto. Por fim, na Reinvenção do livre comércio,14 fiel aos seus postulados teóricos, ao propor uma nova divisão internacional do trabalho entre as nações, com o desiderato de assegurar um maior experimentalismo em sua dinâmica, conclui, em síntese, que o livre comércio será o mais vantajoso para os que nele se empenham se lhes assegurar a maior liberdade experimental possível para mudar práticas e instituições.

4 UNGER, DIREITO E EXPERIMENTALISMO DEMOCRÁTICO

10  A exemplo de Democracy realized. The progressive alternative. London: Verso, 1996 e What Should the Left Propose? London: Verso, 2006, todas vertidas ao português, conforme bibliografia. 11  Mais recentemente, Unger reeditou seu famoso manifesto The critical legal studies movement: another time, a greater task. London: Verso, 2015, desta feita com um vigoroso ensaio introdutório, além de ter lançado mais duas obras de relevante interesse filosófico e científico, The religion of the future (2014) e The singular universe and the reality of time (2014), esta última com Lee Smolin, ambas pela Cambridge University Press. 12  A seguir explicitados. 13  O pragmatismo não é um movimento homogêneo: não se articula por seguir uma doutrina cerrada e sistemática. Ele é mais um método de fazer filosofia do que uma teoria filosófica. Se alguma coisa compartilham seus membros não é tanto um conjunto de teses, mas sim um estilo de pensamento. Um estilo com atitude. Um método. Um método com atitude, diria William James. Trata-se de orientação anti-solipsista, anticartesiana, antifundacionista e antipositivista, que envolve uma virada da pura subjetividade, da pura objetividade para a intersubjetividade, a sociedade e a cultura, o mundo dos homens, enfim. Ver, no particular, COMETTI, Jean-Pierre. Filosofia sem Privilégios: desafios do pragmatismo. Porto: Asa, 1995. 14  A Reinvenção do livre comércio. Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 2010. 15  O direito e o futuro da democracia. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004.

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É na sua última obra de conteúdo jusfilosófico, no entanto, O direito e o futuro da democracia,15 que Unger sintetiza seu pensamento no campo da filosofia do direito e repercute

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16  O direito e o futuro da democracia. Op. cit., p. 16. 17  Aqui entendido como um conjunto de práticas e instituições que buscam explicar sua consolidação como inevitáveis e necessárias, justificando, apologeticamente, a realidade instituída. 18  Como se esclarecerá.

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o significado do experimentalismo democrático delineado nos seus textos mais amplamente filosóficos e de teoria social, apontando novos caminhos para o direito, como disciplina que pode se constituir em ferramenta mestra da imaginação institucional, pois nele ideias e interesses se concretizam em instituições. Considera que o projeto democrático é o mais “poderoso e duradouro conjunto de ideais sociais na história moderna”,16a tal ponto que foi capaz de unir liberais e socialistas em torno do seu programa, pois significou um esforço em conciliar a busca por dois gêneros de bens: a emancipação individual e o progresso material da sociedade. A seu ver, a humanidade deve sempre experienciar múltiplas formas de vida, vestindo cada uma delas com distintos arranjos institucionais, mesmo porque as promessas da democracia somente se cumprem com a incessante renovação das suas práticas e instituições, o que lhe possibilita a invenção permanente do novo, capacitando-a a diminuir a distância entre as atividades rotineiras, reprodutoras das estruturas, e as atividades transformadoras, capazes de contestá-las. Verifica, no entanto, que o dominante pacto social-democrata que impera nos países ocidentais passou a representar um grave obstáculo ao avanço da política direcionada à edificação de futuros sociais alternativos. Deveras, o acerto reformista que historicamente o caracterizou, ao restringir seus movimentos à adoção de práticas distributivas e políticas sociais compensatórias, renunciou ao conflito mais amplo acerca da reformulação dos arranjos societários e da possibilidade de reconstrução radical do sistema de produção e troca. Para Unger, essa rendição às estruturas vigentes encontrou sua tradução na filosofia jurídica no que veio a denominar de análise jurídica racionalizadora, uma postura teórica de resignação ao instituído, que pretende tão somente corrigir suas imperfeições. Com tal propósito, prioriza um estilo de abordagem que busca capturar a melhor face da lei, encarada como repositório de princípios gerais. Sob tal perspectiva, compreensivelmente, os juristas assumem um papel de relevo, pois se arvoram à condição de seu intérprete privilegiado, estabelecendo uma comunidade discursiva, na compreensão que o direito ofereceria um conjunto de concepções, categorias e regras que definiriam em conjunto um recôndito plano de vida comum. Esse reformismo progressista pessimista seria o exemplo clássico do hegelianismo de direita,17 por considerar existir uma racionalidade imanente no desenvolvimento do direito, o que o deixa aprisionado a fetichismos institucionais e estruturais.18 Tal ensimesmamento de conteúdo idealizante no campo jurídico pretenderia enxergar as instituições vigentes como resultantes de um lento processo evolutivo que as fizeram adquirir as características que hoje

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ostentam, e não como política congelada e luta interrompida, o que, de fato, representam.19 Deveras, nas mãos dos juristas, o direito, que é partejado no conflito e dele é resultado, se transforma em um objeto asséptico e de teor humanizante: um sistema ideal que poderia ser representado na linguagem dos princípios (Dworkin) e políticas públicas,20 quando na verdade não existe um plano racional em curso ou uma ordem moral imanente, senão arranjos periclitantes, composições entre interesse e visões que se antagonizam. Tampouco existem sistemas,21 senão problemas e soluções, conflitos e compromissos, limitações e possibilidades. Como quer que seja, na contemporaneidade o direito se transformou em um dos poucos alicerces que sustentam a estrutura societária, haja vista que, especialmente nas complexas sociedades industriais, escassos são os valores comuns: ou são muito amplos e abstratos para servirem de referência, ou muitos numerosos e específicos para serem universalizáveis: Os meios de regulação – dinheiro e poder administrativo – são ancorados no mundo da vida através da institucionalização jurídica dos mercados e das organizações burocráticas. Simultaneamente são juridificados complexos interacionais, nos quais os conflitos antes eram resolvidos eticamente, na base do costume, da lealdade ou da confiança; a partir de agora esses conflitos são reorganizados de tal maneira que os participantes em litígio podem apelar para as pretensões de direito. E a universalização de um status de cidadão institucionalizado pública e juridicamente forma o complemento necessário para a juridificação potencial de todas as relações sociais (Habermas, 2003, p. 105).

Tal configuração da ordem jurídica como um medium categorial tampouco escapou a arguta percepção de Mangabeira Unger: Entre as regras técnicas e as abstrações filosóficas, está o nível intermediário em que se colocam as questões cruciais da organização e da reorganização da sociedade. Neste nível está a vantagem comparativa do jurista. O direito é o lugar privilegiado onde práticas e instituições se encontram com interesses e ideais, com toda a riqueza de uma realidade histórica e singular (Unger, 2005, p. 36).

19  A genealogia dos arranjos institucionais contemporâneos nos capacita a verificar porque assumiram a forma atual e que alternativas foram silenciadas para que determinado modelo viesse a prevalecer. 20  No Brasil, o controle judicial das políticas públicas converteu-se no tema do momento, como atesta o incontável número de decisões judiciais proferidas com essa finalidade. Ao mesmo tempo, uma vastíssima bibliografia vem se construindo em derredor do assunto. Para Unger, este seria um caminho equivocado: em regra, não caberia semelhante papel ao Poder Judiciário e, acima de tudo, tais medidas não alcançam o problema de fundo, Deveras, não haveria, nesse enfoque, um debate acerca da reconstrução das instituições econômicas e sociais, senão uma discussão acerca de textos normativos, dando ensejo a atitude pouco democrática dos juristas de ofício que, a título de expor e analisar uma lei, sob o disfarce de uma elaboração racional do seu alcance, acabam, por fim, realizando uma política jurídica encoberta, ao apresentarem como meras descrições do direito positivo, suas interpretações pessoais, baseadas em valores comumente não explicitados. Nesse âmbito de compreensão, os juízes da Suprema Corte aparecem como verdadeiros sacerdotes laicos, cujo livro fundamental e sagrado seria a Carta Magna. Desta, procurariam deduzir, como no Alcorão e na Bíblia, os valores e comportamentos sociais supostamente corretos. Praticariam, em suma, uma verdadeira, teologia constitucional, e isso não apenas na esfera de atuação contenciosa particularizada, mas principalmente nos casos expressivos de ativismo judicial. Resultado: um pequeno número de eleitos subtrai do debate político e constitucional mais amplo, temas como aborto, eutanásia, casamento entre pessoas do mesmo sexo, pena de morte, consumo individual de drogas, dentre outros, transformando-os em temas jurídicos. 21

No sentido apontado.

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Unger realça e prioriza a dimensão jurídica como ferramenta para o exercício da ima-

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Cuando reformamos las estructuras en esta dirección alternativa, hacemos más que aumentar y mejorar nuestras capacidades prácticas y socavar la base indispensable de la división y jerarquía sociales. Acortamos la distancia entre estar dentro de una estructura y estar más allá de ella. Creamos un encenario más adequado para la

22  O direito e o futuro da democracia. Op. cit., p. 133. 23  Fora do âmbito da democracia radical, o pluralismo jurídico pode significar um mecanismo de reforço à hierarquia de vantagens de grupos e classes sociais existentes. 24  No vocabulário ungeriano, vem a ser o arranjo institucional e ideológico, relativamente acidental, que regula as expectativas corriqueiras e as disputas regulares com relação à distribuição de recursos na sociedade.

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ginação institucional: um instrumento capaz de favorecer processos de transformações sociais, o que a vincula indissoluvelmente ao destino da democracia. Como insistentemente pondera,22 se os nossos interesses e ideais estão sempre pregados na cruz das instituições e práticas que os representam de fato e se a lei é a forma institucional da vida de um povo (Hegel), é fundamental ampliar o repertório desses modelos, dando braços e armas à imaginação de futuros sociais alternativos. Uma democracia radical e de alta energia favorecerá ao pensamento jurídico encontrar sua verdadeira vocação e propósito: a autoconstrução da sociedade, haja vista inexistir uma ordem humana natural (a sociedade é um artefato), senão a exigência dela criar sua própria ordem ou, mais propriamente, diferentes ordens, com os instrumentos jurídicos que o direito lhe oferece. No ensaio introdutório que escreveu à nova edição do The critical legal studies movement: another time, a greater task (2015), Mangabeira Unger reafirma esse relevante papel da dimensão jurídica como a resposta ao enigma do desenvolvimento do direito, ao tempo em que enfatiza a necessidade de se reconhecer e valorizar a importância do pluralismo jurídico no contexto de uma democracia radical:23 a elaboração de leis sob muitas formas e a partir de diferentes fontes, o que significa legitimar normatividades emergentes.” (Unger, 2015, p. 37). Essa defesa do pluralismo jurídico é o corolário da sua ampla plataforma filosófica que, no embate entre agência e estrutura, acentua o primado da liberdade humana, a circunstância de nos constituirmos em seres infinitos presos em um mundo finito, o fato de sermos maiores que os contextos formadores24 que nos engendram, pois se o mundo nos forja como somos, nunca o faz inteiramente: há sempre um resíduo, uma sobra, um resto de capacidades não utilizadas para a ação, a associação, o exercício da imaginação e da rebeldia. Trata-se de uma ideia fundamental no programa teórico ungeriano: a noção de transcendência, no sentido de que nenhuma cultura ou sociedade nos contém por completo. Há sempre mais em nós do que em qualquer estrutura. Não existe um cenário “natural” para nossa humanidade, mas tão somente mundos particulares que construímos e habitamos, cabendo-nos a missão de criar estruturas que favoreçam essa transcendência e nos ajudem a edificar novos mundos, no infinito espectro de possibilidades que se descortinam em nosso horizonte existencial:

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infinitud dentro de nosotros. No reconocer este potencial de cambio es permanecer prisioneros de una superstición que representa también una forma de sometimiento (Unger, 2009, p.276).

Reconhecido no exterior na qualidade de um dos mais originais pensadores do mundo contemporâneo, a ponto de Perry Anderson considerá-lo uma “inteligência filosófica do Terceiro Mundo que virou a mesa como crítico do Primeiro Mundo” (Anderson, 2002) e de ter merecido por parte de Geoffrey Hawthorn o comentário de que sua obra seria a “teoria social mais poderosa da segunda metade do século vinte” (Hawthorn, 1987), o pensamento de Unger também foi objeto de inspiradas observações de Richard Rorty:

Porém, a despeito de sua audiência no Terceiro Mundo continuar se ampliando, em especial em países do Leste Europeu e no Oriente, surpreendentemente, no Brasil, onde nasceu, vem se mantendo alheia a seu pensamento, e tem variado entre a mais completa marginalização de seu contributo teórico e vagas manifestações jornalísticas a respeito de sua participação política nos governos do Presidente Luis Inácio Lula da Silva e da Presidente Dilma Rousseff. Em uma fase de desencanto e apatia com as estruturas políticas vigentes, onde sopram os ventos da pós-modernidade, que negam a possibilidade de se pensar o mundo através de modelos interpretativos amplos, é estimulante e desafiador verificar que algumas narrativas de reconstrução social ainda resistem, mesmo quando alimentem uma dimensão utópica. Unger não aceitaria esse enquadramento, por entender que opera dentro de um horizonte de possibilidades concretas, mesmo quando visíveis componentes utópico-românticos em seu pensamento. 25 Essa foi a conclusão do filósofo José Crisóstomo de Souza em inspirado ensaio sobre Unger e mais especialmente acerca do The self awakened- Pragmatism unbound, no qual, identificando-o como herdeiro e continuador da tradição de pensamento jovem-hegeliana de esquerda, realça o acento visionário e romântico de suas ideias, a começar pelo título atribuído a obra: “Pragmatismo liberto” (unbound) evoca, não por acaso, Prometeu liberto, desacor-

25  Em Conferência pronunciada em janeiro de 2002, no Corpus Christi College, Universidade de Cambridge (Grã-Bretanha), com o título A transformação da sociedade, com ironia Unger responde aos que procuram julgar seu pensamento desacoplado da realidade: “Se nas circunstâncias da política contemporânea e apesar delas, apresento uma visão que é distante daquela que existe, podem dizer que esta visão é interessante, mas utópica. E se apresento uma visão que é parecida com o que existe, podem dizer que é exequível, porém trivial. E assim todas as propostas apresentadas parecem utópicas ou triviais”. Disponível em http://www.achegas.net/numero/dezenove/ rob_mangabeira_19.htm.

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É provável que sua audiência natural esteja no Terceiro Mundo – onde seu livro poderá tornar possível uma nova ideia de futuro nacional. Talvez algum dia permita aos cidadãos letrados de algum país a ver perspectiva onde antes só viam perigo – ver um futuro nacional até então impensado, ao invés de ver seu país condenado a desempenhar o papel que algum teórico estrangeiro escreveu para ele (Rorty, 1999, p. 248).

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rentado, sem peias, o rebelde herói mitológico, emancipador, dos românticos do século XIX europeu, de Goethe, Byron, Shelley — e Marx” (Souza, 2010, p. 121).

No seu desígnio mais amplo de empoderamento do indivíduo e fortalecimento da democracia, com vistas a assegurar às pessoas um poder e uma liberdade que as tornem “semelhantes aos deuses” e de radicalizar o projeto democrático, Unger aponta o lugar da normatividade jurídica nessa dinâmica: “Em nenhum lugar a especificidade institucional encontra as concepções imaginativas mais completamente, e em nenhum lugar o seu encontro tem mais importância para os poderes e impotências das pessoas do que no direito e no pensamento jurídico” (Unger, 2004, pp. 140-141). Portanto, atribui à análise jurídica o papel de reimaginar e redesenhar novos modelos e práticas institucionais que favoreçam a convergência entre as condições para a emancipação individual e os elementos necessários ao favorecimento do progresso coletivo, pois é no direito que as democracias encontram e assumem a sua forma institucional detalhada, de tal modo que é preciso libertá-la de suas amarras e constrangimentos, vocacionando-a ao cumprimento de sua importante missão política. Para chegar a esse destino, o experimentalismo democrático deve superar dois grandes inimigos, o que Unger denomina o fetichismo institucional e o fetichismo estrutural. Deveras, o fetichismo institucional (Unger, 2004, p. 17) seria a crença de que concepções institucionais abstratas, como regime democrático, sociedade civil e economia de mercado, teriam uma expressão institucional única, universal e necessária, e seriam resultantes das melhores práticas que se desenvolveram no desenrolar histórico. Já o fetichismo estrutural seria a “contraparte de ordem superior do fetichismo institucional: a ideia de que, apesar de podermos ser capazes de revisar uma ordem institucional particular, e até mesmo de substituir, vez por outra, um sistema institucional por outro diferente, não podemos alterar o caráter da relação entre as estruturas institucionais e a liberdade dos agentes que as ocupam de contestar e transcender essas estruturas” (Unger, 1999, p. 91). Em sua obra O direito e o futuro da democracia, ao buscar a construção de uma análise jurídica como imaginação institucional, Unger propõe um “experimento mental” a serviço de práticas de ajustes, ao conceber três direções possíveis para a radicalização do projeto democrático: a) a social-democracia ampliada; b) a poliarquia radical; e c) a democracia mobilizadora, as quais representam graus diversos de aprofundamento do experimentalismo democrático.26 Nessa última alternativa, que considera a mais expressiva e enérgica radicalização

26  Um maior esclarecimento acerca das referidas direções para radicalização da democracia exigiria uma análise mais exaustiva das teses ungerianas, o que desviaria o foco desta abordagem, pelo que sugere-se a leitura da referida obra.

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5 OS DIREITOS HUMANOS EM ROBERTO MANGABEIRA UNGER

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27  Na direção de aprofundamento da democracia, dentre outras proposições, Unger defende o aquecimento da política a partir de profundas alterações institucionais, como o financiamento público das campanhas eleitorais, o voto eleitoral obrigatório, o acesso ampliado aos meios de comunicação de massa em favor dos partidos políticos e movimentos sociais organizados e a criação de misto de modelo presidencialista e parlamentarista, no qual, diferentemente do sistema atual (madisoniano), que favorece os impasses entre os poderes e contribui para a desaceleração do movimento político, a pretensão seria torná-lo mais ágil e adequado para superá-los. Op. cit. p. 200. 28

UNGER, Roberto Mangabeira. Op. cit., p. 201.

29  UNGER, Roberto Mangabeira. The self awekened: pragmatism unboud. Op. cit., pp. 278-279. Como é sabido, em regra os direitos fundamentais são os direitos humanos positivados nas constituições dos diversos estados nacionais: o conteúdo de ambos é essencialmente o mesmo, o que difere é o plano em que estão consagrados. 30  A democracia, além de implicar na ideia de que o mundo é algo por se construir, se concebe no modo da experiência e do ensaio.

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do projeto democrático,27 ao comentar as diversas inovações institucionais no campo da organização do Estado, da economia política e da sociedade civil, aborda a tensão existente entre o experimentalismo social que o anima e o catálogo dos direitos humanos, ao se perguntar: “Ameaçam elas, com isso, os direitos humanos ? A democracia mobilizadora parece exigir que mais coisas estejam em jogo na política. O respeito aos direitos humanos, contudo, requer que algo- ao menos as garantias que constituem os próprios direitos – seja retirado da política.28 Da mesma forma, no The self awekened: pragmatism unboud, ao abordar a necessidade de serem assegurados direitos fundamentais básicos às pessoas que contribuam para favorecer um processo de autocriação, preconiza que o objetivo é que se definam tais “imunidades e recursos de modo que eles criem a menor rigidez possível no espaço social circundante”.29 Unger revela assim estar ciente do caráter ambíguo que os direitos jogam na sociedade, pois ao mesmo em que solidificam posições e, muitas vezes, privilégios, representam também elementos indispensáveis à construção e institucionalização de práticas emancipatórias, de modo que este vivo contraste no âmbito da normatividade jurídica seria ínsito à sua própria tessitura formativa. Para atenuar esta ambiguidade e buscar a prevalência da dimensão transformativa do direito, sustenta a necessidade da construção de espaços institucionais mais abertos à revisão dos seus contextos estruturantes. Nesse sentido, considera que os direitos a serem excluídos da política devem ser aqueles que protegem contra inseguranças extremas, inclusive de opressões públicas ou privadas, bem como os que asseguram a mais ampla liberdade de informação e expressão. De todo modo, por mais que se pretendesse uma definição rígida e permanente dos direitos que haveriam de ser subtraídos de uma agenda transformadora, raciocina que tal empresa não seria possível, posto tratar-se de questão de natureza empírica e experimental.30 Ademais, nos leva a concluir que a insistência num conjunto imutável e sacrossanto de direitos que haveriam de permanecer imunes às mudanças institucionais propugnadas por um projeto democrático radical, significaria uma rendição ao fetichismo institucional, pois a identificação precisa de tais direitos intangíveis faria pressupor a existência de uma forma institucional natural ou necessária a ser preservada. Como quer que seja, Unger está ciente da necessidade de se manter um abrigo protetor que assegure determinadas prerrogativas jurídicas, sob pena de afastar as pessoas de um modelo de experimentalismo acelerado, pois tenderiam a considerá-lo demasiado ameaçador, o que poderia fazê-las abraçar o primeiro despotismo que aparecesse. Assim, embora reconheça a importância dos direitos humanos e fundamentais, na me-

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A premissa da perspectiva experimentalista é que investir no social sem mudar as instituições não constrói cidadania. Assim, a ideia de reorganização estrutural da sociedade através de mudanças institucionais na política e na economia é o eixo da visão. Somente no contexto de reabertura da agenda da reorganização institucional da estrutura da economia num sentido democratizante, assim como da democracia representativa rumo à combinação com formas de democracia direta, tornará possível a realização dos ideais de justiça da filosofia política e caminhar em direção ao sentido dominante da ideia de democracia hoje no mundo: o engrandecimento das pessoas comuns (Teixeira, 2014, pp. 216-217).

A democracia constitucional encerra um desafio e um paradoxo: se de um lado surge

31  Há quem insista manter viva a ideia de uma Constituição Dirigente, ainda que em estado vegetativo, pois seu próprio criador já lhe decretou a morte encefálica. Ver: CANOTILHO, J.J Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidades: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. Coimbra: Almedina, 2008, p. 32.

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dida em que devem representar um conjunto básico de garantias mínimas a serem asseguradas a todos os indivíduos, mesmo porque se não dispuserem “dos meios culturais e econômicos com os quais pudessem elaborar e realizar seus projetos de vida, elas seriam incapazes de utilizar com êxito sua liberdade maior numa democracia mobilizadora” (Unger, 2004, p. 203), aponta em seus escritos que não seria adequado permitir que venham a significar uma forma de entrincheiramento que impeça a revisão dos contextos formadores. Com efeito, em uma democracia energizada, haverá sempre uma tensão permanente entre este conjunto de direitos básicos que hão de ser definidos pela própria mediação da política e as mudanças estruturais pretendidas. A aposta é que indivíduos empoderados possam ser equipados e inspirados a conduzir suas próprias vidas e, mais que isso, se sintam hábeis para ampliar, eles próprios, o conjunto de direitos partilhados pela sociedade, na medida em que Unger admite, no âmbito de uma democracia radical, um tipo de direito produzido de baixo para cima por grupos autônomos. Ele assume, portanto, uma postura crítica em relação aos direitos humanos, pois constata que, malgrado assegurem garantias mínimas aos cidadãos, não devem significar um empecilho à construção de uma ordem social aberta à revisão e contestação. No caso do Brasil, ademais, Unger é um acerbo opositor do weimarismo truncado e tardio do nosso diploma constitucional,31 na medida em que promoveu a constitucionalização de amplas e diversificadas expectativas sociais redistributivistas, sem apresentar os meios e instrumentos capazes de concretizá-las. A seu ver, a menos que se discutam modelos de reconstrução econômica e social, não se podem esperar muitos avanços na implantação dos direitos fundamentais previstos constitucionalmente. Como assinala Carlos Sávio Teixeira, o mais abalizado intérprete de Mangabeira Unger em nosso país:

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como o autogoverno popular, em contrapartida impõe limitações a esse mesmo poder, pois ao definir um conjunto de regras para a organização social e política de determinada comunidade, necessariamente limita-o.

6 CONCLUSÃO

REFERÊNCIAS ALTMAN, Andrew. Critical legal studies- a liberal critique. New Jersey: Princeton University Press, 1990.

32  Hoje testemunhamos um processo de banalização dos direitos humanos, com a defesa dos direitos humanos da terceira, quarta e até quinta geração. Como alerta Guy Haarsher, “Não se vê que a força dos direitos do homem reside essencialmente no seu caráter concreto, prático, jurídico” (...), de modo que a constante introdução de novos direitos ameaça vê-los tranformados em uma “vaga reivindicação moralizante”. In: A filosofia dos direitos do homem, Lisboa: Instituto Piaget, 1993, p. 52.

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Unger é um pensador dialético. As partes que compõem seu pensamento se articulam e se movem numa totalidade. Assim, o meditar sobre ideias e interesses e a reflexão acerca das instituições que os concretizem não deve ser considerado processo que opere em fase e/ou atividades distintas, pois cada momento incorpora o outro sem ser redutível ao outro: as ideias e interesses adquirem parte do sentido quando se materializam em instituições e estas, por outro lado, são refeitas e ressignificadas a cada instante a partir da mesma dinâmica (Unger, 2004, p. 14). É legítimo concluir que, se Unger pretende, como passo inicial, restringir a pauta dos direitos fundamentais para fazer avançar um projeto de radicalização democrática,32 é exatamente para melhor assegurá-la no futuro, pois ela encontrará nos espaços a serem abertos por uma democracia de alta energia um plano mais elevado de afirmação da liberdade humana, capaz de garantir às pessoas o poder de agir e autonomia para transcender os contextos que as conformam, capacitando-as a ansiarem e compartilharem o desenvolvimento de futuros sociais alternativos. No particular, associa o vínculo entre direitos humanos e o experimentalismo democrático mais radical com a “relação entre o amor de um pai e a disposição do filho para se arriscar em aventura e autotransformação” (Unger, 2004, p. 203), pois se oferecem um abrigo de estabilidades legalmente tuteladas, não deveriam impedir nem desencorajar os destinatários de sua proteção a construírem seus próprios caminhos. Os nossos ideais políticos e espirituais estão atados às práticas e instituições que os representam de fato, e é no pensamento jurídico que alcançam sua concretização material e detalhamento. Portanto, é no direito que a democracia radical forjará os instrumentos para transformação do arcabouço institucional que pretende reconstruir, mas, ao mesmo tempo, se não adota as devidas salvaguardas, nele poderá encontrar seu mais desafiador escolho.

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QUEM É MESMO EMPREGADO? DILEMAS DA SUBORDINAÇÃO JURÍDICA E O RETORNO DA DEPENDÊNCIA Murilo C. S. Oliveira*

1 INTRODUÇÃO Nos setenta anos da CLT, foi noticiado que metade dos trabalhadores brasileiros não possui registro empregatício (SOUZA, 2013). Na Justiça do Trabalho, perdura, desde sua criação, o contingente de milhares de novas reclamações trabalhistas nas quais o Reclamante almeja ser reconhecido como empregado e, assim, obter os direitos trabalhistas. Nestes percalços, a chave de acesso para a relação de emprego e a proteção trabalhista vem sendo hegemonizada * Juiz do Trabalho na Bahia e Professor Adjunto da UFBA, Especialista e Mestre em Direito pela UFBA, Doutor em Direito pela UFPR, Membro do Instituto Baiano de Direito do Trabalho – IBDT. murilosampaio@yahoo.com.br.

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RESUMO: A proposta deste ensaio é demarcar o cenário de retomada do critério da dependência econômica, a partir de uma racionalidade transdisciplinar sobre o trabalho assalariado. Primeiro, inicia descrevendo o (re)surgimento do critério nas legislações estrangeiras e no âmbito da OIT, associando seu conteúdo com a história e a ontologia protetiva do Direito do Trabalho. Desenvolve a argumentação de que a construção de um sistema protetivo não se explica pelo conteúdo do contrato, tampouco pela forma de execução deste trabalho, pois muito mais importante do que a maneira de desenvolver o trabalho, é a identificação do proveito econômico do resultado do trabalho. Ao final, enfatiza a ideia de dependência econômica como ausência de propriedade e, em contraponto, a autonomia cinge-se a atuação do sujeito como proprietário. Palavras-chave: Dependência econômica. Relação de emprego. Subordinação jurídica.

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pela noção de subordinação jurídica, embora este critério enfrente dilemas e problemas avassaladores, que transitam pelas ideias recentes de parassubordinação, subordinação estrutural, subordinação estrutural-reticular, subordinação telemática, entre outras. No enfrentamento dos problemas atuais de operacionalização do conceito de empregado, percebe-se que a marca da sujeição hierárquica do trabalhador foi atenuada ou diluída pelas dinâmicas de gestão do trabalho mais flexíveis, tornando mais difícil – pelo olhar tradicional – visualizar o mesmo assalariado, por força dos seus novos epítetos, como o (antigo) empregado. O novo do modismo contemporâneo disfarça, ilude e simula o velho padrão capitalista de trabalho assalariado. Nisto, a novidade verificável é a renovação disfarçada do velho, na tentativa de fuga de um marco legal (e seus custos) de proteção trabalhista. Fora da noção clássica de “subordinação jurídica”, os trabalhadores dependentes envolvente em situações atípicas de trabalho são excluídos da tutela legal da relação de emprego. Entretanto, a realidade destes dependentes desprotegidos repete o problema da excessiva exploração do trabalhador que culminou no surgimento do direito do trabalho, embora o faça através de formas distintas da relação de trabalho subordinado clássica. Não obstante, tem-se indubitavelmente repetida a condição originária trabalhista: uma parte hipossuficiente que carece de proteção legal ante ao poder econômico do seu tomador de serviços.

Diante dos problemas do conceito clássico da subordinação jurídica e das situações paradoxais de trabalho dependente não-subordinado, a dependência econômica tem sido novamente cogitada como nota distintiva do Direito do Trabalho. Por consequência, parcela da doutrina nacional e estrangeira cada vez mais se vale da antiga ideia de dependência como critério mais pertinente para o enfrentamento das situações atuais de trabalho. O critério, outrora renegado e tido como inaceitável pelo seu conteúdo extrajurídico, desponta novamente no debate doutrinário. No horizonte estrangeiro, o debate está franqueado, tendo a dependência econômica um lugar de destaque como alternativa ou mesmo complemento à subordinação jurídica. As novas figuras atípicas nas relações de trabalho são todas envoltas pelo estado de dependência econômica que é de difícil enquadramento na clássica subordinação. O professor português José João Abrantes enuncia que: na Itália a legislação valeu-se do epíteto “parassubordinado” (il lavoro parasubordinato); na Alemanha designa-se “pessoas semelhantes a trabalhadores” (arbeitnehmerähnliche persone), pois são prestadores de serviço economicamente dependentes (tarifsvertragsgesetz), também intitulados quase-trabalhadores; em Portugal, denomina-se contratos equiparados (2004, p. 94-95). A Recomendação 198 da OIT afirma o objetivo de tornar claras as definições em cada legislação nacional dos critérios de reconhecimento do vínculo de emprego, visando assegurar a proteção legal contra situações de trabalho “encubierto”. A norma da OIT define trabalho “en-

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2 VOLTANDO A DEPENDÊNCIA ECONÔMICA

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A força do critério está na história, pois não nos é possível separar de emprego da evolução econômica, da produção sob o regime da empresa. O direito do trabalho surgiu, precisamente, para compensar desigualdades econômicas. Para reduzir a coação econômica, viciadora da vontade dos mais fracos em face dos economicamente

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cubierto” como uma relação de trabalho na qual o empregador oculta sua natureza empregatícia, privando o trabalhador da proteção social que teria direito. Assim, enuncia a recomendação internacional: “clarificar y a adaptar el ámbito de aplicación de la legislación pertinente, a fin de garantizar una protección efectiva a los trabajadores que ejercen su actividad en el marco de una relación de trabajo”. Estas diretivas da OIT sinalizam as atuais dificuldades enfrentadas na definição de empregado perante as situações atípicas, indicando o resgate da dependência econômica. No Brasil, Arion Sayão Romita, o mesmo autor que introduziu no país o conceito de subordinação objetiva, já sinaliza para a retomada da dependência econômica, afirmando que o atual contexto “propicia a revalorização da dependência econômica como critério legitimador da aplicação das leis a quem contrata serviços remunerados por conta de outrem, ainda que não juridicamente subordinado” (ROMITA, 2004, p. 1287). Da mesma forma, Marcus Kaufmann indica retorno da dependência: “[...] o cerne de toda questão está na passagem do Direito do Trabalho a partir de uma filosofia centrada na subordinação jurídica a uma filosofia em prol da dependência econômica [...]” (KAUFMANN, 2006, p. 238). Na teoria do Direito do Trabalho, não há dúvidas de que a condição de dependente do trabalhador é indiscutivelmente a causa e a razão de ser da disciplina. Com efeito, é o traço da dependência o constitutivo da singularidade do juslaboralismo, haja vista que seu caráter protetivo, limitador da exploração deste trabalho, é o caractere que o distingue das demais disciplinas das relações privadas. Serve, então, como medida de garantia de civilidade a uma relação econômica que é estruturalmente injusta e desproporcional. O Direito do Trabalho destina-se aqueles que somente têm a força de trabalho como possibilidade de vida e, assim, como serem dependentes daqueles que lhes ofertem um salário. A justificação histórica e ontológica da criação de uma tutela legal para as relações de trabalho é a condição essencialmente dependente do trabalhador assalariado para com o Capital. Em razão da apropriação pelo Capital sobre o resultado do seu trabalho, por receber valor (bastante) inferior ao que produz, por, principalmente, estar previamente ligado pelos fios invisíveis do despossuimento e reforçado pelo temor do desemprego, o trabalhador depende estruturalmente da venda de sua força de trabalho e, portanto, é impelido a alienar-se para sobreviver. Por esta razão, o critério da dependência econômica detém uma força histórica marcante no Direito do Trabalho, como delimitação conceitual jurídica da condição de assalariado. Notadamente por reconhecer esta posição inferior oriunda de uma situação de exploração econômica, o regramento jurídico que surgia não poderia adotar outro perfil senão aquele de limitação desta exploração, como vaticina José Martins Catharino:

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poderosos. Surgiu como instrumento jurídico de reação contra o statuoquo implantado pelo capitalismo desenfreado, e com nítida finalidade humanitária (1982, p. 201-202).

Dependência econômica e proteção trabalhista são, assim, ideias inter-relacionadas e fundadoras da própria ontologia do Direito do Trabalho. “O direito do trabalho foi criado para proteger os economicamente fracos, os que vivem dos seus salários, sem nenhuma outra fonte de renda […]” (MORAES FILHO, 1994, p. 141). Estes sujeitos economicamente fracos, cuja leitura jurídica de Cesarino Junior lhes define como hipossuficientes, são aquelas pessoas não-proprietárias, que dependem da sua força de trabalho para lograr sua sobrevivência e de sua família. Logo, pensar no sujeito do Direito do Trabalho – o assalariado – é pensar no sujeito dependente econômico. É este o notório conceito de hipossuficiente de Cesarino Junior: Aos não proprietários, que só possuem sua força de trabalho, denominamos hipossuficentes. Aos proprietários de capitais, imóveis, mercadorias, maquinaria, terras, chamamos de hipersuficientes. Os hipossuficientes estão, em relação aos auto-suficientes, numa situação de hipossuficiência absoluta, pois dependem, para viver e fazer viver sua família, do produto do seu trabalho. Ora, quem lhes oferece oportunidade de trabalho são justamente os auto-suficientes [...] (1980, p. 44-45).

Estes traços de desigualdade e coação implícita legitimam uma política protecionista em favor dos sujeitos da relação formal de emprego. Isto é, foi a condição de dependente do assalariado que fundamentou a proteção trabalhista. A justificativa para a proteção trabalhista não é o conteúdo do contrato de trabalho, mas a condição do sujeito que contrata (MACHADO, 2009, p. 27). É sua condição de dependente econômico – e não por força da sujeição hierárquica pessoal, fiscalização do horário ou do local de trabalho ou mesmo pela direção técnica – que se justifica ontologicamente um sistema trabalhista protetivo. É a mesma condição de dependente que explica a recorrente tentativa teórica de ampliar o conceito de empregado para contemplar os outros dependentes não-subordinados, a exemplo da parassubordinação.

À primeira vista, a dependência econômica significaria a situação do trabalhador que tem na remuneração recebida a condição de sobrevivência. Isto é, há dependência econômica quando o trabalhador, em troca da prestação de serviços, obtém remuneração que lhe permita o seu sustento e de sua família. Ocorre que esta noção primária é demasiadamente vaga e superficial. Tanto os assalariados como os empregadores que dirigem suas empresas vivem necessariamente do seu trabalho, não havendo nenhuma distinção entre estes pelo fato da necessidade de obter, pelo emprego de sua energia individual, remuneração que lhe sirva para satisfazer as necessidades e desejos. A delimitação da dependência econômica como “depender de pagamento” é apenas a camada externa do conceito, sendo uma compreensão insuficiente e epidérmica. A dependência

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3 REFINANDO A IDEIA DE DEPENDÊNCIA ECONÔMICA

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econômica, no seu interior, abaixo da superficialidade, diz respeito a ter seu trabalho expropriado e a não viver da remuneração. Se a dependência econômica tem sido, até então, enfrentada sobre seus aspectos superficiais e igualmente criticada pelos problemas oriundos desta aparência, é premente romper com esta análise epidérmica. No aprofundamento desta questão, percebe-se que o poder – e sua consequência potencial de subordinar os trabalhadores – de uma empresa capitalista decorre da sua propriedade. Retomando Karl Marx, vê-se que “O capitalista não é capitalista por ser dirigente industrial, mas ele tem o comando industrial porque é capitalista” (2006, p. 385). O capitalista comanda a empresa em nome da propriedade de que é titular. Por ser o sujeito proprietário, pode-se afirmar como o comandante da empresa. Por decorrência, o poder diretivo é mera consequência da produção capitalista e não sua qualidade distintiva. O fundamento central da relação de trabalho é a propriedade, precisamente porque o caráter singular desta relação é o intercâmbio entre proprietários e não-proprietários. Entretanto, essa questão é ocultada no Direito do Trabalho. A ênfase que o juslaboralismo confere ao poder diretivo atua, de certa medida, como ocultadora e naturalizadora desta relação entre proprietário e não-proprietário. O jovem Orlando Gomes, conjugando as contribuições de La Cueva e Sinzeheimer, aponta que o direito de propriedade funda uma situação de poder do empregador sobre o empregado. Convém reproduzir o elucidativo trecho:

O contrato de trabalho aparece, então, como o momento jurídico de legitimação da subordinação, embora antes mesmo de contratar, o trabalhador já é dependente por não ser proprietário. Sendo o assalariado um sujeito despossuído – por ausência de propriedade capaz de lhe permitir atuar como empreendedor – fica “livremente” impelido a vender sua força de trabalho. O despossuimento é que demarca sua condição de dependente e não o fato de depender de salário. A relação de dependência do assalariado para com a empresa é prévia ao contrato de trabalho e estrutural na sociedade capitalista, na medida em que a força de trabalho somente se realiza quando vendida ao capital. Seu destino dirige-se estruturalmente à alienação em favor do empregador sob a condução sutil dos fios invisíveis da teia capitalista. O trabalho desconectado da propriedade no mundo capitalista reduz o sujeito trabalhador a apenas força de trabalho, ou seja, a algo a ser vendido como mercadoria em troca de salário. Infere-se aí que o viver do salário é a consequência do ser despossuído e não a própria condição de dependente. A direção dos serviços não é condição essencial para existência de trabalho depen-

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É fato incontroverso que a propriedade não confere apenas um poder sobre as coisas, mas, também, sobre os homens. Nos domínios da produção de riqueza, esse poder do proprietário concretiza-se, juridicamente, em um conjunto de faculdades através de cujo exercício faz sentir sua autoridade sobre os trabalhadores, isto é, sobre os homens que, não podendo ser proprietários de meios de produção, põem, à disposição dos que podem, a sua força-trabalho (GOMES, 1944, p. 119).

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dente, embora seja uma das consequências mais habituais. O exemplo do vendedor externo ou do trabalhador intelectual é emblemático no sentido de demonstrar que nem todo trabalho assalariado é heterodirigido. Por isso, é a condição de proprietário dos meios de produção que legitima o comando do capitalista e não a situação inversa. O poder ínsito à propriedade dos meios de produção explica como pode ocorrer trabalho por conta alheia sem a direção dos serviços. Há casos em que o empregador é o dono do resultado do trabalho sem necessitar exercer o comando. O sentido da expressão “venda de força de trabalho” refere-se ao bem cuja utilidade econômica é restrita, por depender do seu acoplamento a um empreendimento, mais precisamente pela sua conjunção com a propriedade (meios de produção). Sendo o trabalho um elemento da empresa, seu destino é o de estar contido nesta. Nesta definição, é preciso realçar que o trabalhador dependente é exatamente aquele que, por ser despossuído, trabalha por conta alheia e, assim, não se apodera dos resultados desta entrega de trabalho. O trabalho por conta alheia origina o sujeito dependente como fundamento do Direito do Trabalho. Daí, forma-se, por simetria, o conceito de empresa como ente que se apropria dos resultados positivos e negativos – os riscos do negócio –, inclusive porque normalmente dirige a organização da empresa. Neste particular, dirigir a organização da empresa é um conceito muito mais amplo do que o estabelecimento da hierarquia e de sua faceta mais visível de “emitir ordens”. O ícone da empresa não é o mando, mas a propriedade. Mais importante do que dirigir os serviços – o que pode ser traduzido num controle contínuo da atuação do empregado – é estruturar e organizar os serviços, os quais poderão até ser executados sem esta reiterada direção (vide situação do vendedor viajante). Organizar a empresa diz respeito a estabelecer os rumos da atividade econômica, fixar a dimensão territorial de atuação, definir os preços dos bens e serviços que comercializa e, principalmente, ser juridicamente o proprietário do resultado do trabalho dos seus empregados. A condição de dono não propicia a atuação como chefe emissor de ordens e fiscalizador, até porque este papel é cotidianamente atribuído aos seus gerentes e administradores. O dono cria e organiza, delega a direção aos altos-empregados, mas, sempre, é o proprietário da riqueza gerada pela força de trabalho que comprou. É isto o comando geral inerente a qualquer titular de empresa, sendo o modelo fordista apenas uma possibilidade dentre muitas, a exemplo das pós-fordistas, de dirigir a atividade da empresa. A par disto, o termo “dependente” deve ser compreendido menos como um adjetivo (subordinado e assujeitado) e mais como aquele que predica ação “depender”. O verbo “depender” – ação daquele que é dependente – deve privilegiar a semântica de “pertencer”, “estar condido” e “fazer parte” em detrimento da subordinação advinda do “estar sujeito” ou carecer economicamente (HOUAISS, 2009, p. 616). O empregado é dependente porque sua força de trabalho não se realiza sozinha, pois pertence estruturalmente à empresa, fazendo parte desta e, como consequência possível, podendo ser subordinado. A demarcação da dependência foi feita, até aqui, sem adjetivos, numa concepção ge-

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4 CONCLUSÃO Da raiz da dependência econômica, a condição do dependente pode se manifestar ora como sujeição hierárquica, como subordinação técnica, como integração na atividade-fim da

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neralizante. Todavia, é preciso fazer uma opção de recorte desta ampla delimitação visando enfatizar seu aspecto preponderante. A ênfase no aspecto econômico consiste no realce da força e do poder da propriedade. Fala-se em “econômica” para sempre relembrar que a causa e a continuidade do estado de dependente advém da apropriação alheia do trabalho, ocorrida em nome da propriedade. A chave da compreensão crítica da dependência é, então, seu conteúdo econômico, como correlato à ausência de propriedade. Trata-se da percepção de que esta forma de trabalho dependente é estruturada pelas condições econômicas da sociedade capitalista. Em nome da propriedade, coage-se ao trabalho, como também, por força da propriedade, expropria-se a riqueza criada pelo trabalhador. Qualificar a dependência como econômica significa explicitar a natureza capitalista da venda da força de trabalho e seu consequente Direito capitalista do Trabalho, que na fuga conveniente do extrajurídico termina esquecendo suas imbricações econômicas. Almeja-se destacar que a manifestação concreta de vontade e a liberdade, no capitalismo, pressupõe um sujeito proprietário, sendo remanescente a coação e a restrição da vontade para os não-proprietários. Daí, resta impraticável considerar como contratantes iguais na sua livre vontade negocial o empregado e o empregador, nas recorrentes tendências flexibilizantes de retorno da convalidação da autonomia privada. Da mesma forma, objetiva rememorar que se os sistemas jurídicos pretendem concretizar o valor da dignidade humana devem combater o poder veiculado pela propriedade, através de limitações constitucionais e legais. O ascendente solidarismo de uma Constituição-Dirigente, para lograr seu firmamento, precisa conter o Capital. Nesta direção, deve-se, cada vez mais, fortalecer as limitações dos poderes dos proprietários, tal como ocorre com a “função social da propriedade”, Direito do Consumidor, Lei do Inquilinato e, ontologicamente, o princípio da proteção do trabalhador no Direito do Trabalho. A relação de trabalho assalariado perpassa, nestes termos, pelas ideias de propriedade, poder e sujeição. A propriedade confere poderes e obriga aqueles que são proprietários apenas de si a se sujeitaram, como condição de vida, ao trabalho para o outro. Em essência, a leitura jurídica do fenômeno social do assalariamento indica que o trabalhador vive sob “sujeição” porque atua conforme o interesse alheio, por falta de propriedade. Assim, a dependência equivale a “sujeição”, destacando o traço do poder nesta relação, enquanto a econômica elucida que o fundamento deste poder é a propriedade. Enfim, serve para que não se esqueça de que o Direito do Trabalho é, essencialmente, o Direito Capitalista do Trabalho, que confere uma dita civilidade à expropriação do trabalho dos não-proprietários.

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empresa ou até como pobreza individual bem ilustrada na situação do trabalho com exclusividade para um tomador, exatamente porque todas estas circunstâncias são consequências possíveis daquele que não se apropria do resultado do trabalho. Na operacionalização desta ideia ressignificada de dependência, articula-se uma racionalidade de abertura e amplitude conceitual, que transfere para o conceito de trabalho autônomo o padrão fechado da tipicidade. Rompendo com o positivismo que subsidia o dogmatismo trabalhista, afasta-se, igualmente, da pretensão de completude dos conceitos jurídicos, inclusive reconhecendo a inadequação de um conceito milimétrico que tende a ineficácia e obsolência pela inovação, complexidade e pela processualidade histórica. Como contraposição à ideia de dependência econômica, a autonomia é, então, advinda da titularidade sobre uma organização produtiva, ainda que seja diminuta, isto é, a existência de propriedade suficiente (e trabalho humano) para a constituição da ideia (ampla) de empresa é que caracteriza a autonomia. Infere-se que é justamente a propriedade que cria as condições para o exercício do poder de direção ou mesmo propicia sua delegação para os chefes, gerentes, entre outros. Por fim, denota-se que o conceito legal de empregado apesar de veicular uma noção ampla (“sob dependência”) que foi, infelizmente, reduzido pelo conceito positivista e puritano de subordinação jurídica. Acredita-se que a dependência econômica seja um caminho muito mais fácil e efetivo para, no lugar da subordinação jurídica, conduzir à ampliação do conceito de empregado, até porque a ideia da dependência sempre esteve na CLT, mas quase nunca é vista. Para tanto, são preementes novos olhares críticos que ultrapassam as superficialidades dogmáticas, especialmente aquelas que legitimam o conceito clássico de subordinação jurídica.

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ABSTRACT: The purpose of this article is to trace the scenario resumed the criterion of economic dependence, from a transdisciplinary rationality on wage labor. First, start by describing the (re) emergence of discretion in foreign laws and the ILO, associating content with the history and ontology protective of the Labor Law. Develops the argument that the construction of a protective system cannot be explained by the contents of the contract, either by way of execution of this work, as much more important as the way to develop the work is the identification of the economic advantage of the result of the work. At the end, it emphasizes the idea of economic dependence and lack of ownership and, in contrast, autonomy is confined to the role of the individual as owner. Keywords: Economic dependence. Employment relationship. Legal subordination.

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SOUZA, Marcelle. CLT completa 70 anos e direitos básicos ainda são ignorados em: http:// noticias.bol.uol.com.br/ultimas-noticias/economia/2013/05/01/clt-completa-70-anos-e-direitosbasicos-ainda-sao-ignorados. Disponível em: <http://noticias.bol.uol.com.br/ultimas-noticias/ economia/2013/05/01/clt-completa-70-anos-e-direitos-basicos-ainda-sao-ignorados.htm>. Acesso em: 01 maio 2013.

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Recebido em 13 ago. 2015. Aceito em 22 out. 2015.

A ADVOCACIA DE COMPLIANCE COMO FORMA DE PREVENÇÃO À LAVAGEM DE DINHEIRO André Marinho Medeiros Soares de Sousa*

RESUMO: Este artigo analisa o compliance, ou advocacia gerencial, exercida no âmbito das pessoas jurídicas e, mais especificamente, o modo de torná-lo instrumento de prevenção ao delito da lavagem de dinheiro. Para tanto, aborda o próprio conceito de compliance e os benefícios que isto traz aos entes que adotam tal prática. Além disso, o presente trabalho explora como ocorre a regulamentação do tipo penal em tela no ordenamento jurídico brasileiro e os órgãos que fazem seu controle externo, denotando que tal prática unicamente repressiva é ineficaz, a partir de números fornecidos pelo CNJ. Conclui o controle interno como a melhor solução. Palavras-chave: Compliance. Advocacia gerencial. Prevenção. Lavagem de dinheiro. Controle interno.

O delito de lavagem de dinheiro, em que pese deveras regulamentado no Brasil, atualmente pela Lei 9.613/1998 - que sofreu alterações pela Lei 12.683/2012 - e alvo de combate por instituições reguladoras, como o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), do Ministério da Fazenda, instituído por aquela lei, ainda é uma realidade no país. Como aduzido, embora haja previsão de controle externo das instituições que atuam no âmbito financeiro, a lavagem de dinheiro ainda se constitui em realidade. Vê-se que o controle estritamente repressivo do delito em pauta se mostra ineficaz.

* Graduando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, cursando o 6º período.

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1 INTRODUÇÃO

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Diante disso, percebe-se a governança legal na intimidade das pessoas jurídicas que exercem sua atividade no mercado financeiro como uma possível alternativa para o combate ao trespasse das normas às quais essas pessoas estão submetidas. Nessa perspectiva é que deve ser encarada a necessidade da advocacia de compliance, com vistas de tornar-se útil instrumento de controle interno, adaptando as pessoas atuantes no cenário econômico às normas que por elas devem ser observadas e cumpridas, mormente no que tange o delito da lavagem de dinheiro. O crime em questão deve ser encarado, prioritariamente, do viés preventivo, a fim que o ordenamento jurídico possa ter êxito no seu desiderato de manter a higidez da ordem econômica, assegurando que esta não se contamine com capitais de origens ilícitas. O presente trabalho é lastreado em dados do Conselho Nacional de Justiça acerca dos procedimentos que versam sobre lavagem de dinheiro tramitando ante o Poder Judiciário brasileiro. Igualmente, parte da premissa de que os atores das relações comerciais, atualmente, são mais criteriosos quando da escolha de seus parceiros, conforme pesquisa veiculada pelo Instituto da Micro e Pequena Empresa – IMEPE. Este artigo é baseado, também, na literatura especializada dos temas lavagem de dinheiro, compliance, advocacia corporativa e análise econômica do direito, assim como em estatísticas do COAF no que tange as comunicações de operações financeiras atípicas, como se verá posteriormente.

A advocacia de compliance, ou advocacia gerencial, é um instrumento de consultoria legal no âmbito das pessoas jurídicas que possui o escopo de influenciar o cumprimento de todas as normas que devem ser observadas por tais entes. Compliance é termo da língua inglesa e remete à noção de observância, conformação. Na esteira do que observam Manzi e Coimbra (2010, p. 2), pode-se dizer que compliance é o dever de cumprir e estar em conformidade com as normas e regulamentos, tanto internos quanto externos. É nesse sentido que é empregado tal vocábulo para definir a advocacia gerencial, vez que tal instrumento de controle interno nos âmbitos das instituições, notadamente as que atuam no mercado financeiro, tem o objetivo principal de adaptar as condutas protagonizadas por essas pessoas jurídicas a todo e qualquer regramento a que elas estão submetidas. Assim, a advocacia de compliance pode ser definida como a governança jurídica realizada na intimidade das instituições com vistas a garantir a efetiva observância, conformação e cumprimento das normas que se impõem aos entes em questão.

3 PORQUE UTILIZAR O COMPLIANCE: PRESERVAÇÃO DA IDONEIDADE DA EMPRESA E VIÉS PREVENTIVO

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2 A ADVOCACIA DE COMPLIANCE: BREVES CONSIDERAÇÕES

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1  COSTA, Daiane (Ed.). Consumidores preferem empresas reconhecidas por preservarem o meio ambiente, indica estudo. 2015. Opinion Box, Mundo do Marketing e Dia. Disponível em: <http://grupoimepe.com.br/consumidores-preferem-empresas-reconhecidas-por-preservarem-o-meio-ambiente-indica-estudo/>. Acesso em: 26 maio 2015.

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A idoneidade da instituição, eticamente, deve ser enxergada como um fim em si mesmo. Na perspectiva kantiana, como um imperativo categórico. As instituições devem cumprir as regras em respeito ao ordenamento jurídico, à ética e os costumes da área. Não obstante, é possível observar que a instituição de reputação idônea ganha, atualmente, força de mercado. O cenário econômico hodierno traz consigo a presença de consumidores, investidores e parceiros mais criteriosos em escolher com quem irão fazer negócios. A reputação da empresa, que é refletida na valorização da marca e nome, se faz de suma importância na hora da instituição ser escolhida para ser parte contratante por qualquer desses atores econômicos. Dessa forma, denota-se que a empresa de reputação exemplar por estar em conformidade com as leis, sejam elas ambientais, trabalhistas, tributárias, penais ou regulamentos da área, possui mais força de mercado em relação às demais. É o que se pode notar a partir da análise, veiculada pelo site do IMEPE1, da pesquisa feita pelas empresas de consultoria Opinion Box, Mundo do Marketing e Dia com 1.138 internautas de todo o país, revelando que 54% dos consumidores dão preferências às empresas que sejam reconhecidas por preservarem o meio ambiente. Assim, ressalta-se a importância da advocacia de compliance para a preservação da idoneidade da empresa, com vistas, outrossim, de obter os benefícios de valorização e ganho de poder de mercado que decorrem dessa preservação. A efetiva observância aos regulamentos confere à pessoa jurídica respaldo e confiança pública para o exercício de sua atividade no âmbito mercantil. Ou seja, é necessário frisar que a governança jurídica na intimidade das instituições, adequando tais pessoas às normas de conduta impostas é essencial para a manutenção da reputação reta da pessoa jurídica, fator que traz consigo as referidas vantagens econômicas. Outro fator importante do uso do compliance é que o controle jurídico interno com o escopo de manter as ações das pessoas jurídicas em conformidade com as leis é gerador de ganhos para o Direito Penal, mormente o Direito Penal Econômico, na perspectiva do que leciona Arrieta (2001, p. 382), e para os demais modos sancionadores do Estado, na medida em que impede que as instituições, por dolo ou culpa, ultrapassem os limites das leis que por elas devem ser cumpridas. Assim, o aparato penal sancionador, que deve ser interpretado como a última ratio da intervenção do Estado na liberdade de ação dos indivíduos e das pessoas jurídicas, não deverá ser acionado, porquanto a governança jurídica já haverá feito, previamente, a adaptação das condutas das instituições aos padrões que devem ser observados. Na mesma trilha ensina o mestre Cezar Roberto Bittencourt (2013, p. 54), aduzindo que, antes de se recorrer ao Direito Penal, devem-se exaurir todos os meios extrapenais de controle social. Mais ainda, ressalte-se que, na perspectiva de uso do compliance, surge um meio

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extrajudicial de se efetivar tal controle. O controle interno coíbe que o Estado venha, por meio de sua faceta sancionadora, a intervir na esfera jurídica dos administrados, seja por meio de normas do direito penal, seja por meio de regras sancionadoras do direito administrativo. A advocacia de compliance, sem dúvida, apresenta-se nessa esteira como meio de controle social, sendo, em análise, responsável pelo efetivo respeito às normas vigentes. A maior vantagem da advocacia de compliance nesse aspecto é o fator preventivo. Não haverá necessidade de repressão, vez que, tornando-se notória a reputação das instituições no sentido de serem cooperantes com o COAF no concernente ao combate à lavagem de dinheiro, os transgressores não buscarão tais meios para pôr na economia rendimentos oriundos de infrações penais. Essa é uma breve e positiva análise econômica dos comportamentos dos potenciais criminosos diante de tal política das organizações. A repressão, além do custo econômico que representa para o Estado em movimentar o aparato repressivo, não foi a intenção do legislador ao instituir uma conduta tipificada como contrária ao ordenamento jurídico. O viés hermenêutico que se deve dar à norma que tipifica uma infração é o de, prima facie, coibir a existência da conduta que se enquadra no tipo. Dessa forma é possível notar os benefícios jurídicos e socioeconômicos para o Estado do controle interno feito pela advocacia de compliance, na medida em que esta advocacia gerencial se mostra como uma atividade social preventiva ao cometimento de ações contrárias ao ordenamento, impedindo em grande parte que o Estado tenha o ônus de acionar seu aparelho repressivo para sancionar transgressões.

No ordenamento jurídico brasileiro o grande marco regulatório do tipo penal da lavagem de dinheiro é a Lei 9.613/1998. Pode-se dizer que a lei em comento decorre de outra regulamentação inserida no sistema jurídico positivo do país, o Decreto Presidencial 154 de 1991, cujo objetivo foi de ratificar a Convenção das Nações Unidas contra o tráfico ilícito de entorpecentes e substâncias psicotrópicas, fato também mencionado em Martinelli (2013, p.11). Reconhecendo nas suas disposições iniciais que o tráfico ilícito e outras atividades criminosas organizadas minam as economias lícitas das nações, além de gerar grandes rendimentos que permitem às organizações criminosas contaminar e corromper atividades comerciais e financeiras lícitas, os Estados signatários da Convenção se comprometeram a adotar as medidas necessárias para caracterizar como delitos penais em seu direito interno, dentre outros crimes, a lavagem de dinheiro. É o que se observa da leitura do artigo 3º, 1, b, i e ii, do referido Decreto, que tem o condão de criminalizar no direito interno dos países signatários as condutas com vistas à dissimular, ocultar ou converter a origem ilícita de bens oriundos do tráfico. Nesse contexto de combate aos frutos econômicos decorrentes do trafico ilícito de entorpecentes foi elaborada a Lei Federal 9.613/1998, primeira regulamentação nacional sobre

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4 A REGULAMENTAÇÃO DA LAVAGEM DE DINHEIRO NO BRASIL

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o crime acessório da lavagem de dinheiro. No início, tal diploma legal ostentou nos incisos do caput do seu art. 1º, os crimes antecedentes que poderiam render frutos a ensejar o delito de lavagem. Estabelecia-se, dessa forma, um rol taxativo de crimes antecedentes para se identificar a lavagem de dinheiro, excluindo do âmbito de aplicação da legislação penal os delitos de lavagem que fossem advindos de crimes não taxados na lei. Saliente-se, o inciso I do referido dispositivo remetia ao tráfico ilícito de entorpecentes ou drogas afins. De forma tardia, mas acertadamente, promulgou-se a Lei Federal 12.683/2012, responsável por dar nova roupagem à persecução penal do crime de lavagem de dinheiro. Como dispõe a própria descrição da lei, para torná-la mais eficiente. Uma das maiores contribuições da Lei 12.683/2012, com vistas a tornar mais eficiente a persecução penal, foi a de excluir o rol taxativo de crimes antecedentes, e de dar nova redação ao artigo 1º da Lei 9.613/1998, passando a vigorar da seguinte forma “Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal.”. Ou seja, a nova redação torna mais rígida a tipificação do crime de lavagem de dinheiro. Infere-se, em uma exegese simples, que quem pratica um dos núcleos do tipo penal em tela comete atitude lesiva à ordem econômica. Claro, ressalvando-se os casos que ensejam a aplicação de demais excludentes, como a do princípio da insignificância. Assim, toda infração penal capaz de gerar rendimentos que possam ser ocultados e dissimulados em sua origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade, pode ser caracterizada como crime antecedente da lavagem de dinheiro. O executor de um desses núcleos estará a ferir a incolumidade da ordem econômica, na medida em que coloca na economia capitais de origens ilícitas e que são integrados ao mercado como se lícitos fossem. A Lei 9.613/1998, com as devidas alterações feitas pela Lei 12.683/2012, estabelece, em seu artigo 9º, o rol de pessoas físicas e jurídicas que se submetem aos mecanismos de controle por parte do COAF do Ministério da Fazenda, dentre outros órgãos disciplinadores e reguladores, se existirem na área específica de atuação de tais pessoas. Esses sujeitos, em geral, são os que possuem atuação, ainda que em caráter eventual, no mercado financeiro. São exemplos as bolsas de valores, as seguradoras e corretoras de seguros (art. 9º, § único, I e II). Tais atuantes do mercado financeiro sujeitam-se às obrigações trazidas nos artigos 10 e 11 - abordadas nos parágrafos seguintes - do mesmo diploma, com o fim de se operacionalizar o combate externo e interno da lavagem de dinheiro na ordem socioeconômica. As pessoas referidas no artigo 9º devem identificar os seus clientes por meio de cadastro e manterem seus registros atualizados. Essa obrigação serve para facilitar a atuação do COAF no tangente à busca de informações sobre possíveis criminosos e operações suspeitas. Observe-se, o diploma legal em tela traça a diretriz para que as referidas organizações adotem mecanismos e políticas de controle interno, que facilitem o atendimento das obrigações que lhes são impostas. Como se verá adiante, essa é mais uma das facetas em que a advocacia de compliance deve atuar para a prevenção à lavagem de dinheiro.

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Outrossim, tais instituições e indivíduos atuantes no mercado financeiro devem comunicar ao COAF, no prazo de 24 horas, a operação suspeita que possa constituir indícios do crime de lavagem de dinheiro. Também é dever das organizações alertar ao órgão fiscalizador de sua atividade ou ao COAF, caso aquele não exista, de forma periódica, a não ocorrência de operações suspeitas. É possível observar, a partir da análise das estatísticas de 2015 divulgadas pelo mesmo COAF, que o setor bancário e o de seguros são os que mais comunicam operações atípicas2. As pessoas elencadas no artigo 9º sujeitam-se à responsabilidade administrativa, conforme dispõe o mesmo diploma legal. O descumprimento das obrigações a que lhes são imputadas pode acarretar penalizações que oscilam de advertência à cassação ou suspensão da autorização para o exercício de atividade, operação ou funcionamento. As sanções administrativas serão aplicadas pelo COAF, conforme dispõe o artigo 14. Nessa senda, denota-se que a legislação reguladora do crime de lavagem de dinheiro no Brasil impõe diretrizes de combate preventivo externo e interno ao delito em questão. De forma integrada, as instituições privadas e o Estado se tornam mais eficientes na prevenção à lavagem de dinheiro. Desse modo, ressalta-se a importância da advocacia de compliance como instrumento de controle interno a fim de maximizar a eficiência dos mecanismos de controle e prevenção.

Seguindo o que foi abordado até agora no texto, vê-se que o controle interno é passível de ser a alternativa mais eficaz no tangente à prevenção do delito da lavagem de dinheiro. Para corroborar que o controle unicamente externo é ineficaz, depreende-se a partir de pesquisa feita pelo Conselho Nacional de Justiça – CNJ3, que o delito em comento é realidade latente na nossa sociedade, vez que, no ano de 2010, existiam 3.298 procedimentos, divididos entre inquéritos, ações penais e recursos, tramitando ante as Justiças Estaduais e Federais do Brasil, versando sobre lavagem de dinheiro. A seguir, serão analisadas nos tópicos subsequentes algumas maneiras que pode a advocacia de compliance ser utilizada para se atingir tal desiderato preventivo. 5.1 Educação normativa interna Uma das formas do uso da governança legal no combate interno ao crime da lavagem 2  BRASIL. Conselho de Controle de Atividades Financeiras. Ministério da Fazenda (Org.). Comunicações Recebidas por Segmento. 2015. Disponível em: <http://www.coaf.fazenda.gov.br/menu/estatisticas/ comunicacoes-recebidas-por-segmento/comunicacoes-por-segmento.xls/view>. Acesso em: 01 out. 2015. 3  BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. República Federativa do Brasil. Estatísticas de processos e procedimentos que tenham por objeto crimes de lavagem de bens, direitos ou valores. 2011. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/images/programas/cadastro-improbidade/Resultados/Dados_Consolidados_Lavagem_de_ Dinheiro_2010.pdf>. Acesso em: 10 ago. 2015.

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5 A ADVOCACIA DE COMPLIANCE COMO INSTRUMENTO DE PREVENÇÃO À LAVAGEM DE DINHEIRO

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5.2 Controle interno da regularidade das operações financeiras O compliance deve se apresentar, igualmente, como um meio de efetivar o controle

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de dinheiro ocorre quando o compliance é usado como meio de educação normativa às pessoas que compõem a instituição financeira. Todos os agentes das organizações precisam ter amplo conhecimento das normas às quais se submete a organização que eles integram, assim também entende o professor Andrew Newton (2002, p. 114). Nesse sentido, demanda-se no âmbito interno dessas pessoas jurídicas a presença de advogados e consultores com conhecimento jurídico de todas as normas que devem ser observadas pela empresa. Esses profissionais do direito mostram sua relevância na medida em que podem oferecer cursos, palestras e seminários, nos quais sejam apresentadas aos funcionários as condutas proibidas e permitidas pelo arcabouço normativo que compreende a instituição. Ora, a pessoa jurídica não trespassa limites regulamentares por si só, mas por meio dos agentes que a integram, sendo apropriado que eles conheçam esses limites. Não só a mera apresentação de condutas, mas torna-se importante a explicitação das consequências positivas e negativas da violação ou cumprimento das normas. No caso do delito em tela, por exemplo, veja-se a necessidade de um funcionário de uma empresa de fomento comercial ( factoring) dever saber que, ao deixar de comunicar ao COAF uma operação financeira atípica estará ensejando a responsabilidade administrativa da empresa em que trabalha. Tal sanção, caso a gravidade da infração permita, poderá ser a de cassação da autorização da empresa de operar no mercado. Isso resultará no desemprego desse mesmo empregado e de todos os outros. A educação normativa promovida pela advocacia de compliance se apresenta, claramente, como uma ação obediente aos benefícios sociais da preservação da empresa, porquanto promove a conscientização dos funcionários de que a pessoa jurídica íntegra favorece não apenas o empresário, que terá ganho na força de mercado, como já demonstrado, mas aos consumidores que terão acesso a um serviço de melhor qualidade e, consequentemente, aos próprios empregados, os quais provavelmente irão ganhar com o aumento do consumo. Esses ganhos dos empregados podem ser refletidos no aumento de salários e comissões, devido ao aumento de negócios fechados. Especificamente no que envolve a órbita da Lei Federal 9.613/1998, os funcionários precisam ser exaustivamente ensinados no sentido de sedimentarem em suas consciências o peso da responsabilidade no cumprimento das obrigações referidas nos artigos 10 e 11. Ou seja, da identificação dos clientes e manutenção dos registros e comunicação das operações. Assim, havendo na intimidade das organizações que atuam no mercado financeiro, entre seus funcionários, a consciência comum de que tais obrigações devem sempre ser cumpridas em razão do compromisso ético, como também dos benefícios que lhes afetarão, a pessoa jurídica estará mais facilmente adequada a tais regras, dessa forma sendo a conscientização normativa um vetor preventivo à ocorrência do crime em tela.

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interno da regularidade das operações financeiras às quais a instituição faz parte, sendo, por conseguinte, um modo de prevenir o crime da lavagem de dinheiro. Explique-se: deve o departamento jurídico das pessoas jurídicas se postar no sentido de ter uma política mais rígida de fiscalização e controle das operações financeiras ocorridas na intimidade desses entes. O controle austero e transparente das transações realizadas na pessoa jurídica é, sem dúvidas, uma forma de fiscalização, a saber se todos os funcionários estão cumprindo suas obrigações, mormente no que concerne às imposições feitas pela Lei 9.613/1998. Nesse sentido, havendo uma política interna rígida de controle da regularidade das operações, de forma concomitante às atividades de conscientização, os desvios de condutas que violem normas por parte dos funcionários serão mais raros, visto que mais transparentes. Tal política de austeridade da fiscalização pode ser materializada na medida em que sejam acessíveis no interior das organizações todas as operações financeiras vinculadas ao funcionário, assim como todos os registros e cadastros por ele feitos. O controle, nessa perspectiva, não será feito apenas por um empregado hierarquicamente superior, mas, sendo o caso de uma instituição que adote, igualmente, uma política de conscientização, o controle horizontal também existirá, porquanto exercido pelos próprios companheiros de trabalho. Portanto, em havendo dentro das organizações um ambiente pautado em condutas éticas e respeito às normas, da forma que ilustram Coimbra e Manzi (2010, p.6), somado a essa política de efetivo controle e claridade em suas operações financeiras, os funcionários serão mais fiéis às diretrizes de conduta postas pela instituição, visto não haver benefícios advindos do desvio dessas regras e um estreitamento nas brechas para que delas se desviem. Ademais, o comportamento do criminoso em potencial do delito de lavagem de dinheiro, sabendo da retidão da conduta da instituição no que tange esse aspecto, será o de procurar outro meio de atingir o seu fim ilícito, visto que a possibilidade dele aferir ganho, nesse caso, é deveras pequena4. Quanto mais pessoas jurídicas tiverem esse perfil, mais restritas serão as oportunidades de cometimento do delito em tela. Ou seja, pelo menos a maior estratégia de colocação de capitais ilícitos na economia estará sendo inviabilizada.

Uma das diretrizes pautadas pela Lei 9.613/1998 é a de cooperação das instituições financeiras com os órgãos externos de controle, como já dito, por meio das obrigações impostas por tal Lei às pessoas sujeitas. Não só isso, mas como também já foi explicitado no tópico supra, a advocacia de compliance pode se tornar, dentro das organizações, um meio de efetivação da regularidade das operações financeiras. Nessa esteira, torna-se mais fácil para uma instituição que tenha suas operações mais

4  Na perspectiva de análise econômica do direito, especificamente a teoria dos jogos, infere-se que, consequencialmente, quando da existência de práticas de retidão no sentido de adaptar certa situação de fato às normas, a estratégia de quem queira infringir o ordenamento será a de procurar outros meios que estejam em maior desconformidade com a ordem jurídica. Semelhantemente: Posner (2010, p. 4); Posner (2011, p. 8); e Cooter e Ulen (2008, p. 38)

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5.3 Otimização do trabalho em conjunto com os órgãos externos de controle

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incisivamente reguladas e transparentes cooperar com os órgãos externos de controle. Isso ocorre porque as operações mais transparentes e acessíveis conferem maior simplicidade do ponto de vista operacional e organizacional, quando torna célere e eficiente o acesso de tais informações ao COAF e a outros órgãos de regulação. O combate à lavagem de dinheiro por meio do controle externo tem o seu viés repressivo mais acentuado, mas, ao mesmo tempo, não deixa de poder ser observado pelo prisma da prevenção ao crime em comento. Com efeito, denúncias do COAF ao Ministério Público, que possuem contundência por terem origem em informações de operações irregulares fornecidas pela instituição X, influenciarão para que os investigados e outros que planejam executar tais delitos não mais procurem essa pessoa jurídica para o fim criminoso que possuem em mente. Portanto, observa-se que a otimização do trabalho de cooperação com os órgãos externos de controle pode ser vista como um dos efeitos da política austera de fiscalização e controle interno das organizações. Estreitam-se, dessa forma, as possibilidades de integração de rendimentos de origem ilícita na ordem econômica, preservando a sua incolumidade antes que seja efetivamente lesada.

Certo mesmo é que não haverá a extinção do delito de lavagem de dinheiro do mundo fático em nossa sociedade. Nada obstante, o que se pode pretender é que a incidência desses crimes possa ser refreada preventivamente, antes da sua ocorrência, e não com a demanda da repressão estatal. A ideia do presente artigo é a de fazer o mundo jurídico enxergar a advocacia de compliance dentro das instituições como um instrumento preventivo da prática de infrações, principalmente ao crime de lavagem de dinheiro, posto que o universo do mercado financeiro que circunda tais pessoas jurídicas é o âmbito propício para a ocorrência de tal delito. A adequação ao arcabouço normativo que compreende tais organizações, como foi visto, é essencial para a manutenção da boa reputação da empresa, fato gerador de ganhos de mercado. De forma concomitante, vê-se que tal conformidade às normas é meio eficaz de prevenção. Nessa perspectiva, em face do contexto do número de procedimentos de lavagem de dinheiro que são postos à apreciação do judiciário, aliado às baixas estatísticas de comunicações de operações atípicas pelos setores que atuam no mercado financeiro, à exceção do setor bancário e de seguros, parece factível concluir que, a governança legal dentro das instituições, com o escopo específico do cumprimento de normas é, igualmente, ferramenta essencial na interligação do combate interno ao combate externo, feito pelos órgãos de controle, do delito em tela. Por fim, a contribuição acadêmica que se pretende dar com o trabalho feito é a de que fazendo um intenso trabalho preventivo dentro das instituições financeiras, o crime de lavagem de dinheiro terá como realidade ocorrências cada vez menos frequentes.

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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

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REFERÊNCIAS ARRIETA, Andrés Martínz.LaCriminalidad organizada. Aspectos sustantivos, procesales y orgánicos. Blanqueo de Capitales. Cuadernos de Derecho Judicial II, 2001. BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Geral 1. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. COIMBRA, Marcelo de Aguiar; MANZI, Vanessa Alessi (Org.). Manual de Compliance: Preservando a Boa Governança e a Integridade das Organizações. São Paulo: Atlas, 2010. COOTER, Robert; ULEN, Thomas. Law & Economics. 5. ed. Boston: Pearson Addison Wesley, 2008. MARTINELLI, Vanessa. Lavagem de Dinheiro: Questões Controvertidas da Lei 9.613/98. 2013. 72 f. TCC (Graduação em Direito) - Faculdade de Direito, Universidade de Passo Fundo, Passo Fundo, 2013. Disponível em: <http://repositorio.upf.br/xmlui/bitstream/ handle/123456789/382/PF2013Vanessa_Martinelli.pdf?sequence=1>. Acesso em: 20 jul. 2015 NEWTON, Andrew. The Handbook Of Compliance: Making ethics work in financial services. Mind into matter, 2002. POSNER, Richard A.. A economia da justiça. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. ______. Fronteiras da Teoria do Direito. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.

ABSTRACT: This article analyses the compliance, or legal governance, practiced inside of the organizations and companies and, more specifically, the way to turn it in a tool for prevent money laundering. Thus, this article explores the concept of compliance itself and the benefits which come with this practice. Beyond that, this work addresses the legal regulation of money laundering in Brazil and the agencies which have the obligation to do the external control, showing that this external control is ineffective when not combined with an internal control, based in a research of the National Council of Justice. Keywords: Compliance. Legal governance. Prevention. Money laundering. Internal control.

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THE COMPLIANCE AS A TOOL FOR PREVENT MONEY LAUNDERING

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Recebido em 21 ago. 2015. Aceito em 20 out. 2015.

A DISTORÇÃO NO USO DE MEDIDAS PROVISÓRIAS NA SEARA TRIBUTÁRIA E SEUS REFLEXOS NA ILEGALIDADE DA MP 685/2015 Paulo Vítor Avelino Silva Barros*

“A proliferação de burocratas leva inevitavelmente a isso: maiores arrecadações de impostos sobre a parte produtiva da sociedade são os sinais reconhecíveis de uma sociedade, não grande, masdecadente”. (William Henry Chamberlin (1897-1969)

1 INTRODUÇÃO As diretrizes que orientam o Direito Tributário brasileiro se propõem a limitar o poder dos governantes na atividade da tributação por meio, especialmente, de regras e princípios correlacionados com a segurança jurídica e a legalidade, edificando-se todo um arcabouço nor-

* Graduando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, cursando o 8º período.

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RESUMO: A utilização de medidas provisórias na seara tributária, conquanto possível, enfrenta ácidas críticas doutrinárias. Na realidade política pátria, seu uso encontra-se predominantemente viciado pela falta dos requisitos constitucionais de relevância e urgência e pela afronta a certos princípios tributários do ordenamento. Nessa toada, o presente trabalho examina tal problemática, investigando especificamente a MP 685/2015, que versa, dentre outros temas, sobre uma série de tormentosas medidas antielisivas adotadas pelo Governo Federal, cujo escopo volta-se efetivamente para um questionável aumento na arrecadação tributária. Desta feita, conclui-se pela necessária revisão do uso de medidas provisórias no âmbito fiscal, repudiando, especialmente, a MP supracitada. Palavras-chaves: Medidas Provisórias. MP 685/2015. Planejamento Tributário. Medidas Antielisivas.

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mativo em favor do contribuinte. Nada obstante, houve também uma preocupação histórica em garantir aos governantes a possibilidade de exercer a atividade legiferante, flexibilizando-se o postulado da legalidade, inclusive, na alçada tributária. Diante desse contexto, a Constituição Federal de 1988 autorizou que o(a) Presidente da República adotasse medidas provisórias, em caso de relevância e urgência - inteligência do artigo 62, caput, da Constituição - que, com força de lei, intercederiam na política fiscal do país. Ocorre que a possibilidade de o Poder Executivo legislar deveria seguir estritamente o teor do dispositivo constitucional, surgindo apenas excepcionalmente, presentes os requisitos constitucionais. Contudo, infelizmente, a jurisprudência tem atribuído perigoso poder discricionário ao Chefe do Executivo para constatar esses requisitos, de modo que a utilização de tais medidas se desvirtuou da sua natureza excepcional e tornou-se instrumento corriqueiramente utilizado para a indevida intervenção presidencial na ordem fiscal e econômica. Nessa conjuntura, grande parte da doutrina passou a repudiar veementemente a utilização de medidas provisórias, mormente na esfera tributária, em que o postulado da segurança jurídica deveria ser maximizado. Particularmente, os prejuízos para o contribuinte e para a ordem tributária agravam-se ainda mais no caso da Medida Provisória nº 685, publicada em 22 de julho de 2015. Alegando motivos de recomendação internacional, transparência e planejamento tributário, o ato presidencial estabelece que o conjunto de operações realizadas no ano anterior que envolva atos ou negócios jurídicos que acarretem supressão, redução ou diferimento de tributo, em certas situações, deverá ser declarado pelo sujeito passivo à Secretaria da Receita Federal. Dessa maneira, tenta-se coibir, de forma atécnica e ilegal, eventuais condutas elisivas (mesmo que lícitas) por parte dos contribuintes. Outrossim, o descumprimento dessa nova obrigação tributária caracteriza omissão dolosa do sujeito para fins de sonegação ou fraude fiscal, fato que irá permitir a cobrança de juros, a incidência de multa sob o valor devido e, quiçá, dará azo a futuros processos criminais. Ainda, dá providências relativas ao procedimento administrativo de recolhimento de tributo, alterando prazos e condições e mitigando a presunção de inocência do contribuinte. Ora, além de incidir em flagrante inconstitucionalidade – ausente a relevância e a urgência – o ato presidencial vergastado hostiliza uma gama de princípios de proteção ao contribuinte e de limitação ao poder de tributar: estabelece a criação de uma nova obrigação tributária fundada em conceitos extremamente vagos; garante poderes discricionários à administração tributária, possibilitando a tributação por analogia; regulamenta em desfavor do contribuinte o processo de defesa administrativa; viola o direito ao planejamento tributário pela empresa e, ainda, permite que a desobediência à obrigação possa gerar consequências que ecoem, eventualmente, até a esfera criminal. Diante desse panorama, o presente estudo disseca o instituto da medida provisória no Direito Tributário, trazendo considerações doutrinárias e o entendimento jurisprudencial

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sobre a matéria, bem como a sua hodierna aplicação no ordenamento brasileiro. Em seguida, debruça-se sobre a recentíssima Medida Provisória 685/2015, explicando como o ato do Chefe do Executivo incorreu em patente ilegalidade. Por fim, tece paralelos entre a crise de confiança social na política fiscal arrecadatória brasileira e as críticas contra a MP 685/2015, concluindo pela necessidade de revisão do instituto na seara tributária e pela obrigatória rejeição do ato presidencial pelos órgãos competentes.

2 A NATUREZA DA MEDIDA PROVISÓRIA E A SUA EQUIVOCADA UTILIZAÇÃO EM SEDE DE MATÉRIA TRIBUTÁRIA: CONSIDERAÇÕES DOUTRINÁRIAS E JURISPRUDENCIAIS Para a manutenção da higidez do Estado Democrático de Direito, faz-se vital que cada um dos três poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário – atue dentro de sua esfera de competência, respeitando a arquitetura desenhada por Montesquieu1 e o teor do artigo 2º da Constituição Federal. Nessa conjectura, no entanto, nada obsta que qualquer um dos poderes atue atipicamente, intervindo salutar e parcialmente na dimensão do outro, em obediência ao que prevê o sistema de freios e contrapesos que orienta a ordenação constitucional brasileira. Com efeito, é nesse cenário que desponta a possibilidade de que o Poder Executivo exerça a atividade legiferante, por meio, notadamente, da utilização de medidas provisórias. Essas, com força de lei, poderão incidir em caso de relevância e urgência, respeitadas as vedações estabelecidas na Constituição Federal. Nesse momento, todavia, paira a indagação: como constatar a relevância e a urgência de uma determinada MP? A despeito das inúmeras construções doutrinárias em sentido oposto2, o Supremo Tri-

1  Charles-Louis de Secondat (18 de janeiro de 1689 – 10 de fevereiro de 1755), conhecido como Barão de Monesquieu, defendeu em sua célebre obra “O espírito das leis” a tripartição dos poderes, inovando a estrutura política até então vigente, eminentemente absolutista e ditatorial. A filosofia de sua obra e de suas ideias mostrou-se atemporal, com aplicabilidade, inclusive, no ordenamento jurídico brasileiro, hodiernamente. 2  A doutrina, por muito tempo, tentou encontrar critérios objetivos para sua constatação: Clémerson Cléve (1999, p. 70), por exemplo, entendia que a relevância vinculava-se à realização do interesse público e a urgência com o perigo de dano. Celso Antônio Bandeira de Mello (2000, p. 13), por sua vez, comentando o instituto, não chega a conceituar seus requisitos, mas explica que tais noções não deveriam ser aferidas apenas pelo Presidente, pois o seu juízo discricionário absoluto poderia infirmar a legitimidade da instituição democrática brasileira. Teses que não receberam guarida pelo entendimento jurisprudencial. 3  Os conceitos de relevância e de urgência a que se refere o art. 62 da Constituição, como pressupostos para edição de medidas provisórias, decorrem, em princípio, do juízo discricionário de oportunidade e de valor do Presidente da República, mas admitem o controle judiciário quanto ao excesso do poder de legislar, o que, no caso, não se evidencia de pronto. (ADIn n. 162, rel. Min. Moreira Alves, j. 14-12-1989). 4  Consoante aduz a Ministra Ellen Gracie, como relatora no julgamento da ADI 2.527-9/DF, cabe ao Poder Judiciário, quando provocado, a avaliação da dimensão dos requisitos de relevância e urgência na medida provisória unicamente nos casos em que sua ausência seja manifesta, caracterizando-se notável ingerência no poder de legislar pelo Poder Executivo.

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bunal Federal há muito decidiu que tais pressupostos se revestem de caráter político e discricionário, cabendo ao Chefe do Executivo a sua apreciação3, sendo possível que o Congresso Nacional suste tais atos, por previsão constitucional (Art. 49, V, CF). Ademais, entende o STF que caso algum dos pressupostos mostre-se descabido objetivamente, deve também o Poder Judiciário decidir, quando provocado, pela ilegitimidade da medida provisória, pois, como ato normativo, se submete ao controle de constitucionalidade4.

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5  Medidas Provisórias posteriores à Emenda Constitucional n. 32 (2015). Disponível em: http://www4.planalto.gov.br/legislacao/legislacao-1/medidas-provisorias/2015-posteriores-a-emenda-constitucional-no32#content>. Acesso em: 03 ago. de 2015. 6  A crescente apropriação institucional do poder de legislar, por parte dos sucessivos Presidentes da República, tem despertado graves preocupações de ordem jurídica, em razão do fato de a utilização excessiva das medidas provisórias causar profundas distorções que se projetam no plano das relações políticas entre os Poderes Executivo e Legislativo. Nada pode justificar a utilização abusiva de medidas provisórias, sob pena de o Executivo, quando ausentes razões constitucionais de urgência, necessidade e relevância material, investir-se, ilegitimamente, na mais relevante função institucional que pertence ao Congresso Nacional, vindo a converter-se, no âmbito da comunidade estatal, em instância hegemônica de poder, afetando, desse modo, com grave prejuízo para o regime das liberdades públicas e sérios reflexos sobre o sistema de checks and balances, a relação de equilíbrio que necessariamente deve existir entre os Poderes da República. Cabe ao Poder Judiciário, no desempenho das funções que lhe são inerentes, impedir que o exercício compulsivo da competência extraordinária de editar medida provisória culmine por introduzir, no processo institucional brasileiro, em matéria legislativa, verdadeiro cesarismo governamental, provocando, assim, graves distorções no modelo político e gerando sérias disfunções comprometedoras da integridade do princípio constitucional da separação de poderes. (ADI 2.213-MC, rel. min. Celso de Mello, julgamento em 4-4-2002, Plenário, DJ de 23-4-2004.)

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Ocorre que tal medida, prevista como sustentáculo da democracia brasileira, passou a ser utilizada de forma descompassada e rotineira, violando a sua natureza excepcional. A título de exemplificação, apenas no mês de julho de 2015, sete medidas provisórias foram instituídas (média de aproximadamente uma medida a cada quatro dias, o que extrapola significativamente os limites da razoabilidade, dadas as matérias tratadas).5 Ainda, associado a tal quadro, vê-se um Congresso Nacional moroso, incapaz de agir preventivamente no controle da constitucionalidade das medidas que, diversas vezes, apenas perdem a validade após o término do prazo legal estipulado para sua conversão em lei ou com o trancamento da pauta. Ora, malgrado existam, de fato, casos em que se percebem certa urgência e relevância, o exame casuístico de cada medida demonstra a falta de verossimilhança no juízo de valor presidencial, o que autoriza a conclusão de que se vive, atualmente, o império das “desmedidas provisórias”. Tal expressão, reverberada pelo Ministro Celso de Mello ainda em 20026, permanece válida e representa esse caótico e insustentável panorama que ganha fôlego a cada medida arbitrária e inconstitucional que vem a ser elaborada. Felizmente, evitando maior massacre à higidez institucional, a Constituição estabelece uma série de vedações ao uso das medidas provisórias, limites esses expressos com a Emenda Constitucional 32/2001. Acontece que, com esse advento, legitimou-se a utilização – que já se fazia - de medidas provisórias no âmbito fiscal, inobstante, para muitos, trate-se de tema de regime de direito individual haurido como cláusula pétrea do ordenamento brasileiro (CARRAZZA, 2008, p. 277). Com a devida vênia, se o Direito Tributário propõe a limitação ao poder de tributar, faz pouco sentido que o Chefe do Executivo possua a aptidão legal para legislar sobre a matéria, que se sustenta justamente na delineação objetiva e concreta das obrigações imputadas aos contribuintes. Trata-se de medida antidemocrática (ICHIHARA, 2003, p. 99) que viola o objetivo precípuo da legislação fiscal: a segurança acerca da tributação imposta. Nesse raciocínio, uma análise sistemática do Código Tributário Nacional e da Constituição demonstra que o contribuinte não pode ser subjugado ao arbítrio do Executivo, mormente no Brasil, em que vigora uma alta carga tributária que destoa frequentemente da qualidade dos serviços oferecidos pelo Estado ao particular. O curioso caso das medidas provisórias na esfera tributária, então, conservou-se no

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tempo, caracterizando-se como mais um dos absurdos jurídicos que se perpetuaram a partir do posicionamento das Cortes Superiores. De toda sorte, a doutrina majoritária – como Hugo de Brito Machado (2014) e Luciano Amaro (2008) – se posiciona fortemente contra a sua utilização, porquanto fira fatalmente o princípio da legalidade e a segurança jurídica devida ao contribuinte. Mais que isso, seu uso agrava ainda mais a já degradada separação dos poderes, que permanece cada vez mais à mercê dessa apropriação do poder de legislar pelo Executivo. Além disso, a insegurança institucional que vive o contribuinte não cessa, certamente, nessa seara. Isso porque, em certas situações, determinadas medidas ferem de morte todo o arcabouço principiológico e normativo que milita em favor do contribuinte. Leia-se, tais atos nitidamente instituem regras ilegais e abusivas na proporção em que desrespeitam não só a Constituição, mas toda a legislação ordinária, manifestamente com a violação aos princípios e regramentos tributários vigentes. Sob esse terreno, foi publicada, em 22 de Julho de 2015, a distorcida Medida Provisória 685, doravante objeto do presente estudo.

Em um contexto de instabilidade política, escândalos de corrupção e crise econômica, em meio a jatos semanais de operações e delações que tornam impossíveis quaisquer previsões no cenário político (ESCADA, 2015, p. de internet), o Ministério da Fazenda levou à Presidência da República uma série de propostas antielisivas cujo objetivo voltava-se, teoricamente, para o aumento na transparência das estratégias de planejamento tributário das empresas. Desse modo, estar-se-ia conferindo maior segurança jurídica às operações negociais e gerando economia de recursos públicos em litígios desnecessários e demorados. Sob esses pretextos, então, o Poder Executivo instituiu a polêmica Medida Provisória nº 685 de 2015. Seguindo essa linha de raciocínio, o mencionado ato presidencial passou a exigir que as operações que caracterizem supressão, redução ou diferimento de tributo, mesmo que permitidas pela legislação tributária, sejam declaradas à Receita Federal, nas situações previstas pela medida. Ademais, consignou que o descumprimento dessas obrigações caracteriza omissão dolosa do sujeito passivo com intuito de sonegação ou fraude e os tributos devidos serão cobrados acrescidos de juros de mora e de multa. Por fim, estabeleceu prazos diferenciados para que o sujeito passivo recolha ou parcele os tributos eventualmente devidos. Ocorre que tais obrigações - hipoteticamente alinhadas à filosofia tributária internacional de regras de transparência bem sucedidas no direito alienígena7 - mascara outras metas 7  Fundamentando a imprescindibilidade dessa perspectiva de fiscalização, afirma o Ministro que existe uma série de precedentes de ordem internacional que demonstram que a revelação obrigatória das operações negociais pelos contribuintes: “o Plano de Ação sobre Erosão da Base Tributária e Transferência de Lucros (Plano de Ação BEPS, OCDE, 2013), projeto desenvolvido no âmbito da OCDE/G20 e que conta com a participação do Brasil, reconheceu, com base na experiência de diversos países (EUA, Reino Unido, Portugal, África do Sul, Canadá e Irlanda), os benefícios das regras de revelação obrigatória a administrações tributárias. Assim, no âmbito do BEPS, há recomendações relacionadas com a elaboração de tais regras quanto a operações, arranjos ou estruturas agressivos ou abusivos”. Desta feita, alega-se, em síntese, que os administrados passariam a adotar posturas mais cautelosas, de forma que a relação entre o fisco e o contribuinte mostrar-se-ia mais harmônica e menos onerosa para os cofres públicos. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20152018/2015/Mpv/mpv685.htm> Acesso em: 08 ago. 2015.

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3 A FLAGRANTE ABUSIVIDADE DA MP 685/2015 E SEUS COROLÁRIOS

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do Governo Federal, notadamente vinculadas ao aumento da arrecadação fiscal, por meio de manifesta “transparência de mão única” (BASTOS, SATO, 2015, p. de internet). Ainda, oportunista quanto à fragilidade institucional e antidemocrático em sua essência, o ato presidencial tratou de violar diversas outras garantias básicas dos contribuintes, transmitindo, quase que integralmente, visível inconstitucionalidade. Postas tais considerações, para compreender de modo mais claro todo o assunto em tela, faz-se necessário o exame específico de cada característica abusiva do ato presidencial. Nesse esteio, parte-se para o estudo individualizado dos elementos e corolários afetos à Medida Provisória nº 685/2015, com fulcro nos temas que seguem. 3.1 A inobservância dos requisitos constitucionais de relevância e urgência: reflexos do exercício arbitrário do Poder Executivo na elaboração de medidas provisórias

A arrecadação tributária brasileira funciona de modo pleno e não há como constatar elemento objetivo hábil a ensejar essa atropelada intervenção presidencial. Afinal, as matérias enxertadas no artigo 7º da MP já são passíveis de fiscalização pela Receita, sendo público e notório que o Brasil possui, atualmente, um sistema de fiscalização e arrecadação extremamente eficiente, considerado um dos melhores em todo o mundo (HAIDAR, 2015, p. de internet). Com efeito, não se percebe qualquer relevância no dispositivo em testilha, na medida em que a Receita Federal já possua meios idôneos à fiscalização e arrecadação. Na verdade, a princípio, sequer seria necessária a edição de medida provisória para disciplinar qualquer obri-

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De antemão, é necessário registrar que o conteúdo tratado pela MP 685 evidencia a inexistência de qualquer urgência que justifique a atuação legislativa pelo Poder Executivo. Isso porque, a despeito do juízo discricionário da Presidência para constatar tal pressuposto, a questão da transparência fiscal no Brasil não sofreu qualquer alteração ou impacto que permita a imediata intervenção pelo Governo Federal nessa seara. Ora, analisando-se a exposicão de motivos da MP em tela, não se encontra sequer um único argumento quanto à urgência do ato, limitando-se a fundamentá-lo com base na importância da transparência da relação fisco-contribuinte. Sendo assim, qual a verdadeira razão para que esse seja o momento favorável para que Poder Executivo estabeleça tais medidas? Notadamente, não se trata de urgência, mas de conveniência governamental em face da instabilidade institucional vivida no campo político e econômico brasileiro. Não há elementos que indiquem a necessidade momentânea da MP 685/2015, pelo que é possível concluir que os objetivos pretendidos, na verdade, são meramente fiscais. Surgem, então, intensas críticas e desconfianças de que a medida servirá para o desiderato unilateral da arrecadação em detrimento dos direitos e garantias individuais dos contribuintes (ESTRADA, 2015, p. de internet). Noutro pórtico, não há como imaginar que a criação de uma obrigação tributária acessória destinada à prestação de informações ao Fisco demande tamanha imprescindibilidade.

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gação acessória, haja vista que a jurisprudência dominante no STF8 entende que a legislação tributária, em sentido amplo, possui o condão de instituir tais obrigações, sem a necessidade de lei para versar sobre a matéria ou, por conseguinte, de ato presidencial9. Dessa maneira, mostra-se que os interesses do Governo Federal na elaboração da medida não pretendem aperfeiçoar o postulado da transparência na arrecadação tributária, mas, efetivamente, instituir poderes discricionários para possibilitar ao fisco angariar mais recursos. Destarte, ausentes os pressupostos constitucionais para a MP, percebe-se que, na verdade, o Governo solapa direitos dos contribuintes, instalando, abusivamente, um poder extraordinário para a administração tributária. Vícios que, por si só, implicam notória inconstitucionalidade na medida em exame. 3.2. Cláusulas abertas, tributação por analogia e violação à livre iniciativa: a contribuição da MP 685/2015 para a insegurança jurídica e econômica vivenciadas pelo contribuinte

8  PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. RECURSO ORDINÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA PREVENTIVO. JUSTO RECEIO. AUSÊNCIA DE PROVA. IMPETRAÇÃO NORMATIVA. MÉRITO. PRINCÍPIO DA LEGALIDADE. VIOLAÇÃO INEXISTENTE. PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE. INFRINGÊNCIA AFASTADA. RESOLUÇÃO ANVISA RDC 320/2002. INAPLICABILIDADE AO CASO. 1. A impetrante objetiva eximir-se de obrigação tributária acessória consistente em fazer lançar, nas notas fiscais que acobertam as operações de transporte de seus produtos farmacêuticos do seu depósito, situado em São Paulo, para suas filiais com sede em Minas Gerais os respectivos números dos lotes de fabricação, tal como previsto pelo CONFAZ no AJUSTE SINIEF n.º 07/2002 e, no plano estadual, no Decreto 43.128/2002(...). A legalidade exigida para a imposição da obrigação tributária instrumental não é estrita, ou seja, pode advir de ato normativo que não a lei em sentido formal. Todos aqueles veículos normativos previstos no art. 96 do CTN, tais como decretos e regulamentos, entre outros contidos no art. 100, são aptos a formar vínculo jurídico tributário acessório. (...) 9. Recurso ordinário não provido. (STJ , Relator: Ministro CASTRO MEIRA, Data de Julgamento: 09/11/2010, T2 - SEGUNDA TURMA) 9  A despeito de tal posicionamento estar sedimentado na jurisprudência e expresso em lei (art. 113, §2º, CTN), é necessário destacar a existência de teses contrárias, no sentido de que a obrigação acessória deve estar prevista em lei para poder ser exigida. Tal entendimento minoritário fundamenta-se na legalidade tributária e na segurança jurídica do contribuinte, sendo defendida, por exemplo, por Luiz Alberto Gurgel de Faria (Código Tributário Nacional Comentado, coordenação de Vladimir Passos de Freitas, 6ª edição, RT, 2013). Porém, apesar de coerente e bem fundamentada, tal tese acabou sendo repudiada por outros doutrinadores, a exemplo de Hugo de Brito Machado (2014) e Luís Eduardo Schoueri (2015).

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Observando literalmente o teor do artigo 7º da MP 685/2015, percebe-se que a obrigação de informar as operações à Receita Federal ocorrerá quando “os atos ou negócios jurídicos praticados não possuírem razões extratributárias relevantes; a forma adotada não for usual, utilizar-se de negócio jurídico indireto ou contiver cláusula que desnature, ainda que parcialmente, os efeitos de um contrato típico; ou tratar de atos ou negócios jurídicos específicos previstos em ato da Secretaria da Receita Federal do Brasil”. Diante dessas previsões, percebe-se então que o objetivo do Governo Federal não é o de transparência quanto aos tributos devidos pelo contribuinte, porquanto nenhuma das hipóteses trazidas caracterize fato gerador do tributo. Na verdade, a finalidade precípua da MP é que o contribuinte informe à administração tributária todo ato que possa beneficiá-lo por meio de elisão fiscal. Ou seja, o Executivo pretende, agora, que o contribuinte demonstre e informe, de modo burocrático e moroso, todas as operações efetuadas que acarretem ou possam acarretar diminuição na carga tributária paga. Olvida o Governo Federal, no entanto, que o contribuinte tem o pleno direito de estruturar o seu planejamento tributário da melhor forma possível, desde que dentro da legalidade.

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Chega a ser assustador que o artigo 7º tente definir o que seja ‘forma adotada não usual’ que ‘desnature, ainda que parcialmente, os efeitos de um contrato típico’. Ora, o que são contratos típicos, além dos regidos pelo Código Civil e demais disposições legais aplicáveis? Parece que ainda vigoram os princípios da livre iniciativa, do direito ao trabalho e a legitimidade do lucro lícito, base fundamental do capitalismo

No mesmo sentido, Roberto Duque Escada (2015, p da internet), indagando sobre tal regramento, acrescenta as seguintes reflexões: No que concerne ao inciso I, como poderá saber o contribuinte se as razões extratributárias da realização de uma operação serão consideradas relevantes ou não?

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Ao contrário do que se pretende com a MP, o contribuinte não precisa explicar os motivos que o levaram a optar por determinado negócio jurídico, pois, conforme ensina Leandro Paulsen (2005, p. 949): “Nada deve impedir o indivíduo de, dentro dos limites da lei planejar adequadamente seus negócios, ordenando-os de forma a pagar menos impostos. Não lhe proíbe a lei, nem tampouco se lhe opõe razões de ordem social ou patriótica”. Registre-se que a matéria versada nessa MP aproxima-se bastante de uma tentativa de regulamentação do parágrafo único do artigo 116 do CTN sobre a criação de uma cláusula antielisiva. Acontece que tal matéria ainda não se encontra disciplinada por lei, já tendo sido rejeitada pelo Congresso Nacional em sede de medida provisória (MP 66/02). Dessa forma, ainda não existe qualquer regulamentação apta a respaldar a MP 685, de sorte que não existe ilegalidade nenhuma nas escolhas afetas ao planejamento tributário, por mais que o objetivo do negócio seja, sucintamente, a redução dos impostos devidos. Note-se que, a despeito da fracassada tentativa presidencial pretérita para versar sobre a matéria, o Governo insiste, com a medida em pauta, em tentar satisfazer o seu furor arrecadatório. Destarte, imbuída de conceitos discricionários e cláusulas abertas, como “negócio usual” e “razões extratributárias relevantes”, a medida cria um poder ilegítimo e abusivo para a Receita Federal que, na prática, poderá exercer o seu juízo de valor sobre a operação negocial e declará-la, por exemplo, como negócio não usual. Dessa maneira, a atividade da Administração Pública – que deveria ser francamente vinculada – transformou-se, evidenciando notável discricionariedade para o órgão, que se tornou legítimo para definir, ao seu arbítrio, as situações tributáveis. Possibilita-se, assim, a vedada tributação por analogia, repudiada expressamente pelo Código Tributário Nacional. Malgrado não haja qualquer previsão legal que possibilite a cobrança, a administração fiscal poderá decidir pela desconsideração do negócio em favor da operação que renda maior carga tributária e, dessa forma, tributar analogamente negócio jurídico distinto daqueles previstos como tributáveis. Nesse contexto, o contribuinte permanece na eterna dúvida de se será ou não tributado ou se deve ou não declarar determinado tributo, situação instável e insegura que não merece abrigo no Direito Tributário. Elucidando e exemplificando o tema, Raul Haidar (2015, p. da internet) assevera:

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Quem será o árbitro da relevância dos motivos não fiscais, caso o contribuinte entenda por não apresentar a declaração? Uma fiscalização que só pensa em arrecadar?

Nessa conjuntura, não há mera afronta à legalidade tributária ou aos requisitos constitucionais para edição de Medida Provisória. A MP 685 dificulta diretamente a concretização de um fundamento da República Federativa do Brasil, qual seja o direito à livre iniciativa (Art. 1º, IV, CF). A atividade empresarial não sabe os limites da atuação do fisco, visto por muitos como verdadeiro inimigo do crescimento produtivo. A medida, então, induz um desestímulo à iniciativa privada, evidenciando uma cultura arrecadatória falida, em que o crescimento da nação está vinculado unicamente aos tributos arrecadados, a despeito da insatisfação popular com a arrecadação e das consequências dessa gradativa e elevada tributação na esfera dos contribuintes. Mas tal consequência extrafiscal da MP 685 2015 reflete não mais que outra das mal planejadas intervenções do Estado na economia. Tentando remediar problemas gravíssimos com medidas pontuais e equivocadas, o Governo volta suas atenções para a direção do retrocesso, não percebendo que tais atos não irão, de modo algum, resolver definitivamente problemas de crise financeira ou de administração tributária. Preserva-se, assim, a cultura de competências furtivas, de arrecadação a todo o custo10 e de falta de consciência e de planejamento econômico. Em suma, quanto ao que estabelece o artigo 7º da MP, conclui-se que a (des)inteligência do dispositivo garante poderes discricionários e abusivos à Receita, possibilitando a tributação por analogia, ferindo o direito ao planejamento tributário da empresa e, mais que isso, viola diretamente a livre iniciativa, induzindo consequências extrafiscais de retenção do desenvolvimento econômico e financeiro. Motivos também suficientes para que o Congresso suste, sem qualquer dúvida, o ato presidencial.

O extenso rol de críticas contra a MP 685/2015 não se exaure com a mera instituição da obrigação acessória dissecada alhures. Deveras, as aberrações jurídicas oriundas do ato presidencial tornam-se ainda mais nefastas quando se trata do modo pelo qual a Receita poderá cobrar eventuais tributos devidos e as sequelas do descumprimento da obrigação. Isso porque, caso haja o descumprimento da obrigação supracitada, caracteriza-se omissão dolosa do contribuinte para fins de sonegação ou fraude fiscal, acarretando a cobrança do tributo acres-

10  Elucidando o tema, observa-se essa ilustrativa situação: “A carga tributária brasileira deve subir em 0,8 ponto porcentual do PIB (Produto Interno Bruto) neste ano por conta do ajuste fiscal proposto pelo governo federal. Isso significa que os brasileiros devem pagar R$ 47,5 bilhões a mais em impostos e contribuições se todas as medidas propostas forem colocadas em prática. Os cálculos são do IBPT (Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação).” Disponível em: <http://economia.uol.com.br/noticias/infomoney/2015/05/11/brasileiro-tera-que-pagar-r-47-bilhoes-a-mais-em-tributos-gracas-a-ajuste-fiscal.htm> Acesso em: 19 ago 2015.

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3.3. A ilegal presunção de omissão dolosa para fins de sonegação e fraude pelo descumprimento da obrigação tributária estipulada e a flagrante violação à ampla defesa na ordem administrativa

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cido de juros de mora e de multa.11 Dessa maneira, legitima-se uma tormentosa presunção em desfavor do contribuinte, considerado inicialmente como culpado, a despeito da motivação que o levou a não proceder à informação. Bem verdade que a obrigação cobrada do contribuinte, como se notou, paira sobre conceitos extremamente subjetivos. As situações em que o contribuinte precisa informar determinado negócio jurídico à Receita Federal não se mostram tão claras e palpáveis a ponto de que ele saiba concretamente o que deve ser informado (PIRES, 2015, p. de internet). Seguindo esse raciocínio, então, representa gravame altamente injusto que o sujeito passivo seja taxado de “culpado” pelo simples descumprimento da obrigação, ao passo que não existe qualquer diálogo anterior entre fisco e contribuinte apto a delinear expressamente as obrigações devidas. O Governo Federal, entretanto, menospreza que a multa tributária tem caráter de sanção penal, devendo ser tutelada por regras próprias do Direito Processual e Material Penal. Afinal, conforme elucida Torres (2015, p. da internet):

Com essa sorte, onde se encontra a presunção de inocência do contribuinte nessa relação? Ao particular, vulnerável na relação com o Estado, não deve recair o ônus de comprovar a sua “não culpa” na omissão disposta, na medida em que à acusação cabe provar as alegações feitas. Ao contrário, a MP 685/2015 notadamente massacra o contribuinte diante do poder imperial da Receita, que o reputa indiscutível sonegador, restando “às urtigas o princípio da presunção de inocência” (HAIDAR, 2015, p. de internet). Insta consignar que tal omissão pode ser ainda mais prejudicial ao contribuinte, na medida em que constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo mediante omissão de informação (vide Lei nº 8.137/1990). O referido instrumento normativo tutela as situações em que o sujeito passivo poderá ser sancionado com pena privativa de liberdade entre 2 e 5 anos, além de multa, e, conjugado com a MP em tela, faz saber que tal omissão – presumidamente dolosa – poderia enquadrar a conduta do particular no delito supramencionado. Nessa toada, a MP 685 prejudica o contribuinte também na esfera criminal. Afinal, as consequências do ato presidencial se refletem de modo amplo na seara penal, alvejando ainda mais o contribuinte. Viola-se, dessa forma, vedação expressa pela Constituição ao uso de medidas provisórias na área criminal, incidindo, mais uma vez, em manifesta inconstitucionalidade.

11  Art. 12, MP 685/2015.

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Os princípios do direito de defesa, da presunção de inocência, do ônus da prova, vê-se, terão sempre cabimento nos processos administrativos relativos a autos de infração em matéria tributária. Contraria o Estado Democrático de Direito fundado pela Constituição de 1988 admitir uma aplicação do Código Tributário Nacional ou das leis processuais anteriores sem o filtro dos seus princípios. Logo, descumpre a lei tributária quem não observa a presunção de inocência e as garantias democráticas do contraditório e do dever de ônus da prova a quem acusa

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O artigo 9º pretende que, além da fiscalização, possa a Receita Federal “não reconhecer” operações e intimar o contribuinte para pagar o imposto em trinta dias, sem multa, apenas com juros de mora. Embora isso possa ser relevante, não é matéria que preencha o requisito de urgência. Vemos nisso um único objetivo: fazer dinheiro com a possível preocupação de contribuintes intimados. E isso tem um nome: chantagem. Vem o governo e diz: “não tenho muita certeza se você deve. Mas se você pagar, cobro só juros; se não pagar,leva pesada multa.

12  TRIBUTÁRIO – MULTA – VALOR SUPERIOR AO DO TRIBUTO – CONFISCO – ARTIGO 150, INCISO IV, DA CARTA DA REPUBLICA. Surge inconstitucional multa cujo valor é superior ao do tributo devido. Precedentes: Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 551/RJ – Pleno, relator ministro Ilmar Galvão – e Recurso Extraordinário nº 582.461/SP – Pleno, relator ministro Gilmar Mendes, Repercussão Geral. (STF, Relator: Min. MARCO AURÉLIO, Data de Julgamento: 25/11/2014, Primeira Turma).

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Sucede que a Receita Federal opera suas atividades em meio a verdadeira transparência unilateral, sem diálogo com o contribuinte, absolutamente subordinado aos anseios e às interpretações da administração. As medidas instituídas demonstram que o particular deve se subjugar a todas as exigências do fisco, a despeito de todos os vícios ínsitos à exegese do dispositivo. Se bem que, no seio de um Estado com tamanho apetite para arrecadar, haveria como cogitar um procedimento mais democrático e benéfico ao particular? Não é surpresa, então, afirmar que as falhas do procedimento administrativo não findam com essa abusiva presunção de culpa. Há outra descabida exigência afeta às sanções estipuladas para a inobservância da obrigação, uma vez que a cobrança do tributo devido poderá ser acompanhada de multa de até 150% sobre o valor do pagamento. Ora, tal imposição transgride notadamente o princípio tributário de vedação ao confisco, porquanto a multa ultrapassa bastante o próprio valor da obrigação devida. Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal decidiu que o limite para multas impostas aos contribuintes não poderia ultrapassar 100% do valor da obrigação12. Ademais, não é apenas a cobrança pelo descumprimento da obrigação que suscita críticas. Na verdade, da leitura integral da MP 685/2015 percebe-se que, caso a Secretaria da Receita Federal brasileira não reconheça, para fins tributários, as operações declaradas nas hipóteses do artigo 7º, o sujeito passivo será intimado a recolher ou parcelar os tributos devidos em prazo de trinta dias, havendo a incidência apenas de juros de mora. Ora, apesar de alguns vislumbrarem nesse dispositivo uma vantagem conferida ao contribuinte – na medida em que não incide, nesse valor, qualquer multa – parece, para outros, verdadeira chantagem feita ao particular. No momento em que a administração tributária garante tal “direito” ao contribuinte, induz esse a quitar determinado débito independentemente de esse ser, de fato, juridicamente devido. Então, em meio a cobranças indevidas, conceitos abstratos e uma infrutífera celeridade, o contribuinte age movido pelo impulso do medo de ser, mais uma vez, fulminado pelo poder de arrecadação da Receita. Nessa linha de intelecção, mais uma vez, necessário destacar as elucidativas e fortes palavras de Raul Haidar (2015, p. da internet):

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Dessa forma, sob um falho pretexto de imprimir celeridade ao procedimento administrativo, a MP 685 institui mais medidas abusivas que criam presunções absurdas sobre a responsabilidade do contribuinte – que pode gerar consequências ainda mais gravosas para o sujeito passivo – e furta do particular o direito ao procedimento de defesa administrativa comum. Nesse diapasão, portanto, mais uma vez, a MP incorre em flagrante ilegalidade.

Com a edição da Medida Provisória 685/2015, o Governo Federal violou regras de alçada constitucional, princípios do Direito Tributário, regras de limitação do poder de tributar, dentre tantos outros direitos outrora esmiuçados. Contudo, a ojeriza do empresariado contra o ato presidencial se sustenta em outra questão ainda mais problemática no contexto do Estado Democrático de Direito brasileiro: a confiança nas instituições. Notadamente, os contribuintes brasileiros já partem da premissa que o fisco atua no desiderato de angariar cada vez mais recursos, alvejando os particulares com uma alta carga tributária sem que haja o devido retorno em serviços prestados pelo Estado. Com razão os particulares, ao passo que, dentre os 30 países que cobram as maiores cargas tributárias, o Brasil encontra-se na pior colocação (carga de 35,13% e IDH de 0,718, com base na taxa IRBES)13. Diante de tal cenário, os particulares sentem que o peso da tributação, na verdade, escoa pelo ralo da corrupção e da má-gestão dos recursos. Destarte, constata-se que a MP 685 não intenta, de modo algum, otimizar a transparência fiscal, mas, conforme foi explicado, planeja o aumento dos já penosos tributos pagos pelos contribuintes. Convictos disso, acertadamente, rebelam-se os contribuintes contra grande parte das exigências instituídas pelo Governo Federal, visto como antagonista na desgastante relação jurídica estabelecida. Quer-se dizer que, se a mesma medida fosse instituída em um país em que existisse forte confiança na Receita e no Governo Federal, certamente o ato seria visto com bons olhos, como ferramenta construtiva na interação entre o fisco e o particular. Afinal, a arrecadação tributária, em muitos países, de fato, funciona em bom proveito ao contribuinte e à população em geral. Infelizmente, o Brasil não pode, ainda, ser enquadrado nesse seleto grupo de países. Por tais motivos, parece insustentável tentar instituir no Brasil uma medida que se ampara em um projeto de tributação da seara internacional, qual seja o Plano de Ação sobre Erosão da Base Tributária e Transferência de Lucros (Plano de Ação BEPS, OCDE, 2013), desenvolvido no âmbito da OCDE/G20. Ora, examinando tal plano, percebe-se que dele fazem parte diversos países em que há incontestável confiabilidade nas instituições de fiscalização e administração, fato que facilita a aplicabilidade das recomendações elaboradas no seio de tal

13  Disponível em: <http://www.opovo.com.br/app/politica/2012/01/24/noticiaspoliticas,2772726/entre-30-paises-com-maior-carga-tributaria-do-mundo-brasil-da-menor-retorno-a-populacao.shtml> Acesso em: 11 ago. 2015

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4 A CRISE DE CONFIANÇA NA ADMINISTRAÇÃO TRIBUTÁRIA E A DEFASADA CULTURA ARRECADATÓRIA DO FISCO BRASILEIRO

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planejamento. Deveria atentar o Governo Federal e o Ministério da Fazenda que as normas e recomendações de cunho internacional não são objetos materiais de aplicabilidade plena em qualquer ordenamento. Exigências dessa natureza não se transportam de um sistema tributário para outro sem que haja adequações à cultura e à realidade do país receptor. Sendo assim, o procedimento para a instituição de tal planejamento deveria ser precedido de uma reformulação na concepção da finalidade do tributo e das consequências da tributação. Não para menos, como é reverberado pela maioria esmagadora da doutrina fiscal, faz-se imprescindível uma pujante reforma tributária em todo o ordenamento jurídico brasileiro. Radicado na antiga cultura de arrecadação a todo custo, o Poder Executivo brasileiro ainda nutre a idéia de que mais impostos irão gerar mais benefícios ao país, olvidando todas as consequências extrafiscais de tais medidas. Os investimentos fogem dessa elevada tributação, os consumidores perdem poder e a economia se retrai. A crise, já aflorada, cresce a olhos vistos, e a reforma tributária, ao relento, parece ser a última opção do Governo. Com efeito, o surgimento do sentimento de confiança institucional pelos contribuintes não será erguido ao raiar do dia. Tratam-se de mudanças de paradigmas e de concepções, que apenas o tempo e o empenho das instituições poderá engrenar. De toda sorte, é incontroverso que, enquanto tal quadro não é alterado, cabe aos contribuintes lutarem pelos seus direitos, demonstrando e repudiando todas as exigências ilegais e inconstitucionais que lhe forem imputadas. Igualmente, cabe aos demais poderes – Legislativo e Judiciário – tentar conter o ímpeto do Executivo na elaboração de medidas provisórias e na delineação de sua competência. Afinal, defende-se aqui, por ora, mais do que a simples obediência das regras de edição de MP, mas sim a garantia da manutenção da higidez da República Federativa do Brasil.

A utilização de medidas provisórias na seara do Direito Tributário, no Brasil, encontra-se manifestamente distorcida em face dos postulados de segurança jurídica que militam em favor do contribuinte. A natureza da matéria tributária, consoante doutrina majoritária, exige que a lei, em sentido formal e material, seja o instrumento hábil a reger a relação entre a administração tributária e o contribuinte, sem que os anseios do Poder Executivo se sobreponham às regras de limitação ao poder de tributar. Entretanto, infelizmente, tem-se notado corriqueira e indevida intervenção governamental na seara fiscal, o que mutila diretamente requisitos constitucionais para a elaboração de medidas provisórias e, mais que isso, viola uma série de preceitos fundamentais que gravitam em torno do Direito Tributário. No caso da MP 685/2015, os gravames se alastram em diversas nuances, ferindo desde o direito ao planejamento tributário do contribuinte ao direito à presunção de inocência do particular quando da cobrança de sanções administrativas. Nesse terreno fértil para críticas, então, surgem maiores reflexões acerca da política

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

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fiscal brasileira e da confiança que os particulares depositam nas instituições fiscais. Nota-se que o Governo alimenta uma cultura de arrecadação insaciável sem observar todas as consequências de sua tributação e os desdobramentos extrafiscais de cada ato. No caso da MP 685 - que, com sorte, não será convertida em lei – há, por exemplo, notório desestímulo à livre iniciativa, o que acarreta sérias consequências de cunho econômico para o país. Nada obstante, a despeito da instabilidade política e econômica hodierna, perpetua-se essa defasada política fiscal, tentando o Executivo manter tal cultura com soluções pontuais como a MP 685. Em verdade, o país demanda uma reforma tributária maior e precisa (re)conquistar a confiança social na própria República. Dessa maneira, certamente, o fim colimado por todos – harmonia social da tributação – será alcançado, sem que medidas como essa sejam alvejadas por tamanhas críticas. Por fim, então, enquanto não se modifica tal quadro, cabe ao Congresso Nacional, por competência constitucional, sustar a MP vergastada. Ao Poder Judiciário, cabe, quando provocado, a constatação da falta dos requisitos necessários à utilização da medida provisória. Desta feita, vencerão os contribuintes mais uma batalha – não contra o fisco – mas contra a abusividade e a inconstitucionalidade que se sustenta com o referido ato presidencial.

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ABSTRACT: The use of provisional measures in the taxation field, although possible, faces acid critics. On the Brazilian political reality, its application is found mainly misused due to the lack of constitutional requirements of relevance and urgency and the affront to principles of the country’s tributary law. Thus, this study examines, specifically, the temporary measure 685/2015, which, among other themes, discusses a series of actions intended to fight the legal reduction of taxes by the federal government, whose goal faces a questionable increase in tax revenues. Therefore, it’s necessary to inspect the use of provisional measures, rejecting the action aforementioned. Keywords: Provisional Measure. Number 685/2015. Taxation Plan. Anti-avoidance Norm.

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THE DISTORTION IN THE USE OF BRAZILIAN PROVISIONAL MEASURES (MP) IN THE TAXATION FIELD AND ITS CONSEQUENCES IN THE UNLAWFULNESS OF THE MP NUMBER 685/2015

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Recebido em 11 ago. 2015. Aceito em 22 set. 2015.

A FALÊNCIA DO ESTADO SOMALI E A PIRATARIA EM ÁGUAS INTERNACIONAIS: UMA ABORDAGEM ILUSTRADA A PARTIR DO FILME “CAPITÃO PHILLIPS” Magno Francisco Sátiro Catão* Marcos Paulo Dias de Almeida**

RESUMO: O presente trabalho expõe o crime de pirataria marítima, relacionando-o diretamente com a produção cinematográfica “Capitão Phillips”, de 2013, apresentando sua definição e regulação a partir de documentos internacionais. Além disso, explora o caso específico da Somália, que se constitui um dos locais mais preocupantes da comunidade internacional, abordando a conjuntura social, política e econômica desse Estado. Destaca, finalmente, as medidas protetivas realizadas por algumas organizações internacionais para a superação do problema. Palavras-chave: Pirataria marítima. Somália. Filme “Capitão Phillips”.

“Capitão Phillips” (título original: Captain Phillips) é uma obra cinematográfica baseada em fatos reais, que conta a história da captura do navio de bandeira norte-americana MV Maersk Alabama por piratas somalis. Retrata de maneira clara como se dá um sequestro de um navio, o papel dos senhores da guerra por trás da pirataria e como a população somali, mormente nas cenas iniciais do filme, se estrutura em torno dessa atividade. Trata-se de uma película que remete a um grave problema hoje discutido pela comunidade internacional: a pirataria. A Somália, apesar de possuir uma localização deveras estratégica para o comércio marítimo mundial, é um país cuja ausência de um Estado efetivo tem pro-

* Graduando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, cursando o 10º período. ** Graduando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, cursando o 10º período.

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1 INTRODUÇÃO

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piciado uma população mísera e desempregada, sujeita a toda sorte de crimes e sem nenhuma segurança. Além de tudo, a sua vulnerabilidade tem permitido práticas intervencionistas por parte de potências estrangeiras. O problema da pirataria na Somália tem raízes muito profundas, as quais devem ser discutidas com afinco pela comunidade internacional. Para isso, traz-se a conceituação da pirataria, sua regulamentação e como ela vem sendo combatida pelos órgãos internacionais, fazendo-se uma análise sobre quem pode rechaçá-la e a partir de quais medidas, sempre relacionando-a e abordando-a conforme os vieses apresentados pela obra em tela. Para a composição da pesquisa, de investigação explicativa, foi utilizado o método operacionalizado, em especial, pela técnica da pesquisa bibliográfica e documental.

2 DO CONCEITO DE PIRATARIA Na lição de Mazzuoli (2010, p. 735), a pirataria marítima: [...] consiste no saque, depredação ou apresamento efetuados, em geral mediante violência, a outro navio ou embarcação, com fins eminentemente privados [...], esse criminoso internacional é destituído de nacionalidade, sendo considerado apátrida em sua atividade ilícita, ficando ele sujeito à polícia de todos os Estados, cabendo a qualquer navio de guerra, persegui-lo, abordá-lo e prendê-lo, segundo as leis do Estado aprisionador. Aplica-se então o princípio da jurisdição universal, segundo a qual a pessoa acusada de crime pode ser julgada e punida por qualquer nação sob a alçada de cuja jurisdição se possa encontrar.

Diante do princípio da inviolabilidade da soberania nacional, uma eventual ampliação da definição de pirataria marítima encontra óbice nos interesses dos Estados mais desenvolvidos, vedando-se, portanto, invasão de navios estrangeiros no mar territorial e águas interiores para a perseguição de piratas (VIANA, 2012). Não obstante, a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, de 1982, ou Convenção de Montego Bay, acabou por delimitar o conceito deste crime de uma forma que foi largamente aceita pela comunidade internacional:

Constituem pirataria quaisquer dos seguintes atos: a) todo ato ilícito de violência ou de detenção ou todo ato de depredação cometidos, para fins privados, pela tripulação ou pelos passageiros de um navio ou de uma aeronave privados, e dirigidos contra: i) um navio ou uma aeronave em alto mar ou pessoas ou bens a bordo dos mesmos; ii) um navio ou uma aeronave, pessoas ou bens em lugar não submetido à jurisdição de algum Estado; b) todo ato de participação voluntária na utilização de um navio ou de uma aeronave,

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ARTIGO 101 – Definição de pirataria

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quando aquele que o pratica tenha conhecimento de fatos que dêem a esse navio ou a essa aeronave o caráter de navio ou aeronave pirata; c) toda a ação que tenha por fim incitar ou ajudar intencionalmente a cometer um dos atos enunciados nas alíneas a) ou b)1.

Pela observância do dispositivo supra, extrai-se, portanto, o objeto, qual seja a existência de pelo menos duas embarcações para a conjectura do ato ilícito; o lugar, sobre o qual não deve ocorrer jurisdição de qualquer Estado; e a finalidade privada, ou seja, patrimonial, distinguindo-se, pois, do terrorismo, que se reveste da intenção política. (VIANA, 2012). Da mesma forma, ao se construir uma ponte com o filme “Capitão Phillips”, restam verificados todos os requisitos, uma vez que se trata de ataque de um grupo de somalis a um navio mercante em águas internacionais, com a finalidade precípua de conseguir dinheiro. Ademais, ressalte-se que a ação de personagens secundários, como Hufan e Garaad (chefe da organização criminosa), também se enquadra na tipificação penal por força da alínea c.

3 REGULAMENTAÇÃO DA PIRATARIA

Todo Estado pode apresar, no alto mar ou em qualquer outro lugar não submetido à jurisdição de qualquer Estado, um navio ou aeronave pirata, ou um navio ou aeronave capturados por atos de pirataria e em poder dos piratas e prender as pessoas e apreender os bens que se encontrem a bordo desse navio ou dessa aeronave. Os tribunais do Estado que efetuou o apresamento podem decidir as penas a aplicar e as medidas a tomar no que se refere aos navios, às aeronaves ou aos bens sem prejuízo dos direitos de terceiros de boa-fé5.

1  UNITED NATIONS. United Nations Convention on the Law of the Sea. Disponível em: <http://www.un.org/depts/los/convention_ agreements/texts/unclos/unclos_e.pdf >. Acesso em 18 nov. de 2014. 2  UNITED NATIONS. United Nations Convention on the Law of the Sea. Disponível em: <http://www.un.org/depts/los/convention_ agreements/texts/unclos/unclos_e.pdf >. Acesso em 18 nov. de 2014. 3  UNITED NATIONS. United Nations Convention on the Law of the Sea. Disponível em: <http://www.un.org/depts/los/convention_ agreements/texts/unclos/unclos_e.pdf >. Acesso em 18 nov. de 2014. 4  UNITED NATIONS. United Nations Convention on the Law of the Sea. Disponível em: <http://www.un.org/depts/los/convention_ agreements/texts/unclos/unclos_e.pdf >. Acesso em 18 nov. de 2014. 5  UNITED NATIONS. United Nations Convention on the Law of the Sea. Disponível em: <http://www.un.org/depts/los/convention_ agreements/texts/unclos/unclos_e.pdf >. Acesso em 18 nov. de 2014.

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Feitas as devidas considerações e definições preliminares acerca do tema, é importante revelar como o crime vem sendo orientado e regulado pela comunidade internacional. Para isso, faz-se mister citar a Convenção de Montego Bay, a qual aduz, em seu art. 100, que “Todos os Estados devem cooperar em toda a medida do possível na repressão da pirataria no alto mar ou em qualquer outro lugar que não se encontre sob jurisdição de algum Estado”.2 Entre outras considerações, tais como definição de navio ou aeronave pirata (art. 103)3, conservação ou perda da nacionalidade de um navio ou aeronave pirata (art. 104)4, crê-se ser necessário perpassar-se pelo art. 105 da Convenção em questão, o qual apregoa que:

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Tal medida faz-se presente no filme, quando os Estados Unidos apreendem a embarcação dos piratas somalis. Entretanto, como é no filme mostrado, dos quatro piratas, três morrem fuzilados e apenas um vive e será julgado pela Justiça estadunidense. Ainda, o art. 107 da Convenção de Montego Bay resguarda o dever de apresamento, por motivo de pirataria, somente aos navios de guerra ou aeronaves militares, ou outros os quais tragam sinais claros e sejam identificáveis como navios ou aeronaves ao serviço de um governo e que estejam autorizados para isso6. Pois bem, na obra cinematográfica, percebe-se que o navio responsável por fazer o resgate do Capitão Richard Phillips é pertencente à Marinha Americana, estando, portanto, autorizado para tal.

A Somália é um país localizado na parte oriental da África, na região conhecida como Chifre da África, e tem uma população de cerca 9.133.124 habitantes, numa extensão territorial de 637.657 km² e densidade demográfica de 14,3 hab/km²7. O país também inclui a Somalilândia e Puntland, duas regiões que, em virtude da situação catastrófica, realizaram um movimento separatista e possuem atualmente administração própria, sendo consideradas Repúblicas de Independência não-reconhecidas (SILVA, 2010). Além disso, os mares da Somália pertencem a mais estratégica e principal rota comercial marítima do mundo, mormente devido ao Golfo de Áden e ao Canal de Suez. A fim de se entender profundamente os aspectos do país, é necessário perfilar-se pela sua conjuntura histórica. Atualmente, a Somália é palco de inúmeros conflitos e protagonista de um problema internacional: a pirataria. Contudo, atribuí-lo a este país sem as devidas considerações ocasiona a falta de reflexão necessária para o seu efetivo combate. A Somália desde 1991 vem sofrendo com a ausência de um Estado nos moldes modernos. Em verdade, ela vem sendo caracterizada pela comunidade internacional como um Estado Falido. Tal conceito possui algumas variáveis entre os pesquisadores, mas basicamente remete-se à concepção de um Estado ausente nos serviços públicos, originando sérios riscos à segurança e ao bem-estar de sua população. Segundo Cardoso (2011), tal acepção é tida por parte dos autores sobre o tema como difusa e controversa. Contudo, de forma genérica, é utilizado quando o Estado falha em aspectos básicos, como garantir o império da lei, da justiça e segurança. A falência de um Estado está na incapacidade de prover serviços à sua população, promovendo a sua perda de identidade. Ainda, na Somália, não há policiamento interno. Por isso, a população sente-se livre para cometer crimes impunemente ou proteger autonomamente

6  UNITED NATIONS. United Nations Convention on the Law of the Sea. Disponível em: <http://www.un.org/depts/los/convention_ agreements/texts/unclos/unclos_e.pdf >. Acesso em 18 nov. de 2014. 7  FRANCISCO, Wagner de Cerqueira e. Somália. Disponível em: <http://www.brasilescola.com/geografia/somalia.htm>. Acesso em 18 nov. de 2014.

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4 A CRISE DA SOMÁLIA

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De fato, os Estados sem um governo efetivo, sem o império da lei, sem legitimidade sob seu território e no qual a população não conta com o provimento da segurança podem servir de refúgio a todos os tipos de crimes transnacionais, desde tráfico de drogas e pessoas, senhores da guerra, proliferação de doenças, crimes ambientais, grupos terroristas até a pirataria, como é o caso da Somália.

8  BBC NEWS. Somalia profile – overview. Disponível em: <http://www.bbc.com/news/world-africa-14094503>. Acesso em: 18 nov. 2014.

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o país (SILVA, 2010). Contudo, é imprescindível salientar que a concepção de “Estado falido” não só enseja a necessidade de a comunidade internacional tomar as medidas cabíveis para sanar a situação, mas também é uma definição que está repleta de elementos políticos e econômicos, originando abusos oriundos das grandes potências, as quais se aproveitam da situação para suas práticas intervencionistas cujos interesses são meramente próprios. É o que ocorre repetidamente na Somália em relação à atividade pesqueira. O Estado somali sempre possuiu historicamente conflitos profundos. Em 1970, tornou-se palco de diversas disputas étnicas, com grupos diversos se acusando de paternalismo (ZAGO, MINILLO, 2008). Desde 1991, a Somália não apresenta governo estável, porquanto o então regime ditatorial de Siad Barre foi deposto, sendo o ponto fulcral dos problemas a finalização da Guerra Fria, a partir do momento em que os EUA deixaram de ser importantes parceiros estratégicos e Mogadíscio foi legada à própria sorte (ZAGO, MINILLO, 2008). A Somália atual está dividida mormente entre dois grandes grupos que vêm sistematicamente se enfrentando: a União das Cortes Islâmicas (UCI), que constitui um conjunto de cortes de seguidores da sharia – código de leis do islamismo -, facção liderante de Mogadíscio até 2004, quando o Grupo Transicional Federal (GTF) derrubou-a em 2006 (ZAGO, MINILLO, 2008). Inobstante, o Grupo Transicional Federal vem recebendo apoio dos Estados Unidos e de tropas militares provenientes da Etiópia e do Quênia, fato causador de inquietações entre a população, uma vez que poderia ocasionar uma suposta deslegitimação das ações do grupo. Em 2000, anciões dos clãs e outras figuras de importância apontaram Abdualkassin Salat Hassan Presidente, fazendo poucos progressos em relação à Administração e aos serviços públicos. Em 2004, os principais senhores da guerra e políticos assinaram um acordo para promover um novo parlamento, que mais tarde apontou um presidente8. Ainda, é de bom alvitre lembrar que o Grupo Transicional Federal detém jurisdição apenas sobre Mogadíscio, capital da Somália, não logrando êxito em governar o resto do país, sendo ainda vítima de desconfiança e de acusações de deslegitimidade. Ato contínuo, reitera-se que essa situação de instabilidade da Somália é responsável por uma séria de problemas graves, como a criminalidade exacerbada, a ausência de um Estado punitivo, miséria e desemprego. Assim preceitua Patrícia Cardoso (2011, p. 23):

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A Somália apresenta dados alarmantes em alguns indicadores mundiais. Segundo dados do Failed States Index (índice de Estados falidos), que foca em indicadores de risco e é baseado em milhares de artigos e relatórios disponíveis, no ano de 2013, num total de 178 países a Somália ocupou o primeiro lugar, com pontuação 113.9 de 1209. De acordo com o WGI – Worldwide Governance Indicators (Indicadores Globais de Governança), o qual mediu as condições de governança e produziu relatórios de 215 economias no período de 1996 a 2013, conforme os critérios de Voz e prestação de contas, Estabilidade política e ausência de violência, Efetividade governamental, Qualidade regulatória, Regulação da lei e Controle de10, a Somália classificou-se nas pontuações mais baixas, entre 0 a 10, em todos os quesitos11. Segundo o próprio projeto de Indicadores Globais de Governança (WGI):

Ainda de acordo com o Freedom in the World (Liberdade no Mundo)13, avaliador da manutenção dos direitos políticos e liberdades civis, a Somália alcançou, num índice de 0 a 7, em que 0 significa a segurança de direitos e liberdades civis e o 7, a sua não efetivação de maneira mais catastrófica, a pontuação máxima nos dois requisitos. Segundo dados do Banco Mundial, apenas 29% da população somali têm acesso ao ensino primário básico e a previsão de crescimento econômico até 2016 é de 0%14. O filme Capitão Phillips, por meio de sua fotografia, nos remete a paisagens desoladoras, a um país esquecido e pobre. Na obra cinematográfica, a situação de miséria na Somália é percebida logo nas cenas iniciais, em que a ausência de um Estado provoca a formação de aldeias comandadas por leis próprias e geralmente encabeçadas pelos senhores da guerra somalis. Os antagonistas da narrativa, Muse e seus companheiros, piratas e somalis, vivem em Eyl, o mais tradicional destino dos navios capturados no mar (ZAGO, MINILLO, 2008) e se veem obrigados a ingressar no ramo da pirataria, porquanto outro destino em suas vidas não se mostra visível. A miséria somali é sentida no seguinte diálogo, em que o Capitão, sequestrado,

9  THE FUND FOR PEACE. The failed states index 2013.Disponível em: <http://fsi.fundforpeace.org/rankings-2013-sortable>. Acesso em: 18 nov. 2014. 10  WORLDWIDE GOVERNANCE INDICATORS. Home. Disponível em: <http://info.worldbank.org/governance/wgi/index.aspx#home>. Acesso em: 16 nov. de 2014. 11  WORLDWIDE GOVERNANCE INDICATORS. Interactive data access. Disponível em: <http://info.worldbank.org/governance/wgi/ index.aspx#reports>. Acesso em: 16 nov. de 2014. 12  WORLDWIDE GOVERNANCE INDICATORS. Introduction. Disponível em: <http://info.worldbank.org/governance/wgi/index.aspx#doc >. Acesso em: 18 nov. 2014. 13  FREEDOM HOUSE. Freedom in the world. Disponível em: <https://www.freedomhouse.org/report-types/freedom-world>. Acesso em: 17 nov.2014. 14  THE WORLD BANK. Somalia. Disponível em: <http://data.worldbank.org/country/somalia>. Acesso em: 17 nov. de 2014.

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Governança consiste nas tradições e instituições pelas quais o exercício de autoridade num país é efetivado. Isso inclui o processo pelo qual governos são selecionados, monitorados e substituídos; e o respeito aos cidadãos e o estado das instituições que governam interações sociais e econômicas e a relação entre as duas. (Tradução nossa)12.

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argumenta: “há outras opções além de se pescar e sequestrar pessoas”, ao passo que Muse responde: “talvez na América, talvez na América”. Para Silva (2010, p. 10): A concorrência dos interesses econômicos entre os diversos beneficiários do Estado e o desequilíbrio nas responsabilidades das instituições contribuíram para a falência do poder central e no aumento da pobreza e das taxas de desemprego da população local, em especial os jovens, conduzindo-os a aderirem às milícias (…).

5 ATIVIDADE PESQUEIRA NA SOMÁLIA E PIRATARIA Muse, um dos piratas de Capitão Phillips, solta: “os países ricos gostam de ajudar a Somália. Seus grandes navios vêm para nossas águas e pegam todos os peixes.” Mais tarde, em outra cena, acrescenta: “vocês estão na Somália. Têm de pagar”. Esse diálogo inicial é de suma importância para compreender a relação nevrálgica entre a atividade pesqueira na Somália e a pirataria, porquanto abordam dois aspectos importantes: a invasão de potências estrangeiras na Somália e a reação advinda desse abuso. Para Zago e Minillo (2008, p. 14):

O setor pesqueiro nesse país é basicamente muito rústico, sendo destinado ao consumo local, e não para exportações com vistas a grandes lucros. Como salienta Zago e Minillo (2008), a atividade pesqueira nesses termos pode ser mantida num contexto de estabilidade. Entretanto, os Estados ricos aproveitaram-se da situação de impotência da Somália e começaram a efetivar pesca predatória, despejar lixo tóxico e destruir os barcos dos pescadores. Sem a presença de um Estado atuante, prezando pelas suas águas e controlando esse tipo de situação, os somalis viram-se obrigados a tomarem algum tipo de providência. Por isso, para Muse, quem está na Somália “tem de pagar”. Inicialmente, a pirataria era feita pelos pescadores visando a restabelecer as atividades econômicas locais. No entanto, depois que se percebeu a grande probabilidade de lucros, a pirataria passou a ser profissionalizada e promovida pelos senhores da guerra e homens de negócios somalis, já atuando com barcos velozes e armamento pesado, empresas de alimentação para os sequestradores e também reféns. Para Gilberto Oliveira (2009, p. 9): O mais recente relatório do Grupo das Nações Unidas para Monitoramento da

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A pesca estrangeira é realmente prejudicial para os pescadores, pois os navios em questão navegam por cima das suas redes pesqueiras e lançam dejetos sobre suas embarcações, além de utilizar métodos de pesca proibidos internacionalmente sem fiscalização ou controle, reduzindo significativamente o sucesso dos pescadores somalis. A pesca internacional é feita sem a preocupação com os padrões da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e da Organização Marítima Internacional (OMI).

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Somália (ONU, 2008: 29-30) ressalta que a pirataria somali envolve duas grandes redes criminosas e que sua organização guia-se, fundamentalmente, por princípios empresariais. Suas atividades são financiadas por negociantes locais e figuras políticas proeminentes, que provêm “barcos, combustível, armas e munição, equipamentos de comunicação e salários aos piratas”.

Na película, esse fato é explicitado pelo fato de Muse já ter sequestrado outro navio anteriormente, obtendo lucro no valor de seis milhões de dólares. Entretanto, o pirata não ficou com tal montante, o qual, pelo contrário, foi repassado para o senhor de guerra que recruta os moradores da aldeia onde habita. De acordo com Matheus Viana (2012), a pirataria também já não se trata mais de uma atividade oportunista, mas, sim, de um oportunismo sistematicamente estruturado. Ainda vai além e diz que se trata de uma atividade extremamente contraditória, porquanto, apesar de dar lucros a setores da população somali, vem dificultando a sua reorganização política e econômica. O problema torna-se ainda maior em virtude da grande importância estratégica das rotas que perpassam pelos mares da Somália, sendo a principal rota comercial marítima do mundo e estando prejudicada. Para Gioppo citado por Viana (2012, p. 17): Devido o crescimento da atividade pirata no Golfo de Áden, o transporte de petróleo e gás se tornou extremamente perigoso. Além do aumento exagerado do preço do seguro nesse trecho marítimo, o risco de morte da tripulação e de desastres ambientais tem afastado o interesse pelo petróleo advindo dos países que fazem uso dessa rota para escoar a produção.

O Capitão Richard Phillips, no filme, estava justamente passando pelo Golfo de Áden quando o navio foi sequestrado pelos piratas somalis. Seu destino era chegar à cidade de Mombaça, no Quênia, a fim de levar mantimentos para os nativos desse último país. Cogita ir através de outra rota, mas devido à posição estratégica do Golfo de Áden, desiste e acaba sendo vítima da pirataria.

A Organização Marítima Internacional (International Maritime Organization - IMO) é uma das agências especializadas da Organização das Nações Unidas (ONU), tendo como alguns dos seus propósitos a promoção da segurança marítima das navegações e a remoção dos óbices ao tráfego marítimo sustentável15. Não obstante ela esteja envolta num cenário de muita resistência política e divergência com os preceitos das legislações nacionais no tocante à pirataria, sua atuação

15  INTERNATIONAL MARITIME ORGANIZATION. Introduction to IMO. Disponível em:<http://www.imo.org/en/About/Pages/Default.aspx>. Acesso em: 10 nov. 2014.

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6 DAS MEDIDAS CONTRA A PIRATARIA PELA ORGANIZAÇÃO MARÍTIMA INTERNACIONAL E PELA FORÇA TAREFA COMBINADA 151

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mostra-se progressivamente líder no combate a esta mácula internacional. Iniciando suas atividades com a promoção de seminários sobre a pirataria, em 1998, principalmente para os representantes de governos com a incidência de ataques piratas em seu litoral, e com a realização de missões avaliativas nas mais variadas regiões, a IMO (Organização Marítima Internacional) sempre intentou desenvolver acordos regionais de cooperação, destacando-se, em 2009, o adotado em Djibouti, assinado inclusive pela Somália, num compromisso de posicionar-se contra a pirataria na adoção de variadas medidas protetivas, interceptivas, penais e de apoio às vítimas. (CARDOSO, 2011). Sobre o papel atual da Organização Marítima Internacional, nos explica Renato Pericin da Silva (2010, p. 26-27): as principais ações da OMI são no sentido de assegurar maior conscientização marítima. A OMI contribui para essa “mentalidade marítima” com, por exemplo, a manutenção de um registro estatístico sobre todos os ataques ou tentativas de ataques à navios relatados em todo o mundo. O relatório contém o nome do navio, localização, data, descrição do incidente, as conseqüências para a tripulação ou barco e as medidas tomadas pelas autoridades. Outra questão importante é o trabalho do Comitê de Segurança Marítima da OMI no aconselhamento armadores, operadores e gestores de navios, companhias de navegação, comandantes e todas as outras partes envolvidas para prosseguir nos esforços para a plena aplicação das medidas preventivas contidas nas suas circulares. Algumas delas são especialmente importantes, como a “MSC.1/ Circ.1334 – Guia para os armadores e operadores de navios, comandantes e tripulação na prevenção e repressão de atos de pirataria e assaltos à mão armada contra navios”.

Considerando a circular acima referida, 1/Circ.1334, é perceptível o aspecto preventivo de suas determinações, funcionando como uma verdadeira cartilha a ser seguida pelo comandante e sua tripulação, na medida em que as circunstâncias da situação concreta permitirem:

Ademais, ao longo de todo o documento prezam-se por medidas objetivas e diretas a serem acionadas antes e durante um ataque pirata. Restam elencadas algumas conforme o destaque mostrado no filme através da postura continuamente fria e racional do personagem Capitão Rich Phillips, sempre focado em seguir os procedimentos. Veja-se, por exemplo, que, após consultar e-mail contendo boletim da Agência de Comércio Marítimo do Reino Unido, reforçando já o seu prévio estado de alerta sobre a pirataria na costa da Somália, o Capitão estrategicamente utiliza-se do aparelho de comunicação para tentar ludibriar os piratas que se aproximam, simulando um pedido/autorização de apoio aéreo.

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Introdução. Esta circular objetiva trazer à atenção de donos de navios, companhias, operadores de navios, comandantes e tripulações as precauções que devem ser tomadas para reduzir os riscos de pirataria no alto-mar e roubos armados contra navios ancorados, fora dos portos ou quando navegando pelas águas territoriais da costa de algum Estado. (INTERNATIONAL MARITIME ORGANIZATION, MSC.1/Circ.1334,2009, p. 03, tradução nossa).

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Em disposição convergente, segue o parágrafo 6 da Circular: Descrição para comandantes e membros da tripulação. 6. Os comandantes devem ter em mente a possibilidade dos atacantes estarem monitorando as comunicações do navio e usando as informações interceptadas para escolher seus alvos. (INTERNATIONAL MARITIME ORGANIZATION, MSC.1/Circ.1334, 2009, p. 04, tradução nossa).

A ação do Capitão Phillips em fazer soar os sinais sonoros do navio igualmente segue o procedimento de segurança do parágrafo 52 da Circular, servindo, nas próprias palavras do personagem, para “avisar aos piratas que eles já foram vistos e que o navio será defendido”: “Alarmes. 52. Os sinais de alarme, inclusive o apito do navio, devem ser tocados quando da aproximação dos atacantes. Os alarmes e os sinais de alerta podem desencorajá-los.” (INTERNATIONAL MARITIME ORGANIZATION, MSC.1/Circ.1334, 2009, p. 13, tradução nossa). Por fim, ressaltem-se as cenas em que são apresentadas manobras de aumento da velocidade, projetando um incremento na altura das ondas pelo rastro do navio, bem como nas mudanças de direção quando a investida dos piratas se torna mais obstinada e eles estão na iminência de adentrarem o navio, consumando o ataque. Tais procedimentos, por sua vez, constam de previsão no parágrafo 55 da mesma Circular:

A Força Tarefa Combinada 151, CTF-151, foi criada em janeiro de 2009, com a missão precípua de promover operações contra a pirataria no Golfo de Áden e nas águas da costa da Somália no Oceano Índico, sendo formada, em março de 2009, por navio dos Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, Dinamarca, França, Alemanha, Grécia, Itália, Malásia, Holanda, Arábia Saudita, Espanha, Turquia e Iêmen. (SILVA, 2010). De acordo com a Combined Maritime Forces (Forças Marítimas Combinadas)16: A Força Tarefa Combinada 151 (CTF-151) é uma de três forças tarefas operadas pelas Forças Marítimas Combinadas (CMF). De acordo com as Resoluções do Conselho

16  Combined Maritime Forces. CTF-151: Counter-piracy. Disponível em: <http://combinedmaritimeforces.com/ctf-151-counter-piracy/>. Acesso em: 10 nov. 2014.

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O uso de medidas defensivas. 55 Experiências mostram que ações robustas provenientes do navio que está em iminência de ser atacado por piratas podem desencorajar os atacantes. Exceder a velocidade pode ser uma manobra preventiva. Se a situação permitir, a velocidade deve ser aumentada e mantida no nível máximo. Sabendo que a segurança do navio permite, os comandantes devem se esquivar dos atacantes a partir de movimentos bruscos e virando-se para o vento [...]. Mudanças bruscas na direção devem somente ser usadas quando os atacantes estiverem na iminência de embarcarem. O efeito da onda pode detê-los e dificultar a anexação de estacas e cabos de ferro no navio. (INTERNATIONAL MARITIME ORGANIZATION, MSC.1/Circ.1334, 2009, p. 13, tradução nossa).

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de Segurança das Nações Unidas, e em cooperação com forças de não membros, a missão da CTF-151 é interromper a pirataria e o roubo armado no mar e se engajar com parceiros regionais e diversos para construir e incrementar habilidades relevantes em vistas de proteger o comércio marítimo global e a segurança da navegação. (tradução nossa)

No filme “Capitão Phillips” a atuação de tal comando é essencial para o resgate do comandante Rich Phillips, após ter sido sequestrado pelos piratas na fuga pela baleeira do navio. Através de todo o arsenal militar de que dispunha a Marinha Americana, é posto fim à atuação dos piratas, resultando na morte de três somalis e prisão daquele que constituía o líder do grupo.

7 RESOLUÇÕES ADOTADAS EXCLUSIVAMENTE PARA A SOMÁLIA O agravamento da pirataria na região da Somália, que se deu sobretudo a partir de 2008 e contando com fatores diversos, mas todos tangenciados pela falência desse Estado, exigiu a aprovação de uma série de resoluções pelo Conselho de Segurança da ONU. Inicialmente, é verificado um direcionamento para o combate à pirataria em seus atos estritos e isolados, inclusive nas águas territoriais da Somália, como se verifique da lição de Patrícia Laffratta Cardoso (2011, p. 43):

A partir de 2009, todavia, há uma mudança de percepção na forma de encarar esse problema internacional, ficando assente a ausência de um governo na Somália como fator contributivo da pirataria e a ideia de que o cenário da desordem no mar na verdade é extensão de um caos em terra firme, exigindo, pois, da ONU o reconhecimento da necessidade de resoluções mais abrangentes. Com efeito: a crescente preocupação do Conselho de Segurança não só com a pirataria, mas com todo o contexto do Estado somali como grande causa da pirataria, é refletida em suas posteriores resoluções que abrangem não mais apenas a luta contra a pirataria em si, mas também a luta contra a instabilidade da Somália. A resolução 1976, de 11 de abril de 2011, reflete essa mudança de abordagem afirmando a necessidade de construir o potencial da Somália para crescimento econômico sustentável como um meio de se atacar as causas subjacentes de pirataria, inclusive pobreza, assim contribuindo para

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Dentre as resoluções mais significativas de 2008, encontra-se a resolução 1816, de 2 de junho de 2008, em que afirma levar em conta a falta de capacidade do Governo Nacional de Transição (GNT) da Somália em combater a pirataria tanto em águas territoriais quanto em águas internacionais [...]. Nessa resolução, portanto, o recorrente acontecimento da pirataria na região faz com que o Conselho de Segurança da ONU, vendo a inabilidade do GNT somali de combater a pirataria, abra a possibilidade de atuação internacional nas águas territoriais da Somália. Isto é, a resolução 1816 abrange a atuação internacional contra a pirataria para além das águas internacionais, mas também para as águas territoriais da Somália além de autorizar o uso de todos os meios necessários.

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a erradicação durável da pirataria no litoral da Somália além de outras atividades ilegais ligadas à pirataria (ONU, 2011b). (CARDOSO, 2011, p. 44-45)

8 CONSIDERAÇÕES FINAIS

objetivo principal conseguir um pagamento elevado pelo resgate. Na Somália, o problema da pirataria é reforçado pelas suas ligações ao crime organizado e pela ausência de governo, regras e leis, sendo indispensável que o seu combate atinja o centro dos negócios, onde estão as ligações ao crime, e as redes de informações espalhadas por diversos portos para dar notícia de próximos alvos potenciais. Tem que abranger as origens da corrupção e motivações sócio-econômicas dos piratas. Não obstante o reconhecimento de que a situação não se resolve apenas através de uma estratégia naval, esta é, ao lado do estabelecimento de parcerias de colaboração regional, um dos dois passos essenciais na presente fase de tentar limitar o impacto econômico-financeiro da ameaça e pôr os piratas na defensiva.

REFERÊNCIAS CARDOSO, Patrícia Laffratta. A sociedade internacional e os “Estados falidos”: o

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Quando em 1982 foi celebrada a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, mais conhecida como Convenção de Montego Bay, à questão da pirataria não se deu suficiente atenção, talvez por haver sido absorvida a ideia de transposição desse fenômeno, o qual restaria preso tão somente ao passado. No entanto, tal pensamento revestiu-se de uma falsidade plenamente corroborada com a sua existência moderna e ousada, que cresce e muito preocupa toda a comunidade internacional, sejam nos aspectos políticos, sociais e econômicos descortinados pela prática da pirataria. A pirataria moderna, ao ameaçar a segurança de algumas das mais importantes linhas de comunicação marítimas do mundo e ao restringir a livre circulação do comércio marítimo, irradia seus reflexos na economia globalizada, contribuindo para o aumento dos preços das mercadorias em geral, das seguradoras em particular e para o agravamento das tensões locais. O significado de pirata, atualmente, transpassa o imaginário, que alimenta a ficção, de cruzar os oceanos como um destemido Capitão Jack Sparrow à procura de presas com quem possa travar grandes lutas frontalmente. Alcança-se um esquema bem mais racional, distanciado de um mero heroísmo, não obstante ainda exigente de coragem, que se concentra nos pontos por onde a navegação tem que obrigatoriamente passar ou estacionar, imperando-se táticas assimétricas que permitam tornear, com vantagens próprias, a diferença de capacidades quando se observa a contraposição do porte das vítimas – grandes navios – com as lanchas dos atacantes. Também ao contrário do que acontecia no passado, deixa-se de pretender apoderar-se dos navios apreendidos, exceto quando lhes servem para apoiar a sua atividade, e constitui-se

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combate à pirataria na costa da Somália. 61 f. Monografia (Graduação) - Curso de Relações Internacionais, Centro Universitário de Brasília, Brasília, 2011. Disponível em: <http://hdl. handle.net/123456789/3414>. Acesso em: 10 nov. 2014. INTERNATIONAL MARITIME ORGANIZATION. MSC.1/Circ.1334 – Piracy and armed robbery against ships. 2009. Disponível em: <http://www.imo.org/OurWork/Security/ PiracyArmedRobbery/Guidance/Documents/MSC.1-Circ.1334.pdf>. Acesso em: 10 nov. 2014. MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de direito Internacional Público. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. OLIVEIRA, Gilberto Carvalho de. Pirataria na Somália e paz internacional. Cabo dos Trabalhos, Coimbra, n. 3, 2009. 23p. Disponível em: <http://cabodostrabalhos.ces.uc.pt/n3/ index.php>. Acesso em: 10 nov. 2014. SILVA, Renato Pericin Rodrigues da. Cooperação internacional no combate à pirataria na costa da Somália. 44 f. Monografia (Especialização) - Curso de Relações Internacionais, Universidade de Brasília, Brasília, 2010. Disponível em: <http://bdm.unb.br/ handle/10483/1083>.

Acesso em: 10 nov. 2014.

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ABSTRACT: The present article exposes maritime piracy crime and relates it directly to the film production “Captain Phillips” (2013). The definition and regulation of the mentioned crime are also explained through international documents, exploring Somalia’s specific case, which is considered one of the most dangerous places in the world by the international community. Lastly, the present work illustrates Somalia’s social, political and economic conjuncture and emphasizes therefore the protective measures which has been taken by some international organizations, aiming to overcome the problem. Keywords: Maritime Piracy. Somalia.“Captain Phillips” movie.

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SOMALIA’S FAILURE AND THE PIRACY IN INTERNATIONAL WATERS: AN ILLUSTRATED EXPLANATION THROUGH “CAPTAIN PHILLIPS” MOVIE

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Recebido em 01 ago. 2015. Aceito em 19 ago. 2015.

A NOVA LEI DE FALÊNCIAS E SUA EFETIVIDADE PRÁTICA Bruna Agra de Medeiros*

RESUMO: O presente estudo possui o escopo de demonstrar as perspectivas que circundam a Nova Lei de Falências, bem como de apresentar a sua aplicabilidade prática e, sobretudo, expor o seu real nível de efetividade. Para tanto, as explanações a seguir serão expostas levando-se em consideração algumas nuances constitucionais, além de tratativas históricas e comparativas entre o Decreto Lei nº 7.661/45 e a legislação hodierna. Por fim, serão enfatizados fatores correlatos à eficácia real da lei em estudo, os quais serão comprovados mediante a análise de dados estatísticos coletados, e, ainda, serão abordadas as consequências jurídicas decorrentes da utilidade dessa norma. Palavras Chave: Nova lei de falências. Efetividade. Empresário. Capital.

A explanação sugerida pelo presente artigo pretende abarcar as tratativas da Nova Lei de Falências, nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, tendo em vista o intuito primordial em esclarecer o seu nível de eficácia normativa em âmbito jurídico e socioeconômico. Notavelmente, sua edição foi proposta em razão de o legislador preservar a empresa, afinal, impera no Direito Comercial o Princípio da Preservação da Empresa, dentre outros da Ordem Econômica, conforme aduz o artigo 170 da Constituição Federal de 1988. Em outras palavras, como essa atividade fomenta o setor financeiro da economia por meio das interações mercadológicas e viabiliza a função social do capital, torna-se imprescindível a sua proteção. Nesse sentido, a lei em análise veio à tona para estabelecer parâmetros com o fito de preservar a atividade empresária como um todo, ou seja, para assegurar a manutenção das ati-

* Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, cursando o 8º período.

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1 INTRODUÇÃO

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vidades produtivas e, portanto, a circulação do capital, bens e serviços. Isso significa, ademais, uma segurança financeira ao Estado, na medida em que, ao sustentar o funcionamento estável das empresas - e, sobretudo a supressão falimentar de grande parte delas – exerce, nitidamente, a sua função social. A proposição da lei em comento incita o questionamento sobre sua verdadeira eficácia após a sua publicação, afinal, foi editada objetivando exercer as funções acima descritas e, pode-se dizer, até, que foi formulada em caráter de urgência dada a conjuntura socioeconômica dos empresários na época. No entanto, será que, de fato, a Nova Lei de Falências salvaguarda as empresas e consiste em um progresso legislativo frente ao Decreto Lei nº 7.661/45? Essa é a proposta da presente análise. Diante do intuito de avaliar a capacidade de eficácia dessa norma em face do Poder Judiciário, especialmente, da Justiça Comum, onde a maioria das ações falimentares tramitam, foi desenvolvido esse estudo e, a partir dele, almeja-se aferir se houve progresso referente aos processos falimentares anteriores à sua vigência, assim como a exposição de seus possíveis motivos e, mesmo, as supostas consequências decorrentes de sua operabilidade jurídica. Em sendo esse o anseio dessa pesquisa, em primeiro lugar, será feita uma abordagem histórica e constitucional com o fito de demonstrar sua relação com o tema e algumas incongruências legislativas. Em seguida, serão delineados caracteres históricos fundamentais à compreensão dessa transição normativa, bem como suas implicações na Nova Lei de Falências e as novas tratativas. Postas essas considerações temáticas, serão, então, esmiuçadas as verdadeiras condições de eficácia da Lei nº 11.101/05. Nesse sentido, serão valorados alguns dados obtidos junto à Fundação Getúlio Vargas (Rio de Janeiro), juntamente com interpretações da doutrina especializada. A análise, em suma, considera questões intrínsecas ao procedimento falimentar – como a questão da celeridade processual – como também aspectos correlatos à atividade econômica, ao fluxo de capitais e à interação mercadológica.

Anteriormente à edição da Lei 11.101/05, o vigor normativo das questões falimentares cabia ao Decreto Lei nº 7.661/451, cujos dispositivos encontravam-se, na realidade, bastante obsoletos diante das relações capitalistas contemporâneas. Dessa forma, também visionando adequar a estrutura legislativa do nosso ordenamento jurídico à situação empresarial vivenciada naquele momento, houve a atualização da legislação falimentar. No entanto, antes de adentrar na temática sugerida, há de se salientar a necessidade premente de manter o respeito à hierarquia normativa, ou seja, faz-se mister a consagração dos

1  BRASIL. Decreto – Lei nº 7.661, de 21 de junho de 1945. Estabelece normas sobre o Direito Falimentar.. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, v.126, n 66, p.6009, 8 abr. 1988. Seção 1, pt.1.

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2 NOÇÕES CONSTITUCIONAIS CORRELATAS À NOVA LEI DE FALÊNCIAS

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valores constitucionais no sentido de que as normas de ordem infraconstitucional devem respeitar a aplicabilidade soberana dos preceitos da Constituição Federal de 1988. Assim sendo, em se tratando de matéria empresarial, cita-se o princípio fundamental da livre iniciativa e da valorização do trabalho humano, elencados no artigo 1º, inciso IV, desse diploma legal, os quais devem ser, primordialmente, considerados. Além disso, faz-se referência ao artigo 170 da Constituição Federal de 1988, cujo teor favorece à solidificação das empresas junto ao capital e ao mercado nacional. A menção constitucional ao tema desse artigo decorre da importância de avaliar suas nuances sob a ótica constitucional para, depois disso, exercer uma análise fiel à sua efetividade. Pondera-se, com efeito, em sede introdutória dessa análise, a necessidade de afastar qualquer análise literal e dogmática da legislação infraconstitucional. Ademais, é importante a compreensão de que os dispositivos legais, embora editados por legisladores competentes, apresentam, não raras vezes, falhas tênues. Considerando-se essa ressalva e o tema ora estudado, pode-se, até mesmo, perceber um equívoco na confecção da Nova Lei de Falências ao considerarmos que, em conformidade com o seu artigo 2º, suas tratativas são, deveras, excludentes. A saber: Art. 2º. Esta Lei não se aplica a: I – empresa pública e sociedade de economia mista;

O dispositivo aludido demonstra uma incongruência normativa acentuada: a exclusão da sociedade de economia mista da possibilidade de se recuperarem judicialmente e se submeterem às regras de falência à luz dos artigos propostos nessa lei. É certo que a empresa pública, por pertencer à entidade estatal, não possa usufruir dessas disposições, porém, não é concebível a impossibilidade de ajustar as empresas de capital misto à essa lei. Até mesmo porque, a sua constituição não provém unicamente de capitais oriundos de fonte pública. Na realidade, é preciso reconhecer que, apesar de sua funcionalidade real, a Lei 11.101/05 foi, deveras, excludente e, porque não dizer, injusta, também com os devedores civiS, pois, embora não exerçam a atividade empresarial, são, sim, responsáveis pela circulação de bens, serviços e capitais. Nesse sentido, as proteções conferidas aos profissionais insertos nessa lei não deveriam ser exclusivas aos empresários insolventes, ao contrário, deveriam tutelar os e dos insolventes civis, ambos, em sentido amplo. No Brasil, a insolvência civil permanece como procedimento autônomo, que regulamenta apenas o procedimento de liquidação, não possibilitando o soerguimento do executado. Deste modo, nas aduções de Susana Corotto (2009, p. 237), temos que:

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II – instituição financeira pública ou privada, cooperativa de crédito, consórcio, entidade de previdência complementar, sociedade operadora de plano de assistência à saúde, sociedade seguradora, sociedade de capitalização e outras entidades legalmente equiparadas às anteriores.

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O devedor civil, ou seja, aquele que não está sujeito à LRFE e às legislações, é até hoje o mais prejudicado com essa segregação legislativa, pois as regras sobre a insolvência civil não preveem o direito à reestruturação e renegociação de seus vínculos contratuais [...].

Tem-se, portanto, um cenário complexo com uma dicotomia entre a insolvência civil (pessoa física) e a empresarial coexistente com procedimentos de intervenção e de liquidação de alguns tipos de pessoas jurídicas, na medida em que exerçam atividades regulamentadas em lei especial. Ainda com relação à essa lei, pode-se arguir que, ao excluir os insolventes civis do seu rol de tratativas, tem-se duas consequências: uma lesão direta aos credores e, ainda, a redução da eficiência de seus dispositivos. Os insolventes civis, nesse sentido, têm que saldar suas dívidas por meio da liquidação de seus próprios bens, fato que os torna progressivamente não competitivos no mercado e favorece à insolvência. Um verdadeiro paradoxo, se considerarmos a intenção do legislador em zelar pela continuidade da circulação do capital. Nessa senda, o jurista Humberto Theodoro Júnior opina sobre a temática, asseverando para tanto (JUNIOR. Theodoro. 2005, p. 236):

Trata-se, então, de uma falha normativa tênue a ser considerada, já que está se tratando da real eficácia dessa norma. Essa tese ganha reforço, ainda mais, ao lembrar-se dos ditames constitucionais assegurados no caput no artigo 5º, da Constituição Federal de 1988, fundamentalmente em prol da igualdade. Em sede de uma visão crítica, seria possível encontrar algumas das supostas justificativas pelas quais o legislador preteriu os insolventes civis na Lei n° 11.101/05. Talvez, o centro da abordagem dessa lei esteja pautado na tutela de interesses particulares do Estado, deixando de lado, por exemplo, o insolvente não empresário. Afinal, se o insolvente não empresário também é agente responsável pela propulsão de capitais, por que excluí-lo das regras falimentares então disciplinadas? Essa constatação de que essa lei protege as intenções do Estado pode ser observada por meio da análise do artigo 83 da Nova Lei de Falências, pois, através dele, a classificação dos créditos na falência obedece à seguinte ordem: os créditos derivados da legislação do trabalho, créditos com garantia real até o limite do bem gravado, créditos tributários e créditos com privilégio especial. Note-se que os interesses do ente federado estão fortemente tutelados, e com prioridade. Os créditos trabalhistas tributários lideram a classificação de créditos, assegurando, primordialmente, os interesses dos trabalhadores e do erário público. Ao contrário, não se encontra na

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O que não se pode tolerar é que haja solução protetiva para uns, enquanto outros, em igual estado, mas por simples diferença de qualificação profissional, se vejam privado de proteção similar ou equivalente, em violação flagrante do secular princípio de justiça do ‘ubieadem legis ratio, eadem legis dispositio’. (Grifo nosso)

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legislação um dispositivo que atribua preferência ao empresário, motivo pelo qual, faz-se mister notar que o Estado, mais uma vez, exerce o seu poderio na defesa de seus interesses particulares em detrimento das pretensões alheias.

Em sequência às postulações dessa análise, observa-se que a promulgação da Nova Lei de Falências, como suscitado anteriormente, trouxe à jurisdição nacional a chance de atualizar suas diretrizes jurídicas, haja vista as disposições do Decreto Lei nº 7.661/452 estarem completamente defasadas. Na visão de Waldo Fazzio (2009, p. 17), esse decreto estava pautado no contexto do pós-guerra mundial, refletindo as determinações da Conferência de Bretton Woods, não mais adequadas à economia vigente. O mecanismo previsto pelo Decreto Lei nº 7.661/45 para a recuperação dos comerciantes insolventes fadou-se ao insucesso com o tempo. Pois, dentre outros motivos, estava mais apropriado ao pequeno empresário (e não aos conglomerados empresários em expansão) e, ainda, porque a concordata não mais atendia às expectativas da economia. Além disso, tal fato ocorreu porque “na prática o antigo processo de insolvência provou ser inoperante tanto no que diz respeito à maximização do valor dos ativos da firma quanto na proteção dos direitos dos credores em caso de liquidação”. Em síntese, esse decreto não funcionou em virtude de não ter atendido seu objetivo primordial: salvaguardar as empresas da falência. Os seus mecanismos não foram suficientes para evitar o fechamento de cadeias produtivas, o desemprego crescente e, sobretudo, a estagnação do capital. Logo, diante da ineficiência prática desse Decreto, a demanda por um preceito normativo suficientemente capaz de regulamentar as relações falimentares e, principalmente, reerguer as estruturas comerciais ameaçadas pela insolvência, era evidente. Nesse contexto, foi elaborada a Lei 11.101/05, a qual foi feita com o fito de estabelecer parâmetros para viabilizar a atividade administrativa das empresas no sentido de torná-las competitivas no mercado e fomentar a economia com a prevenção das falências. Sua gênese, na realidade, foi importada da Alemanha e da União Europeia (MAMEDE, 2005) com o intento de trazer progressos, assim como estava ocorrendo no contexto internacional. De forma análoga, pode-se aferir que foi, inclusive, uma lei com pretensões de atender e complementar os propósitos de uma Política Pública, cujo enfoque está, também, no atendimento de demandas sociais. Sobre esse conceito, norteia Jefferson Ney Amaral (2005, p. 5):

2  BRASIL. Decreto – Lei nº 7.661, de 21 de junho de 1945. Estabelece normas sobre o Direito Falimentar.. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, v.126, n 66, p.6009, 8 abr. 1988. Seção 1, pt.1.

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3 CONDIÇÕES FÁTICAS E HISTÓRICAS PARA A EFETIVIDADE DA NOVA LEI DE FALÊNCIAS

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as Políticas Públicas são a totalidade de ações, metas e planos que os governos (nacionais, estaduais ou municipais) traçam para alcançar o bem-estar da sociedade e o interesse público. É certo que as ações que os dirigentes públicos (os governantes ou os tomadores de decisões) selecionam (suas prioridades) são aquelas que eles entendem serem as demandas ou expectativas da sociedade. [...] No processo de discussão, criação e execução das Políticas Públicas, encontramos basicamente dois tipos de atores: os ‘estatais’ (oriundos do Governo ou do Estado) e os ‘privados’ (oriundos da Sociedade Civil). [...] Os atores estatais são aqueles que exercem funções públicas no Estado, tendo sido eleitos pela sociedade para um cargo por tempo determinado (os políticos), ou atuando de forma permanente, como os servidores públicos (que operam a burocracia). [...] Os políticos são eleitos com base em suas propostas de políticas apresentadas para a população durante o período eleitoral e buscam tentar realizá-las. As Políticas Públicas são definidas no Poder Legislativo, o que insere os Parlamentares (vereadores e deputados) nesse processo.

O princípio da função social da empresa reflete-se, por certo, no princípio da preservação da empresa, que dele é decorrente: tal princípio compreende a continuidade das atividades de produção de riquezas como um valor que deve ser protegido, sempre que possível, reconhecendo, em oposição, os efeitos deletérios da extinção das atividades empresariais que prejudica não só o empresário ou sociedade empresária, prejudica também todos os demais: trabalhadores, fornecedores, consumidores, parceiros negociais e o Estado.

Destarte, essa conjuntura em que a prioridade estava centrada na segurança do capital, gerou a necessidade de atualizar o Decreto Lei nº 7.661/453, haja vista o desígnio em fazer a jurisdição – e o próprio plexo normativo brasileiro - acompanhar a evolução social e as novas

3  BRASIL. Decreto – Lei nº 7.661, de 21 de junho de 1945. Estabelece normas sobre o Direito Falimentar.. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, v.126, n 66, p.6009, 8 abr. 1988. Seção 1, pt.1.

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Em relação à analogia proposta, como as gestões governamentais possuem a incumbência de manter o equilíbrio da economia do país, agem, por intermédio dos administradores públicos (e de seus aparatos legislativos, por exemplo), estabelecendo programas para assegurar as atividades produtivas. Um exemplo propício dessa atuação é a promulgação da Nova Lei de Falências, em que o intuito se reserva à continuidade da mencionada atividade empresária e, logo, da estabilidade econômica em geral. Isso porque a geração de empregos está intrinsecamente associada à circulação de capitais, ao fornecimento de serviços, à movimentação de bens, à segurança no tocante à arrecadação tributária por parte do Estado, e, até, à elevação do Produto Interno Bruto (PIB). Tem-se, portanto, a edição dessa lei como uma via indireta de exercer as pretensões das políticas públicas, como remonta o texto acima reportado. Pode-se dizer, então, que há uma função social sendo exercida por intermédio da Lei nº 11.101/05, como conclui Gladston Mamede (2005, p. 417): Estado

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demandas jurídicas então insurgentes. Diante do exposto, visando atender as lides, na espécie em julgamento a estabilidade da atividade empresária – e, em sentido amplo, a liquidez dos créditos -, a governabilidade sentiu a necessidade de colaborar com o Poder Legislativo no sentido de viabilizar a promulgação de uma lei responsável pela maior preservação da manutenção da atividade empresária. Assim, foi publicada a Nova Lei de Falências.

As disposições da Nova Lei de Falências trouxeram à baila um conjunto de possibilidades inovadoras capazes de evitar a sucumbência das empresas e, portanto, aptas a manter a solidez do capital empresário. Saliente-se, para fins de instrução, que esse conteúdo normativo não mais contemplou o instituto da concordata4, pois esse fora revogado juntamente com o Decreto Lei nº 7.661/455. Na realidade, a Lei 11.101/2005 não visa a absoluta inocorrência da decretação de falência por parte das empresas, porém, o Estado só irá retirar uma determinada sociedade empresária do mercado quando verificar a sua total incapacidade permanecer no meio produtivo de forma segura e duradoura, como aponta (MAMEDE, Gladston. 2005, p. 309). Para desempenhar tal objetivo, outros mecanismos foram implementados, a exemplo do estabelecimento dos institutos da recuperação judicial e extrajudicial das empresas, além de dispor sobre a falência do empresário e das sociedades empresárias. No entanto, caso esses recursos sejam insuficientes para evitar a falência empresária, outras estratégias são utilizadas em conformidade com a lei aludida, a fim de que as onerosidades sejam mínimas. Sobre a absoluta impossibilidade de permanência da empresa no mercado, aduz Valente de Paiva (2005, p. 42) que, caso os credores entendam que a reabilitação da empresa seja possível, a Lei estimula a sua venda num rito expresso, de modo a permitir que, sob uma nova administração, a empresa continue a exercer a sua função social de gerar empregos e renda. Em suas aduções, “em última instância, se o negócio não mais for viável, a Lei cria condições factíveis para que haja uma liquidação eficiente dos ativos, permitindo assim que se maximizemos valores realizados e, consequentemente, se minimizem as perdas gerais” Outro aspecto relevante a ser destacado reside no conjunto de requisitos que foram propostos, no artigo 94 dessa lei, para delimitar com mais precisão os casos que, verdadeiramente, se enquadram no processo de falência. Nessa conjuntura, ressalte-se que, dentre outras situações, o pedido de falência será plausível quando houver a impontualidade justificada do

4  A concordata consiste em um instituto do Direito Falimentar cujo intuito primordial era a preservação do crédito do devedor comerciante e a sua recuperação instantânea frente à situação econômica por ele enfrentada. 5  BRASIL. Decreto – Lei nº 7.661, de 21 de junho de 1945. Estabelece normas sobre o Direito Falimentar.. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, v.126, n 66, p.6009, 8 abr. 1988. Seção 1, pt.1.

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3.1 Inovações da Nova Lei de Falências

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devedor sobre um título executivo (judicial ou extrajudicial), cujo valor seja superior a 40 (quarenta) salários mínimos. Em resumo, os objetivos almejados com a edição dessa lei devem ser alcançados mediante a aplicabilidade de alguns princípios constitucionais, também por ela regulamentados, os quais servem como arcabouço normativo, como o princípio da proteção aos trabalhos, a maximização dos valores do ativo e e a desburocratização da recuperação de empresas e microempresas de pequeno porte.

4 EFICIÊNCIA FÁTICA DA NOVA LEI DE FALÊNCIAS Preliminarmente, a avaliação da eficiência de uma lei deve partir de algumas indagações, as quais serão basilares para a aferição de sua eficiência real. Em primeiro lugar, é preciso compreender se a sua aplicação permitiu, de fato, a redução das demandas com relação ao Poder Judiciário, bem como a promoção da celeridade processual do interior dos cartórios. Além disso, é fundamental observar se, em decorrência de sua operabilidade, há o alcance das metas pretendidas em âmbito forense e, posteriormente, econômico. Saliente-se, com efeito, que o êxito dessa lei está intimamente relacionado à capacidade produtiva dessas empresas, assim como com a sua longevidade, e, principalmente, o seu potencial de crédito frente às interações com os seus credores. Essas condições, portanto, são avaliadas através das influências que as empresas exercem no cenário econômico, bem como no seu potencial de produtividade e geração de riqueza. Assim sendo, conforme designado nas tratativas a seguir, essa lei pôde ser considerada como satisfatória na medida em que houve o adimplemento das dívidas pelos empresários insolventes ou, ainda, o crescimento da atividade empresária frente à organização financeira determinada para o adimplemento dos créditos.

No tocante ao número de demandas incidentes no Judiciário, é possível constatar uma significativa redução do contingente de processos abertos perante à jurisdição nacional, especialmente, em razão da determinação de critérios a serem seguidos para a proposição de uma ação falimentar. Por obviedade, a fixação de uma quantidade superior a 40 salários de títulos protestados superiores a 40 (quarenta) salários mínimos diminuiu a quantidade de lides por tornar irrelevante juridicamente casos com títulos de importes inferiores à esse. Em uma pesquisa realizada pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-Rio), intitulada como “Avaliação da nova Lei de Falências”, constatou-se que, enquanto na década de 90 havia cerca de 30 (trinta) mil pedidos de decretação de falência e 6 (seis) mil sentenças declaratórias de falência, após a vigência da Nova Lei de Falências, em 2009, havia 2.364 (dois mil trezentos e sessenta e quatro) mil pedidos de falência, isto é, uma quantia significativamente menor se comparada a ou com momentos anteriores.

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4.1 A efetividade da Nova Lei de Falências sob a ótica do Poder Judiciário

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6  EXPERIAN, Serasa. Pedidos de falência caem 5,5% em 2014, revela Serasa Experian. São Paulo, 6 de jan. 2015. Disponível em: <http:// noticias.serasaexperian.com.br/pedidos-de-falencia-caem-55-em-2014-revela-serasa-experian/>. Acesso em: 20 maio. 2015. 7  DO ROSÁRIO, Mário. Pedidos de falência caem 80% na era Lula/Dilma. O cafézinho, São Paulo, 2015. Disponível em: <http://www. ocafezinho.com/2014/10/09/pedidos-de-falencia-caem-80-na-era-luladilma/> Acesso em: 20 de maio. 2015.

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Assim, como demonstra Zínia Baeta (2010, p. de internet), a referida pesquisa apontou que: “houve uma queda de aproximadamente 54% do número de pedidos de falência por mês, e uma redução de 33% sobre o volume de decretações de falência por mês, em comparação com os números referentes ao período anterior à entrada em vigor da lei”. Em termos percentuais, o estudo revelou que, além da redução dos índices apontados, de fato, houve um progresso elogiável no tocante à quantidade de empresas que conseguiram recuperar-se e saldar suas dívidas. Em relação aos resultados desses estudos, o coordenador da pesquisa e também economista, Aloísio Pessoa de Araújo, afirma que a queda desses índices se deve à fixação dos 40 (quarenta) salários mínimos como limite mínimo para a aceitação do título a ser reivindicado na ação falimentar. Para ele, esse mecanismo afastou da prática forense as ações cuja entrada ocorria apenas para a cobrança das dívidas, pois seus valores representavam títulos monetariamente ‘irrisórios’. Atenta-se para o fato de que, estatisticamente, com a minimização das demandas falimentares, presume-se o aumento da agilidade processual (recentemente calculada em aproximadamente seis meses) fato que indica a louvável observância do Princípio da Celeridade em seara empresarial. Isso revela um ponto satisfatório da mencionada lei, haja vista que o menor tempo de duração do processo indica uma menor onerosidade financeira despendida pelos possíveis insolventes empresariais em virtude do transcorrer da demanda judicial. Nesse cerne, conforme aduções do Serasa Experian de Falências e Recuperação6, o ano de 2014 foi caracterizado pelo menor índice de pedidos de falências desde a promulgação da Lei de Falências, tão comentada no presente trabalho. Isso revela, enfaticamente, o início da maturidade dessa lei na medida em que, com o passar desses anos, o adimplemento das relações creditícias vêm sendo observado ou, minimamente, solucionado por meio de mecanismos alternativos à judicialização. Ainda sob o enfoque de dados estatísticos, o escritor Miguel do Rosário7 aponta uma queda de, aproximadamente, 80% dos pedidos de falência entre os períodos de 1995/2002 à 2003/2013. Em suas explanações, há uma conotação político partidária, mas, sobretudo, faz-se necessário reconhecer que foram lapsos temporais de conjunturas socioeconomicamente distintas em âmbito internacional e, além disso, cujo tratamento dado às política públicas ocorreu de forma diferente, a exemplo da promulgação da referida Lei de Falências. É necessário salientar, com relação às demandas judicializadas, que a incidência de uma lide em sede de decretação de falência de uma empresa, embora vincule a noção imediata de sua sucumbência empresarial, não o é de verdade. Ao contrário, a decretação de falência ocorre somente depois de avaliadas as condições financeiras reais da empresa, bem como avaliadas as provas juntadas aos autos e, supostamente, reconhecido ou não o progresso da empre-

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sa, caso haja o projeto de recuperação da estrutura empresarial acusada. Entretanto, há de se considerar que essa redução é relativa. A diminuição de ações judicializadas não significa, apenas, que menos ações são propostas devido ao valor do título. Nesse ínterim, é necessário reconhecer que, se o índice de ações impetradas é menor, possivelmente a insolvência empresarial está sendo amortizada. 4.2 A efetividade da Nova Lei de Falências em sentido amplo Partindo-se desse pressuposto, pode-se dizer que a vigência da Nova Lei de Falências trouxe certa estabilidade à atividade empresária e, sobretudo, aos credores. Em sentido amplo, isso significa uma maior interatividade mercadológica, assim como um incremento no fluxo de capitais, tendo em vista a notória elevação da segurança jurídica e financeira acarretada por essa lei. Sua aplicabilidade viabilizou uma sustentabilidade ao fluxo dos recursos financeiros, como aponta Valente de Paiva (2005, p. 59): Esse é um avanço institucional importante, com impactos positivos no funcionamento da economia e que se traduzirão em processos de resolução de insolvências mais eficientes e num ambiente mais propício à realização de negócios em geral e ao mercado de crédito em particular. Ambos os aspectos são fundamentais na busca do desenvolvimento sustentável.

Observando dados referentes à evolução da razão crédito às pessoas jurídicas/ PIB no Brasil para o período de janeiro de 2004 a novembro de 2006 nota-se que de janeiro de 2004 a maio de 2005 a razão pouco variava, não passando de 19%. Com a nova lei, em dezembro de 2006, o volume de crédito a pessoas jurídicas atingiu o patamar recorde de 22,4% do PIB, passando de uma média de 18,55% do PIB no período dos 12 meses anteriores à implementação da nova lei para uma média de 20,5% do PIB, o que significa um aumento de aproximadamente 10,5%.

Outro aspecto interessante a ser dito é o da arrecadação tributária. Conforme afirmado em momentos anteriores, o estado prima pelo recebimento desses créditos e, diante do inadimplemento, não hesita em inscrever o crédito na dívida ativa. Isso ocorre, dentre outros motivos,

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Ainda em continuidade à esse fator de segurança jurídica e financeira, é possível aduzir o evidente estímulo que a lei citada representa aos investidores não empresários. Afinal, se há uma maior disposição por parte dos credores em manter-se em relações creditícias, mais elevada é a propensão dos agentes não empresários em se inserir em sociedades empresárias. Isso reflete, diretamente, na formação de mais sociedades empresárias (pessoas jurídicas), como também no crescimento das microempresas e das empresas de pequeno porte. Esse estímulo progressivo ao crescimento empresarial fomenta o mercado e as relações produtivas e demandas por bens e serviços, que passam a elevar o capital circulante. Os dados a seguir consolidam essa conclusão (FUNCHAL, Bruno. 2009):

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porque, em tese, o ente federado adquire receitas, em grande parte, decorrentes das tarifas oriundas da atividade empresarial. Assim, é fácil depreender que, se há um estímulo à atividade empresarial e creditícia, o estado tende a incrementar sua receita monetária e, teoricamente, destinar seus recursos aos projetos então visionados pelos seus gestores. Além dos fatores acima referidos, é salutar citar o crescimento das microempresas e empresas de pequeno porte, tendo em vista a aplicabilidade do Princípio da Desburocratização, então inerente à Nova Lei de Falências. Embora pesquisas apontem a durabilidade reduzida das microempresas e empresas de pequeno porte se comparada à intenção da Lei Complementar nº 1238, de 14 de dezembro de 2006, é certo que o incentivo ao crédito tem facilitado a maturidade de suas estruturas, e, logo, acarretado o rol de benfeitorias apresentados ao longo desse trabalho. É possível perceber, inclusive, uma correlação entre a viabilidade dessa lei e, em sentido longínquo, o apoio dado por meio de seus dispositivos aos empresários, tornando não só a economia aquecida, como também permite que seu fluxo de capitais favoreça atividades comerciais capitalistas. Em outras terminologias, isso significa um apoio à internacionalização de capitais, já que, porquanto empresas, cujo crescimento seja satisfatório, podem exercer relações internacionais de seus capitais e, com isso, efetivar a chamada globalização mercadológica. Sob uma ótica diversa, enfim, a Nova Lei de Falências permitiu uma solidez ao capital também por evitar, através de seus múltiplos mecanismos – sejam eles de natureza judicial ou extrajudicial -, a falência ou, em sendo impossível, decretá-la da forma menos dispendiosa para ambas as partes. Conforme aludido, tais fatos foram observados mediante a redução significativa dos índices de pedidos de falência e, por fim, de sua decretação.

Em vista ao discutido durante a análise da Nova Lei de Falências, tem-se que a evolução do sistema econômico requer uma evolução das leis e, consequentemente, dos ideais impostos em momentos históricos distintos. Posto isso, entende-se como vital a atualização normativa, ao passo em que também se conclui pela caracterização dessa lei como sendo uma norma de eficácia contida, ou seja, cujo alcance é pleno, porém passível de restrições, ou seja, uma regra cujo alcance deveria ser mais amplo e, então, abranger a totalidade dos insolventes (empresários e não empresários). Afinal, se pensarmos em sentido amplo, a economia do país depende tanto da atividade empresária competitiva, como também daqueles cuja proporção é diminuta. Em ambos os casos, são assegurados empregos, encargos e, assim, solidificam a economia de maneira análoga. Deduziu-se, diante do exposto, que há um estímulo para as relações comerciais entre credores

8  BRASÍLIA. Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006. Institui o Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte; altera dispositivos das Leis no8.212 e 8.213, ambas de 24 de julho de 1991, da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943, da Lei no 10.189, de 14 de fevereiro de 2001, da Lei Complementar no 63, de 11 de janeiro de 1990; e revoga as Leis no 9.317, de 5 de dezembro de 1996, e 9.841, de 5 de outubro de 1999. Brasília, 14 de dez. 2006.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

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e devedores que, por sua vez, incentivam as instituições financeiras a figurarem como fornecedoras de crédito. Na realidade, a análise da edição dessa lei pôde comprovar uma correlação entre a sua confecção em prol da atualização normativa e a aplicação prática de políticas públicas. Isso porque ambos os institutos possuíam a mesma finalidade de preservar a economia aquecida, o poder de compra e, em regra, a estabilidade monetária e social do país. Isto é, cada qual com o seu mecanismo vislumbram, em resumo, os mesmos objetivos. O estudo demonstrou, ainda, que embora a Lei de Falências seja excludente e, por isso, não seja de todo elogiável, apresenta um nível satisfatório de eficiência. Isso foi constatado por meio do seu êxito em âmbito judiciário e estatístico, na medida em que houve uma redução expressiva do número de empresas alvo de sentenças declaratórias de falência ao logo dos anos que sucederam a vigência dessa lei. Em síntese, é preciso reconhecer que apesar de suas falhas, entende-se pela eficiência dessa lei dada a capacidade, em sentido amplo, de preservar a empresa, o emprego e permitir a contínua arrecadação tributária decorrente da atividade empresarial. Como se sabe, o Estado depende socioeconomicamente desses pilares para poder manter a sua estrutura estável e, portanto, os desdobramentos de nossa exaustiva análise mostram-se favoráveis à Nova Lei de Falências.

REFERÊNCIAS BAETA. Zínia. Empresas não conseguem cancelar contratos com ‘trava bancária’. Associação de Advogados de São Paulo. São Paulo, 6 jul. 2010. Disponível em: <http://www.aasp.org.br/ aasp/imprensa/clipping/cli_noticia.asp?idnot=8018.> Acesso em: 22 maio 2015.

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ABSTRACT: This study has the scope to demonstrate the prospects surrounding the New Bankruptcy Law, and to present their practical applicability and, above all, exposing their actual level of effectiveness. Therefore, the following explanations will be exposed taking into consideration some constitutional nuances, in addition to historical and comparative negotiations between the Decree Law No. 7.661 / 45 and today’s legislation. Finally, they will be emphasized factors related to the actual effectiveness of the law in the study, which will be proven by analyzing the collected statistical data, and also will address the legal consequences arising from the use of this standard. Keywords: New bankruptcy law. Effectiveness. Businessman. Capital.

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THE NEW BANKRUPTCY LAW AND PRACTICE THEIR EFFECTIVENESS

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Recebido em 9 ago. 2015. Aceito em 11 set. 2015.

A INTERFERÊNCIA DO PODER EXECUTIVO NOS ORÇAMENTOS DO PODER JUDICIÁRIO E DO MINISTÉRIO PÚBLICO: SEPARAÇÃO DOS PODERES E IMPACTOS NO EXERCÍCIO DE SUAS FUNÇÕES INSTITUCIONAIS Júlio César Souza dos Santos*

RESUMO: O presente artigo aborda a temática da violação às autonomias financeira e orçamentária do Poder Judiciário e do Ministério Público pelo Poder Executivo, em claro rompimento do sistema de tripartição de poderes. Verifica-se que a ingerência praticada pelo Poder Executivo ocorre em duas vertentes, quais sejam, os cortes nas propostas orçamentárias e o repasse deficitário de duodécimos devidos aos órgãos em questão, a partir de condutas unilaterais. Com frequência, tais intervenções afetam não apenas a execução orçamentária, mas também terminam por violar princípios e garantias constitucionais que refletem na própria prestação estatal à coletividade. Palavras-chave: Orçamento. Interferência. Executivo. Judiciário. Ministério Público.

Ao deixar os anos sombrios vividos sob a égide da Constituição anterior, o constituinte originário de 1988 buscou a instituição do Estado Democrático de Direito, prevendo no seu segundo artigo a independência e harmonia entre os poderes da República na tentativa de evitar abusos decorrentes da concentração de poderes. Com a Revolução Francesa, o princípio da separação de poderes tornou-se um verdadeiro dogma constitucional, ao ponto de a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, em seu art. 16, afirmar não haver Constituição em uma sociedade que não assegurasse a

* Graduando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, cursando o 6º período.

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1 INTRODUÇÃO

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separação dos poderes, tendo em vista sua extrema relevância para a garantia dos direitos fundamentais. Atualmente, vinte e seis anos após a promulgação da Constituição Federal, parece que o grande desafio é perpetuar uma verdadeira atuação de cada um dos poderes dentro de sua parcela de competência constitucionalmente estabelecida, principalmente no tocante às questões orçamentária e financeira, fundamentais para o exercício independente de tais instituições. Sendo assim, violações neste sentido parecem ser decorrência direta da predominância do Poder Executivo no atual quadro da separação de poderes, o que se mostra como uma tônica no constitucionalismo pátrio, ocasionando evidente desequilíbrio entre os poderes e prejuízo à efetivação do Estado Democrático de Direito. Essa situação também é experimentada em outros ordenamentos jurídicos, especialmente entre os que adotam o presidencialismo como sistema de governo, a exemplo dos países latino-americanos, em sua maioria recém-egressos de regimes autoritários. Portanto, este artigo propõe-se a examinar a dinâmica constitucional e política referente à aprovação dos orçamentos e ao repasse de recursos ao Poder Judiciário e ao Ministério Público, considerando-se as possíveis formas de interferência pelo Poder Executivo. Neste contexto, buscar-se-á discutir as possíveis consequências deste fenômeno, tendo em vista o importante papel que tais instituições possuem na sociedade moderna e da necessária independência para o pleno desenvolvimento de suas atividades.

A convicção acerca da necessidade de organização das finanças pelos Estados nasceu através da Carta Magna inglesa de 1217, com a primeira descrição – ainda incipiente – dos orçamentos públicos. Com a evolução ocorrida na organização dos Estados, a ideia de sistematizar as receitas e as despesas da forma como conhecemos hoje se consolidou, segundo Jesse Burkhead, no ano de 1822 (1971, p. 4-5). Nesse contexto, o Chanceler do Erário britânico passou a apresentar ao Parlamento a condição das contas públicas, exigindo-se, a partir de então, a justificação de receitas e despesas que compunham o fundo geral, criado em 1787, com a finalidade de gerenciar as finanças do Governo (1971, p. 4-5). Assim sendo, marcado pelo intenso intervencionismo estatal e pelo avanço das técnicas orçamentárias, o início do século XX deixou em segundo plano a concepção clássica do orçamento, fundada no caráter meramente contábil, dando lugar a uma compreensão desta como importante ferramenta no planejamento orçamentário estatal. A partir de então, o orçamento adquiriu uma condição dinâmica e tornou-se “um instrumento mediante o qual o Estado atua sobre a economia”, como ressalta Giuliani Fonrouge (1991, p. 145). No Brasil, a matéria orçamentária foi inicialmente regulada através de leis ordinárias1,

1  A primeira lei orçamentária a ser aprovada no país foi formulada em 1927. Entretanto, devido a mecanismos deficientes de arrecadação a nível de províncias e conflitos com normas legais, a aplicação do referido diploma se deu a partir de 1931, com o Decreto Legislativo de 15/12/1930.

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2 ORÇAMENTO PÚBLICO: DA CARTA MAGNA AOS DIAS DE HOJE

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2  O art. 172 da referida Constituição determinava que “O ministro de Estado da Fazenda, havendo recebido dos outros ministros os orçamentos relativos às despesas de suas repartições, apresentará na Câmara dos Deputados anualmente, logo que esta estiver reunida, um balanço geral da receita e despesa do Tesouro Nacional do ano antecedente, e igualmente o orçamento geral de todas as despesas públicas do ano futuro e da importância de todas as contribuições e rendas públicas”. 3  BRASIL. Decreto n. 4536, de 28 de janeiro de 1922. Organizou o Código de Contabilidade da União. Diário Oficial da União, Brasília, p. 2397, 01/02/1922, seção 1. 4  BRASIL. Decreto-Lei n. 579, de 30 de julho de 1938. Organiza o Departamento Administrativo do Serviço Público, reorganiza as Comissões de Eficiência dos Ministérios e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, p. 15168, 30/07/1938, Seção 1. 5  De acordo com Ricardo Lobo Torres, a tripartição do planejamento orçamentário, adotada pela Constituição brasileira, denota a influência recebida na Constituição da Alemanha, que prevê o plano plurianual (eine mehrjährige Finanzplanung – art. 109, 3), o plano orçamentário (Haushaltsplan – art. 110) e a lei orçamentária (Haushaltsgesetz – art. 110) (2000, p. 60).

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recebendo pouco tratamento nas Constituições de 1824 e 1891. A Constituição de 1824 atribuía ao Poder Executivo a responsabilidade pela elaboração do orçamento, que seria encaminhado à Assembleia Geral para aprovação2. Na Constituição republicana de 1891, a elaboração do orçamento passou a ser privativa do Congresso Nacional, embora no início do ano de 1922 tenha sido aprovado o Código de Contabilidade da União (Decreto nº 4536/19223), que formalizou a iniciativa orçamentária do Poder Executivo. A Constituição de 1934 dedicou uma seção exclusivamente ao tema orçamentário, atribuindo a competência para a elaboração da proposta orçamentária ao Presidente da República, a qual deveria ser enviada à Câmara dos Deputados para votação. Com a instituição do Estado Novo, a Constituição de 1937 previu, em seu art. 67, a criação de um departamento administrativo junto à Presidência da República destinado a aperfeiçoar a Administração Pública e organizar a proposta orçamentária. Tal órgão público nunca chegou a ser instalado, mas o Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP) foi criado através do Decreto-Lei nº 5794, de 30/07/1938, dando início à modernização das técnicas orçamentárias no Brasil, de forma que o orçamento passou a ter o caráter de planejamento governamental. Após a conclusão pelo DASP, a proposta orçamentária era encaminhada diretamente ao Presidente da República para aprovação. Isto posto, através da redemocratização, ocorrida por meio da Constituição de 1946, o orçamento voltou a ser do tipo misto, com a elaboração do projeto pelo Executivo e posterior encaminhamento para discussão e aprovação. A Constituição de 1967, profundamente marcada pelos ideais ditatoriais, retirou do Poder Legislativo diversas prerrogativas orçamentárias, o qual passou a ter o papel meramente homologador do projeto oriundo do Executivo (GONTIJO, 2004, p. de internet). Através da Constituição Federal de 1988, ao Poder Legislativo foi devolvida, a atribuição de discutir o orçamento e propor emendas, além da possibilidade de dispor de diversos assuntos relativos ao tema, a exemplo de operações de crédito e dívida pública (Constituição Federal, art. 48, II). Ao Poder Executivo coube, então, a iniciativa das leis orçamentárias na organização das finanças públicas. Atualmente, o Brasil adota o critério de tripartição orçamentária5, haja vista a existência de três leis que cuidam da administração das finanças do país: o plano plurianual (PPA), a lei de diretrizes orçamentárias (LDO) e a lei orçamentária anual (LOA), que se vinculam de modo

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a estabelecer uma política de programação da atividade financeira do Estado. Assim, o PPA é o instrumento orientador dos objetivos da República, de iniciativa do chefe do Poder Executivo, que “estabelecerá, de forma regionalizada, as diretrizes, objetivos e metas da administração pública federal para as despesas de capital e outras delas decorrentes e para as relativas aos programas de duração continuada” (Constituição Federal , art. 165, III, § 1º). Possui vigência de quatro anos, cuja execução inicia-se no segundo exercício financeiro do mandato do chefe do Executivo e finaliza-se no primeiro exercício financeiro do mandato subsequente. Nesta lógica, a LDO, por sua vez, possui como principal objetivo orientar a elaboração da LOA, sintonizando-a com os objetivos e as metas traçadas no PPA, de forma a equalizar todas as peças orçamentárias. Assim sendo, também terá vigência anual e será de iniciativa do chefe do Poder Executivo, ao passo que disporá sobre as alterações na legislação tributária e outras matérias referentes a aplicações financeiras (Constituição Federal, art. 165, III, § 2º). Por fim, a LOA, assim como as duas anteriores, é de iniciativa do Presidente da República e tem a finalidade de estimar as receitas e fixar a realização de despesas, de forma a evidenciar a política econômico-financeira e o programa de trabalho do governo durante o ano (Lei nº 4320/64, art. 2º). Embora seja reconhecida a importância dos dois primeiros diplomas, é na aprovação e na execução da lei orçamentária anual que estará o foco deste estudo, tendo em vista o seu caráter de orçamento por excelência, através da qual ocorre a previsão de despesas e a efetiva realização dos gastos nela autorizados.

A tripartição ou separação dos poderes6 tem como primeira base teórica a obra Política, escrita na Antiguidade grega por Aristóteles. Em seu estudo, o filósofo apontou a existência de três funções estatais distintas a serem exercidas pelo soberano: a função de editar normas gerais a serem seguidas por todos, a aplicação destas normas aos casos concretos e a função de julgar lides decorrentes desta execução. Entretanto, em virtude do momento histórico, Aristóteles apenas se deteve a identificar o exercício de três funções estatais distintas, já que atribuía a titularidade destas funções a uma única pessoa, o soberano. Posteriormente, John Locke, no Segundo Tratado do Governo Civil, também reconheceu a existência de três funções estatais distintas – executiva, federativa e legislativa – a partir de sua teoria do contrato social, embora demonstrasse certa predominância do Poder Legislativo no exercício do poder.

6  Conforme José Afonso da Silva, este princípio não possui a mesma rigidez de outrora, pois devido a ampliação das funções estatais impôs uma nova visão da teoria, permitindo novas formas de relacionamento entre os poderes. Atualmente, prefere-se falar em colaboração de poderes, quando em sistemas parlamentaristas, ou em independência orgânica e harmonia dos poderes, quando em sistemas presidencialistas. (2011, p. 109).

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3 A CONFORMAÇÃO ATUAL DO MODELO DE SEPARAÇÃO DOS PODERES E A AUTONOMIA DO PODER JUDICIÁRIO E DO MINISTÉRIO PÚBLICO

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7  O princípio da separação ou divisão dos poderes esteve sempre presente nas Constituições brasileiras, ainda que formalmente, a exemplo das Constituições de 1937 e de 1967. À exceção da Constituição do Império, que adotara a teoria quadripartita de poderes, segundo o formulado por Benjamin Constant, as demais Constituições adotaram a teoria tripartite de Montesquieu. 8  De acordo com Canotilho e Moreira:”Um sistema de governo composto por uma pluralidade de órgãos requer necessariamente que o relacionamento entre os vários centros do poder seja pautado por normas de lealdade constitucional (Verfassungstreue, na terminologia alemã). A lealdade institucional compreende duas vertentes, uma positiva, outra negativa. A primeira consiste em que os diversos órgãos do poder devem cooperar na medida necessária para realizar os objectivos constitucionais e para permitir o funcionamento do sistema com o mínimo de atritos possíveis. A segunda determina que os titulares dos órgãos do poder devem respeitar-se mutuamente e renunciar a práticas de guerrilha institucional, de abuso de poder, de retaliação gratuita ou de desconsideração grosseira. Na verdade, nenhuma cooperação constitucional será possível sem uma deontologia política, fundada no respeito das pessoas e das instituições e num apurado sentido da responsabilidade do Estado (statesmanship)” (1991, p. 71).

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Por fim, no século XVIII, a separação de poderes proposta por Aristóteles foi aprimorada pelo aristocrata Charles de Montesquieu a partir de sua visão do Estado Liberal burguês, que culminou com a obra O espírito das leis. Em sua obra, Montesquieu, partindo do ideal proposto pelo filósofo grego, propôs que as três funções estatais típicas seriam realizadas por três órgãos distintos, autônomos e independentes entre si. Entretanto, cada órgão exercia exclusivamente o que chamou de funções típicas, sem a possibilidade de interpenetração entre os poderes. Neste viés, a divisão entre os poderes apresenta-se, na verdade, como um processo técnico de limitação de poder (RUSSOMANO, 1976, p. 42), fundamental na tentativa de minimizar as consequências da concentração de poder nas mãos de um único governante, principalmente em sistemas presidencialistas de governo, marcados pela fusão das funções de chefe de Estado e de chefe de governo em uma só pessoa Princípio fundamental do ordenamento jurídico brasileiro7, a separação de poderes está expressa na Constituição Federal, em seu art. 2º, segundo o qual “são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. De acordo com José Afonso da Silva (2011, p. 110), tal previsão trata de duas qualidades relativas e inter-relacionadas, embora distintas. A independência dos poderes significa que a investidura e a permanência de pessoas em órgãos do governo não estão sujeitas a subjetivismos ou vontades dos outros, de modo que, no exercício de atividades típicas, o poder não necessita de consulta ou autorização para exercê-los e, ainda, que cada poder é livre para na organização de seus respectivos serviços, estando sujeitos apenas às disposições constitucionais e legais. Desta forma, a harmonia entre os poderes é determinada pelas normas de cooperação e cortesia no trato recíproco e no respeito às prerrogativas e faculdades asseguradas a todos os poderes8. Por conseguinte, esta harmonia consagra o controle concomitante entre os três poderes, de maneira que, ao mesmo tempo, um poder controle os demais e por eles seja controlado. Dessa forma, ao assegurar a independência e harmonia entre os poderes, o texto constitucional consagrou, respectivamente, as teorias da separação de poderes e a teoria dos freios e contrapesos (MORAES, 2005, p. 137). Como consequência desta divisão funcional, o Judiciário e o Ministério Público foram dotados, através da Constituição Federal, de mecanismos que buscam assegurar o pleno desenvolvimento de suas atividades, de maneira a tutelar as próprias instituições de ingerências

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Autonomia financeira é a capacidade de elaboração da proposta orçamentária e de gestão e aplicação dos recursos destinados a prover as atividades e serviços do órgão titular da dotação. Essa autonomia pressupõe a existência de dotações que possam ser livremente administradas, aplicadas e remanejadas pela unidade orçamentária a que foram destinadas. Tal autonomia é inerente aos órgãos funcionalmente independentes, como são o Ministério Público e os Tribunais de Contas, os quais

9  Trata-se de verdadeira faculdade, tendo em vista que os art. 99, § 3º, e 127, § 4º, determinam que se estes não encaminharem as respectivas propostas orçamentárias dentro do prazo estabelecido na LDO, o Poder Executivo considerará, para fins de consolidação da proposta orçamentária anual, os valores aprovados na lei orçamentária vigente, ajustados de acordo com os limites estipulados na LDO. 10  A Emenda Constitucional nº 45/2004 alterou o texto constitucional, conferindo aos parágrafos do art. 127 um tratamento semelhante ao art. 99 (autonomia financeira do Poder Judiciário).

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políticas. Neste sentido, a autonomia apresenta-se como decorrência da separação dos poderes e desdobra-se em várias dimensões, como a autonomia administrativa, orçamentária e financeira. Nesta lógica, a autonomia administrativa consiste na capacidade de autogestão, autoadministração ou auto-organização asseguradas ao Poder Judiciário e ao Ministério Público através dos arts. 99, caput, e 127, § 2º, da Constituição Federal, respectivamente. À vista disso, podem propor a criação e extinção de seus cargos ao Legislativo, assim como provê-los, expedir portarias ou praticar os mais diversos atos administrativos visando o perfeito e eficaz funcionamento organizacional. De outra forma, embora a doutrina não faça distinção entre os termos autonomia orçamentária e autonomia financeira, ou ainda trate o tema de maneiras distintas, não se referem a institutos idênticos. A autonomia orçamentária é a faculdade9 na elaboração das propostas orçamentárias, que devem atentar aos limites estipulados pela LDO e observar as regras constantes na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Desse modo, cabe aos órgãos gestores do orçamento decidirem sobre a conveniência na distribuição de rubricas, como a quantidade de recursos destinados a investimentos ou gastos com pessoal, obedecidos os limites legais. De outro lado, a autonomia financeira é a efetiva gestão e realização de despesas decorrentes do repasse mensal de duodécimos, na forma da Constituição. Ainda que o orçamento esteja aprovado e as parcelas duodecimais sejam repassadas integralmente, é facultado ao órgão realizar as despesas, ou seja, os órgãos estão autorizados a realizar determinadas ações previstas no orçamento, mas não são obrigados a realizá-las (TORRES, 2000, p. 19). Em decorrência do princípio da separação dos poderes, elevado à categoria de cláusula pétrea, e da essência do Estado Democrático de Direito, a Constituição Federal garantiu ao Poder Judiciário, através do seu art. 99, caput, e § 1º, autonomia administrativa e financeira, determinando que a elaboração das propostas orçamentárias pelos tribunais observe os limites estipulados na LDO. Embora não haja previsão expressa à autonomia financeira em relação ao Ministério Público, detendo-se o art. 127, §2º, da Constituição Federal à autonomia funcional e administrativa, é inequívoca a autonomia do Ministério Público para elaborar sua proposta orçamentária e administrar livremente os seus recursos.10 Neste sentido, preleciona Hugo Nigro Mazzilli (1989, p. 61):

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não poderiam realizar plenamente as suas funções se ficassem na dependência financeira de outro órgão controlador de suas dotações. (...) O Ministério Público, entretanto, mais do que isso, por força da atual Constituição, elaborará sua proposta orçamentária dentro dos limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias (CF, art. 127, § 3º), recebendo, em duodécimos, os recursos correspondentes às dotações orçamentárias, inclusive créditos suplementares e especiais (CF, art. 168).

Por fim, o Ministro Dias Toffoli, por ocasião do julgamento da ADI 4.356/CE, adverte que, a despeito de o Poder Constituinte não ter dado ao dispositivo redação semelhante àquela que assegura ao Poder Judiciário a necessária participação na elaboração da lei de diretrizes orçamentárias, a autonomia orçamentária e financeira do Ministério Público não se esgota com a mera elaboração da proposta orçamentária, mas é consagrada na execução concreta do orçamento e na utilização das dotações postas em seu favor.11

4 A INTERFERÊNCIA FINANCEIRA E ORÇAMENTÁRIA DO PODER EXECUTIVO NOS ORÇAMENTOS DO JUDICIÁRIO E DO MINISTÉRIO PÚBLICO Não obstante a existência de prerrogativas constitucionais na busca de garantir os meios para assegurar a livre gestão e atuação dos órgãos em questão, hodiernamente é cada vez mais frequente a ocorrência de interferências orçamentárias e financeiras praticadas pelo Poder Executivo, gestor do orçamento público. Neste cenário, tais intervenções tornam frágeis as relações entre as instituições democráticas e a própria prestação dos serviços públicos à coletividade. De modo geral, as violações à autonomia financeira e orçamentária do Poder Judiciário e do Ministério Público ocorrem de duas formas: através de cortes nos projetos de lei orçamentária anteriormente à apreciação pelo Poder Legislativo, e do repasse insuficiente dos recursos consignados na LOA. Ambos os atos são praticados pelo Poder Executivo e podem ser observados a nível nacional e estadual.

A primeira forma de ingerência do Poder Executivo ocorre na fase de elaboração do orçamento. Incumbe aos Tribunais e a órgãos colegiados do Ministério Público a aprovação das propostas do Poder Judiciário e do Ministério Público, respectivamente, que serão enviadas ao Executivo para consolidação, fase anterior à apreciação a ser realizada pelo Poder Legislativo. Isto posto, o art. 84, XXIII, da Constituição Federal, dispõe que compete privativamente ao Presidente da República o envio das leis orçamentárias ao Congresso Nacional, após consolidar as propostas enviadas pelos demais poderes e pelo Ministério Público. Estando a proposta de acordo com os referidos diplomas, o único poder legitimado a realizar ajustes nas 11  SUPREMO TRIBUNAL FEDRAL. ADI 4356/CE. Pleno. Rel. Min. Dias Toffoli. Julgado em 09/02/2011. DJ 11/05/2011.

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4.1 Cortes unilaterais nos projetos de lei orçamentária anual

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Há muito tempo, o Supremo fixou competir ao Poder Executivo a consolidação da proposta orçamentária, observando, conforme apresentada, a alusiva ao Judiciário. Cumpre ao Legislativo, em fase subsequente, apreciá-lo. É incompreensível que o Executivo, mesmo diante de pronunciamentos do órgão máximo da Justiça brasileira, insita, a partir de política governamental distorcida, porque conflitante com a Constituição Federal, em certa óptica e invada campo no qual o Judiciário goza de

12  SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.MS 22.685/AL . Decisão monocrática. Rel. Min. Celso de Mello. Julgado em 19/02/2002. DJ 26/02/2002. 13  De acordo com Eduardo Ritt: “não pode o legislador abolir a Instituição ou mesmo reformá-la, retirando garantias e prerrogativas, nem mesmo a sua independência e autonomia, eis que isto representaria um retrocesso social, vedado pelo referido princípio, sendo atacável por ação direta de inconstitucionalidade” (2002, p. 185).

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propostas orçamentárias é o Legislativo, conforme interpretação do art. 166 da Constituição Federal. Neste sentido, há mais de uma década o STF assegura que o Poder Executivo não dispõe de competência institucional para realizar cortes unilaterais nas propostas encaminhadas pelos órgãos em questão, tendo em vista que a incumbência para a apreciação final do projeto de LOA é do Poder Legislativo.12 Cabe ao Poder Executivo, pois, realizar uma primeira análise objetiva e proceder a ajustes financeiros única e exclusivamente na ocorrência de desacordo destas propostas com as diretrizes do PPA, da LDO ou da LRF. Não sendo o caso, deve o Executivo incorporá-los ao projeto de lei orçamentária da forma (e nos mesmos termos) em que aprovados. Por consequência, o único responsável por alterações orçamentárias nas propostas citadas é o Poder Legislativo, na fase de discussão, estudo e aprovação, na forma do art. 166 da Constituição Federal, não havendo discricionariedade na avaliação sobre inclusão, retirada ou modificação de quaisquer dotações orçamentárias. A inovação constitucional de independência financeira de tais órgãos, a partir de 1988, apresenta-se como garantia instrumental, assecuratória de autonomia. Reveste-se, portanto, de caráter tutelar, visando evitar um estado de subordinação financeira apto a comprometer a própria independência político-jurídica do Poder Judiciário e do Ministério Público. Nesta lógica, o corte unilateral realizado nos moldes em questão ocasiona verdadeira subordinação orçamentária de instituições que necessitam de independência e autonomia para realizar suas funções constitucionais de maneira plena, sob pena de possível retrocesso social13. Outrossim, pode-se concluir que tal prática vicia o devido processo legislativo, tendo em vista que desvirtua-o a partir de uma atividade legislativa atípica pelo Presidente da República. Acreditar na possibilidade de o Executivo, em não concordando, enviar ao Congresso Nacional propostas diversas das encaminhadas pelos demais órgãos para fins de consolidação acabaria por colocá-lo em posição de prevalência sobre os demais poderes e o Ministério Público, negando o modelo orgânico delineado na Constituição Federal. Nesta perspectiva, a partir de discussões em ações semelhantes propostas desde a década de 90, o STF consolidou o seu entendimento em consonância com o exposto acima. Desta forma, aduz a suprema corte que:

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No âmbito da União federal, os cortes realizados pela Presidência da República nos orçamentos do Judiciário Federal e do Ministério Público da União vêm se repetindo nos anos de 2012, 2013, 2014 e 2015. Em todos esses anos, o STF decidiu, em caráter liminar, pelo envio da proposta originalmente apresentada ao Poder Executivo. Entretanto, a prática adotada pelo Poder Executivo diante dos provimentos jurisdicionais em seu desfavor é remeter as rubricas referentes aos valores suprimidos das propostas originais na forma de anexos ao projeto de lei orçamentária. O envio dos anexos como emendas ao orçamento – e não como parte deste – faz surgir a necessidade de demonstração das fontes de custeio pelos titulares das propostas, o que leva à rejeição das propostas destacadas e a inocuidade do provimento jurisdicional. No âmbito dos estados, também é comum esta prática, a exemplo do ocorrido nos estados do Rio Grande do Norte, Rondônia, Piauí, Rio Grande do Sul, dentre outros. A título de exemplo, durante a elaboração da proposta orçamentária do estado de Tocantins, no ano de 2008, a Secretaria de Planejamento determinou o corte de aproximadamente 50% do valor proposto pelo Judiciário, cerceando, inclusive, a sua participação na formulação da LDO do referido ano. Em decisão convergente com julgados anteriores, o STF, através de decisão liminar, determinou o imediato aditamento da proposta orçamentária pelo Governador do estado e a suspensão do processo legislativo atinente ao projeto de lei orçamentária até que a proposta fosse enviada em sua integralidade.15 No entanto, o que se pode perceber é que, na maioria das vezes, a tensão existente entre o Poder Executivo, de um lado, e o Poder Judiciário, o Ministério Público e, mais recentemente, a Defensoria Pública16, de outro, reside em discussões relativas a gastos de pessoal, em geral de valores elevados e permanentes. Uma vez concedidos tais aumentos ou reajustes, as fontes pagadoras ficam permanentemente vinculadas a tais gastos, haja vista a previsão constitucional de irredutibilidade dos vencimentos e subsídios dos ocupantes de cargo ou emprego públicos (Constituição Federal, art. 37, XV; art. 95, III e art. 128, § 5º, I, c). Por conseguinte, embora não seja possível ao Poder Executivo reduzir unilateralmente os projetos de lei orçamentária do Judiciário e do Ministério Público, sob pena de violação à separação dos poderes, possui o dever alertar o Legislativo no sentido do possível perigo à integridade das contas públicas em decorrência da aprovação irresponsável de tais despesas, prin-

14  SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.MS 28.405/AL . Decisão monocrática. Rel. Min. Marco Aurélio. Julgado em 15/11/2009. DJ 24/11/2009. 15

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. AO 1.491/TO. Decisão monocrática. Rel. Min. Eros Grau. Julgado em 28/11/2007. DJ 04/12/2007.

16  Através da Emenda Constitucional nº 74, de 6 de agosto de 2013, a autonomia funcional e administrativa, assim como a iniciativa de propostas orçamentárias, antes exclusivas das Defensorias Públicas do Estados, foram estendidas às Defensorias Públicas da União e do Distrito Federal.

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autonomia. Constata-se, realmente, a quadra vivenciada. Impõe-se a correção de rumos. Impões-se o respeito às regras estabelecidas por aqueles que personificam o Estado/gênero.14

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cipalmente quando os limites dos gastos de pessoal previstos na LRF estão próximos de serem atingidos. Desta forma, torna-se fundamental a colaboração e o diálogo entre os poderes da República para o alcance de um denominador pautado na proporcionalidade e na razoabilidade, sempre em obediência aos princípios norteadores da Administração Pública. 4.2 Repasse deficitário de duodécimos

descompasso entre as políticas planejadas e as possibilidades concretas diante de condições inesperadas. Com frequência, as previsões constantes nas peças orçamentárias não conseguem captar todas as condições vigentes à época da execução, impossibilitando o perfeito ajuste entre o previsto e a realidade fática. Desta forma, a flexibilidade visa o cumprimento da programação em sua essência, modificando pormenores e reajustando as previsões e programações orçamentárias durante a sua execução, sem que haja, obviamente, desrespeito ao princípio da legalidade e do controle parlamentar em matéria financeira (SILVA, 1973, p. 155). Por conseguinte, uma série de motivos pode dar causa à necessidade de adaptação orçamentária, utilizando-se do referido princípio: alterações no cenário macroeconômico, como

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Ao lado da iniciativa para apresentação da proposta orçamentária, cabe ao Poder Executivo a titularidade da execução orçamentária, na qual há o implemento dos atos que visam operacionalizar e cumprir os programas previstos nas leis orçamentárias, voltados para a satisfação das necessidades coletivas e à consecução dos fins do Estado (DALLAVERDE, 2013, p. 114-115) Destarte, situação ainda mais grave que o corte unilateral da proposta orçamentária ocorre na fase de execução orçamentária e consiste no repasse parcial dos duodécimos (Constituição Federal, art. 168) devidos ao Judiciário e ao Ministério Público. Os duodécimos possuem previsão constitucional e dizem respeito às parcelas correspondentes às dotações orçamentárias destinadas aos órgãos dos poderes Legislativo e Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública, os quais devem ser-lhes entregues até o dia 20 de cada mês pelo Executivo. Logo, não se trata de faculdade, mas de direito líquido e certo, sendo a sua transferência em desconformidade com os valores constantes na LOA caracterizadora de ilegalidade passiva por quem a der causa, em regra. Assim sendo, o art. 168 da Constituição Federal é “garantia básica do autogoverno e, pois, da independência do Poder Judiciário e do Ministério Público”, conforme leciona Alexandre de Moraes (2005, p. 1940). Sendo assim, a partir da aplicação do princípio da flexibilidade orçamentária, a execução do orçamento deve levar em consideração condições não previstas quando da elaboração e aprovação das leis orçamentárias. Entretanto, não deve a flexibilidade ser utilizada para desvirtuar ou descaracterizar o orçamento aprovado pelo Poder Legislativo, mas apenas para que sejam realizadas as adaptações necessárias aos fins propostos (DALLAVERDE, 2013, p. 116). É bem verdade que a necessidade de flexibilização do orçamento justifica-se pela antecedência entre o período de formulação do orçamento e a sua efetiva execução, o que pode gerar um

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17  O art. 9º, § 2º da LRF enumera as despesas não passíveis de limitação: “Não serão objeto de limitação as despesas que constituam obrigações constitucionais e legais do ente, inclusive aquelas destinadas ao pagamento do serviço da dívida, e as ressalvadas pela lei de diretrizes orçamentárias.” 18  SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI 2.238. Pleno. Rel. Min. Carlos Ayres Britto. Julgado em 09/08/2008. DJe 12/09/2008. 19

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI 2.238/DF. Pleno. Rel. Min. Ilmar Galvão. Julgado em 22/02/2001. DJ 07/03/2001.

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a queda de arrecadação, mudanças de conjunturas fiscais, econômicas ou financeiras; compatibilização entre os objetivos propostos pelas leis orçamentárias; e alterações inevitáveis das conjunturas imediatas de execução dos programas, a exemplo de atrasos em obras, procedimentos licitatórios, questões ambientais, dentre outras (FARIA, 2009, p. 265). Neste viés, o contingenciamento – ou limitação de empenho –, previsto no art. 9º da LRF, é o mecanismo de flexibilidade orçamentária utilizado pelo Poder Executivo nos casos de repasse parcial de duodécimos diante de impossibilidade de execução de despesas em virtude da frustração da arrecadação de receitas inicialmente previstas na LOA.17 Assim sendo, o mecanismo em questão era utilizado indistintamente pelo Poder Executivo segundo interpretação literal de dispositivos da LRF, em claro rompimento do modelo constitucional de cooperação entre os poderes. Como consequência, o STF, nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 2.23818, suspendeu a eficácia do art. 9º, § 3º, da LRF, o qual permitia ao Poder Executivo limitar os valores financeiros a serem repassados aos Poderes Judiciário e Legislativo e ao Ministério Público segundo os critérios estabelecidos na LDO, quando estes não promovessem a limitação no prazo de trinta dias, sob o argumento de violação à separação dos poderes19. Portanto, não é possível ao Poder Executivo promover o contingenciamento direto dos valores duodecimais devidos aos demais poderes. No entanto, em que pese a impossibilidade de cortes unilaterais pelo Poder Executivo, o art. 9º da LRF cria verdadeira obrigação a todos os Poderes da União, Estados, Distrito Federal e Municípios a promoverem, diante de situações críticas, por ato próprio e nos valores necessários, limitação de empenho e movimentação financeira, obedecendo o disposto na LDO. Fica evidenciado, portanto, que os orçamentos de todos os poderes e de todos os entes federativos devem se conformar a eventuais frustrações de receitas, não sendo razoável o sacrifício financeiro unicamente pelo Poder Executivo. À vista disso, havendo alterações no cenário fiscal, financeiro e orçamentário que impliquem na redução das receitas estatais, torna-se necessária a atuação conjunta de todos os poderes. Nessa perspectiva, torna-se fundamental a realização de limitações de empenho e movimentação financeira de forma proporcional à participação no total das despesas fixadas, ainda que não haja previsão na LDO, em obediência aos princípios da proporcionalidade, da razoabilidade e da separação dos poderes. Nesse sentido, caso o Poder Judiciário e o Ministério Público não procedam à limitação, e tendo em vista a impossibilidade de limitação unilateral pelo Poder Executivo, apenas é possível, diante deste caso, falar em “responsabilização administrativa das autoridades competentes diante da omissão caracterizada” (DALLAVERDE, 2013, p. 140), cabendo ao Poder

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Legislativo as tratativas no sentido de estabelecer um diálogo para que o contingenciamento seja aprovado de modo a minimizar as consequências de tal flexibilização. Cumpre ressaltar que o repasse deficitário dos duodécimos é situação bastante comum no âmbito dos estados-membros. O STF, em reiteradas decisões, confirma o direito ao repasse integral dos duodécimos por parte do Poder Executivo, ainda que sob o argumento de dificuldades financeiras, quando os cortes se dão unilateralmente e sem consulta aos demais órgãos. Neste sentido, em sede do Mandado de Segurança 31.761/RN, foi concedida liminar determinando o imediato repasse integral dos duodécimos correspondentes às dotações orçamentárias destinadas, na forma da LOA, ao Poder Judiciário estadual.20 Nesta lógica, em evolução legislativa sobre o tema, as recentes Leis de Diretrizes Orçamentárias da União21 e dos Estados22 trazem dispositivos que conferem maior segurança jurídica à execução das leis orçamentárias. Diante disto, submetem as despesas ao contingenciamento apenas diante da ocorrência de certas condições, em regra extraordinárias, além de determinar a proporcionalidade na participação de cada um dos poderes nas limitações de empenho. Inclusive, a LDO da União referente ao ano de 2015, em interessante disposição, exclui da limitação de empenho as atividades desenvolvidas pelos Poderes Legislativo e Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública constantes no projeto de LOA de 2015, assim como os custeios com recursos de doações e convênios. Excepcionalmente, haverá limitação proporcional de tais valores caso haja a frustração da receita primária líquida de transferências constitucionais e legais previstas na LOA. Por fim, é necessário destacar que as atuações comissivas e omissivas que atentem contra o livre exercício dos poderes e do Ministério Público caracterizam crime de responsabilidade pelos chefes do Poder Executivo, conforme o art. 85, II, da Constituição Federal e do art. 4º, II, e 71 da Lei nº 1.079/1950.

Evidentemente, a questão da independência orçamentária entre os poderes não se restringe ao âmbito interno dos Tribunais e do Ministério Público, atingindo, de maneira mais precisa e peculiar, o cidadão. Os cortes orçamentários realizados pelo Poder Executivo – muitas vezes chamados de “ajustes” –, sejam eles no âmbito da consolidação do projeto de lei orçamentária anual, sejam na diminuição dos repasses dos duodécimos, exigirá dos gestores flexibilização das despesas para adequar o montante efetivamente recebido ao previsto no orçamento. Com grande frequência, é

20  SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. MS 31671/RN. Rel. Min. Ricardo Lewandowski. Julgado em 23/08/2013. DJ 26/08/2013. 21

Leis nº 12.919/2013 (LDO da União referente ao ano de 2014) e nº 13.080/2015 (LDO da União referente ao ano de 2015).

22  Leis Estaduais nº 9.868/2014 (Rio Grande do Norte); 10.233/2014 (Mato Grosso); 15.870/2015 (São Paulo); 14.568/2014 (Rio Grande do Sul), dentre outras.

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5 IMPACTOS DO REPASSE FINANCEIRO DEFICITÁRIO NO EXERCÍCIO DAS FUNÇÕES INSTITUCIONAIS DO JUDICIÁRIO E DO MINISTÉRIO PÚBLICO

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23  O princípio da razoável duração do processo foi introduzido na Constituição Federal através da Emenda Constitucional nº 45/2004, que acrescentou ao art. 5º o inciso LXXVIII: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.

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dada preferência ao pagamento de pessoal, na tentativa de evitar atrasos salariais que ocasionariam greves e tornariam ainda mais difícil a prestação dos serviços públicos. Como consequência, as funções exercidas pelo Poder Judiciário e pelo Ministério Público restam prejudicadas de sobremaneira. Primeiramente, valores então constantes na proposta orçamentária elaborada pelos órgãos em questão visando ampliação de sedes, contratação de pessoal ou criação de varas e promotorias/procuradorias, muitas vezes são excluídos das respectivas propostas, ferindo, com frequência, direitos fundamentais garantidos constitucionalmente. A ideia constitucional da inafastabilidade da jurisdição pressupõe não apenas o direito à prestação jurisdicional, mas, principalmente, que esta prestação se dê de forma eficiente. Deste modo, o acesso à justiça – não apenas ao Poder Judiciário, mas a todas as funções essenciais à justiça – exige a ausência de obstáculos, quer estruturais ou geográficos, o que implica na necessidade de ampliação estrutural de acordo com as demandas sociais para que o acesso a estes serviços públicos não exija sacrifícios; quer financeiros, pela necessidade de atuação efetiva na defesa dos direitos individuais e coletivos pela Defensoria Pública e pelo Ministério Público, respectivamente. Sem dúvida, a razoável duração do processo23 poderá ser influenciada por esta diminuição orçamentária, porquanto ferirá o planejamento proposto pelos tribunais e prejudicará os projetos dos serviços públicos fundamentais à efetivação do acesso à justiça. A simples garantia formal do dever do Estado de prestar a Justiça não é suficiente, pois é necessária uma prestação rápida, efetiva e adequada (DIDIER, 2012, p. 98-99). O constante processo de modernização das atividades relacionadas à justiça exige, sem dúvidas, grandes aportes financeiros. Informatização de milhões de processos, expansão no fornecimento de serviços para o alcance das populações distantes dos grandes centros e ampliação das estruturas organizacionais, são apenas alguns exemplos de medidas tomadas na tentativa de tornar mais célere as atividades jurisdicionais. Tais projetos, no entanto, ainda arrastam-se há anos pelo não suprimento adequado de recursos financeiros, muitas vezes em virtude de cortes arbitrários no orçamento das instituições em questão. Portanto, no exercício de suas atividades, os referidos órgãos geram despesas a partir de inúmeros custos inerentes ao exercício de suas funções, dada a necessidade de servidores, materiais de consumo e permanentes obras, edificações, modernização etc. Cabe ao Estado, portanto, providenciar os recursos necessários para o eficaz desempenho de suas atividades, o que é fundamental para a quantidade e a qualidade do serviço a ser prestado (CONTI, 2006, p. 128). Desta forma, os serviços relacionados às atividades em comento produzem um bem que beneficia a todos, sem distinção, pois a prestação efetiva do serviço leva ao resultado “sociedade com mais justiça”, cujo benefício é auferido por todos, em regra (CONTI, 2006, p.

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236). Estes serviços devem ser necessariamente prestados pelo Estado, dada a sua natureza de atividade pública, e, portanto, devem ter a sua disposição o aporte financeiro necessário para a efetivação de suas atividades. Apresentar-se-á prejudicada a prestação destes serviços quando a programação realizada não se coadunar com as atividades efetivadas, gerando, assim, prejuízos à satisfação das necessidades públicas.

Em decorrência de seu papel centralizador do orçamento público e de sua predominância no quadro da separação dos poderes, com frequência o Poder Executivo exorbita a sua competência e ocasiona desequilíbrio na atuação dos demais poderes, em prejuízo aos objetivos do Estado Democrático de Direito. Tais atos unilaterais referem-se à alteração de propostas orçamentárias oriundas do Judiciário e do Ministério Público ou ainda ao repasse deficitário de duodécimos, ambos com previsão constitucional. É inadmissível, em um Estado Democrático de Direito, a interferência arbitrária de um poder sobre os demais, sob pena de enfraquecer o sistema constitucional e limitar ou prejudicar a tutela jurisdicional, garantia constitucional e meio de exercício da cidadania. Através de julgados e posições doutrinárias, o presente trabalho demonstrou que o Poder Executivo extrapola o seu papel de gestor e, mais das vezes, atua como verdadeiro “dono” do orçamento, atuando com ingerência e arbitrariedade durante a gestão das finanças públicas. No tocante à alteração unilateral das propostas orçamentárias, foi demonstrada a impossibilidade de mensuração quanto à oportunidade e conveniência de qualquer modificação nas propostas orçamentárias, já que cabe ao Poder Legislativo a sua apreciação. Compete ao Poder Executivo, então, consolidar as propostas orçamentárias para envio ao Congresso Nacional ou à Assembleia Legislativa, o que lhe permite realizar apenas modificações objetivas para adequar estes projetos ao proposto nos diplomas orçamentários vigentes (PPA e LDO) e na Lei de Responsabilidade Fiscal. Conquanto os principais embates em relação à alteração das propostas orçamentárias refiram-se a gastos de pessoal – permanentes, de elevados valores e muitas vezes irrevogáveis –, ainda não é possível ao Poder Executivo realizar cortes nestas propostas, excetuados os casos de superação dos limites com gastos de pessoal previstos na LRF. Neste caso, a atuação do Executivo limita-se a informar ao Congresso Nacional o possível dano às contas públicas no caso da aprovação de tais projetos e a abrir diálogo na tentativa de encontrar possível alternativa ao impasse. Em relação ao repasse parcial das parcelas duodecimais, o STF declarou a inconstitucionalidade da limitação direta dos repasses aos demais poderes e ao Ministério Público por parte do Executivo, quando da inércia na limitação de empenho. Assim, não é possível o corte unilateral das receitas, as quais devem ser repassadas ao Poder Judiciário e ao Ministério Público, não obstante seja desproporcional ao Executivo assumir a responsabilidade diante da

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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

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frustração de receitas. Logo, torna-se necessária a atuação conjunta de todos os poderes para a realização proporcional de limitações de empenho e movimentação financeira. Neste sentido, as interferências realizadas pelo Executivo causam diversos impactos no exercício das funções institucionais destes órgãos e, consequentemente, aos cidadãos que necessitam da tutela estatal, pois para a prestação ideal dos serviços públicos é necessária a segurança jurídica da programação realizada através das leis orçamentárias que necessitam do aporte financeiro adequado. Portanto, quando das graves ocorrências de atos de ingerência aqui tratados, deve-se buscar a restauração do sistema constitucional, sempre a partir da aplicação dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, de forma que seja almejada a permanente harmonia entre os poderes da República, em respeito às autonomias orçamentária e financeira do Judiciário e do Ministério Público e ao bom desempenho de suas atividades institucionais.

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ABSTRACT: This article addresses the issue about violation of financial and budgetary autonomy of Judicial Power and public prosecutor’s office by the Executive Power, in clear violation to the system of tripartite division of powers. Its verify that the interference practiced by the Executive Power occurs in twofold, which are, the cutting of budget proposals and the deficitary transfer of twelfth owe to the present organs, from unilateral conducts. Often, such interventions affect not just the contingency execution, but also violates constitutional principles and guarantees, reflecting on own state service to the collectivity. Keywords: Budget. Interfence. Executive. Judiciary. Public Prosecutor’s Office.

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THE INTERFERENCE OF EXECUTIVE POWER ON THE BUDGET OF JUDICIAL POWER AND OF PUBLIC PROSECUTOR’S OFFICE: SEPARATION OF POWERS AND IMPACTS ON THE EXERCISE OF ITS INSTITUCIONAL FUNCTIONS.

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Recebido em 21 ago. 2015 Aceito em 24 out. 2015.

A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO EM RAZÃO DE ATO JURISDICIONAL Breno Alexei Rodrigues de Oliveira*

RESUMO: Propõe análise crítica acerca da responsabilização civil estatal por ato jurisdicional que ocasione dano aos particulares. Revisita conceitos como o da soberania e da divisão orgânica das funções do Estado. Visa, mediante discussão doutrinária e apontamentos pertinentes, trazer a lume tema pouco discutido, pugnando pela sua viabilidade. Palavras-chave: Responsabilidade Estatal. Crítica. Ato jurisdicional. Possibilidade.

A responsabilidade civil estatal consiste basicamente em mecanismo previsto no ordenamento jurídico como forma de se garantir ressarcimentos cíveis aos particulares, a partir de danos causados pelos agentes do Estado quando em exercício da função que lhes é própria. Tais danos, por sua vez, podem ser ocasionados por atos comissivos ou omissivos, lícitos ou ilícitos, e podem se revestir de aspectos estéticos, morais ou materiais. O tema encontra lastro na CF de 1988, caracterizando-se a responsabilização civil administrativa no artigo 37, §6. A responsabilidade administrativa, como abordar-se-á, é essencialmente produto da conjuntura política e histórica e das concepções que revestem a relação entre administradores e administrados no seio de um Estado em determinada época. O Direito e o modo de vida coletivo interpenetram-se, evoluindo em equivalência. Com efeito, diversas foram as fases perpassadas dentro do tema para que hoje possamos confortavelmente admitir tal conteúdo normativo-constitucional em toda a sua extensão. * Graduando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, cursando o 6º período.

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1 INTRODUÇÃO

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2 EVOLUÇÃO HISTÓRICA Na esteira da evolução da responsabilidade estatal, correntes distintas teorizaram acerca do tema, cada uma essencialmente conectada com a conjuntura política e social em que se

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Vislumbra-se, dentro do tema, a consagração do princípio da impessoalidade na administração pública ao ser imputado um dano ao Estado, pessoa jurídica de direito público interno que é passível de direitos e obrigações na órbita do Direito. Os agentes públicos “sem rosto”, quando em exercício da atividade administrativa, como exposto, respondem apenas subsidiariamente, em ação própria de transferência de responsabilidade movida pelo Estado. De um lado, põe-se a soberania do Estado, e de outro, a ideia de solidariedade social, que visa distribuir os ônus causados pela função administrativa igualmente entre os administrados, fazendo-se justiça no caso concreto, na medida em que se respeita em última instância o imperativo da igualdade, erigido no caput do artigo 5º da CF de 1988. A responsabilidade do Estado, ainda, deve ser contemplada junto ao exercício de atos do Poder Legislativo e do Poder Judiciário que firam indevidamente a órbita jurídica do particular. Enquanto que para os atos administrativos a regra é pela possibilidade de responsabilização patrimonial da administração, ainda vigora, para os atos do Judiciário e do Legislativo, em maior medida, a irresponsabilidade. Outrossim, se é verdade que o tema abordado evoluiu amplamente junto aos atos lesivos da administração, certo é que muito há a se avançar na responsabilização das demais funções do Estado. Isso de modo a se fortalecer cada vez mais a ideia de que o Estado deve servir à vontade externa que lhe dirige e impõe limites, consubstanciada no interesse público, não apenas na seara administrativa, mas em todas as funções que lhe são inerentes e decorrem igualmente da soberania popular e da sua outorga de poderes. O presente trabalho baseou-se em estudo profícuo sobre os contornos que delineiam o seu objeto. Procurou-se, sem pretensão de esgotar o tema amplo, apresentar uma visão crítica acerca da responsabilidade civil do Estado por efeito de ato jurisdicional, no intento de oferecer mais uma contribuição a respeito do tema. Não se buscou demonstrar tão somente as feições do direito posto, em regras positivadas, sem que se favorecesse novas reflexões construtivas. Ao contrário disso, a responsabilização, aqui, abordar-se-á sob prisma pouco mencionado, de extensão às possibilidades do Estado de arcar com reparação cível aos jurisdicionados. Os argumentos levantados em defesa da tese foram colhidos a partir da observância e estudo dos critérios que elencam doutrina, jurisprudência e Constituição na perquirição do que efetivamente deve ser um dano indenizável, e quando o Estado deverá arcar com este ônus. Motiva, em especial, dentro do tema, a possibilidade dos cidadãos de oporem o direito individual à indenização contra o Estado, fazendo valer em contornos mais expressivos a máxima que muitas vezes repetimos sem confiança alguma no que se pronuncia: todo o poder emana do povo e em nome dele será exercido.

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alicerçava. O contrabalanço entre a soberania do Estado - posicionado acima dos cidadãos como instituição cuja função precípua é reger a vida coletiva - e a necessidade de se preservar a esfera jurídica pessoal de cada um, regia a tônica dos debates. Em um primeiro momento, como produto do absolutismo e da pretensão de infalibilidade dos monarcas, veio à tona a Teoria da Irresponsabilidade do Estado. Apesar dessa teoria irromper em distinto período histórico, ainda no século XIX tal entendimento, que blindava o Estado contra toda sorte de eventual responsabilização, restou superado. Decidiu-se que os rumos da responsabilização seguiriam por outro caminho que não o da impossibilidade. Nessa senda, em tentativa incipiente de conciliar a concepção de soberania exacerbada do Estado com a possibilidade de indenização dos particulares por atos lesivos, concebeu-se a teoria da responsabilidade subjetiva, também conhecida como teoria da responsabilidade com culpa. De início, a fim de justificar o temperamento da soberania estatal que provinha do antigo regime absolutista, a teoria da responsabilidade subjetiva abrigou em seu seio a teoria do fisco. A possibilidade do Estado, ente soberano, de indenizar particulares por atos lesivos justificava-se na dupla personalidade estatal. O Estado seria composto de duas facetas de uma mesma personalidade. A primeira delas corresponderia à soberania que se conservava, enquanto a segunda cuidaria do propósito justificante, ao ser essencialmente patrimonial, e que, por isso mesmo, poderia indenizar particulares, sem que isso representasse um afronta a tudo que se visava preservar. Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2010, p. 644-645) faz referência aos atos de império e os atos de gestão:

Tais expressões representavam o mesmo fenômeno de dupla personalidade que se tinha, no que o primeiro revestia o poder central ilimitado, e o segundo, por sua vez, o Estado posto no plano dos particulares, dentro do qual haveria relação bilateral de igual para igual em consecução de interesses comuns. A teoria subjetiva se fundamentava na responsabilização tal como era encontrada na órbita do direito civil. Ao particular que se sentisse lesado pelos atos da administração caberia o ônus da comprovação de culpa ou dolo por parte do agente administrativo que representasse o Estado. Muito embora essa teoria tenha constituído um avanço considerável nesse tema,

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Numa primeira fase, distinguiam-se, para fins de responsabilidade, os atos de império e os atos de gestão. Os primeiros seriam os praticados pela Administração com todas as prerrogativas e privilégios de autoridade e impostos unilateral e coercitivamente ao particular independentemente de autorização judicial, sendo regidos por um direito especial, exorbitante do direito comum, porque os particulares não podem praticar atos semelhantes; os segundos seriam praticados pela Administração em situação de igualdade para com os particulares, para a conservação e desenvolvimento do patrimônio público e para a gestão de seus serviços; como não difere a posição da Administração e a do particular, aplica-se a ambos o direito comum.

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porquanto o primeiro passo rumo à responsabilização estatal, não foi capaz de se amoldar adequadamente às necessidades indenizatórias dos particulares. Ao mesmo tempo em que se enxergava uma contribuição ampla para o desmantelamento da injustificada anuência aos atos lesivos estatais, a teoria da responsabilidade subjetiva permanecia carente de eficácia. Com efeito, certo é que seria muito difícil ao cidadão comum, diante da hipossuficiência que naturalmente se impõe numa relação litigiosa contra o Estado, conseguir provar por meios idôneos o dolo ou a culpa do agente estatal em ato praticado no exercício de sua função. Em face disso, o curso da evolução da doutrina especializada e dos julgamentos das cortes permitiu o início de uma aproximação mais intensa com uma teoria que se demonstrasse mais suscetível à publicização da responsabilização civil administrativa. Pensava-se uma teoria que fosse pautada não em elementos próprios do Direito Civil, mas que, ao invés, fosse erguida sobre regras especiais que variassem conforme a necessidade do serviço e a imposição de se conciliar as prerrogativas do Estado com as dos indivíduos. Com isso, redefinia-se os conceitos da ciência política, repensava-se a relação Estado-indivíduo na medida em que sobressaia a justiça social. A primeira vitória da tendência publicista junto à responsabilização estatal veio com a decisão da jurisprudência francesa do ano de 1873, no famoso caso Agnes Blanco, em Bordeaux (CORRÊA, 2005, p. 168). Denotou-se, ali, a competência do tribunal administrativo na resolução de controvérsias em que figurasse como litigante a administração pública, uma vez que o Tribunal de Conflitos não teria competência para analisar o mérito de questão que envolvesse o funcionamento do serviço público. Nessa esteira, entraram em evidência teorias publicistas como a teoria da culpa do serviço (faut du service), a teoria da culpa administrativa e a teoria do risco integral. A primeira delas procurava desvincular na medida do possível a velha marca civilista dentro do tema da responsabilidade civil administrativa, de exigência de culpa ou dolo. A justificativa da responsabilização estatal não mais encontraria espaço junto ao elemento subjetivo do funcionário, presente no ato que ocasionasse o dano ao particular. A culpa que dava ensejo a responsabilização seria transportada para a órbita do serviço público mal prestado pela administração. O funcionário, malgrado pudesse ainda responder pelos seus atos singularmente, não vinculava a responsabilização do aparato estatal. Tratar-se-ia de culpa anônima do serviço público. Sem lançar mão disso, o Conselho de Estado Francês foi se alinhando concomitantemente à teoria que previa uma repartição dos encargos sociais. A administração, observava-se, deveria agir como forma de garantir a igualdade (tão valiosa aos franceses, por efeito da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1789) no caso concreto, entre os cidadãos, ao dividir igualitariamente os benefícios das suas ações positivas. Os prejuízos, portanto, seguiriam o mesmo entendimento, devendo ser repartidos para a coletividade em geral, que suportaria os ônus da atuação trôpega do Estado. Tal concepção representava o pressuposto teórico mais convincente junto a tendência de se utilizar o erário público, produto dos impostos de todos, para

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cobrir as despesas das responsabilizações que se colocavam ao Estado. A culpa nas teorias civilistas de responsabilização estatal, portanto, dava lugar ao nexo de causalidade, cuja presença representou, tão logo se concebeu, possibilidade de avanço cada vez mais acentuado junto a responsabilização objetiva do Estado, justamente por dispensar a presença de elementos subjetivos na análise global do dano indenizável. Isso porque, de acordo com a teoria do risco, o fundamento do dever de indenizar por parte do Estado se baseia na noção de risco administrativo, o qual reza que a Administração está sujeita a riscos na consecução dos serviços públicos que a eles estão atrelados, e desse modo deve arcar com os prejuízos em caso deles virem a se concretizar. Para a teoria objetiva ou teoria do risco, logo, faz-se necessário a comprovação por parte do particular de apenas três requisitos para legitimar a responsabilização estatal: ato; dano e nexo causal. O ato pode ser lícito ou ilícito por parte do agente público, vez que não há necessidade da comprovação do elemento subjetivo. O professor Celso Antônio Bandeira de Mello (2013, p. 1011) se posiciona no sentido de que deve se falar em responsabilidade do Estado por atos lícitos nas hipóteses em que o poder deferido ao Estado, exercido legitimamente, acarreta, indiretamente, lesão a um direito alheio. O dano deverá ser específico e anormal, pois que deve atingir membros distintos da coletividade que não devam carregar consigo todo o ônus que transcende os inconvenientes da vida comum; e por último, o nexo de causalidade, entre o ato do agente público em exercício da função administrativa e o resultado danoso. A doutrina pátria, em sua maioria, vislumbrou, dentro dessa teoria, dois aspectos distintos. A teoria do risco, mais aceita, pela facilitação da comprovação do dano e consequente democratização da indenização devida aos particulares, compreenderia a modalidade do risco administrativo e a do risco integral. Ambas as correntes disputam a primazia de entendimento dentro de suas concepções; a teoria do risco integral apresenta-se como a sua versão mais radical, no que sustenta ser os três critérios tão logo comprovados pelos particulares, aptos de pronto a ensejar a responsabilização estatal em qualquer circunstância. Não há previsão de excludentes de responsabilidade estatal. A teoria do risco administrativo, mais moderada, igualmente estabelece a responsabilidade objetiva, valendo-se dos três critérios apresentados, não obstante diferencie-se da teoria do risco integral por compreender em seu seio a possibilidade de existência das excludentes do dever de indenizar do Estado. Isso representa dizer que, malgrado a regra da responsabilidade objetiva do Estado, que continua prevalecendo nessa vertente teórica, há a possibilidade de no caso concreto esse dever de indenizar seja neutralizado por efeito da ocorrência das três hipóteses que se estabelecem. Segundo Hely Lopes Meirelles (2010, p. 683), são elas: a culpa da vítima, a culpa de terceiros e a força maior. Em ocorrendo cada uma dessas hipóteses, não se dará a responsabilização estatal e o dever de indenizar. As três excludentes, para a teoria do risco administrativo, apesar de conservar intactos o dano e o resultado, obsta a responsabilidade objetiva do estado

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ao neutralizar o nexo causal que os vincula. O Estado se exime da responsabilidade ao protestar desvinculação com o resultado, vez que por efeito de culpa da própria vítima, culpa de outrem ou força maior, as consequências não decorreriam diretamente do ato lícito ou ilícito do agente administrativo. Ensina Marcelo Caetano (1977, p. 544): Os riscos acarretados pelas coisas ou atividades perigosas devem ser corridos por quem aproveite os benefícios da existência dessas coisas ou do desenrolar de tais atividades (...). A Administração deve responder pelos riscos resultantes de atividades perigosas ou da existência de coisas perigosas, quando não tenha havido força maior estranha ao funcionamento dos serviços (...) na origem dos danos e não consiga provar que estes foram causados por culpa de quem os sofreu.

Vigorava, ainda, para o Estado, a teoria da irresponsabilidade, produto do absolutismo que reinara na Europa na Idade Moderna. Mesmo em 1891, nos primórdios da República brasileira, ainda fortemente marcada pelo predomínio do império recém desmontado, não se previu a responsabilidade do Estado, no que quedamos atrasados em relação à França que, por efeito do Caso Aresto Blanco de 1873, já conferia força às teorias publicistas de responsabilização estatal. Foi do Código Civil de 1916, porém, que veio o primeiro passo da caminhada. Adotou-se naquele instituto a teoria da responsabilidade subjetiva, influenciando diretamente as Constituições da Era Vargas de 1934 e 1937 no Brasil. A responsabilidade objetiva, por sua vez, chegou até nós a partir da Constituição de 1946, no que foi acompanhada pelas Cartas de 1967 e 1969, do modo como havia sido concebida originalmente. No fluxo da história constitucional brasileira, a CF de 1988, a seu turno, teve como mérito principal a extensão da noção de responsabilização objetiva do Estado para as empresas privadas prestadoras de serviço público. O Código Civil de 2002, em decorrência disso, reconheceu a teoria objetiva, que já vinha sendo aplicada como regra pela jurisprudência pátria. Após isso, sucederam-se decisões no Supremo Tribunal Federal tendo como objeto o tema da responsabilidade estatal. Em 2005, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal entendeu que os concessionários respondem subjetivamente perante terceiros. Já em 2006, a Suprema Corte do país firmou entendimento no sentido de que o agente público, ao contrário do que se ventilava nas teses contrárias, só deve ser responsabilizado em caso de ação regressiva que comprove dolo ou culpa.

1  ‘Os empregados públicos são estritamente responsáveis pelas obras e omissões praticadas no exercício de suas funções, e por não fazerem efetivamente responsáveis os seus subalternos’ (art. 178, item 9)

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No direito brasileiro, a evolução da responsabilidade civil do Estado conectou-se desde o início com as tendências de responsabilidade oriundas sobretudo da França, em momentos distintos de concepção e de entendimento. A Constituição do Império, de 1824, por exemplo, previa somente a responsabilidade exclusiva dos funcionários1.

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O último passo, enfim, dado pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal2 na caminhada histórico-evolutiva da responsabilidade estatal foi em 2009, quando consolidou-se entendimento que os concessionários – que já haviam figurado no centro do debate da Corte em 2005 – devem responder objetivamente perante usuários e terceiros, em clara demonstração do fenômeno da superação de precedentes nas Cortes Superiores.

O Estado está intrinsecamente ligado à ideia de soberania. Por meio dela que se desenvolvem as relações imperativas desenvolvidas no seio da vida comum. Ela se refere em última análise à capacidade do Estado de impor suas decisões no plano interno, bem como de conviver em plano de igualdade com as demais nações no plano internacional. A teoria da divisão orgânica de Montesquieu, longe de representar um fim em si mesma, apoiou-se nas bases sólidas erguidas pelos estudos que lhe antecederam. Aristóteles em 340 a.C., em seu livro “Política”, já teorizava acerca da futura teoria consagrada na figura do pensador francês. Dizia Aristóteles que quem exerce poder numa sociedade o faz elaborando leis, executando-as e dirimindo eventuais conflitos que porventura possam surgir. Era os primórdios da tripartição das funções do Estado e daquilo que se convencionou chamar erroneamente de “Poder”, pois, ainda que cada órgão detenha autonomia e represente uma função do Estado, certo é que o poder é uno, e, portanto, não passível de tripartição. John Locke, por sua vez, por volta de 1690, também fez referência à teoria, em seu livro “O Segundo Tratado do Governo Civil”. O filósofo inglês revisitava os escritos de Aristóteles, no que diferia em alguns pontos, sobretudo acerca da função do Judiciário, ao qual não atribuía significativa importância. Apenas em 1748 foi lançado o livro “O Espírito das Leis” o qual personificou a teoria que, como visto, ganhara corpo muito tempo antes. Hoje, as leis abstratas e genéricas emanadas pelo Poder Legislativo vinculam condutas dos particulares que devem ser necessariamente cumpridas, ao passo que os atos da administração gozam, tão logo forem concebidos, de presunção de certeza, legitimidade e autoexecutoriedade. Ao Poder Judiciário, como se sabe, reservou-se na divisão orgânica das funções do Estado de Montesquieu a função de dirimir conflitos e pacificar a sociedade. Por meio da soberania estatal, que é una, e apenas se exerce mediante a atuação de cada Poder concebido, o Judiciário detém possibilidade de impor suas decisões indistintamente, fazendo prevalecer a sua vontade sobre a dos indivíduos. A soberania, tal como concebida hoje, encontra fundamento de direito positivo na CF de 1988, já no primeiro artigo.

2  BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 591874. Relator: Min. Ricardo Lewandowski. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/ jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=(RE+591874+MS)&base=baseAcordaos>. Acesso em: 24 set. 2015.

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3 ESTADO, TRIPARTIÇÃO E SOBERANIA

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No intuito de se apreender uma melhor compreensão do conceito da soberania, tão valioso ao tema ora em comento, preciosa é a lição de Paulo Bonavides (BONAVIDES, 2000, p. 155-156), para quem há diferença entre a soberania do Estado e a soberania no Estado. A primeira, no entender do renomado constitucionalista, tem por enfoque o grupo político, o Estado, ante os demais grupos sociais externos e internos. A partir dela se é permitido aplicar a soberania no plano interno na medida em que possa sobrepujar as vontade das entidades coletivas não governamentais, fazendo prevalecer suas determinações. A segunda espécie de soberania, a soberania no Estado, a seu turno, faz referência aos níveis hierárquicos da administração, que se organiza internamente para melhor atender aos desígnios da vida coletiva.

A responsabilidade do Estado em face de ato judiciário ou legislativo possui, até os dias atuais, caráter excepcionalíssimo ante à regra da irresponsabilidade que ainda hoje prevalece fora dos limites da administração pública orgânica, que diz respeito aos entes componentes da estrutura organizacional da administração pública brasileira. Interessa por ora abordar os aspectos que revestem a responsabilização junto ao ato jurisdicional, objeto do presente estudo. Importante trazer a lume, de início, a diferença existente entre erro judicial e erro jurisdicional. O primeiro relaciona-se tão-somente à atuação do magistrado, em exercício de sua atividade, seja ele vinculado ao espectro de competências disposto no artigo 109 da CF de 1988, referente à atuação dos juízes federais, ou sujeito à competência residual, a cargo dos juízes de direito. No caso do erro jurisdicional, mais amplo, leva-se em conta a função de todos quantos exercem contribuição para a atividade jurisdicional. Além da atividade dos juízes de qualquer instância – tomados por agentes políticos, por efeito de construção jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal3 – também se destaca a atividade dos auxiliares da justiça, como o escrivão, o perito, o serventuário, o oficial de justiça etc. De acordo com a disposição do texto constitucional (art. 5º, LXXV; LXXVIII), três são, atualmente, as hipóteses previstas de responsabilização do Estado em face de um ato jurisdicional: erro judiciário, prisão além do tempo fixado na sentença e demora na prestação jurisdicional. Discussão que divide a doutrina é a que perquire a extensão do erro indenizável, em saber se este se limita à esfera penal, nos casos previstos, ou se também enseja responsabilização estatal o erro jurisdicional na esfera cível. O primeiro entendimento acerca do assunto, notadamente restritivo, enxerga apenas no erro da jurisdição penal idoneidade para ensejar a responsabilização pretendida. Tal corrente encontra fundamento no artigo 5º, LXXV da CF de

3  BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 228977. Relator: Min. Néri da Silveira. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=(RE+228977)&base=baseAcordaos>. Acesso em: 24 set. 2015.

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4 RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO POR ATO JURISDICIONAL

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1988, valendo-se de sua literalidade, o qual dispõe expressamente que “O Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença”. Esse entendimento enxerga, ainda, a disposição constitucional como um reforço ao artigo 630 do Código de Processo Penal, elevando-lhe ao patamar de direito fundamental, sem contudo favorecer extensão do entendimento à esfera cível. Tal é o magistério de José dos Santos Carvalho Filho (2011, p. 245), Odete Medauar (2012, p. 410). Sob ótica diversa, outra corrente, encabeçada por Sergi Cavalieri Filho (2010, p. 541 542), posiciona-se no sentido de que a responsabilização por ato jurisdicional contempla, além da penal, erros jurisdicionais na esfera cível. Primeiramente, essa tese se alicerça na alegada impossibilidade do intérprete de tolher o alcance da norma constitucional, uma vez que, por estar inserido no artigo 5º, o inciso LXXV, garantidor de direito fundamental, deve ter aplicação extensiva e não restritiva. De fato, da leitura do texto constitucional em comento não é possível extrair nenhuma referência a uma possível exclusão dos erros judiciários em matéria cível por parte do constituinte originário. Não há distinção expressa nesse sentido, e não caberia ao interprete fazê-lo. Para essa corrente extensiva, o fato do texto constitucional indicar disposição que se coaduna com o artigo 630 do Código de Processo Penal não sujeita imediatamente a CF de 1988 à conformação do Código de Processo Civil, porquanto em um Estado de Direito a Constituição está no centro do sistema jurídico e não a legislação ordinária. Disso resulta a conformação necessária desta para com aquela e não o oposto. Além do erro jurisdicional, a prisão que se estenda para além dos limites fixados na sentença também dá ensejo à responsabilização civil do Estado, com previsão constitucional no artigo 5º, LXXV. Na maioria dos casos, o abuso é cometido por falha na prestação jurisdicional dentro da esfera penal, em que a pena privativa de liberdade figura como regra. Vale dizer, entretanto, que sendo caso de pena de prisão nas esferas cível e administrativa – o que ocorre excepcionalmente – há que se falar igualmente em indenização, caso se protraia de forma indevida a prisão além dos limites da sentença. A prisão cível, de acordo com o que dispõe o texto constitucional brasileiro, pode ser decretada judicialmente em dois casos, quais sejam, o do depositário infiel e em face da obrigação à prestação de alimentos não cumprida, ambas previstas no inciso LXVII do artigo 5º da CF de 1988. Não obstante à literalidade do texto normativo, tal entendimento foi revisto pelo Supremo Tribunal Federal em dezembro de 2008, por ocasião do julgamento dos Recursos Extraordinários (RE 349703) e (RE 466343) e do Habeas Corpus (HC 87585), firmando-se a tese de que a prisão civil deve ser aplicada tão-somente aos casos de não pagamento voluntário da pensão alimentícia, e não mais nos casos de depositário infiel. Em razão da nova postura assumida pela corte, foi revogada a súmula 619 do Supremo Tribunal Federal, cujo teor dispunha sobre a licitude da prisão do depositário infiel. Em seu lugar foi editada nova súmula vinculante, de número 25, com a inteligência de que “É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito”.

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4   PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO DECORRENTE DE ATOS PRATICADOS PELO PODER JUDICIÁRIO. MANUTENÇÃO DE CIDADÃO EM CÁRCERE POR APROXIMADAMENTE TREZE ANOS (DE 27/09/1985 A 25/08/1998) À MINGUA DE CONDENAÇÃO EM PENA PRIVATIVA DA LIBERDADE OU PROCEDIMENTO CRIMINAL, QUE JUSTIFICASSE O DETIMENTO EM CADEIA DO SISTEMA PENITENCIÁRIO DO ESTADO. ATENTADO À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. 1. Ação de indenização ajuizada em face do Estado, objetivando o recebimento de indenização por danos materiais e morais decorrentes da ilegal manutenção do autor em cárcere por quase 13 (treze) anos ininterruptos, de 27/09/1985 a 25/08/1998, em cadeia do Sistema Penitenciário Estadual, onde contraiu doença pulmonar grave (tuberculose), além de ter perdido a visão dos dois olhos durante uma rebelião. 2. A Constituição da Republica Federativa do Brasil, de índole pós-positivista e fundamento de todo o ordenamento jurídico expressa como vontade popular que a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados, Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como um dos seus fundamentos a dignidade da pessoa humana como instrumento realizador de seu ideário de construção de uma sociedade justa e solidária. 3. Consectariamente, a vida humana passou a ser o centro de gravidade do ordenamento jurídico, por isso que a aplicação da lei, qualquer que seja o ramo da ciência onde se deva operar a concreção jurídica, deve perpassar por esse tecido normativo-constitucional, que suscita a reflexão axiológica do resultado judicial. 4. Direitos fundamentais emergentes desse comando maior erigido à categoria de princípio e de norma superior estão enunciados no art. 5.º da Carta Magna, e dentre outros, os que interessam o caso sub judice destacam-se: XLIX - e assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral; LIII - ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente; LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes; LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória; LXI - ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei; LXV - a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária; LXVI - ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança; 5. A plêiade dessas garantias revela inequívoca transgressão aos mais comezinhos deveres estatais, consistente em manter-se, sem o devido processo legal, um ser humano por quase 13 (treze) anos consecutivos preso, por força de inquérito policial inconcluso, sendo certo que, em razão do encarceramento ilegal, contraiu o autor doenças, como a tuberculose, e a cegueira. 6. Inequívoca a responsabilidade estatal, quer à luz da legislação infraconstitucional (art. 159 do Código Civil vigente à época da demanda) quer à luz do art. 37 da CF/1988, escorreita a imputação dos danos materiais e morais cumulados, cuja juridicidade é atestada por esta Eg. Corte (Súmula 37/STJ) 7. Nada obstante, o Eg. Superior Tribunal de Justiça invade a seara da fixação do dano moral para ajustá-lo à sua ratio essendi, qual a da exemplaridade e da solidariedade, considerando os consectários econômicos, as potencialidades da vítima, etc, para que a indenização não resulte em soma desproporcional. 8. In casu, foi conferida ao autor a indenização de R$ 156.000,00 (cento e cinqüenta e seis mil reais) de danos materiais e R$ 1.844.000,00 (um milhão, oitocentos e quarenta e quatro mil reais) de danos morais. 9. Fixada a gravidade do fato, a indenização imaterial revela-se justa, tanto mais que o processo revela o mais grave atentado à dignidade humana, revelado através da via judicial. 10. Deveras, a dignidade humana retrata-se, na visão Kantiana, na autodeterminação; na vontade livre daqueles que usufruem de uma vivência sadia. É de se indagar, qual a aptidão de um cidadão para o exercício de sua dignidade se tanto quanto experimentou foi uma “morte em vida”, que se caracterizou pela supressão ilegítima de sua liberdade, de sua integridade moral e física e de sua inteireza humana? 11. Anote-se, ademais, retratar a lide um dos mais expressivos atentados aos direitos fundamentais da pessoa humana. Sob esse enfoque temos assentado que “a exigibilidade a qualquer tempo dos consectários às violações dos direitos humanos decorre do princípio de que o reconhecimento da dignidade humana é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz, razão por que a Declaração Universal inaugura seu regramento superior estabelecendo no art. 1º que ‘todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos’. Deflui da Constituição federal que a dignidade da pessoa humana é premissa inarredável de qualquer sistema de direito que afirme a existência, no seu corpo de normas, dos denominados direitos fundamentais e os efetive em nome da promessa da inafastabilidade da jurisdição, marcando a relação umbilical entre os direitos humanos e o direito processual”. (REsp 612.108/PR, Rel. Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, DJ 03.11.2004) 12. Recurso Especial desprovido (STJ - REsp: 802435 PE 2005/0202982-0, Relator: Ministro LUIZ FUX, Data de Julgamento: 19/10/2006, T1 - PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: DJ 30.10.2006 p. 253)

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Tal julgamento adaptou, a um só tempo, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal ao Pacto de San José da Costa Rica, ao Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos da ONU e a Declaração Americana de Direitos da Pessoa Humana, firmada em 1948, em Bogotá. Na esfera administrativa, a seu turno, serve de ensejo à responsabilidade a prisão militar que venha a perdurar além do tempo previsto. Nesse contexto, decisão que tornou-se referência em matéria de responsabilização do Estado por prisão mantida além do tempo fixado na sentença ocorreu sob a lavra do Min. Luiz Fux, em julgamento de um Recurso Especial no Superior Tribunal de Justiça, ano de 2006. Na ocasião, fora proposta ação de indenização em face do Estado visando a obtenção de danos materiais e morais, tudo em razão de um cárcere indevido durante nada menos que treze anos ininterruptos4. Arbitrou-se, com base nessa violação de direitos tão grave, valores indenizatórios da ordem de R$ 156.000,00 de danos materiais e R$ 1.844.000,00 de danos morais a serem pa-

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gos ao particular. O acerto da decisão, como assentado na própria fundamentação do acórdão, provém do papel fundamental que exerce na nossa CF de 1988 a dignidade da pessoa humana, violada das mais diversas formas em ambientes tão vazios de esperança como as prisões brasileiras. Pode dar ensejo à responsabilização estatal por ato jurisdicional, ainda, a demora injustificada no curso de um processo. Trata-se de inovação trazida pela EC 45/2004. Na ocasião, adicionou-se ao artigo 5º da CF de 1988, o inciso LXXVIII, dispondo sobre a razoável duração do processo a ser assegurada no âmbito judicial e administrativo, bem como os meios que garantam a celeridade da tramitação. A realidade da justiça brasileira, porém, demonstra, com razão, a impossibilidade de cada um dos jurisdicionados que têm processos em lento curso serem indenizados em razão da demora da prestação jurisdicional. A grande litigiosidade social aliada à burocracia do nosso sistema processual são dois dos fatores que explicam o volume exorbitante de processos que a cada ano avolumam-se nos gabinetes do Poder Judiciário. Em face dessa realidade, há que se estabelecer critérios razoáveis que permitam ao interprete do direito averiguar qual mora tem o condão de ser indenizável. A existência de um eventual dano, além de sua possível extensão, são meios idôneos para aferir a possibilidade de indenização e o próprio quantum indenizável na justiça do caso concreto. Outro ponto pertinente em matéria de responsabilização estatal por força de erro jurisdicional se dá no exame da possibilidade ou não de se indenizar o particular por prisão cautelar decretada no curso de processo que, posteriormente, venha a ser julgado em seu benefício, seja por negativa de autoria, inexistência do fato ou licitude do ato praticado. Nesta questão, novamente, não se faz consenso. Uma primeira linha de pensamento defende a justeza da indenização, porquanto fira a dignidade da pessoa humana, que, consoante o artigo 1º, III da CF de 1988, constitui-se em um dos fundamentos da nossa República. Outra corrente, divergindo, entende pela impossibilidade da indenização, vez que a prisão como medida cautelar encontra fundamento no próprio sistema legal, gozando de licitude. Nessa esteira, a prisão cautelar não poderia ser vista jamais como erro judiciário na moldura em que este está disposto, conforme inciso LXXV do artigo 5º da CF de 1988. Além disso, a prisão serviria para o curso da instrução, não estando vinculada sua admissibilidade ao exame do mérito da causa. É a tese defendida por Sérgio Cavalieri Filho (2010, p. 544 - 546). Parece assistir razão à segunda corrente. Não há erro jurisdicional em medida cautelar assecuratória de instrução, mesmo que depois, no deslinde do processo, venha a ser enxergada como desnecessário ato processual ao tempo em que foi determinada. Acaso pudesse o juiz entrever, ainda na fase instrutória, o futuro julgamento da causa, com a devida responsabilidade ou irresponsabilidade do agente, absurdo seria tal medida constritiva de direito. Não sendo assim, porém, a prisão cautelar – ocorrendo em tempo razoável, cumpre dizer – é inconveniente a ser suportado por quem responde processo criminal. A razoabilidade do tempo de duração se refere à licitude da medida assecuratória que, em sendo desproporcional, perdurando por mais

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Um dos pilares do moderno Direito Constitucional é, exatamente, a sujeição de todas as pessoas, públicas ou privadas, ao quadro da ordem jurídica, de tal sorte que a lesão aos bens jurídicos de terceiros engendra para o autor do dano a obrigação de reparálo. Sem embargo, a responsabilidade do Estado governa-se por princípios próprios, compatíveis com a peculiaridade de sua posição jurídica, e, por isso mesmo, é mais extensa que a responsabilidade que pode calhar às pessoas privadas.

O terceiro argumento levantado é o da imutabilidade da coisa julgada. Para os defensores dessa corrente, não haveria possibilidade de se responsabilizar o Estado por eventual erro cometido por ato jurisdicional, pois que isso constituiria ofensa direta à imutabilidade da coisa julgada no seio das relações jurídicas. Os que defendem essa linha de pensamento parecem não

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tempo do que o necessário, favorece à indenização, não pela medida em si, mas pela prisão que se protraiu em razão de erro jurisdicional. Três são os principais argumentos abraçados por quem se posiciona de maneira contrária à possibilidade de responsabilização estatal por ato jurisdicional. O primeiro deles indica que o Poder Judiciário é soberano e por isso não é passível de sofrer responsabilização. Em segundo, alega-se a necessidade do juiz de agir com independência no exercício da função jurisdicional, de modo a não conviver com o temor de ser responsabilizado por eventual erro em sua atuação. O terceiro argumento recai sobre o Princípio da imutabilidade da coisa julgada. Com relação à soberania, vale dizer que ela está contida no conceito de Estado, e não no de cada um dos Poderes singularmente considerados. Estes não são soberanos, à medida que devem necessariamente se conformar com as disposições da CF de 1988, de onde retiram pressupostos de existência e de validade. A soberania deve ser entendida como sendo do Estado, o que significa que não existe outro centro de poder acima dele. Ela é una, aparecendo nítida nas relações externas com outros Estados. Os três Poderes, com efeito, devem respeito a um centro de Poder que está além das suas possibilidades na hierarquia do Estado constitucional. Se aceitável fosse o argumento ora em comento para justificar a impossibilidade da responsabilização do Judiciário em razão de erro no exercício da função, a administração pública tampouco poderia ser responsabilizada por atos lesivos aos particulares. Afinal, a administração também constitui uma função do Estado – ou um Poder, como se positivou na CF de 1988 – sendo também soberana, e impassível, pois, de ser responsabilizada. Igualmente, o argumento de que eventual responsabilização por erro jurisdicional poderia ferir a independência do judiciário pode e deve ser revisto. O principio do livre convencimento motivado do juiz é principio do direito processual brasileiro. Não há aqui que se falar em redução da independência funcional do juiz, de maneira a cercear as suas razões de decidir. O que impende ressaltar é que, num Estado Democrático de Direito, não pode ser admitido que algum órgão do Estado fique isento de reparar um dano injustificado cometido aos jurisdicionados. Nessa esteira, destaca Celso Antônio Bandeira de Mello (2013, p. 1013):

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realizar a distinção necessária entre os efeitos da coisa julgada e a responsabilização autônoma do Estado por erro na prestação jurisdicional, confundindo-lhes os conceitos. Ao se advogar pela possibilidade da reparação cível em caso de erro na decisão jurisdicional, não se propõe revisar os efeitos irrecorríveis (que o são desde que, sendo o caso, sejam superadas a ação rescisória e a revisão criminal) de uma decisão, para que esta produza novos e distintos efeitos. Tal medida notadamente atentaria contra a segurança jurídica, que restaria fortemente prejudicada caso houvesse à disposição de cada litigante frustrado no deslinde de um processo, ampla possibilidade de reversão dos efeitos da decisão que contrariou suas pretensões. Certamente, trata-se de dois pontos distintos. A responsabilização não alteraria os efeitos da decisão. A indenização ao particular apenas restauraria algo da lesão que foi ocasionada pelos próprios efeitos da sentença que passou a ser inatacável. Confrontados os três principais argumentos contrários, ainda sobre a ideia da possibilidade de responsabilização do Estado por erros na prestação jurisdicional, Maria Emília Mendes Alcântara (1986, p. 75 a 79, citado por DI PIETRO, 2010, p. 664) esclarece que há diversas hipóteses em que o ato jurisdicional deveria acarretar a responsabilidade do Estado. Algumas delas, já abordadas, seriam a prisão preventiva decretada de forma errônea contra quem não praticou crime, quanto à possibilidade de se constituírem danos morais; a não concessão de liminar nos casos em que era exigida em mandado de segurança, gerando o perecimento do direito; o retardamento injustificado de decisão ou de despacho interlocutório que cause prejuízo à parte etc. Se a regra no nosso sistema jurídico em sede de responsabilização estatal por ato jurisdicional é pela impossibilidade, salvo poucas exceções previstas no ordenamento, fora de dúvida é a possibilidade de responsabilização direta do juiz em caso de omissão, dolo ou fraude no exercício de sua função. Aparentemente não há divergência doutrinária nesse ponto, até porque há disposição legal expressa nesse sentido: Acerca disso, a maior parte da doutrina entende que a ação de reparação deverá ser ajuizada contra o Estado, que deverá ser responsabilizado pelo erro cometido pelo magistrado à esfera jurídica do particular. A ação regressiva, porém, será a via adequada para a responsabilização do magistrado, a qual deverá ser movida pelo aparato estatal a fim de ser recuperada a quantia que lhe foi subtraída na ação de reparação. Cumpre dizer que para se configurar a responsabilidade do magistrado pela omissão, tal como se preceitua no artigo 133 supratranscrito, o interessado deverá, através do escrivão, notificar ao juiz o abuso, no intento de que este adote as providências necessárias num prazo de dez dias. Decorrido o prazo e nada tendo sido feito pelo magistrado competente, restará configurada a possibilidade da responsabilização movida pelo particular. A responsabilidade do magistrado, consoante se enxerga de uma análise literal do dispositivo do Código de Processo Civil supratranscrito, não está prevista em caso de culpa. Tal regramento, com a devida vênia, não parece estar conforme os valores do Estado Democrático de Direito. Restringir a possibilidade do Estado de responder por eventual erro judicial à comprovação de dolo, fraude ou omissão deliberada do magistrado é preservar a pretensa superiori-

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dade e infalibilidade do Poder Judiciário em detrimento dos direitos dos cidadãos. Casos em que se verifique a atuação judicial eivada de culpa grave, a exemplo, deveriam, necessariamente, ensejar responsabilidade estatal, de maneira a serem produzidos dois efeitos positivos de uma só vez no sistema jurídico brasileiro. Por um lado, conceder-se-ia justa indenização ao particular que se viu lesado em última medida pelo aparato estatal (o juiz representa, no exercício da competência de jurisdição, o próprio Estado-juiz), o qual deve, em qualquer ocasião, máximo respeito ao interesse público e às prerrogativas individuais, que lhe põem limites. Em outro aspecto, prezar-se-ia pelo bom funcionamento da justiça, estando repelidas as condutas que poderiam e deveriam ter sido evitadas ou percebidas pelo magistrado, que, pela função de relevo que exerce, tem o dever de proceder com limites mínimos de responsabilidade.

Diante de todo o exposto, conclui-se que apesar do longo caminho perfilhado em matéria de responsabilização civil do Estado, muito resta a ser feito. O Estado constitucional democrático em que vivemos, sobretudo a partir da promulgação da CF de 1988, exige a prevalência dos valores constitucionalmente garantidos nas mais diversas searas do direito. A dificuldade de se conceber a responsabilização estatal para além dos domínios da administração vai de encontro à histórica desigualdade da relação entre o Estado, ente soberano, e os particulares, subservientes aos seus interesses. A teoria da irresponsabilidade que vigia em um passado não tão distante, lega marcas até os dias atuais, junto à dificuldade de se conceber uma responsabilização estatal em forma de indenização por cada ato lesivo injustificado cometido na órbita dos direitos dos jurisdicionados. No que tange à responsabilidade jurisdicional do Estado pelos atos cometidos no exercício da jurisdição, os quais venha, porventura, a lesar o cidadão que busca no Estado-juiz a justa composição das lides, evidencia-se a necessidade da ampliação de entendimento. É dizer: na linha do esforço argumentativo que se pretendeu demonstrar no presente trabalho, aqui se entende pelo reforço necessário do acesso à justiça na sua mais ampla acepção. Acesso tal que não blinde nenhum órgão estatal da responsabilidade de resgatar o erro cometido, cuja existência produziu efeitos concretos no mundo dos fatos, na vida dos particulares. Os três Poderes a que faz referência o artigo 2º da CF de 1988 decorrem todos eles do poder que emana do povo, constante no parágrafo único do artigo 1º da mesma Carta. Poder do povo representa nada menos do que a soberania popular, verdadeira fonte dos órgãos do Estado, que apenas lhe serve aos propósitos. Sendo assim, certo é que a nenhum deles foi conferida a possibilidade de lesão aos particulares - os quais compõem o povo em todo considerado - sem que haja consequências de caráter indenizatório, a promover a justiça e a solidariedade social em cada caso concreto.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

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REFERÊNCIAS AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. A responsabilidade civil do Estado pelo exercício da função jurisdicional no Brasil. Interesse Público, Porto Alegre: Notadez, v. 9, n. 44, jul.-ago. 2007. ALCÂNTARA, Maria Emília Mendes. Responsabilidade ou irresponsabilidade do Estado. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 23. ed. São Paulo: Atlas, 2010. p. 664. BITTENCOURT, Marcus Vinicius Corrêa. Manual de direito administrativo. Belo Horizonte: Fórum, 2005. BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 10 ed. São Paulo: Malheiros, 2000. CAETANO, Marcelo. Princípios Fundamentais do Direito Administrativo. 1. Ed Rio de Janeiro: Forense, 1977. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 24. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2010. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 23. ed. São Paulo: Atlas, 2010. MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 16. ed. São Paulo: RT, 2012. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 30.ed. São Paulo:

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2010. CIVIL LIABILITY OF THE STATE BECAUSE OF JUDICIAL ACT RESUME: Proposes critical analysis about the state civil liability for judicial act that causes harm to individuals. Revisits concepts such as sovereignty and organic division of state functions. Attempts by doctrinal notes and relevant discussion, bring up little discussed topic, fighting for their viability. Keywords: State Responsibility. Criticism. Judicial act. Possibility.

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Recebido em 04 ago. 2015. Aceito em 24 out. 2015.

A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO NOS CRIMES COMETIDOS CONTRA TRANSGÊNEROS DENTRO DOS PRESÍDIOS MASCULINOS BRASILEIROS Anna Beatriz Alves de Oliveira* Tallita de Carvalho Martins*

RESUMO: Analisa a responsabilidade civil do Estado nos crimes cometidos contra transgêneros dentro dos presídios masculinos brasileiros. Tece considerações tocantes ao descaso da sociedade e do próprio judiciário quanto ao problema em pauta. uma metodologia analítica, trazendo para debate o papel do Poder Executivo enquanto garante dos direitos humanos dos presidiários, no geral, apresentando, portanto, contundente crítica a respeito do tema. Aponta para soluções que podem ser tomadas no contexto em tela. Observa a importância da participação da própria sociedade no fim da institucionalização de uma violência estrutural a qual respalda em grande parte a celeuma em questão. Palavras-chave: Responsabilidade civil do Estado. Transgêneros. Direitos

1 INTRODUÇÃO Considerando a evidente falibilidade do sistema carcerário brasileiro e a consequente e recorrente violação aos direitos humanos do preso, a presente pesquisa busca perquirir o contexto de agressões aos apenados transgêneros que, além de sofrerem com as misérias do cárcere, são alvos de preconceito. Suportam, assim, uma dupla penalidade configurada pela própria pena de prisão, além do cerceamento dos seus direitos constitucionais.

* Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, cursando o 8º período. ** Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, cursando o 8º período.

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humanos.

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Logo, o respectivo estudo se delineia no interesse de observar qual a responsabilidade civil do Estado, nesse contexto, e o que se fazer para que de fato esses presos tenham efetivadas as garantias as quais lhes foram previstas pela Constituição Federal de 1988. Porquanto, inúmeras são as notícias que repercutem as agressões aos presos transgêneros nas penitenciárias brasileiras, mas, ainda assim, muito pouco se tem feito a respeito. Destarte, o judiciário brasileiro parece não ter sido provocado no que tange a tal situação, considerando-se o silêncio da jurisprudência nesse assunto. Nesse sentido, muitos trabalhos têm analisado as implicações da responsabilidade estatal no tocante à morte e às lesões corporais sofridas pelos presos, de um modo geral e abstrato, dentro dos presídios. Todavia, pouco se fala sobre a violência institucional sofrida por aqueles os quais são submetidos ao sistema sob uma condição especial, relativa à desforia de gênero, e que, em razão disso, precisam ser tratados igualmente, na medida das suas desigualdades – máxima da isonomia na sua acepção material. Diante do exposto, a pesquisa em tela se apresenta socialmente relevante no sentido de encontrar soluções para o problema levantado, que, por sua vez, ultrapassem o quadro de medidas imediatistas adotadas pela direção dos presídios no país. Justifica-se, igualmente, pelo propósito de imiscuir no meio acadêmico a importância de se debater o assunto, considerando-se que o povo, no seu viés mais popular, pode/deve compreender a profundidade da problemática com afinco para, então, a partir de uma democracia mais participativa, ser também agente na mudança dessa realidade caótica. Logo, buscar-se-á tal objetivo mediante uma análise crítica do assunto levantado que explore e esclareça os pontos cruciais da questão delineada, focando assim uma metodologia analítica centrada na apreciação de julgados e teorias doutrinárias tangentes ao tema.

Sabe-se que a situação desse grupo de pessoas– Transgêneros –, hodiernamente, ganhou bastante repercussão social. Os veículos de comunicação, por seu turno, passaram a expor de maneira a chamar mais a atenção da sociedade para as violências e crimes cometidos em desfavor desses seres humanos. Nesse sentido, em primeira análise, cumpre esclarecer o termo, o qual, de acordo com o dicionário1, transgênero diz respeito àquele que mudou o gênero sexual; indivíduo que possui uma identidade de gênero oposta ao sexo designado (normalmente no nascimento). Contudo, trata-se de uma definição restrita que deve ser ampliada, tendo em vista a complexidade do tema. Feitas as devidas considerações, a questão, neste ponto, reside no fato de conhecer de

1  DICIONÁRIO INFORMAL. Significados de transgêneros. Disponível em: http://www.dicionarioinformal.com.br/transg%C3%AAnero. Acesso em: 16 jun. 2015.

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2 A DESFORIA DE GÊNERO E A SITUAÇÃO DOS TRANSGÊNEROS PERANTE O JUDICIÁRIO BRASILEIRO

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que maneira o Poder Judiciário brasileiro vem tratando, em seus julgados, os crimes cometidos contra os transgêneros nos presídios masculinos. Refere-se, em verdade, a uma situação considerada “nova” aos tribunais, tendo como reflexo a escassez de casos levados à Justiça. Entretanto, as decisões acerca de crimes praticados a quaisquer custodiados pelo Estado nos presídios, devem ser aplicadas, de igual modo, aos indivíduos portadores da condição ora discutida, tendo em vista a possibilidade de utilizar-se a analogia, nos casos em que a lei for omissa. Ademais, embasa-se tal argumento no princípio da isonomia, já que segundo o art. 5º, da CF/88: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...].

À guisa do exposto, passa-se à análise casuística de um julgado de Apelação Cível, pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, de um homicídio cometido contra um presidiário:

Diante disso, observa-se que, na falta de jurisprudência farta, bem como de lei específica sobre os crimes cometidos a presidiários transgêneros nos presídios masculinos, uma saída viável é aplicar, por analogia, a orientação de decisões, conforme a acima exposta. Por isso, verifica-se que a responsabilidade do Estado nesses casos é objetiva, tendo em vista seu dever de cuidado para com os indivíduos por ele custodiados. Nesse viés, em se tratando de um grupo de pessoas extremamente vulnerável, sobre o qual o Estado passa a prestar um papel de proteção, deverá também assumir a responsabilidade pelo dano ocorrido. Muito embora não haja uma causa direta e imediata, por um comportamento ativo seu, isto é, por uma situação propiciatória do dano por ele criada, tem-se uma omissão desencadeadora do risco analisado. Nessa perspectiva, há de se observar que ao serem colocados indevidamente em presídios masculinos, os transgêneros ainda têm de sofrer humilhações, discriminações e preconceito por parte dos outros presos em sua convivência. Logo, têm ferida a sua dignidade de diversas formas: uma vez pela estrutura debilitada das penitenciárias brasileiras que não lhes propiciam 2

TJ-RJ. APL 00123335920128190001. 22ª Câmara Cível. Rel. Des. Carlos Santos de Oliveira. j. 26.11.2013. DJe 08.01.2014.

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APELAÇÃO CÍVEL. DANOS MATERIAIS E MORAIS. MORTE DE PRESIDIÁRIO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO. DANOS NÃO CONFIGURADOS. - A responsabilidade do Estado pela morte do presidiário dentro da unidade prisional é objetiva, independentemente, do fato gerador do passamento, isto é, se causado por ato de agente, por ato de outros detentos, ou do próprio falecido. Sabe-se que ao Estado compete o dever de manutenção da integridade física e da vida do preso quando este se encontre sob sua custódia. - Na espécie, dentre os elementos da responsabilização objetiva, o fato e o nexo de causalidade encontramse comprovados de forma inequívoca.2 (grifos acrescidos).

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o mínimo de salubridade e, ainda, com o escárnio por parte dos companheiros de cela que não aceitam e tampouco entendem a condição à qual aquelas pessoas estão submetidas. Certamente, na tentativa de não incorrer nessa dupla penalidade sofrida –inobservância dos direitos fundamentais à pessoa humana e agressões por parte dos outros presos – é que foi concedida aos transgêneros uma ala especial no presídio de Igarassu, na Região Metropolitana de Recife. Segundo o relato de um dos presos na reportagem realizada3, em sua cela havia treze homens que não o deixavam comer ou beber; acordavam-no com bucha quente nos pés; queimavam-no com plásticos; batiam, e colocavam sacos em sua cabeça. E, ainda, conforme a mesma reportagem, o promotor da Vara de Execuções Penais do Ministério Público de Pernambuco, Marco Aurélio Farias, afirmou que a iniciativa minimiza os crimes sexuais e a exploração do trabalho não remunerado dessas pessoas por parte dos demais presos. No entanto, esse é apenas um exemplo caricatural da situação pela qual muitos transgêneros têm de se submeter ao serem postos em presídios masculinos. Trata-se de uma realidade pouco analisada, sob o ponto de vista jurídico, devendo, contudo, passar por transformações, com o objetivo de se tutelar a dignidade desses seres humanos, bem como outros direitos e garantias individuais a que fazem jus.

Trabalhar a responsabilidade civil do Estado, antes de tudo, requer o reconhecimento de três fatores que elucidam a configuração deste instituto, quais sejam: as teorias que o definem; a quem efetivamente se aplica e quais os seus efeitos. Isso porque, é a partir do entendimento conjunto desses aspectos que se poderá analisar a sua aplicabilidade em casos concretos, a exemplo do tratado no trabalho em pauta. Nesse sentido, fazendo-se um recorte no que diz respeito à omissão estatal na tutela dos direitos humanos dos presos transgêneros dentro das penitenciárias brasileiras, duas são as teorias doutrinariamente dominantes: de um lado, a da responsabilidade subjetiva por omissão e, de outro, a da responsabilidade objetiva do Estado. Para Maria Sylvia Di Pietro (2014, p. 727), segundo a teoria da responsabilidade subjetiva por omissão, “o Estado responde desde que o serviço público (a) não funcione, quando deveria funcionar; (b) funcione atrasado; ou (c) funcione mal. Nas duas primeiras hipóteses, tem-se a omissão danosa”. Entretanto, para a doutrina majoritária4, em casos de omissão, deve-se aplicar a teoria 3  OLIVEIRA, Wagner. Transgêneros ganham ala especial em presídio no Grande Recife. Pernambuco.com, Pernambuco, 2 jan. 2015. Disponível em: http://blogs.diariodepernambuco.com.br/segurancapublica/?p=7750. Acesso em: 04 ago. 2015. 4

Nesse sentido, José Cretella Júnior (1970); Juan Carlos Cassagne (2005); Flávio de Araújo Willeman (2005).

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3 A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO FRENTE AO NEXO DE CAUSALIDADE ENTRE A CONDUTA ESTATAL E OS CRIMES ANALISADOS NO CONTEXTO EM TELA

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da responsabilidade objetiva, preceituada pelo art. 37, § 6º, da CF/88. Desse modo, basta demonstrar que o prejuízo sofrido teve um nexo de causa e efeito com o ato comissivo ou com a omissão. Não haveria que se cogitar de culpa ou dolo, mesmo no caso de omissão”. (DI PIETRO, 2014, p. 727). Na perspectiva de José Cretella Júnior (1970, p. 210):

Conforme colocado por Cretella (1970), na citação supra, a inércia do Poder Executivo, sobretudo na concretização de políticas públicas que interrompam o mal infligido pela falibilidade do sistema penal, é o grande fator propulsivo a uma responsabilidade punível. Ora, se o Estado tem como diretriz máxima a “justiça” retributiva e, nesse aspecto, uma política criminal de encarceramento, porque não responder igualmente pelos seus atos? Os quais, muito embora sejam velados e suavizados pela própria nomenclatura – omissão – atingem de forma ainda mais brutal toda a sociedade. Flávio Araújo Willeman, citando Juan Carlos Cassagne (2005, p. 122), ensina, por exemplo, que “a chave para determinar a falta de serviço e, consequentemente, a procedência da responsabilidade estatal por ato omissivo se encontra na configuração ou não de uma omissão antijurídica”. Complementa, ainda, dizendo que “a configuração de dita omissão antijurídica requer que o Estado ou suas entidades descumpram uma obrigação legal expressa ou implícita”. Nessa linha de intelecção, não se pode esquecer que a Lei de Execução Penal preceitua claramente como deve ser a atuação estatal em relação aos presos, oferecendo-se assistência e orientando o seu retorno à convivência em sociedade. Assistência essa, por sua vez, a qual, segundo o art. 11, I-VI, deste diploma, será: “material; à saúde; jurídica; educacional; social e religiosa”. Portanto, fazendo-se uma comparação entre o quadro do sistema penal brasileiro e essas disposições legislativas, não há dúvida que a dita “omissão antijurídica”, nos dizeres de Willeman (2005), vê-se plenamente configurada. Endossando o raciocínio, na visão de Celso de Mello (2005), o ambiente prisional, por si só, oferece riscos à integridade física e, sobretudo, psíquica do detento. Desse modo, o Estado deverá responder objetivamente quando, por omissão, não age em situação que deveria agir; nesse caso, deixando de tutelar as garantias constitucionais asseguradas aos presos. Por outro lado, a responsabilidade objetiva por danos oriundos de coisas ou pessoas perigosas sob a guarda do Estado aplica-se, até mesmo, às outras pessoas que se achem sob tal guarda, como na ocasião em que um detento fere outro.

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a omissão configura a culpa in omittendo ou in vigilando. São casos de inércia, casos de não-atos. Se cruza os braços ou se não vigia, quando deveria agir, o agente público omite-se, empenhando a responsabilidade do Estado por inércia ou incúria do agente. Devendo agir, não agiu. Nem como o bonus pater familiae, nem como bonus administrator. Foi negligente. Às vezes imprudente ou até imperito. Negligente, se a solércia o dominou; imprudente, se confiou na sorte; imperito, se não previu a possibilidade de concretização do evento. Em todos os casos, culpa, ligada à ideia de inação, física ou mental.

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Violência sem agressão física, aparentemente, não violenta, mas de eficácia muito maior porque causa não apenas dor, mas dor significada. Violência dirigida não

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STF. RE 590939 – AM. Rel. Min. Dias Toffoli. j. 07.12.2012. DJe 04.02.2013.

6  SILVA, Rebeca. Transgêneros ganham ala especial em presídio no Grande Recife. Diário de Pernambuco. 2015. Disponível em: http://blogs.diariodepernambuco.com.br/segurancapublica/?p=7750. Acesso em: 05 jun. 2015. 7  BRAGON, Rayder. Gays foram espancados em presídio de Minas Gerais, diz relatório de órgão do governo. UOL. Cotidiano. 2015. Disponível em: http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2011/05/12/gays-foram-espancados-em-presidio-de-minas-gerais-diz-relatorio-de-orgao-do-governo.htm. Acesso em: 05 jun. 2015. 8  ASSOCIAÇÃO DOS MAGISTRADOS MINEIROS. Cadeia exclusiva para homossexuais. 2014. Disponível em: http://amagis.jusbrasil.com.br/noticias/111936335/cadeia-exclusiva-para-homossexuais. Acesso em: 05 jun. 2015. 9  BOFF, Leonardo. Entender a violência? Disponível em: <http://www.leonardoboff.com/site/vista/2001-2002/entenderviol.htm>. Acesso em: 01 ago. 2013.

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Por seu turno, o próprio Supremo Tribunal Federal tem se pronunciado inúmeras vezes a respeito, consignando que “[...] o Estado tem o dever objetivo de zelar pela integridade física e moral do preso sob sua custódia, atraindo então a responsabilidade civil objetiva, razão pela qual é devida a indenização por danos morais e materiais decorrentes da morte do detento”5. Dessa forma, outra não poderia ser o tipo de responsabilidade aplicada para os casos retratados em inúmeras notícias que repercutem as violentações aos presos transgêneros nas penitenciárias brasileiras6. O estado de Minas Gerais tem intentado desde 2009 implantar algumas medidas para a solução dessa problemática que, contudo, não têm sido suficientes em face da amplitude do problema. Por exemplo, a criação da ala LGBT em alguns presídios do supracitado estado tem servido de paliativo para a questão, depois que o Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos (Conedh) reportou casos de violação aos presidiários transgêneros, por parte dos próprios agentes penitenciários7. A medida se espalhou pelo país e, atualmente, estados como Mato Grosso, Paraíba e Rio Grande do Sul já possuem um espaço reservado para esses presos8. No entanto, longe de ser a melhor solução, tal iniciativa não passa de uma alternativa segregadora e correcional, ainda mais violadora dos direitos humanos dessas pessoas, que vem para suprir uma falha sucessiva do Estado na concessão de um tratamento digno a esses indivíduos. Assim, tem-se configurada uma violência estrutural que transforma a violência individual cometida pelos presos em algo muito maior do que realmente é. O Estado, a fim de eximir a sua responsabilidade, faz o povo acreditar na inexistência dessa violência institucionalizada. Logo, por trás de uma política de defesa social, deixa-se em evidência a marginalização daqueles indivíduos selecionados que devem ser atacados pela sociedade e pela mídia. Aliás, a violência estrutural se configura como a violência oriunda não da ação de um indivíduo, mas de um conjunto de omissões que dificultam o acesso aos benefícios do progresso econômico (GALVÃO; MARTINS, 2013). Segundo Leonardo Boff 9, é estrutural, pois é própria do sistema econômico adotado: o capitalismo, enquanto regime essencialmente perverso, gerador de opressão, eventualmente desdobrando-se em repressão. Para melhor compreensão do termo, nas palavras de Marcos Monteiro:

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contra o corpo, mas contra o desejo, a alegria, o amor e a vontade de viver. Violência contra a capacidade de transcendência humana, contra a possibilidade do ser humano ser mais do que um corpo. Incruenta e indolor é o espaço de todas as outras dores, a autorização organizada para as violências físicas, legalizadas e ilegais. A violência estrutural afunila a sociedade, criando uma desigualdade tão desigual que autoriza os sentimentos de injustiça e espoliação sistêmicos, justificando o egoísmo, o crime, a matilha humana prestes a se lançar sobre pessoas e objetos, com a fúria do coração voraz.10

Nesse contexto, ressalta-se a necessidade premente de recair sobre o Estado a sua responsabilidade em face da falha na consecução dos seus deveres. Desta feita, em suma, para a configuração da responsabilidade objetiva se exige a ocorrência do dano, aqui configurado no que tange à evidente violação dos direitos humanos dos presos transgêneros, no ambiente penitenciário, interligado, por sua vez, com a ação ou omissão administrativa – falha estatal na tutela das garantias albergadas pela CF/88) – através de um nexo de causalidade incontestável. Ora, se o Estado incorporasse devidamente o seu papel de garante e não deixasse de agir quando deveria, é certo que o quadro de violação aos direitos humanos das pessoas as quais se submetem ao sistema penal seria indubitavelmente outro. Logo, configurado o nexo causal e não havendo causa excludente da responsabilidade estatal, presentes estão os fatores que dão azo a uma possível indenização tanto aos os presos agredidos quanto aos seus familiares, conforme será melhor analisado na seção seguinte.

Conforme demonstrado no tópico anterior, o qual concerniu acerca da Responsabilidade Objetiva do Estado nas relações de custódia dos presos transgêneros em presídios masculinos, sabe-se que essa modalidade só é assim adotada nesses casos, pois se trata de pessoas com as quais tem o Estado tem o dever de proteger. Por isso, não se faz necessária a comprovação de uma conduta dolosa ou culposa, já que basta a comprovação da relação de causa e efeito entre o comportamento administrativo e o evento danoso. Dessa maneira, ocorrendo quaisquer crimes contra os transgêneros nessa situação e estando preenchidos os requisitos da referida responsabilidade civil do Estado, há que se falar no dever estatal de indenização, como uma forma de compensar os danos sofridos pelo preso, estendendo-se, inclusive, aos familiares. Tal qual já se afirmou anteriormente, poucos são os julgados acerca dos crimes específicos contra essa classe de pessoas nos presídios masculinos, contudo, há de se utilizar, nesses casos, o mesmo raciocínio das demais decisões, segundo se demonstra a seguir: 10  MONTEIRO, Marcos. A violência estrutural na nossa vida cotidiana. 2010. Disponível em: <http://www.ejesus.com.br/artigos/a-violencia-estrutural-na-nossa-vida-cotidiana>, acesso em 19 de maio de 2013.

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4 O DIREITO À INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS TANTO DO PRESO AGREDIDO QUANTO DOS SEUS FAMILIARES

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INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. ASSASSINATO DE PRESO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. DIREITO À INCOLUMIDADE. INDENIZAÇÃO. IRMÃS. DANOS MORAIS. É dever do Estado zelar pela incolumidade dos presos, sendo responsável pela indenização por danos que vierem a sofrer nas prisões, independentemente da prova de culpa dos servidores do presídio. Embora seja justificável a indenização por danos morais, não é devida a indenização por danos materiais se não há prova hábil a demonstrar que os irmãos dependiam financeiramente da vítima. A verba indenizatória decorrente de dano moral tem como objetivo minimizar a dor e a aflição suportada em decorrência da morte da vítima.11 (grifos acrescidos).

Nesse sentido, a Administração Pública, quando não conseguir evitar o prejuízo, deve prestar a tutela jurisdicional de indenização. Por isso, resta demonstrado o dever estatal de indenizar os danos, material e moral, quando comprovados, causados ao preso e à sua família, sendo, portanto, um meio minimizador do descaso aos transgêneros, ainda que não seja uma solução reparadora suficiente. Inclusive, recentemente, no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 580252, com repercussão geral, em que se discutiu a responsabilidade civil do Estado por danos morais decorrentes de superlotação carcerária, o ministro Luís Roberto Barroso, em seu voto, propôs a remição de dias da pena quando for cabível a indenização. Trata-se de uma alternativa bastante inovadora, mas igualmente viável, sobretudo em face das alegações do Estado quanto à indisponibilidade do erário publico para pagamentos em pecúnia.12 Nas exatas palavras do supracitado ministro:

Assim, quanto à relação entre o preso recolhido em estabelecimento prisional e a responsabilidade civil da Administração é clarividente que, por se tratar de uma relação de custódia, tem o Estado o dever de assegurar-lhe a incolumidade física e a segurança, posto que

11  TJ-MG. APL 10223120039001001. 7ª Câmara Cível. Des. Rel. Eander Marotta. j. 26.03.2014 12  NOTÍCIAS STF. Ministro Barroso propõe remição como forma de indenizar presos em condições degradantes. Imprensa. 06 maio 2015. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=290987. Acesso em: 04 ago. 2015. 13  NOTÍCIAS STF. Ministro Barroso propõe remição como forma de indenizar presos em condições degradantes. Imprensa. 06 maio 2015. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=290987. Acesso em: 04 ago. 2015.

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O Estado é civilmente responsável pelos danos, inclusive morais, comprovadamente causados aos presos em decorrência de violações à sua dignidade, provocadas pela superlotação prisional e pelo encarceramento em condições desumanas ou degradantes. Em razão da natureza estrutural e sistêmica das disfunções verificadas no sistema prisional, a reparação dos danos morais deve ser efetivada preferencialmente por meio não pecuniário, consistente na remição de 1 dia de pena por cada 3 a 7 dias de pena cumprida em condições atentatórias à dignidade humana, a ser postulada perante o Juízo da Execução Penal. Subsidiariamente, caso o detento já tenha cumprido integralmente a pena ou não seja possível aplicar-lhe a remição, a ação para ressarcimento dos danos morais será fixada em pecúnia pelo juízo cível competente.13

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14  BRASIL. Lei nº 7210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Diário Oficial [da República Federativa do Brasil], Brasília, 163º da Independência e 96º da República. 15

STF. RE 638467. Plenário. Rel. Min. Luiz Fux. j, 20.09.2012. DJ 04.10.2012.

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STF. RE 638467. Plenário. Rel. Min. Luiz Fux. j, 20.09.2012. DJ 04.10.2012.

17  STF. Responsabilidade por morte de detento tem repercussão geral. Disponível em < http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=227684>. Acesso em 04 ago. 2015.

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propiciou a ocorrência da situação que levou à emergência do dano. Com a evolução das teorias sobre esse assunto, chegou-se à atual Teoria da Responsabilidade Objetiva, ora adotada pela CF/88, em seu art. 37, 6º, tendo sido essa a teoria escolhida pela doutrina e jurisprudência para reger as relações de custódia. Nesse ponto, é mister analisar que o referido avanço de ideias e posicionamentos foi válido, pois só assim pôde se conceber maior proteção àqueles que, muitas vezes, eram vítimas de homicídios, lesões corporais etc., sem, contudo, ter um respaldo estatal, seja para prevenir, seja para indenizar as vítimas e suas famílias. De alguma forma, essa tutela, hodiernamente, concedida aos presidiários, representa uma tentativa de evitar que novos crimes sejam praticados aos presos, e que aqueles que o sejam, tenham a devida sanção, servindo como exemplo para que não se repitam. É, também, uma evolução do ponto de vista da aplicação plena e efetiva dos direitos fundamentais, pois se está promovendo o direito à dignidade e à vida, dentre outros, na medida em que a Administração Pública torna-se responsável por manter intactos todos os direitos do preso que não foram restritos ou eliminados pela pena14. Essa ideia pode ser demonstrada por meio de um julgado datado de 201215, em que se discutiu, no Supremo Tribunal Federal, o alcance da responsabilidade do Poder Público no caso de morte de detento sob sua custódia, independentemente da causa dessa morte. A questão foi debatida no Recurso Extraordinário com Agravo, em que o Estado do Rio Grande do Sul contesta decisão do Tribunal de Justiça gaúcho (TJ-RS) que determinou aos cofres estaduais o pagamento de indenização à família do presidiário morto. Nesse caso especificamente, não ficou comprovada se a causa da morte (asfixia mecânica) foi provocada por homicídio ou suicídio. No recurso, o Estado do Rio Grande do Sul alega que o nexo causal é imprescindível para que se estabeleça a condenação do Estado. Argumenta ainda que, no caso dos autos, não comprovada a hipótese de homicídio e com fortes indícios de suicídio, “não há como impor ao Estado o dever absoluto de guarda da integridade física dos presos”.16 Por outro lado, o TJ-RS considerou que há, sim, a responsabilidade do Poder Público, conforme estabelece o art. 37, parágrafo 6º, da CF/88. O acórdão recorrido destacou que “a responsabilidade será objetiva, se a omissão for específica, e subjetiva, se a omissão for genérica.” Para a corte gaúcha, “no caso em análise, a omissão é específica, pois o Estado deve zelar pela integralidade física dos internos em estabelecimentos penitenciários que estão sob sua custódia, tendo falhado nesse ínterim”17. A despeito de o Estado do Rio Grande do Sul ter argumentado que em se tratando de suicídio não tem ele como evitar, assim como alegam outros Estados, no intuito de eximirem-se da obrigação de tutelar os indivíduos que estão sob sua custódia, é certa a responsabilidade

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objetiva do Poder Público nesses casos e já pacificado entre os tribunais. Porém, essa tese defendida por alguns Estados precisa ser rechaçada, em virtude da defesa dos direitos humanos e fundamentais, elencados na Constituição Federal de 1988. Não é porque se tratam de presidiários, que, devido a algum crime por eles cometido, a sua liberdade foi cerceada, e, além desse direito, tenham de estar desprotegidos por outros, como o direito à dignidade, e à vida, essencialmente. Tendo em vista o exposto neste ponto, sob a égide garantias fundamentais tuteladas pela Constituição Federal de 1988, que constituem a base do Estado Democrático de Direito, observa-se que o Estado tem o dever de proteger de modo eficiente os custodiados e, ainda mais, os transgêneros em presídios masculinos, levando-se em consideração seu estado mais suscetível de sofrer crimes por parte de outros presos.

Sintetizando o raciocínio trabalhado neste artigo, cumpre destacar o foco desse estudo quanto à evidente falha do Estado na concessão das garantias devidas aos presidiários que estão sob a sua tutela, sejam eles transgêneros ou não. Responsabilidade essa, por sua vez, pela qual deverá responder objetivamente. Além disso, considerando-se aqueles apenados que possuem uma desforia de gênero, faz-se necessário, ainda, um tratamento isonômico, na sua acepção material; isto é, na medida das suas desigualdades. Pois, em face das suas condições especiais, esses presos não podem receber o mesmo tratamento conferido aos demais, sendo obrigados, por exemplo, a conviverem com as adversidades de um presídio masculino quando, em essência, são mulheres, tal qual foi analisado no artigo em pauta. Conforme visto, trata-se de questão bastante sensível e, em razão dessa sensibilidade, deve ser trabalhada com a acuidade que merece. Porém, infelizmente essa ainda não é uma pauta ordinária do legislativo brasileiro e/ou tampouco do judiciário. Dessa forma, as agressões e violações aos direitos humanos dessas pessoas são reiteradas dia após dia. Devem ser garantidos, nesse viés, os direitos à vida, à igualdade, à liberdade, à intimidade, à honra, e à segurança em geral. O Estado deve, sobretudo, dispor de instrumentos hábeis e eficazes para assegurar tais direitos, e, no caso de não conseguir evitar os danos, deve indenizar proporcionalmente, seja ao preso, seja à sua família. Nesse sentido é que se faz importante um estudo na linha de raciocínio aqui perquirida a fim de que, pelo menos, o assunto seja debatido para poder ser em algum momento questionado pelos tribunais superiores do país, no intuito de se fazer cessar a violência estrutural a qual “adoece” o Estado e assola a nação das mais variadas maneiras.

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5 CONCLUSÃO

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REFERÊNCIAS CRETELLA JÚNIOR, José. Tratado de direito administrativo. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1970. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 27. ed. São Paulo: Atlas, 2014. GALVÃO, Giovana Mendonça; MARTINS, Tallita de Carvalho. Criminalização da pobreza: o produto de uma violência estrutural,Transgressões, Natal, v. 1, n. 2, jun. 2013. Disponível em: <http://www.periodicos.ufrn.br/transgressoes/article/view/6576/5089>. Acesso em: 09 jun. 2015. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. WILLEMAN, Flávio de Araújo. Responsabilidade civil das agências reguladoras. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2005. CIVIL LIABILITY OF STATE IN THE CRIMES COMMITTED AGAINST TRANSGENDER INSIDE THE BRAZILIAN’S MALE PRISONS

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RESUME: Analyzes the civil liability of the State in the crimes committed against transgender people within the Brazilian male prisons. Weaves considerations about the indifference of society and the judiciary itself to the problem at hand. Critically debate the role of the state as the guarantor of human rights of prisoners in general. It points to solutions that can be taken on the screen in context, like compensation for moral and material damages. Notes the importance of the participation of society itself down the institutionalization of a structural violence which supports largely the problem in question. Keywords: State liability. Transgender. Human rights.

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Recebido em 21 ago. 2015. Aceito em 24 out. 2015.

A RESPONSABILIDADE CIVIL PELO ABUSO DO DIREITO À LIBERDADE DE EXPRESSÃO EM CONFLITO COM OS DIREITOS DA PERSONALIDADE: UMA ANÁLISE DO CASO DAS BIOGRAFIAS NÃO AUTORIZADAS. Elizângela Isidoro da Silva* Renan Emanuel Alves Pinto**

1 INTRODUÇÃO O tema que se propõe no presente trabalho perpassa diversos aspectos jurídicos. Inicialmente trata-se de avaliar o choque entre os direitos da personalidade e o direito à liberdade de expressão que, em última instância, é também um direito da personalidade. Além de buscar entender os institutos jurídicos em conflito, intenta-se compreender o tratamento dado aos casos de colisão entre direitos fundamentais. A doutrina e jurisprudência têm encontrado na

* Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, cursando o 10º período. ** Graduando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, cursando o 10º período.

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RESUMO: Aborda a temática da responsabilidade civil frente ao conflito entre os direitos da personalidade e o direito à liberdade de expressão. Considera que os dois mencionados direitos são inerentes à pessoa humana e classificados como direitos fundamentais. Trata das consequências jurídicas, no âmbito da responsabilidade civil, dos danos causados pelo abuso do direito à liberdade de expressão. Usa-se como parâmetro de caso concreto a atual polêmica em torno das biografias não autorizadas, verificando-se a solução jurídica pela qual optou o STF e sua repercussão frente ao direito à indenização que possui aquele que é vítima de dano. Palavras-chave: Direitos da personalidade. Liberdade de expressão. Responsabilidade civil.

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hermenêutica constitucional a solução adequada para tais casos, por meio da ponderação de interesses. A seguir, lança-se mão do emblemático caso das biografias não autorizadas para ilustrar o tema. O caso eleito trata de forma clara a questão do conflito dos direitos fundamentais. E diante da solução alcançada pelo STF, que fez valer o direito à liberdade de expressão quando deu nova interpretação aos artigos 20 e 21 do Código Civil, vetando a censura prévia às biografias, pergunta-se: a quantas fica a reparação da parte que se sente lesada pelo texto de uma biografia? É o percurso que se pretende trilhar no texto que segue. A metodologia utilizada foi a da pesquisa bibliográfica e jurisprudencial.

2 OS DIREITOS DA PERSONALIDADE A pessoa humana possui características próprias que são protegidas pelo ordenamento jurídico; são direitos inalienáveis, que se encontram fora do comércio. “A concepção dos direitos da personalidade apoia-se na ideia de que, a par dos direitos economicamente apreciáveis, como à propriedade ou ao crédito, outros há inerentes à pessoa humana” (GONÇALVES, 2009, p. 153). Tal categoria de direitos é corolário do princípio da dignidade da pessoa humana, reconhecido pela Declaração dos Direitos do Homem, de 1789 e de 1948, das Nações Unidas, no imediato pós-guerra; muito embora o cristianismo na antiguidade já se ocupasse com o tema. No âmbito constitucional a dignidade da pessoa humana é consagrada como fundamento da República Federativa do Brasil, no artigo 1º, inciso III, da CF/88, decorrendo daí os demais direitos da personalidade, que estão elencados no artigo 5º. A dignidade da pessoa humana é considerada o marco jurídico básico dos direitos da personalidade. Maria Helena Diniz (2006, p. 249) define da seguinte forma os direitos da personalidade:

Francisco Amaral (2008, p. 284) os define como: Direitos subjetivos, que conferem ao titular o poder de agir na defesa dos bens ou valores essenciais da personalidade, que compreendem o aspecto físico (o direito à vida e ao próprio corpo); o aspecto intelectual (o direito à liberdade de pensamento, direito de autor e direito de inventor) e o aspecto moral (o direito à liberdade, à honra, ao recato, ao segredo, à imagem, à identidade e, ainda, o direito de exigir de terceiros esse direito).

Entende Amaral (2008, p. 284) que o que se busca proteger com tais direitos são os atributos específicos da personalidade, sendo sua razão de ser a necessidade de uma contribuição

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São direitos subjetivos da pessoa de defender o que lhe é próprio, ou seja, a sua integridade física (vida, alimentos, próprio corpo, vivo ou morto, corpo alheio, partes separadas do corpo vivo ou morto); a sua integridade intelectual (liberdade de pensamento, autoria científica, artística e literária) e sua integridade moral (honra, recato, segredo pessoal, profissional e doméstico, imagem, identidade pessoal, familiar e pessoal).

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normativa que discipline a proteção jurídica que o direito e a política vêm reconhecendo à pessoa. Caracterizam-se os direitos da personalidade por serem essenciais, inatos e permanentes, pois que nascem com a pessoa e a acompanham por toda a existência: são vitalícios. Caracterizam-se, ainda, por serem irrenunciáveis, impenhoráveis, inerentes e intransmissíveis e, por isso, se chamam direitos personalíssimos (GONÇALVES, 2009, p. 156). Além do artigo 1º, III, o maior avanço em termos constitucionais, relativos à proteção aos direitos da personalidade está expresso no artigo 5º, X, da CF/88: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurados o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. No Código Civil, o Capítulo II (art. 11 a 21), trata igualmente a matéria. O artigo 12, do mesmo diploma legal, resguarda o direito à reparação por lesão aos direitos de personalidade: “Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei”. Os artigos 20 e 21, do Código Civil, a seguir transcritos, foram objeto de recente litígio em sede de controle de constitucionalidade. Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais. Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.

Decidiu o STF, na ADI 4815 DF, por interpretar o dispositivo à luz dos preceitos constitucionais, entendendo que no caso das biografias não autorizadas não cabe ao biografado exercer censura prévia sobre o conteúdo da biografia. No embate de direitos fundamentais, prevaleceu a liberdade de expressão, da qual se trata a seguir para, então, retomar-se o tema das biografias.

3 O DIREITO À LIBERDADE DE EXPRESSÃO A liberdade é uma das conquistas mais árduas e caras da sociedade ocidental. Também um dos direitos mais enaltecidos como ícones de civilidade e emblemático do Estado Democrático de Direito. O direito à liberdade é também um direito da personalidade, sendo igualmente um corolário do princípio da dignidade da pessoa humana. O Estado democrático se justifica como instância assecuratória das liberdades, como também como mediador na solução de con-

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Art. 21. A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma.

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4 O CONFLITO ENTRE OS DIREITOS DA PERSONALIDADE E O DIREITO À LIBERDADE DE EXPRESSÃO: O CASO DAS BIOGRAFIAS NÃO AUTORIZADAS. Os direitos fundamentais muitas vezes se encontram em situação de confronto com outros direitos de mesmo status. Com o direito à liberdade de expressão, em que pese o seu

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flitos, entre pretensões colidentes resultantes dessa liberdade. A liberdade de expressão é o âmbito das liberdades que se quer tratar no presente trabalho. Como direito fundamental ela está expressa na CF/88 de modo direto, no artigo 5º, IV: “é livre a liberdade de expressão, sendo vedado o anonimato”, bem como no inciso XIV: “é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”. Ainda, dispõe o artigo 220, da CF/88 : “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta constituição”. Segundo Mendes (2009, p.451), “a garantia da liberdade de expressão tutela, ao menos enquanto não houver colisão com outros direitos fundamentais, toda opinião, convicção, comentário, avaliação ou julgamento sobre qualquer assunto”. A liberdade de expressão requer do Estado uma postura de abstenção, de não interferência sobre a esfera do direito à liberdade do indivíduo. A liberdade de expressão não deve encontrar obstáculos jurídicos ao seu exercício. O Estado Democrático de Direito não deve proibir a circulação de informações, pois é esse veicular informativo que conduz à democracia. Note-se, que em regimes ditatoriais, como o que sucedeu no Brasil, o direito de informar, a liberdade de pensamento e de expressão são veementemente reprimidos. Estabelecer barreiras prévias a esse direito fundamental torna ainda mais gravosa a ofensa à liberdade. O controle mais adequado para situações em que as informações são veiculadas de maneira abusiva é a regulação posterior. O autor da comunicação deve ser responsabilizado e o direito de resposta proporcional deve ser concedido (FARIAS; ROSENVALD; BRAGA NETTO, 2014, p. 737). Importante destacar que o direito fundamental à liberdade de expressão não foi outorgado sem limites. Estes existem. Sejam os previstos diretamente pelo legislador, sejam os resultantes da colisão desse direito com outros do mesmo status. A proibição do anonimato, as restrições a determinadas publicidades, a coibição do discurso de ódio, são exemplos de limites salutares impostos à liberdade. Conforme afirma Leonardo Martins (2012, p. 218), em geral, um direito fundamental encontra limites fixados por reservas legais que autorizam o legislador a criar óbices, impedimentos e condições ao seu livre exercício. Em não havendo reserva legal, pode, ainda, haver limitação derivada da colisão de direitos, situação na qual se impõe a análise do caso concreto, mediante técnica de ponderação. Que será tratada a seguir.

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inestimável valor para a sociedade democrática, não é diferente. Constantemente tem-se notícia da sua colisão com outros direitos fundamentais, sobretudo os da personalidade, no que tange ao aspecto da honra, vida privada, imagem e intimidade, igualmente assegurados no artigo 5º, inciso X, CF/88: “São invioláveis o direito à honra, à vida privada e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. Os direitos tutelados pelo artigo 5º, X, da CF/88, constantemente entram em choque com o direito à liberdade de expressão, por serem antagônicos por natureza. É fácil perceber a contradição dos institutos jurídicos: expressão-privacidade, informação-intimidade, as palavras falam por si. E como o ordenamento jurídico lida com isso? A questão nos remete para a hermenêutica constitucional. A solução encontrada para dirimir os conflitos entre princípios antagônicos tem como artífice o jurista alemão Robert Alexy. Trata-se da técnica da ponderação de interesses. Diante da inexistência de hierarquia entre os princípios, busca-se, frente ao caso concreto, em que ocorra a colisão, o sopesamento dos princípios e direitos fundamentais, para se buscar o melhor caminho. Trabalha-se a proporcionalidade, avaliando-se casuisticamente que direito deve prevalecer. De acordo com Farias, Rosenvald e Braga Netto (2014, p. 754), no processo de ponderação faz-se necessário a análise de três postulações basilares. 1) Inicialmente , é imprescindível a aplicação diante do caso concreto. 2) Uma solução dada a determinado caso não vinculará outra situação em que esses mesmos direitos colidirem, em um contexto diferente. 3) Muitas vezes, a solução adequada residirá em concessões de ambos os lados conflitantes, mediante ponderação de interesses. Diversos são os embates de que se tem notícia. Os avanços tecnológicos e a possibilidade de acesso dos indivíduos às inovações e a disseminação da informação numa velocidade vertiginosa, propiciada pela eclosão das redes sociais, têm originado inúmeras lides em que se debate o conflito dos direitos à liberdade em oposição à intimidade, vida privada e honra. O mais recente e propagado refere-se à celeuma em torno das biografias não autorizadas. De um lado o direito à liberdade de expressão, pensamento e integridade intelectual; de outro, os direitos da personalidade referentes à integridade moral dos indivíduos. A questão foi objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4815 DF, ajuizada pela Associação Nacional dos Editores de Livros, tendo em vista a interpretação dada aos artigos 20 e 21, do Código Civil. Em decorrência dos citados dispositivos, as biografias não autorizadas no Brasil estavam sujeitas à censura prévia do biografado. Como é cediço, a censura é expressamente proibida pela CF/88. No entanto, até então, tinha prevalecido o texto infraconstitucional insculpido no Código Civil. Casos notórios de proibição de publicações vieram à tona. Figuras de renome nacional, com importância histórica, tiveram aspectos de suas biografias vetados: Lampião, Manoel Bandeira, Garrincha, Noel Rosa, são alguns exemplos de personalidades notórias cujo destino de suas biografias foi parar nos tribunais em ações promovidas, sobretudo, por seus familiares.

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Entendeu a Corte Suprema que a interpretação dos artigos 20 e 21, à luz dos preceitos constitucionais, autorizaria a publicação de biografias sem o consentimento prévio do biografado. No embate de direitos fundamentais prevaleceu o direito à liberdade de expressão, a livre manifestação do pensamento, da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação (CF/88, art. 5º, IV e IX) frente ao direito à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem (CF/88, art. 5º, X). Valeu-se o Supremo Tribunal Federal da técnica da ponderação de interesses para o deslinde da questão. E, no caso em apreço, prevaleceu o valor da liberdade e da possibilidade de se contar a história do país por meio das biografias. A questão que se coloca a partir daí concerne à proteção à integridade moral. Com a nova interpretação dada aos artigos 20 e 21 do Código Civil, estariam os direitos da personalidade, no que se refere à integridade moral, desprovidos de proteção?

As biografias geralmente retratam a vida de pessoas importantes para a história de um país ou de um povo. Personagens influenciadores da cultura de uma nação. Ícones ou símbolos de uma ideologia, líderes, revolucionários. A biografia poder ser considerada um ramo da historiografia. Nesse sentido, a limitação imposta ao trabalho dos biógrafos constitui um obstáculo a retratar a história de uma nação. Para os defensores da liberação, “a proibição de biografias não autorizadas é um monopólio da história, típico de regimes totalitários”1. Por outro lado, questionamentos são feitos, quando os relatos não são fiéis aos fatos. Como provar a intencionalidade do autor ao transmitir informações falsas, para que ele possa ser responsabilizado? Essa prova faz-se necessária, diante da teoria subjetiva da responsabilidade. Além disso, se forem relatos de acontecimentos considerados vexatórios pelo biografado, mesmo que verdadeiros, como haverá o controle posterior? Como retirar as informações já veiculadas na internet? Será que uma pessoa pública não teria direito a um núcleo mínimo de privacidade? Como é notório, o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4815 teve origem na celeuma em torno da ação movida pelo cantor Roberto Carlos, que culminou com a retirada de sua biografia, publicada pelo escritor Paulo César Araújo, do mercado. O fato levou a Associação Nacional de Editores de Livors – ANEL, a ingressar com a ADI. Da decisão unânime, de relatoria da Ministra Carmem Lúcia, resultou o efeito prático do biografado ou seus herdeiros não poderem mais vetar uma biografia antes de sua publicação. É imperioso salientar, diante dos questionamentos, que permanece o âmbito de

1  A expressão foi cunhada por Ruy Castro, autor das biografias: Anjo Pornográfico (A vida de Nelson Rodrigues), Carmem (sobre Carmem Miranda), Estrela Solitária (sobre Garrincha), em entrevista. Disponível em: < http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2013/10/ 1352167-gil-e-caetano-se-juntam-a-roberto-carlos-contra-biografias-nao-autorizadas.shtml> Acesso em: 20 de junho de 2015.

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5 A RESPONSABILIDADE CIVIL PELO ABUSO DO DIREITO À LIBERDADE DE EXPRESSÃO

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cometidos com o seu exercício. Esses abusos, o Código Civil tratou em seu artigo 187, como atos ilícitos. E no art. 927, tratou o diploma civil de garantir a reparação: “Aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”. Além disso, a responsabilização por esse evento danoso não deve limitar-se meramente à reparação pecuniária. Faz-se necessário a imposição de sanções que mitiguem a prática de ofensas semelhantes. A doutrina se divide quanto à temática da natureza dessa responsabilidade. Existe o posicionamento de que se trata de responsabilidade objetiva. Tal corrente busca os seus fundamentos na teoria do risco. A viabilidade dessa vertente decorre da dificuldade de se provar que o autor da informação veiculada já tinha o conhecimento da falsidade do que foi transmitido. Como também há o entendimento de que se trata de hipótese de responsabilização subjetiva. Neste caso, exige-se a prova de culpa do autor. Contemporaneamente, figura o entendimento na jurisprudência brasileira de que os veículos de imprensa devem ser responsabilizados de maneira subjetiva. Dessa forma, é preciso comprovar que o autor da informação já sabia ou poderia saber das inverdades dos dados veiculados (FARIAS; ROSENVALD; BRAGA NETTO, 2014, p. 751). De toda sorte, o que se quer enfatizar é que não há isenção de responsabilização. Desde que se comprove o dano, patrimonial ou moral, decorrente da publicação da biografia não autorizada, caberá indenização, conforme prevê o ordenamento jurídico constitucional e

2  “A honra e imagem dos cidadãos não são violados quando se divulgam informações verdadeiras e fidedignas a seu respeito e que, além disso, são de interesse público” (STJ, Resp 1.297.567, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª T., DJ 02/05/2013).

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proteção aos direitos elencados no artigo 5º, X (a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas). Ainda na CF/88, destaca-se o art. 5º, V: “é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem”. Aquele que se sentir lesado em sua honra, imagem, vida privada, tem a faculdade de recorrer ao judiciário para obter reparação. O que muda em relação ao caso analisado é que a atuação do prejudicado não assume o caráter de censura prévia, prática repelida pelo Estado Democrático de Direito. A partir da histórica decisão do STF, o ofendido passa a buscar reparação a posteriori e não mais antes do lançamento da obra. E tem ao seu alcance todo o aparato constitucional e infraconstitucional, sobretudo, o Capítulo IX, do Código Civil, que trata da Responsabilidade Civil. A liberdade de expressão é assegurada, mas a informação precisa ter um autor, que será responsabilizado por possíveis excessos. Dessa forma, o autor da comunicação precisa atentar para os três deveres apontados por Farias, Rosenvald e Braga Netto (2014, p. 738): o dever geral de cuidado, o dever de pertinência e o dever de veracidade. O primeiro refere-se à atenção com as consequências que advirão do que vai ser publicado. O segundo diz respeito à necessária relação que deve existir entre o que foi divulgado e o dever de informar. E por fim, o dever de veracidade tem relação com a obrigação de não se falsear a publicação, nem fazer conjecturas negativas2. A liberdade de expressão é um direito e, como tal, abusos podem ser

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infraconstitucional. . O certo é que os direitos à liberdade e os direitos da personalidade não são absolutos, incondicionados, e o caso concreto será sempre o melhor balizador para que se determine a incidência ou não de responsabilização.

A vida do outro parece sempre ter exercido fascínio na humanidade. Não é à toa que eclodem, a todo o momento, realitys shows nos quais o público se compraz em acompanhar o cotidiano de pessoas comuns, compartilhando de sua intimidade. O que se dirá então de personalidades que por suas atividades despertam o interesse público? Artistas, políticos, jogadores de futebol são alvos constantes da curiosidade que inflama boa parte das pessoas. A sociedade contemporânea tem a seu alcance um enorme aparato tecnológico, incrementado exponencialmente pelo advendo das redes sociais. As possibilidades de acesso à informação é também uma realidade sem precedentes na vida hodierna. Acresça-se a tudo isto a facilidade em se obter imagens proporcionadas pelos celulares cada vez mais sofisticados. E o que se verifica é um universo em que a intimidade e a vida privada são cada vez mais difíceis de preservar. Essa conjugação de fatores repercute no direito, que é dinâmico e se amolda ao desenrolar da história. De forma que se presencia um tempo em que, por força das conquistas históricas em termos de direitos humanos, nas sociedades democráticas, as pessoas convivem com um amálgama de direitos, todos igualmente importantes, sem distinção hierárquica, consagrados em constituições que os alçam à categoria de direitos fundamentais. Este trabalho pinçou, para análise, dois desses direitos que por sua natureza estão quase sempre em colisão: os direitos da personalidade, no que se refere à integridade moral e o direito à liberdade de expressão. Não obstante o tema já tenha sido deveras abordado, sua importância ressurge da exposição na mídia da questão das biografias não autorizadas. Com a decisão pelo STF da ADI 4815, impedindo a censura prévia das biografias, ganhou relevo novamente o debate sobre o direito à intimidade, vida privada e honra, diante do também consagrado direito à liberdade de expressão. Com a prevalência deste último, no caso concreto em tela, surge o questionamento sobre a violação da intimidade, da honra, da imagem. Da forma como as notícias foram veiculadas parecia que estes direitos seriam mitigados, deixando escancarada a vida de quem quer que fosse. Não é bem isto que se verifica na prática. A decisão, acertadamente, privilegiou um bem muito caro às sociedades atuais, conquistado a duras penas: a liberdade. Também deu relevo à importância histórica que certas pessoas assumem por sua obra em vida, entendendo não ser cabível o cerceamento do direito à informação, sobretudo a informação histórica, que vai alicerçando a memória do país. Ademais, quando optou pela desnecessidade de autorização prévia, afastou o execrável instituto da censura, que remete à triste recordação dos passados anos de chumbo. No entanto, não privou aqueles que se sintam lesados pelas biografias publicadas de

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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

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buscar socorro no direito, respeitando-se o preceito constitucional da inafastabilidade da jurisdição. O ordenamento jurídico brasileiro continua com as ferramentas necessárias ao exercício do direito à reparação. A responsabilidade civil incidirá sobre todo aquele que, abusando do direito à liberdade de expressão, causar dano a outrem. Ao que parece, as coisas agora estão em seu devido lugar. Caberá à história confirmar.

REFERÊNCIAS AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 7.ed. rev. atual. e aum. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil crasileiro: teoria geral do direito civil. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Curso de direito civil: responsabilidade civil. 3.ed. Salvador: JusPodium, 2014. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 1: parte geral. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009. MARTINS, Leonardo. Liberdade e estado constitucional: leitura jurídico-dogmática de uma complexa relação a partir da teoria liberal dos direitos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2012. MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

ABSTRACT: Discusses the topic of civil liability regarding to conflicts between the rights of the personality and the right to freedom of speech. Considering that the abovementioned rights are inherent to the human person and classified as fundamental rights. Addresses the legal implications under civil liability from the damage caused by the abuse of the right to freedom of speech. It is used as parameter the current controversy surrounding the issue of unauthorized biographies, as seen in the legal solution chosen by the Federal Supreme Court and its impact facing up the right to compensation to the one who is a victim of damage. Keywords: Rights of the personality. Freedom of speech. Civil liability.

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THE CIVIL LIABILITY FOR THE ABUSE OF THE RIGHT TO FREEDOM OF SPEECH IN CONFLICT WITH THE RIGHTS OF THE PERSONALITY: THE CASE OF UNAUTHORIZED BIOGRAPHIES.

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Recebido em 15 out. 2015. Aceito em 26 out. 2015.

DIREITO DO CONSUMIDOR E A RESPONSABILIZAÇÃO POR PUBLICIDADE ENGANOSA E ABUSIVA: ANÁLISE DO CASO DO CONTRATO DE FORNECIMENTO DE INTERNET MÓVEL ILIMITADO POR EMPRESAS DE TELEFONIA MÓVEL. Cecilia Ethne Pessoa de Oliveira* Gabriela Mariel Moura de Azevedo**

1 INTRODUÇÃO

Atualmente a publicidade é uma das ferramentas mais eficientes para a promoção e circulação de bens e prestação de serviços. No contexto de uma sociedade capitalista, os anúncios tornam-se fundamentais para o desenvolvimento das relações de consumo, da economia e da própria sociedade, possuindo a capacidade de induzir e persuadir o consumidor. * Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, cursando o 7º período. ** Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, cursando o 7º período.

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RESUMO: Pretende-se analisar a responsabilização dos fornecedores e agentes publicitários que abusam de seus direitos, divulgando publicidades enganosas e abusivas no mercado de consumo. Serão diferenciados, então, os conceitos de publicidade e propaganda, bem como os de publicidade enganosa e abusiva, destacando-se os respectivos tratamentos jurídicos, sobretudo do Código de Defesa do Consumidor. Comparar-se-á, ainda, tais conceitos de publicidade ao caso dos contratos de fornecimento de internet móvel ilimitado de empresas de telefonia julgado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, a fim de comprovar a veiculação de publicidade de conteúdo e justificar a decisão liminarmente proferida. Palavras-chave: Relação de consumo. Publicidade enganosa. Responsabilização.

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Entretanto, no afã de promover a venda em massa e obter lucros, tem sido comum que esse incentivo às práticas consumeristas estejam eivados de ilicitude, uma vez que divulgam determinados produto ou serviços de forma enganosa ou abusiva, o que inevitavelmente trazem malefícios ao consumidor, agente vulnerável na relação. Diante disso, não se pode deixar de regulamentar juridicamente os atos publicitários, buscando-se, principalmente, evitar os abusos e os danos que mitiguem os direitos e interesses dos consumidores. Nesse contexto, impende a análise acerca da responsabilização administrativa e penal das condutas publicitárias ilícitas, a luz da disciplina legal do Código de Defesa do Consumidor (CDC), bem como do Código Penal. Assim sendo, é objeto de estudo do presente trabalho a responsabilização penal e administrativa dos fornecedores que, nos atos publicitários, praticam condutas ilícitas, vinculando publicidades enganosas no mercado de consumo. Dessa feita, inicialmente devem ser estudados os aspectos conceituais que envolvem os institutos da publicidade e da propaganda, destacando-se a diferença e as características próprias de cada um desses termos. Além disso, incube também observar especificamente o que seria publicidade enganosa e publicidade abusiva, uma vez que o próprio CDC disciplina e destaca a diferença entre tais tipos de publicidade ilícita. Ademais, será analisado um caso concreto no qual se observou a vinculação de publicidade enganosa por parte de uma empresa de telefonia móvel cujo dano ao consumidor chegou a ser discutido e julgado em tribunais.

2 PUBLICIDADE E PROPAGANDA: ASPECTOS CONCEITUAIS A respeito desse tema, Maria Elizabete Vilaça aduz que:

Diante disso, será analisado nesse capitulo os conceitos, objetos e fins aos quais se destinam a publicidade e a propaganda, como também as principais diferenças entre tais institutos. 2.1 Propaganda: conceito e objeto Do ponto de vista etiológico, o termo “propaganda” (latim: propaganda) impende em “coisas que devem ser propagadas” carregando a intenção de divulgar aquilo que se faz fundamental ser conhecido pela sociedade. O instituto da propaganda, assim, traduz uma forma de comunicação essencialmente voltada para a difusão de ideias ou ideologias. Nesse diapasão, Vidal Serrano Nunes Junior conceitua a propaganda como:

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Essa distinção doutrinária não foi, de regra, observada pelo direito positivo brasileiro, que, em inúmeros diplomas legais, como por exemplo a Lei 4.680/65, utiliza os termos propaganda e publicidade como sinônimos. O Código do Consumidor incide no mesmo vício, ao referir-se à contrapropaganda, quando deveria aludir à contrapublicidade. De resto, na linguagem vulgar e comercial as expressões são utilizadas indiferentemente (LOPES. 2009, p. 158-159).

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toda forma de comunicação, voltada ao público determinado ou indeterminado, que, empreendida por pessoa física ou jurídica, pública ou privada, tenha por finalidade a propagação de ideias relacionadas à filosofia, à política, à economia, à ciência, à religião, à arte ou à sociedade. (2001, p.16)

Dessa maneira, a propaganda se traduz na técnica que visa obter a adesão de pessoas a um sistema ideológico, político, social, econômico, educativo ou religioso, utilizando-se, muitas vezes, dos mesmos meios da publicidade, todavia, o seu objeto é de natureza ideológica e não comercial ou lucrativa. Pode-se citar como exemplo de propaganda a veiculação na mídia de campanhas estatais envolvendo determinadas questões como trânsito, meio ambiente, saúde pública, cidadania. São, portanto, posturas ideológicas e sociológicas do Estado as quais objetivam educar a sociedade, instruir, difundir certo conhecimento, com o fim de alcançar a maior quantidade possível de pessoas e que essas possam aderir e agir consoante está sendo propagado.

O vocábulo “publicidade”, por sua vez, derivado do latim publicus, traduz a qualidade daquilo que é destinado ao público, sob a perspectiva comercial e econômica. Nunes Júnior entende por publicidade “o ato comercial de índole coletiva, patrocinado por ente público ou privado, com ou sem personalidade, no âmago de uma atividade econômica, com a finalidade de promover, direta ou indiretamente, o consumo de produtos e serviços” (2001, p. 22-23). Cláudia Lima Marques conceitua a publicidade como “toda a informação ou comunicação difundida com o fim direto ou indireto de promover junto aos consumidores a aquisição de um produto ou serviço, qualquer que seja o local ou meio de comunicação utilizado” (1999, p. 673). Enxerga-se, assim, que a publicidade tem como objeto as relações de consumo, ou seja, a atividade comercial, as quais se originam na venda de um produto ou prestação de um serviço onde de um lado está o fornecedor e de outro o consumidor. Diante disso, tem-se que, seja a publicidade direta ou indireta, sempre dirá respeito às relações de consumo, almejando a venda de produtos ou prestações de serviço. Cumpre esclarecer que se entende como publicidade direta o anúncio que se destina a venda de produtos ou serviços específicos, o qual informa, desde já, o preço e as condições de pagamento. A publicidade indireta, por sua vez, veicula apenas o nome da empresa, com o intuito de demonstrar, de modo geral, a qualidade dos produtos e serviços, as vantagens e características daquela empresa, que, ressalva-se, não deixa de promover os produtos e serviços por ela fornecidos. Além disso, pode-se considerar que a publicidade possui quatro aspectos fundamentais. Segundo Nunes Junior, a publicidade possui enfoque material, subjetivo, conteudístico e finalístico (2003, p. 114). O aspecto material manifesta-se por meio da comunicação social, a qual integra o próprio conceito de publicidade e se utiliza da televisão, rádio, internet, revistas e demais meios de comunicação para transmitir ao consumidor a mensagem que carrega a divul-

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2.2 Publicidade: conceito e objeto

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gação de determinado produto ou serviço. No que se refere ao aspecto subjetivo, o mesmo pode ser vislumbrado por meio das instituições públicas ou privadas, personalizadas ou não, que se ocupam com a publicidade de seus produtos, valendo-se, então, da subjetividade para alcançar os consumidores. Em relação ao enfoque conteudístico, tem-se a vinculação econômica. Como já tratado, a publicidade se dirige as relações de consumo, tem característica comercial e, assim, objetiva a lucratividade, o que torna a vinculação econômica essencial para caracterizá-la. Por fim, a perspectiva finalística refere-se ao objetivo de, direta ou indiretamente, promover a venda de produtos e serviços por meio de uma divulgação efetiva. Esses quatro aspectos esclarecem, portanto, a própria definição do que seria a publicidade, bem como as características que marcam esse instituto, o diferenciado da propaganda. No CDC, a publicidade é tratada especificamente no Capítulo V, Seção III, todavia o legislador não se preocupou em conceituá-la, ficando sob responsabilidade de a doutrina atribuir um conceito formal. É possível constatar que a distinção feita pela doutrina entre propaganda e publicidade por certas vezes não foi observada pelo legislador. A própria CF/88 incide no vício de confundir os conceitos quando, por exemplo, se refere à publicidade utilizando termos como “propaganda” e “propaganda comercial”1. Contudo, apesar da ausência de um conceito formal e da confusão entre os institutos, os termos utilizados na CF/88 e, especialmente, no CDC expressam o sentido da publicidade, ou seja, referem-se claramente aos anúncios de vinculação econômica dos produtos e serviços. Sendo assim, estabelecidas essas premissas conceituais, esclarece-se que não será foco do presente trabalho as propagandas, as quais, como já foi tratado, tem cunho ideológico, mas sim anúncios publicitários sob a perspectiva comercial e econômica que envolve os consumidores como agentes da relação.

É cediço que a atualmente a publicidade é uma das ferramentas mais eficientes para a promoção e circulação de bens e prestação de serviços. No contexto de uma sociedade capitalista que estimula o consumo em grande escala, os anúncios de vinculação comercial tornam-se vitais para o desenvolvimento da economia e da própria sociedade consumerista. Paulo Vasconcellos Jacobina afirma que a publicidade não é só conteúdo, já que não se resume a informar as pessoas sobre as características de um produto ou serviço, mas, sim, um meio de despertar na mente a necessidade de consumir (1996, p. 32). 1  Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: XXIX - propaganda comercial. (grifo nosso) Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. § 4º A propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias estará sujeita a restrições legais, nos termos do inciso II do parágrafo anterior, e conterá, sempre que necessária advertência sobre os malefícios decorrentes de seu uso. (grifo nosso)

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3 PUBLICIDADE ENGANOSA E ABUSIVA

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Nesse contexto, o indispensável incentivo às práticas de consumo e o anseio de obter o sucesso esperado fazem com que anunciantes e veículos de comunicação faltem com a verdade, divulguem informações falsas, omissas, desvirtuadas e utilizem-se da publicidade ilícita sem medir os efeitos maléficos que podem causar ao consumidor. Tais condutas excedem os limites legais impostos e ludibriam os consumidores, prejudicam a concorrência, bem como ferem a ordem pública, a moral e o direito. Assim, no afã de coibir e limitar tais excessos cometidos ao exercer a atividade publicitária, surgiram as proibições legais de vinculação de publicidades enganosa e abusiva, as quais se revelam por infringir os princípios da relação de consumo e as normas legais pertinentes, estando essa proibição expressa no CDC.

O CDC, no artigo 37, § 1º, aduz que a publicidade é enganosa quando apresenta conteúdo completamente ou parcialmente falso induzindo o consumidor em erro a respeito da natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades, origem, preço e quaisquer outros dados sobre produtos e serviços 2. Ademais, o legislador previu no § 3º do mesmo dispositivo a possibilidade da conduta enganosa por omissão, consistente em deixar de se informar ao consumidor dado essencial a respeito do produto ou serviço. Nesse sentido, a publicidade enganosa é aquela que macula, essencialmente, os princípios da veracidade e boa fé e para a sua caracterização faz-se necessário que consistam elementos não verdadeiros relacionados a determinado produto ou prestação de serviço que sejam objetos do anúncio. Segundo Rizzato Nunes, “o Código foi exaustivo e bastante amplo na conceituação do que vem a ser publicidade enganosa. O dispositivo quis garantir que efetivamente o consumidor não seria enganado por uma mentira nem por uma meia-verdade” (2007, p. 459). O aduzido autor ainda afirma que “o efeito da publicidade enganosa é induzir o consumidor a acreditar em alguma coisa que não corresponde à realidade do produto ou serviço em si, ou relativamente a seu preço e forma de pagamento, ou ainda, a sua garantia etc.” (2007, p. 460). Nesse contexto, nota-se que o legislador, ao dispor sobre a proibição da publicidade enganosa, buscou assegurar ao consumidor o direito fundamental da liberdade de escolher conscientemente, com a certeza de que sua vontade não estaria viciada e tampouco iludida por um anúncio publicitário enganoso. Além disso, o já referido dispositivo do CDC permite esclarecer que a conduta enganosa do fornecedor pode ser comissiva ou omissiva. Na conduta comissiva, a publicidade enganosa revela-se pela ação direta na campanha, ou seja, o anunciante insere na peça publicitária

2  Art. 37. É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva. § 1° É enganosa qualquer modalidade de informação ou comunicação de caráter publicitário, inteira ou parcialmente falsa, ou, por qualquer outro modo, mesmo por omissão, capaz de induzir em erro o consumidor a respeito da natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades, origem, preço e quaisquer outros dados sobre produtos e serviços.

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3.1 Publicidade enganosa

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informações que não deveriam dela constar por não corresponderem com que o produto ou serviço é de fato. A conduta omissiva, por sua vez, demonstra-se pela ausência de informação essencial do produto ou serviço, corresponde, portanto, ao descumprimento de um dever objetivo por parte do anunciante em informar o consumidor a respeito de certos dados fundamentais para a contratação. Diante dessas considerações, pode-se entender que a modalidade enganosa é uma espécie do gênero da publicidade ilícita - ao lado da publicidade abusiva que será tratada a seguirvoltada à manipulação da vontade consciente e livre do consumidor, com o potencial de causar danos e prejuízos patrimoniais.

No que tange a publicidade abusiva, o CDC disciplina no § 2° do artigo 37 que essa conduta é caracterizada nos anúncios que possuam caráter discriminatório, independente de sua natureza, que incite à violência e que explore o medo ou superstição. Ademais, o código também disciplina como abusiva a publicidade que se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança, que desrespeite normas ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de maneira prejudicial à própria saúde e segurança. 3 A partir da disciplina legal verifica-se, então, que a publicidade abusiva está relacionada, principalmente, com conteúdos publicitários discriminatórios, seja de ordem social, econômica ou racial ou que se utilizem da crença, do medo, da superstição e da inexperiência do consumidor e se aproveite da sua vulnerabilidade subjetiva para adquirir vantagens econômicas. Acerca disso, Rizatto Nunes considera que “o caráter da abusividade não tem necessariamente relação direta com o produto ou serviço oferecido, mas sim com os efeitos que a publicidade possua ao causar algum mal ou constrangimento ao consumidor” (2012, p. 111). Nesse contexto, importante se faz destacar que a publicidade abusiva não caracteriza, necessariamente, um prejuízo patrimonial ao consumidor, mas o caráter ilícito se configura no momento em que carrega conteúdos que agridem importantes valores e princípios da sociedade, afrontando, ao mesmo tempo, a moral, a ética e os bons costumes. Assim, na publicidade abusiva não se encontra, obrigatoriamente, uma inverdade e nem sempre tem o potencial de induzir o consumidor a erro, porém, torna-se ilícita por macular o consumidor como pessoa, lesando a sua integridade moral ou física.

4 RESPONSABILIZAÇÃO PELA VEICULAÇÃO DE PUBLICIDADES ENGANOSAS E ABUSIVAS

3  Art. 37. É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva. § 2° É abusiva, dentre outras a publicidade discriminatória de qualquer natureza, a que incite à violência, explore o medo ou a superstição, se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança, desrespeita valores ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança.

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3.2 Publicidade abusiva

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A prática da publicidade é garantida constitucionalmente, devendo reger-se pelos princípios de proteção e liberdade de expressão, opinião e criação, livre iniciativa e igualdade (art. 5º, XXXV, XVII, 170, 220, §§ 3º e 4º, e 22, parágrafo único, da CF/88), logo, como é um direito, cabe ao sujeito deste exercê-lo ou não. Mesmo assim, ao sujeito desse direito se impõe um ônus, pois tem dever de respeitar as regras e princípios atinentes a quem realiza tal atividade, com vistas a proteger o consumidor das manipulações dos anúncios publicitários, que por vezes o coage ao consumismo. Nesse sentido, coaduna o doutrinador Comparato (1974, p. 15): O consumidor é vítima de sua própria incapacidade crítica ou suscetibilidade emocional, dócil objeto de exploração de uma publicidade obsessora e obsidional, passa a responder ao reflexo condicionado da palavra mágica, sem resistência. Compra um objeto ou paga por um serviço, não porque a sua marca atesta a boa qualidade, mas simplesmente porque ela evoca todo um reino de fantasia ou devaneio de atração irresistível.

Sendo assim, como afirma o autor retro mencionado, claramente a publicidade induz o consumidor, atraindo-o e o levando a consumir diante do fácil acesso e exposição à propaganda, posto a popularização e a grande diversidade de meios de comunicação. Por conseguinte, em razão da vulnerabilidade do consumidor nas relações de consumo corroborada pela criação do CDC, implementado pela Lei nº. 8.078, de 11 de setembro de 1990, nos termos dos artigos 5°, inciso XXXII; 170, inciso V da CF/88 e art. 48 de suas Disposições Transitórias, bem como com fulcro no artigo 5º, XXXV, CF/88, lei alguma poderá impedir de ser apreciado pelo Poder Judiciário, lesão ou ameaça a direito, se fez necessária a responsabilização do anunciante publicitário que abusa desse seu direito para induzir o consumidor e enganá-lo. À esse respeito, entende Mazon (2011, p. 538) que:

Destarte, a caracterização da mensagem publicitária, seja ela enganosa ou abusiva, conforme já diferenciado, independe da existência de dolo por parte do anunciante. Posto não ser considerada a intenção do anunciante, para efeitos civis, mas o objeto da informação que a compõe, o público-alvo e o contexto no qual é divulgada. Por consequência, o elemento subjetivo, isto é, o desígnio de induzir o consumidor ao erro ou culpa, seja por negligência, imprudência ou imperícia, apenas importará na esfera penal para o enquadramento do ato no tipo penal correspondente. Não é determinante, portanto, se houve ou não má-fé por parte do anunciante, se foi o meio publicitário ou os próprios adquirentes dos produtos que realizaram tal prática, se o

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Para que tais publicidades sejam consideradas abusivas ou enganosas não é necessária à vontade específica dolosa ou que a aproximação entre fornecedor e consumidor tenha sido com o intuito direto de vender, de comerciar, de concluir contratos – basta a atividade. Basta à atividade de publicidade, como determinação soberana e profissional do fornecedor e sob o risco profissional deste, em caso de falha, erro, ou culpa de terceiro da cadeia organizada ou contratada por ele próprio de fonecedores-auxiliares.

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4  BRASIL. CBAP (1978). Código Brasileiro de Auto-Regulamentação Publicitária. Disponível em: <www.conar.org.br>. Acesso em: 14 out. 2015.

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fornecedor buscou evitar a veiculação de tal mensagem viciada, ou ainda se o consumidor foi enganado de fato no caso concreto. Suficiente é observar se a publicidade tem a capacidade de enganar o consumidor na situação prática. Logo, basta, conforme disposto por Antônio Herman de Vasconcellos e Benjamin, se constatar a existência da denominada “capacidade de indução ao erro” (2011, p. 203), ou seja, “sua capacidade de induzir em erro o consumidor, não sendo, por conseguinte, exigível qualquer prejuízo individual” (2011, p. 341). Assim sendo, o CDC juntamente com o sistema de autorregulação e a participação da Administração, além do Poder Judiciário, se tornam aliados para promover os interesses dos consumidores, estando sujeito à apreciação judicial qualquer ato ou atividade que venha provocar danos a alguém, inclui-se aí a publicidade. Nesse contexto, importante é a existência do Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária4 conjuntamente com as disposições do CDC e a participação da Administração que do Poder Judiciário no intento de conter os abusos praticados contra os consumidores e promover o direito destes, estando sujeito à apreciação judicial qualquer ato ou atividade que provoque dano a alguém, inclusive a publicidade. Ainda assim, merece destaque o CDC, no âmbito publicitário, ao passo que prevê repercussões legais aos que praticam essas condutas abusivas, tendo inovado em relação ao Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária que o preexistiu, pois, apesar de neste já haver repercussão quanto a condutas inadequadas, não detinha a clareza jurídica que trouxe aquele, ao tratar do regramento jurídico da publicidade, dando-lhe capacidade de vinculação contratual e sistematizando as normas de controle das mensagens publicitárias. O CDC, nesse sentido, se aprofunda a questão da publicidade, pois se restringe ao aspecto comercial, sendo a propaganda tutelada por outros diplomas. Como exemplo disso, há o artigo 6º, IV desse diploma legal que determina ser direito básico do consumidor a proteção contra a publicidade enganosa, abordando-a no âmbito civil, e impondo como sanção administrativa a contrapropaganda para fins de pena específica às infrações cometidas (art. 56, XII). Assim preconiza o CDC, em seu artigo 6º, III e IV, a necessidade de a informação ser prestada de forma adequada e clara em relação aos produtos e serviços, especificando quantidade, características, composição, qualidade e preço, como também alertando dos riscos que apresentem, além de determinar a proteção do consumidor contra publicidade enganosa, publicidade abusiva, publicidade clandestina (merchandising), métodos comerciais coercitivos ou desleais, e outras práticas que lhe prestem informações errôneas ou omissivas. O CDC trata também da segurança do consumidor, preocupando-se, especialmente, com a incolumidade física e a vida do consumidor, conforme disposto no artigo 6º, I, CDC, que garante a proteção da vida, saúde e segurança contra os riscos decorrentes de práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos e o seu art. 8º que proíbe o

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comércio de produtos e serviços que acarretem riscos à saúde ou segurança dos consumidores, com exceção dos considerados normais e previsíveis devido a sua natureza e fruição, sendo os fornecedores obrigados a prestar as informações necessárias e adequadas a seu respeito. O CDC, então, justamente por buscar proteger o hipossuficiente na relação de consumo, que é o consumidor, e, no intento de equiparar as partes desiguais nessa relação, no que tange à publicidade, mais especificamente, criminalizou, conforme disposto em seus artigos 67 e 68, respectivamente, a prática de publicidade abusiva, determinando a detenção de três meses a um ano e multa àquele que faça ou promova publicidade que sabe ou deveria saber ser abusiva e detenção de seis meses a dois anos e multa àquele que faça ou promova publicidade que sabe ou deveria saber ser capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa a sua saúde ou segurança. Acerca dessa tutela penal constante no CDC, cumpre salientar, por conseguinte, que as condutas penalmente tipificadas praticadas contra o consumidor e as relações de consumo, lhe conferem maior efetividade no que se refere à defesa do mesmo ao passo que as reprimem. O CDC, nesse sentido, merece maior atenção em relação às demais leis existentes, pois detém maior grau de especialidade, possuindo mais requisitos descritos na norma geral e sobressaindo-se sobre o Código Penal e legislação extravagante. Assim, os consumidores têm que ficar mais atentos às informações passadas nos meios de comunicação, na hora de adquirir um produto ou serviço para não ser lesado ao comprar um produto ou serviço. No que se refere à Publicidade Enganosa ou Abusiva, tratado no art. 67 do CDC, então, Almeida (2010, p. 169) define o seu objeto, sujeito, tipo e consumação. Segundo esse autor, o objeto jurídico dessa conduta recriminada é o direito do consumidor de ser exposto à informação correta, protegido contra a publicidade de natureza enganosa ou abusiva e de ser prevenido contra danos patrimoniais e morais, descritos através do artigo 6º, incisos II, III, IV e VI, portanto concretizados no art. 37, §§ 1º, 2º e 3º, do CDC de acordo com os princípios da confiança, boa-fé, transparência e equidade, já que o bem jurídico protegido é a confiança e a segurança que devem prevalecer nas relações de consumo. Demais disso, Almeida (2010, p. 169) classifica o sujeito como ativo ou passivo. Assim, serão sujeitos ativos os profissionais responsáveis pela criação e produção da publicidade, bem como os responsáveis pela veiculação nos meios de comunicação, consequentemente, o sujeito passivo será o próprio consumidor que, segundo o artigo 2º do CDC, é “toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final”, posto ser ele quem é exposto à publicidade enganosa ou abusiva. Por conseguinte, em relação aos responsáveis pelo dano decorrente da mensagem publicitária veiculada ao consumidor, o Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária, em seu art. 3º, determina: “Todo anúncio deve ter presente a responsabilidade do Anunciante, da Agência de Publicidade e do Veículo de Divulgação junto ao Consumidor”. Desta forma, infere-se que todos os responsáveis desde elaboração até a apresentação da mensagem publicitária respondem pelos danos causados (ALMEIDA, 2010, p. 169), sendo

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5  BRASIL. CBAP (1978). Código Brasileiro de Auto-Regulamentação Publicitária. Disponível em: <www.conar.org.br>. Acesso em:14 out. 2015.

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considerados responsáveis solidariamente, posto o artigo 45 desse mesmo Código expor acerca da igualdade entre os responsáveis, e coadunar com o entendimento do artigo 7º do CDC, o qual equipara a responsabilidade de forma direta e solidária. Salienta-se que, especificamente, quando se trata do fornecedor, este concorre com responsabilidade objetiva pelos danos decorrentes de publicidade enganosa ou abusiva, nos termos do artigo 12 do CDC, ao passo que o fornecedor é o detentor de toda a informação utilizada para publicização de um produto, logo, responsável pelos possíveis danos que vier a causar. A agência de publicidade, por sua vez, é responsável pela criação publicitária, ao passo que seus serviços são contratados pelo fornecedor. Ainda assim, segundo entendimento doutrinário, existe divergência quanto em relação à responsabilidade da agência, observe-se que o autor Nunes (2012, p. 524) entende que a responsabilidade objetiva e solidária entre fornecedor e agência, bem como as eventuais cláusulas contratuais de limitação de responsabilidade celebradas entre eles apenas têm eficácia na relação interna, logo, não afetariam a relação com o consumidor. Outra vertente, porém, afirma que a responsabilidade da agência para com o fornecedor é solidária e limitada, diz respeito, logo, a responsabilidade subjetiva, já que é necessária a comprovação do dano ou culpa da agência para que nasça a objetividade da responsabilidade, assim, conforme Grinover (2007, p. 367), defensor dessa tese, “a agência e o veículo só são corresponsáveis quando agirem dolosa ou culposamente, mesmo em sede civil”. Nesse sentido, apesar do confronto doutrinário, entende-se que a agência de publicidade tem seu papel como participante da cadeia publicitária no sentido de fiscalizar as informações apresentadas, e, ao se omitir desse dever, deve responder, independentemente de culpa, no seu sentido amplo, pelos danos que forem causados, isto é, de forma solidária e ilimitada, ou seja, sem discussão de culpa. Noutro pórtico, acerca do veículo de comunicação que é responsável pela divulgação da publicidade ao consumidor, merece destaque pelo fato de levar até o consumidor a informação do produto do fornecedor, então, é também responsável pelo que é veiculado e elaborado pela agência. A responsabilidade do veículo de comunicação é solidária e objetiva assim como a da agência de publicidade, segundo determinado no art. 45, caput do Código de Autorregulamentação Publicitária5. Portanto, entende-se que o veículo de comunicação deve controlar o que veicula, bem como observar e fiscalizar eventuais danos de publicidade, recusando-se a veicular esse tipo de publicidade danosa, sob pena de responder de forma solidária e objetiva. Importante é ainda destacar que a responsabilidade do fornecedor anunciante, das agências publicitárias e dos veículos de comunicação, é solidária, de acordo com o claro enunciado do § único do artigo 7º do CDC: “Tendo mais de um autor a ofensa, todos responderão

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6  BRASIL. Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária. Missão. São Paulo. Disponível em: <www.conar.org.br>. Acesso em:14 out. 2015.

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solidariamente pela reparação dos danos previstos nas normas de consumo”. Contudo, há uma exceção, que diz respeito ao caso específico de o veículo de comunicação não poder ser responsabilizado quando o anúncio não apresentar objetivamente e nele próprio o teor de abusividade. Já com relação ao tipo, este pode ser classificado, segundo Almeida (2010, p.169), em objetivo, quando fizer referência à atuação, entendida no sentido de criar e/ou executar do publicitário e à promoção, quando feita diligência para veiculação da publicidade enganosa ou abusiva pelo responsável da veiculação. Ainda pode ser classificado em subjetivo, que será o dolo direto, quando a veiculação dessa publicidade decorrer da vontade livre e consciente de fazer ou promover, ou a culpa, quando tal publicidade for divulgada em decorrência de imprudência, imperícia e negligência do publicitário e/ou do responsável pela publicação, posto devesse saber do perigo da veiculação dela ao consumidor, bem como que se trata de conduta tipificada como crime. A consumação, finalmente, trata-se da ação de fazer ou veicular publicidade nos meios de comunicação, independentemente de haver concretizado dano ao consumidor (ALMEIDA. 2010, p. 169). A partir da análise dos dispositivos legais mencionados do CDC, conclui-se que uma vez veiculada a publicidade danosa, seja ela abusiva ou enganosa, caberá ao consumidor buscar a reparação dos danos a ele causados, bem como cobrar aos órgãos fiscalizadores a culminação de sanções aos responsáveis. É importante destacar, ainda, que as sanções previstas para a publicidade enganosa não visam a reparação de danos, mas sim punição dos que participaram de sua elaboração e divulgação, já as sanções aplicadas nos casos de publicidade abusiva, detêm tal caráter reparatório. Diante do exposto, é importante expor acerca das sanções administrativas e penais cabíveis quando diante de casos de publicidade enganosa ou abusiva. Sendo assim, administrativamente, com o fito de coibir a publicidade abusiva, é cabível a interposição de ação civil pública, arguindo a suspensão liminar da publicidade e a cominação de multa, além da contrapropaganda que é meio cautelar de controle dessas práticas ilícitas. Destarte a remoção ou sustação da publicidade, é uma pena imposta aos responsáveis por essa prática publicitária reprimida legalmente e visa à retirada de circulação da publicidade danosa, no intento de impedir que sejam gerados mais prejuízos aos consumidores. Tal sanção pode ser imposta pelos órgãos extrajudiciais como é o CONAR6, omo também pelo Poder Judiciário, e é a espécie de sanção mais aplicada nesse crime publicitário em específico, pois é entendimento comum que para ser reparado o dano causado é necessário, antes de tudo, a sua cessação. A multa é outra sanção possível de ser aplicada nesses casos de publicidade danosa. Nesse sentido, entende Speranza (2013, p. 36) que a “multa, via de regra, não é pena imposta

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7  BRASIL. Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária. Missão. São Paulo. Disponível em: <www.conar.org.br>. Acesso em:14 out. 2015.

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em primeira infração, e sim pelo descumprimento reiterado de outra penalidade, ou reincidência sobre infração”. Do exposto, infere-se que tal sanção de cunho pecuniário é culminada ao causador dessa publicidade com caráter punitivo, pois visa punir o autor dessa prática publicitária ilegal com o fito de impedir a ocorrência de futuras práticas lesivas semelhantes. Ademais, como é considerada pena administrativa, é imposta por órgãos alheios ao Poder Judiciário, como o PROCON, a quem cabe fiscalizar o direito do consumidor. Outra sanção passível de ser imposta é a advertência a qual, segundo Speranza (2013, p. 36), “é tratada na seção que pertine às sanções, pois macula o responsável, tornando evidente sua conduta irregular, que, se não for revista espontaneamente, será objeto de sanção mais gravosa”. Porquanto a advertência se trata de uma espécie de aviso direcionado ao responsável pela publicidade enganosa ou abusiva, o qual lhe orienta no sentido de corrigir sua conduta, normalmente quando se trata de uma primeira conduta irregular, e preferível de ser aplicada nesses casos para evitar pena mais grave, a exemplo da multa. A contrapropaganda, ou melhor, a contrapublicidade, ao seu passo é sanção mais grave e diz respeito à imposição feita ao infrator de veicular nova propaganda retificando informações da propaganda danosa anteriormente divulgada, nos mesmos meios em que esta publicidade lesiva foi realizada, de forma a atingir o mesmo público e reverter os efeitos danosos então ocasionados, a qual, por conseguinte, deve ser custeada pelo infrator. Logo, é obrigatória quando aplicada e deve reparar o dano causado pela publicidade enganosa ou abusiva, sendo, antes de qualquer coisa, retirada de circulação a propaganda danosa. Já na seara penal, as sanções possíveis estão dispostas nos artigos 63, 66, 67, 68 e 69, do CDC. Podem, segundo estes dispositivos normativos, ser sancionadas penalmente as condutas de omitir dizeres ou sinais ostensivos sobre a nocividade ou periculosidade de produtos nas embalagens, invólucros ou publicidade, fazer afirmação falsa ou enganosa sobre produto ou serviço, bem como promover publicidade que sabe ou deveria saber que é enganosa ou abusiva ou deixar de organizar dados fáticos, técnicos ou científicos que dão base à publicidade, sendo passíveis de ação pública incondicionada e sujeitas a pena de detenção e multa, variando conforme cada caso. Quanto aos delitos considerados mais graves, isto é, os dolosos, estes são punidos, segundo os § 2º do artigo 63 e § 2º do artigo 66 do CDC, sendo aplicadas, cumulativamente, detenção e multa, e sendo possível, ainda, a concessão de sursis, que é uma suspensão condicional da pena, a suspensão do processo e o cumprimento em regime semi-aberto ou aberto da pena, devendo ser processada a ação perante o Juizado Especial Criminal, conforme permite o Código Penal brasileiro. Todavia, além do CDC, com intuito de impedir que a publicidade enganosa ou abusiva constranja ao consumidor pessoa física ou a empresas, é fundamental a atuação do CONAR7,

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que é uma organização não-governamental criada com o intento de promover a liberdade de expressão da publicidade, como também de defender os preceitos constitucionais da propaganda comercial. Essa organização busca, então, atender às denúncias de consumidores, autoridades, associados ou às formuladas pelos integrantes da própria diretoria, aplicando, conforme os preceitos básicos da ética publicitária, o controle das atividades publicitárias mediante a execução do Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária, do qual se utilizam para fiscalizar e punir anúncios publicitários danosos, sendo presumida a boa-fé dos responsáveis destes e lhes assegurando o duplo grau de jurisdição, isto é, o devido processo legal.

A Autarquia de Proteção e Defesa do Consumidor do estado do Rio de Janeiro (PROCON-RJ) interpôs Ação Civil Pública contra as empresas de telefonia OI S/A, TELEFÔNICA BRASIL S/A, CLARO S/A e TIM CELULAR S/A, instaurando o processo n°. 005222482.2015.8.19.0001 visando à proteção ao consumidor8. Segundo o sítio do PROCON-RJ em matéria deste ano de 2015, referidas operadoras modificaram, unilateralmente, os contratos de telefonia com internet ilimitada, firmados com seus clientes, ao passo que antes o serviço de acesso à internet móvel era apenas reduzido após a utilização da franquia de dados contratada pelo consumidor, e, com tal alteração, os clientes de planos pré-pagos passaram a ter esse serviço cortado quando o limite da franquia era atingido, desrespeitando a publicidade feita de que esse serviço seria “ilimitado”. Nesse sentido, acertadamente, a decisão de 30 de abril de 2015 da juíza de Direito Maria da Penha Nobre Mauro, da 5ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro deferiu liminar no citado processo, determinando que tais empresas de telefonia não mais bloqueassem o acesso dos consumidores de tal serviço de internet no estado, quando firmados contratos de serviço ilimitado, sob pena de multa diária no valor de R$ 20.000,00 (vinte mil reais). Assim decidiu essa nobre magistrada, pois, a alteração contratual de forma unilateral constitui prática abusiva já que se trata de publicidade enganosa e prática comercial desleal ou coercitiva, isto é, práticas criminalizadas pelo ordenamento jurídico brasileiro, como exposto, das quais decorre responsabilização civil aos autores. A juíza alertou, nessa decisão, que “Os princípios que norteiam as relações de consumo asseguram ao consumidor informação clara e adequada sobre os produtos e serviços, bem como o protegem contra a publicidade enganosa e as práticas comerciais desleais ou coer-

8  TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Ação Civil Pública nº 0052224-82.2015.8.19.0001. Relator: Juíza de Direito MARIA DA PENHA NOBRE MAURO. Data de Julgamento: 30/014/2015. Data de Publicação: DJERJ 08/05/2015, fls. 264-273. Disponível em: <http://www4.tjrj.jus.br/consultaProcessoWebV2/consultaMov.do?v=2&numProcesso=2015.001.043125-3&acessoIP=internet&tipoUsuario=>. Acesso em: 14 out. 2015.

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5 PUBLICIDADE ENGANOSA NO CASO DO BLOQUEIO DA INTERNET MÓVEL PELAS OPERADORAS DE TELEFONIA

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citivas”. Segundo a julgadora, as relações de consumo devem ser guiadas pelos princípios da boa-fé objetiva, equidade e transparência, vedando-se as práticas abusivas “que onerem exacerbadamente e prejudiquem o consumidor”. Sendo assim, como a publicidade enganosa configura-se pela falta de informação a qual o CDC determina como imprescindível, posto a existência do dever de informar, aos responsáveis pela publicidade, a situação concreta descrita, no caso ora analisado, diz respeito à prática publicitária enganosa, ao passo que, o contrato firmado foi de acesso ilimitado à internet móvel, nada sendo alertado acerca do bloqueio desse serviço quando esgotada o prazo franquiado. Como já exposto, o CDC prioriza os direitos do consumidor nas relações de consumo, tendo em vista sua condição de vulnerabilidade, nada obstante, o CDC em seu artigo 51, inciso XIII, determina que, nos contratos de adesão, como é o caso, são nulas de pleno direito as cláusulas que “autorizem o fornecedor a modificar unilateralmente o conteúdo ou a qualidade do contrato, após sua celebração”, em seu artigo 6º, inciso IV, dispõe ainda que “a proteção contra publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços” são direitos básicos do consumidor, logo, não podem ser violados. Ora, se nesse caso estudado, a interrupção do serviço não foi informada antecipadamente ao consumidor quando da sua contratação, este não pode ser onerado em razão de mudança contratual unilateral por parte das operadoras de telefone, pois, além de estarem impedidas de modificar unilateralmente o contrato, cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento do serviço ferem o direito básico do consumidor. Tal alteração uniliteral do acordo, ademais, constitui prática publicitária enganosa, pois o anúncio publicitário ofertava serviço de internet móvel ilimitado, nada se referindo ao bloqueio do serviço quando findo o pacote franquiado. Reporte-se que, na teoria dos contratos do Direito Civil, se verifica o contrato de consumo e/ou adesão comporta a oferta ao público, conforme o art. 429 do Código Civil de 2002, pois a publicidade é um meio de veicular oferta e obrigar anunciante-fornecedor a uma proposta através de requisitos essenciais ao contrato, salvo se resultante de circunstancias ou de usos. Além do exposto, constata-se que toda a informação ou publicidade veiculada de forma precisa em qualquer meio de comunicação “com relação a produtos e serviços oferecidos ou apresentados, obriga o fornecedor que a fizer veicular ou dela se utilizar e integra o contrato que vier a ser celebrado”, nos termos do artigo 30, que trata do princípio da vinculação da oferta, e do artigo 67, do CDC. Destarte, infere-se que a conduta do caso ora analisado exercida pelas operadoras de telefonia supracitadas, constitui publicidade enganosa, pois a o contrato não cumpriu com a informação veiculada, omitindo informação que levou o consumidor a contratar serviço, já que este havia contratado serviço anunciado como ilimitado e as operadoras passaram a bloqueá-lo quando atingido determinado limite. Dessa forma, a decisão da magistrada do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro foi

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correta ao deferir a liminar e impedir o bloqueio do serviço ofertado nesse estado pelas operadoras de telefonia acusadas quando firmados contratos de fornecimento do serviço de forma ilimitada, posto, conforme exposto, claramente o presente caso se trata de publicidade enganosa que afronta a boa-fé objetiva do consumidor induzindo-o a erro, bem como viola dispositivos do CDC e do Código Civil de 2002, posto a oferta veiculada dever integrar o contrato e a alteração unilateral de cláusula contratual, após celebração do contrato, ser nula.

6 CONCLUSÃO A publicidade tem função, pois visa difundir um produto ou serviço e vendê-lo em massa, ou seja, é uma prática comercial, logo, influencia drasticamente as relações de consumo, de modo que interessa ao Direito ser regulá-la e controlá-la, em benefício da preservação dos direitos básicos do consumidor, sujeito vulnerável nas relações de consumo o qual o CDC protege com fito de reequilibrar tais relações. Dessa forma, a tutela visa conter os abusos e excessos por parte dos responsáveis pela publicidade danosa ao consumidor, estabelecendo o CDC, a responsabilidade solidária e objetiva a todos esses responsáveis, criminalizando as práticas publicitárias enganosas e abusivas e impondo multa, pena e demais cominações previstas a quem praticá-las. Por essa razão, mais do que salutar foi a decisão da Juíza de Direito do estado do Rio de Janeiro em impedir, liminarmente, o bloqueio do serviço o qual havia sido publicizado como ilimitado, em respeito aos princípios da vinculação contratual, da boa-fé objetiva do consumidor e aos dispositivos legais e constitucionais que garantem que o consumidor seja beneficiado nas relações de consumo tendo em vista sua vulnerabilidade e impõe penas aos fornecedores de serviços que abusam do seu direito à liberdade de expressão e incorrem em práticas ilegais.

REFERÊNCIAS

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ALMEIDA, João Batista de. Manual de Direito do Consumidor. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

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CONSUMER LAW AND ACCOUNTABILITY FOR MISLEADING AND ABUSIVE ADVERTISING: ANALYSIS OF INTERNET SUPPLY CONTRACT CASE FOR UNLIMITED MOBILE WIRELESS COMPANIES. ABSTRACT: It intends to analyze the accountability of providers and advertisers who abuse their rights practice, disseminating misleading and unfair advertising in the consumer market. Will be different then the concepts of advertising, as well as the misleading and abusive advertising, especially their legal treatment, especially of the Consumer Protection Code. Compare up will also such advertising concepts to the case of contracts for unlimited mobile internet phone companies judged by the Court of the State of Rio de Janeiro in order to confirm the placement of advertising misleading content

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SPERANZA, Henrique de Campos Gurgel. Publicidade enganosa e abusiva. Revista Síntese de direito civil e processual civil, v. 12, n. 83, p. 34-62, maio/jun., 2013.

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and justify the decision handed down outright. Keywords: Consumption ratio. Misleading advertisement. Accountability.

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Recebido em 11 ago. 2015. Aceito em 24 out. 2015.

FAMÍLIAS PARALELAS: UMA ANÁLISE DA VIABILIDADE DO RECONHECIMENTO JURÍDICO DE UNIÕES CONJUGAIS CONCOMITANTES COMO ENTIDADES FAMILIARES Luciana Ramos da Silva*

“Isto é família, pouco importando se um dos parceiros mantém uma relação sentimental a-dois. No que andou bem a nossa Lei Maior, a juízo, pois ao Direito não é dado sentir ciúmes pela parte supostamente traída, sabido que esse órgão chamado coração ‘é terra que ninguém nunca pisou”. (Min. Ayres Britto) 1

* Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, cursando o 9º período. 1  SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Recurso Extraordinário nº 397.762/BA; Primeira Turma. Min. Marco Aurélio. j. 12/09/2008, DJe n. 172, publ. 12/09/2008.

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RESUMO: O presente artigo tem por escopo analisar a viabilidade jurídica do reconhecimento das uniões paralelas como entidades familiares, e, destarte, a possibilidade de se assegurar aos seus membros todos os direitos previstos para as famílias convencionais. Para tanto, proceder-se-á com uma análise histórica do conceito de família, bem como, será buscada a compreensão de entidade familiar na atualidade, à luz das normas vigentes. Ato contínuo, adentrar-se-á na análise da admissibilidade jurídica das uniões conjugais concomitantes enquanto famílias, e, por fim, buscar-se-á averiguar o modo que os tribunais brasileiros vêm tratando o reconhecimento das uniões conjugais paralelas. Palavras-chave: Uniões conjugais concomitantes. Pluralismo familiar. Monogamia.

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1 INTRODUÇÃO Não é de hoje que uma grande multiplicidade de arranjos familiares existe em nossa sociedade. Contudo, é possível perceber que, na atualidade, muitas modalidades, principalmente aquelas tidas por não convencionais, passam a se manifestar com menor embaraço do que doutras épocas. Nesse quadro de maior evidência das mais diversas formações familiares é que se destaca o presente estudo, que versará sobre as relações conjugais paralelas e a discussão acerca da possibilidade deste fenômeno ser reconhecido juridicamente enquanto uma entidade familiar. Destarte, faz-se imperioso esclarecer que as considerações feitas estão restritas ao âmbito das conjugalidades ou companheirismos concomitantes, uma vez que a parentalidade simultânea é temática que já encontra uma maior pacificação jurídica, enquanto que as relações conjugais paralelas ainda se apresentam como campo de intensas divergências, principalmente quando confrontadas com o princípio da monogamia. No esteio de desenvolver o presente estudo, buscar-se-á analisar a concepção de família ao longo da história e nos dias atuais de forma a se obter maiores supedâneos para discutir a viabilidade do reconhecimento jurídico das uniões conjugais paralelas enquanto entidades familiares no ordenamento pátrio vigente. Para tanto, perfar-se-á de um estudo tanto bibliográfico, quanto normativo e jurisprudencial, de sorte a se aferir e se refletir acerca do que vem sendo entendido pelos doutrinadores, legisladores e julgadores brasileiros acerca da temática em questão.

Diante de uma persecução histórica, torna-se facilmente perceptível que a conformação estrutural da família brasileira nunca se apresentou de forma estanque, mas, pelo contrário, sempre se exprimiu como um alvo de constantes modificações, por reflexos das transformações sociais vividas ao longo do tempo. Assim, convém ressaltar que no período colonial houve uma forte influência dos valores lusitanos no ordenamento jurídico brasileiro e que, naquela época, havia uma íntima relação entre o Estado e a Igreja, o que denotou na propagação do prestígio da família constituída mediante o matrimônio (SANTOS, 2013). Sublinha-se que, do período colonial até o fim do império, a regulamentação acerca da família se pautou em normas de cunho predominantemente moral e religioso, sendo significativa a influência do direito canônico nas regras produzidas. Em tais circunstâncias, dado o modelo de intervencionismo estatal e de sacralização da família e do casamento, inseriu-se inclusive repressões, “prevendo regras de conduta e punições severas em casos de desvios” (LÔBO, 2010 apud SANTOS, 2013, p. 233) dos deveres do matrimônio. Contudo, malgrado as maiores restrições quanto ao modelo familiar vivido naquela

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2 A CONCEPÇÃO DE FAMÍLIA AO LONGO DA HISTÓRIA

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3 A ATUAL CONCEPÇÃO DE FAMÍLIA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO Após a persecução histórica procedida alhures, faz-se mister delimitar a atual concepção de família, para que se possa, por conseguinte, analisar se as famílias simultâneas se fazem abrangidas em tal compreensão. Ressalva-se que, contudo, não se encontra na Constituição Federal e nem em legislação infraconstitucional a definição expressa do que se entende por família. Desta feita, necessário se faz recorrer, preliminarmente, à doutrina, de forma a se interpretar, à luz das regras e princípios vigentes, a atual compreensão de entidade familiar.

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época, o paralelismo familiar se fazia presente, não se apresentando, portanto, como um fator impeditivo o maior controle estatal e moral para a diversificação dos modelos de família. Conforme apresenta Krapf (2013, p. 8), “muitos portugueses mantinham o casamento com a esposa branca na Europa, paralelamente à constituição de núcleo familiar na colônia”. O formato de família patriarcal e indissolúvel apenas passou a declinar a partir do final do século XIX, como fruto das intensas transformações políticas, econômicas e sociais vividas na realidade brasileira. Destarte, pode-se apontar como importantes causas para tal evolução o processo de urbanização, a deflagração da industrialização e a abolição da escravatura, que acentuou o fluxo migratório do campo para as cidades. Ademais, iniciou-se um processo de inserção da mão de obra feminina no mercado de trabalho, retirando-se, assim, a exclusividade do homem como provedor da entidade familiar (SANTOS, 2013). Contudo, malgrado a entrada em vigor do Código Civil de 1916, de forte cunho liberal, mantiveram-se antigos dogmas que reportam a origem religiosa do direito brasileiro, destacando-se, dentre eles: a manutenção da exclusividade da constituição da família pelo matrimônio, o modelo patriarcal de família, a incapacidade relativa da mulher casada, a discriminação dos filhos ilegítimos e a denegação das relações extramatrimoniais. Assim, maiores modificações apenas advieram com a Constituição Federal de 1988, a qual intentou acolher alguns dos anseios de uma sociedade que fervilhava por se encontrar em um período grandes transformações. Naquele contexto, a sociedade passou a se apresentar em uma condição mais propicia para o reconhecimento da multiplicação dos modelos familiares, registrando-se na Carta Magna três deles, quais sejam: a família oriunda do casamento, da união estável e a família monoparental (HIRONAKA, 2013). Destaca-se também a proeminência dada aos princípios da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da igualdade e da afetividade, o que alicerçou a concepção do princípio pluralismo familiar. Por fim, quanto ao Código Civil de 2002, destaca-se que este já nascera ultrapassado, por não compactuar com os anseios sociais em reconhecer novos arranjos familiares (HIRONAKA, 2013), deixando, assim, a desejar no que atine à questão em apreço.

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3.1 A concepção de família à luz dos princípios da Constituição Federal de 1988

direito de família instalou uma nova ordem jurídica para a família, atribuindo valor jurídico ao afeto. [...] A teoria e a prática das instituições de família dependem, em última análise, de nossa competência em dar e receber amor”. O princípio do pluralismo das entidades também possui um proeminente destaque para a compreensão moderna de família, tendo em vista que é encarado como “o reconhecimento por parte do Estado da existência de várias possibilidades de arranjos familiares” (DIAS, 2011, p. 67), inclusive daquelas não expressas. Comentando o princípio em espeque, assim aborda Carlos Cavalcanti de Albuquerque Filho (2002, p. de internet): Ao invés da segurança imposta, o pluralismo reconhecido como fato e valor social, hoje incorporado ao ordenamento como princípio. No entanto, o legislador foi ainda muito tímido, pois deixou de reconhecer expressamente outras formas de relações afetivas, com caráter de estabilidade, como entidade familiar, a exemplo do concubinato adulterino, vez que o dogma da monogamia ainda supostamente prevalece [...]. Reconhece-se, porém, que uma interpretação à vista dos valores e princípios constitucionais certamente superará os óbices de uma hermenêutica fechada e estéril. Por fim, traz-se que o princípio maior da dignidade da pessoa humana impele o Estado no objetivo constante de promover e assegurar a efetivação de uma vida digna para todos,

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Inicialmente, impende trazer que a Constituição Federal de 1988, embora não traga o conceito de família, consagrou princípios que possibilitam compreender os novos contornos da atual concepção de entidade familiar. Destarte, sublinha-se os princípios – em uma acepção genérica – da liberdade e da igualdade e – em uma acepção específica - do pluralismo das entidades familiares e da afetividade, todos conformadores do princípio maior da dignidade da pessoa humana (ALBUQUERQUE FILHO, 2002). O princípio da liberdade comporta tanto a liberdade da entidade familiar diante do Estado e da sociedade, quanto de cada membro diante dos demais indivíduos da coletividade e da própria entidade familiar. Nas afirmações de Marina Rodrigues Rendwanski (2012, p. 37) “O referido princípio embasa a livre escolha de parceiros, a livre constituição, manutenção e extinção da entidade familiar, a organização familiar mais democrática, participativa e solidária, entre outros aspectos”. O princípio da igualdade também veio proclamado na Constituição, o qual provocou profundas e importantes transformações no direito de família, como, por exemplo, na equiparação entre homens e mulheres, bem como na igualdade entre os pais e filhos na relação familiar (TARTUCE, 2006). O princípio da afetividade, por sua vez, é, sem dúvidas um dos mais importantes princípios do novo contexto do direito de família, uma vez que colocar em um patamar superior aos aspectos biológicos ou sexuais os laços afetivos na configuração de uma relação familiar. Conforme discorre Maria Berenice Dias (2011, p. 71-72) acerca do princípio em espeque “o

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não podendo, portanto, este ser o limitador e até violador da dignidade pessoal, ao desacolher as entidades familiares não previstas expressamente nos textos normativos brasileiros quando existentes no campo social. 3.2 A concepção de família na legislação infraconstitucional Mesmo tendo sido criado após a Constituição Federal de 1988, que ampliou os contornos do conceito de entidade familiar, o Código Civil de 2002 apresentou-se deveras ultrapassado no que concerne à disciplina de direito de família, estando fundado em paradigmas já superados e dissonantes dos princípios constitucionais. Nas palavras de Krapf (2013, p. 200) “Pena que o Código Civil em vigor tenha, a esse respeito, retrocedido vinte anos, ao legislar, em tantas passagens, em desfavor daquele avanço legislativo antes conquistado. Desconheceu, o Código, o princípio da impossibilidade do retrocesso legal, infelizmente”. Ressalta-se que essa defasagem fora causada, principalmente, diante da demora na aprovação do atual Código Civil, a qual se manifesta, dentre outros modos, na ausência de previsão de outras espécies de família, dando margem para um equivocado não reconhecimento de outras variantes de famílias pelos magistrados em suas decisões. Contudo, tal problemática impera ser atenuada pelo fenômeno da Constitucionalização do Direito Civil, sendo, desta feita, submetida, a legislação infraconstitucional, à validade e à conformação dos parâmetros constitucionalmente estabelecidos (SANTOS, 2013). Noutro pórtico, sublinha-se, ainda no campo da normativa infraconstitucional, que a primeira lei que, de fato, veio a conceituar a família foi a nº 11.340/06 (Lei Maria da Penha), a qual trouxe, no art. 5º, inciso II, que a família deve ser “compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa”. Assim, malgrado a sua finalidade seja coibir a violência doméstica, a referida Lei trouxe uma importante mudança ao estabelecer que a vontade dos próprios indivíduos consiste em um fator capaz de criar laços familiares.

Diante da narrativa histórica inicialmente apresentada, é possível se depreender que o conceito de família deve se fundar nos pilares do seu próprio tempo. Nessa esteira, tem-se que não mais se sustenta uma forma de família exclusivamente constituída pelo matrimônio, em que se têm relações marcadas unicamente pelo patriarcalismo e pela hierarquia. O atual panorama, que vem se desenvolvendo, principalmente, a partir da deflagração da emancipação feminina e do ingresso da mulher no mercado de trabalho (DIAS, 2011, p. 42), é de uma profunda evolução social para uma sociedade mais livre e tolerante, o que deve repercutir na concepção de família, uma vez que veio a aflorar o surgimento, ou pelo menos não mais ocultação, de novas formas de convívio. Contudo, é certo que a pluralidade dos arranjos familiares acarretam numa irreme-

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3.3 A concepção atual de família

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diável, mas não impossível, dificuldade conceitual, tendo em vista o imbróglio de se encontrar elementos que conglobem os contornos das relações interpessoais mais diversas. Nessa enlaço, vozes da doutrina defendem, em consonância, como visto, com o ordenamento jurídico pátrio, que o que firma as variedades de relações familiares é a afetividade, acrescentando, também, alguns autores, a necessidade da presença dos requisitos exigidos para o reconhecimento da união estável. Nessa esteira, destaca Maria Berenice Dias (2011, p. 43) a importância de se encontrar um ponto unificador dos vários tipos de família formadas pela afetividade, ao trazer que “é necessário ter uma visão pluralista da família, abrigando os mais diversos arranjos familiares, devendo-se buscar o elemento que permite enlaçar no conceito de entidade familiar todos os relacionamentos que têm origem em um elo de afetividade”. Paulo Luiz Netto Lôbo (2005, p. de internet), por sua vez, sublinha a imperiosidade da presença da afetividade, bem como da estabilidade e ostentabilidade para se caracterizar uma relação familiar, conforme trazido a seguir: Em todos os tipos há características comuns, sem as quais não configuram entidades familiares, a saber: a) afetividade, como fundamento e finalidade da entidade, com desconsideração do móvel econômico: b) estabilidade, excluindo-se os relacionamentos casuais, episódicos ou descomprometidos, sem comunhão de vida; c) ostensibilidade, o que pressupõe uma unidade familiar que se apresente assim publicamente.

4 ANALISE DA VIABILIDADE DO RECONHECIMENTO JURÍDICO DE FAMÍLIAS PARALELAS Ato contínuo ao que já se foi discutindo, chegando-se aos contornos atuais de uma concepção eudemonista da entidade familiar que se coaduna com o princípio da pluralidade de arranjos familiares, partir-se-á para uma análise quanto à viabilidade do reconhecimento jurídico das famílias paralelas, foco do presente estudo. Para tanto, far-se-á necessária uma breve delimitação conceitual da espécie de relação familiar em espeque, seguindo-se de uma necessária discussão envolvendo as divergências

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Tem-se, pois, que hodiernamente uma família pode ser reconhecida como tal desde que os seus membros se façam envolvidos pelo afeto familiar, imperando, portanto, o sentimento e a liberdade dos indivíduos na procura da felicidade. Contudo, importante se faz a fixação de elementos mínimos, tal como intentou o mestre Paulo Luiz Netto Lôbo, no sentido distinguir um tratamento conferido a uma entidade familiar de uma relação meramente passageira, por se tratarem de situações que requerem regimes diferenciados. Ressalta-se, por fim, que se fazem necessárias modificações na concepção de família no campo normativo, de forma que novos arranjos sejam chanceladas pelo Estado, para que este cumpra a sua função de protetor, prevista no art. 226, CF, evitando-se, assim, que o Poder Judiciário continue a negar direitos por omissão normativa da definição de entidade familiar.

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existentes acerca do reconhecimento das famílias paralelas enquanto tais e finalizando com uma análise jurisprudencial acerca da forma que a questão vem sendo enfrentada pelos tribunais brasileiros. 4.1 Breve delimitação conceitual do objeto de estudo: as famílias paralelas formadas pelo vinculo conjugal O presente estudo centraliza-se na forma de constituição familiar na qual uma pessoa integra mais de uma relação conjugal, em que uma delas se constituiu por um casamento ou união estável. Nas palavras de Rodrigo Leonardo de Melo Santos (2013, p. 241) tais uniões se configuram por “múltiplas conjugalidades, decorrentes da presença concomitante de certo indivíduo em mais de um núcleo familiar, estabelecendo, em cada um destes, vinculo conjugal com pessoa diversa”.

Diante da ausência de previsão legal acerca da matéria, impera um acentuado dissenso doutrinário acerca da viabilidade ou não do paralelismo familiar. Em breves termos, pode-se afirmar que existem três correntes acerca do assunto: a primeira, mais conservadora, opõe-se a qualquer possibilidade de reconhecimento de famílias paralelas; a segunda, intermediária, considera como entidade familiar apenas as uniões estáveis paralelas putativas; e a terceira, de cunho mais liberal, prega o reconhecimento de todos os tipos de relações paralelas pelo direito. Os adeptos da primeira corrente afirmam que o princípio da monogamia e os pressupostos da fidelidade e da lealdade impedem o reconhecimento de qualquer união paralela ao casamento ou à união estável (RENDWANSKI, 2012, p. 26). Essa vertente utiliza como fundamento o art. 1.723 do Código Civil, o qual apresenta, em seu § 1º que “a união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521”, afastando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada estar separada de fato ou judicialmente. Conforme o art. 1.521, inciso VI, “Não podem casar: [...] VI – as pessoas casadas”. Nessa esteira, entende-se que não seria possível se reconhecer uma união estável concomitante a um casamento em que os cônjuges não estejam separados de fato. Além disso, os doutrinadores que seguem essa linha, a exemplo de Rodrigo da Cunha Pereira compreendem que a relação paralela configura concubinato, nos termos do art. 1.727 do Código Civil, não podendo, assim, ser entendida como entidade familiar (RENDWANSKI, 2012, p. 26). A segunda corrente segue intelecção semelhante, divergindo, contudo, no que concerne às uniões paralelas putativas, ou seja, uniões paralelas nas quais um dos conviventes se comporta em absoluta boa-fé, desconhecendo que o outro se encontra em uma situação de simultaneidade. Assim, nessa concepção, que tem dentre seus adeptos Renata Miranda Goecks, quando se entende que o indivíduo desimpedido acreditava que a sua relação era exclusiva, não

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4.2 As divergências doutrinárias acerca da viabilidade do reconhecimento de famílias paralelas

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sabendo de casamento ou união estável paralela da outra parte, deve a sua relação com tal pessoa ser entendida como familiar, de forma a lhe conferir direitos. Contudo, percebendo-se que o indivíduo conhecia que a sua relação não era exclusiva, apenas caberia que essa fosse equiparada a uma sociedade de fato, aplicando-se a Súmula 380 do STF2 que confere efeitos meramente patrimoniais a tal união (BERTUOL, 2012). Por fim, a terceira corrente compreende que independentemente do conhecimento pelo convivente da união estável ou casamento do outro, a relação paralela existente constitui entidade familiar, merecendo a guarida do Direito de Família. Nessa compreensão, enveredada por, dentre outros doutrinadores, Maria Berenice Dias, deixar de reconhecer a família paralela como entidade familiar apenas favorece o infiel, conforme se destrinchará no tópico seguinte.

Após apresentadas as divergentes compreensões doutrinarias acerca da viabilidade do reconhecimento da família paralela como entidade familiar no ordenamento jurídico moderno, cumpre expor o posicionamento entendido o juridicamente possível e necessário, à luz do direito posto e do contexto atualmente vivenciado. Nessa esteira, compreende-se que não se faz mais correspondente com a realidade o entendimento ainda esposado por alguns doutrinadores e julgadores que inadmite o reconhecimento das - dentre outras formas de relações familiares - famílias paralelas, com fulcro em argumentos de cunho meramente moral e de normas que não mais se sustentam na realidade atual. Nessa senda, impende novamente destacar que com a Constituição Federal de 1998 fora abraçado pelo ordenamento jurídico brasileiro o princípio do pluralismo das entidades familiares. Assim se assevera, uma vez que, frente às mudanças sociais sofridas com o passar do tempo, as quais refletiram nas formas de relações familiares, a Carta Marga passou albergar a liberdade na forma de construção familiar. Dessarte, a Lei Maior trouxe a previsão de algumas espécies de família, de maneira não taxativa, e retirou a exclusividade do casamento para o estabelecimento de uma entidade familiar, sem, contudo, estabelecer outras restrições, conforme se depreende do art. 226 da CF. Assim, conforme ensina Paulo Lôbo (2005), com o art. 226 da CF/88, houve uma grande transformação na tutela constitucional à família, na medida em que substituiu, sem colocar nenhuma outra em seu lugar, a locução “constituída pelo casamento” prevista no art. 175 da Constituição de 1967-69. Destarte, em que pese a previsão de determinados tipos familiares, a Constituição atual trouxe uma norma ampla, demonstrando que com a extinção da antiga cláusula de exclusão intentou, em verdade, expandir a tutela dos direitos subjetivos relativos as entidades fami-

2  SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Súmula Vinculante nº 380. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=jurisprudenciaSumula&pagina=sumula_301_400>. Acesso em: 20 jul. 2015.

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4.3 Do posicionamento acerca da viabilidade do reconhecimento da família simultânea como entidade familiar na atualidade

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3  SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Súmula Vinculante nº 380. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=jurisprudenciaSumula&pagina=sumula_301_400>. Acesso em: 20 jul. 2015.

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liares para os mais diversos arranjos. Contudo, de fato, não são de todas livres as formas de constituição de uma família, pois é necessário se atender aos requisitos mínimos da afetividade, ostentabilidade e estabilidade, que caracterizam uma entidade familiar, conforme transmitido por Paulo Lôbo (2005). Tais elementos, uma vez presentes, impõem ao Estado uma postura de inclusão no sentido de proteger a entidade família, independentemente de sua configuração. Convém apresentar que defendem alguns doutrinadores, a exemplo de Rodrigo da Cunha Pereira (2004 citado por BERTUOL, 2012), que, entretanto, entendem que seria inviável o reconhecimento jurídico de famílias paralelas em face do princípio da monogamia. Nesse campo, importa ressalvar que a monogamia não consiste em um princípio constitucional do direito de família, pois a Lei das Leis não a sustenta, uma vez que se abriu para a pluralidade dos arranjos familiares. A monogamia apenas pode ser considerada pela sua função ordenadora da família, estabelecida em razão do triunfo da propriedade privada que imperava antes da vigência da atual Constituição Federal (DIAS, 2011). Sobre a monogamia, tece Maria Berenice Dias (2011, p. 43) importantes considerações acerca de seu caráter moralizante, ao dizer que “a monogamia – que é monogamia só para a mulher- não foi instituída em favor do amor, [...] a uniconjugalidade não passa de um sistema de regras morais, de interesses, de interesses antropológicos e psicológicos, embora disponha de valor jurídico”. Impende, ademais, aduzir que, ainda que não haja previsão e que sejam marginalizadas, as uniões não expressas na Constituição não deixam de existir e de impelir o judiciário na busca pelo reconhecimento de seus direitos. Havendo os requisitos de uma entidade familiar, principalmente a afetividade, os casos concretos devem ser solucionadas à luz do direito de família e não do direito das obrigações (Dias, 2011). Destarte, não há que se falar mais em aplicação da Súmula 380 do STF para abordar a união concubinária, uma vez que consiste em um tratamento que viola a dignidade humana dos envolvidos e desconsidera a importância da afetividade para a caracterização de uma entidade familiar. Esclarece-se que conforme a referida Súmula “Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum”.3 Pertinente explicar, que, entretanto, a Súmula sob vergasta, representou, inicialmente, uma importante evolução no ordenamento jurídico à época em que foi editada, uma vez que veio a conferir uma tutela legal às famílias constituídas sem casamento, permitindo alguma proteção patrimonial a mulheres abandonadas por seus companheiros, após anos de convivência afetiva (LÔBO, 2011). Entretanto, com a Constituição de 1988, o que era um avanço passou a configurar um retrocesso, uma vez que a Súmula considera as relações afetivas como relações exclusivamente

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patrimoniais, afastando do direito de família as uniões concomitantes constituídas pelos laços da afetividade. Ademais, destaca-se que o concubinato adulterino, ou simplesmente concubinato, caracteriza, tecnicamente, o descumprimento do dever de fidelidade mencionado no atual Código Civil, o que remete muitos doutrinadores a entenderem pela impossibilidade de seu reconhecimento enquanto uma entidade familiar. Todavia, alguns doutrinadores, a exemplo de Paulo Lôbo (2005, p. 12), contrapõem esse argumento, afirmando que devem as normas constitucionais acerca do adultério serem interpretadas à luz das diretrizes constitucionais, ou seja, que tais regras “não excluem essas uniões como entidades familiares e têm finalidade distinta, no plano civil (causa de separação judicial) e criminal (em forte desuso)”. No mesmo sentido entende Maria Berenice Dias (2011), ao trazer que malgrado o impedimento do parágrafo primeiro do artigo 1.723 do Código Civil, deve ser levado em consideração, nesse caso, a diferença entre união estável e casamento, devendo a limitação acerca da simultaneidade se restringir apenas a concomitância de matrimônios, uma vez que colidem com a fé pública creditada pelo Estado. Todavia, não deve ser considerado qualquer impedimento, no mesmo sentido, para uma união estável concomitante a uma entidade familiar em qualquer das formas expressas na Constituição, inclusive as formadas pelo casamento. Demais disso, cumpre discorrer que a intervenção estatal no direito de família deve se fazer presente no sentido da proteção e não numa perspectiva de exclusão. Assim, conforme preleciona Carlos Cavalcanti de Albuquerque Filho (2002) não cabe a um Estado Democrático de Direito, em que a dignidade da pessoa humana consiste em condição fundamental da república, predispor quais entidades familiares podem ser constituídas, mas apenas outorgar-lhes proteção, sendo-lhe de dever assegurar a toda e qualquer união constituída pela afetividade, incluindo-se as famílias simultâneas.

Não se faz incomum que os indivíduos que se encontram em situação de simultaneidade familiar, a qual ainda se encontra a margem das previsões legais expressas, busquem os tribunais pátrios no intuito de obter o reconhecimento pelos sujeitos envolvidos do que lhes é de direito e dever. Contudo, ainda se percebe, através de uma análise da jurisprudência dos tribunais brasileiros, que o posicionamento majoritário ainda é aquele que compreende como alheio ao direito a possibilidade de reconhecimento de famílias paralelas. Desta feita, ainda é mais comum que as cortes brasileiras, incluindo as superiores, neguem qualquer tutela jurídica a tais entidades familiares, inclusive daquelas que apresentam todos os requisitos de uma união estável, conforme se verifica a partir do excerto retirado de decisão do Superior Tribunal de Justiça: O objetivo do reconhecimento da união estável e o reconhecimento de que essa união é

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5 AS FAMÍLIAS PARALELAS NOS TRIBUNAIS BRASILEIROS

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6 CONCLUSÃO Ante o exposto, percebe-se que as famílias paralelas sempre existiram na realidade

4  SUPERIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso Especial nº 789293 RJ 2005/0165379-8. Terceira Turma. Min. Carlos Alberto Menezes Direito. j. 16/02/2006. Dje 20/03/2006, p. 271. 5  TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL. Apelação Cível nº 70060165057. 8ª Câmara Cível. Des. Rui Portanova. j. 30/10/2014. Dje n. 04/11/2014. 6  TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE PERNAMBUCO. Apelação Cível nº 7001246/PE 176862-7. 3ª Câmara Cível. Des. Francisco Eduardo Goncalves Sertorio Canto. j. 08/03/2012. Dje n. 53.

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entidade familiar, na minha concepção, não autoriza que se identifiquem várias uniões estáveis sob a capa de que haveria também uma união estável putativa. Seria, na verdade, reconhecer o impossível, ou seja, a existência de várias convivências com o objetivo de constituir família. Isso levaria, necessariamente, à possibilidade absurda de se reconhecer entidades familiares múltiplas e concomitantes.4 Todavia, já há decisões, ainda pouco frequentes, no sentido de reconhecer famílias simultâneas nos casos em que se vislumbra que a união estável paralela era putativa, conferindo-se tutela em prol do(a) companheiro(a) de boa-fé, que desconhecia a outra entidade familiar do(a) convivente, conforme se depreende do trecho de decisão do Tribunal do Rio Grande do Sul trazido a seguir: Com efeito, a confissão da apelante de que ficou sabendo somente “no processo” que o apelado estava em processo de separação com a esposa do Tocantins, as idas e vindas do réu, a distância e o processo de separação do casamento, corroboram a tese de que a apelante não sabia do casamento, vivendo uma “união estável putativa”, a qual, em analogia ao “casamento putativo”, deve receber as consequencias jurídicas similares às da união estável5. Por fim, apresenta-se a ementa da louvável decisão do Tribunal de Justiça de Pernambuco, que corrobora com o posicionamento ora defendido, mas ainda pouco presente na seara judicial, que caminha no sentido de entender pela viabilidade do reconhecimento como entidade familiar das uniões paralelas, conferindo consonância entre a realidade social e o direito posto: DIREITO DE FAMÍLIA. RECONHECIMENTO E DISSOLUÇÃO DE SOCIEDADE DE FATO DE FAMÍLIAS SIMULTÂNEAS. 1. Atendidos os requisitos da lei, é de se reconhecer a união estável, respeitada a publicidade, a continuidade do relacionamento e o intuito de se constituir família; 2.Quanto ao fato de pessoas casadas, na constância do casamento, poderem manter união estável, não há impedimento, em decorrência do princípio constitucional de proteção à família (artigo 266, § 3º CF); 3.As famílias previstas na Constituição não são numerus clausus. 4.A presença da afetividade, como fundamento, e a finalidade da entidade, além da estabilidade, com comunhão de vida, e a ostensibilidade, levam ao reconhecimento de famílias simultâneas; 4.”O caput do art. 226 é, consequentemente, cláusula geral de inclusão, não sendo admissível excluir qualquer entidade que preencha os requisitos de afetividade, estabilidade e ostensibilidade.”6

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REFERÊNCIAS ALBUQUERQUE FILHO, Carlos Cavalcanti de. Famílias simultâneas e concubinato adulterino. Jus Navigandi, Teresina, a. 7, n. 56, s/p, abr. 2002. Disponível em: <http://jus.com. br/artigos/2839>. Acesso em: 1 ago. 2015. BERTUOL, Pedro Henrique Barbisan. A tutela jurídica das famílias simultâneas. Monografia (Graduação) - Curso de Ciências Jurídicas e Sociais, Universidade Federal do Rio

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brasileira, inclusive nas épocas em que se concebia um maior embrutecimento da lei no sentido de reprimir outras formas de relações familiares que não as formadas sob o manto matrimônio e, destarte, em desconformidade com os preceitos morais e religiosos. Contudo, a evolução histórico-social permitiu que outras formas de relações familiares que não apenas a constituída pelo casamento se manifestassem, o que não foi satisfatoriamente acompanhado pelo Direito. Entretanto, aferiu-se que malgrado as normas infraconstitucionais se apresentarem, em sua maioria, defasadas no que concerne ao campo da tutela das entidades familiares, a Constituição Federal de 1988 trouxe avanços que permitem ir além daquilo que se faz escrito nos textos normativos, pois veio a conferir tutela às relações familiares mediante seus princípios, ao resguardar, dentre outros, o pluralismo familiar e a afetividade. Assim, viu-se, pois, a possibilidade à luz da realidade e das normas vigentes, principalmente as constitucionais, de se encontrar uma compreensão de família que seja mais justa, entendendo por ela a relação constituída sob o manto da afetividade e que possua os mesmos elementos exigidos para o reconhecimento das uniões estáveis, o que torna viável, nessa linha, o reconhecimento das relações concomitantes. Outrossim, essa também se faria possível na medida em que não encontra óbices jurídicos, uma vez que se constatou que: a) os reconhecimento de direitos não deve se obstado em face de normas que visam tutelar apenas a moral e os bons costumes; b) o art. 226 da CF/88 excluiu o antigo termo referente à família “constituída pelo casamento” presente na Constituição anterior, retirando a exclusividade do casamento para o estabelecimento de uma entidade familiar; c) a Súmula 380 do STF viola o princípio da dignidade da pessoa humana, uma vez que considera as relações afetivas concomitantes ao casamento como meramente patrimoniais; e d) em face do princípio da dignidade da pessoa humana deve o Estado agir no sentido de tutelar as entidades familiares, e não de negar-lhes direitos, uma vez que a família se faz intimamente ligada ao livre desenvolvimento e à busca da felicidade. Por fim, viu-se que, salvo algumas exceções, a jurisprudência brasileira ainda vem se comportando no sentido de não reconhecer as famílias paralelas como entidades familiares, o que faz perdurar o cometimento de injustiças diárias pela negativa de tutela à arranjos que resguardavam a mesma essência dos expressamente previstos no ordenamento jurídico pátrio, qual seja, a afetividade.

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PARALLEL FAMILIES: AN ANALYSIS OF THE LEGAL FEASIBILITY RECOGNITION OF UNIONS CONJUGAL CONCOMITANT AS FAMILIES ENTITIES

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ABSTRACT: This article has the scope of examine the legal feasibility of recognition of parallel unions as family entities, and thus, the possibility of ensuring that their members all the rights provided for conventional families. This shall be carried out with a historical analysis of the concept of family. Immediately thereafter, will seek understanding of family unit today, in light of current regulations, and then enter in the analysis of the legal admissibility of concomitant conjugal unions as families. Finally, we will seek to find out, way that Brazilian courts have been dealing with the recognition of parallel marital unions. Keywords: concurrent marital unions. Family pluralism. Monogamy. Marriage. Stable union.

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Recebido em 30 set. 2015. Aceito em 21 out. 2015.

OS DIREITOS HUMANOS COMO NORTEADORES DO DIREITO NO ÂMBITO DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS: A APLICABILIDADE DA TEORIA DE JUSTIÇA DE JOHN RAWLS NA ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS João Victor Gomes Bezerra Alencar*

RESUMO: O presente artigo científico visa descrever o processo histórico de evolução do Direito Internacional dos Direitos Humanos, sob a ótica dos Tratados de Westfália, Liga das Nações, Carta da ONU e Declaração Universal dos Direitos Humanos. Aliado a isso, há analise de John Rawls referente aos elementos de justiça presentes nas instituições e nas relações internacionais, como parâmetro para efetivação de mecanismos de proteção aos Direitos Humanos e busca de elementos de convergência ou divergência entre teoria e prática. Palavras-chave: Direito Internacional Público. Direitos Humanos. Organização das Nações Unidas.

O estudo do Direito Internacional dos Direitos Humanos teve nos Tratados de Westfália e na Carta das Nações Unidas as bases para seu aprofundamento teórico e prático. Esses dois grandes marcos históricos nos remete a um passado em que inúmeros direitos humanos foram violados, como visto na Guerra dos Trinta Anos, na Primeira e Segunda Guerras Mundiais, os quais foram responsáveis pelo surgimento dos documentos supracitados. Mister salientar o contexto de evolução da sociedade internacional, em que ainda na fase de transição entre os séculos XV e XVII- após a vigência e assinatura dos Tratados de Westfália- surgem os primeiros estados nacionais soberanos baseados no princípio de * Graduando em Direito pelo Centro Universitário do Rio Grande do Norte, cursando o 4º período.

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1 INTRODUÇÃO

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igualdade entre as nações, ainda inspirados pelas normas regentes do direito público europeu. Destarte, os Direitos Humanos foram postos em discussão durante as revoluções burguesas que se sucederam com o decorrer dos séculos, tais como a revolução americana e francesa, em que a busca pelos direitos básicos- que garantissem a dignidade da pessoa humana- eram cada vez mais elencados em documentos. Com a evolução bélica e tecnológica, surgem os conflitos armados protagonizados pelos interesses do neoimperialismo, culminando nas duas grandes guerras até então vistas pela humanidade. A Liga das Nações, após a assinatura do Tratado de Versalhes e inspirada pelo quatorze pontos de Wilson, foi a primeira tentativa de instaurar a paz mundial após as atrocidades cometidas durante a primeira grande guerra, a qual não obteve sucesso devido ao surgimento da segunda guerra mundial vinte e um anos depois. Em 26 de Junho de 1945, próximo ao final da segunda grande guerra, cinquenta nações presentes à Conferência sobre Organização Internacional assinaram um documento que resgatava a esperança da instauração da paz perante a sociedade internacional: surge a Carta das Nações Unidas. Este documento foi o pilar necessário para o surgimento da Organização das Nações Unidas e, consequentemente, de suma importância para reafirmação dos direitos humanos, evidenciando as liberdades fundamentais sem distinção de raça, sexo, língua ou religião. Sob esta óptica, ainda surge a Declaração Universal dos Direitos Humanos, protocolada em 10 de Dezembro de 1948 e oriunda dos debates realizados na Assembleia Geral das Nações Unidas, a qual evidencia a importância de promover o respeito a esses direitos através do ensino e educação. Porém, nota-se que a seguridade dos direitos fundamentais previstos nas constituições dos países que compõem a sociedade internacional, e dos direitos humanos protegidos pelos tratados internacionais, pode ser relativizada diante do desrespeito as liberdades religiosa, política e econômica presentes na sociedade moderna. Propondo uma alternativa ao pensamento vigente nas relações sociais dominantes, John Rawls- professor titular de Filosofia Política na Harvard University, Cambridge, Massachusetts e considerado um dos maiores Cientistas Políticos do século XX- propõe a seguinte reflexão: como é possível existir uma sociedade justa composta por cidadãos livres e iguais, os quais se encontram profundamente divididos por ideais religiosos e filosóficos? A liberdade como valor supremo da vida humana e a igualdade como valor fundamental na convivência política são ferramentas fundamentais para uma possível solução deste questionamento, partindo do pressuposto da justiça como equidade. A indagação anterior é o ponto de partida para a construção do presente artigo científico. A relação de convergência ou divergência entre os elementos presentes nas obras do referido autor com o conteúdo histórico dos documentos primórdios do Direito Internacional dos Direitos Humanos, no tocante a justiça e liberdade, podem nos nortear quanto à permanência ou modificação da teoria de justiça proposta por Rawls até o presente momento.

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2 O PENSAMENTO DE JOHN RAWLS RELATIVO AOS ASPECTOS BASILARES DE JUSTIÇA E A JUSTIÇA NAS INSTITUIÇÕES SOCIAIS

passem a ser vistos claramente como cidadãos democráticos: pessoas livres e iguais. Por meio da garantia da liberdade política e condições iguais de oportunidades pode-se haver uma reflexão acerca do consenso posto na sociedade, sendo, portanto, o consenso sobreposto o elemento fundamental para o desenvolvimento da tolerância e, consequentemente, de um dialogo social público em que as doutrinas filosóficas e morais abrangentes sejam deixadas de lado: surge a razão pública como direcionamento de uma reflexão voltada para a vida pública dos indivíduos na sociedade e contribuição para formação da “estrutura básica” (RAWLS, 2011, p. 13). É de extrema importância delimitar a estrutura básica de tais instituições, atrelando valores de justiça, como a equidade, aos seus padrões em uma sociedade inicialmente considerada como fechada para em seguida tratar de uma relação justa entre os povos: o foco inicial é a sociedade interna de cada nação (RAWLS 2011, p. 14-17). Ainda referente à concepção de justiça, é necessário levar em consideração o teor dos discursos presentes em cada doutrina moral abrangente ou na cultura pública como um todo referente à forma de pensamento coletivo e não político. O teor político do discurso está na cooperação entre as instituições e cidadãos para a construção de uma sociedade justa, em que o consenso sobreposto -configurado como uma superação do senso comum- precisa ser relativizado quando se tratando da reformulação da concepção de justiça e questões políticas.

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No pensamento de John Rawls, a questão primordial acerca de uma sociedade justa e democrática refere-se à reflexão de qual a concepção de justiça é mais adequada em um contexto social de liberdade como valor supremo da vida humana e igualdade como valor fundamental na convivência política, levando em consideração sua perpetuação para as futuras gerações (2011, p.3). Deste pensamento, nasce a questão da importância de uma consciência política cooperativa para a consolidação da justiça na sociedade presente e futura. Partindo dessa premissa, surge o ponto da tolerância como fator fundamental para a compreensão de um modelo de sociedade pautado na justiça e no respeito das diversidades (2011, p.3-4), uma vez que os conflitos mais intensos estão presentes nas divergências religiosas, filosóficas e concepções distintas de moral. Diante de conflitos tão extremo como esses, torna-se difícil algum tipo de solução pacífica- a própria história tem mostrado isso, como por exemplo, o contexto dos antecedentes a criação da ONU (CRETELA NETO, 2013, p. 69-71). Porém, John Rawls propõe uma solução por meio de ideias afins (2011, p. 4). Para ilustrar a situação supracitada, basta retornar aos dois últimos séculos da existência humana para compreender que durante a construção do pensamento democrático não houve concordância quanto à formação de instituições sociais pautadas na justiça e liberdade dos seus cidadãos, em que a garantia de direitos fundamentais -previstos em uma constituição- nem sempre foi respeitada. Com isso, é necessário que os indivíduos que formam a conjuntura de uma sociedade

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Atrelado ao conceito de justiça supracitado há a análise da equidade, a qual representa o marco inicial para a construção das premissas responsáveis por guiar as estruturas das instituições sociais- igualdade inicial. Nesse aspecto, Rawls analisa a equidade como a base da justiça institucional. Aliado a isso, acrescentam Eduardo Bittar e Guilherme de Almeida (2015, p. 490): “Nessa medida, pensar a justiça com John Rawls é pensar em refletir acerca do justo e do injusto das instituições. Qual seria a melhor forma de administrar a justiça de todos senão por meio das instituições sociais?”. Desta forma, com base em um contrato social contemporâneo, Rawls acredita que a justiça representa a grande característica das instituições sociais, em que uma sociedade organizada e bem ordenada configura-se pela justiça que se reflete nas estruturas institucionais da sociedade de forma deontológica (dever ser). Importante ressaltar que a ideia de contrato proposta pelo autor preza pelo respeito às diversidades, ou seja, pluralidade de pessoas e publicidade de princípios de justiça. Tal conceito de justiça encaixa-se no contexto da teoria de justiça que se realiza de forma institucional (justiça presente nas instituições), objetiva (aderida e compartilhada de forma racional no cotidiano da sociedade) e coletiva (beneficia a comunidade e não o individualismo). Esses elementos constituem a base do já supracitado contrato social, o qual se preocupa com o coletivo e pode resultar em dois princípios para uma boa administração das instituições e legitimidade da lei: o princípio da garantia da liberdade e o princípio da distribuição igual para todos (BITTAR; ALMEIDA, 2015, p. 501-504). Ainda sobre a ótica de princípios, surgem mais dois deles para estruturar o pacto social: princípio da igualdade e princípio da diferença. A harmonia entre esses dois princípios resulta na justiça e no equilíbrio das instituições sociais, sendo responsáveis por gerir direitos e deveres. O primeiro princípio é responsável por definir as liberdades básicas dos indivíduos que formam a sociedade e que aderiram ao pacto, tais como liberdade de expressão, liberdade política, liberdade de consciência e de não ser preso de forma arbitraria. O segundo princípio é responsável por exaurir as desigualdades, fazendo com que na prática se tenha uma igualdade democrática. Em conjunto, esses dois princípios buscam readequar as desigualdades naturais a uma realidade de justiça das instituições sociais, para que não haja diferença no tratamento entre sexo e gênero, situações socioeconômicas distintas e posições políticas diferentes: trata-se da busca por uma sociedade organizada em que todos participem da melhor forma possível das estruturas sociais. Já estabelecidos, portanto, os elementos basilares do pacto social, para Rawls é chegado o momento em que os indivíduos superam o “véu da ignorância” por meio da deliberação acerca da elaboração de um documento responsável por reger a sociedade: votação de uma Constituição. O foco nesse momento é buscar políticas que tragam benefícios sociais, seja por meio da economia ou outros mecanismos de justiça. Portanto, a Constituição representa o dever natural de justiça em uma sociedade, proporcionando estabilidade e legitimidade na observância da lei (RAWLS, 2008, p. 101-104). Todavia, na medida em que as instituições desrespeitam os princípios de justiça presentes no pacto e na constituição, poderá ocorrer resistência de acor-

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do com Rawls (2008, p. 283): “A violação persistente e deliberada dos princípios básicos desta concepção durante um período de tempo extenso, em especial a lesão das liberdades fundamentais, convida à submissão ou à resistência”. Partindo para uma perspectiva de justiça nas instituições internacionais, temos na visão de Rawls a formação do Direito dos Povos pautados na igualdade- inspirados nos mesmos elementos supracitados da justiça presente nas instituições sociais, porem com uma abordagem principiológica diferente. Nesse contexto, surgem organizações responsáveis pela cooperação entre os povos e garantia dos direitos humanos nas suas relações. Para ilustrar essa situação, temos como exemplo comparativo as Nações Unidas guiadas pelos princípios contidos na carta da ONU, cujas principais funções relacionadas à justiça são de alertar a sociedade internacional sobre ações injustas presentes em qualquer nação e denunciar casos de violação de direitos humanos. A intermediação de conflitos por meio do diálogo e da negociação pacifica é fundamental; porém, em ultima instância de casos graves torna-se necessária a intervenção militar para garantir a paz e a justiça dos povos. Nessa sistemática, são necessários alguns princípios que orientem a relação entre os povos na sociedade internacional bem-ordenada no contexto da garantia de seus direitos: liberdade e independência nas relações sociais com predomínio do respeito mútuo, análise de tratados e compromissos firmados perante as relações entre os povos, igualdade de tratamento, dever moral de não intervenção inserido no contexto de autodeterminação, direito de autodefesa como única razão de justificar a guerra, proteção dos direitos humanos e ajuda aos povos menos favorecidos ou que se encontre em condições sócio-políticas desfavoráveis para uma convivência justa (RAWLS, 2001, p. 46-49). Objetivando o bem comum na sociedade internacional bem ordenada, em que se prevaleça o respeito mútuo entre povos, ocorrerá processo semelhante nos casos nacionais já mencionados, através do qual os indivíduos de uma sociedade amadurecem o senso de justiça por meio do engajamento sócio-político. Há, portanto, a seguinte situação: os povos alcançam a paz democrática e a confiança mútua por meio do compromisso com os princípios que regem o Direito dos Povos. Caso não haja esse respeito, a estrutura de confiança ficará abalada nas suas relações, aumentando o anseio por justiça, uma vez que as instituições políticas e sociais podem ter sua estrutura revista para tornar os povos mais satisfeitos (RAWLS, 2001, p. 56-60). Os direitos humanos, na perspectiva do Direito dos Povos, podem ser exemplificados como a liberdade que impede a escravidão e que garante a consciência de grupos étnicos contra assassinatos. Por isso, possuem um papel fundamental por restringir ideias justificadoras de conflitos, impondo limites à autonomia interna de um regime em razão da harmonia entre os povos (RAWLS, 2001, p. 102-106). Vale salientar que os Direitos Humanos são diferentes dos direitos fundamentais garantidos em uma Constituição, caracterizando-se como um padrão necessário para decência das instituições: instaurar a ordem jurídica, excluir justificativa de intervenção coercitiva e estabelecer limites para o pluralismo entre os povos.

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3 BREVE HISTÓRICO DO DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS

mordiais do Direito Internacional sob a ótica de Francisco de Vitória, Suarez e Hugo Grócio, surgem os tratados de paz de Westfália, conhecidos também como “a Carta Constitucional da Europa” (CRETELA NETO, 2013, p. 43), os quais foram responsáveis pelo fim da Guerra dos Trinta Anos- conflito religioso e político travado principalmente pela França, Espanha, Alemanha e Suécia. Valério Mazzuoli (2013, p. 65-67) afirma que os Tratados de Westfália representaram uma nova era do Direito Internacional Público e o mais remoto antecedente histórico do Direito Internacional dos Direitos Humanos: “Pelo fato de, pela primeira vez, se ter reconhecido, no plano internacional, o princípio da igualdade formal dos Estados europeus e a exclusão de qualquer outro poder a eles superior”. Esses tratados, considerados juridicamente como a base do Direito Internacional Contemporâneo, ampliaram a liberdade de culto religioso para as populações locais como consequência da ruptura política com o papa e proporcionaram o surgimento de novos Estados soberanos, pautados nos princípios de soberania e igualdade como base para as relações internacionais; contudo, havia o predomínio do Direito Internacional Clássico (origem de um direito da guerra), em que as nações governadas pelos respectivos soberanos absolutos ainda estavam inseridas no contexto de relação internacional muito embrionário, no qual a guerra ainda ocorria como elemento de validação da soberania dos governos absolutistas por meio da imposição

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Com o intuito de se ter uma melhor compreensão da sistemática normativa internacional de proteção aos Direitos Humanos, é necessário estabelecer alguns parâmetros históricos, os quais delinearam as etapas de universalização destes direitos. Segundo Valério Mazzuoli: “O Direito internacional dos Direitos Humanos é aquele que visa proteger todos os indivíduos, qualquer que seja sua nacionalidade e independentemente do lugar onde se encontre”. (MAZZUOLI, 2013, p. 861).Utilizando da dignidade da pessoa humana como premissa para a busca de mecanismos de proteção a tais direitos, foi no sentido de garanti-la e protegê-la que se deu inicio ao intenso processo de efetivação dos direitos básicos inerentes à vida humana. Para tanto, foi necessário uma reflexão acerca da soberania das Nações como ponto de partida para a internacionalização dos Direitos Humanos, fazendo com que tal assunto estivesse em discussão como questão de legítimo interesse internacional, ou seja, as nações estariam unidas em um único propósito: garantir os Direitos de seus cidadãos internamente por meio de uma Constituição e no âmbito externo- relações internacionais- por meio dos tratados internacionais de proteção aos Direitos Humanos. Com isso, os indivíduos passaram a ter um papel redefinido na sociedade, visto que diante desse contexto se tornaram membros de uma sociedade internacional e, portanto, verdadeiros sujeitos de Direito Internacional. Os tratados de Westfália, o Direito Humanitário, a Liga das Nações, a Organização Internacional do Trabalho e mais recentemente a criação da ONU, representam precedentes históricos do desenvolvimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Entre os séculos XVI e XVII, diante do fomento dos debates acerca das teorias pri-

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do conflito bélico sobre vontade aos demais povos, ou seja, mera política de estado. Pode-se analisar, portanto, que não havia a visão e proteção dos indivíduos enquanto membros de uma comunidade internacional, nem muito menos a legitimação de instituições capazes de protegê-los diante do flagelo da guerra. Consoante à esta situação, José Cretella Neto (2013, p. 48-50) afirma que o Direito Internacional Positivo Clássico consolidou-se plenamente na sociedade da época por meio dos seguintes princípios:

Ainda sobre o dilema da função do Estado soberano no tocante a sua relação com os indivíduos que o compõe, em um quadro de predomínio do Direito Internacional Clássico impositivo à vontade dos povos, eclode movimentos sociais no século XVIII que foram responsáveis por questionar esta conjuntura estatal referente à garantia dos direitos dos indivíduos e, sobretudo, da dignidade da pessoa humana. A Revolução Americana e a Revolução Francesa são os maiores exemplos desta época referentes à construção de um Estado Democrático de Direito, o qual fosse capaz de assegurar um instrumento de limitação ao poder estatal: surgem os Direitos Fundamentais e suas gerações. A partir deste marco, grande parte das Constituições modernas passaram a atribuir no seu corpo de texto um considerável espaço para a redação de tais direitos, os quais foram consagrados historicamente por meio da Declaração de Direitos da Virgínia (1776) e da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789). Com base neste contexto de reivindicações sociais, em destaque para a Revolução Francesa, surge a teoria das gerações dos Direitos Fundamentais- inspirada pelo lema da liberdade, igualdade e fraternidade-, a qual de acordo com as lições de Uadi Lammêgo Bulos (2015, p. 528-532) é de suma importância para compreensão da evolução teórica dos direitos do homem do plano interno para o plano externo: primeira geração (liberdade), segunda geração (igualdade) e terceira geração (fraternidade). Essa gama de fatores converge para a preservação da dignidade da pessoa humana, a qual na visão de George Marmelstein (2014, p. 16-19) detém alguns atributos: respeito à autonomia da vontade, respeito à integridade física e moral, não coisificação do ser humano e garantia do mínimo existencial. A título de exemplificação de tais aspectos contidos no sistema normati-

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1. Os Estados são soberanos e iguais entre si; 2. A sociedade internacional é uma sociedade interestatal; estruturalmente, constitui uma justaposição de entidades soberanas e iguais entre si, excluindo qualquer poder político organizado e superposto a seus componentes; 3. O Direito Internacional é também um direito interestatal, que não se aplica aos indivíduos; 4. Quanto às fontes, o Direito Internacional deriva da vontade e do consentimento dos Estados soberanos; os tratados provêm de um consentimento expresso, e os costumes, de um consentimento tácito; 5. Os Estados soberanos estabelecem o que devem fazer e o que não devem, nas relações internacionais, não se submetendo à jurisdição de outros Estados; 6. Nas relações entre os Estados soberanos, a guerra é permitida.

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vo moderno das nações, temos o seguinte esclarecimento do Ministro do STF Celso de Mello1:

No século XIX houve um período de relativa paz diante do surgimento do Direito Humanitário. Este instituto representa o conjunto normativo responsável por estabelecer limites à atuação estatal em situação de guerra, convergindo com a observância dos direitos fundamentais por parte do Estado (PIOVESAN, 2013, p. 183-185). Além de ser aplicado em contexto de conflitos internos ou internacionais, o Direito Humanitário visa proteger militares feridos, enfermos ou presos durante o conflito, bem como a população civil como um todo. Diante disso, Flávia Piovesan (2013, p. 184) afirma que: “Ao se referir a situações de extrema gravidade, o Direito Humanitário ou o Direito Internacional de Guerra impõe a regulamentação jurídica do emprego da violência no âmbito internacional”. Assim, a proteção humanitária foi de extrema importância para afirmar, de forma pioneira, que no plano internacional há limites para os Estados em guerra, referente às suas liberdades e autonomia. Com o advento da evolução bélica, corrida armamentista e disputas imperialistas -características do século XX- ocorre a Primeira Guerra Mundial entre 1914 e 1918. O choque de realidade diante de um conflito tão intenso, com tantas violações a direitos básicos do homem, trouxe a tona uma reflexão a respeito da conjuntura predominante na sociedade internacional da época referente à proteção da vida humana. Por isso, diante das drásticas consequências deste conflito e da assinatura do Tratado de Versalhes, o conflito chegou ao fim com uma tentativa de restauração da paz mundial: a Liga das Nações. Com o objetivo de promover a paz, cooperação e segurança internacional no pós-guerra, a referida Liga representou um marco relacionado à reflexão da necessidade de relativizar a soberania dos Estados. Para tanto, foi elaborada a Convenção da Liga das Nações (1920), a qual previa o comprometimento dos Estados em assegurar condições dignas de vida e trabalho para sua população, estabelecendo, dessa forma, possíveis sanções econômicas e militares praticadas pela comunidade internacional aos Estados que violassem as garantias contidas na referida convenção. Dessa forma, o conceito de soberania estatal começava a deter amplitude internacional e aderência aos direitos humanos enquanto direitos inerentes a indivíduos inseridos em uma sociedade internacional de povos.

1

SUPERIOR TRIBUNAL FEDERAL, MS 22.164/SP, Pleno. Rel. Min. Celso de Mello.DJ, 1, de 17-11-1995, p.39206.

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Enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos)- que compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais- realçam o princípio da liberdade e os direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais)que se identificam com as liberdades positivas, reais ou concretas- acentuam o princípio da igualdade, os direitos de terceira geração que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados, enquanto valores fundamentais indisponíveis, pela nota de uma essencial inexauribilidade.

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Foi estabelecida, portanto, a fase de transição do Direito Internacional Clássico para o Direito Internacional Contemporâneo. Tal transição foi caracterizada pela mudança na estrutura do Direito Internacional até então concebido, o qual não mais se restringia a regular apenas as relações entre os Estados no âmbito governamental e sim garantir obrigações internacionais, implementadas de forma coletiva entre as nações, não restritas aos interesses dos governos aderentes, mas que tivesse como escopo a proteção aos Direitos Humanos. Acrescenta José Cretella Neto (2013, p. 54-57) que tal transição pode ser justificada por vários fatores, principalmente pelos seguintes:

Há de se enaltecer a nova concepção atribuída aos indivíduos enquanto sujeitos de Direito Internacional- e não mais como objeto deste instituto - protegidos pelas convenções firmadas pela comunidade internacional, bem como a nova noção de soberania nacional construída, a qual não é mais absoluta, tendo em vista admitir a possibilidade de intervenção no plano interno com o único intuito de proteger os direitos humanos. Mister salientar a importância, nesse cenário, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a qual também contribuiu de forma plena para a internacionalização dos direitos humanos por meio da padronização internacional de condições de trabalho e bem-estar. Tais conquistas obtidas no plano internacional foram manchadas pelo fracasso da Liga nas Nações, diante da eclosão da Segunda Guerra Mundial. Vinte e um anos após o fim da primeira grande guerra, um dos momentos mais cruéis da história preenchia um sombrio capítulo no livro da vida humana, protagonizado pela ascensão do nazismo, perseguição a minorias e lançamento de bombas atômicas. Estima-se que no período de seis anos de duração do conflito (1939-1945), onze milhões de pessoas morreram, sendo seis milhões de judeus, o que compreende um grande retrocesso ao que a comunidade internacional pleiteava: a cooperação e paz mundial, representando assim inúmeras violações aos direitos humanos (MAZZUOLI, 2013, p. 859-862). Perante o espanto global com o flagelo da guerra, os legados deixados foram o da preocupação com o futuro e o desafio de reconstrução da proteção aos direitos humanos, cujos esforços das nações deveriam estar voltados para uma conjuntura normativa internacional eficaz, com o intuito de proibir severamente que atrocidades, como as duas grandes guerras ocorridas no século XX, jamais voltassem a ocorrer. Passa, então, o Direito Internacional dos Direitos Humanos a se consolidar verdadeiramente como uma tutela internacional, perpetuando-se até o presente momento através de um documento histórico o qual foi o responsável por

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A) A ocorrência de profundas alterações na estrutura e no funcionamento da sociedade internacional, com a melhora dos meios de comunicação, o incremento do comércio entre as nações e a crise econômica que se seguiu ao crash da Bolsa de Nova York, em 1929; B) A admissão, pelo Direito Internacional, da existência de novos sujeitos de direito dotados de personalidade jurídica de Direito Internacional, em decorrência da insuficiência dos Estados para lidar com a complexidade da sociedade internacional, observada desde o início do século XX.

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sua fixação na sociedade internacional: a Carta das Nações Unidas. Assinada em 26 de Junho de 1945 na cidade de São Francisco (EUA), após a realização da Conferência das Nações Unidas sobre Organização Internacional, a Carta das Nações Unidas foi o documento constitutivo da Organização das Nações Unidas. Momento revolucionário no tratamento de questões referentes aos direitos humanos, a construção da ONU representou um novo paradigma nas relações internacionais até o presente momento, sendo a entidade responsável pelas alianças entre as nações em busca de dias mais prósperos e pacíficos.

Após o acontecimento das guerras supracitadas, a ONU surge como uma esperança de resgatar a paz internacional e o desenvolvimento econômico, uma vez que durante o seu processo de criação, percebeu-se que só haveria desenvolvimento econômico diante da instauração plena da paz entre as nações, levando em consideração o contexto socioeconômico da épocaconvergindo cada vez mais para a globalização que presenciamos atualmente. Por isso, foi necessário criar novos mecanismos para regerem uma nova realidade de relações internacionais, pautadas principalmente na diplomacia como ferramenta principal para solução de possíveis litígios e capaz de assegurar a proteção internacional dos Direitos Humanos, como consta no preâmbulo da Carta das Nações Unidas2. Na referida parte do supracitado texto normativo, podemos constatar alguns elementos característicos dessa instituição, como por exemplo, proteger e preservar as futuras gerações contra os conflitos bélicos, reafirmar a dignidade da pessoa humana como elemento básico para a vida humana, estabelecer mecanismos para que os acordos firmados entre as nações no plano internacional sejam devidamente cumpridos, promover a liberdade e igualdade de direitos sem distinção de sexo ou qualquer outra diferença (tolerância). Todos esses aspectos fazem da ONU uma organização responsável por promover a justiça entre os povos, colocando em nível de igualdade todas as nações com o intuito de promover uma convivência harmônica nas relações internacionais. Para reafirmar o compromisso com a justiça dos povos e a preservação dos Direitos Humanos, as nações tiveram o cuidado de elencar na Carta artigos que garantissem a resolução pacífica de conflitos e a efetividade de seus Órgãos constitutivos como uma forma de encarar as mais variadas realidades e culturas do mundo de uma forma mais próxima e integral. Diante desta interpretação, podemos constatar que os artigos que compõem a supracitada carta representam a consolidação da internacionalização dos Direitos Humanos, fazendo com que a observância de tais direitos não fique restrita apenas aos Estados. A coexistência pacífica entre as nações, atrelada à busca por novos mecanismos de integração socioeconômica e proteção

2  Carta da Organização das Nações Unidas. Disponível em:<http://nacoesunidas.org/carta/>. Acesso em: 13/07/2015.

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4 A ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS E SUA RELAÇÃO COM O DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS

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Promover a educação e o ensino em direitos humanos, bem como assistência técnica e programas de capacitação; servir como um fórum de diálogo sobre temas de direitos humanos; submeter recomendações à Assembleia Geral para o desenvolvimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos; [...] contribuir, por meio do diálogo e da cooperação, para a prevenção de violações a direitos humanos e responder rapidamente a situações de emergência; [...] trabalhar em estreita cooperação no

3  Organismos das Nações Unidas. Disponível em: <http://nacoesunidas.org/organismos/>. Acesso em: 15/07/2015.

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universal dos Direitos Humanos, representam a nova configuração da agenda da comunidade internacional (PIOVESAN, 2013, p. 203-204). Na sua data de criação, a ONU contava com 51 membros, número esse que cresceu bastante e hoje chega a marca de 193 países-membros das Nações Unidas, os quais aceitaram as condições de serem Estados amantes da paz, obedecerem as regras estipuladas pela carta e estarem aptos a cumpri-la. Associado a isso, a Carta das Nações Unidas possui um status de superioridade na hierarquia das normas do Direito Internacional Público, sendo suprema em relação a qualquer acordo internacional (MAZZUOLI, 2013, p. 653-654); porém, há de salientar que de acordo com o artigo 2º,§7, da referida carta, que diz: Art. 2, §7: “Nenhum dispositivo da presente carta autorizará as Nações Unidas a intervirem em assuntos que dependam essencialmente da jurisdição de qualquer Estado ou obrigará os Membros a submeterem tais assuntos a uma solução, nos termos da presente Carta [...].”,a ONU não interfere em assuntos relacionados à jurisdição interna de qualquer Estado, respeitando assim o principio da soberania das nações e autodeterminação dos povos. Mister acrescentar que a ONU é composta por seis órgãos principais, como consta em sua carta constitutiva: Conselho de Segurança, Assembléia Geral, Secretariado, Corte Internacional de Justiça, Conselho Econômico e Social e Conselho de Tutela(QUEIROZ, 2013, p. 163-178). Além dos seis principais órgãos supracitados, a ONU é composta por Agências especializadas, Fundos, Programas, Comissões, Departamentos e Escritórios3, os quais além de possuírem seus próprios orçamentos e regras, apresentam uma área específica de atuação e prestam assistência técnica e humanitária também em outras áreas. Em destaque, temos a OIT (Organização Internacional do Trabalho), UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) e a UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância). Todavia, a criação do Conselho de Direitos Humanos da ONU foi um grande marco no que se refere à efetivação de mecanismos protetores de tais direitos, representando assim, a tríade de atuação da ONU em busca da justiça e harmonia nas relações internacionais: Conselho de Segurança (paz), Conselho Econômico e Social (cooperação econômica) e Conselho de Direitos Humanos (proteção aos Direitos Humanos). De acordo com Flávia Piovesan (2013, p. 207-208), é da competência do Conselho de Direitos Humanos da ONU:

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campo dos direitos humanos com Estados, organizações regionais, instituições nacionais de direitos humanos e sociedade civil.

Diante de todo o amadurecimento das Nações Unidas e de suas ferramentas para promoção do Direito Internacional dos Direitos Humanos, havia alguns pontos inócuos referentes ao sentido de Direitos Humanos e Direitos Fundamentais contidos nos documentos da instituição. Surge, portanto, a necessidade de se definir o que seriam esses direitos e as expressões a eles vinculadas. Coube, então, as Nações Unidas reconhecerem essa fragilidade e trabalhar em conjunto com a comunidade internacional para suprir essa lacuna: inicia-se o processo de elaboração da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Proclamada em 1948 pela Assembleia Geral da ONU, três anos após a elaboração da Carta das Nações Unidas, a Declaração Universal dos Direitos do Homem veio fixar o sentido de Direitos Humanos e Direitos Fundamentais contido na Carta das Nações Unidas- se constata esse aspecto no final de seu preâmbulo. A Declaração Universal dos Direitos Humanos também foi responsável por estabelecer duas categorias de Direitos: os direitos civis e políticos e os direitos econômicos, sociais e culturais, convergindo assim o discurso social da cidadania com a filosofia liberal. Vale salientar também que a Declaração introduz alguns elementos inéditos ao Direito Internacional dos Direitos Humanos, como por exemplo, tratar tais direitos como indivisíveis e interdependentes; contudo, ela não apresenta força de lei, nem muito menos é um tratado. Foi adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas como uma resolução capaz de promover o reconhecimento universal dos Direitos Humanos e Direitos Fundamentais contidos na Carta da ONU, sendo vinculante aos Estados-membros das Nações Unidas por se tratar de um documento da instituição e por prever a obrigação de respeitar e promover os direitos elencados na Declaração (PIOVESAN, 2013, p. 209-218).

Diante da análise, já contida no presente texto, da teoria de John Rawls referente à justiça nas instituições e da abordagem do Direito Internacional dos Direitos Humanos inserido no contexto histórico de criação da Organização das Nações Unidas, podem-se estabelecer convergências e divergências elementares no tocante a relação da forma como a justiça é analisada pelo autor supracitado e como ela é administrada, na teoria e na prática, por esta instituição. Como ponto de partida para esta reflexão, Rawls (2011, p.13) afirma que: O foco inicial de uma concepção política de justiça é a estrutura de instituições básicas e os princípios, padrões e preceitos que a ela se aplicam, bem como a forma como essas normas devem se expressar no caráter e nas atitudes dos membros da sociedade que realizam os ideais dessa concepção.

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5 ELEMENTOS DE CONVERGÊNCIA E DIVERGÊNCIA ENTRE A TEORIA DE JUSTIÇA DE JOHN RAWLS E A JUSTIÇA INSTITUCIONAL DAS NAÇÕES UNIDAS

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1. Seu cumprimento é condição necessária da decência das instituições políticas de uma sociedade e da sua ordem jurídica. 2. Seu cumprimento é suficiente para excluir a intervenção justificada e coercitiva de

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Levando em consideração o entendimento de Rawls referente à construção de uma sociedade justa, se tem que a liberdade como valor supremo da vida humana e a igualdade como valor fundamental na convivência política são ferramentas essenciais para o desenvolvimento de uma conjuntura social baseada no respeito às livres escolhas dos indivíduos, sendo peças fundamentais para o amadurecimento da tolerância no convívio das relações sociais. Além disso, é inerente a preocupação do autor em preservar este imaginário para as futuras gerações, uma vez que de nada adianta a garantia dos elementos citados sem que eles sejam efetivados no futuro, contribuindo assim para a manutenção de uma sociedade justa. Neste aspecto, pode-se constatar tal raciocínio em um dos objetivos das Nações Unidas presente no preâmbulo de sua Carta constitutiva (promover o progresso social e melhores condições de vida dentro de uma liberdade ampla), a citada preocupação com as futuras gerações também no preâmbulo da Carta levando em consideração que o desrespeito entre culturas pode gerar conflitos (a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra) e em seu artigo 1º, §3: “conseguir uma cooperação internacional para resolver os problemas internacionais de caráter econômico, social, cultural ou humanitário, e para promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião.”: eis a primeira convergência identificada. Vale salientar que o respeito às diversidades e o ato de proporcionar condições iguais oportunidades, além de representar a superação do consenso posto pelo consenso sobreposto, representa a equidade como base para a justiça das instituições e a configuração da razão pública como elemento racional de convívio mutuo diante das diferenças sociais, culturais e políticas. Para tanto, Rawls (2008, p. 280-285) cita dois princípios norteadores da justiça nas instituições, as quais devem respeitar as diversidades adotando a pluralidade de pessoas e a publicidade de princípios: principio da igualdade e da diferença. Para o primeiro, as instituições devem garantir as liberdades básicas dos indivíduos (como por exemplo, liberdade de expressão, política, de consciência e de não ser preso de forma arbitrária); o segundo princípio, por sua vez, evidencia o papel das instituições sociais em exaurir as desigualdades e promover a igualdade social. Inserida nesta mesma linha de raciocínio, a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi criada para preencher a lacuna das expressões “Direitos Humanos e Direitos Fundamentais” deixada pela Carta da ONU, fixando assim direitos inerentes a todos os seres humanos e que devem ser protegidos pelas Nações Unidas, além de combinar o discurso liberal com o discurso social de cidadania ao juntar o valor da liberdade com o valor da igualdade (PIOVESAN, 2013, p. 210-211). Os artigos 2º, §1, 3º, 7º e 9º da Declaração Universal Dos Direitos Humanos estão em perfeita sintonia com os princípios de justiça supracitados propostos por John Rawls. Rawls (2001, p. 105-110) acredita ainda que a base do direito internacional são os Direitos Humanos, os quais exercem três funções de acordo com sua interpretação:

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outros povos, por exemplo, por meio de sanções diplomáticas e econômicas ou, em casos graves, da força militar. 3. Eles estabelecem um limite para o pluralismo entre os povos.

Esta análise está em perfeita conexão com que dispõe o artigo 33,§1 da Carta das Nações Unidas, referentes à mínima intervenção coercitiva por parte da instituição na proteção e cumprimento dos Direitos Humanos e valorização da solução pacífica para controvérsias. Michel Walzer (2003, p. 18) reafirma tais convergências na abordagem da justiça por Rawls e presente nos documentos das Nações Unidas ao perceber que é necessário o envolvimento dos Direitos Humanos na política internacional, havendo, portanto, a harmonia entre os povos por meio da proteção a tais direitos diante da nova configuração do conceito de soberania: Alguns anos atrás, quando escrevi sobre a teoria de justiça nas relações internacionais, fundamentei-me bastante na ideia dos direitos humanos, pois a teoria da justiça pode, na verdade, basear-se nos dois mais importantes e largamente reconhecidos dos seres humanos na sua forma mais simples (negativa): não ser privado da vida nem da liberdade.

Ainda sob a ótica das relações internacionais, Rawls (2001, p. 56-60) exalta a importância de se ter uma confiança mutua dentre os povos por meio de seus acordos firmados, objetivando a proteção aos Direitos Humanos e a rigidez das organizações internacionais, combatendo, assim, qualquer tipo de dependência política entre Estados- as Nações Unidas reafirmam tal tese no artigo 2º, §4 de sua Carta, no qual se diz:

Todavia, o que se nota na realidade é que os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança na ONU (Estados Unidos, República Popular da China, Rússia, Reino Unido e França) raramente concordam com as operações de intervenção realizadas em terrenos de países pertencentes as suas esferas de influência política- interesse estratégico (CRETELLA NETO, 2013, p. 480-485). Um exemplo disso foi a invasão ao Iraque por forças lideradas pelos Estados Unidos em 2003, a qual ocorreu sem autorização da Organização das Nações Unidas, demonstrando que não há aceitação plena aos princípios desta instituição (CRETELLA NETO, 2013, p. 849-851). Outra situação de desconfiança é vivenciada na costa da Somália4, país vítima de sucessivas guerras civis e politicamente instável. Lá, os piratas somalis continuam a atuar nos navios pesqueiros de outras grandes potencias econômicas membros da ONU, as quais continuam a poluir a costa da Somália com seus grandes navios de carga pesada, sendo mister

4  O ataque dos piratas na costa da Somália. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=6248>. Acesso em: 19/07/2015.

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Todos os membros deverão evitar em suas relações internacionais a ameaça ou o uso da força contra a integridade territorial ou a dependência política de qualquer Estado, ou qualquer outra ação incompatível com os Propósitos das Nações Unidas.

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salientar que é da pesca que vem o grande sustento de boa parte da população deste país. Tais situações contribuem para a quebra da confiança mutua proposta por Rawls, o que faz com que a comunidade internacional passe a ser indagada quanto sua capacidade de efetivação plena de mecanismos de proteção aos Direitos Humanos, contribuindo para que os indivíduos passem a cobrar a mudança desse quadro. De acordo com Eduardo Ribeiro Moreira (2010, p. 102-105), o ato de guerra contra o Iraque reconfigurou a ONU como mero órgão de ajuda humanitária. Ele ainda acrescenta: Os titulares dos direitos fundamentais têm alcance muito maior que os contratantes. A maioria não pode mudar estas cláusulas que são universais e encontradas de forma plural nas Constituições e Tratados mundiais. A base normativa é o art. 28 da Declaração Universal dos Direitos da ONU, que especifica todos os humanos, como sujeitos de direito internacional. Os defensores do cosmopolitismo- direito dos povos- apontam vantagens quanto ao direito internacional. Para eles, até hoje não existem princípios fundamentais em todo o mundo pelo direito internacional com desejada efetividade. Isto equivaleria dizer que se há um conjunto comum de direitos ele é negado na prática (por exemplo: guerras sem autorização da ONU).

Diante das análises supracitadas, pode-se concluir que o Direito Internacional dos Direitos Humanos passou por uma série de evoluções que contribuíram para sua fixação no cenário da comunidade internacional; todavia, nas decisões institucionais, como as da ONU, ainda há o predomínio da influência política dos países mais fortes economicamente. Foi de extrema importância a transição do Direito Internacional Público Clássico para o Direito Internacional Público Contemporâneo. A Liga das Nações, a Carta da ONU e a Declaração Universal dos Direitos Humanos foram expoentes dessa fase de extrema importância na história da humanidade. Os seres humanos puderam vivenciar, pela primeira vez, mecanismos que realmente protegiam seus interesses em detrimento da atuação estatal. O Estado, por sua vez, passou a não ser capaz de administrar sozinho essa questão, dividindo com as organizações internacionais a responsabilidade de efetivar e proteger os Direitos Humanos, inclusive com o intuito de promover a cooperação econômica entre as nações- conclusão da própria ONU no trâmite de elaboração de sua carta constitutiva. Contudo, nos últimos anos a Organização das Nações Unidas- órgão máximo da comunidade internacional- tem mostrado que seus documentos e tratados possuem fraca força vinculante nas relações internacionais, representando um cenário preocupante referente à proteção aos Direitos Humanos. O melhor caminho a se seguir, talvez, seja o sugerido por John Rawls. Fortalecer as relações na ONU por meio de um pacto mutuo de confiança, não admitindo em qualquer hipótese a quebra desse pacto por influencia política ou econômica, haja vista os elementos de

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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

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divergência prática encontrados na obra do autor no comparativo com as recentes atuações da instituição na proteção aos Direitos Humanos. Os países precisam estar em pé de igualdade em todas as decisões da entidade. Reformar a estrutura do Conselho de Segurança- a qual ainda é configurada pelos países vencedores da segunda guerra mundial- e dos organismos especializados, bem como rever a questão da contribuição financeira para a instituição realizada por cada país, são ferramentas interessantes para que esse quadro de influencia política, de acordo com o poder econômico interno, não afete os mecanismos de proteção aos Direitos Humanos.

REFERÊNCIAS BITTAR, Eduardo C.B.; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de Filosofia do Direito. 11. ed. São Paulo: Atlas S.A, 2015. BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. CRETELLA NETO, José. Teoria Geral das Organizações Internacionais. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. QUEIROZ, Cristina. Direito Internacional e Relações Internacionais. 1. ed. Lisboa: Editora Coimbra, 2013. MARMELSTEIN, George. Curso de Direitos Fundamentais. 5. ed. São Paulo: Atlas S.A, 2014. MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. RAWLS, John. O Liberalismo Político. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. RAWLS, John. O Direito dos Povos.São Paulo: Martins Fontes, 2001. RAWLS, John. Uma teoria da Justiça. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008. WALZER, Michel. Esferas da Justiça. Uma defesa do pluralismo e da igualdade. Trad. de Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

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MOREIRA, Eduardo Ribeiro. Por um constitucionalismo global.InRevista de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo, v.18, n. 73, p 102-116, out./set, 2010.

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THUMAN RIGHTS AS A RIGHT GUIDING THE CONTEXT OF INTERNATIONAL RELATIONS: THE APPLICABILITY OF THE THEORY OF JOHN RAWLS JUSTICE IN THE UNITED NATIONS

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ABSTRACT: This research paper aims to describe the historical process of development of international human rights law, from the perspective of Westphalia treaties, the League of Nations, the UN Charter and Universal Declaration of Human Rights. Allied to this, there is analysis of John Rawls related to justice elements present in the institutions and in international relations, as a benchmark for effective protection mechanisms for human rights and seeks convergence of elements or divergence between theory and practice. Key-words:Public International Law. Human Rights. United Nations Organization.

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Recebido em 13 ago. 2015. Aceito em 01 out. 2015.

O PROCEDIMENTO DE ARRECADAÇÃO DO ICMS: O CONFAZ E A REGULAÇÃO DO SERVIÇO DE TV POR ASSINATURA Matheus Luiz Maciel Holanda*

RESUMO: O ICMS, imposto cujo procedimento arrecadação será abordado no presente artigo, é a principal fonte de receita dos Estados e do Distrito Federal, e, devido à importância dele para suas finanças, é pretexto de disputa pela competência para seu recolhimento. Como forma de regular essa situação, foi criado o Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ), órgão formado por prepostos dos entes, e que faz suas deliberações por meio de convênios firmados por seus participantes. Por derradeiro, analisar-se-á como é feita a arrecadação do ICMS relativo ao serviço de TV por assinatura e como os interesses dos Estados interferem nela. Palavras-chave: ICMS. Lei Complementar 87/96. Confaz. Convênio. TV por assinatura.

Imposto sobre as operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação (ICMS) é, sem dúvidas, o imposto estadual de maior importância previsto pelo ordenamento jurídico brasileiro, sendo responsável pelo recolhimento de cifras bilionárias por parte dos Estados e do Distrito Federal, representando uma fatia significativa do total de suas arrecadações. O montante que este tributo sozinho consegue render para os entes federados acaba por criar entre eles uma grande disputa para que haja a definição dos competentes para recolhê-lo. Diante disso, como forma de conter a guerra fiscal, de definir de forma específica a

* Graduando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, cursando o 8º período.

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1 INTRODUÇÃO

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maneira com que se realizará a divisão das receitas tributárias oriundas do ICMS e a concessão de benefícios fiscais, a Lei Complementar 24 de 1975 promoveu a criação de um órgão que viesse a fazer essa regulação: o CONFAZ. Ele seria formado por representantes do Poder Executivo dos Estados e do Distrito Federal, e presidido por um do Governo Federal, fazendo suas deliberações através de convênios1, de acordo com a mesma Lei. Por meio destes, os Entes da Federação negociam a concessão de benefícios e procuram fazer valer suas vontades como forma de aumentar o seu poder de recolhimento. Isso se evidenciou na celebração do Convênio 176/20132, que retirou alguns Estados hipossuficientes da vigência do Convênio 52/20053 e os fez voltar para os termos do Convênio 10/19984, para regular, especificamente, a arrecadação do ICMS alusivo ao serviço de comunicação, referente à recepção de som e imagem por meio de satélite. No presente trabalho, abordar-se-á, primeiramente, as bases legais do ICMS, e a sua representatividade para os Estados e para o Distrito Federal. Ainda dentro dessa temática, será tratado sobre o papel desempenhado pelo CONFAZ, a natureza de seus convênios, e o mecanismo de homologação, feito por seus aderentes, para que se possa aplicar o que foi nele disposto. Por fim, será analisada a problemática envolvendo o serviço de TV por assinatura, tratando da discussão existente sobre a sua natureza, os convênios que sobre ele dispõe, e como eles interferem na arrecadação dos entes conveniados.

2 O ICMS, SUAS BASES LEGAIS E IMPORTÂNCIA PARA A ARRECADAÇÃO DOS ESTADOS

1  Art. 1º - As isenções do imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias serão concedidas ou revogadas nos termos de convênios celebrados e ratificados pelos Estados e pelo Distrito Federal, segundo esta Lei. 2  BRASÍLIA. Confaz. Ministério da Fazenda. Convênio ICMS Nº 176 de 06/12/2013. 2013. Disponível em: <http://www.legisweb.com. br/legislacao/?id=262806>. Acesso em: 22 out. 2014. 3  BRASÍLIA. Confaz. Ministério da Fazenda. Convênio ICMS Nº 52 de 01/07/2005. 2005. Disponível em: <http://www.legisweb.com.br/ legislacao/?id=15900>. Acesso em: 22 out. 2014. 4  BRASÍLIA. Confaz. Ministério da Fazenda. Convênio ICMS nº 10 de 20/03/1998. 1998. Disponível em: <http://www.legisweb.com.br/ legislacao/?id=14934>. Acesso em: 22 out. 2014. 5  Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: II - operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior;

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A Constituição Federal, em seu art. 155, II, com redação dada pela Emenda Constitucional nº 3, de 19935, define como competência dos Estados e Distrito Federal a instituição e o recolhimento do Imposto sobre as operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação (ICMS). O referido tributo surgiu, primeiramente, através da Emenda Constitucional 18/65, quando ainda vigia a Constituição de 1946, no intuito de substituir o antigo Imposto de Vendas e Consignações (IVC), e continuou a ser albergado no ordenamento jurídico brasileiro a partir de então.

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6  Art. 4º Contribuinte é qualquer pessoa, física ou jurídica, que realize, com habitualidade ou em volume que caracterize intuito comercial, operações de circulação de mercadoria ou prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior. 7  Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 3, de 1993) § 2.º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 3, de 1993) I - será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal; 8  SÃO PAULO. Sefaz. Secretaria da Fazenda. ICMS. Disponível em: <http://www.fazenda.sp.gov.br/oquee/oq_icms.shtm>. Acesso em: 8 out. 2014.

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Entende-se, de acordo com o art. 4º da Lei Complementar 87/966, que regulamenta o ICMS, que se consuma o fato gerador desse tributo no momento em que qualquer pessoa, física ou jurídica, pratique, como se evidencia em sua denominação legal, alguma operação relativa à circulação de mercadorias, importação de bens de qualquer natureza, além da prestação dos serviços de comunicação e de transporte interestadual e intermunicipal, mesmo que as operações e as prestações tenham início no exterior. O ICMS é o imposto que gera a maior arrecadação no Brasil, correspondendo a cerca de 80% do recolhimento dos estados entes da federação. Além disso, também tem por característica o respeito ao princípio constitucional da não cumulatividade7, incidindo de maneira única apenas sobre o valor agregado do objeto de cobrança, e a não consideração da condição financeira de seu contribuinte no seu recolhimento (SABBAG, 2012, p. 1059). Devido a sua grande importância para os cofres dos Estados, sua regulamentação é bastante complexa e extensa. Possui, somente na Constituição Federal, nada menos que cinquenta e cinco dispositivos legais que tratam de sua aplicação, ao passo que o Imposto de Renda de Pessoa Física (IRPF), outro tributo que possui arrecadação bastante significativa, teve destinado para si apenas três dispositivos (MATTOS, 2006, p. 13). Além do que é trazido pelo texto constitucional, a regulamentação do ICMS também é feita através de resoluções do Senado, as quais são competentes para discutir as alíquotas que irão incidir em determinadas situações; a Lei Complementar 87/96, a chamada Lei Kandir, que dispõe exclusivamente sobre sua aplicação; convênios realizados pelas Secretarias da Fazenda de cada estado, chamados de convênios CONFAZ, âmbito em que se pode tratar da concessão de isenções, incentivos ou benefícios fiscais; além de leis ou outros atos normativos estaduais que venham a tratar da matéria (PAULSEN, 2012, p. 181). Possui caráter eminentemente fiscal, ou seja, o de angariar fundos para o Estado para que ele possa vir a empreender e suprir as necessidades da população. Todavia, é facultado ao ente arrecadador que se lance mão da seletividade, no intuito de desonerar mercadorias ou serviços que sejam considerados essenciais. Dessa forma, a Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo, que, via de regra aplica a alíquota de 18%, a reduz para 7% quando se trata de alimentos básicos, como o arroz, feijão e outros pertencentes à cesta básica. Entretanto, no caso de mercadorias de natureza considerada supérflua, como cigarro, cosméticos e perfumes, o percentual cobrado de ICMS sobe para 25%8. Para se ter noção do quão significativo é o ICMS para o orçamento dos estados da

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federação, é importante a comparação das cifras arrecadadas em relação ao Produto Interno Bruto. Segundo dados divulgados pelo Ministério da Fazenda9, o Estado do Rio Grande do Norte arrecadou, no exercício de 2013, em valores correntes relativos ao ICMS, cerca de R$ 4.033.478.000,00 (quatro bilhões trinta e três milhões quatrocentos e setenta e oito mil reais). Este valor, relativo a apenas um tributo, representa mais de 10% do PIB do estado, que segundo dados divulgados pelo IBGE10 é de cerca de R$ 36.100.000.000,00 (trinta e seis bilhões e cem milhões de reais). Tais quantias, referentes à arrecadação do ICMS, podem mostrar-se ainda mais expressivas quando se observa os números do Estado de São Paulo, o maior arrecadador do país. Na mesma supracitada divulgação do Ministério da Fazenda, apesar de não constar o montante coletado referente ao mês de dezembro de 2013, os paulistas arrecadaram entre janeiro e novembro cerca de R$ 111.000.000.000,00 (cento e onze bilhões de reais), quantia que, quando somada com os valores alusivos ao mês de dezembro, representa também cerca de 10% do PIB de um estado que, sozinho, possuiu uma participação de 32,6% no Produto Interno Bruto do país, em 201111.

Dado o grande montante de receita e a complexidade que envolve a arrecadação do ICMS, fez-se necessária a criação de um órgão que viesse, junto ao Poder Executivo de cada Estado e do Distrito Federal, dispor sobre a forma como se daria a divisão e a concessão de isenções. Tal medida foi pertinente no sentido de tentar conter a chamada Guerra Fiscal, que seria competição exacerbada entre os entes federados que visam obter vantagem na arrecadação perante os demais. Nesse desiderato, foi promulgada em 1975 a Lei Complementar nº 24, que veio para modular as relações entre os estados e o Distrito Federal, através da criação do Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ). O referido órgão, com sede em Brasília, tem a missão de estabelecer regras e promover convênios que tratam das isenções e da divisão do tributo. E, apesar de se tratar de uma lei instituída em um período anterior à nova realidade jurídica, após a Constituição de 1988, ela foi integralmente recepcionada pelo novo ordenamento, conforme previu o art. 34º, § 8º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que dita conforme se observa a seguir:

9  DISTRITO FEDERAL. Ministério da Fazenda. Comissão Técnica Permanente do Icms - Cotepe. QUADRO I - ARRECADAÇÃO DO ICMS - VALORES CORRENTES - 2013.2014. Disponível em: <http://www1.fazenda.gov.br/confaz/boletim/Valores.asp>. Acesso em: 8 out. 2014. 10  RIO DE JANEIRO. IBGE. Produto Interno Bruto, população residente e produto interno bruto per capta, segundo as Grandes Regiões e Unidades da Federação. 2011. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/images/2522_3643_173712_106392. gif>. Acesso em: 8 out. 2014. 11  RIO DE JANEIRO. Ibge. Governo Federal. Contas Regionais do Brasil – 2011. 2013. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/ presidencia/noticias/imprensa/ppts/00000015422711192013272921125925.pdf>. Acesso em: 8 out. 2014.

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3 O PAPEL DO CONFAZ E DE SEUS CONVÊNIOS NA DISTRIBUIÇÃO DO ICMS

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Se, no prazo de sessenta dias contados da promulgação da Constituição, não for editada a lei complementar necessária à instituição do imposto de que trata o Art. 155, I, b, os Estados e o Distrito Federal, mediante convênio celebrado nos termos da Lei Complementar nº 24, de 7 de janeiro de 1975, fixarão normas para regular provisoriamente a matéria.

Tais convênios, previstos também pelo art. 100, IV, do Código Tributário Nacional12, formulam disposições complementares à legislação já existente, e de acordo com o art. 2º da referida lei complementar, são frutos de reuniões, presididas por um representante do Governo Federal, junto a outros emissários de todos os Estados e do Distrito Federal13. Neles, os participantes debateriam sobre as competências e percentuais de arrecadação referentes ao ICMS, além de firmarem concessões de benefícios14, que só poderão vir a ser homologados mediante decisão unânime de todos os representantes, ainda que suas cláusulas sejam limitadas a um número restrito ou único de Unidades da Federação15. Uma eventual concessão de benefício fiscal, acordado entre dois ou mais Estados, regulado por meio de um convênio, para ser aprovado, está, de acordo com o que dispõe o §2º, art. 2, da Lei 24/75, condicionado a uma decisão unânime dos Estados que se fazem representados no convênio. A necessidade de uma decisão unânime é bastante discutida dentro da doutrina, ao ponto de renomados tributaristas, como Fernando Facury Scaff (2014)16, defenderem a inconstitucionalidade dessa necessidade, pelo fato de não ser exigida unanimidade em nenhum outro procedimento de concepção legislativa, nem mesmo para a aprovação de uma Emenda Constitucional, que requer a anuência de três quintos dos votos dos membros do Congresso Nacional. Por outro lado, há quem, como Valério Pimenta de Morais (2014)17, veja a necessidade da unanimidade como uma demonstração de igualdade e de autonomia dos entes federados. E tal igualdade não seria meramente formal, a qual pressupõe o direito a voto de todos os Estados, mas abrangeria também uma igualdade material entre os entes, no sentido de conferir-lhes

12  Art. 100. São normas complementares das leis, dos tratados e das convenções internacionais e dos decretos: IV - os convênios que entre si celebrem a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios.

14  Art. 1º - As isenções do imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias serão concedidas ou revogadas nos termos de convênios celebrados e ratificados pelos Estados e pelo Distrito Federal, segundo esta Lei. Parágrafo único - O disposto neste artigo também se aplica: I - à redução da base de cálculo; II - à devolução total ou parcial, direta ou indireta, condicionada ou não, do tributo, ao contribuinte, a responsável ou a terceiros; III - à concessão de créditos presumidos; IV - à quaisquer outros incentivos ou favores fiscais ou financeiro-fiscais, concedidos com base no Imposto de Circulação de Mercadorias, dos quais resulte redução ou eliminação, direta ou indireta, do respectivo ônus; V - às prorrogações e às extensões das isenções vigentes nesta data. 15  Art. 2º - (...) § 2º - A concessão de benefícios dependerá sempre de decisão unânime dos Estados representados; a sua revogação total ou parcial dependerá de aprovação de quatro quintos, pelo menos, dos representantes presentes. 16  SCAFF, Fernando Facury. A inconstitucional unanimidade do Confaz e o surpreendente Convênio 70. 2014. Disponível em: <http:// www.conjur.com.br/2014-ago-12/contas-vista-inconstitucional-unanimidade-confaz-convenio-70>. Acesso em: 9 out. 2014. 17  MORAIS, Valério Pimenta de. Unanimidade no Confaz é manifestação da igualdade e da autonomia. 2014. Disponível em: <http:// www.conjur.com.br/2014-set-23/valerio-pimenta-unanimidade-confaz-manifestacao-igualdade>. Acesso em: 9 out. 2014..

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13  Art. 2º - Os convênios a que alude o art. 1º, serão celebrados em reuniões para as quais tenham sido convocados representantes de todos os Estados e do Distrito Federal, sob a presidência de representantes do Governo federal.

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proteção maior a suas receitas tributárias, que poderiam ser afetadas em caso de uma votação desfavorável. Uma perda de receita poderia ser extremamente comprometedora para a saúde financeira de um Estado, tendo em vista a já referida importância do ICMS para a arrecadação estatal. Pimenta de Morais (2014)18 entende também que, as decisões tomadas no âmbito do CONFAZ não o fazem possuidor de quaisquer poderes legislativos. Seus membros nada mais são que representantes designados pelo Poder Executivo de cada Estado, os quais não foram submetidos ao crivo da população por meio de processo eleitoral. São indicados para deliberar sobre a maneira como deverá ser feita a distribuição do ICMS ou a concessão de benefícios fiscais, gerando algo próximo a “autorizações” e não normas jurídicas propriamente ditas. Entretanto, quando a pauta do convênio tratar de uma revogação total ou parcial de um benefício concedido anteriormente, a Lei Complementar 24/75, no mesmo dispositivo em que prevê a necessidade de unanimidade para que se faça a concessão, determina que seja suficiente a aprovação de no mínimo quatro quintos dos representantes presentes19. Ainda de acordo com a aludida lei, terminado o convênio, as resoluções que foram nele acordadas deverão ser publicadas, dentro de um prazo de dez dias, no Diário Oficial da União (DOU). Após a publicação no DOU, abre-se um prazo de quinze dias para que os representantes do Executivo de cada Unidade da Federação publiquem, na forma de decreto, a ratificação do que ficou acordado. Na falta de tal manifestação, dispõe a lei que haverá uma ratificação tácita dos convênios. Feita ou não a ratificação, abrir-se-á novamente o prazo de dez dias para que haja publicação no Diário Oficial da União da posição tomada pelo Poder Executivo dos Estados. Trinta dias após esta última publicação no DOU, as deliberações do convênio passarão, finalmente, a ter validade20.

Entendida a sistemática que envolve os convênios da CONFAZ, que, como foi dito, possuem competência para dispor de maneira complementar às leis e demais normas jurídicas que tratem da distribuição do ICMS no território brasileiro, passar-se-á a analisar, de maneira específica, como se dá a atuação dos Estados e do Distrito Federal no propósito de aumentar suas arrecadações e proteger suas receitas tributárias perante outros. Para tanto, utilizar-se-á, como pano de fundo, o conflito de interesses que se eviden-

18  MORAIS, Valério Pimenta de. Unanimidade no Confaz é manifestação da igualdade e da autonomia. 2014. Disponível em: <http:// www.conjur.com.br/2014-set-23/valerio-pimenta-unanimidade-confaz-manifestacao-igualdade>. Acesso em: 9 out. 2014 19

Nos termos do já referido art. 2º, § 2º, LC 24/75.

20  Art. 5º - Até 10 (dez) dias depois de findo o prazo de ratificação dos convênios, promover-se-á, segundo o disposto em Regimento, a publicação relativa à ratificação ou à rejeição no Diário Oficial da União. Art. 6º - Os convênios entrarão em vigor no trigésimo dia após a publicação a que se refere o art. 5º, salvo disposição em contrário. Art. 7º - Os convênios ratificados obrigam todas as Unidades da Federação inclusive as que, regularmente convocadas, não se tenham feito representar na reunião.

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4 O RECOLHIMENTO DO ICMS SOBRE O SERVIÇO DE TV POR ASSINATURA: ANÁLISE DOS CONVÊNIOS 10/1998, 52/2005 E 176/2013

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ciou através do Convênio ICMS 176/13. Nele, deliberou-se, em sua cláusula primeira21, que a redação da cláusula décima do Convênio 52/05 deveria ser alterada, retirando alguns Estados do rol de conveniados a ele. Dessa forma, os Estados que passaram a não mais adotar o Convênio 52/05, voltaram a seguir o Convênio 10/9822, que regulava o recolhimento do ICMS relativo às prestações de serviço de comunicação por meio de satélite em momento anterior à edição do novo convênio, tendo sido adotado, no momento de sua criação, por todos os entes da Federação, exceto Rio de Janeiro e São Paulo. O retorno dos efeitos do antigo convênio voltou a permitir que os Estados a ele conveniados, dentre eles o Rio Grande do Norte, voltassem a arrecadar integralmente os valores relativos ao ICMS cobrado pelo serviço de TV por assinatura. Em consequência dessa alteração, houve prejuízo para outros Estados que se beneficiavam da antiga deliberação, notadamente São Paulo, aonde a maior parte das empresas prestadoras do referido serviço concentram-se, e que, nos termos do Convênio 52/2005, seriam competentes para recolher metade do ICMS relativo à prestação do serviço em outras localidades23. 4.1 Convênio ICMS nº 52 de 01/07/2005 e a aplicação do art. 11, § 6º da Lei 87/96

21  Cláusula primeira . A cláusula décima do Convênio ICMS 52/2005, de 1º de julho de 2005, passa a vigorar com a seguinte redação: “Cláusula décima O disposto neste convênio não se aplica aos Estados do Acre, Alagoas, Amapá, Amazonas, Ceará, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte, Rondônia, Roraima, Santa Catarina, Sergipe, Tocantins e ao Distrito Federal, permanecendo aplicáveis a essas unidades federadas o Convênio ICMS 10/1998, de 26 de março de 1998.”. 22  1 - Cláusula primeira. Nas prestações de serviço de comunicação, referente a recepção de som e imagem por meio de satélite, quando o tomador do serviço estiver localizado em unidade federada diferente da unidade de localização da empresa prestadora do serviço, o recolhimento do ICMS deverá ser efetuado até o 10º dia do mês subsequente ao da prestação, através de Guia Nacional de Recolhimento de Tributos Estaduais - GNR, em favor da unidade federada onde ocorrer a recepção da respectiva comunicação. 23  1 - Cláusula primeira. Na prestação de serviços não medidos de televisão por assinatura, via satélite, cujo preço do serviço seja cobrado por períodos definidos, efetuada a tomador localizado em unidade federada distinta daquela em que estiver localizado o prestador, a base de cálculo do ICMS devido a cada unidade federada corresponde a 50% (cinqüenta por cento) do preço cobrado do assinante. 24  Art. 11. O local da operação ou da prestação, para os efeitos da cobrança do imposto e definição do estabelecimento responsável, é: § 6º Na hipótese do inciso III do caput deste artigo, tratando-se de serviços não medidos, que envolvam localidades situadas em diferentes unidades da Federação e cujo preço seja cobrado por períodos definidos, o imposto devido será recolhido em partes iguais para as unidades da Federação onde estiverem localizados o prestador e o tomador.

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No dia 1 de julho de 2005, foi celebrado no CONFAZ o Convênio ICMS nº 52, que veio dispor sobre os procedimentos de operacionalização do controverso § 6º do art. 11 da Lei Complementar 87/9624, que a partir de então passaria a regular os serviços não medidos de televisão por assinatura, com transmissão via satélite, que anteriormente era regulado pelo Convênio 10/98. O referido §6º do dispositivo determina que, caso se trate de prestação onerosa de serviço de comunicação, e ele se caracterize por ser um serviço não medido, que possua valor prefixado e cobrado em intervalo definido, além de possuir prestador e tomador localizados em diferentes unidades da Federação, o ICMS referente a tal transação deve ser repartido entre os entes da Federação em que se localizam o tomador e o prestador do serviço. Por serviço não medido entende-se uma modalidade de prestação que não pode vir a ser quantificada, não sendo possível, portanto, que se faça uma mensuração exata do quanto que veio a ser prestado ou consumido pela pessoa a quem foi destinado. É nesta caracterização

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que os representantes dos entes conveniados25 entenderam que se inseria o serviço de TV por assinatura, que além de não medido, estaria à disposição para consumo mensal e irrestrito de seus usuários mediante pagamento de taxa prefixada. Todavia, o referido parágrafo, que foi introduzido à Lei Complementar 87/96 por meio da Lei Complementar 102/00, evidenciou-se como um artifício jurídico concebido para favorecer, ainda mais, estados economicamente mais fortes, dentre os quais se destaca São Paulo, aonde se concentram as sedes das grandes empresas prestadoras do serviço de TV por assinatura. Tal Convênio conferiu a eles meios para acrescer ainda mais suas receitas tributárias, em detrimento de outros que possuam menor poder de arrecadação, como o Rio Grande do Norte, que acabaram por não poder recolher receitas significativas, alusivas ao serviço. Tal crítica, apesar de bastante dura, justifica-se pela não existência de fundamento jurídico concreto que venha a lastrear a opção do legislador em optar por um regime diferenciado de coleta do ICMS de serviços taxados como não medidos, ao invés de se aplicar as regras de alíquota interestadual, ou o que já vinha disposto na Lei Complementar 87/96, no art. 11, III, a26. Tal discricionariedade também é atacada pela doutrina, onde se encontra, inclusive, entendimento de que tal dispositivo é inconstitucional, como defende Rogério Pires da Silva (2006, citado por MATTOS, 2006, p. 226-227): Ora, o serviço de comunicação, quando prestado a consumidor final localizado em outro Estado, fica sujeito ao imposto à alíquota interestadual ou interna, conforme o destinatário seja ou não contribuinte do ICMS, e a lei complementar jamais poderia excepcionar aquela regra constitucional para estabelecer (como parece ter pretendido o diploma em estudo) o recolhimento do imposto em partes iguais para as unidades da Federação onde se localizam o prestador e o tomador.

Diante da já explorada onerosidade existente, pelo que dispõe o Convênio 52/05, aos Estados que se caracterizaram como tomadores do serviço de TV por assinatura, fez-se necessária a celebração de um novo convênio, que viesse a alterar a maneira com que se operacionalizava a arrecadação. Neste objetivo, foi celebrado o Convênio ICMS nº 176/2013, que teve por objetivo, conforme já foi brevemente relatado, alterar a cláusula décima do Convênio 52/05, que trata dos Estados em que são aplicáveis o disposto nele.

25  Originalmente, o disposto no Convênio 52/2005 não seria aplicado aos Estados do Amazonas, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Tocantins e ao Distrito Federal, que permaneceriam aplicando os termos do Convênio 10/1998. Antes da última edição trazida pelo Convênio 176/2013, a redação da cláusula décima ainda foi modificada em mais duas oportunidades, ditando, a derradeira, que o disposto no referido convênio não se aplicaria aos Estados do Amazonas, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Distrito Federal. 26  Art. 11. O local da operação ou da prestação, para os efeitos da cobrança do imposto e definição do estabelecimento responsável, é: III - tratando-se de prestação onerosa de serviço de comunicação: a) o da prestação do serviço de radiodifusão sonora e de som e imagem, assim entendido o da geração, emissão, transmissão e retransmissão, repetição, ampliação e recepção;

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4.2 Convênio ICMS nº 176/2013 e a aplicação do art. 11, III, a Lei Complementar 87/96, conforme prevê o Convênio nº 10/98

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27  Art. 114. Fato gerador da obrigação principal é a situação definida em lei como necessária e suficiente à sua ocorrência.

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De tal modo, os estados do Acre, Alagoas, Amapá, Ceará, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte, Rondônia, Roraima, Santa Catarina, Sergipe e Tocantins, juntaram-se aos estados do Amazonas, Goiás, Moto Grosso, Mato Grosso do Sul e ao Distrito Federal, como localidades que aplicam, para regular a arrecadação do ICMS, os termos do Convênio nº 10/98, relativos ao serviço de comunicação por meio de satélite. Como critério objetivo para fundamentar a mudança de entendimento, pode ser argumentado pelos estados que deixaram de aplicar o convênio, que com os avanços tecnológicos pelos quais vem passando o setor de transmissão de dados via satélite, houve uma renovação em seu conceito, tendo em vista que hoje já é possível que uma empresa prestadora do serviço de TV por assinatura faça a aferição com exatidão do volume de dados que veio a ser utilizado por cada um de seus assinantes, já havendo, inclusive, a disponibilidade no mercado aparelhos que possibilitam que cada usuário faça essa medição de maneira autônoma. Esta nova possibilidade agregada à natureza do serviço, de se estabelecer de maneira individualizada, o quanto foi consumido por cada assinante, apesar de ainda não ser explorada pelas prestadoras, já se mostra suficiente para afastar a aplicação do contestado §6º do art. 11 da Lei Complementar 87/96. Portanto, voltar-se-ia, nos termos do novamente aplicável Convênio 10/98, a ter como dispositivo legal apto a regular a referida atividade a alínea “a”, do inciso III, do mesmo artigo 11 da Lei 87/96. Tal norma determina que, caso se trate de serviço oneroso de comunicação, como é o caso do serviço de TV por assinatura, o local da cobrança do imposto deverá ser o mesmo de onde ocorre a prestação do serviço. Ou seja, com o enquadramento no referido dispositivo, os Estados que aderiram ao Convênio 176/13 passariam a ser competentes para recolher de forma integral o ICMS relativo ao serviço de TV por assinatura. Ademais, diferentemente do já questionado §6º do mesmo artigo 11, além das referidas questões técnicas, juridicamente, não faltam fundamentos para demonstrar o quão necessário se faz a aplicação do inciso III, alínea “a”, para o recolhimento do serviço aqui tratado. É no local de prestação do serviço, ou seja, no território dos Estados tomadores, que ocorre o fato gerador da obrigação tributária que envolve o ICMS. O fato gerador, conforme define o Código Tributário Nacional em seu artigo 114, é a situação necessária e suficiente para dar ocorrência à obrigação tributária27. No caso específico da prestação do serviço de TV por assinatura, alvo do presente estudo, reconhece-se a ocorrência desse fato no momento em que o assinante recebe a prestação do serviço, seja ele em seu domicílio, ou algum outro estabelecimento, dentro do território do Estado tomador. E, somente em decorrência da materialização desse fato previamente previsto por lei, com o posterior lançamento de ofício feito pelo prestador, cria-se a possibilidade do fisco estadual efetuar a cobrança e o recolhimento. Assim, em se tratando de um serviço não mais presente no rol dos “serviços não medidos”, não há que se falar em divisão de receitas tributárias oriundas da cobrança de ICMS relativa a ele. Valendo-se, portanto, do mesmo regime dos demais casos em que cabe ao Estado

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tomador de determinado serviço/mercadoria o recolhimento de forma integral do ICMS por sua prestação/comercialização.

5 CONCLUSÕES O presente trabalho teve por desígnio trazer à tona para o cenário acadêmico um pouco da sistemática que envolve a arrecadação do ICMS, área raramente abordada até mesmo pela doutrina tributarista. A obscuridade da temática e a carência de debates jurídicos que a permeiam são inversamente proporcionais à importância, aqui demonstrada, dela para o direito tributário e as receitas dos Estados e ao Distrito Federal. Tal abdicação da área pela ciência jurídica acaba por permitir que ainda se perpetuem institutos e práticas arcaicas e desalinhadas com os preceitos trazidos pela Constituição de 1988. Fica evidenciada a necessidade de se reformar esses procedimentos que se encontram vigentes há quase quarenta anos, promovendo uma nova sistematização que confira a proteção que receitas tributárias dos Entes da Federação e esteja balizada com os preceitos jurídicos atualmente vigentes. Na vigência dos obsoletos mecanismos atuais, prosperam práticas não acolhidas pelo Direito, como as pressões políticas, impostos por grandes Estados, no intuito de concentrar ainda mais as receitas oriundas da divisão dos montantes arrecadados com o ICMS, conforme ficou refletido nos convênios e nas leis aqui debatidas. Na hipótese da tributação sobre o serviço de TV por assinatura, ficou manifesta a interferência exercida por Estados que concentram as sedes das empresas do ramo, no desiderato de obter novas fontes de receitas tributárias, tanto na elaboração do convênio 52/2005, quanto no âmbito legislativo, com a inclusão do §6º no art. 11 da Lei Complementar 87/96, através da Lei Complementar 102/00. Tal situação é o reflexo da crítica que aqui foi feita, e demonstra a necessidade de que as questões discutidas no presente trabalho venham a ser albergadas pela tão citada reformar tributária no Brasil.

MATTOS, Aroldo Gomesde.ICMS: comentários à legislação nacional. 1 ed. São Paulo: Dialética, 2006. MORAIS, Valério Pimenta de. Unanimidade no Confaz é manifestação da igualdade e da autonomia. 2014. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2014-set-23/valerio-pimentaunanimidade-confaz-manifestacao-igualdade>. Acesso em: 9 out. 2014. PAULSEN, Leandro.Curso de direito tributário: completo. 4 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012.

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REFERÊNCIAS

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SABBAG, Eduardo. Manual de Direito Tributário. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2012. SILVA, Rogério Piresda. Alíquotas Interestaduais do ICMS em Prestações de Serviços de Comunicação e a Lei Complementar nº 102/00, 2006. In: MATTOS, Aroldo Gomes de. ICMS: comentários à legislação nacional. São Paulo: Dialética, 2006. p. 226-227. PROCEDURE FOR COLLECTION OF ICMS: THE ROLE OF CONFAZ, ITS COVENANTS, AND AN ANALYSIS OF ADJUSTMENT SERVICE PAY TV

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ABSTRACT: The ICMS tax whose collection procedure will be addressed in this article, is the main source of revenue of the states and the Federal District, and because of the importance of it for your finances, it’s an excuse to dispute the competence for your gathering. In order to regulate this situation, it created the National Council for Financial Policy (CONFAZ), a body made up of representatives of the entities, and that makes its decisions by means of agreements signed by the participants. On the last, will be analyzing how the ICMS collection is made for the TV subscription service and how the interests of the United interfere in it. Keywords: ICMS. Complementary Law 87/96. Confaz. Covenant. PayTV.

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Recebido em 20 ago. 2015. Aceito em 22 out. 2015.

PROJETO DE IRRIGAÇÃO SANTA CRUZ DO APODI SOB A PERSPECTIVA DA VIOLAÇÃO AO DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS Lina Celeste Silva Jacinto*

1 INTRODUÇÃO A Chapada do Apodi, situada entre os estados do Ceará e Rio Grande do Norte, está sofrendo com a desapropriação de terras pertencentes aos pequenos agricultores para implantação de perímetros irrigados, o qual fomenta a produção de fruticultura nos grandes latifúndios. A parte situada no Ceará já deu espaço para vários agronegócios, enquanto que no lado

* Graduando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, cursando o 7º período.

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RESUMO: O presente artigo visa trazer visibilidade ao “Projeto de Irrigação Santa Cruz do Apodi”, em virtude de poucos conhecerem ou saberem ao certo acerca das consequências negativas, as quais esse projeto irá acarretar uma vez concretizado. O referido programa busca a desapropriação de terras pertencentes, em sua maioria, aos pequenos agricultores com o intuito de implantar perímetros irrigados. Nesse viés, ao longo deste estudo, os impactos socioambientais decorrentes do “Projeto de Irrigação Santa Cruz do Apodi” sob a perspectiva da violação ao Direito Internacional dos Direitos Humanos e a tutela judicial do Sistema Interamericano dos Direitos Humanos serão discutidos primordialmente. Palavras-chave: Projeto de irrigação Santa Cruz do Apodi. Impactos socioambientais. Direito internacional dos direitos humanos. Sistema interamericano dos direitos humanos.

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norte-rio-grandense, o “Projeto de Irrigação Santa Cruz do Apodi” encontra-se em percurso, capitaneado pelo Departamento Nacional de Obras Contra a Seca – DNOCS. Ora, uma vez que tal programa venha a se concretizar, vislumbrar-se-ão impactos socioambientais alarmantes: agressões ao solo; às reservas hídricas, pelo uso dos agrotóxicos e defensivos agrícolas; à fauna; considerável redução da agricultura familiar e consequente fragilização das relações de trabalho, em que inúmeras pessoas desenvolverão suas atividades em condições subumanas nos grandes latifúndios ou serão jogadas nas periferias das cidades. Nesse sentido, denota-se uma afronta explícita aos direitos socioambientais, e principalmente, aos Direitos Humanos, em benefício do desenvolvimento do capitalismo – direitos estes amplamente protegidos por legislação superior, qual seja o Direito Internacional, abarcados pelo Brasil em diversos tratados internacionais e, portanto, elencados na nossa Constituição, pois tais direitos são universais e imanentes ao indivíduo por assegurar a dignidade da pessoa humana, sua igualdade e liberdade. Além disso, vale frisar que o direito ao meio ambiente sadio e sustentável deve ser tratado como Direito Humano e diante da ausência estatal para assegurá-lo como tal a sua população, O Sistema Interamericano de Direitos Humanos, constituído da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, tornam-se meios adequados para a tutela judicial do meio ambiente. Concernente à metodologia e material utilizado, o meio o qual foram buscados os subsídios e/ou argumentos desta pesquisa é o qualitativo, além de empregar o método fenomenológico, em que se observou a realidade daqueles os quais sofreram/ estão sofrendo com as desapropriações de terras na Chapada do Apodi. Ademais, este trabalho teve como base a participação em eventos sobre a temática, documentário “Chapada do Apodi, Morte e Vida” e leituras prévias.

2 SITUAÇÃO FÁTICA DO “PROJETO DE IRRIGAÇÃO SANTA CRUZ DO No afã de compreender os problemas socioambientais os quais estão cada vez mais presentes e agravados na Chapada do Apodi, faz-se necessário de antemão conhecer o Projeto de Irrigação Santa Cruz do Apodi e a região da Chapada do Apodi. Para tanto, sabe-se que, no ano de 2013, o governo federal, através do DNOCS, autorizou o início da execução da primeira etapa dos serviços de obras para a implementação de um projeto de fruticultura irrigada no Rio Grande do Norte, mais precisamente entre os municípios de Apodi e Felipe Guerra. Nesse sentido, o supracitado projeto pretende desapropriar cerca de 13.855 ha (treze mil oitocentos e cinquenta e cinco) hectares de terras pertencentes, em sua

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maioria, a pequenos agricultores.1 A estimativa do presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Apodi, Francisco Edilson Neto, é que cerca de 600 famílias serão desalojadas de suas propriedades.2 Resta claro que o investimento da ordem de R$ 242 milhões3, com verbas vindas do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), tem como objetivo principal a construção de um perímetro irrigado, o qual irá beneficiar cinco empresas do agronegócio para a produção de frutas destinadas à exportação. Segundo site oficial do DNOCS4, as obras de implantação da 1ª etapa do projeto já estão com 13 por cento de avanço e tem prazo de 30 meses para sua conclusão. Além disso, é importante ressaltar sobre o sistema hidráulico que servirá como manancial de abastecimento para esse programa de irrigação, tendo em vista que o rio Apodi, com vazão regularizada pela barragem Santa Cruz, será utilizado como potencial hídrico. Todavia, como mencionado no Relatório de Impacto Ambiental (RIMA), a utilização das águas dessa barragem será suficiente para atender a demanda de um projeto como esse até o ano de 2020. Ou seja, observa-se que o problema da seca na Chapada do Apodi não será resolvido ou atenuado. Pelo contrário, a fonte hídrica mostra-se como grave falha até mesmo para a execução do Projeto Santa Cruz do Apodi.5 Dessa maneira, vale salientar que ao defender esse investimento, alegando que a irrigação serve para: o aumento da oferta de alimentos; geração de emprego e renda; papel social transformador; desenvolvimento nacional e regional; trazer benefícios para pequenos, médios e grandes produtores da região; e minimizar os efeitos da seca, está, sobretudo, sendo displicente e omisso para com a proteção dos direitos humanos. Hodiernamente, a realidade que é vista no lado norte-rio-grandense da Chapada do Apodi, como uma região fértil e de imenso potencial produtivo, é muito diferente da que está sendo proposta e dos benefícios que esse empreendimento alega. De acordo com estudo feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) 1  STRP- APODI/ CPT/ RENAP/ GEDIC. PROJETO DA MORTE – Projeto de Irrigação Santa Cruz do Apodi/RN – DOSSIÊ-DENÚNCIA. p. 3Disponível em: < http://www.cut.org.br/sistema/ck/files/dossie.pdf> Acesso em: 14 ago. 2014.

3  DNOCS. Obras do projeto Santa Cruz do Apodi avançam no sertão do Rio Grande do Norte. Fortaleza/CE. 16 set. 2014. Disponível em: <http://www.dnocs.gov.br/php/comunicacao/noticias.php?f_registro=3367&f_opcao=imprimir&p_view=short&f_header=1&> Acesso em: 20 out. 2014. 4  Estão em pleno andamento as obras do Centro Administrativo e da Packing House, os reparos das estruturas de concreto da estação de bombeamento principal e, também, em execução os trabalhos de montagem da manta geotéxtil do Canal de Chamada e a regularização manual e mecânica de taludes do Canal Principal, além de inúmeras obras de infraestrutura do projeto. Novas áreas desapropriadas estão sendo liberadas e incorporadas às áreas de implantação desse grande empreendimento de produção de alimentos. DNOCS. Obras do projeto Santa Cruz do Apodi avançam no sertão do Rio Grande do Norte. Fortaleza/CE. 16 set. 2014. Disponível em:< http://www.dnocs.gov.br/php/ comunicacao/noticias.php?f_registro=3367&f_opcao=imprimir&p_view=short&f_header=1&>. Acesso em: 20 out. 2014. 5  Por fim, quanto às violações à questão ambiental que se apresentam de maneira mais clara, é importante ser lembrada a concernente aos recursos hídricos. O RIMA apresenta severas inconsistências no tocante a essa temática asseverando, em sua fl. 34, 10 que: “as águas do açude somente podem atender a um terço da área a ser irrigada, ou seja, 3.000 ha”. E aduz, “O volume útil do seu reservatório permite atender às demandas a ele atribuídas somente até o ano 2020 respeitando as garantias estabelecidas, ou seja, haverá falhas após 2020 se novas fontes hídricas não forem contempladas”. STRP- APODI/ CPT/ RENAP/ GEDIC. PROJETO DA MORTE – Projeto de Irrigação Santa Cruz do Apodi/RN – DOSSIÊ-DENÚNCIA. p. 9 e 10 Disponível em: < http://www.cut.org.br/sistema/ck/files/dossie.pdf>. Acesso em: 14 ago. 2014.

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2  NÓBREGA, Camila. Dossiê mostra que perímetros irrigados violam direitos de comunidades rurais. Juazeiro/BA. 18 mai. 2014. Disponível em: <http://enagroecologia.org.br/2014/05/18/dossie-mostra-que-perimetros-irrigados-violam-direitos-de-comunidades-rurais/> Acesso em: 20 out. 2014.

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em 2009, a Chapada do Apodi sobressai-se no território potiguar como uma das maiores regiões produtoras da agropecuária, utilizando-se das práticas agroecológicas e sustentáveis. Nessa região, destaca-se: o cultivo de arroz, frutas, hortaliças, produção de mel de abelha, criação de ovinos, e dentre outras atividades.6 No entanto, com a implantação do Projeto de Irrigação Santa Cruz do Apodi há nítida prevalência da agroindústria e do agronegócio sobre a agricultura familiar. Destarte, percebe-se uma incompatibilidade entre esses dois distintos modelos de produção, o qual o primeiro torna-se insustentável por priorizar a monocultura, a exploração de extensas terras, a utilização de agrotóxicos e por gerar grandes impactos socioambientais. Diante disso, os camponeses e os movimentos sociais da região têm lutado fortemente contra a inserção desse projeto, já que defendem um modelo de desenvolvimento rural baseado na agroecologia, bastante divergente do proposto. A parte cearense da Chapada do Apodi já é marcada pela presença de grandes empresas transnacionais e nacionais de fruticultura destinada para exportação. Contudo, o que se observa com a expansão do agronegócio na região é: transformações nas relações e condições de trabalho; aumento dos conflitos no campo, a exemplo do assassinato de José Maria, presidente da Associação dos Desapropriados Trabalhadores Rurais Sem Terra da Chapada do Apodi; comunidades inteiras são extintas, como aconteceu com a comunidade denominada de KM 69, em Limoeiro/CE; estudos identificam a contaminação das águas subterrâneas e superficiais; graves problemas de saúde pública, em virtude de que mais de 97% dos trabalhadores convivem direta/indiretamente com agrotóxicos e fertilizantes; redução da biodiversidade; degradação do solo; contaminação do ar; e dentre outros impactos.7 Assim, os resultados alcançados na parte que compreende o Ceará, revela ser uma experiência inaceitável pela qual o lado do Rio Grande do Norte prevê vivenciar a partir do momento em que o “Projeto Santa Cruz do Apodi” for concretizado plenamente em seu território.

Das considerações traçadas, infere-se que a obra de execução de perímetros irrigados pretendida pela DNOCS na Chapada do Apodi é tecnicamente inviável e afronta direta/indiretamente a busca pela preservação de um meio ambiente sustentável, os interesses da população

6  Apodi tem se destacado no campo da produção agrícola e pecuária do território potiguar, figurando na lista das cinco cidades que se sobressaem nessas atividades, segundo estudo realizado pelo IBGE em 2009. O Produto Interno Bruto (PIB) do Rio Grande do Norte apresentou aumento no campo da agropecuária, mostrando o potencial econômico relacionado com a produção agroecológica e sustentável no vale e na Chapada do Apodi. No Vale e Chapada do Apodi, está concentrada uma das mais fortes e organizadas cadeias produtivas do território potiguar; destacando-se a produção de arroz, frutas, hortaliças, mel de abelha, castanha de caju, criação de caprinos, ovinos e bovinos, projetos de piscicultura, criação de galinhas e várias outras atividades. STRP- APODI/ CPT/ RENAP/ GEDIC. PROJETO DA MORTE – Projeto de Irrigação Santa Cruz do Apodi/RN – DOSSIÊ-DENÚNCIA. p. 18. Disponível em: < http://www.cut.org.br/sistema/ ck/files/dossie.pdf>. Acesso em: 14 ago. 2014. 7  STRP- APODI/ CPT/ RENAP/ GEDIC. PROJETO DA MORTE – Projeto de Irrigação Santa Cruz do Apodi/RN – DOSSIÊ-DENÚNCIA. p. 16. Disponível em: < http://www.cut.org.br/sistema/ck/files/dossie.pdf>. Acesso em: 14 ago. 2014.

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3 ANÁLISE DOS PRINCIPAIS DIREITOS VIOLADOS EM RAZÃO DO PROJETO EM ÂMBITO INTERNO E INTERNACIONAL

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local e o patrimônio histórico e cultural. Mas, antes de tudo, há uma nítida violação aos Direitos Humanos. Conforme exposto na obra “Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional” de André de Carvalho Ramos (2013, p. 32), os Direitos Humanos são considerados como um conjunto mínimo de direitos essenciais que asseguram aos indivíduos uma vida baseada na liberdade, igualdade e na dignidade. Isto é, esses direitos são de supra importância e devem ser universais, inerentes e intrínsecos a cada ser humano, pois sem eles não seria possível a existência humana em condições adequadas, assim como a participação política e o desenvolvimento das pessoas nas comunidades.8 No caso de proteção aos Direitos Humanos, tal temática encontra-se regulada tanto pelo ordenamento interno dos próprios Estados quanto pelas normas e princípios de Direito Internacional: constituições, tratados, costumes, resoluções de organizações internacionais, atos unilaterais, decisões da Corte Interamericana dos Direitos Humanos. De maneira exemplificativa, ilustra-se a Convenção Americana de Direitos Humanos (também denominada Pacto de San José da Costa Rica), a supramencionada Convenção, em seu preâmbulo, reafirma seu propósito de consolidar no Continente Americano um regime de liberdade pessoal e de justiça social, de tal forma que, garante um catálogo de direitos civis e políticos, porém, limita-se a determinar que os Estados alcancem a plena realização do direito social, cultural ou econômico. A partir do Protocolo Adicional à Convenção, adotado em 1988 pela Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos, é que esses direitos são enunciados especificamente.9 Então, na medida em que se tem prejuízo social, ambiental, material e cultural, há ofensa aos diversos dispositivos supracitados, aos Direitos Humanos, em razão de afetarem a qualidade de vida, o mínimo existencial e o respeito por parte do Estado e da comunidade aos seres humanos. Torna-se essencial entender as consequências decorrentes do denominado Projeto da Morte, relacionando a tais direitos ambientais, sociais e culturais violados.

9  Artigo 07. Condições justas, equitativas e satisfatórias de trabalho. Os Estados Partes neste Protocolo reconhecem que o direito ao trabalho, a que se refere o artigo anterior, pressupõe que toda pessoa goze do mesmo em condições justas, equitativas e satisfatórias, para o que esses Estados garantirão em suas legislações, de maneira particular: a. Remuneração que assegure, no mínimo, a todos os trabalhadores condições de subsistência digna e decorosa para eles e para suas famílias e salário equitativo e igual por trabalho igual, sem nenhuma distinção; b. O direito de todo trabalhador de seguir sua vocação e de dedicar‑se à atividade que melhor atenda a suas expectativas e a trocar de emprego de acordo com a respectiva regulamentação nacional; c. O direito do trabalhador à promoção ou avanço no trabalho, para o qual serão levadas em conta suas qualificações, competência, probidade e tempo de serviço; d. Estabilidade dos trabalhadores em seus empregos, de acordo com as características das indústrias e profissões e com as causas de justa separação. Nos casos de demissão injustificada, o trabalhador terá direito a uma indenização ou à readmissão no emprego ou a quaisquer outras prestações previstas pela legislação nacional; e. Segurança e higiene no trabalho; f. Proibição de trabalho noturno ou em atividades insalubres ou perigosas para os menores de 18 anos e, em geral, de todo trabalho que possa pôr em perigo sua saúde, segurança ou moral. Quando se tratar de menores de 16 anos, a jornada de trabalho deverá subordinar‑se às disposições sobre ensino obrigatório e, em nenhum caso, poderá constituir impedimento à assistência escolar ou limitação para beneficiar‑se da instrução recebida; g. Limitação razoável das horas de trabalho, tanto diárias quanto semanais. As jornadas serão de menor duração quando se tratar de trabalhos perigosos, insalubres ou noturnos; h. Repouso, gozo do tempo livre, férias remuneradas, bem como remuneração nos feriados nacionais. Artigo 10. Direito à saúde. 1. Toda pessoa tem direito à saúde, entendida como o gozo do mais alto nível de bem‑estar físico, mental e social. (...). Artigo 11. Direito a um meio ambiente sadio. 1. Toda pessoa tem direito a viver em meio ambiente sadio e a contar com os serviços públicos básicos. 2. Os Estados Partes promoverão a proteção, preservação e melhoramento do meio ambiente.

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8  “(...) faculdades que o Direito atribui a pessoas e aos grupos sociais, expressão de suas necessidades relativas à vida, liberdade, igualdade, participação política, ou social ou a qualquer outro aspecto fundamental que afete o desenvolvimento integral das pessoas em uma comunidade de homens livres, exigindo o respeito ou a atuação dos demais homens, dos grupos sociais e do Estado, e com garantia dos poderes públicos para restabelecer seu exercício em caso de violação ou para realizar sua prestação.” PECES-BARBA MARTÍNEZ, Gregorio et al. Derecho positivo de los derechos humanos. Madrid: Debate, 1987, p. 14-15.

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10  STRP- APODI/ CPT/ RENAP/ GEDIC. PROJETO DA MORTE – Projeto de Irrigação Santa Cruz do Apodi/RN – DOSSIÊ-DENÚNCIA. p. 5 e 6. Disponível em: < http://www.cut.org.br/sistema/ck/files/dossie.pdf>. Acesso em: 14 ago. 2014. 11  STRP- APODI/ CPT/ RENAP/ GEDIC. PROJETO DA MORTE – Projeto de Irrigação Santa Cruz do Apodi/RN – DOSSIÊ-DENÚNCIA. Disponível em: < http://www.cut.org.br/sistema/ck/files/dossie.pdf>. p. 5. Acesso em: 14 ago. 2014. 12  Art. 225 - Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. § 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: I - preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas; II - preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético; III - definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção; IV - exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade; V - controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente; VI - promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente; VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade (...).

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Quanto aos possíveis impactos ao meio ambiente ocasionados por esse programa de irrigação, o RIMA10 cita, por exemplo, as agressões ao solo (erosão e salinização), em virtude do desmatamento de grande área e manejo incorreto do solo; as agressões as fontes hídricas, em decorrência do escoamento de águas contaminadas por agrotóxicos, defensivos agrícolas e fertilizantes; contaminação de alimentos de origem vegetal e animal por causa dos produtos químicos utilizados; prejuízos inevitáveis a flora e a fauna, como a morte de abelhas e animais polinizadores, os quais são fundamentais para possibilitar que a região seja bastante fértil e uma das maiores produtoras de mel. Os impactos negativos foram apontados em 58 (cinquenta e oito) pelo relatório de Impactos Ambientais, no entanto, não foram aprofundados e detalhados como deveriam, pois, ao longo desse relatório são explícitas as omissões e inconsistências. Observa-se que se o próprio governo, e consequentemente o DNOCS, não estivessem preocupados superficialmente com esses danos, o estudo levaria em consideração o diálogo com as comunidades atingidas e expressaria as reais possibilidades de agressões11. Nesse sentido, a preocupação com o meio ambiente deveria ser questão primordial do Estado Soberano, de modo que a legislação concernente a essa temática necessita de aplicabilidade imediata e eficácia plena para que se tenha uma real preservação da vida. Entretanto, o que se nota na Chapada do Apodi é um descumprimento a essas normas, a exemplo do art. 225 da Constituição Federal brasileira12, pelo próprio Poder Público, que explora ou permite a exploração de seus recursos naturais de maneira destoante com as políticas ambientais. Concernente aos direitos sociais, cabe salientar que a desapropriação das famílias as quais vivem nos municípios de Apodi e Felipe Guerra repercute no modo de vida e na saúde dos indivíduos da comunidade. Eis que ocorrem modificações nas relações e condições de trabalho, em virtude da expansão do agronegócio na região, gerando redução da agricultura familiar, desemprego estrutural, crescimento do trabalho informal e aumento da marginalização social. Os pequenos agricultores se veem obrigados a migrar para as periferias das cidades ou a aceitar empregos subalternos e precarizados provindos dos latifúndios, por vezes submetidos a extensa jornada de labor, baixa remuneração e serviços que descumprem a legislação trabalhista. Sem falar que a população local passa a ser exposta a situação de risco à saúde, me-

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13  No tocante a saúde pública, podemos citar a pesquisa realizada por Raquel Rigotto, professora da faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará, sobre a intensa exposição ocupacional a agrotóxicos e fertilizantes. A referida pesquisa investigou 540 trabalhadores, dos quais 341 são do agronegócio, 156 agricultores familiares camponeses e 43 trabalhadores dos assentamentos e comunidades agroecológicas. Os estudos demonstraram um quadro de grave problema de saúde pública, haja vista que mais de 97% dos trabalhadores, dos dois primeiros grupos, estão expostos a agrotóxicos. STRP- APODI/ CPT/ RENAP/ GEDIC. PROJETO DA MORTE – Projeto de Irrigação Santa Cruz do Apodi/RN – DOSSIÊ-DENÚNCIA. Disponível em: < http://www.cut.org.br/sistema/ck/files/dossie.pdf>. Acesso em: 14 ago. 2014.

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diante o contato com água e ar contaminados por produtos químicos, uma vez que tanto os trabalhadores como também os moradores locais são suscetíveis a doenças como câncer pela utilização em larga escala desses produtos no modo de produção das grandes propriedades13. Com efeito, as consequências provindas desse programa de irrigação são baseadas, principalmente, na experiência da Chapada do Apodi da parte cearense, em que já é vítima de vários problemas socioambientais. Em relação aos direitos culturais, de acordo com o dossiê-denúncia do projeto da morte, afirma-se que no local de influência do empreendimento há grande associação fossilífera que remonta o período pré-histórico, a exemplo do Museu da Pedra, cavernas arqueológicas e o “Lajeado de Soledade, um dos mais conhecidos sítios arqueológicos do Brasil, além de uma comunidade tradicional de reminiscência quilombola. Dessa forma, essas associações fossilíferas e a comunidade de Soledade possuem grande importância para o estado do Rio Grande do Norte, pois fazem parte do patrimônio histórico cultural potiguar e em razão disso deve-se primar pela proteção e preservação. Entretanto, o EIA-RIMA não se preocupou verdadeiramente com essa questão e foi omisso, uma vez que apenas fez menção a esse patrimônio e não delimitou as suas reais ameaças e agressões decorrentes do Projeto de Irrigação Santa Cruz do Apodi. Portanto, o estado do RN e o próprio governo federal estão sendo negligentes mais uma vez, pois deveriam prezar por um estudo mais cauteloso acerca dos impactos que podem ser causados no patrimônio histórico cultural da Chapada do Apodi norte-rio-grandense e assim lutar, a priori, pela sua proteção e preservação. No tocante a desapropriação das propriedades pertencentes às famílias da Chapada do Apodi, conforme José Cretella Júnior, desapropriação é o ato pelo qual o Estado se apropria de um bem privado para atender os fins de interesse público, obrigando o proprietário a transferirlhe a propriedade desse e, em contrapartida, o Estado deve conceder prévia e justa indenização em dinheiro (CRETELLA JÚNIOR, 1976, p. 29). Por consequência, compreende-se que a essência desse ato é a finalidade de atingir o interesse público, uma vez que, para o Direito Agrário, a propriedade possui função social, qual seja a correta utilização econômica da terra e a sua justa distribuição com o intuito de atender o bem-estar da coletividade e promover a justiça social (LARANJEIRA, 1999). Isto é, o interesse coletivo deve ser sobreposto ao interesse

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coletivo, definida essa noção de função social no Estatuto da Terra (Lei nº 4.504, de 1964)14. Acontece que o objetivo primordial do Direito Agrário comunga com os ideais defendidos pelos direitos humanos que é o homem, enxergando esse com capacidade de produzir por meio da força de seu trabalho e propiciar o progresso econômico e social de toda a comunidade. Entretanto, essa realidade almejada é bem diferente do que será alcançado com a concretização do Projeto de Irrigação Santa Cruz do Apodi, na proporcionalidade em que os principais beneficiados com a implementação desse empreendimento é o agronegócio, as empresas de exportação e o Poder Público, enquanto que a população local cede as suas terras para viver na margem da exclusão social. Vislumbra-se a incessante busca pela obtenção da mais-valia e o interesse em se adquirir vantagens e mais vantagens para a minoria mediante o sistema capitalista. Fatores que deveras funcionam como justificativas para a violação de direitos, uma vez que os investimentos em métodos menos agressivos acabam sendo mais dispendiosos, consumindo tempo e dinheiro. Nesse contexto, o avanço tecnológico, o progresso científico e a globalização advinda desse sistema, ao invés de harmonizar as relações, (a partir da troca de experiências e do uso de tecnologias limpas e renováveis, incentivando, por exemplo, a agroecologia), torna o capitalismo insustentável, a natureza e a massa (composta pelos indivíduos mais pobres e os pequenos agricultores) sofre diretamente os impactos oriundos dessa ganância. Em síntese, pode-se aduzir que diversos direitos são descumpridos e, por conseguinte, distintas normas do ordenamento jurídico interno e internacional são desrespeitadas e sobrepujadas com o objetivo de acatar os interesses de particulares, a menor parcela dos cidadãos. Assim sendo, quando o Estado se mostra ausente para lidar com essas controvérsias, torna-se oportuno o Poder Público ser responsabilizado internacionalmente e dar ensejo a atuação de organizações internacional com o fim último de dar voz para a coletividade.

Frente ao exposto, pode-se inferir que o Direito Internacional possui diversas normas que cuidam de temas como meio ambiente, direitos sociais e mais especificamente, os direitos humanos, consolidando, então, a legitimidade da preocupação internacional com a proteção

14  Art. 2° É assegurada a todos a oportunidade de acesso à propriedade da terra, condicionada pela sua função social, na forma prevista nesta Lei. § 1° A propriedade da terra desempenha integralmente a sua função social quando, simultaneamente: a) favorece o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores que nela labutam, assim como de suas famílias; b) mantém níveis satisfatórios de produtividade; c) assegura a conservação dos recursos naturais; d) observa as disposições legais que regulam as justas relações de trabalho entre os que a possuem e a cultivem. § 2° É dever do Poder Público: a) promover e criar as condições de acesso do trabalhador rural à propriedade da terra economicamente útil, de preferência nas regiões onde habita, ou, quando as circunstâncias regionais, o aconselhem em zonas previamente ajustadas na forma do disposto na regulamentação desta Lei; b) zelar para que a propriedade da terra desempenhe sua função social, estimulando planos para a sua racional utilização, promovendo a justa remuneração e o acesso do trabalhador aos benefícios do aumento da produtividade e ao bem-estar coletivo. § 3º A todo agricultor assiste o direito de permanecer na terra que cultive, dentro dos termos e limitações desta Lei, observadas sempre que for o caso, as normas dos contratos de trabalho. § 4º É assegurado às populações indígenas o direito à posse das terras que ocupam ou que lhes sejam atribuídas de acordo com a legislação especial que disciplina o regime tutelar a que estão sujeitas.

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4 A RESPONSABILIDADE INTERNACIONAL OBJETIVA DO ESTADO PERANTE A PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

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desses direitos. As normas, tratados e convenções internacionais de direitos humanos possuem natureza objetiva, cuja interpretação deve ser feita em prol dos indivíduos e não dos contratantes (Estados). O fim último é a proteção dos direitos básicos do ser humano diante do seu país de origem ou dos outros países. Para André de Carvalho Ramos em seu livro “Responsabilidade Internacional por Violação de Direitos Humanos”, os tratados em âmbito internacional estabelecem duas formas de obrigações aos Estados: obrigação de respeitos aos direitos humanos, e a obrigação de garantia. A primeira obrigação caracteriza-se como uma obrigação de não-fazer, ao qual limita o poder público perante os direitos dos homens (CARVALHO RAMOS, 2004, p. 40 e 41).

No tocante a outra obrigação, André de Carvalho Ramos (2004, p. 40 e 41) afirma ser uma obrigação de fazer, em que o Estado deve se organizar de modo a prevenir, investigar e punir toda violação, pública ou privada, dos direitos fundamentais da pessoa humana. Para tanto, existe uma responsabilidade internacional do Estado quando as normas internacionais e as obrigações dos Estados são descumpridas por meio de ação ou omissão, o Direito Internacional estabelece as consequências da violação de suas normas, devendo o Estado infrator eliminar todos os danos causados. A responsabilidade internacional do Estado expressa-se como uma obrigação de reparar os prejuízos originados pela violação de dispositivos do Direito Internacional, mesmo que esses direitos venham a ser violados em lugares distantes do mundo. Nessa seara, o artigo nº 1 do projeto de Convenção sobre responsabilidade internacional da Comissão de Direito Internacional da Organização das Nações Unidas (ONU) declara que todo fato internacionalmente ilícito do Estado acarreta a responsabilidade internacional do mesmo. No que tange o dever dos Estados em garantir os Direitos Humanos, consagra-se a responsabilidade internacional objetiva, em que é desnecessário a prova do elemento “culpa” do agente causador do ilícito, pois é fundamental interpretar as regras e princípios internacionais de direitos humanos em benefício do indivíduo sem alegar ausência de culpa ou dolo de seus agentes como justificativa para não cumprir com o dever de proteção a esses direitos fundamentais. Importa ressaltar que o ordenamento jurídico interno tem o papel de reparar qualquer violação de direitos humanos, priorizando-se, portanto, a jurisdição nacional. Já a jurisdição internacional desempenha função subsidiária, utilizada quando se torna inadequados os recursos 15  Ver in Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso Velasquez Rodriguez, sentença de 29 de julho de 1988, Série C nº 4, parágrafo 165.

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Como já declarou a Corte Interamericana de Direitos Humanos, o exercício da função pública tem limites que derivam dos direitos humanos, atributos inerentes à dignidade da pessoa humana e em consequência, superiores ao poder do Estado. Ainda, segundo a Corte, trata-se de dever de caráter eminentemente negativo, um dever de abster-se de condutas que importem em violações de direitos humanos.15

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internos e consequentemente o Estado infrator responde pela violação inicial e por não prover medidas que reparem os prejuízos. Trazendo à baila a situação da Chapada do Apodi, percebe-se que os interesses do próprio Estado e da minoria detentora dos meios de produção prevalecem sobre a proteção que deve ser obrigatoriamente dada aos direitos básicos dos indivíduos, da coletividade. Como consequência, as obrigações de garantia e respeito, os tratados, convenções e decisões internacionais que tratam dos direitos humanos são desrespeitadas pelo ordenamento jurídico brasileiro a partir do momento em que distintos direitos são violados a nível local. Conforme visto, todos os seres humanos têm direitos sob o cenário internacional e em razão disso cabe responsabilizar as instituições nacionais quando essas são omissas ou cometem erros que afetam a proteção dos direitos humanos assegurados internacionalmente. Como consequência os Estados devem reparar os possíveis danos e são submetidos à autoridade internacional, em que essa passa a tutelar e fiscalizar esses direitos. Nessa ótica, o Sistema Interamericano surge como relevante organização regional de proteção que busca internacionalizar os direitos humanos no cenário regional, aplicado diretamente no caso do Brasil (PIOVESAN, 2012, p. 61).

O Sistema Interamericano é um sistema regional de proteção aos direitos humanos que tem como base a Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969, assim como a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, o Protocolo à Convenção Americana Referente à Abolição da Pena de Morte, o Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais, e Culturais (“Protocolo de San Salvador”), a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, a Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir, e Erradicar a Violência Contra a Mulher (“Convenção Belém do Pará”) e a Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência. Além disso, é constituída pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana. De acordo com Flávia Piovesan (2012, p. 322 e 323), a Comissão Interamericana é responsável por fazer recomendações aos governos dos Estados-partes; preparar estudos e relatórios; solicitar aos governos informações relativas às medidas adotadas acerca da efetiva aplicação da Convenção; submeter um relatório anual à Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos; examinar as comunicações dos indivíduos ou entidade não governamental, as quais contenham denúncia de violação aos direitos humanos; e previamente funciona como mediador entre o denunciado e o denunciante. A respeito da Corte Interamericana de Direitos Humanos, é o órgão de maior notoriedade do Sistema Interamericano por deter força jurisdi-

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5 ATUAÇÃO DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS PARA PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

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cional, apresentando competência consultiva e contenciosa (julgamento de casos) a qual ambas prezam pela correta aplicação e interpretação das garantias fundamentais dos indivíduos. A Corte Europeia de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos têm o poder de proferir decisões juridicamente vinculantes contra Estados soberanos, condenando-os pela violação de direitos humanos e liberdades fundamentais de indivíduos, e ordenando-lhes o pagamento de justa indenização ou compensação às vítimas (SIEGHART, p. 35).

Nesse contexto, é possível perceber que através da interpretação do artigo 21 acerca do direito de propriedade e do artigo 4 da Convenção Americana, tratando sobre o direito à vida, a Corte Interamericana baseou a sua decisão no sentido de garantir as comunidades indígenas e tribais o direito de viver em um ambiente sustentável e sadio. Por consequência, as decisões da Corte Interamericana devem ter como escopo esse modo de atuação e aplicação dessa Convenção e dos demais dispositivos, seja para fiscalizar ou responsabilizar o Estado infrator, pois visa assegurar, independente de raça, cor, etnia ou condição social, os direitos básicos, a vida com dignidade e o mínimo existencial para aqueles ameaçados pelos interesses da minoria ou dos particulares privilegiados com os ideais capitalistas.

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Corte I.D.H., Caso de Pueblo Saramaka vs Suriname. Sentença de 28 de novembro de 2007. Série C n.172.

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Vê-se, portanto, que tanto a Comissão quanto a Corte Interamericana de Direitos Humanos sãos Órgãos essenciais para analisar a conduta dos Estados soberanos, cabendo a cada membro do Sistema Interamericano honrar as normas da Convenção Americana e, sobretudo, respeitar os Direitos Humanos em seu território, pois as decisões e resoluções da Corte possuem caráter de força vinculante e de imediata aplicabilidade. À luz dessa fundamentação, faz-se imprescindível analisar uma das várias decisões proferidas pela Corte contra os Estados integrantes desse sistema regional, em casos de violações aos direitos humanos. Uma das problemáticas que pode ser citada é o caso Saramaka vs. Suriname, o qual a comunidade Saramaka teve seu direito a suas terras tradicionais violado pela concessão de uso de suas terras a empresas madeireiras e mineradoras, e o agravante é que o Estado não informou adequadamente o povo Saramaka sobre o processo de concessão, não apresentou um Estudo de Impacto Social e Ambiental e nem fez um processo de consulta prévia aos membros da comunidade. Com isso, a Corte Interamericana determinou que o Estado do Suriname cumprisse três garantias: assegurar a participação efetiva dos membros do povo Saramaka em todos os planos de desenvolvimento, inversão, exploração ou extração que ocorre dentro de seu território; garantir que os membros do povo Saramaka se beneficiem de forma razoável deste plano; o dever de todas concessões serem emitidas com a realização de um Estudo Prévio de Impacto Social e Ambiental por entidades independentes e tecnicamente capazes.16

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Sem olvidar das circunstâncias do Brasil, essa nação reconhece a jurisdição obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos e defende com ardor os Direitos Humanos na Constituição Federal. Contudo, o que se observa na situação da Chapada do Apodi é a inobservância desses direitos e a omissão do Estado brasileiro, uma vez que direitos à um meio ambiente sadio, direitos à saúde, direitos à moradia digna, direito à propriedade, direitos ao trabalho digno e justo, direitos à educação e direitos culturais da população local não são assegurados pela União e entram em confronto direto com as normas, regras e princípios do Sistema Interamericano dos Direitos Humanos, tão prezados no ordenamento jurídico atual. Por fim, permite-se concluir que o Projeto de Irrigação Santa Cruz do Apodi ofende acima de todos esses direitos, o Direito Humano. Em suma, convém sim a Comissão e a Corte Interamericana exigir providências do Estado brasileiro para rever a implantação do referido programa de irrigação ou para lidar com as consequências futuras que serão acometidas em cenário regional da Chapada do Apodi potiguar, haja visto que a tarefa basilar dessas Organizações é defender e assegurar o pleno exercício dos Direitos Humanos.

Diante de um contexto de forte opressão na Chapada do Apodi, em que prevalece a ambição humana, o agronegócio, a utilização de agrotóxicos, a insustentabilidade socioambiental, a desvalorização da agricultura familiar e a exclusão social, ou seja, o capitalismo exacerbado como prioridade fundamental, enquanto os Direitos Humanos são violados e relegados a último ou nenhum plano pelo Estado brasileiro em esfera local. Nesse viés, o presente estudo visa trazer visibilidade ao “Projeto de Irrigação Santa Cruz do Apodi”, em virtude de poucos indivíduos conhecerem ou saberem ao certo acerca das consequências negativas, as quais esse projeto irá acarretar uma vez concretizado. Ademais, esse estudo foi realizado em nível regional estabelecendo uma conexão com o Direito Internacional dos Direitos Humanos, com o intuito de servir como instrumento de luta pela proteção e preservação dos Direitos Humanos no interior do Estado do Rio Grande do Norte. Direitos estes de suma importância, em razão de serem responsáveis por assegurar a dignidade da pessoa humana, sua igualdade e liberdade. Como resultado, frente à inércia governamental para lidar com tais problemáticas, defende-se a interferência da Corte Interamericana dos Direitos Humanos como resposta a referida conjuntura, cabendo-lhe zelar pela aplicação adequada das garantias fundamentais.

REFERÊNCIAS ARAUJO, Luiza Athayde de. O Direito ao Meio Ambiente sadio como um Direito Humano: uma análise da jurisprudência dos sistemas regionais de proteção de direitos humanos.

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6 CONCLUSÃO

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Disponível em: <http://www.puc-rio.br/pibic/relatorio_resumo2011/relatorios/css/dir/dir_luiza_ athayde.pdf> Acesso em: 15 nov. 2014. RAMOS, André de Carvalho. Responsabilidade Internacional por violação de direitos humanos: seus elementos, a reparação devida e sanções possíveis: teoria e prática do direito internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. RAMOS, André de Carvalho. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2013. CRETELLA JÚNIOR, J. Comentários às Leis da Desapropriação. 2ª ed., São Paulo: José Bushatsky Editor, 1976. GUERRA, Sidney. O Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos e o Controle de Convencionalidade. São Paulo: Atlas, 2013. LARANJEIRA, Raymundo. Direito Agrário Brasileiro. São Paulo: LTr, 1999. MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 5 ed. São Paulo: RT, 2011. MOTTA, Thalita Lopes. Um panorama jurisprudencial da proteção do direito humano ao meio ambiente ecologicamente equilibrado no Sistema interamericano de Direitos Humanos. Veredas do Direito, Minas Gerais, v. 06 , n. 12, 2009. Disponível em: <http://www. domhelder.edu.br/revista/index.php/veredas/article/view/15/130>. Acesso em: 16 jun 2014.

PIOVESSAN, Flávia. Direitos Humanos e o direito constitucional internacional. 13. Ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012. ABSTRACT: This article aims to bring visibility to the “Irrigation Project of Santa Cruz do Apodi,” because few people know about the negative consequences, which this project will cause when it will be implement. This program is based on the expropriation of land belonging mostly to small farmers in order to deploy irrigated areas. Therefore, throughout this study, the social and environmental impacts of “Irrigation Project of Santa Cruz do Apodi” from the perspective of violation of international human rights law and the

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PIOVESAN, Flávia. Introdução ao Sistema Interamericano de proteção dos Direitos Humanos: A Convenção Americana de Direitos Humanos. In: GOMES, Luiz Flávio; PIOVESAN, Flávia (Coord.). O Sistema Interamericano de proteção dos direitos humanos e o direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.

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judicial protection of the Inter-American System of Human will be discussed primarily. Keywords: Irrigation Project of Santa Cruz do Apodi. Environmental impacts. International human rights law. Inter-American system of human rights.

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Recebido em 21 ago. 2015. Aceito em 20 out. 2015.

UMA ANÁLISE DA MODULAÇÃO PRO FUTURO DOS EFEITOS DA DECISÃO COMO INSTRUMENTO DE MANUTENÇÃO DA ORDEM JURÍDICA Valéria Cristina Romão Oliveira*

RESUMO: A modulação pro futuro foi introduzida no ordenamento jurídico brasileiro com a edição da Lei nº 9.868/99. De acordo com este instituto, é permitido ao Supremo Tribunal Federal manipular, em situações excepcionais que envolvam segurança jurídica ou relevante interesse social, os efeitos das decisões de inconstitucionalidade das leis. Assim, o presente artigo tem o condão de analisar a necessidade deste instrumento para a efetiva manutenção da ordem jurídica brasileira. Para tanto, utiliza-se do estudo doutrinário e da pesquisa jurisprudencial. Concluindo que a comodidade desse instituto promove, hodiernamente, um processo de banalização da modulação de modo a comprometer a Supremacia Constitucional. Palavras-chave: Controle de constitucionalidade. Efeitos da decisão. Modulação pro futuro. Lei inconstitucional.

Sob a égide de uma nova ordem constitucional positivada a partir da edição da Constituição brasileira de 1988, o ordenamento jurídico pátrio, na seara do controle de constitucionalidade, passou por inúmeras inovações. Dentre as quais, merece destaque o advento da Lei nº 9.868/99, a qual dispõe sobre o processo e julgamento das ações diretas de inconstitucionalidades e das ações declaratórias de constitucionalidades. O artigo 27 da Lei em apreço constitui um poderoso instrumento para o Supremo Tribunal Federal uma vez que legitima a mitigação dos efeitos das decisões declaratórias de

* Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, cursando o 6º período.

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1 INTRODUÇÃO

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2 UM PARALELO HISTÓRICO ENTRE O DIREITO COMPARADO E O DIREITO BRASILEIRO O processo histórico evolutivo do mecanismo de controle de constitucionalidade das leis brasileiras foi, ao longo dos anos, influenciado pelos sistemas de controle adotados por outros países, de modo que a atual conformação deste instrumento revela-se como um modelo misto, híbrido, resultante da marcante presença dos sistemas norte-americano, austríaco e alemão nos diplomas constitucionais brasileiros. Com efeito, é imperioso compreender como se deu, no Brasil, a atual conjuntura do instrumento de controle de constitucionalidade de leis e atos normativos mediante breve retrospecto histórico.

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inconstitucionalidade. Neste aspecto, cabe salientar que a teoria adotada no âmbito dos efeitos das decisões era, e ainda é, a da nulidade absoluta da lei inconstitucional, de modo que todas as decisões que declarassem a inconstitucionalidade de uma determinada lei deveriam, por força dessa teoria, serem dotadas de eficácia ex tunc. No entanto, a sistemática adotada no artigo 27 proporciona a suspensão dos efeitos da decisão por determinado período de tempo, em decorrência de motivos de segurança jurídica ou de relevante interesse social. Assim, a lei, ainda que declarada inconstitucional, continuará em vigor por prazo determinado, a ser fixado pelo Supremo Tribunal Federal. Cabe pontuar, contudo, que a modulação pro futuro sempre despertou muitas discussões na área jurídica, de modo que até a sua própria constitucionalidade já foi questionada pela Ordem dos Advogados do Brasil em duas ações diretas de inconstitucionalidade. Nesse sentido, o presente artigo tem o condão de abordar o instituto da modulação sob uma nova perspectiva, a fim de verificar se, de fato, a modulação cumpre o seu papel de instrumento necessário à manutenção da ordem jurídica ou se é utilizada apenas por mera comodidade ou simples conveniência. Para tanto, em um primeiro momento buscar-se-á estabelecer um paralelo entre o processo histórico evolutivo do controle de constitucionalidade do Brasil e as influências do direito estrangeiro no ordenamento jurídico pátrio que culminaram com o advento da Lei nº 9.868/99 e, por conseguinte, da edição do artigo 27. Em seguida, será abordada a temática da modulação temporal, explorando seu conceito, requisitos de sua aplicabilidade e a problemática em torno deste instituto, para posteriormente, especificar a questão da modulação pro futuro, sob o ponto de vista doutrinário. Por fim, objetivando aliar o estudo da doutrina com o entendimento jurisprudencial pátrio, serão examinadas três ações diretas de inconstitucionalidade julgadas recentemente. Dessa forma, espera-se que o presente trabalho contribua para a formação de um senso crítico a respeito da aplicabilidade da modulação pro futuro, de modo que esse instrumento passe a ser compreendido a partir da excepcionalidade que lhe é intrínseca, e não como instrumento aplicável a toda e qualquer situação levada a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal.

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2.1 O modelo norte-americano e a inserção do controle difuso de constitucionalidade O controle de constitucionalidade, em termos de controle jurídico, somente é implantado, no Brasil, quando da Proclamação da República e da adoção da forma federativa de Governo, posto que a Constituição brasileira de 1824, fortemente influenciada pelos ideais liberais franceses, previa amplos poderes ao Poder Legislativo, deixando a seu cargo a fiscalização da constitucionalidade das leis que dele mesmo emanavam. Dessa forma, fala-se, apenas, em controle político de constitucionalidade, uma vez que o seu exercício cabia a Assembleia Geral e, não raro, ao próprio Imperador, haja vista que nessa época vigorava a presença do Poder Moderador (VAINER, 2010, p. 164). De toda sorte, se durante a vigência da Constituição brasileira de 1824 não se previa nenhum mecanismo de controle judicial de constitucionalidade, com a edição da Constituição brasileira de 1891, o controle de constitucionalidade das leis foi, finalmente, introduzido no ordenamento jurídico brasileiro, e seguindo os moldes do modelo norte-americano, acolheu o controle difuso de constitucionalidade e a teoria da nulidade da lei declarada inconstitucional (OLIVEIRA, 2008). Nas lições de Gilmar Mendes (2010, p. 1162), a influência norte-americana no Brasil possibilitou a atuação do controle difuso de constitucionalidade, atribuindo a qualquer órgão judicial, encarregado da aplicação de determinada lei a um caso concreto, o poder-dever de não aplicar essa lei nas situações em que a julgar incompatível com os ditames constitucionais. No Brasil, a influência norte-americana ainda se faz presente, posto que o controle difuso continua em vigor e a teoria da nulidade da lei declarada inconstitucional, via de regra, é aplicada produzindo efeitos ex tunc. Ademais, em sede de controle difuso de constitucionalidade das leis, a eficácia da decisão se mantém inter partes e não possui força vinculante. 2.2 O modelo austríaco e a introdução do controle concentrado de constitucionalidade

Nesse modelo, ao contrário do que acontece no controle difuso, verifica-se a necessidade de se centralizar o poder de decidir acerca da constitucionalidade das leis. A esse respeito, Hans Kelsen (2003, p. 303) afirma que o sistema norte-americano é falho uma vez que: Diferentes órgãos aplicadores da lei podem ter opiniões diferentes com respeito à constitucionalidade de uma lei e que, portanto, um órgão pode aplicar a lei por considerá-la constitucional, enquanto outro lhe negará aplicação com base na sua alegada inconstitucionalidade. A ausência de uma decisão uniforme sobre a questão da constitucionalidade de uma lei, ou seja, sobre a Constituição estar sendo violada ou não, é uma grande ameaça à própria Constituição.

Ademais, Aline Lima (2008) afirma que a centralização do poder de decidir

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Por sua vez, a Constituição brasileira de 1934 teve o condão de incluir no ordenamento jurídico pátrio a sistemática do controle concentrado de constitucionalidade, modelo proveniente do sistema austríaco e que possuía como principal expoente o jurista e filósofo Hans Kelsen.

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acerca da constitucionalidade ou não das leis, proporciona a adoção do sistema de anulação total das normas declaradas inconstitucionais dentro de um determinado ordenamento jurídico, ou seja, o exercício do controle abstrato de constitucionalidade, por não se vincular a uma situação em específico, produz efeitos para todos os casos em que a norma deveria ser aplicada e não apenas para o caso concreto. No tocante aos efeitos da declaração de inconstitucionalidade no modelo austríaco, o ato normativo é considerado válido até a sua anulação pela Corte Constitucional, nesse aspecto, a norma torna-se ineficaz para todos a partir da publicação da decisão anulatória ou apenas a partir de data estabelecida pela Corte, data esta que não pode exceder o período de dezoito meses (OLIVEIRA, 2008). No ordenamento jurídico pátrio, o modelo concentrado de constitucionalidade austríaco continua em vigor, acerca desse modelo Walber de Moura Agra (2014, p. 684) preleciona que ele pode ser denominado direto, abstrato ou concentrado. O termo direto é relativo ao julgamento da norma que se dá de forma originária pelo Supremo Tribunal Federal; já o abstrato é decorrente da sua arguição ser realizada independente de qualquer litígio concreto; e, por fim, o concentrado, de acordo com o qual o julgamento das ações diretas de controle de constitucionalidade só pode ser efetuado pelo Supremo Tribunal Federal Com relação aos efeitos das decisões proferidas nas ações diretas de inconstitucionalidade, temos que estas possuem: eficácia erga omnes; efeitos ex tunc; efeito vinculante; e, ainda, efeito repristinatório em relação à legislação. 2.3 O modelo alemão e as técnicas alternativas aos efeitos da decisão de inconstitucionalidade das leis

tes de decisão, além da declaração absoluta de nulidade da lei inconstitucional e da interpretação conforme a Constituição. Nesse sentido, foram desenvolvidas outras técnicas para a efetiva aplicação da Lei Fundamental, quais sejam: a declaração parcial de nulidade sem redução de texto; a declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade; e o apelo ao legislador (OLIVEIRA, 2008). Dentre essas alternativas criadas pelo Tribunal alemão, merece destaque a declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia de nulidade, muito utilizada nas situações em que a atribuição de efeitos ex tunc, ao ocasionar um vácuo legislativo com a retirada da lei inconstitu-

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O modelo alemão de controle de constitucionalidade teve grande influência do controle concentrado presente no sistema austríaco, contudo, no que diz respeito aos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, esse modelo adotou como regra a técnica estadunidense de declaração de nulidade absoluta da lei inconstitucional. Entretanto, a atribuição de eficácia ex tunc pelo Tribunal Constitucional Federal da Alemanha passou a ser atenuada na medida em que este Tribunal passou a adotar outras varian-

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cional do ordenamento jurídico, afasta, ainda mais, a vontade da Constituição1. No Brasil, essa preocupação com os efeitos da aplicação de eficácia ex tunc às leis declaradas inconstitucionais deu ensejo à edição da Lei nº 9.868/99, a qual trouxe a possibilidade de se buscar medidas alternativas ao efeito retroativo no âmbito de controle de constitucionalidade brasileiro.

3 A MODULAÇÃO TEMPORAL DOS EFEITOS No ordenamento jurídico pátrio, como observado anteriormente, adota-se a regra da nulidade absoluta das leis declaradas inconstitucionais, neste aspecto, todas as decisões que incorriam na decretação de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos eram dotadas de eficácia ex tunc, o que importa dizer que atribuir eficácia retroativa a todas as decisões do Supremo Tribunal Federal terminou por despertar a preocupação com as possíveis consequências que tal efeito poderia causar sob o ponto de vista prático. Ora, não se pode ignorar o fato de que declarar a inconstitucionalidade de um determinado artigo impugnado não deve ser tarefa de mera análise textual, do modo que não se pode separar a realidade fática e todas as consequências que dela decorrem. Com efeito, as leis declaradas inconstitucionais outrora regularam as mais diversas relações jurídicas e, sem sombra de dúvidas, atribuir efeitos retroativos ao tempo da edição desta lei pode, em alguns casos, gerar graves consequências para todo o ordenamento (LEITE, 2009, p. 175). Em igual entendimento, Carlos Wagner Ferreira (2007, p. 175) aduz que:

Nesses termos, a preocupação com o desfazimento súbito das mais variadas relações jurídicas já consolidadas sob a égide da lei inconstitucional, levou ao Supremo Tribunal Federal a adotar certas práticas voltadas à harmonização entre controle das leis com a realidade decorrente da declaração de inconstitucionalidade das leis (LEITE, 2009, p. 176). A edição da Lei nº 9.868/99, portanto, trouxe uma grande inovação para o cenário jurídico brasileiro, uma vez que legitimou, em seu artigo 27, a possibilidade de mitigar os efeitos retroativos das decisões do Supremo Tribunal Federal em sede de controle de constitucionalidade. Desse modo, o Tribunal estaria legitimado a atribuir efeitos ex nunc, e até mesmo, pro 1  Hesse, em sua obra “A força normativa da Constituição” descreve que essa vontade é baseada na compreensão da necessidade e do valor de uma ordem normativa inquebrantável, que proteja o Estado contra o arbítrio desmedido e disforme. Manifesta-se no entendimento de que a ordem constitucional vai além da legitimação normativa dos fatos e que sua eficácia decorre do concurso da vontade humana. Disponível em: <http://www.geocities.ws/bcentaurus/livros/h/hessenpdf.pdf>. Acesso em: 11 out. 2015.

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A lei ou o ato normativo, enquanto não considerados inconstitucionais, podem, na prática, produzir efeitos, às vezes por anos, no mundo fenomênico, gerando no espírito dos indivíduos e da própria sociedade a presunção de validez que servem de premissas para a prática de atos e negócios jurídicos, daí porque a retroatividade pode vulnerar o direito, ante a descontinuidade da disciplina legislativa e a insegurança jurídica.

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futuro nas decisões que viessem a gerar efeitos extremamente danosos a todo o ordenamento jurídico, e, sendo assim, seriam preservadas as relações advindas durante o período em que a norma estava em vigor, de modo a proteger a ordem constitucional. A leitura do artigo 27 da Lei nº 9.868/99 permite vislumbrar ao menos dois novos aspectos adicionados ao controle de constitucionalidade brasileiro, a começar pela própria legitimação da mitigação dos efeitos retroativos das decisões do Supremo Tribunal Federal e, ainda, a possibilidade de ampliar a fixação do momento de produção dos efeitos da decisão de inconstitucionalidade, uma vez que o artigo 27 foi além da previsão de eficácia ex nunc, este dispositivo, inspirado nas técnicas alternativas alemãs, permite a atribuição de eficácia pro futuro às decisões2. Nesse sentido, Gilmar Mendes (2010, p. 1446) assinala que nos termos do mencionado artigo, o Supremo Tribunal Federal poderá adotar, em tese, uma das decisões que seguem: a primeira diz respeito à declaração de inconstitucionalidade ex nunc, isto é, declarar a inconstitucionalidade somente a partir do trânsito em julgado da decisão; a segunda seria a declaração de inconstitucionalidade com efeitos pro futuro, a qual implica na declaração de inconstitucionalidade com a suspensão dos efeitos por determinado período a ser fixado na sentença; a terceira consiste na declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia da nulidade (restrição de efeitos), por meio da qual se permite a suspensão de aplicação da lei e dos processos em curso até que o legislador, dentro de prazo razoável, se manifeste acerca da situação inconstitucional. Vale ressaltar que a Lei em comento faz referência ao processo e julgamento apenas das ações diretas de inconstitucionalidade e das ações declaratórias de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal. Contudo, a Lei de nº 9.882/99, dispondo sobre a arguição de descumprimento de preceito fundamental, traz em seu artigo 113 conteúdo amplamente similar

2  Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado. 3  Art. 11. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, no processo de arguição de descumprimento de preceito fundamental, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado. 4  SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.154/DF. Pleno. Min. Rel. Sepúlveda Pertence. j. 24.09.2001. DJE 02.10.2001. 5  SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.258/DF. Pleno. Min. Rel. Sepúlveda Pertence. j. 24.09.2001. DJE 02.10.2001. 6  Art. 5º. II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.

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ao do artigo 27 da Lei nº 9.868/99. Ademais, a própria constitucionalidade do dispositivo em comento foi questionada através de duas ações diretas de inconstitucionalidades, quais sejam, as ADIs 2.1544 e 2.2585, ambas argumentavam a inconstitucionalidade de alguns artigos da Lei nº 9.868/99, dentre eles o artigo 27. Enquanto a ADIn 2.154 alegava ofensa ao artigo 5º, inciso II6 da Carta Magna, a ADIn 2.258 argumentava pela violação aos preceitos constitucionais que asseguram a Supremacia

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Constitucional, assim, apontava clara afronta ao artigo 1º da Constituição brasileira de 19887 e ao princípio da legalidade (art. 5º, I, da CF/88). Diante da imbricação parcial dos objetos impugnados por essas ADIs, os autos da ação 2.258 foram apensados aos da 2.154, contudo, apesar da natureza e relevância da matéria, a constitucionalidade do artigo 27 ainda não foi debatida pelo Supremo Tribunal Federal. Acontece que, por falta de quorum, o julgamento do referido dispositivo foi suspenso na ocasião da sessão do dia 14 de fevereiro de 20078. Já em outra sessão da plenária, realizada em 16 de agosto de 20079, após o voto do Ministro Relator Sepúlveda Pertence pela declaração de inconstitucionalidade desse artigo, a Ministra Cármen Lúcia pediu vista dos autos, de modo que, até o presente momento, não mais houve julgamento desse dispositivo.

4 REQUISITOS DE APLICABILIDADE DO ARTIGO 27 O conteúdo do artigo em apreço exprime alguns requisitos para a sua devida aplicação, sendo um deles de origem formal e o outro de origem material, como veremos a seguir.

Nas lições de Gilmar Mendes (2010, p. 1446), o artigo 27 apresenta em seu conteúdo uma restrição procedimental, ao consagrar a necessidade de um quorum especial para a declaração de inconstitucionalidade com efeitos limitados. Assim, entende-se que que o Supremo Tribunal Federal somente poderá aplicar o mencionado dispositivo quando da adesão de dois terços de seus membros. Entretanto, a Constituição brasileira de 1988 exige, em seu artigo 97, o voto da maioria absoluta dos membros do Tribunal para que se possa declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público. Nesse sentindo, parte da doutrina defende que a previsão de um quorum de dois terços dos membros do Supremo Tribunal Federal representa expressa violação aos preceitos constitucionais. Corroborando desse entendimento, Paulo Pimenta (2002, p. 100) aduz que o quorum previsto no artigo 97, necessário para declarar inconstitucional uma norma, engloba também o âmbito de validade temporal da respectiva norma. Dessa maneira, não pode se falar da sua ampliação, uma vez que o âmbito temporal constitui parte inerente da norma inconstitucional, formando com ela uma unidade incindível. Isso significa que não pode haver dissociação entre

7  Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania. 8  Nesta sessão, o julgamento do artigo 27 foi suspenso por falta de quorum, ante as ausências ocasionais da Senhora Ministra Ellen Gracie (Presidente) e Carlos Britto; e, impedido o Senhor Ministro Gilmar Mendes. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/ verProcessoAndamento.asp?incidente=1807999>. Acesso em: 12 out. 2015. 9  Decisão: após o voto do Senhor Ministro Sepúlveda Pertence (relator), que declarava, no ponto, a inconstitucionalidade do artigo 27 da lei nº 9.868/99, pediu vista dos autos a Senhora Ministra Cármen Lúcia. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=1807999>. Acesso em: 12 out. 2015.

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4.1 Requisito Formal

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o quorum de declaração e de mitigação dos efeitos da decisão. Assim sendo, o quorum para a produção da norma invalidante e, por conseguinte, de seu âmbito de validade temporal deveria ser somente o previsto constitucionalmente. Em posicionamento contrário, Ana Paula Ávila (2009, p. 58-59) argumenta que não se pode considerar a literalidade de ambos os dispositivos. Assim, o quorum previsto no artigo 97 da Constituição brasileira de 1988 aplica-se, apenas, na declaração de inconstitucionalidade de uma determinada norma ou ato do Poder Público. Até mesmo a Lei nº 9.868/99 reproduz o conteúdo do artigo 97 em seu artigo 2310, de modo que essa lei não afronta, em nada, aquela disposição constitucional. Além disso, para a autora o artigo 27 apenas se refere à modulação dos efeitos, etapa posterior à declaração de inconstitucionalidade. Portanto, o referido artigo age no sentido de reforçar, no aspecto formal, a decisão que venha a superar a regra da retroação dos efeitos da decisão. Diante desses argumentos, prevalece o entendimento de que não poderia a lei ampliar o quorum estabelecido para a declaração de inconstitucionalidade, em virtude da necessidade de se modular os efeitos da decisão. Acontece que, se a maioria absoluta dos votos foi no sentido de invalidar o ato normativo, não se percebe motivo para que essa mesma maioria não possa decidir quanto ao alcance dos efeitos de sua declaração.

Segundo Gilmar Mendes (2010, p. 1446), a regra no ordenamento jurídico brasileiro ainda é a da aplicação do princípio da nulidade da lei inconstitucional. Afastar a sua incidência implica em um rigoroso juízo de ponderação o qual, tendo fundamento no princípio da proporcionalidade, faça prevalecer a ideia de segurança jurídica ou de outro valor constitucional materializável sob a forma de interesse social relevante. Aline Lima (2008), por sua vez, destaca que a indeterminação das expressões segurança jurídica e excepcional interesse social dão margem para que o Supremo Tribunal Federal entenda ser possível aplicar o instituto da modulação temporal aos mais variados casos, posto que dificilmente uma norma constitucional não se encontrará abrangida por esses requisitos. Desse modo, se torna essencial deslindar tais termos, nesse sentido, quanto à segurança jurídica, verifica-se que a tarefa se torna menos complexa do que a elucidação do termo “excepcional interesse social”, uma vez que o princípio da segurança jurídica encontra amparo ao longo do próprio texto constitucional11. Nesse contexto, José Afonso da Silva (2009, apud VANOSSI, 1982, p. 433) destaca que a segurança jurídica pode ser entendida como o “conjunto de condições que tornam possível às

10  Art. 23. Efetuado o julgamento, proclamar-se-á a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade da disposição ou da norma impugnada se num ou noutro sentido se tiverem manifestado pelo menos seis Ministros, quer se trate de ação direta de inconstitucionalidade ou de ação declaratória de constitucionalidade. 11  Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.

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4.2 Requisitos Materiais

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pessoas o conhecimento antecipado e reflexivo das consequências diretas de seus atos e de seus fatos à luz da liberdade reconhecida”. Em síntese, a existência de uma segurança jurídica proporciona o desenvolvimento saudável das relações sociais e jurídicas entre os indivíduos, conferindo uma maior estabilidade nestas relações, sendo o Direito, as leis e códigos, o fundamento e guarida do princípio da segurança jurídica, uma vez que as consequências dos atos praticados em uma determinada sociedade devem estar previstos nestes instrumentos. Por sua vez, desvendar o significado do segundo requisito demanda maiores dificuldades, em razão da grande imprecisão que transpassa a expressão excepcional interesse social. O problema neste ponto diz respeito a definição do que seria esse interesse social de grande relevância, ou mais precisamente, a falta dela. Ocorre que esse segundo requisito compreende grande abstrativização e, portanto, tende a prejudicar o entendimento do que realmente venha a fundamentar cada caso. Nesse sentido Ana Paula Ávila (2009, p. 165-166) dispõe que: É interessante observar que o legislador pátrio preferiu o termo excepcional interesse social a excepcional interesse público. De plano é de se inferir que, se esta parte do dispositivo for considerada válida, através do seu uso deverá ter prevalência o interesse da sociedade – por suposto: a soma dos interesses individuais –, quando contraposto aos interesses do próprio Estado. [...] a modulação de efeitos somente estará autorizada na medida em que contemplar a aplicação de outras normas constitucionais que, pós justificada ponderação, se sobreporiam àquela que foi violada pela lei declarada inconstitucional. Aliás, existentes os fundamentos naquelas normas, o termo tornase até mesmo dispensável, pois assegurar a supremacia da Constituição já implicaria, naturalmente, a proteção dos efeitos. No entanto, é fato que falece ao excepcional interesse social previsão constitucional que lhe sirva de fundamento.

5 A MODULAÇÃO PRO FUTURO DOS EFEITOS DA DECISÃO A modulação temporal com efeitos prospectivos constitui uma das inovações advindas do artigo 27 da Lei nº 9.868/99. Sua aplicação no controle abstrato de constitucionalidade consubstancia-se na declaração de inconstitucionalidade com eficácia a partir de um dado momento no futuro. Isso significa dizer que a lei, ainda que seja declarada inconstitucional, continuará a vigorar no ordenamento jurídico tendo sua eficácia condicionada ao limite temporal imposto pelo Supremo Tribunal Federal.

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Desse modo, compreende-se que o excepcional interesse social não deve servir como fundamento para aplicação da modulação temporal. A imprevisibilidade que o permeia termina por entrar em choque com o princípio da segurança jurídica, justamente por não ocasionar a previsibilidade necessária à manutenção da ordem jurídica como um todo, servindo até como fundamento para atos de discricionariedade do Poder Público.

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Sobre esse limite temporal, Gilmar Mendes (2010, p. 1447) aduz que o artigo 27 da referida Lei teve o condão de garantir ao legislador um período de tempo necessário para a superação do modelo jurídico-legislativo considerado inconstitucional. Dessa forma, o Tribunal deve atentar para essa peculiaridade ao decidir o prazo de eficácia da lei declarada inconstitucional. Contudo, a atribuição de eficácia pro futuro às decisões de constitucionalidade ganha contornos problemáticos quando se verifica a inexistência de limitação temporal a ser respeitada pelo Supremo Tribunal Federal a fim de estabelecer a duração máxima que a norma inconstitucional pode continuar em vigor, ao contrário da Constituição austríaca, a qual estabelece como limite para a fixação dos efeitos o prazo de dezoito meses, contados da publicação da decisão anulatória da lei inconstitucional (OLIVEIRA, 2008). Além disso, essa modalidade de modulação, não é bem recepcionada pela doutrina. Lenio Streck (2002, p. 544-545), por exemplo, se posiciona extremamente contrário à adoção da modulação pro futuro pelo ordenamento jurídico brasileiro, visto que especificar para além do efeito ex nunc, ou para aquém do efeito ex tunc, outra data para a eficácia da decisão de pronúncia de inconstitucionalidade é conceder arbítrio ao Supremo Tribunal Federal. A possibilidade de modular para o futuro implica no enfraquecimento da força normativa da Constituição, uma vez que a manipulação decorre de fundamentos vagos e de significação ambíguas. Assim, se abre espaço para a arbitrariedade, representando expressa violação aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.

Até aqui, o presente trabalho pautou-se em aspetos doutrinários e buscou conceituar e demonstrar a problemática em torno da modulação, a qual não é nenhuma novidade no ordenamento jurídico brasileiro. Contudo, o instituto da modulação, em vigor desde o ano de 1999, passa, nos dias hodiernos, por um processo de banalização, o que revela a urgência de um novo debate sobre o tema que tenha por enfoque uma análise jurisprudencial. Desse modo, a seguir serão examinadas duas decisões12 proferidas em sede de controle abstrato de constitucionalidade. A escolha dessas ações levadas a julgamento pelo Supremo Tribunal Federal decorre, justamente, do fato de serem recentes e, desse modo demonstrarem o entendimento atual do Tribunal e como se procede a argumentação dos Ministros acerca da necessidade ou não da aplicação dos efeitos prospectivos à decisão de inconstitucionalidade das leis.

12  SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.357/DF. Pleno. Min. Rel. Ayres Britto. j. 11.04.2013. DJE 16.04.2013. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.425/DF. Pleno. Min. Rel. Ayres Britto. j. 11.04.2013. DJE 16.04.2013. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.900/DF. Pleno. Min. Rel. Teori Zavascki. j. 11.02.2015. DJE 17.04.2015.

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6 A MODULAÇÃO PRO FUTURO E A JURISPRUDÊNCIA DO STF

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6.1 Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 4.357 e 4.425 Tendo como objeto de análise o novo regime especial de pagamento de precatórios13 instituído através da Emenda Constitucional nº 62/09, essas ações declaratórias de inconstitucionalidade alegavam tanto a inconstitucionalidade formal quanto a material de diversos dispositivos dessa Emenda, a qual alterou o artigo 100 da Constituição brasileira de 1988 e acrescentou o artigo 97 ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. O julgamento dessas ADIs aconteceu em março de 2013 e foram declaradas parcialmente procedentes, contudo, nesta oportunidade não se pôde prosseguir com a votação acerca da modulação dos efeitos, haja vista a ausência de quorum. O Ministro Relator Luiz Fux, em outubro daquele mesmo ano, apresentou a proposta de modular os efeitos da decisão, apontando que: Embora a decisão da Corte reconheça a nulidade dos referidos dispositivos da EC nº 62/09, é inegável que durante quase quatro anos (i.e., ao longo dos exercícios financeiros de 2010, 2011, 2012 e do corrente ano de 2013), a sistemática juridicamente inválida entrou em vigor e surtiu efeitos, sendo aplicada por diversas unidades federativas brasileiras. Esse quadro fático denota, em primeiro lugar, a existência de situações concretas de certo modo consolidadas com o decurso do tempo. Em segundo lugar, indica que a atual programação orçamentário financeira dos Estados e dos Municípios foi realizada em um cenário jurídico distinto, em que ainda vigorava integralmente a Emenda Constitucional nº 62/09. Em consequência, tornase imperioso que esta Corte defina o alcance temporal de seu pronunciamento, razão pela qual suscito a presente questão de ordem14.

Todos sabem que sou contra a modulação, ressalto que a modulação implica tornar a Lei das leis, a Constituição Federal, um documento flexível. Estimula a edição de normas inconstitucionais – e esse estímulo ocorre no tocante àqueles que acreditam

13  Este novo regime consistia na adoção de um sistema de parcelamento de 15 anos da dívida, combinado a um regime que destina parcelas variáveis entre 1% a 2% da receita de estados e municípios para uma conta especial voltada para o pagamento de precatórios. Desses recursos, 50% seriam destinados ao pagamento por ordem cronológica, e os demais 50% destinados a um sistema que combina pagamentos por ordem crescente de valor, por meio de leilões ou em acordos diretos com credores. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/cms/ verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=233520>. Acesso em: 22 ago. 2015. 14  SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Questão de Ordem na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.357/DF. Pleno. Min. Rel. Luiz Fux. j. 25.03.2015. DJE 05.08.2015.

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No entanto, apenas em março do corrente ano a questão de ordem acerca da modulação dos efeitos foi encerrada, de modo que, por maioria dos votos, os Ministros concordaram em modular os efeitos com vistas a dar sobrevida ao regime especial de pagamento de precatórios, instituído pela Emenda Constitucional nº 62/09, por 5 (cinco) exercícios financeiros a contar de primeiro de janeiro de 2016, considerado o período suficiente para que os gestores públicos, em parceria com a sociedade civil, busquem soluções alternativas e constitucionalmente válidas para a problemática dos precatórios no Brasil. Interessante notar, nesta decisão, que somente o Ministro Marco Aurélio se opôs à aplicação da modulação, tendo suscitado que:

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na morosidade da Justiça e no famoso “jeitinho” brasileiro. [...] Não sei, Presidente, talvez esteja vivendo tempos que não são os meus tempos, mas vejo com muita preocupação a quadra vivenciada. A modulação hoje é a tônica, modulação que, para se imaginar – se é possível, constitucionalmente, imaginar-se a modulação –, deveria ser exceção, mas está barateada. [...] Voto contra, Presidente, a modulação, ressaltando, mais uma vez, que estou perplexo com o caminhar e com o conteúdo das decisões sob o ângulo desse instituto. Somos guardas da Constituição Federal, mas a ela, como o próprio povo, também estamos submetidos, sob pena de adotar aquela máxima popular “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”15.

Com base nos argumentos expostos, temos que a modulação pro futuro, entendida como instrumento de uso excepcional, não pode ser barateada, tal como afirma o Ministro Marco Aurélio, nisso não restam dúvidas. Contudo, não se nega a importância da aplicação do instituto para que as relações jurídicas, que durante quatro anos se consolidaram sob a vigência da Emenda Constitucional nº 62/09, sejam preservadas. Posto que, não modular, nesse caso, acarretaria na imposição a todos os entes devedores do pagamento imediato de suas dívidas, ou seja, uma situação de grave ameaça à segurança jurídica. Nesse aspecto, entende-se a necessidade de se aplicar um regime de transição, entretanto, como veremos a seguir, as palavras do Ministro Marco Aurélio refletem o atual posicionamento do Supremo Tribunal Federal, uma vez que se tornou constante a hipótese de aplicação da modulação, fato que demonstra uma mecanização desse instituto.

Esta ação direta de inconstitucionalidade, ao contrário do caso supra, não foi modulada, no entanto, durante a sessão da plenária acontecida em fevereiro do corrente ano, foi levantada a hipótese de sua utilização, os argumentos e motivos serão demonstrados abaixo. O Partido Social Liberal, autor da ação, alegava a inconstitucionalidade dos artigos 2º e 3º, da Lei nº 11.905/10, do Estado da Bahia, a qual fixava o teto da remuneração dos servidores do Poder Judiciário no Estado em vinte e dois mil reais. Para o Partido, a regra prevista na Lei estadual feria diversos dispositivos constitucionais, em decorrência do vício de iniciativa na edição da norma e do fato de que o subteto remuneratório para os servidores públicos estaduais deveria ser estabelecido na Constituição Estadual, e não por lei ordinária. A proposta de modular os efeitos partiu da argumentação do Ministro Luís Roberto Barroso, o qual destacou que: Eu apenas gostaria de concluir - infelizmente, nesta parte, provavelmente vou perder a adesão do Ministro Marco Aurélio -, mas, preocupado com a questão fiscal, com a questão orçamentária e com a Lei de Responsabilidade Fiscal, eu modulo a minha declaração de inconstitucionalidade para que não haja atrasados. Portanto, eu julgo

15  SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Questão de Ordem na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.357/DF. Pleno. Min. Rel. Luiz Fux. j. 25.03.2015. DJE 05.08.2015.

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6.2 Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.900

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inconstitucional o subteto que a Lei da Bahia fixou diferentemente do valor do subsídio dos Desembargadores, mas estabeleço que os efeitos deste julgamento se produzirão para frente para não gerar um passivo fiscal, que, nesta conjuntura atual dos estados, pode ser um efeito dramático16.

Entretanto, o quorum necessário para modular os efeitos não foi atingido, diante da não adesão dos Ministros Teori Zavascki (Relator), Dias Toffoli e Marco Aurélio. O Ministro Dias Toffoli alegou, em suma, que não possuía elementos necessários para tratar da modulação, por sua vez, o Ministro Marco Aurélio alegou que:

Por fim, o Ministro Relator Teori Zavascki apontou que a modulação deve ser reservada apenas aos casos excepcionais e que, no caso em comento, apenas uma pequena parcela de servidores ganhavam acima do teto, de modo que os efeitos financeiros seriam inexpressivos. Comprovando esse fato, o Advogado José Saraiva, que estava presente na sessão do pleno, apontou que cento e trinta e um servidores baianos ganhavam, até o momento da decisão, acima de vinte dois mil reais, fato que, do ponto de vista pragmático, não preenche nenhum dos dois requisitos matérias presentes no artigo 27 da Lei nº 9.868/99. Como bem se nota, não se chegou a definir qual espécie de modulação seria adotada, se apenas seriam atribuídos efeitos ex nunc, isto é, efeitos a partir do transito em julgado da sentença ou se os efeitos seriam prolongados no tempo, com a atribuição da modulação pro futuro. Contudo, o que cabe destacar, nesta decisão, é a hipótese de se tentar modular situações que não despertam o excepcional interesse social ou que não acarretem em grave insegurança jurídica. A esse respeito, Jorge Octávio Galvão (2015) afirma que as decisões acerca da limita-

16  SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.900/DF. Pleno. Min. Rel. Teori Zavascki. j. 11.02.2015. DJE 17.04.2015. 17  SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.900-DF. Pleno. Min. Rel. Teori Zavascki. j. 11.02.2015. DJE 17.04.2015.

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[...] quanto à parte final, ou seja, a modulação. Torno a ressaltar que não acredito que número substancial de servidores do Judiciário baiano – e não falo como cidadão baiano que sou – ganhe acima de vinte e dois mil reais. Presumo o que normalmente ocorre, o razoável, e, no caso, tem-se lei que se mostrou, como proclamava Rui Barbosa, írrita desde o início. Toda vez que o Supremo modula decisões, afirmando que até então a Constituição Federal esteve em stand by, não produzindo efeitos até o pronunciamento dele, Supremo, estimula as Casas Legislativas, por isso ou por aquilo, até mesmo para sanear o caixa, a editar diplomas afastados da Lei das leis, que é a Constituição Federal, a que todos, indistintamente, se submetem. Presidente, devemos – e nem isso eu faço, mas o Tribunal o faz – reservar a modulação para situações concretas em que haja repercussão da glosa – e diria, sob o ângulo social – extremada. Não se pode generalizar a modulação, sob pena de a nossa Carta deixar de ser rígida e passar a ser flexível, apostando-se, inclusive, na morosidade da Justiça, tendo-se o lançamento, no cenário jurídico normativo – não vou falar frontalmente, porque temos um voto a favor da lei –, de diplomas discrepantes da Constituição17.

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ção dos efeitos não podem ter como único esteio as consequências econômicas ou políticas da decisão, de modo que conveniências pragmáticas não devem guiar o instituto da modulação, mas juízos de moralidade política vinculados à correta interpretação do direito vigente. Isto posto, resta claro que modular os efeitos representa um louvável avanço das técnicas jurídicas brasileiras, em contrapartida revela-se como um forte instrumento atrelado à livre conveniência e oportunidade do Supremo Tribunal Federal, ou seja, se encontra, hodiernamente, reduzido a um mero instrumento de juízo político.

A partir do exposto, depreende-se que a preocupação com os efeitos nefastos que a declaração com eficácia ex tunc poderia causar no ordenamento jurídico brasileiro acarretou na edição da Lei nº 9.868/1999, a qual introduziu na legislação pátria a oportunidade de aplicação de efeitos ex nunc e pro futuro às decisões de inconstitucionalidade das leis. Contudo, é cediço que a modulação dos efeitos é instrumento de uso excepcional, devendo ser utilizada apenas nas situações em que, realmente, a eliminação da norma inconstitucional do ordenamento jurídico represente grandes danos à população. Nessa esteira, modulação pro futuro inaugura no cenário jurídico brasileiro um momento de inovação técnico-jurídica, uma vez que foi incorporada no âmbito do controle de constitucionalidade das leis brasileiras uma técnica alternativa a atribuição de eficácia retroativa às declarações de inconstitucionalidade, o que demonstra, neste aspecto, clara influência do controle de constitucionalidade alemão. Porém, a manipulação dos efeitos da decisão ao mesmo tempo em que representa um poderoso mecanismo de manutenção da justiça e da ordem social, representa, também, uma oportunidade para justificar os arbítrios e discricionariedades do Poder Público. Ora, o que se visualiza nos julgamentos atuais é a sua mera comodidade, à guisa de exemplo, o segundo caso explorado nesse trabalho é apenas um dos vários que são cotidianamente levados ao Supremo Tribunal Federal e que, em sua maioria, a proposta de modulação dos efeitos é reiteradamente levantada pelos Ministros, reduzindo-a a um mero instrumento a ser utilizado sem o necessário exame sob a ótica da proporcionalidade e da razoabilidade que lhe são inerentes. Por fim, reitera-se que as polêmicas em torno desse dispositivo, ainda que o tornem controverso, não minimizam a evolução que a modulação trouxe para a seara do controle de constitucionalidade brasileiro, posto que, quando usado corretamente, desempenha a função de verdadeiro instrumento de manutenção da ordem jurídica brasileira, uma vez que preserva os efeitos das relações do mundo fático ainda que em detrimento do texto constitucional, consagrando, no Brasil, a ideia de segurança jurídica e do interesse social.

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7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

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n. 16, p. 161-191, jul./dez. 2010. DisponĂ­vel em: <http://www.al.sp.gov.br/alesp/bibliotecadigital/obra/?id=20198>. Acesso em: 6 ago. 2015. AN ANALYSIS OF PRO FUTURE MODULATION OF THE EFFECTS OF THE DECISION AS A MAINTENANCE INSTRUMENT OF JURIDICAL ORDER

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ABSTRACT: The pro future modulation was introduced in the brazilian juridical order with the edition of the Law nÂş 9.868/99. According to this institute, the Supreme Federal Court can manipulate, in exceptional situations involving juridical security or relevant social interest, the effects of the laws declarated unconstitutional. The present article aims to analyse the need of this instrument for the effective maintenance of the brasilian juridical order. To do so, is used a doctrinal study and jurisprudential research. Concluding that the convenience of this instrument promotes, nowadays, a trivialization process of modulation wich compromises the Constitutional Supremacy. Keywords: Constitutional Control. Decisions effects. Pro future Modulation. Unconstitutional Law.

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DIREITO ROMANO E COMMON LAW Edilson Pereira Nobre Júnior1*

Há um aparente equívoco cometido, com acentuada frequência, durante as aulas das disciplinas iniciais dos cursos de ciências jurídicas, notadamente as de Introdução ao Estudo do Direito e de Teoria Geral do Direito Civil. Cuida-se da afirmação, louvada em autorizada doutrina, dentre as quais a de Renée David e Vicente Ráo, consoante a qual o sistema jurídico brasileiro, numa classificação dos ordenamentos em família, integraria o clã romano-germânico. Com efeito, o primeiro dos autores, após esclarecer que a família romano-germânica aglutina os países nos quais a ciência jurídica se formou sobre a base do direito romano, expõe:

O outro, por sua vez, assinala que, dum modo geral, o direito civil dos países latinos pode ser inserido na órbita do direito romano, reavivado pelo Código Civil francês de 1804, e, prosseguindo em sua exposição, deixa claro o seguinte: “A legislação civil da América Latina pertence, igualmente, ao grupo romano, revelando, ademais, assinalados traços da antiga legislação castelhana e, no Brasil, das velhas leis portuguesas, sem abandono, aliás, dos costumes nacionais, nem das tradições peculiares a cada país”3. A inquietação científica – sempre salutar – delineou panorama contrário. Cioso em

1

Professor da Faculdade de Direito de Recife - UFPE

*

2  Os grandes sistemas do direito contemporâneo. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 25. Tradução de Hermínio A. Carvalho. 3  O Direito e a vida dos Direitos. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. Vol. 1, p. 84.

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A família de direito romano-germânica está atualmente dispersa pelo mundo inteiro. Ultrapassando largamente as fronteiras do antigo Império Romano, ela conquistou, particularmente, toda a América Latina, uma grande parte da África, os países do Oriente próximo, o Japão e a Indonésia. Esta expansão deveu-se em parte à colonização, em parte às facilidades que, para uma recepção, foram dadas pela técnica jurídica da codificação, geralmente adotada pelos direitos românicos no século XIX2.

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4  Direito privado romano. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1999, p. 32-33. Tradução de Samuel Rodrigues e Ferdinand Hämmerle. 5  Derecho público romano y recepción del derecho romano en Europa. 5ª ed. Madri: Civitas, 2000, p. 238-239. 6  O contributo da jurisprudência no desenvolvimento do direito romano foi alvo de realce por Jean Cruet (A vida do Direito e a inutilidade das leis. Salvador: Livraria Progresso Editora, 1956, p. 23-33).

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suas percepções, Max Kaser4 esclarece que o direito romano dos períodos pré-clássico e clássico se caracterizou como um direito de juristas, cujos artífices não eram sábios alheios à realidade, mas, diversamente, sobretudo homens da vida jurídica prática que, assim, alimentavam a sua ciência na vida do Direito e, por isso, punham os seus conhecimentos primordialmente ao serviço da prática. Essa proximidade, envolvendo o direito romano e a vida, tornou possível um liame perfeito – ou quase perfeito – entre a aplicação e o aperfeiçoamento do Direito. Essa constatação indica que, a bem da verdade, a família jurídica que mais recebeu o influxo dos romanos – pelo menos no que concerne aos avanços da sua visão jurídica, indispensável para que uma civilização ostentasse, por séculos, uma posição de supremacia entre os povos – foi a do common law. Inicialmente, o direito inglês e, de conseguinte, o norte-americano. Assim o demonstra Antonio Fernández de Buján y Fernández5, ao noticiar que, dentre os séculos XIII a XVIII, a difusão do direito romano se produziu na Inglaterra pelos juízes reais, uma vez estes terem sido formados nas Universidades de Oxford e de Cambrige, onde aquele foi – e ainda o é – lecionado com destaque. E, como se não bastasse, a singular influência que o direito romano – principalmente aquele do período clássico – produziu na elaboração do common law resulta do testemunho da fecunda atividade dos pretores6 que, em contato com a realidade, implicou a formulação de princípios gerais do Direito, cujo prestígio na atualidade é incontestável e cada vez mais crescente nos sistemas jurídicos atuais, destacando-se a boa-fé objetiva, a proscrição do abuso de direito, a inadmissibilidade da fraude à lei e o não enriquecimento sem causa, dentre alguns. Por isso – e muito mais – é possível se afirmar que tal influência, da qual decorreu o enorme e atual prestígio da jurisprudência nos sistemas jurídicos inglês e norte-americano, legou a estes um ordenamento dotado de simplicidade e leveza, com o recurso ao legislador à medida do estritamente necessário. A conexão íntima dos precedentes com os princípios gerais do Direito sedimentou uma tentativa de aproximação com o ideal de justiça, verdadeira essência do Direito, sem contar haver propiciado, pela via interpretativa, um incessante desenvolvimento dos institutos jurídicos em contraposição ao evolver da sociedade.

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Revista de Filosofia do Direito, do Estado e da Sociedade w w w. rev is t af i d e s .co m


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