MARIA NA VIDA DO EDUCADOR MARISTA

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MARIA NA VIDA DO EDUCADOR MARISTA

Bases para ir com Maria para uma nova terra, atravĂŠs da pedagogia

Ir. Juan Moral

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I. A MARIOLOGIA E A PEGAGOGIA DA PRESENÇA NA PROPOSTA EDUCATIVA MARISTA

Maria presente na pedagogia marista

1.1 Presente desde as origens da Sociedade de Maria 1.2 Presente nos primeiros documentos maristas 1.3 Presente nos documentos de Jean-Claude Colin 1.4 Presente nos documentos atuais

II. VALORES MARIANOS QUE O INSTITUTO TRANSMITIU ATRAVÉS DA PEDAGOGIA DA PRESENÇA

A Presença do educador inspira-se nas atitudes de Maria

2.1 A pedagogia como reflexo da vida marista 2.2 O educador marista: uma vida dedicada a Cristo e a Maria 2.3 O educador marista, moldado pela mariologia vivida na Instituição 2.4 O educador marista sente-se como instrumento da misericórdia de Deus

III. ASSIMILAR E TRANSMITIR OS VALORES MARIANOS

MEDIANTE

A

PEDAGOGIA DA PRESENÇA

Um novo estilo de educar, a semelhança de Maria

Conceitos prévios A presença como uma vida que se dá

3.1 Ao estilo de Maria e seguindo as pegadas de M. Champagnat 3.2 Seguir Jesus no estilo de Maria como educadores maristas 3.3 Transmitir às crianças e jovens o rosto materno de Maria 3.4 O educador marista propõe um estilo peculiar de educar

IV Conclusões e questões 2


APRESENTAÇÃO A primeira justificativa que gostaria de trazer, depois de minha saudação ao grupo, seria explicar o sentido geral da contribuição. Em face das grandes conferências, com sentido completo em seus conteúdos e em sua apresentação e consequências, este quer ser apenas uma comunicação, uma colaboração, como pode haver várias outras, semelhantes e complementares a esse grande tema marista. Dividi esta contribuição em quatro partes, que demandam uma unidade lógica entre elas. Vinculei a mariologia, sobre a qual quero falar, à pedagogia da presença do educador marista. No percurso da história da Instituição e em todas as suas dimensões e conteúdos, podemos vê-los conectados. Por isso considero que esse é o primeiro aspecto da reflexão. A segunda parte, dedico-a aos valores marianos transmitidos. De novo, apresento-os simplesmente como admitidos, sem procurar demonstrar nem seus conteúdos nem suas bases antropológicas ou teológicas. A relação com a pedagogia do educador tem outras derivações afetivas e psicológicas, humanas e religiosas, aplicáveis à vida e ao apostolado do educador marista. O terceiro ponto de apoio é consequência dos anteriores: a transmissão dos valores assimilados. O distinto ou o especial é que o educador os transmite com sua presença, quando sua presença é significativa e é, como veremos, biográfica, descritiva da vida, no estilo de Maria e de Marcelino Champagnat. As consequências propostas como conclusão não têm outra finalidade que facilitar o diálogo que pode seguir a apresentação. Os três aspectos fundamentais da reflexão são concebidos com o sistema dinâmico de ver, observar algumas realidades presentes, neste caso atos em que Maria se mostra Mãe, Senhora, Primeira Superiora, irmã, companheira no caminho da fé. Esses fatos, comprendemo-los; sobre eles refletimos; contemplamo-los como pontos fortes e dinâmicos, na vida do educador e admitimo-los como base de suas convicções, crenças e vicissitudes. Quando chegamos a essa situação, que não é nada dogmática, ao contrário, sempre atuante na força das ideias que impulsionam a ação na vida normal, então tratamos de transmiti-los. Comunicamo-los. Ainda nisso pensamos num estilo marista e numa interpretação de nosso sentir, seguindo as pegadas de Marcelino Champagnat e dos primeiros Irmãos. Em todas as situações históricas vividas pelos educadores maristas, houve uma busca de relação com a Igreja e um desejo de encontrar seu lugar dentro dela.

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I . A MARIOLOGIA E A PEDAGOGIA DA PRESENÇA NA PROPOSTA EDUCATIVA MARISTA Maria presente na pedagogia marista 1.1

Presente desde as origens da Sociedade de Maria

Entramos, com curiosidade e interesse, no relato histórico da vida do Seminário de Santo Irineu, de Lyon.1 Entre as duas centenas de jovens pululam diferentes tendências religiosas, políticas e sociais. Às vezes, tinha-se a impressão de se estar em um possível canteiro de pulsões antropológicas de futuro imprevisível. Em 12 de julho de 1816, uma dúzia de seminaristas maiores, recém-ordenados, sobem ao Santuário de N. S. de Fourvière e, aos pés da Virgem morena, comprometem-se a fundar uma Sociedade que levaria por lema o nome de Maria. Estavam entre eles Jean Claude Courveille, Jean Claude Colin, Marcellin Champagnat. Nesse tempo foram lançados os primeiros alicerces da Sociedade de Maria. Alguns seminaristas, à frente dos quais se achavam Colin e Champagnat, 2 se reuniam frequentemente para animar-se na piedade e no exercício das virtudes sacerdotais. O zelo pela salvação das almas e a procura dos meios para consegui-lo eram o assunto mais comum de seus encontros. Da comunicação recíproca dos sentimentos, surgiu a idéia da fundação de uma sociedade de padres, cuja finalidade principal seria trabalhar na salvação das almas, através das missões3 e da educação da juventude. A devoção especial desse grupo de elite para com a Santíssima Virgem levou-os a colocar a nova Sociedade sob o patrocínio da Mãe de Deus, denominando-a Sociedade de Maria.4 Após planejarem juntos o piedoso intento e haverem-no recomendado demoradamente a Deus e àquela que escolhiam para ser de maneira a especial mãe e padroeira, comunicaram o projeto ao Pe. Cholleton, diretor do seminário maior.5 O venerando diretor, conhecendo-lhes a piedade e a virtude, aplaudiu e aprovou o projeto,6 estimulando-os a que o levassem avante. Além disso, ele mesmo quis participar do grupo, pôs-se à frente e, de tempos em tempos, reunia-os no seu escritório, para dirigi-los e animá-los e com eles traçar os planos da nova

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Os seminaristas maiores no Seminário de Santo Irineu eram 252 no ano escolar de 1815-1816, distribuídos da seguinte maneira: 31 no quarto ano, 75 no terceiro, 115 no segundo e 30 no primeiro (OM. 1, p. 207-209). 2 Ir. João Batista cita aqui apenas os dois principais responsáveis pela fundação da Sociedade de Maria: Colin e Champagnat, silenciando completamente sobre o papel de Courveille. 3 Isto será, especialmente, a finalidade dos padres, a exemplo de S. João Francisco Régis, cuja biografia foi lida durante as refeições, em 1815 (OM 2, doc. 591 [7], p. 398). 4 O Pe. Colin dirá explicitamente em 1869, a respeito do nome da Sociedade de Maria: “Este nome vem do Pe. Courveille” (OM 3, doc. 819 [6a], p. 218). Courveille, por seu turno, dizia que tivera a inspiração em 15 de outubro de 1812, em Puy (cf. OM 2, doc. 718 [5], p. 580). 5 Pe. Cholleton, LPC 2, p. 133-135. 6 As primeiras comunicações de Courveille a Déclas remontam de fato à época dos Cem Dias (março-junho de 1815) (OM 2, doc. 591). Porém, a difusão do projeto só aconteceu na entrada das aulas (novembro de 1815). Ir. João Batista resume, num parágrafo, a elaboração de um projeto que se estendeu, lentamente, pelo espaço de dois anos (OM 2, doc. 718 [16] e doc. 750 [2]).

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associação. Numa dessas sessões, combinaram fazer juntos uma peregrinação a Fourvière, a fim de colocar aos pés de Maria o plano da nova associação.7 Os jovens seminaristas, o Pe. Cholleton à frente, subiram, pois, ao santuário 8 de Maria, confiaram a seu coração maternal o piedoso intento, pedindo-lhe que o abençoasse, se fosse para a glória de seu divino Filho. Realmente, a divina Mãe abençoou-o. E, com essa bênção, a nova sociedade, nascida sob seus auspícios e no seu santuário, cresceu e viu seus filhos multiplicarem-se9 como as estrelas10 do firmamento. Ainda que Ir. João Batista deixe no olvido J. C. Courveille, há dois dados que demonstram como as origens da Sociedade têm a ver com ele. Jean Claude Courveille foi o encarregado da celebração eucarística aos pés de Maria de Fourvière. De suas mãos comungaram todos os assistentes no ato em torno à Virgem. Segundo P. Mayet,12 ele foi o primeiro a manifestar pública e abertamente o projeto de uma sociedade mariana, certamente num estilo carismático e profético. Os fatos remontam a 1812. Não é uma distância temporal inverificável, que deixasse na indiferença ou na dúvida os amigos e fundadores da Sociedade. O relato é pessoal e apenas Jean Claude participa como beneficiado e como eleito para escutar a inspiração. Este seria o relato sustentado ante seus companheiros de seminário: Em 1812, quando renovava sua promessa a Maria, ao pé do mesmo altar, “ele ouviu, não com os ouvidos do corpo, mas com os do coração, interiormente, mas de forma muito clara: Isto é o que desejo. Assim como sempre imitei em tudo meu divino Filho e o segui até o Calvário, permanecendo de pé junto à cruz quando ele dava sua vida para a salvação dos homens, agora que estou na glória com ele, imito-o naquilo que faz na terra por sua Igreja, da qual sou protetora e como um exército poderoso para a defesa e a salvação das almas. Assim como nos tempos de uma horrorosa heresia, que devia derrubar toda a Europa, suscitou seu servo Inácio para formar uma sociedade que levou seu nome, chamando-se Sociedade de Jesus, e aos que a constituíam, Jesuítas, para combater contra o inferno que se desencadeava contra a Igreja de meu divino Filho, assim também quero, e é a vontade de meu adorável Filho, que nestes últimos tempos de impiedade e incredulidade haja também uma sociedade consagrada a mim, que leve meu nome e que se chame Sociedade de Maria, e que os que tomem parte dela se chamem também Maristas, para combater contra o inferno... 11 A pesar das recordações evocadas pela conduta de Courveille, os membros da Sociedade de Maria estavam conscientes dessa origem e dessa declaração inicial. Apesar da linguagem um tanto militar, próprio da época, (este relato) se conservou pela presença mesma de Maria eficiente e decisiva em muitas dimensões.

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O texto latino encontra-se em OME, doc. 15, p. 61-62. Ver a tradução no fim do capítulo, Anexo 3. Aquilo que se chama hoje a capela de Fourvière. 9 As estatísticas relativas aos Irmãos Maristas para o ano da publicação da biografia do Pe. Champagnat (1856) dão 1.536 mestres religiosos, ensinando a 50.000 alunos em 312 escolas (cf. CSG II, p. 289). 10 Gn 22,17. 11 Palavras do Pe. Courveille, OM 718, 1-21. Edwin L. KEEL, SM. Textos para el estudio de la espiritualidad marista, Roma 1993, p. 3s. 8

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A comparação com a Companhia de Jesus era um tanto problemática naquele momento, mas é sinal de uma decisão firme e audaz.12 Há uma dupla comparação vinculante: “assim como sempre imitei em tudo meu divino Filho” e, mais adiante, “assim como nos tempos de uma horrorosa heresia, que devia derrubar toda a Europa, suscitou a seu servo Inácio...” Os Maristas da nova Sociedade comprometiam-se a imitar Maria na radicalidade evangélica do seguimento de Jesus. Ao desempenhar o papel que Ela desempenhou em relação à Igreja, os Maristas comprometiam-se igualmente a ser novos Inácio de Loyola, empunhando as armas de combate pelo Reino e pela Igreja. O nome da sociedade, Sociedade de Maria, e o estandarte de proclamação ficam bem definidos nessas palavras e no relato das origens maristas. 1.2 Presente nos primeiros documentos maristas Certamente pode ser um tanto pretensioso declarar primeiros documentos maristas os que agora vamos trazer, mas é verdade que o são em razão das coordenadas que usamos nesta intervenção: o tempo em que são produzidos, na época da reunião em N. S. de Fourvière, e o conteúdo dos mesmos, Maria como centro e motivo principal. A. Documento de compromisso dos primeiros aspirantes a membros da Sociedade de Maria Consta da lista dos diáconos admitidos à ordenação presbiteral, em 22 de julho de 1816, pelo cardeal Fesh.13 O fato de que doze deles formaram uma associação e subiram a Fourvière para comprometer-se é um ato extraordinário em favor de seu propósito de levar adiante algum objetivo definitivo pelo Reino. Além de Marcelino, Collin e Courveille, compõem a lista Estêvão Terraillon, Estêvão Declas, Felipe Janvier, Antônio Gillibert, João Batista Seyve, João Pedro Perrault Maynand, Tomás Jacob, Pedro Colin, irmão de Jean Claude, e Mauricio Charles.14 Vamos diretamente ao texto do compromisso de fundação da Sociedade de Maria: 23 DE JULHO DE 1816 OS PRIMEIROS ASPIRANTES MARISTAS – FORMULÁRIO DE ADESÃO Os abaixo assinados, desejando contribuir para a maior glória de Deus e a maior honra de Maria, mãe do Senhor Jesus, afirmamos e manifestamos nossa intenção sincera e nossa firme vontade de nos consagrar, desde que seja possível, a formar a muito piedosa congregação dos Maristas. Por isso, mediante esta Ata e nossa assinatura, consagramos irrevogavelmente, na medida de nossas possibilidades, nós mesmos e nossos bens à Sociedade da Santa Virgem. Isso fazemos não como se fôssemos crianças e de modo leviano, nem com finalidades humanas, nem esperando algum ganho temporal, mas com seriedade e maturidade, depois de ter pedido conselho e de ter tudo pesado 12

Em vários países era recusada e, em alguns, pedia-se sua dissolução ou abandono do próprio país. Cf. OM, 49 são 52 diáconos, o 9° é Marcelino Champagnat, o 13º Jean Claude Colin, o 15º Jean Claude Courveille. 14 Eram possivelmente 15 ou 16 os que pertenciam ao grupo. Deles, 12 estiveram no compromisso de Fourvière. 13

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diante de Deus, unicamente em vista da maior glória de Deus e da maior honra de Maria, mãe do Senhor Jesus. Estamos dispostos a aceitar todas as dificuldades, trabalhos, obstáculos e, se um dia for necessário, as torturas, visto que tudo podemos naquele que nos conforta, Cristo Jesus. A ele prometemos igualmente fidelidade no seio de nossa santa mãe, a Igreja católica romana, unindo-nos com todas as forças a seu chefe supremo, o pontífice romano, assim como ao reverendíssimo bispo, nosso ordinário, de modo a sermos bons servidores de Jesus Cristo, nutridos com as palavras da fé e com a bela doutrina que, com sua graça, seguimos.15 O que é sublinhado e assegurado, nessa ata fundacional da Sociedade, tem a ver com alguns aspectos de tipo formal e de formulário; porém, há outras dimensões autenticamente pessoais e grupais, que interessam a qualquer historiador e psicólogo.  A dimensão de consagração e de compromisso, irrevogável e radical, total, em todas as dimensões pessoais e de comunidade, pessoas e bens;  A presença de Maria Mãe do Senhor Jesus;  A fé, o serviço e a aceitação da Igreja, como lugar onde se encontram à disposição. B. Consagração pessoal a Maria Recuperamos dos Annales do Frère Avit um documento precioso que nos aproxima ainda mais às origens e que nos vincula melhor com essa fonte original da presença de Maria, no começo de nossa vida marista. Trata-se do texto AA 033 , 1816-07-24,16 catalogado pelo Ir. Paul Sester como CH. 171 002. Doc. O próprio Frère Avit o introduz com as seguintes palavras: “Antes de sair de Lyon, o presbítero Champagnat, que ia encarregar-se apenas da obra dos Irmãos, não se esquece de ir consagrar sua pessoa e seu projeto, mais uma vez, àquela que costumava chamar de seu Recurso Habitual. Faz a consagração nestes termos:…” Também Ir. João Batista Furet se dá conta desse acontecimento na Vida, no final do capítulo III, da primeira parte: “Antes de sair de Lião, o Pe. Champagnat dirigiu-se a Nossa Senhora de Fourvière para consagrar-se novamente à Santíssima Virgem e colocar seu ministério sob a proteção de Maria.17 Após a santa missa, prostrado aos pés da imagem de Maria, rezou este ato de consagração,18 por ele redigido e que aqui reproduzimos textualmente:

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[OM 50] E. Keel, p. 795. Champagnat é ordenado presbítero em 22 de julho de 1816, com 27 anos e dois meses. Chegará a La Valla, seu primeiro destino apostólico, em 12 de agosto do mesmo ano. 17 Trata-se da Virgem negra, localizada acima do altar. Essa estátua substituíra, no começo do século XVII, a antiga, queimada durante o cerco de Lião, em 1562, pelos homens do barão de Adrets. 18 Os originais desse texto não foram encontrados. 16

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Virgem Santa, tesouro das misericórdias e canal das graças, a vós levanto as mãos suplicantes. Instantemente, vos peço me tomeis sob vossa proteção e intercedais por mim junto ao vosso adorável Filho, a fim de que me conceda as graças necessárias para me tornar digno ministro do altar. Com o vosso amparo quero trabalhar na salvação das almas. Nada posso, ó Mãe de misericórdia! Nada posso, bem o sei; mas vós podeis tudo, por vossas orações; Virgem Santa, deposito em vós toda minha confiança. Ofereço-vos, entrego e consagro minha pessoa, trabalhos e todas as ações de minha vida.” Maria em tudo e para tudo. Maria Mãe protetora. A obra de Marcelino é obra de Maria desde a origem. C. Documento pelo qual se reconhece Maria como Fundadora e Primeira Superiora da Sociedade Ainda que encontremos as ideias fundamentais em documentos bem anteriores a este, a declaração tem origem nos inícios e é fundante da nossa doutrina mariana. O documento que indicamos é uma cópia, cujo original está nos arquivos dos Padres Maristas (APM 322.381). Esta é a introdução essencial: DECLARAÇÃO QUE RECONHECE MARIA COMO FUNDADORA E PRIMEIRA SUPERIORA DA SM É Maria, de fato, quem inspirou o projeto desta pequena Sociedade e que lhe deu seu nome e seu espírito. É Maria quem escolheu nosso venerável e bem amado Padre Colin como instrumento de todas as misericórdias para conosco e indicoulhe os primeiros padres que deveriam, com ele, lançar os fundamentos dessa humilde congregação religiosa.19 1.3 Presente nos documentos do Pe. Colin Escolhemos quatro documentos desiguais em extensão e, talvez, em importância e consistência, mas todos eles com o signo da presença de Maria e com o frescor do original e primigênio. Parece-nos descobrir nesses textos as pegadas intactas de Maria na Sociedade Marista e, por conseguinte, nas raízes da espiritualidade mariana. Apresentamos os documentos e perguntamo-nos por seu conteúdo: que dizem de si mesmos, que significaram na espiritualidade marista, que consequências trazem para hoje. A. Objetivo e finalidade da Sociedade de Maria O objetivo geral da Sociedade é contribuir da melhor maneira possível, tanto com suas orações como com seus esforços, para a conversão dos pecadores e a perseverança dos justos, e recolher, por assim dizer, todos os membros de Cristo, qualquer que seja sua idade, sexo ou condição, debaixo da proteção da

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Doc. 847,3 OM.

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Bem-aventurada Virgem Maria Imaculada, Mãe de Deus, de reanimar sua fé e sua piedade e de nutri-los com a doutrina da Igreja romana. De tal maneira que, ao final dos tempos como ao início, todos os fiéis sejam, com a ajuda de Deus, um só coração e uma só alma no seio da mesma Igreja romana e que todos, caminhando de maneira digna de Deus e sob a condução de Maria, possam alcançar a vida eterna. Por isso o ingresso na Sociedade é aberto mesmo aos leigos que vivem no mundo dentro da Confraria ou Terceira Ordem da Virgem Maria. Dezembro, 1833, Sumarium.20 A ideia que Champagnat deixa manifesta no Testamento Espiritual é que os Irmãos e os Padres Maristas formam uma única e mesma Sociedade, cujo protótipo deve evocar os primeiros cristãos da comunidade de Jerusalém, que tinham um só coração e uma só alma (At 4,2). Palavras semelhantes saem dos lábios de Maria Chavoin, fundadora das Irmãs Maristas. Não estranha, portanto, que no Sumarium que Colin apresenta em Roma, em 1833, contenha lembranças que circularam entre todos eles, em tantos momentos de comunicação. No ideal que a Igreja de Jerusalém apresenta para toda a comunidade cristã e religiosa não haveria coisas especiais, não fosse pelo fato de Colin e os fundadores da Sociedade apresentarem Maria como a guia que os precede no caminho. Sem ir tão longe, na busca de textos paralelos, podemos encontrá-los facilmente em nossos dias. Este, de João Paulo II, é um exemplo: Por que, então, não olhar todos conjuntamente para a nossa Mãe comum, que intercede pela unidade da família de Deus e que a todos "precede", à frente do longo cortejo das testemunhas da fé no único Senhor, o Filho de Deus, concebido no seu seio virginal por obra do Espírito Santo? B. Um novo rosto da Igreja Coragem, coragem! Trabalhemos, mas sempre “ignoti et occulti”. Deixemos aqueles que se fundamentam na eloquência unicamente humana. A Sociedade deve recomeçar uma nova Igreja. Não espero servir-me dessa expressão no sentido literal que ela tem, isso seria ímpio, mas de alguma maneira, sim, devemos recomeçar uma nova Igreja.21 O texto selecionado forma parte de uma contextualização mais ampla que Pe. Mayet nos conservou sobre um diálogo ocorrido na Casa mãe de Puylat, em Lyon. Com aquela prudente precaução, não pretendo empregar essa expressão, porém a ideia está lançada: uma nova Igreja, uma nova forma de ver a Igreja, uma forma de mostrar a Igreja com um novo rosto, purificada da avareza, do desejo de poder, do orgulho e da ambição. Igreja com as mãos vazias: simples e direta. Os maristas são os primeiros a dar um passo adiante com simplicidade de formas, com maneiras evangélicas de viver e de apresentar a verdade.

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AT 1,8, 109. E. Keel, p. 50. Palestra no refeitório, 27 de setembro de 1846. OM 632, 1. E. Keel, p. 63.

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C. Maria é o modelo, cujos passos é preciso seguir Por isso, seguindo os passos de sua Mãe, sejam, antes de tudo, alheios ao espírito do mundo. Em outras palavras, completamente vazios de qualquer cobiça dos bens terrenos e de toda preocupação pessoal. Esforcem-se para renunciar completamente a si mesmos em tudo, buscando não os próprios interesses, mas unicamente os de Cristo e de Maria; considerando-se como exilados e viajantes sobre a terra, como servos inúteis e os desprezados do mundo; usando das coisas deste mundo como se não as usassem; fugindo cuidadosamente, em suas casas e habitações, em sua maneira de viver e em todas as relações com os demais homens, de tudo o que poderia mostrar-se fausto, ostentação ou apetite de consideração humana; preferindo ser ignorados e encontrar-se abaixo de todos; sem artimanhas nem duplicidade. Em uma palavra: indo por todas as partes com tanta pobreza, humildade, modéstia, simplicidade de coração e indiferença a tudo o que seja vaidade e ambição humana, unindo de tal forma o amor à solidão, ao silêncio e a prática das virtudes ocultas, com obras de zelo que, sem prejuízo do dever com que lhes cabe exercer os diferentes ministérios úteis à salvação das almas, apareçam, contudo, desconhecidos e como ocultos neste mundo. Que todos se apeguem solidamente a esse espírito, sabendo que é para toda a Sociedade como que seu princípio e fundamento.22 Ressonâncias na Sociedade de Maria Marcelino Champagnat se faz eco do sentir dessa espiritualidade:  ao dar a seus Irmãos o nome de Irmãozinhos de Maria e, ao declarar sua finalidade fundacional, faz algumas declarações originais;23  quando fala de Maria como modelo de vida dos Irmãos, nosso Recurso Habitual;24  nas recomendações finais do testamento espiritual;25  na maneira de recorrer a Maria para resolver os problemas;26  nas cartas de Marie Françoise Perroton a Pe. Julien Eymard.27 Poderíamos encontrar a interpretação hodierna nestas frases, apoiadas nos textos evangélicos: Como Maria da Anunciação (Lc 1,26-38), estamos abertos à ação de Deus nas nossas vidas, cientes de que para Ele nada é impossível. Apesar das nossas dúvidas, temores e sentimentos de impotência, aceitamos na fé o convite de Deus para participar do trabalho de propagar a Boa-nova. Em uma época de autossuficiência, abrimos espaço para Deus.

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Constituições da Sociedade de Maria, n. 50. Texto latino conforme o texto aprovado pelo Capítulo geral de 1873. Carta n. 34. 24 Vida p. 322. 25 Vida p. 224. 26 Vida p. 314. 27 Carta de 2 de agosto de 1846 (NP.I, 13). 23

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Como Maria da Visitação (Lc 1,39-45), saímos da nossa comunhão com o Senhor cheios de fé e esperança. Vamos ao encontro das crianças e dos jovens, lá onde necessitam de nós, oferecendo-lhes o nosso amor. Em uma época de individualismo, damos prioridade ao outro. Como Maria do Magnificat (Lc 1,46-55), damos graças a Deus pelo dom da vida. Em uma época em que a moral pública deixa a desejar, ficamos do lado dos pequenos. Como Maria de Belém (Lc 2,1-20), fazemos Jesus nascer nos corações dos outros. Estamos dispostos a realizá-lo nos lugares mais inóspitos. Em uma época de consumismo, vivemos com simplicidade. Como Maria de Nazaré (Lc 2,39-52), educamos e orientamos crianças e jovens; zelamos por eles, desenvolvendo o conhecimento e o amor de Deus que age nas suas vidas, e o respeito por tudo o que Ele criou. Como Maria, aceitamo-los como eles são, mesmo quando não compreendemos plenamente as suas decisões. Em uma época de busca do prazer pessoal, damos o nosso amor com generosidade. Como Maria de Caná (Jo 2,1-11), somos sensíveis às necessidades do próximo. Convidamos as crianças e os jovens a fazer tudo o que Jesus lhes disser. Em uma época de egocentrismo, somos sensíveis ao outro. Como Maria do Calvário (Jo 19,25-27), reconhecemos Jesus no rosto dos sofredores e dos oprimidos, padecendo com um coração de mãe e acreditando neles com paixão materna. Em uma época em que a esperança luta com o desespero, estamos do lado dos aflitos e moribundos. Como Maria do Cenáculo (At 1,12; 2,4), construímos comunidade em torno de nós. Em uma época de crise espiritual, testemunhamos a fé em uma nova Igreja, plena do Espírito Santo.28 O sentido dessas ressonâncias pode seguir uma destas três orientações: 1. Ecclesia semper reformanda, quer dizer, o desejo de aperfeiçoar, de melhorar, ou de ajudar tudo isso. 2. Os desejos de formar uma nova Igreja em suas manifestações, em suas atuações em geral ou nas de alguns de seus membros. 3. Encontrar o lugar adequado na Igreja, como estrutura, como instituição, para melhor servi-la. Para ser colaboradores mais eficazes. Uma das duas formulações, ou talvez as três juntas, parecem indicar a perspectiva em que querem trabalhar os fundadores. Não querem destruir, nem pretender separar-se, ausentar-se ou criar outra Igreja, ao contrário da aceitação obediente das decisões da autoridade foi sempre norma inicial, não obstante sempre haja o desejo de reformar ou adequar, emendar e corrigir, modificando de forma a mostrar melhor um rosto ao serviço dos fiéis. A nascente Sociedade de Maria escolhe um estilo de simplicidade, serviço e proximidade das pessoas, no estilo de Maria de Nazaré, em Belém, no Calvário.

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Instituto dos Irmãos Maristas, Missão Educativa Marista. 2. Ed. São Paulo: SIMAR, 2000, p. 76-77.

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1.4 Presente nos documentos atuais: somos um Instituto mariano Vimos nos documentos originais que, em Marcelino, a relação com Maria foi um progressivo crescer e amadurecer em sua vida espiritual.29 A relação de Marcelino com Maria foi crescendo conforme o passar dos anos, ainda que ela tenha sido desde sempre uma presença ativa na missão e espiritualidade de nosso fundador, que estava acostumado a recorrer à Virgem com a mesma espontaneidade com que uma criança recorre à sua mãe. A essa afirmação, Ir. S. Sammon acrescenta outras três, bem contundentes: Primeiro, Marcelino considerava a presunção e a autopromoção insuportáveis. Logo, podemos deduzir que ele demonstrava em seus contatos com a Mãe de Jesus esse mesmo jeito simples e franco, tão próprio dele em outras ocasiões. Segundo, aberto ao pensamento religioso de seu tempo, o Fundador estava convencido de que a Mãe de Jesus era uma intercessora diante de Deus. As palavras do ”Lembrai-vos” e do “Sub tuum praesidium” habitavam sua mente e coração. Referências à misericórdia e à compaixão também frequentavam suas alocuções sobre Maria. Terceiro, Marcelino viveu numa época que muitos descrevem como a “idade de ouro” para os devotos de Maria. (...) Privilégios de toda ordem foram atribuídos a Maria por seu papel de Mãe de Jesus. Novas formas de devoção floresceram e mais dias santificados e títulos foram criados em sua honra.30 Os superiores gerais sucessivos captaram esse carisma mariano, viveram-no e transmitiram-no às gerações sucessivas. Quase todos escreveram circulares específicas sobre Maria. Essa dimensão mariana foi se adaptando às diferentes circunstâncias e correntes de espiritualidade:  Ir. Francisco: Sobre o dogma da Imaculada;  Ir. Luis Maria: Sobre a devoção a Maria; Meditações sobre a Visitação; Sobre as aparições de Pontmain;  Ir. Diógenes: Devoção a Maria na educação; Maria modelo de pobreza, castidade, modéstia e obediência;  Ir. Leônidas: Maior confiança na Santíssima Virgem; somos Irmãozinhos de Maria;  Ir. Basílio Rueda: Um novo espaço para Maria (Qual tem sido nossa experiência mariana até agora? Para onde o Concílio nos convida a caminhar?);  XVI Capítulo Geral (1968): A Santíssima Virgem na Vida do Irmão Marista;  Ir. Charles Howard: Espiritualidade Apostólica Marista, na qual cunha a expressão “Maria tinha os pés repletos do pó da estrada”;  XX Capítulo Geral (2001): Escolhamos a vida, houve grande discernimento sobre os cinco apelos, e... onde se encontra Maria em tudo isso?  Ir. Seán Sammon: Um desafio: redescobrir Maria

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Textos e esquemas que serviram ao Ir. José Mª Ferre em suas conferências em El Escorial, em 2011. Seán Sammon, Circular “Em seus braços ou em seu coração”. Vol. XXXI, n. 5, 31 de maio de 2009, p. 24.

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Algumas congregações foram fundadas durante o século passado em torno do culto a Maria, tendo um lugar central na espiritualidade da congregação. No entanto, a imagem mariana do século XIX serve bem pouco hoje para as mesmas congregações desenvolverem uma espiritualidade que expresse sua identidade religiosa e seus anelos espirituais. É necessário readaptar a figura de Maria às novas realidades.31 Um pouco antes do XXI Capítulo geral, Seán ofereceu-nos uma maravilhosa Circular: Em seus braços ou em seu coração. Nela, chama Maria fonte de renovação. Retiramos daí alguns de seus pensamentos e questões: De início, podemos interrogar-nos se há, atualmente, prova suficiente para garantir que continuamos a ser um Instituto Mariano. E a suficiência da prova não se encontra na contabilização das orações marianas, mas, sim, no fato de nosso amor por essa mulher ser inquestionável e, acima de tudo, de nossa devoção a ela ser tão visível quanto foi a do Fundador. Que significa Maria hoje para nós, membros do Instituto que leva seu nome e cidadãos do século XXI? Iletrada, pobre e destituída de poder, noiva, e morando num obscuro vilarejo de um país ocupado... Mas que soube escutar atentamente com um coração generoso e que se comprometeu... Maria é a discípula, a primeira missionária, a mulher itinerante, que viveu em sua própria carne a experiência da mudança, da transformação, a mulher ativa e contemplativa...32 Maria teria que ser o centro de nossas vidas, porém, quão difícil é chegar a esse centro sem nos deixarmos guiar e inspirar por ela! Necessitamos no Instituto de uma nova aproximação de Maria... Essa mulher decidida e forte, tão significativa para Marcelino, ocupa um lugar privilegiado em nossa vida e em nossa espiritualidade. Temos que desenvolver uma nova linguagem para falar de Maria. Necessitamos uma mariologia adaptada a nossos dias. Maria seguiu um itinerário autenticamente humano. Negar essa realidade ou pretender tirar Maria dessa realidade humana seria injusto para com ela e para conosco mesmos. Essa mulher nunca foi nem será jamais divina.33  XXI Capítulo Geral: Com Maria, ide depressa para uma nova terra Mas como sucedeu a Maria na Anunciação, Deus saiu ao nosso encontro e nos surpreendeu. Convidou-nos a sair para uma nova terra. (...) Descobrimos que em nossa pequenez está a força de Deus, e que em nossa debilidade está a mão carinhosa do Deus amor. Em nossa pequenez e debilidade nos perguntamos: Como poderá ser isso, neste momento de nossa história?34 Existe uma espécie de tarefa inacabada ou por realizar.

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Idem cf. p. 42. Ibidem, p. 43. 33 Idem, p. 45. 34 Documento do XXI Capítulo geral, p. 16. 32

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Redescobrir o lugar de Maria Parece estranho, mas é assim:  o Evangelho não dedica nenhum capítulo completo a Maria;  o Concílio não publicou nenhum documento específico sobre Maria;  nossas Constituições atuais não têm nenhum capítulo sobre Maria. No entanto, Maria está muito presente em todos esses documentos. Está “integrada”, está onde precisa estar. Redescobrir, atualizar a dimensão mariana de nosso carisma, de nossa espiritualidade, de nossa missão, de nossa identidade. Seria possível:  que Maria estivesse presente em todas as nossas catequeses, não somente em algumas catequeses específicas?  que Maria estivesse tão presente em nossa oração, em nossa partilha do Evangelho, em nosso discernimento, em nosso louvor, em nossos pedidos, de modo a não precisarmos criar, normalmente, espaços marianos específicos, visto que todos já o são? Dimensão mariana do carisma Costumamos dizer que nosso carisma marista se caracteriza pela simplicidade, humildade, espírito de família, fraternidade, amor ao trabalho... e pela devoção a Maria. E se, em vez de olharmos as coisas dessa forma, as contemplássemos partindo de Maria... Somos do jeito de Maria. Comportamo-nos segundo seu exemplo, seguimos as pegadas de Maria. Nosso lema: Tudo a Jesus por Maria, tudo a Maria para Jesus O lema poderia ser interpretado como “Tudo a Jesus como Maria, tudo a Jesus com Maria”. No fim das contas, Jesus é tudo para nós, como o foi para Maria (C. 7). Atualizar e integrar a dimensão mariana Algumas pistas:  Mariologia: em perspectiva cristológica e eclesiológica (que livros sobre Maria temos, lemos e são publicados?);  Devoções: linguagem, estilo, gestos, símbolos;  Arte mariana: iconografia, canções;  Nossas atitudes: “Marcelino deu-nos o nome de Maria para que vivamos segundo seu espírito”; como sentimos e expressamos hoje o que Maria representa para nós?  Nosso apostolado mariano: devoções populares, catequese. Convém redescobrir a Mãe do Senhor à luz de tudo o que aprendemos sobre ela a partir do Concílio.35 Maria não pode ser reduzida a:  uma aclamação matutina e um esquecimento ao longo do dia; 35

Cf. Circular citada, p. 46.

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 um refrão nas orações, na liturgia, na vida;  catequeses esporádicas, à margem do processo catequético;  um mês de maio radiante e uma ausência nos outros meses;  uma imagem acolhedora na entrada do colégio ou da comunidade e a uma contradição com as atitudes vividas dentro;  devoções marianas à margem da vida, da liturgia. II VALORES MARIANOS QUE O INSTITUTO FOI TRANSMITINDO ATRAVÉS DE SUA PEDAGOGIA 2.1 A Pedagogia como reflexo da vida marista A pedagogia é o meio flexível e de adaptação a todos os movimentos de educação. A presença do educador marista inspira-se nas atitudes de Maria Na maturidade da vida e da história, sente-se a necessidade de coerência, integração, unificação de vida. Existem muitos educadores maristas que seguiram as correntes de espiritualidade reinantes e acabaram numa vida dividida em compartimentos estanques de virtudes a praticar, de atitudes próprias de tempos e lugares, de sistemas e formas de práticas piedosas. Os resultados mais frequentes eram a criação de pessoas vigorosas e adestradas, porém, com frequência, confusas, fechadas em seus próprios métodos e deficientes em alguns fundamentos mais humanos e sociais. Com a ajuda de Maria começamos a captar muitas coisas, a dar-lhes nome... - A vida religiosa apostólica entende-se a si mesma, no espírito das Bem-aventuranças, não como fuga para o deserto, mas como aproximação do homem e do mundo para anunciar e consolidar aí o Reino de Deus.36 - Descobrimos e experimentamos Deus nas realidades temporais, próprias do ministério que exercemos.37 Pensamos em Maria de Nazaré, em Ain Karim... - O mundo deixa de ser obstáculo, e se torna lugar de encontro com Deus, de missão e santificação.38 - No mundo exercitamos a presença de Deus, tão querida a nosso Fundador e a tantos Irmãos. Maria, associada à missão de seu Filho, é nosso modelo e companheira.39 - O pobre, a criança, o jovem e o Irmão de comunidade, dia a dia, se tornam para nós sacramentos vivos de Deus e interpelações do Espírito.40 - Vivemos a presença entre os jovens, tão recomendada pelo Fundador, como lugar de encontro com Deus.41

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Atas do XIX Capítulo geral, p. 32. Idem, p. 34. 38 Idem, p. 34. 39 Idem, p. 34. 40 Idem, p. 35. 37

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- Maria nos serve de exemplo. Atenta às necessidades de sua prima e em atitude de serviço, vive profunda experiência espiritual.42 - Com sua vida, Champagnat nos anima a crescer na aventura de amar a Deus, a partir do mundo, e a amar o mundo a partir de Deus.43 Com Maria compreendemos que, para viver essa espiritualidade apostólica, necessitamos: de novo olhar e novos corações, para não nos contentarmos com leituras lineares e superficiais da realidade. A espiritualidade apostólica requer uma leitura de fé, que invada e perfure a realidade, para descobrir aí as pegadas de Deus. Recordamos Maria retomando as coisas no silêncio de seu coração.44 De Maria começamos a aprender que:  Deus nos ama sem restrições, com amor único e pessoal;  esse amor de Deus é gratuito, posso aceitá-lo ou recusá-lo; mas não posso fazer nada para merecê-lo;  é preciso deixar que Deus nos queira a seu estilo, não ao nosso. Com Maria começamos a superar a “teologia do mérito” e renunciar a manobrar sempre o timão do barco de nossa vida espiritual. Contudo, como nossas fontes estão em Marcelino, será conveniente perguntar-nos: como Marcelino viveu isso? EXPERIÊNCIA DE DEUS Para Marcelino, Deus é Pai bom e misericordioso Deus Providente, em quem confia Senhor e Centro de sua vida (o que importa é sua glória) Presença que tudo envolve e a tudo dá sentido

EXPERIÊNCIA MARIANA Para Marcelino, Maria é Boa Mãe Recurso Habitual Primeira Superiora (o que importa é sua honra) Presença que tudo inspira

Talvez a expressão mais forte e profunda da simplicidade de Marcelino seja precisamente essa unificação da vida. Não estamos divinizando Maria. Podemos expressá-lo em outras palavras: Ao fazer experiência de Deus como Pai Vê em Maria reflexo dessa bondade bondoso ... e chama-a de Boa Mãe Ao fazer experiência de Deus Providente Vê em Maria o reflexo dessa confiança … e chama-a de Recurso Habitual Ao fazer experiência de Deus como Vê em Maria o reflexo dessa

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Idem, p. 35. Idem, p. 35. 43 Idem, p. 35. 44 Cf. Lc 2,51-52. 42

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“centralidade” ... e chama-a de Primeira Superiora Ao fazer experiência de Deus como Vê em Maria o reflexo dessa Presença Presença que tudo envolve e a tudo dá que tudo inspira em sua vida sentido Senhor e Centro de sua vida

Outra expressão da simplicidade é a unificação entre espiritualidade e missão: ESPIRITUALIDADE MISSÃO O bom Pai e a Boa Mãe Ser sinais vivos de fraternidade Viver na presença de Jesus e Maria Pedagogia da presença fraterna e próxima Simplicidade Pedagogia da simplicidade Vida de família Pedagogia familiar Amor ao trabalho Pedagogia do trabalho e da constância Maria é como uma peça chave para se entender essa unificação. 2.2 Uma vida voltada a Cristo e a Maria Homens que se inspiram em uma mulher A Sociedade de Maria nasce como comunidade de homens inspirados por uma mulher. A sociedade e a cultura criaram parâmetros diferenciadores do masculino e do feminino. Em nosso século e nos precedentes fomos educados num ambiente social que não ajudava a integrar. Expressões e realidades concretas como estas a seguir eram orientadoras de conduta: Os homens não choram! Aguenta, se você é homem! Os homens não pisam na cozinha! Defenda-se como homem! Essas são roupas de homem! Seria fácil encher algumas páginas com características consideradas masculinas e femininas. Hoje continuam muitos estereótipos. E muitas expressões de machismo! É claro que somos diferentes, mas não excludentes. Hoje consideramos homem equilibrado, unificado, aquele que sabe integrar, em harmonia, as dimensões masculinas e femininas. Temos muitos apelos para integrar as duas dimensões. Nossas Constituições repetem a palavra “inspirar” falando de Maria:  Suas atitudes de perfeita discípula de Cristo inspiram e pautam nossa maneira de ser e de agir. (C 4)  Maria inspira-nos resposta gratuita a seus apelos e constante solicitude para com eles. (C 21)

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 Maria, educadora de Jesus em Nazaré,45 inspira nossas atitudes para com os jovens. (C 84)  Maria é a inspiradora de nossa pastoral vocacional. (C 94)  Os formadores se inspiram em Maria e dela aprendem... (C 107) Essa integração é mais que moda passageira:  o Deus de Jesus é Pai e Mãe;  em suas relações humanas, mais amplas que as tradicionais de seu ambiente e época, Jesus mostra-se homem íntegro e perfeitamente casto (C 19);  “Nem mesmo a ternura das mães no trato com seus filhos é superior à do Padre Champagnat em sua relação conosco. E não é, em verdade, uma comparação muito justa, porque as mães amam seus filhos com um amor humano, enquanto ele nos amou verdadeiramente em Deus”.46 O que significa para o educador marista, para minha comunidade educativa, ter uma mulher, Maria, como fonte de inspiração? Integrar: sensibilidade, delicadeza, ternura, afeto, intuição...  Recebendo-a em nossa casa47, aprendemos o modo de amar as pessoas e nos tornamos, por nossa vez, sinais vivos da ternura do Pai. (C 21)  As atitudes de Maria, que queremos assumir em nossas vidas, convertem-se em presença do rosto maternal de Deus.48  Temos um ardente desejo de construir comunidades humanizadoras que vivam em clima de confiança, com relações interpessoais sadias, com espírito de família. Casas que ajudam os jovens Irmãos a crescer, onde se cuida dos Irmãos idosos, onde se manifesta carinho especial para os mais fracos. Verdadeiros lares onde haja em abundância o óleo do perdão para curar as feridas e o vinho da festa para celebrar tanta vida partilhada.49  Deus tem um sonho para cada um de nós, para a humanidade e para o nosso Instituto. Ao escutar os nossos corações, descobrimos o seu amor, sua misericórdia e ternura como um Deus Pai e Mãe. (...) Sentimo-nos chamados, como irmãos e irmãs, a ser presença desse amor e do rosto materno de Deus.50 2.3 O educador marista modelado pela mariologia vivida pela Instituição Maria, arquétipo do feminino na Igreja, modela a vida do educador marista Teillard de Chardin entreviu a presença do eterno feminino, que, desde as origens da criação, vem evoluindo e despertando com sua atração a convergência de todos os elementos originários até seu centro integrador. Inspira-se nos textos sapienciais, nos

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Lc 2,51-52 Carta do Ir. Lourenço descrevendo suas relações diretas com Marcelino Champagnat. 47 Jo 19,27; Mt 2,14,21. 48 Atas XIX Capítulo geral, Introdução, p. 10. 49 Documento XX Capítulo geral. 50 Documento XXI Capítulo geral. 46

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quais a Sabedoria divina se nos apresenta brincando desde as origens entre as massas primordiais, até chegar a colocar suas delícias entre os filhos dos homens. “Situada entre Deus e a terra, como uma região de atração comum, eu os faço ir, o Uno até a outra, apaixonadamente..., até que se dê em mim o encontro em que se completem a geração e a plenitude de Cristo através dos séculos. Eu sou a Igreja, esposa de Jesus. Eu sou a Virgem Maria, mãe de todos os humanos”. 51 De forma mais concreta, Gertrudes von le Fort expressou o mistério de Maria como a suprema realização do feminino, do religioso e, em especial, da Igreja. “A Igreja não apenas comparou a mulher, toda mulher, consigo mesma, na doutrina do sacramento do matrimônio, mas também proclamou uma mulher como rainha do céu. Apenas a única (Maria), ainda que seja infinitamente muito mais que o símbolo do feminino, é também o símbolo do feminino: somente nela e por ela fez-se concebível o mistério metafísico da mulher”.52 Assim como os primeiros maristas, fundadores da Sociedade de Maria, buscaram seu ser e sentido na Igreja e na forma de serviço que podiam prestar-lhe, no XXI Capítulo geral trouxe vozes como estas: Acreditamos que seja um convite do Espírito a viver uma nova comunhão de Irmãos e Leigos maristas juntos, contribuindo para maior vitalidade do carisma marista e da missão no nosso mundo. Acreditamos que estamos perante um “Kairós”, uma oportunidade-chave para partilhar e viver com audácia o carisma marista, formando todos juntos uma Igreja profética e mariana.53 A explicação dessa perspectiva tem seu interesse e atualidade incisiva, como deve ter tido para o grupo de peregrinos a Fourvière, em Lyon. Em que consiste essa Igreja mariana que é mencionada e proposta como profecia e como graça atualmente dada? Encontramos uma explicação oficial no interior do próprio Capítulo geral, nas palavras do novo Irmão Superior geral, quando procura esclarecer alguns desses conteúdos. Parece-me que, às vezes, inclusive sem nos darmos conta, simplesmente por nossa forma de fazer, por nossas opções, por nosso modo de relacionar-nos, estamos mostrando o rosto mariano da Igreja que realmente queremos. Em um contexto eclesial alguém pronunciou estas palavras: “Hoje a Igreja converteu-se para muitos no principal obstáculo para a fé. Nela só veem a luta pelo poder humano, o teatro mesquinho daqueles que, com suas observações, querem absolutizar o cristianismo oficial e paralisar o verdadeiro espírito do cristianismo”. Isso foi escrito, nos anos 70, por um teólogo chamado Ratzinger. A exegese da biblista Dolores Aleixandre admite que, talvez pela necessidade, talvez pelas próprias condições climáticas, em toda a costa mediterrânea os relatos 51

Pierre Teilhard de Chardin, “EI eterno femenino”, in: Escritos del tiempo de guerra. Madri, 1966, p. 289. Gertrudes von Ie Fort, La mujer eterna. Madri, 1957, p. 18. 53 Instituto dos Irmãos Maristas, Conclusões do XXI Capítulo geral. UMBRASIL: Brasília, 2009, p. 12 52

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bíblicos com fontes e poços advêm sobre uma realidade social muito mais importante, antropologicamente, que a realidade física da necessidade de abastecer de água o povo, o gado. A realidade dos poços, dos oásis, das fontes e mananciais são, além de águas potáveis indispensáveis para a vida, lugares de encontro, centros de atração, tempos de relação, de contato. A eles se vai frequentemente não apenas para satisfazer a sede. Neles se dão encontros de relação vinculante, de relação amorosa, de negociações econômicas e de outros tipos. O herdeiro desses poços e fontes pode ser a fonte da praça, que tão frequentemente está plantada no centro da praça pública nos povoados mediterrâneos. Ao seu redor as crianças brincam, os velhos conversam, os jovens passeiam e os não tão jovens e as mães conversam, enquanto vigiam, com seus olhos atentamente preocupados, os movimentos dos pequenos. Todos têm lugar, a ninguém se proíbe a entrada, todos encontram seu lugar pacífico, onde conviver para comunicar e dialogar. A comparação original parece que vem de João Paulo II, se não a consideramos proposta pelo próprio Jesus de Nazaré em seu encontro com a samaritana, na pena do evangelista João: “Fatigado do caminho sentou-se Jesus à beira da fonte. Era quase meio-dia. Uma mulher da Samaria vem tirar água” (Jo 4,6-7). A Igreja é fonte de água no meio da praça. Ao seu redor acorrem as pessoas de todas as classes e condições. São convocadas e se sentem atraídas pela necessidade e também pela sedução. Buscam água e outras pessoas com quem se relacionar. O educador marista foi modelado pela vivência do carisma mariano O caráter marial do Instituto, definido desde as origens, vai além das ações e das dedicações. A identidade nos é definida pelo nome dado por Marcelino: “Petits Frères de Marie”. Mas está marcada especialmente nas intenções, intuições e motivações do Fundador e dos primeiros Irmãos formados e acompanhados por ele. Em tudo isso não deixa de estar presente Maria, com caráter carismático. Uma das circunstâncias em que Marcelino se sente impelido a identificar sua comunidade e a declarar a ideia inspiradora de sua fundação é o momento em que decide escrever ao rei Luis Felipe da França, para pedir a aprovação do Instituto:54 Majestade, Nascido no cantão de Saint-Genest-Malifaux, Departamento do Loire, só vim a aprender a ler e escrever com inúmeras dificuldades, por falta de professores competentes. Compreendi desde então a urgente necessidade de uma instituição que pudesse, com menor custo, proporcionar aos meninos da região rural o grau satisfatório de ensino que os Irmãos das Escolas Cristãs proporcionam aos meninos carentes das cidades.

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Trata-se da Carta n. 34, 2ª versão. Marcelino Champagnat, Cartas. São Paulo: SIMAR, 1997, p. 91-93.

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Ordenado sacerdote em 1816, fui destacado como coadjutor numa paróquia rural. O que vi com meus próprios olhos me fez sentir mais vivamente a importância de pôr em execução, sem mais detença, o projeto que, há muito, vinha acalentando. Comecei, pois, a preparar alguns professores. Dei-lhes o nome de Irmãozinhos de Maria, convencidíssimo de que este nome bastaria para atrair muitas pessoas. O êxito rápido em poucos anos justificou minhas conjecturas e superou as expectativas.55 A presença de Maria é o centro até numa declaração oficial e de cunho político. A presença mariana nas Normas de Vida leva e traz o Irmão Marista até modelá-lo segundo um estilo e paradigma. Nas Constituições e Regras anteriores ao Concílio Vaticano II, Maria tinha um espaço e domínio fundamentado. Com razão falava-se do capítulo dedicado à Santíssima Virgem como um verdadeiro tratado de mariologia viva. Gerações inteiras de Irmãos, herdeiras dos homens que conheceram Champagnat, seguiam os preceitos do capítulo mariano que tinham recitado de memória nos estudos do noviciado. Superação da devoção56 Um simples exame de introspecção fez o Irmão Marista compreender que fora marcado com o selo de Maria, através de um patrimônio e de uma forma de vida constitutiva. Ao fazer tal análise, o Irmão vê que em sua vida destacam-se notavelmente alguns traços característicos da devoção mariana.57 O próprio nome “Marista” com que se identifica recorda-lhe que está consagrado à Virgem e que a ela pertence.58 2.4 O educador marista modelado por Maria Modelado pelos valores femininos de Maria Estávamos na sessão inaugural do centenário da chegada dos Irmãos Maristas, no Mosteiro de Santa Maria de Bellpuig de les Avellanes (Lleida, Espanha, 9 de setembro de 2010). As autoridades religiosas e políticas presentes ao ato vão fazendo uso da palavra para recordar, para agradecer, para cumprir a representação. Nas palavras de todos eles vai surgindo o panegírico da obra realizada e das pessoas protagonistas. Chegou a vez da autoridade política no poder, enviada como delegação oficial do presidente da Generalitat de Catalunya, Sra. Montserrat Coll, delegada de Assuntos Religiosos. Surpreendeu a todos com as palavras iniciais, entre as quais destaco as seguintes: Agradecemos aos Irmãos Maristas todas as suas contribuições ao país... Sempre fizeram com uma peculiaridade característica e singular e mostraram em suas obras os valores femininos de Maria. Basta contemplar com admiração os entornos desta casa, os jardins bem cuidados, as árvores e as plantas de adorno e todos os demais

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O Instituto tem nesse momento 76 membros. Para compreender os problemas da devoção a Maria, remetemos ao Documento do XVI Capítulo geral, “A Santíssima Virgem na vida do Irmão Marista” (Introdução). 57 “Certamente, a devoção a Maria é a alma de nossas Regras e Constituições, a alma da Congregação inteira” (CSG. 3,41). 58 “Os Irmãos considerar-se-ão sumamente felizes em levar o maravilhoso nome de Maria e estimarão o fato de pertencer a sua família como uma das maiores graças recebidas de Deus” (RC. 126; cfr. CSG. 1,123, e Guy Chastel, Frère François, p. 127). 56

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elementos que os acompanham, para tranquilizar e harmonizar o visitante e acolhê-lo em ambiente de paz e sossego. Valores femininos que modelaram o educador marista O apelo de uma mulher, Maria, para uma tarefa crucial na realização da salvação, revoluciona a concepção injusta do mundo antigo. Marca o ponto de partida para uma valorização profunda da mulher e de sua missão no mundo. Os juízos de Deus, como diz São Paulo (1Cor 1,27), não são as opiniões dos homens! A mulher não foi apenas objeto do amor misericordioso e benéfico de Deus, mas foi capaz de uma decisão e de uma doação de salvação na casa de toda a família humana. Com Maria, a mulher se coloca fora da exigência da tradicional condição de inferioridade no plano religioso: a baixeza é repleta de graça (Lc 1,28), o desprezo se converte em louvor (Lc 1,48), a passividade, em empenho ativo e social. É prelúdio da igualdade que será proclamada no cristianismo: “não há judeu ou grego, nem escravo ou livre, nem homem ou mulher, porque todos vós sois um em Cristo Jesus” (Gl 3,28). Cristo libera a mulher da maldição que pesava sobre seu sexo e equipara homem e mulher na comum filiação de filhos de Deus, todos sem distinção, e abre o caminho para o Reino do céu. Única condição é a fé e a adesão plena à Palavra de Deus. De todos os homens e mulheres, na diversidade de ministérios e funções variadas, requerse uma contribuição ativa na evangelização e libertação da humanidade.59 Maria será para as mulheres de todas as idades modelo para iniciar o conhecimento adequado de suas próprias capacidades e responsabilidades no plano da salvação e das questões sociais. Passar do feminino inefável para o feminino real Isso sem medo de exaltar o feminino com o risco de obscurecer a mediação de Jesus Cristo, e procurando que o feminino que Maria representa, tenha no coração da Igreja o lugar adequado. Usar o método da desconstrução60 para chegar aos valores femininos de Maria válidos para a mulher de hoje. Arquétipo é uma referência à expressão judeu-helenista (de Filon de Alexandria), de Orígenes, de Dionísio Areopagita, de Santo Irineu de Lyon (homo imago Dei).61 Em síntese, passar de um modelo de simbologia sublimado, dogmático de submissão e de silêncio que suscita preponderantemente devoções e pedido de favores, a outro modelo de presença ativa, de realidade cooperante, de admiração e vinculação afetiva. É um arquétipo ativo, dialogal, participativo e eficaz na comunhão. Suscita a imitação, a companhia no mesmo caminho da peregrinação e progressão humana. Estas são algumas expressões que conviriam a essa atitude mariana:  fraternidade na mesma fé;

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Os espaços reservados às mulheres limitavam-se em geral aos três K (Küche, Kinder, Kirche, isto é, cozinha, criança, igreja). R. Laurentin considera que hoje a redução da mulher unicamente ao lar seria uma alienação e asfixia. 60 Análise do que é recebido, exegese do que é analisado e reconstrução com a anamnese correspondente. 61 Para Dionísio, Deus é o arketypus, a origem de toda luz.

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   

escuta da mesma palavra; participação na assembleia; progresso na solidariedade; presença na comunhão.

Seguindo Jesus nas pegadas de Maria Por Maria, Jesus se encarna em nossas vidas: Dando-nos o nome de Maria, o Padre Champagnat quis que vivêssemos do seu espírito. (...) Contemplamos a vida de nossa Mãe e Modelo para impregnar-nos de seu espírito. Suas atitudes de perfeita discípula de Cristo inspiram e pautam nossa maneira de ser e de agir. Havendo Deus dado seu Filho ao mundo por Maria, queremos torná-la conhecida e amada como caminho que leva a Jesus.62 Se voltamos à origem desse tema, encontramos na vida de Marcelino um texto preciso que é digno de nota: “Ao fundar o Instituto, o Pe. Champagnat propunha dupla finalidade: proporcionar o benefício da instrução cristã às crianças pobres do campo e honrar Maria, pela imitação de suas virtudes e a difusão de seu culto. Mas como a Virgem Maria, modelo de todas as virtudes, brilhou, sobretudo, pela humildade e como a função de educador da infância é, de per si, um ofício humilde, quis que a humildade, a simplicidade e a modéstia fossem o caráter específico do Instituto. E para que os Irmãos compreendessem bem seu pensamento, deu-lhes o nome de Irmãozinhos de Maria (Petits Frères de Marie) a fim de que, através do nome, se lembrassem continuamente do que deviam ser. O termo petit,63 que choca certas pessoas é considerado por outras como supérfluo e inútil, e constitui um enigma para quem não conhece o espírito da Congregação. Não foi dado aos Irmãos, por acaso, e não sem motivo. No pensamento do piedoso fundador64 esse vocábulo deve relembrar aos Irmãos que o espírito de sua vocação é um espírito de humildade, que sua vida há de transcorrer humilde, obscura e desconhecida do mundo;65 que a humildade deve ser a virtude predileta. Pelo exercício cotidiano da humildade, trabalharão eficazmente na própria santificação e na santificação dos jovens e eles confiados”.66 O termo “Irmãozinho” é, de certo modo, o selo e a estampa do Instituto, é o espelho que reflete constantemente o espírito do piedoso Fundador e no qual cada Irmão pode ver o que deve se tornar. As relações vinculantes de nosso Fundador com Maria vão se aprofundando gradual e progressivamente. Das práticas de devoção herdadas de sua família e de sua

62 63

C. 4

O adjetivo petit (pequeno) tinha, em primeiro lugar, uma função social opondo os Irmãos do setor rural aos Irmãos das Escolas Cristãs, os Grands Frères, que só trabalhavam nas cidades (cf. P. ZIND, NCF, p. 86). Mas embutido no próprio nome do Instituto, conserva todo o significado aqui exposto. Mais pormenores históricos em p. ZIND, O B. M. Champagnat e seus pequenos Irmãos de Maria, Belo Horizonte, Centro de Estudos Maristas. 1988, p. 12-14; 31-33. 64 Pe. Champagnat, nos seus escritos, usa esse adjetivo só raramente; a maioria das vezes fala de Irmãos de Maria. 65 Expressão frequentemente repetida pelo Pe. Colin, falando aos Padres Maristas. 66 Furet, Vida, p. 374-375.

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formação, chegou a uma atitude de total confiança que preenche toda a sua vida. A fundação do Instituto é obra de Maria. Com ela se transforma em construtor da casa e da comunidade. Seguir Jesus do jeito de Maria leva você a trabalhar mais sobre o ser do que sobre o fazer. É uma atitude interior que se traduz em atos. Toda a vida dos Irmãos deve estar impregnada do espírito de Maria. Dessa forma ela nos leva a Cristo, o Santo entre os santos. Maria sempre está vinculada a Cristo. Há dois caminhos abertos pelo acompanhamento de Marcelino aos primeiros Irmãos e transmitidos depois por seus discípulos a todo o Instituto. O primeiro sai do leito de morte e da vida que se extingue do Fundador. É um fragmento do testamento espiritual: Peço ainda a Deus e desejo com todo o ardor de meu coração que persevereis fielmente no santo exercício da presença de Deus, alma da oração, da meditação e de todas as virtudes. A obediência e a simplicidade sejam sempre a característica dos Irmãozinhos de Maria. Uma devoção terna e filial por nossa Boa Mãe vos anime em todo tempo e em todas as circunstâncias. Tornai-a amada em toda parte, tanto quanto vos for possível. Ela é a primeira Superiora de toda a Sociedade.67 O segundo caminho está aberto a partir da própria vida dos Irmãos e de sua forma de entender a vivência da relação com Maria. Isso vem igualmente de Marcelino. Imerso habitualmente em problemas de muitos tipos e em diferentes situações, sua saída era quase sempre a mesma: “Quando recomendava um problema a Maria, viesse o que fosse, não se perturbava, a repetia tranquilo e confiante: “Nada receiem; as aparências estão contra nós; Maria, porém, vai dar um jeito; ela bem sabe remover dificuldades, dirigir acontecimentos e revertê-los em nosso favor”. Coisa admirável! Nunca sua confiança foi traída. O Concílio Vaticano II nos diz que ela ocupa o lugar mais elevado depois de Cristo, o lugar mais alto abaixo de Cristo, mas nos é muito próxima: “Imagem perfeita da Igreja do futuro, ela é a guia e o apoio de seu povo ainda a caminho”.68 2.5 O educador marista sente-se, como Maria, instrumento da misericórdia de Deus, escondida em Cristo, rosto da Igreja O Concílio Vaticano II, no capítulo 7 da Lumen Gentium, apresenta Maria em todas as dimensões no mistério de Cristo e da Igreja. Uma das formas de compreender seu mistério de salvação é compreender Maria como um “sinal” em que Deus manifesta sua vontade de continuar a salvação de seu povo, instaurando um Reino santo e universal. A vinculação mais direta e forte com o espírito marista vem da afirmação da Lumen Gentium, n. 55: “Ela mesma sobressai entre os humildes e pobres do Senhor que d‟Ele esperam e recebem com fé a salvação”.

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Furet, Vida, p. 244. Liturgia de 15 de agosto.

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De fato, quem são esses pobres de Iahvé? Que missão lhes é confiada? Como Maria está situada entre esses pobres? Os primeiros tempos da aliança divina falam de um povo consagrado, escolhido, particular para Deus (Dt 7,6). Depois das rupturas da aliança, Deus elege para si um “resto” (Sf 3,12-13). A plenitude e o cumprimento dessa linha mística encontramos em Maria, em seu Magníficat: “olhou para a humildade de sua serva” (Lc 1,48). Encontrar seu lugar na Igreja Sabemos com que cuidado os textos conciliares foram elaborados, com atenção e equilíbrio às diferentes posições religiosas, em especial esse capítulo da Lumen Gentium que estamos analisando. Isso nos leva a algumas afirmações sinceras, distante de toda tentativa de confronto. Não somos cristãos de segunda classe os que somos devotos de Maria (podemos dizer com Dom Graber, bispo de Regensburg). Somos verdadeiros cristocentristas. Na devoção e no culto mariano é a Cristo que se vai, porque sabemos que toda a existência de Maria, sua vida, seu ser, o pensamento e sentimento foi e continua sendo ir a seu Filho, o Senhor Jesus Cristo. Os que participam das peregrinações – em Vilsbiburg, Altötting, Lourdes, Fátima e outros lugares – consideram natural ir confessar-se e receber a comunhão: esse é sempre o ponto culminante da peregrinação, isso é chegar a Cristo. É precisamente por meio de Cristo que se chega a Maria, e da Mãe que conduz a Cristo, seu Filho.69 O educador marista tem uma missão marial Pela essência mesma de sua espiritualidade e de sua consagração “Devemos tudo a ti, Maria, esta é obra tua. Se perecer, não é nossa obra que perece!” São declarações carismáticas de Marcelino, que tratam de definir essa convicção. Mas se vamos ao documento marial citado, os fundamentos se mostram em toda sua beleza. Amar a Virgem, servi-la e propagar seu culto, conforme o espírito da Igreja, como um excelente meio de amar e servir mais perfeitamente Jesus Cristo: esse foi um dos objetivos com que Padre Champagnat se propôs a fundar essa Congregação. 70 Trabalhar para que se conheça Maria não é apenas missão pessoal de cada Irmão. Todo o Instituto está empenhado nessa empresa, porque participa do carisma do Fundador. Este, com intuição sobrenatural,71 quis que seu Instituto, nascido de uma fé ardente na mediação de Maria,72 fosse sinal desse mistério da Igreja. Viver a mediação

69

Dom Graber a um grupo de peregrinos, em Vilsbiburg, 13 de julho de 1965. Cf. A la Madre y Reina 1(1966), p. 15. VPC. 349. 71 Pe. Champagnat teve o mérito de orientar o olhar de nossa fé para “a mais cristã dos cristãos e, por isso, a mais cristificadora” (P. NICOLAS). 72 “Devemos tudo a Maria”, repete constantemente Pe. Champagnat. Bom testemunho disso é a história das origens do Instituto, tanto em La Valla como em l’Hermitage. 70

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mariana, na espiritualidade pessoal e no apostolado, é a vocação própria de cada Irmão Marista. Colocar em destaque a função de Maria no mistério da salvação tem seu fundamento na verdade revelada, como nos recorda o Concílio Podemos acrescentar uma segunda razão mariana e bíblica. O educador marista leva uma vida escondida em Deus, para o mundo Na proposta da missão, nas atividades e projetos apostólicos, nas atividades, no modo de agir, o educador marista segue as pegadas de Maria. Desde as origens, o Instituto tem sido fiel à missão, toda original, de uma catequese mariana sistemática. Tais afirmações contidas no documento marial são confirmadas com estas outras: Tal catequese é um desejo e um esmero para anunciar e estudar seriamente “a missão da Bem-aventurada Virgem no mistério do Verbo Encarnado e do Corpo Místico”, 73 e por levar “os fiéis ao seu Filho, ao sacrifício do Filho e ao amor do Pai”. 74 O mistério de Maria é parte integrante da Revelação completa, por causa do papel essencial da Virgem na vida de Cristo e da Igreja.75 Dois testemunhos dessa maneira integral e integradora de sentir-se marista, no apostolado marial: Ao chegar à Nova Caledônia, Ir. Maria da Cruz arde do desejo de realizar o que considera ser uma apóstola ao estilo marista: Em primeiro lugar, o que senti ao pisar esta terra prometida, ao ver essa gente por quem entreguei até as batidas de meu coração. Dizer o que se passa em meu interior é inenarrável, inefável, quase incompreensível para mim mesma. Nada ou quase nada é translúcido. É o ordinário em mim e, no entanto, aquele dia acreditava não ter corpo. Durante muitos dias não pude falar, nem chorar, nem comer, nem dormir. Sequer pensava. Compreendi, então, que a felicidade de trabalhar pela salvação dessa gente, pela glória de Deus e de nossa divina Mãe, longe do mundo e de seus aplausos, ignorada, conhecida apenas por Deus; compreendi, digo, que essa felicidade merecia com abundância tudo o que sofri e que ainda espero sofrer. Estranho somente uma coisa: não morrer de gratidão.76 Analisaremos em seguida o que pode ser uma caracterização do ser apóstolo marista. Antes, porém, vejamos o testemunho de Marie Françoise Perroton, que chega às entranhas mesmas do marista educador: Graças mil vezes, padre, pela honra que V.S. me procurou ao associar-me à Sociedade de sua Ordem Terceira. Como pôde pensar em mim? Não me disse o que é 73

LG 54. LG 65. 75 Maternalmente presente no mistério de Cristo, a Virgem continua participando do desenvolvimento desse mistério, no anúncio da Boa-nova e no estudo profundo da Revelação. Comprometida plenamente no serviço da obra de Deus no mundo, é necessária, em certo sentido, para o sucesso da evangelização. 76 Carta da Ir. Marie de la Croix (La Conception, N.C.) ao Pe. Yardin (Lyon), 20 de fevereiro de 1859, (NP I, 120). 74

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preciso fazer para cumprir as obrigações que isso requer. Uno-me em pensamento às pessoas que compõem a Sociedade. Ainda outra graça! Meu agradecimento a Deus teria que ser tão grande como o oceano. Saiba, padre, que isso quer dizer muito, já que o oceano é imenso. Acredite no que digo. E quando, em poucas palavras, quero fazer atos de amor a Deus, digo-lhe: “Meu Deus, digo-lhe que o amo e adoro milhões de vezes, tantas como as gotas d‟água do oceano”. Apresento, depois, a todas as nossas Irmãs a oferenda de meu terno afeto. Elas procuram, me diz V.S., imitar a vida escondida da Santíssima Virgem. E eu, padre, como vou fazer para proceder como elas? Minha vida não é muito escondida! Oh, doume conta de que, com minha ação chamativa, nunca poderei chegar perto de um modelo tão perfeito. Minhas queridas e ternas Irmãs, peço-lhes, portanto, que me ajudem a fim de que não fique atrasada no caminho do amor a Deus. Peçam a Deus que se digne aceitar o oferecimento de toda minha pessoa, que não permita jamais que eu retroceda ante as dificuldades, mas, sobretudo, que eu não tome minha vontade pela de Deus.77 A missão marial torna-o instrumento da misericórdia Maria ser nosso modelo quer dizer que o aproximar-se de seus gestos, atos e atitudes vai se repetindo e continuando sem cessar, até encontrar certa semelhança. O Fundador deu-nos Maria por modelo78 e amparo79 no cumprimento de nosso trabalho de educadores da fé. Base e fundamento de toda educação mariana é a maternidade espiritual da Virgem. Maria exerce essa função educadora com os fiéis, não apenas por sua intercessão sempre eficaz, mas também com a virtude de seus exemplos. A verdadeira devoção à Virgem Santíssima consiste, no fim das contas, em uma imitação viva e dinâmica. Trata-se, a exemplo de Maria, de ser autênticos em nossa relação com Deus e com os outros. A educação mariana tende a dar aos jovens mentalidade e coração realmente marianos. Para isso é necessário manter entre eles um ambiente que mostre com discrição a presença da Virgem e os ajude a se fixar nela. Em semelhante ambiente de vida formar-se-ão consciências marianas capazes, a exemplo de Maria e sob seu influxo, de viver um cristianismo mais profundo e evangélico.80

77

Marie Françoise Perroton (Tahiti) ao Pe. Pierre Julien Eymard (Lyon), 2 de agosto de 1846, (NP I, 13). “Na educação e instrução dos alunos será proposto por modelo o exemplo de Maria Santíssima ao educar e servir o Menino Jesus. Recordem que esse adorável Menino cresceu, sob seu olhar e direção, em sabedoria, idade e graça. Procurem imitar a humildade, mansidão, caridade, abnegação e santas disposições com que a excelsa Mãe cuidava do divino Menino, a fim de merecer que os alunos, sob sua direção e exemplo, cresçam da mesma forma em virtude” (Re. 135). A compreensão do mistério de Maria reforçará ainda mais essa “pedagogia mariana” bem própria nossa, e nos impulsionará a tirar proveito de suas imensas possibilidades. 79 “Interesse Maria em seu favor (...) e, conseqüentemente, não empreenda nada de importante sem consultá-la. (...) Recorra a ela em toda e qualquer necessidade e, depois de ter feito seu possível, diga-lhe que será problema dela se as coisas desandarem” (Vida, p. 473). 80 Cf. (C 84), onde se afirma que a meditação do mistério de Maria permite aos cristãos de penetrar mais profundamente no mistério da Encarnação e de assemelhar-se sempre mais a Jesus Cristo. 78

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Os educadores devem, por sua vez, desempenhar seu trabalho apostólico com a mesma intenção de Maria, esforçando-se para prolongar suas atitudes profundas e para apontar, na vida de Maria, os valores humanos e sobrenaturais de modo que os alunos consigam descobri-los. A piedade mariana pode dar plenitude incomparável à existência do homem contemporâneo. Os jovens buscam “grandeza, beleza, alegria e amor”. Podem encontrá-los em Maria,81 “a mulher na graça finalmente restituída”.82 Por fim, para nós, Maristas, trata-se de conseguir que se ame Jesus por meio de Maria e de ensinar aos jovens a compreender a missão maternal da Virgem no mistério da salvação. Para tanto, a atitude filial com Maria é o objetivo direto de uma educação com sentido mariano e o meio mais excelente de autenticidade cristã.83 Pela educação marial, o educador marista sente-se disposto a buscar e a dar preferência aos alunos samaritanos que existem sempre em cada grupo e aos que, por inúmeras razões, têm necessidade de uma segunda oportunidade. O educador marista pode dar especial atenção os órfãos atuais de toda paternidade. Dar afeto aos órfãos de uma maternidade, que os compense afetivamente nas contradições e contratempos lacerantes do dia a dia. Ser presença paternal entre os que fogem de lares desestruturados, porque as paredes os aprisionam. Pode estar com os „antissistema‟ e os desadaptados de lugar e tempo, porque nasceram rodeados de tudo, menos do que possa significar ordem e concerto. Está ao lado dos Jean-Baptiste Montagne e dos JB. Borne, que sempre nos acompanharão e estarão conosco, enquanto o mundo seja mundo. Atitude de serviço na nova Igreja servidora “Jesus levantou-se da mesa, tirou as vestes, tomou uma toalha e se cingiu com ela. Derramou água numa bacia e começou a lavar os pés dos discípulos” (Jo 13,4-5). Essa ação de Jesus comentada pelo próprio evangelista João: “Se eu, pois, Mestre e Senhor, vos lavei os pés, também vós deveis lavar-vos os pés uns dos outros” (13,14). O memorial da Quinta-feira Santa e de toda a Ceia do Senhor traz essa celebração como constitutiva de uma forma de ser da assembleia cristã. As palavras de Cristo a seus discípulos, que disputam o poder entre si, têm aplicação direta sobre esse fazer de Jesus, sempre cheio de simbolismo para todos os cristãos: “Quem dentre vós quiser ser o primeiro, seja servo de todos” (Mc 10,44). Uma comparação recente de simbolismos propõe que, entre as vestimentas apropriadas e normais para as celebrações, na sacristia de toda igreja, devia estar o avental, símbolo do serviço humilde de quem se põe e dispõe ao trabalho mais humilde. O professor da Faculdade de Teologia de Barcelona Dr. Ramón Prat i Pons publicou uma reflexão eclesiológica com o título Limpa-te os pés, Igreja de Cristo.

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PAULO VI, Roma, 13 de setembro de 1963. P. CLAUDEL, “La Vierge à midi”. 83 “O amor à Santíssima Virgem é garantia de educação genuinamente cristã dos jovens, seja em razão da natureza espiritual de Maria, seja porque a Virgem é modelo acabado, neles, dos ideais excelsos da juventude: fé e pureza” (Cardeal Tardini). 82

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Fundamentou-se em Êxodo 3,5, que narra o encontro de Moisés com Deus. No diálogo, este lhe pede: “Moisés, tira as sandálias dos pés, pois o lugar onde estás é chão sagrado”. Presença oculta, calada e serviçal de Maria no mundo, a serviço de quem ela trouxe ao mundo. A atitude de serviço, tão antiga na Igreja como os discípulos de Jesus, os quais, apesar de segui-lo até a morte, querem estar um à esquerda e outro à direita, quando Jesus entrar em seu Reino (cf. Mc 10,35-46). Quer dizer que os medos, as ambições, as corrupções podem atacar sempre a fidelidade mais decidida, a entrega mais abnegada. A tentação dos melhores servidores é aproveitar a ocasião do serviço para transformálo em poder, mesmo com o risco de converter o Reino em instrumento de força, opressivo. III. ASSIMILAR E TRANSMITIR OS VALORES MARIANOS POR MEIO DA PEDAGOGIA DA PRESENÇA Um novo estilo de educar, à semelhança de Maria 3.1 Conceitos prévios A. Construção da “presença”: diagnóstico do que se entende por “presença” .84 Presença-ausência Durante muitos séculos o ponto de partida do diagnóstico do que se entende por “presença” tem sido o seguinte: existem objetos e pessoas que estão ao alcance de nossos órgãos sensoriais e, portanto, podemos vê-os, ouvi-los, tocá-los ou saboreá-los. Dessa forma concretizou-se a ideia de presença. Pelo contrário, quando não se podia ver, ouvir, tocar ou saborear, afirmava-se que havia ausência. A presença expressa-se especialmente com o verbo “estar”. A etimologia desse verbo vem do latim e equivale a “in stare”, quer dizer, “estar aí”, porém estar aí de forma significativa. A ação na qual a presença de alguém ou de algo se concretiza é uma manifestação do que é. A experiência de “presente” está unida à de “ausente”. Até aqui, uma visão sintética do alcance do conceito de presença na linguagem e na fenomenologia. Intencionalidade: uma consciência que se expande Essas matizações que acabamos de fazer obrigam-nos a distinguir o que é a presença das coisas, que in-sistem dentro do mundo, da presença original do ser humano, que ec-siste no mundo. Mediante a intencionalidade o ser humano expande-se (é consciente de ocupar um espaço), temporaliza-se (é consciente do tempo), mundaniza-se (é consciente de que

84

Conceitos sustentados na tese para Mestrado em Educação, na Universidade Marista do México, 2007.

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há um mundo ao seu redor) e coexiste junto a pessoas e coisas com as quais se relaciona. A consciência é, pois, uma abertura original ao mundo. O ato educativo está intimamente vinculado com o desenvolvimento da intencionalidade e, portanto, da interioridade do educando. A dupla e conexa abertura ao universo e ao mundo, própria da pessoa, tem que estar modulada por um plano íntimo existencial, quer dizer, por um plano de vida. Plano que inclui um “projeto” de ações peculiares para conseguir um desígnio ou fim inventado. Vocação, profissão e trabalho são componentes do plano de vida, próprio de uma pessoa. A presença será a manifestação do meu ser, realizada por meio da vocação, da profissão e do trabalho. Manifestações da presença do ser Podemos determinar as estruturas transcendentais da existência das pessoas através das manifestações da presença de cada um, como maneira concreta de ser em um tempo, em um espaço, em um mundo e nas relações que estabelece. A presença evidencia-se durante um tempo. A biografia de cada um seria a explicitação do projeto pessoal já realizado historicamente, coroado com o êxito ou com o fracasso. As biografias de educadores maristas permitem-nos aceder às possíveis contribuições que realizaram para qualificar a pedagogia marista com sua presença. A autenticidade da vida do educador é a grande contribuição da pessoa à educação. Espaço, tempo e presença A vida e a presença do educador transcorrem em diversos cenários em que se realiza a educação, organizados com calendários precisos. Presença e coexistência A existência humana é sempre e originariamente uma coexistência. “A „relação com‟ é precisamente a intersubjetividade por excelência, que não tem e que não pode ter explicação no mundo dos objetos, que é em seu conjunto um mundo de pura justaposição”.85 A presença do “outro” dá origem ao encontro.86 As relações São três as esferas em que surge o mundo da relação. A primeira é a de nossa vida com a natureza, e está abaixo do nível da palavra. A segunda é a vida com os homens. Aqui, manifesta-se a relação e adota a forma da linguagem. Aqui podemos dar e aceitar o Tu. A terceira é a da comunicação com as formas inteligíveis. A relação aqui está envolta em nuvens, porém se desvela pouco a pouco; é muda, porém suscita uma voz. Não distinguimos nenhum Tu, mas nos sentimos chamados, e respondemos criando formas, pensando, atuando. Todo nosso ser diz, então, a palavra primordial, ainda que não possamos pronunciar Tu com nossos lábios. Quanto mais o espírito se adentra em nossa vida sensitiva, tanto mais se aproxima esta da palavra.

85 86

G. MARCEL, op. cit., p. 164. P. LAÍN ENTRALGO, Teoría y realidad del otro. 2 vol. Madrid: Revista de Occidente, 1968.

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3.2 Para educar é preciso amar Se a existência do ser humano se realiza na comunicação interpessoal, o sentido da vida humana radica-se no amor. Somente no ato de falar e amar leva-se a cabo o que constitui propriamente a existência: a vinculação viva do eu e do tu, e a inter-relação de ambos no diálogo e no amor. A presença do ser humano no mundo, constituída em sua própria natureza pela capacidade de se dirigir intencionalmente para as pessoas e as coisas que o rodeiam em um espaço e tempo concretos, dá origem a uma coexistência do ser humano com seu entorno, determinada pelas qualificações que estão em seu interior. “Estar com” outros seres dotados de espírito expõe o ser de cada um diante do ser dos demais. Essa presença do eu diante do tu propõe um diálogo interpessoal de correlações interpessoais, que fundam um modo novo e próprio de existência e geram um âmbito dinâmico de encontro, de mútua interpelação e de resposta. Alcança o desenvolvimento pessoal do ser humano quem aceita de modo consciente e livre a tensão originária para o tu. Nas relações interpessoais, as categorias de “palavra” e “amor” aludem à constituição dialética de âmbitos intersubjetivos e supraindividuais dentro do diálogo interpessoal. Essa perspectiva conduz-nos a situar o essencial do ato educativo no interior da pessoa. Sendo a educação um ato que propõe finalidades, metas e objetivos, ele está guiado fundamentalmente pela intencionalidade, e, portanto, a intervenção da “presença” do educador no ato educativo deve ser interpretada por meio da intencionalidade. As intencionalidades do ato educativo manifestam-se nos projetos educativos, nos ideários ou nos documentos institucionais em que são compiladas as declarações de princípios. Presença do ser marista na pedagogia A presença é sempre presença de um ser, quer dizer, de algo ou de alguém que é o que é, e o evidencia. A pedagogia que vamos considerar aqui é a pedagogia suscitada a partir da manifestação do ser marista. Os traços que manifestam a presença marista foram extraídos das histórias de vida de maristas, recolhidas em 230 biografias, de 1847 a 2006, que trazem descrições de diversas características indicadoras de como se manifestou sua presença na tarefa educativa. O conjunto dessas características educativas, que se desprendem dessas biografias, constitui um mosaico da presença educativa marista, no qual ficaram marcados seus traços mais característicos, das origens até hoje. Dinamismos da presença marista na pedagogia Nos relatos das biografias de educadores que analisamos, fala-se expressamente da presença do educador e de sua incidência nas vidas dos que se encontram ao seu redor. O aspecto externo da pessoa que é presente impacta de forma bem variada: impressiona positiva ou negativamente, faz rir, impõe respeito, desprestigia, repugna, atrai, cativa. 31


Presença e maneira natural de ser A importância da presença do educador marista no ato educativo põe-se manifesto de forma prática quando comprovamos sua ausência. Quando um professor, que devia estar, não está na sala ou no pátio, a primeira impressão que se percebe é que se rompe o sistema educativo. A tendência mais imediata é a de ir buscar alguém que o substitua. De modo que a presença é necessária para o sistema educativo marista, porque é um requisito indispensável para alcançar seus fins, e a ausência do educador impede a consecução dos objetivos desejáveis. Encontro que suscita presença A presença é a expressão mínima do encontro. O mais fundamental e próprio de um encontro produz-se quando um ser humano toma consciência de que diante dele há outro ser humano. O encontro inicia-se propriamente quando se produz a percepção do outro. Esse momento inicial do encontro contém a possibilidade de cooperação ou de conflito. O encontro do educando com o educador chega a um desfecho quando surge a resposta do educando diante da presença do educador, e vice versa. O encontro é um convite à liberdade de edificar o próprio ser. As características da relação que suscita o encontro são determinadas pelos conteúdos da relação, que se expressarão no trato mútuo entre as pessoas que a iniciam. Essa relação suscita confiança/desconfiança, amizade/inimizade, amor/ódio. Para saciar os desejos de comunhão do ser humano, não basta o trato amistoso com o outro. A união mais profunda será alcançada quando a amizade se plenifica com a autêntica entrega de si mesmo, na caridade. 3.3 A presença que se torna pedagogia da interioridade Autenticidade Nesse ato de fé, o que leva os educandos a ter confiança nos educadores, não é a força da autoridade ou o peso dos argumentos, mas a autenticidade, a qualidade da pessoa. Por isso, os motivos que temos para confiar nas pessoas nem sempre respondem a uma lógica da razão, senão a um atrativo do coração. Podem-se encontrar aqui os fundamentos do ato educativo proposto por Champagnat: Para educar as crianças é preciso amá-las”.87 El sistema pedagógico marista vivido pelos educadores maristas não prescinde da presença do educador, mas afirma-a e a sustenta como um de seus pilares fundamentais, entre outras razões, porque é a base sobre a qual se assenta o princípio educativo de Champagnat: “Para bem educar as crianças é preciso amá-las e amá-las todas igualmente. Ora, amar as crianças é dedicar-se totalmente à sua instrução e

87

Vida, p. 501.

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empregar todos os recursos sugeridos por um zelo criativo para formá-las à virtude e à piedade”.88 Espírito de família Junto com a simplicidade, o espírito de família é parte do patrimônio pedagógico herdado de Champagnat pelos educadores maristas. O Fundador desejava que os esforços de seus primeiros Irmãos fizessem diferença significativa na vida de todos os jovens e crianças que estivessem a seus cuidados. Por conseguinte, ele os encorajava a rezar por aqueles a quem eram chamados a servir, a amá-los e a conquistar o respeito deles. Do ponto de vista de Marcelino, seus Irmãos e todos os que se associassem a eles precisavam ser apóstolos dos jovens. Logo, o tempo que seus seguidores deveriam passar com as crianças e jovens teria de ser significativo. Mas, acima de tudo, a presença dos Irmãos deveria ser marcada por um forte espírito de fraternidade e seu desejo de falar do amor de Jesus e Maria sempre colocado em destaque.89 Trabalho e dedicação Outra característica dos maristas é seu amor ao trabalho, tanto físico como intelectual. A presença no trabalho é expressão prática e concreta do compromisso profissional e vocacional. Uma das biografias destaca o trabalho como qualidade pessoal dos biografados; outras destacam a dedicação pessoal ao trabalho; outras, ainda, aludem a uma entrega apaixonada ao trabalho. Um bom grupo de biógrafos recolheu abundantes referências relativas à exigência de trabalho que a presença do educador marista suscitava nos alunos: “Era muito exigente, tanto na sala de aula como fora”.90 Uma vida a serviço da educação Finalmente, analisaremos as contribuições das biografias para se compreender a eficiência da presença do educador marista, a partir das motivações que o movem a fazer-se presente no campo educativo. A presença do educador marista é a manifestação do ser pessoal, de sua identidade, mas é também a do ser da instituição à qual se vincula por livre vontade. As intenções que movem o educador para se fazer presente no ato educativo ficam evidenciados para a sociedade nos documentos oficiais, tais como os ideários de centro ou os projetos educativos, nos quais se recolhem as declarações de princípios e a definição da identidade da instituição educativa. A consagração religiosa como marista promove educadores motivados que se fazem presentes no campo educativo com uma dedicação de vida inteira. Isso quer dizer que a base da presença educativa, que está descrita nas biografias, fundamenta-se sobre algumas verdades da pedagogia, das quais se deduzem os

88

Vida, p. 501. SAMMON, S., Tornar Jesus Cristo conhecido e amado. Circulares XXXI/3. Roma, 2006, p. 27. 90 Testemunho de Benita Espadas, in: SANTAMARÍA SAIZ, J. L., Revista Ibérica Marista, Madrid, p. 57. 89

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princípios pedagógicos e educativos, como os que se enumeram em uma das biografias: 1) que a “atmosfera” da escola e do colégio, em todos os graus e extensão, seja verdadeiramente sobrenatural e, por conseguinte, seja sobrenaturalizada; 2) que o ensino íntegro seja cristão e cristianizado; 3) que o espírito evangélico, a chama apostólica, reine na escola e no colégio, para que a criança e o jovem aprendam a irradiar suas crenças, pois esse é o melhor modo de vivê-las e exaltá-las.91 Vocação do educador marista O modo de ser e de fazer da instituição poderia ser resumida em duas palavras: os maristas são religiosos e apóstolos por vocação. A palavra “vocação” é a categoria bíblico-teológica mais compreensiva e mais convincente para explicar o mistério da vida à luz de Deus. A vocação encontra sua expressão na consciência de responsabilidade, o motivo mais profundo de que dispõe o educador marista para superar a grande quantidade de momentos negativos com que se depara na tarefa educativa. O educador marista move-se constantemente entre dois pólos da própria incapacidade e do chamamento transcendente, do qual provém toda vocação verdadeira. O resultado de todos esses ingredientes define o estilo coletivo de educar, o estilo educativo marista. Há numerosos testemunhos que aludem à recordação que se conserva da presença. 3.4 Ao estilo de Maria e seguindo os passos de Champagnat: deixar-se evangelizar e evangelizar Maria deixa-se evangelizar na Anunciação  “Alegra-te, o Senhor está contigo; vais dar à luz”;  Maria fica perturbada, faz perguntas;  experimentar Deus causa estupor, surpresa;  por um momento, Maria olha-se a si mesma: como é possível? Por que essa missão?  “Não temas... quem age é o Senhor... deixa-me ser o centro... esvazia-te de ti... enche-te de mim”  “Já que me fizeste ver que me queres... Faça-se! Já que me fizeste sentir que tu és o importante... Faça-se!  Maria está ali, iluminando nossas pequenas ou grandes experiências de nos sentirmos enviados por Deus: o renuncia aos teus planos pessoais; o torna-te disponível para a missão; o deixa que Deus se encarne em ti; o convence-te de que é Ele quem age.

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LLANO, J. Urbano José, fms – Una Institución y una vida, p. 204, Gran americana, Medellin, 1963

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Assim as Constituições Maristas apresentam Maria: “Na Anunciação, ela acolhe na fé a palavra do Senhor; entrega-se com alegria e amor à ação do Espírito Santo, pelo dom total de si mesma” (C 18). Mas como sucedeu a Maria na Anunciação, Deus saiu ao nosso encontro e nos surpreendeu. Convidou-nos a sair para uma nova terra. Em nossa pequenez e debilidade nos perguntamos: Como poderá ser isto, neste momento de nossa história? (...) Descobrimos que em nossa pequenez está a força de Deus, e que em nossa debilidade está a mão carinhosa do Deus amor.92 Maria evangeliza na Visitação Maria pôs-se a caminho depressa. Fez experiência de Deus e precisa agora compartilhá-la. Maria evangeliza sem palavras Carrega Jesus consigo, e os demais notam:  “Nosso serviço de evangelização (...), cumprimo-lo primordialmente pelo testemunho de nossa vida” (C 86);  “A comunidade, pelo testemunho do amor fraterno de pessoas consagradas, já é evangelizadora” (C 58);  “Quando nossa vida irradia alegria e esperança cristã, despertamos nos jovens a vontade de também eles se entregarem ao seguimento de Cristo” (C 82). Sua experiência de Deus faz-se grito ou canto “O que vimos e ouvimos não podemos calar”:  Maria proclama o Deus que experimenta em sua vida, no mundo, na história;  Maria coloca Deus como protagonista, não se autoproclama;  Maria anuncia: Deus, como primeiro, misericordioso, próximo dos pobres;  Maria denuncia: poder, riqueza, egoísmo, autossuficiência. “O Magnificat revela-nos o coração de Maria” (C 30). Maria da Visitação foi um dos grandes ícones do Capítulo Geral: teremos a audácia de nos colocarmos a caminho, atrás dos passos de Maria da Visitação, que concebeu Jesus em seu coração antes que em seu seio?93 A presença de Maria, que transforma a Mariologia em ciência dinâmica, ou pelo menos não tão abstrata quanto a que parte dos dogmas e verdades proclamados e definidos, é a que nos aproxima de Maria que se põe em nosso nível como discípulos, peregrinos, missionários e também apóstolos. Maria deixa-se evangelizar: como discípula e como peregrina na fé. Maria evangeliza: como missionária e como apóstola Por isso, o XXI Capítulo geral definiu-nos:

92 93

Cf. INSTITUTO DOS IRMÃOS MARISTAS, Atas do XXI Capítulo geral, p. 50-51. Ir. E. TURU, Palavras de encerramento do XXI Capítulo geral.

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 Irmãos de Maria, a caminho com ela. Convidados a descobri-la no evangelho como peregrina da fé.  Um Irmão a caminho com Maria, de coração missionário, testemunha de uma experiência de fé encarnada e feliz, que anuncia a chegada de um mundo novo, iniciado com Jesus.  Percorremos esse caminho com Maria, guia e companheira. Sua fé e sua disponibilidade para com Deus encorajam-nos a fazer essa peregrinação.94 Vejamos, porém, uma síntese estruturada dessa dupla dinâmica: deixar-se evangelizar e evangelizar apostolicamente. 3.5 Seguir Jesus, no estilo de Maria, como educadores maristas Maria deixa-se evangelizar em Belém  Deus fala em circunstâncias estranhas.  Não é fácil discernir o como da missão: o envio, a viagem, a recusa, a pobreza.  Maria acolhe em silêncio, medita, guarda no coração, discerne. Maria evangeliza em Belém Presença silenciosa, de gestos simples:  são os anjos que tocam a trombeta;  é a estrela que guia os magos. Maria está ali, oferecendo Jesus a todos:  aos pobres (pastores)  aos ricos (magos) Maria fica em segundo plano:  “Nós a contemplamos, desconhecida e oculta no mundo, fiel a sua missão de dar Deus aos homens. Com simplicidade, entusiasmo e caridade, ela leva Cristo ao precursor e revela-o aos pastores e aos magos” (C 84);  “Essa atitude simples de Maria mudou a face do mundo. Jesus pôde entrar em nossa história e revolucionar nossa sociedade”.95 Maria deixa-se evangelizar na Apresentação Está atenta às mediações:  os quarenta dias de espera purificatória;  apresentação no Templo, segundo a Lei;  apresentação da oferenda;  cumprimento dos ritos prescritos. Escuta Simeão e Ana:  “Meus olhos já viram a salvação”;  “Sinal de contradição”;  “Uma espada te atravessará a alma”.

94 95

Cf. Atas do XXI Capítulo geral, p. 43-73. Emili Turú , S. G. aos jovens, USA - 17/05/2010

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E se cala, acolhe, guarda, maravilha-se:  “Por sua obediência, torna-se Mãe de Deus e coopera na missão redentora de seu Filho. (...) Dela aprendemos docilidade ao Espírito e obediência lúcida e corajosa” (C 38). Maria evangeliza na Apresentação Maria oferece seu Filho:  a Deus, a Simeão e a Ana;  ao clero e aos leigos, a homens e mulheres, a importantes e simples. E tudo faz com José:  deviam... levaram... consagraram... traziam... cumpriram... voltaram...  “Nosso apostolado é comunitário. Começa pelo testemunho de nossa vida consagrada, vivida em comunidade” (C 82) Maria deixa-se evangelizar na perda de Jesus no Templo “Filho, por que agiste assim conosco?” (Lc 2,48). Maria, não tinhas dado teu fiat? Não disseste a Deus: “Aconteça comigo segundo tua palavra”? Por que perguntas? O processo de fé, para Maria, passa por um momento difícil em sua peregrinação: não é fácil discernir os caminhos de Deus. Desesperamo-nos quando queremos frutos imediatos. Esquecemos que somos semeadores, não colheiteiros. Confundimos fecundidade com eficácia. A missão de Maria – nossa missão – é deixar que Jesus vá se constituindo o centro; deixar que ele aja. Deus faz Maria compreender que Ele age, onde e quando quer. O que lhe pede é que:  continue aberta e disponível, e atenta aos sinais;  saiba discernir a realidade, descubra as pegadas de Deus. “Eles não entenderam o que lhes dizia. (...) Sua mãe conservava a lembrança de tudo isso no coração” (Lc 2,50-51):  sua atitude é de silêncio, de acolhida, de oração: meditar a Palavra;  “Maria guardava tudo em seu coração, meditava e se deixava evangelizar pelo Deus das surpresas, a fim de poder, por sua vez, evangelizar”. 96 Maria deixa-se evangelizar no ministério de Jesus Contemplem a cena: “Tua mãe está aqui e te procura!”;97 - “Quem é minha mãe?”. Coloquem-se aos pés dessa mulher simples: “Quem é minha mãe...?” Maria deixa-se surpreender por Deus. Não entende suas palavras. Não sabe interpretálas: elas doem. Assemelham-se a: “Por que me procuráveis?” (Lc 2,49). Novo silêncio. Nova interiorização. Novo fiat. Jesus vai conduzindo sua mãe até uma nova maneira de entender sua maternidade, sua missão. “Não entendo o que me diz, porém sei que gosta de mim. Não sei aonde me leva, mas sei que não me frustrará.

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Ir. E. TURU, Aos jovens dos Estados Unidos. - 17 de maio de 2010. Na realidade, diz algo, mas tem muito interesse e desejo de ver-te. (Cf. Lc 8, 20-21)

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Na missão, Deus tem seus caminhos. Surpreende: “Maria caminha entre dúvidas, faz sua peregrinação de fé, sem compreender muito bem para onde Deus a vai levando, mas confiando nele”.98 Maria evangeliza em Caná Maria está atenta: “Não têm vinho!”.  dá-se conta do que se passa;  tem os olhos abertos;  sai de si mesma, é sensível à necessidade: “Como Maria, na Visitação e em Caná, estamos atentos às necessidades da comunidade e do mundo” (C 48). Maria compromete-se:  não se limita a constatar, discerne;  age, intervém. Maria age, mas sabe permanecer em segundo plano:  o importante é Jesus;  “Com paciência, espera a hora de Deus, pronta, porém, a intervir” (C 84). Maria deixa-se evangelizar no Calvário Chamada forte. Apelo de Deus a Maria. É duro discernir a voz de Deus, diante da morte do Filho. “Teu Filho será grande…, Deus lhe dará o trono de Davi..., seu reino não terá fim.” 99 Deus convida Maria a entrar no mistério pascal: não há vida, não há salvação, não há evangelização sem passar pela cruz e o sofrimento. Nessa cena de dor, um grito: “Eis aí o teu filho” (Jo 19,26). Deus convida Maria em uma nova relação, uma nova maneira de entender a missão: “Renuncia a ser mãe de um filho e aceita converter-se em mãe de muitos irmãos do primogênito”. “Maria junta-se a Jesus no sofrimento e na humilhação da cruz, antes de assumir seu papel de mãe no seio da Igreja” (C 84). Maria evangeliza no Cenáculo Novamente, a presença:  presença silenciosa, presença orante, presença purificada, presença alentadora;  presença de acordo com a nova missão que Deus lhe confia. “A exemplo da comunidade dos Apóstolos (...), sentimos entre nós a presença de Maria” (C 48). Maria, como Mãe, cria comunidade Sua experiência de Deus é compartilhada em comunidade. Sua missão é a missão da Igreja:  “Nossa ação apostólica é participação em sua maternidade espiritual” (C 84);

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Ir. E. TURU, Aos jovens dos Estados Unidos - 17 de maio de 2010. Ressoam as palavras da Anunciação. Cf. Lc 1, 30-33.

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“Como Maria, retiram-se quando sua presença já não é necessária” (C 91).

3.6 Transmitir às crianças e jovens o rosto materno de Maria Há um apelo urgente e agudo dos jovens de hoje em todas as latitudes e longitudes do mundo em que vivemos. Pedem-nos respostas novas, que venham da experiência, mais do que de reflexões abstratas. Essa constatação, já presente no XIX Capítulo geral, provocou respostas de diversas índoles e variado sentido. Temos que escutar, perguntar; precisamos buscar e orar os gritos e os apelos. Temos que olhar o mundo e as pessoas pelos olhos desses garotos. Para que o carisma de Marcelino não fracasse, é preciso refazer a visão de Champagnat sobre o mundo atual da infância e da juventude.100 É a expressão última elaborada com muita felicidade pelo Ir. Seán Sammon, no discurso final de seu mandato: ver o mundo educacional “através dos olhos de uma criança”.101 A declaração a que nos remete o XIX Capítulo geral assim diz: Discípulos de Marcelino Champagnat, Irmãos e Leigos, juntos na missão, na Igreja e no mundo, entre os jovens, especialmente entre os mais abandonados, somos semeadores da Boa-nova com um estilo marista próprio, na instituição escolar e em outras estruturas de educação, olhamos para o futuro com audácia e esperança.102 Para identificar o rosto materno de Maria Seguindo uma hermenêutica de desconstrução, identificar Maria na encruzilhada da história. A identificação de Maria em vista de uma adequada apresentação aos jovens de hoje precisa ter em conta uma espécie de encruzilhada entre o apego e o desapego, que esses dois movimentos supõem: a atração que, no cristianismo, supõe a presença materna de Maria em todas as dimensões e efeitos; e a necessidade de evocar o rosto de Maria em uma experiência com capacidade evocativa válida para os olhos dos jovens. Os olhos da história funcionam também aqui como identificadores e o espaço temporal, histórico, é importante e válido.103

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É preciso ter em conta que a realidade de muitos educadores maristas é a de “leigos comprometidos”, entre os quais a maioria são mulheres. 101 Ir. S. SAMMON, Mensagem de abertura do XXI Capítulo Geral. Atas do XXI Capítulo Geral, p. 187. 102 Mensagem final do XIX Capítulo Geral. O texto serve de base para os títulos dos capítulos do documento Missão Educativa Marista (São Paulo: SIMAR, 2000). 103 Será particularmente fecundo comparar, ao estilo do que sugere Stefano De Fiores, o tratamento e o valor da mulher e do feminino, tal como se menciona na obra Maria nel mistero di Cristo e della Chiesa, p. 7-8.

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3.6 Transmitir às crianças e jovens o rosto materno de Maria Há um apelo urgente e agudo dos jovens de hoje em todas as latitudes e longitudes do mundo em que vivemos. Pedem-nos respostas frescas, que venha da experiência mais que de reflexões abstratas. Essa constatação, já presente no XIX Capítulo Geral, provocou respostas de diversas índoles e sentido. Temos que escutar, temos que perguntar, precisamos buscar e orar os gritos e os apelos. Temos que olhar o mundo e as pessoas pelos olhos desses garotos. Para que o carisma de Marcelino não fracasse, é preciso refazer a visão de Champagnat sobre o mundo atual da infância e da juventude.104 É a expressão última elaborada com muita felicidade pelo Ir. Seán Sammon, no discurso final de seu mandato: ver o mundo educacional “através dos olhos de uma criança”.105 A declaração a que nos remete o XIX Capítulo Geral assim diz: Discípulos de Marcelino Champagnat, Irmãos e Leigos, juntos na missão, na Igreja e no mundo, entre os jovens, especialmente entre os mais abandonados, somos semeadores da Boa-nova com um estilo marista próprio, na instituição escolar e em outras estruturas de educação, olhamos para o futuro com audácia e esperança.106 Para identificar o rosto materno de Maria Seguindo uma hermenêutica de desconstrução, identificar Maria na encruzilhada da história. A identificação de Maria em vista de uma adequada apresentação aos jovens de hoje precisa ter em conta uma espécie de encruzilhada entre o apego e o desapego, que esses dois movimentos supõem: a atração que, no cristianismo, supõe a presença materna de Maria em todas as dimensões e efeitos; e a necessidade de evocar o rosto de Maria em uma experiência com capacidade evocativa válida para os olhos dos jovens. Os olhos da história funcionam também aqui como identificadores e o espaço temporal, histórico, é importante e válido.107 Maria é sujeito humano e feminino concreto. Os perfis de humildade, simplicidade, liberdade, santidade, obediência ao Pai, abertura ao Espírito. A inteligência do desígnio de misericórdia.

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É preciso ter em conta que a realidade de muitos educadores maristas é a de “leigos comprometidos”, entre os quais a maioria são mulheres. 105 Ir. S. SAMMON, Mensagem de abertura do XXI Capítulo Geral. Atas do XXI Capítulo Geral, p. 187. 106 Mensagem final do XIX Capítulo geral. O texto serve de base para os títulos dos capítulos do documento Missão Educativa Marista (SIMAR, Anexo I, S. Paulo, 2000). 107 Será particularmente fecundo comparar, ao estilo do que sugere Stefano De Fiores, o tratamento e o valor da mulher e do feminino, tal como se menciona na obra Maria nel mistero di Cristo e della Chiesa, p. 7-8.

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O chamado de uma mulher, Maria, a uma tarefa crucial para a realização da salvação revoluciona a concepção injusta do mundo antigo. Marca o ponto de partida para uma profunda valorização da mulher e de sua missão no mundo. Os juízos de Deus, como diz São Paulo (1Cor 1,27), não são as opiniões dos homens! A mulher não apenas foi feita objeto do amor misericordioso e benéfico de Deus, mas foi capaz de uma decisão e de uma doação de salvação na casa da família humana. Maria vincula-se a uma relação com Deus. Deus fala bem dela: “Bendita és tu entre todas as mulheres” (Lc 1,42). Maria tem uma personalidade singularmente rica desde o ponto de vista bíblico. 108 Nesse tratado teológico, convém equilibrar constantemente a leitura para superar a posição de singularidade, ou melhor, de individualismo de Maria de Nazaré, a fim de integrar constantemente Maria como companheira de viagem e primeira peregrina da fé.109 Maria será para as mulheres de todas as idades estímulo para iniciar o conhecimento adequado das próprias capacidades e responsabilidades no plano de salvação e das frentes sociais. A encíclica Marialis Cultus, de Paulo VI, convida a mulher a ler o evangelho partindo de suas justas expectativas e necessidades. Descobrirá também uma imagem completamente nova e atual de Maria, não uma mulher passiva ou de religiosidade alienante, mas uma mulher ativa e responsável, uma mãe não exclusiva e invejosamente preocupada por seu filho, mas aberta à comunidade em escala mundial. A mulher contemporânea, desejosa de participar com poder de decisão nas opções da comunidade, contemplará com íntima alegria a Virgem Santíssima, que, assumida para o diálogo com Deus, dá o seu consentimento ativo e responsável (LG 56), não para a solução dum problema contingente, mas sim da “obra dos séculos” como foi designada com justeza a Encarnação do Verbo.110 A imagem de Maria em ação e movimento Uma das riquezas a ser explorada pelo catequista mariano é a possibilidade de superar a fixidez. Os evangelhos sinóticos apresentam-nos Maria num viajar frequente e num movimento singularmente enriquecedor de adaptação à antropologia atual da mudança. Fazer com que a experiência humana entre em tudo Especialmente a que entra através dos olhos das crianças e jovens de hoje, fixos na experiência dos valores solidários e de outros tipos. Aplicar as melhores técnicas pedagógicas O elemento mariano chega com demasiada frequência aos adolescentes e jovens com roupagem tão estranha à figura de Maria, que provocam o distanciamento e o desapego quase irremediável. “Palavras grandiloqüentes, representações em que o afetivo degenera em fórmulas adocicadas e melosas, gestos exteriores sem qualquer 108

Basta confrontar os textos e referências sinóticas, especialmente Lc 1 e 2 e Mt 2. Com isso, evita-se qualquer tipo de devoção de “submissão” ou de prostração admirativa diante do inalcançável. 110 PAULO VI, Exortação Apostólica Marialis Cultus. Roma, 2 de fevereiro de 1974. 109

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ressonância vivida e sem compromisso”,111 acabam por esconder a imagem autêntica da Mãe do Senhor. O dinamismo da catequese será proporcional com a participação e responsabilidade delegada, por meio do diálogo, de trabalho em grupo, de exposições, de investigação, de mesas redondas etc. “Não se deve ver os jovens apenas como objeto da catequese, mas como sujeitos ativos, protagonistas da evangelização e artífices da renovação social”.112 O catequista, mais que um professor, precisa ser o animador e coordenador da ação do grupo. Sua influência será tanto mais importante quanto maior seja o carinho e a confiança depositada no grupo e em cada um dos jovens. Deve estimular a cada momento, sem adular nem infantilizar. O catequista deve escutar com simplicidade e benevolência não apenas as dúvidas, mas também as opiniões contraditórias dos jovens, para então expressar a própria, não como solução definitiva, senão como uma contribuição a mais para o diálogo e a busca da verdade cristã. Deve oferecer-lhes a estabilidade emocional, que lhes permita tranquilizar seus altos e baixos afetivos. Um desafio importante será o de saber adaptar eficazmente a cada realidade de adolescentes e jovens a catequese mais conveniente: Uma das questões a serem afrontadas e resolvidas diz respeito à diferença de “linguagem” (mentalidade, sensibilidade, gostos, estilo, vocabulário...) entre jovens e Igreja (catequese, catequistas). Insiste-se, portanto, sobre a necessidade de uma “adaptação da catequese aos jovens”, sabendo traduzir na sua linguagem, com paciência e sabedoria, a mensagem de Jesus, sem a trair.113 Como diz Elizabeth Johnson, os textos marianos da Escritura são peças de um grande mosaico, são imagens descontínuas que não formam um quadro completo cada uma em si. Estão coladas na história de Jesus. Ao formar esse mosaico, tornamos possível a criação de uma memória viva, libertadora. Estudamos, pois, os ladrilhos, as memórias teológicas concretas de Maria, como pinceladas de cor que formam parte da textura da história do compromisso de Deus vivo com a carne e a realidade do mundo. O objetivo é, dentro da nuvem de testemunhos, uma imagem-recordação de Maria de muitas facetas, viva, que participa da condição de “perigo” na medida em que suscita resistência, gera sabedoria e inspira esperança no renascimento de todos os seres humanos e na terra, como queridos por Deus.114 3.7 O educador marista propõe um estilo peculiar de educação A pedagogia marista caracterizou-se por uma série de traços que deram identidade ao Instituto em seus quase duzentos anos de existência. Uma das características da pedagogia marista, quer dizer, do modo próprio de agir no campo da educação, tem sido a chamada “pedagogia da presença”. Existem alguns traços, que nos vêm do

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A. ESCUDERO, María, desde la cercanía. La madre de Jesús en la pastoral juvenil. Misión Joven 44(2004), p. 5. CONGREGAÇÃO PARA O CLERO, Diretório Geral para a Catequese. Vaticano, 15 de agosto de 1997, n. 183. 113 Diretório Geral para a Catequese, n. 185. 114 Cf. JOHNSON, E.A., Verdadera hermana nuestra, Herder, Barcelona, p. 247-255. 112

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Fundador, assimilados pelos primeiros Irmãos, que os transmitiram a nós como herança valiosa, e foram conhecidos, apropriados e postos em prática posteriormente por numerosos educadores maristas, e que passaram a ser princípios educativos institucionais. A presença e a proximidade na ação educativa é um princípio fundamental que se expressa com a filosofia de Marcelino e de nossa tradição marista. Não é uma definição teórica de identidade e de objetivos. É uma meta prática que se introduz na vida real, impulsiona ações, e se comprova nas pessoas. Marcelino dizia que para ensinar os saberes humanos bastam os professores e que para ensinar religião são suficientes os catequistas. E acrescentava que nossa meta é muito superior: é educar as crianças, encher seu coração de bons sentimentos, ajudar seu amadurecimento humano e cristão. E isso não se pode fazer sem viver com as crianças, sem que elas estejam muito tempo conosco. Consequentemente, com a ideia de que os Irmãos deviam estar muito tempo com as crianças, Marcelino pedia que houvesse nas escolas pátios para a diversão, o esporte e as atividades que permitiriam a eles um encontro com as crianças, participando e colaborando com seus interesses mais espontâneos. Para ser eficientes, recomendava que os educadores não deixassem nunca a sala de aula, ainda que devesse atender a famílias ou amigos, que a proximidade com as inquietações e os problemas das crianças fosse constante. Eis aí alguns indicadores. Contudo, onde se fundamenta essa presença que se faz pedagogia? Quais são os princípios que a avaliam como eficiente e construtiva na tarefa educativa? Qual é o estilo da presença educativa marista? Em toda a tradição educativa marista, sublinhou-se a presença como chave de nosso estilo e de nossa eficácia. Um elemento característico dessa presença é, antes de tudo, a presença física. Não se pode admitir que a responsabilidade do aluno – principalmente se é pequeno – supra as ausências do educador. Todo bom educador – e isso não é exclusivo dos maristas, senão de uma sã pedagogia – sabe que a presença é parte da pedagogia preventiva e se coloca a serviço dos apoios que os alunos necessitam para reforçar sua liberdade e amadurecimento. Por meio da presença, explicam-se dois elementos muito concretos de nosso amor e dedicação aos alunos, que estão relacionados com esse tipo de pedagogia: a entrega do tempo e a disposição à escuta, à acolhida e à relação profunda com a pessoa. Os meios, os recursos, as oportunidades podem ser muito variadas: vigilância, pátios, saídas ou entradas em sala, excursões, esportes, convivências, visitas, competições etc. Mediante a presença faz-se patente o testemunho e a calorosa proximidade dos valores que o educador oferece e comunica aos alunos. A maneira prática de se achegar a eles é conviver muitas horas com os jovens, participando de seus jogos, de suas atividades, de suas vivências. Presença e presente são duas noções que tendemos a confundir. No entanto, entre elas existe uma diferença importante. Presença é e foi uma noção mais simples, mais 43


primitiva, que a de presente. Durante muitos séculos o ponto de partida do diagnóstico de presença foi o seguinte: existem objetos e pessoas que estão ao alcance de nossos órgãos sensoriais e, portanto, podemos vê-los, tocá-los, ouvi-los. Dessa forma, concretizou-se a ideia de presença. Pelo contrário, quando não se podia ver, tocar ou ouvir, afirmava-se que havia ausência. Regra de ouro dos educadores maristas A expressão do ato de exercitar a presença pode se expressar com distintos vocábulos que, por sua vez, indicam circunstâncias diversas de como se exercita a presença: estar presente expressa uma atitude permanente de presença; por outra parte, fazer-se presente manifesta uma atitude ocasional, na qual se exercita a presença, ao passo que presente, como tempo de verbo, indica que a ação se realiza nesse momento. Essa definição, ou opção interpretativa, implica que a presença encerra em si as noções de espaço e tempo, que determinam a relação com o sujeito que exercita a presença. O sujeito que a exercita, com relação ao tempo, suporta uma duração, um transcurso, quer dizer, que permanece durante um espaço de tempo, curto, longo, breve ou prolongado. A presença, portanto, implica um aqui e agora, aí e antes, ou mais além e depois. Uma presença atual e real, ou virtual e não real. Por conseguinte, a presença é uma história e uma geografia, um calendário e uma paisagem, um relógio e um cenário, um ontem que se faz hoje, um caminho e uma meta, uma direção, um sentido... Do jeito de Maria Os caminhos da pedagogia marista deixaram numerosas pegadas, perfiladas pelo sinal da simplicidade que São Marcelino Champagnat legou a seus Irmãos educadores, impressas na ação educativa diária que já se tornou história. Esses traços que matizam nosso caminhar profissional foram partilhados por numerosos professores que têm colaborado com os maristas em suas obras educativas e que têm o atrativo e a eficácia para provocar em muitos o desejo de fazer próprios esses valores educativos de hoje e de sempre. Que nossa Boa Mãe os anime a se superarem no caminho profissional, para editar hoje novos capítulos da pedagogia marista com presenças significativas. O Irmão Marista, religioso educador da juventude, dá testemunho do amor redentor de Cristo às crianças (Lc 18,15) e aos jovens (Mc 10,21). Sua vida inteira e todo o seu apostolado levam um selo mariano que o identifica, inclusive entre os demais Institutos de Irmãos educadores. Conforme a intuição carismática do Fundador,115 ser marista quer dizer realçar a função mediadora de Maria, anunciar seu mistério de maternidade espiritual, prolongando-o na educação religiosa dos jovens, e comprometê-los para que o assimilem intimamente por uma devoção mariana sólida e perseverante. O influxo mariano de uma comunidade marista é o meio mais seguro para atrair-lhe novas vocações116 e para conservar, ao fazê-las florescer, as vocações que já tem.117

115

Vida, p. 311. Vida, p. 322-323. 117 Vida, p. 90. 116

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No entanto, esse testemunho de fé e de amor, para ser autêntico precisa ser vivido no plano da existência pessoal de cada Irmão. Sua vocação faz dele uma testemunha e um sinal do mistério de Maria. A autenticidade de seu testemunho exige que seja fiel a si mesmo, na linha de sua vocação particular. A imitação viva de Nossa Senhora deve inserir-se na linha de seu carisma pessoal, que é dom de Deus e riqueza para todo o Instituto. Fiéis ao Concílio, que os comprometeu no caminho da renovação, os Irmãos desejam que “a devoção a Maria, o espírito de Maria, seja o caráter distintivo da Congregação e de cada um de seus membros, o sinal pelo qual todos possam reconhecê-los” 118 CONCLUSÃO: PARA UMA IGREJA COM ROSTO MARIANO A expressão “Igreja mariana” não estava no plano do Capítulo. Apareceu nas Cartas regionais e, pouco a pouco, o Capítulo a assumiu. Dito em outras palavras, Igreja mariana equivale a:  dimensão mariana da Igreja;  rosto mariano da Igreja;  princípio mariano da Igreja;  perfil mariano da Igreja. João Paulo II, em sua mensagem aos quatro ramos da Sociedade de Maria, disse-nos: “Cabe a vós manifestar, de maneira original e específica, a presença de Maria na vida da Igreja e na vida dos homens”. O XIX Capítulo geral já o tinha intuído: por sua vida e serviço, a comunidade anuncia já, “de maneira profética, uma forma de ser Igreja mais comunitária, mais participativa, família de irmãos e irmãs com diferentes carismas”.119 É igualmente corroborado pelo XXI Capítulo geral: “Reconhecemos e apoiamos a vocação do leigo marista. Acreditamos que seja um convite do Espírito para viver uma nova comunhão de irmãos e leigos maristas (...), formando todos juntos uma Igreja profética e mariana”.120 Em diversos momentos fala Ir. Emilli Turú, Superior geral: No último Capítulo geral ficou bem claro o convite recebido de Deus: “Os maristas são chamados a ser o rosto mariano da Igreja”. Hoje, neste momento, eu diria que todos nós, Irmãos, leigos e jovens, somos convidados por esse mesmo Deus que nos ama, que ama cada um de vocês, a ser esse rosto mariano da Igreja.121 O ícone mariano do “novo l‟Hermitage” é também o desafio para nossas comunidades e nossas obras educativas (...). Inspirados por Maria, “em torno da mesma mesa”, somos chamados a ser um sinal: é possível um modo diferente de fazer Igreja. 122 A Exortação Apostólica Vita Consecrata lança o apelo a ser “irmãos que fazem reinar maior fraternidade na Igreja”,123 e o Capítulo geral impele-nos a construir uma Igrejacomunhão, junto com Maria, caminhando com ela, apressadamente.124

118

Circulaires des Supérieurs G., 3,51 INSTITUTO DOS IRMÃOS MARISTAS, Atas do XIX Capítulo geral. 120 INSTITUTO DOS IRMÃOS MARISTAS, Documento do XXI Capítulo geral. 121 IR. EMILI TURU, Mensagem à PJM do Brasil, janeiro de 2010. 122 IR. EMILI TURU, Inauguração de l’Hermitage renovado, setembro de 2010. 119

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Há fundamento teológico para se falar de “Igreja mariana”? Cardeal Joseph Ratzinger, em 1985, numa memorável homilia de caráter mariano, sublinhou a importância e a atualidade da dimensão mariana da Igreja, afirmando que essa se constitui num dos “sinais de nosso tempo”.125 Dois anos depois, afirmou João Paulo II: “Esse perfil mariano é tão – senão mais – fundamental e característico da Igreja como o perfil apostólico e petrino, ao qual está profundamente unido”.126 Na Carta Apostólica Mulieris Dignitatem, de 1988, afirma o papa: “Maria de Nazaré, é „figura‟ da Igreja. Ela „precede‟ todos no caminho rumo à santidade; na sua pessoa „a Igreja já atingiu a perfeição, pela qual existe sem mácula e sem ruga‟ (cf. Ef 5,27). Neste sentido, pode-se dizer que a Igreja é conjuntamente „mariana‟ e „apostólico-petrina‟.127 O Catecismo da Igreja Católica, ao comentar o artigo do Creio sobre a Igreja, consagra a expressão: “Nesta santidade que é o mistério da Igreja, Maria precede-nos todos como „a Esposa sem mancha nem ruga‟. E é por isso que „a dimensão mariana da Igreja precede a sua dimensão petrina‟”.128 A Igreja “mariana” contém e encerra a Igreja “petrina”, ou seja, a Igreja em seu aspecto hierárquico, e não o contrário. O aspecto “petrino” da Igreja está incluído no aspecto “mariano”. Com efeito, em Maria encontramos a essência da Igreja, sem deformações.129 Hans Urs Von Balthazar (1905-1988) é o autor do princípio mariano da Igreja, uma das melhores sínteses teológicas a respeito. Estamos numa Igreja que muda. Passamos:  de uma Igreja-poder a uma Igreja-comunhão;  de uma Igreja isolada a uma Igreja encarnada;  de uma Igreja autoritária a uma Igreja servidora;  de uma Igreja “católica” a uma Igreja ecumênica;  de uma Igreja clerical a uma Igreja de leigos;  De uma Igreja monolítica a uma Igreja pluralista;  De uma Igreja-sacramentos a uma Igreja-evangelização. Nessa Igreja somos chamados a ser sinais de que outra maneira de ser Igreja é possível: “Esses primeiros Maristas tinham consciência de que o Projeto era parte da missão de Maria (...), para viver um novo modo de ser Igreja”.130 A IGREJA FUNDADA EM PEDRO É A IGREJA COM ROSTO MARIANO É

123

JOÃO PAULO II, Exortação Apostólica Vita Consecrata. Roma, 25 de março de 1996. Cf. INSTITUTO DOS IRMÃOS MARISTAS, Documento do XXI Capítulo geral. 125 Homilia aos peregrinos de Schoenstatt, na Basílica de Santa Maria Maior. Roma, 18 de setembro de 1985. 126 JOÃO PAULO II, Discurso aos cardeais e prelados da Cúria Romana, 22 de dezembro de 1987. 127 JOÃO PAULO II, Carta Apostólica Mulieris Dignitatem. Roma, 15 de agosto de 1988, n. 27. 128 IGREJA CATÓLICA, Catecismo da Igreja Católica. Roma, 11 de outubro de 1992, n. 773. 129 BENTO XVI, 8 de dezembro de 2005. 130 INSTITUTO DOS IRMÃOS MARISTAS, Água da Rocha, n. 11. 124

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Teológica

Carismática (Mãe e Modelo da Igreja)

Inamovível na rocha

Flexível ao Espírito

Hierárquica, patriarcal

Comunhão, fraternidade

Com acento na autoridade

Com acento no serviço

Preocupada com o “depósito da fé”

Preocupada em discernir novos apelos

Magisterial, impositiva

Profética, participativa

Centralizada na lei, na norma

Centralizada no amor

Com rosto único

Com diversos rostos

Percebida como distante

Percebida como próxima

Fora da qual não há salvação

Sacramento de salvação para todos

O Superior Geral, Ir. Emili Turu, tem feito do tema da Igreja mariana uma de suas principais reflexões: Há, a meu ver, no seio da Igreja pelo menos duas situações problemáticas, provavelmente relacionadas entre si: de um lado, um clericalismo que parece só aumentar, e de outro, uma grande incompreensão a respeito do sentido e da função da vida religiosa. Não estamos construindo uma Igreja paralela, mas, conforme nosso ser de religiosos irmãos, tratamos de fomentar a dimensão mariana da Igreja, complementar da dimensão petrina, como já sublinharam tanto o papa João Paulo II como o atual.131 Tenho ouvido com frequência críticas a respeito de certa percepção que se tem da Igreja. São muitos os jovens que a veem como autoritária, clerical, machista, impositiva e distante. João Paulo II convidava, há alguns anos, os maristas a trabalharem para construir uma Igreja “mariana”, ou seja, uma Igreja que reflita o rosto e as atitudes de Maria, e que se manifesta na comunhão fraterna, participativa, próxima.132 Uma Igreja mariana é uma Igreja de comunhão. Somente nessa perspectiva podemos assumir e compreender o papel dos leigos. PERGUNTAS PARA O DIÁLOGO 1. Existe uma nova geração de homens e mulheres com atitudes maristas novas na Igreja e no Instituto. Uma Igreja castigada por tensões e tendências de muitos tipos.

131 132

Ir. Emili, S. G., Congresso Vida religiosa 2011 Ir. Emili S. G., Mensagem em preparação à JMJ Madrid, 2011

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Se nos fixamos apenas nos entusiasmos que, desde as origens, moveram os fundadores maristas para ser mais fiéis a seus pastores e pelo bem dos fiéis que eram o objetivo de seu apostolado, poderemos estabelecer certo paralelo com as propostas de educadores maristas novos no mundo atual. Desejamos que a abertura do coração e a renovação da consagração nos abram a uma nova identidade de Irmão: 1. Um irmão que por sua consagração pertence exclusivamente a Deus e que, a partir dessa experiência, se desloca com urgência para as novas fronteiras das crianças e jovens pobres. 2. Um irmão de coração novo que testemunha a conversão a Jesus Cristo, numa vida de amor incondicional e disponibilidade radical. 3. Um irmão que, guiado pelo Espírito, faz do discernimento um exercício quotidiano em busca da vontade de Deus no mundo. 4. Um irmão a caminho com Maria, de coração missionário, testemunha de uma experiência de fé encarnada e feliz, que anuncia a chegada de um mundo novo, iniciado com Jesus.133 Seremos capazes de formar esses novos educadores para que transmitam a fé e os valores dos quais temos sido testemunhas? Como poderemos alcançar isso mais eficazmente? 2. Nova maneira de ser educador marista O documento final do Capítulo geral propõe uma série de ações concretas para uma vida consagrada nova que promova um novo modo de ser Irmão de coração novo: Propostas de ação 1. Favorecer, a partir das diversas instâncias de animação e governo, a criação ou o fortalecimento de redes de espiritualidade que animem o apelo à conversão, caminhando espiritualmente com Maria, mediante itinerários refletidos e acompanhados. 2. Orientar a próxima revisão das Constituições, com a participação de todos os Irmãos, rumo ao nascimento de uma nova época para o carisma marista. Esta revisão será uma oportunidade para lograr um processo de renovação pessoal, comunitária e de nossas obras, que nos torne sinais de Jesus e do seu Evangelho. 3. Convidar todos os Irmãos e comunidades a discernir sobre a sua presença entre as crianças e os jovens - para torná-la mais próxima, mais significativa e mais visível. 4. Propiciar novos estilos de comunidade, em contato com as crianças e jovens pobres, que conduzam a uma vida mais simples. 5. Potenciar a vivência do amor entre os Irmãos, com gestos de carinho e união, para que nossas comunidades sejam verdadeiramente um sinal profético de fraternidade.134

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INSTITUTO DOS IRMÃOS MARISTAS, Documento do XXI Capítulo geral. Roma, 2009. Documento do XXI Capítulo geral. Roma, 2009.

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6. Favorecer, nos diferentes níveis de governo, a instalação de casas de formação internacionais, onde as novas gerações possam adquirir maior disponibilidade missionária, sentido de internacionalidade e sensibilidade intercultural. 7. Rever os programas de pastoral juvenil, de pastoral vocacional, de formação inicial e permanente para favorecer uma melhor compreensão da identidade do Irmão marista, no mundo de hoje, e fomentar um crescimento integral nas dimensões humana e espiritual. Como pôr em prática essas ações? Como adquirir essas novas atitudes? 3. Olhamos o futuro com esperança Uma das características mais peculiares da Igreja latino-americana e que pertence à “identidade própria desses povos”,135 é a devoção a Maria. João Paulo II viu na devoção à Mãe da Igreja o fundamento da unidade espiritual de todo o nosso Continente. Se o amor a Maria é inseparável de toda vivência do catolicismo, o é de maneira muito especial do catolicismo popular latino-americano, desde suas origens até hoje. No entanto, nesse como em outros aspectos, a devoção profunda que nosso povo sente por Maria necessita de uma profunda evangelização,136 que possibilite que essa piedade se esclareça, que supere individualismos estreitos e se vincule mais ao mistério da salvação. Lemos na Missão Educativa Marista: “O futuro do mundo e da Igreja pertence às jovens gerações” (...). Que vocação privilegiada a nossa de Educadores Maristas, Irmãos e Leigos, homens e mulheres, jovens e idosos, todos chamados a ser Marcelino Champagnat para as novas gerações! Com a mesma paixão e entrega para a Missão que incendiou o cotidiano da sua vida, também nós decidimos enfrentar hoje o futuro com audácia e esperança.137 O que você pensa que nossas crianças e jovens esperam de nós? Como nos veem com seus próprios olhos? Com Maria, Maristas novos para uma nova terra Maria, tu és companheira de caminho e principal inspiradora de nossa peregrinação rumo ao bicentenário marista. Bem-vinda sejas!

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CELAM, Conclusões de Puebla, n. 283. Conclusões de Puebla, n. 461. 137 Cfr. Pág. 102 de Missão educativa marista 136

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