Revista Cásper #4

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´ casper Nº 4 – Setembro de 2011

a hora do

humor

Jon Lee Anderson

Jornalista em guerra

Beth Carmona A dona do Castelo

Margarida Kunsch

Comunicação integrada


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´ casper Fundação Cásper Líbero Presidente Paulo Camarda Superintende Geral Sérgio Felipe dos Santos

Faculdade Cásper Líbero Diretora Tereza Cristina Vitali Vice-Diretor Welington Andrade

Revista Cásper Núcleo Editorial de Publicações Coordenador de Ensino de Jornalismo Igor Fuser Editor-chefe Carlos Costa Editor Thiago Tanji Conselho Editorial Adalton Diniz, Carlos Costa, Elisa Marconi, Igor Fuser, Luiz Alberto de Farias, Rodney Nascimento e Welington Andrade Reportagem Ítalo Fassin, Jaqueline Gutierres, Lidia Zuin, Louise Solla, Paulo Pacheco e Tiago Mota Editor de Arte e Fotografia Henrique Koller Assistente de Arte e Fotografia Renan Goulart Diagramação Henrique Koller e Renan Goulart Colaboraram nesta edição Maria Ivoneti Busnardo Ramadan, Mariana Kindle e Petrus Lee Projeto Gráfico Danilo Braga e Gilberto Maringoni Redação Avenida Paulista, 900 — 5º andar 01310-940 — São Paulo — SP Tel.: (11) 3170-5874 E-mail: revistacasper@casperlibero.edu.br Site: http://www.casperlibero.edu.br Capa Divulgação/Agência Na Lata

Revista Cásper – Setembro de 2011 – Nº 4

sobre a mídia

bem-humorada Este quarto número da revista Cásper que chega às suas mãos, caro

leitor, visa uma vez mais atender à missão para a qual a publicação foi criada: dialogar com a sociedade e, especificamente, com o mercado de trabalho no qual atuam jornalistas, publicitários, relações públicas e profissionais de rádio e tevê – o campo do saber a que a Faculdade Cásper Líbero se dedica há mais de seis décadas. A proposta das reportagens e das entrevistas é discutir os temas mais relevantes da comunicação contemporânea, dirigindo-se tanto aos especialistas como ao leitor leigo. É com esse foco que a reportagem de capa “Todos querem humor” trata da tendência atual dos meios de comunicação de abrirem cada vez mais espaço para o humor. Por que o gênero empolga tanto hoje? Especialistas e profissionais comentam o sucesso de atrações televisivas como o CQC ou o Pânico na TV!, tratando ainda do crescente apelo das comédias stand up entre os jovens. Outro tema candente é o rádio, que se refaz em forma e conteúdo, adaptando-se mais uma vez às mudanças tecnológicas. A reportagem “Rádio em novos ares” mostra como o mundo radiofônico continua fascinante e aprendeu a surfar no “boom” da internet, conquistando novos públicos e audiências. Uma pesquisadora de prestígio, a Profa. Dra. Margarida Kunsch, da Escola de Comunicações e Artes da USP, é entrevistada nesta edição. Uma das mais ilustres representantes dos estudos acadêmicos em Relações Públicas, ela aponta para a necessidade cada vez maior da formação de gestores em comunicação. O destaque internacional desse número é “Um trabalho para poucos”, que reproduz os melhores momentos da conversa do jornalista norte-americano Jon Lee Anderson com os alunos da Cásper Líbero. Nome de referência na cobertura de guerra, Lee Anderson ganhou reconhecimento internacional com seu livro Che Guevara: uma biografia. Convidado do 3º Congresso Internacional de Jornalismo Cultural, realizado pela revista Cult e o SESC Vila Mariana, ele aceitou um convite especial para dialogar com nossos estudantes. “A dona do Castelo” traça um perfil de Beth Carmona, um dos principais nomes da produção infantil televisiva brasileira: Mundo da Lua, Castelo Rá-tim-bum e Cocoricó são alguns dos sucessos ligados à passagem da profissional pela TV Cultura. Em nosso fazer diário aqui na Cásper Líbero, o mundo da Comunicação é tema constante de aulas, seminários, atividades laboratoriais. Com a Cásper que você tem agora em mãos, compartilhamos com o leitor um pouco dessa produção. Boa leitura a todos!

Tereza Cristina Vitali Diretora

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Sumário

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Cultura em discussão

Nova sintonia

A cobertura do Congresso Internacional de Jornalismo Cultural, que chegou à sua 3ª edição

Adaptando-se às novas tecnologias, o rádio continua conquistando fãs

A rainha do Castelo

“O jornalismo cultural tem muita importância”

Entrevista com o porto-riquenho Hector Feliciano, autor do livro que revelou segredos da Segunda Guerra Mundial

Beth Carmona, diretora de clássicos da produção infantil, faz uma irresistível viagem pelo passado

Conflitos, explosões e jornalismo

Versão brasileira

Especialista na cobertura de guerra, o americano Jon Lee Anderson conta suas impressionantes histórias

Chegando aos cinquenta anos, o mercado da dublagem brasileira convive com altos e baixos

Edição artesanal

Entre a teoria e a prática

Conheça como são elaborados os fanzines, produção underground que é levada a sério

Entrevista com Margarida Kunsch, referência nos estudos das Relações Públicas

A moda é ser cool

Notícias casperianas

Caçadores de tendências, os cool hunters contam sobre a sua profissão

As principais atividades que aconteceram na Faculdade durante o primeiro semestre de 2011

O espetáculo do humor

Resenha e Crônica

Cada vez mais presente nos meios de comunicação, a produção humorística busca provar que quantidade também é sinônimo de qualidade Revista Cásper – Setembro de 2011 – Nº 4

“Agostini na feliz leitura de Maringoni”, por Carlos Costa “De aves e de gentes”, por Maria Ivoneti Busnardo Ramadan Revista Cásper – Setembro de 2011 – Nº 4

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Jaqueline Gutierres

EVENTO

edição para decidir quem serão os próximos palestrantes, além de planejar novidades para o encontro cultural seguinte. Em 2011 o evento foi realizado em parceria com o SESC SP, que escolheu a unidade Vila Mariana para abrigar as palestras. O espaço tem um auditório onde aconteceram as mesas e um estúdio de televisão onde os palestrantes davam entrevistas, que foram exibidas na página virtual que o SESC criou para o congresso. Entre os convidados nacionais, nomes importantes das artes, do jornalismo e do estudo de cultura estiveram presentes, como o crítico literário Alcir Pécora, a escritora Esther Hambúrguer, o jornalista e escritor Ignácio de Loyola Brandão, o diretor de redação da revista Rolling Stone Brasil, Pablo Miyazawa, e o músico Zeca Baleiro. Além deles, quem também participou do congresso foi o cineasta argentino-brasileiro Hector Babenco.

Cultura para pensar a

A edição 2011 do evento aconteceu entre 17 e 20 de maio

por Jaqueline Gutierres e Tiago Mota Há três anos, jornalistas, professores e artistas se reúnem durante quatro dias, sempre no mês de maio, para debater a relação entre cultura e mídia no Brasil. Promovido pela revista Cult, o Congresso de Jornalismo Cultural vem se destacando como um dos principais eventos de discussão e debate sobre o tema. A edição 2011, ocorrida durante os dias 17 e 20, agradou a idealizadora do Congresso, Daysi Bregantini, diretora e editora responsável da Cult. “A ansie-

dade era grande e fico satisfeita porque tudo correu bem. Eram mais de sessenta convidados e não tivemos problema com nenhum deles. Além disso, a plateia foi bem participativa.” A ideia do congresso foi colocada em prática em 2008, mas já era idealizada há um bom tempo. “A situação do jornalismo cultural no país é sofrível, porque a formação específica dos profissionais é ruim, o espaço nos jornais diminuiu e os textos perderam

seu caráter reflexivo”, enfatiza Bregantini. Dessa maneira, o objetivo do encontro é ser um espaço em que as manifestações culturais contemporâneas possam ser apresentadas e debatidas pelos jornalistas que trabalham nessa editoria. A curadoria do congresso é uma parceria entre Daysi Bregantini, Welington Andrade, vice-diretor da Faculdade Cásper Líbero, e Gunter Axt, doutor em História Social. Os três se reúnem ao fim de cada Revista Cásper – Setembro de 2011 – Nº 4

Desde sua segunda edição, um grande nome da cultura brasileira é homenageado pela curadoria do congresso. Em 2010, a escritora Clarice Lispector foi lembrada. Neste ano, o cineasta Glauber Rocha foi o agraciado. “Há a preocupação de não ser apenas um evento que fale sobre cultura, mas um acontecimento cultural. Por isso, na homenagem a Glauber, por exemplo, escolhemos filmes para serem exibidos”, comenta Welington Andrade, o curador acadêmico. Além das sessões com os filmes de Glauber, uma palestra abordou sua cinematografia. Nela, Ismail Xavier, crítico, professor e autor de livros como Sertão Mar: Glauber Rocha e A Estética da Fome (Cosac Naify), discutiu as técnicas utilizadas por Rocha na construção das cenas de seus filmes. Houve também a preocupação de trazer outros admiradores da obra do diretor brasileiro, Revista Cásper – Setembro de 2011 – Nº 4

Evento internacional Entre os convidados estrangeiros que participaram do encontro cultural, destaque para Camille Paglia, escritora norte-americana e Ph.D em Língua Inglesa pela Universidade de Yale, que ganhou notoriedade com a publicação de sua tese de doutorado, Personas Sexuais: Arte e Decadência de Nefertiti a Emily Dickinson. Dois escritores latinos, que tiveram mesas especiais para tratarem de suas obras, também estiveram presentes no congresso: o espanhol Enrique Vila-Matas e o cubano Pedro Juan Gutiérrez. Entre os acadêmicos, destaque para o professor esloveno Slavoj Zizek, considerado um

dos principais teóricos contemporâneos e referência da esquerda brasileira pelo uso da psicanálise na teoria social marxista, e o historiador francês Roger Chartier, que, além de livros e artigos, escreve para publicações jornalísticas. Do meio estritamente jornalístico, participou o argentino Julián Gorodischer, editor-chefe da revista de cultura Ñ, do jornal El Clarín, que ressaltou as similaridades da situação do jornalismo cultural entre os países da América Latina. Uma das principais atrações do congresso, o jornalista e escritor norte-americano Jon Lee Anderson, autor dos livrosreportagem Che Guevara: uma biografia (Objetiva), publicado em 1997, e A queda de Bagdá (Objetiva), de 2004, aproveitou a vinda ao Brasil e deu uma palestra para os alunos da Faculdade Cásper Líbero. Além de Anderson, o jornalista porto-riquenho Hector Feliciano, outro participante do evento, também visitou a Faculdade, concedendo uma entrevista exclusiva para os repórteres da Cásper. O resultado dessas conversas pode ser conferido nas próximas páginas da revista.

Convidados do Brasil e do exterior debateram a produção cultural Jaqueline Gutierres

O 3º Congresso Internacional de Jornalismo Cultural abriu espaço para a reflexão sobre produção e repercussão de cultura no Brasil

Glauber homenageado

como é o caso do cineasta alemão Werner Herzog. Participando da mesa inaugural do Congresso, Herzog elogiou a vivacidade e a qualidade do cinema nacional, dando destaque a Glauber Rocha, com quem conviveu durante três meses em Munique, na Alemanha. “Ele era sempre desorganizado. Recordo que ele tinha vários manuscritos espalhados pelo quarto, se perdia em meio a uma nuvem de papeis”, lembrou Herzog.

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ENTREVISTA

jaqueline gutierrres

cu tural um detetive

Responsável por encontrar obras de arte desaparecidas durante a Segunda Guerra Mundial, Hector Feliciano prova que o jornalismo cultural deve ser levado a sério por Thiago Tanji Revista Cásper – Setembro de 2011 – Nº 4

Além de conquistar toda a Europa, Adolf Hitler tinha outros objetivos durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945): construir um magnífico museu em homenagem ao “Terceiro Reich”. Para isso, saqueou obras de arte por todo o continente europeu, com destaque especial à França. Famílias judaicas que possuíam pinturas e esculturas de grandes artistas, além das galerias de arte dos países ocupados, foram sumariamente roubadas pelas tropas nazistas. Algumas peças conseguiram ser recuperadas pelos seus antigos donos após o final do conflito. Outras milhares permaneceram desaparecidas. Décadas depois, parte dessa história foi revelada graças ao trabalho do jornalista porto-riquenho Hector Feliciano, autor do livro O Museu Desaparecido. Ainda sem edição brasileira, a obra, publicada em 1997, é fruto de um minucioso trabalho de pesquisa realizado durante oito anos. Além de dar luz à história do saque nazista, o jornalista foi responsável por encontrar mais de 3.000 obras de arte roubadas, a maior parte delas localizada em grandes museus, galerias e coleções particulares. Segundo Feliciano, “A investigação era como um ato de loucura produtiva que me permitiu chegar ao ponto máximo, que era encontrar a obra roubada. Meu grande objetivo era encontrar o quadro, a pintura”. Primeiro livro que trata sobre o assunto, O Museu Desaparecido foi finalista do Prêmio Pulitzer na categoria não ficção. Nascido no ano de 1952, o jornalista formou-se inicialmente em História da Arte, trabalhando na curadoria de museus. No entanto, como gostava de escrever e se interessava pela carreira jornalística, decidiu fazer um mestrado na famosa Escola de Jornalismo de Columbia, localizada em Nova York. Seu primeiro trabalho foi no jornal The Washington Post, sendo correspondente cultural em Paris. Na entrevista, Hector Feliciano conta sobre o trabalho realizado em O Museu Desaparecido; a atual realidade do jornalismo cultural latino-americano; além da Fundación Nuevo Periodismo Iberoamericano, escola jornalística criada por Gabriel García Márquez, com sede na Colômbia e na qual Feliciano é professor. Segundo o porto-riquenho, “O jornalismo cultural deve ser tratado a sério”. Sua carreira não deixa dúvidas disso.

Revista Cásper – Setembro de 2011 – Nº 4

Como o senhor decidiu ingressar na carreira jornalística? Fiquei atraído pelo tipo de vida levado pelo repórter, que é muito flexível, uma profissão onde se pode conhecer muitas pessoas. Além do mais, não há nenhum chefe em cima de você, eu podia evitar os chefes. Quando fui correspondente do Washington Post na Europa, na editoria de cultura, tive uma grande liberdade. E isso me encantava. Além disso, gostava muito de escrever. E como surgiu a oportunidade de trabalhar no The Washington Post? Foi uma grande chance que tive, trabalhei por muitos anos no jornal. O Washington Post tinha uma redação muito grande em Paris. Então, quando fui contratado, pouco a pouco fui mostrando a importância de o jornal ter um correspondente voltado exclusivamente para os temas da cultura. E o que motivou o senhor a fazer um mestrado em Jornalismo? Fiz um mestrado na Escola de Jornalismo da Universidade de Columbia, com duração de um ano. Era voltada exclusivamente ao jornalismo e não à comunicação em geral. Nos Estados Unidos, há uma separação entre os estudos do jornalismo e da literatura, por exemplo. E isso é uma grande pena. Costumo dizer que em Columbia criam-se Clark Kents sem o Superman. E para mim, não me interessa apenas o Clark Kent. Me interessa também o Superman. O senhor acredita que é necessário fazer uma graduação específica em jornalismo? O que ajudou em minha vida de jornalista foi justamente a experiência não jornalística que tive, quando trabalhei em outros lugares. Vivi muitos anos na França e fiz outros trabalhos e essa experiência foi maravilhosa porque me enriqueceu. Quando tive que escrever, por exemplo, sobre um sistema administrativo, burocrático, ou como se desenvolvia uma exposição em um museu, sabia detalhes de como aquilo funcionava. Quais são os autores e jornalistas que inspiram seu trabalho? Gosto muito de [Gabriel] Garcia Marquez, Guimarães Rosa, [Jorge Luis] Borges, [Julio] Cortázar. Mais da metade daquilo que leio é literatura. Também leio muitas crônicas, como as de Martín Caparrós. E acredito que para ser um bom jornalista é necessário ler muita literatura, especialmente quando se trabalha nos meios impressos.

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A obra de Márquez, por exemplo, é conhecida no Brasil e em todo o mundo. Mas autores brasileiros são conhecidos no exterior, como Guimarães Rosa, Clarice Lispector? É uma pena, mas conhecem pouco a obra de Guimarães Rosa. Para mim, ele é um dos escritores mais importantes do século XX, com a magnífica obra Grande Sertão: Veredas. Mas isso acontece porque não teve uma promoção suficiente no mercado estrangeiro. Machado de Assis, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Euclides da Cunha, são autores reconhecidos internacionalmente, autores de clássicos. Mas aquilo que foi produzido dos anos 1950 em diante ainda não é tão divulgado.

Tropas norteamericanas encontram pinturas roubadas pelos nazistas reprodução

O senhor acredita que se está fazendo jornalismo cultural de qualidade na América Latina? Sim, por exemplo, a revista Cult é muito boa, poderia ser facilmente publicada na Europa ou nos Estados Unidos. Nos Estados Unidos, se está cortando o dinheiro para a cultura, para o jornalismo cultural. E aqui, como na Argentina e na Colômbia, se está discutindo o jornalismo cultural, passando a valorizá-lo. Esse dinamismo é muito importante e temos que nos agarrar a isso.

jaqueline gutierrres

Conhece alguns jornalistas brasileiros? Infelizmente, conheço os jornalistas dos jornais impressos e não aqueles que escrevem livros. Mas sei que muitos escritores brasileiros fizeram jornalismo, como Clarice Lispector. Eu lia as colunas que ela escrevia aos domingos, no Rio. Era uma jornalista muito boa, fazendo uma mescla interessante de literatura e jornalismo.

Poderia fazer uma comparação entre o jornalismo praticado nos países desenvolvidos, como os da Europa, e o que se faz na América Latina? O que o jornalismo latino-americano tem de maravilhoso é o seu dinamismo. Em países da Europa ou nos Estados Unidos, eles já chegaram “ao teto”. É como uma espécie de rotina, parece não ter mais nada a explorar. Já na América Latina, em países como o Brasil, México, Argentina, Colômbia, Porto Rico, vejo que há muitas coisas a serem feitas em relação ao jornalismo. Por isso ele é dinâmico, ainda não chegou a um “tédio”. E esse é um detalhe importante, uma característica muito significativa para nós. E as principais diferenças entre o jornalismo desenvolvido no Brasil com o de outros países latino-americanos? O jornalismo brasileiro feito nas grandes cidades, como São Paulo, Rio, se assemelha com o melhor tipo de jornalismo realizado na Colômbia, Argentina ou México. É um jornalismo muito rico. Mas a principal diferença que vejo entre o jornalismo brasileiro e o da América espanhola está na valorização da crônica. No Brasil, há a revista Piauí e não muito mais, parece ser um gênero menos importante. Já na América Latina, a crônica está sendo feita por gente jovem em grande quantidade. A Fundação Nuevo Periodismo não tem nenhum parceiro do Brasil... A Fundação Nuevo Periodismo, idealizada por Gabriel García Márquez, convidou diversos jornalistas para fazer parte dela, eu sou um deles. Faço oficinas de jornalismo cultural. E a ideia da Fundação é oferecer oficinas pequenas por toda a América Latina. Em vez dos jornalistas irem à Colômbia, nós vamos para Buenos Aires, Caracas, Lima e realizamos oficinas com no máximo quinze alunos, de uma semana, de forma intensiva. Mas é algo que realmente “recarrega suas baterias”, atualizando e fortalecendo a formação jornalística. E agora, estamos tentando estabelecer um convênio com algum parceiro brasileiro, provavelmente em São Paulo. Temos nos esquecido um pouco do Brasil, mas é importante que o país pertença de fato e se integre à América Latina. O Museu Desaparecido tem temas que versam sobre o jornalismo cultural e também investigativo. Como fazer uma convergência disso? O interessante é que nunca o jornalismo cultural é tratado a sério. Pensam que é uma irmã menor da seção “Viagem” ou “Vida moderna”, tratada sem muito interesse. E sempre pensei que o jornalismo cultural tem muito valor e é tão reRevista Cásper – Setembro de 2011 – Nº 4

“A investigação era como um ato de loucura produtiva”

levante quanto à cobertura política, econômica. Então realizei uma investigação que durou oito anos e resultou no livro O Museu Desaparecido. Encontrei mais de três mil obras de arte roubadas pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial e que hoje estão em museus, galerias de arte, coleções privadas. Demonstrei que o jornalismo cultural tem muita importância.

Havia situações de cumplicidade entre o governo francês e os museus americanos e, por isso, muitas pessoas não queriam falar sobre o tema. Uma família me levou à Corte por difamação e isso me custou cinco anos nos tribunais, mas ganhei. Esse tipo de coisa é muito difícil para um jornalista independente, ser atacado por um governo, por um indivíduo. Mas, sem dúvida, valeu à pena.

E como equilibrar os elementos literários com os de jornalismo na obra? Na realidade, não há elementos de literatura por ser uma não ficção, tudo o que escrevi é verdadeiro. Mas, sem dúvida, há elementos da literatura que estão presentes para atrair o leitor. É como a crônica, que tem elementos da literatura, mas é baseada em fatos reais. E só aprendemos isso lendo literatura, como romances e contos. Eu pensei bem para saber com qual tema iria começar o livro, e acabei chegando a uma pequena anedota que sintetizava toda a história da obra. E acredito que isso pode ser aplicado ao jornalismo cultural: contar com elementos literários, mas também com características investigativas.

O senhor acredita que a sua investigação foi decisiva para resolver algumas questões deixadas pela História? Quando o livro foi lançado, criou-se um grande alvoroço pela Europa e Estados Unidos. Comissões foram criadas para investigar e buscar as peças roubadas e começaram a devolver algumas obras para os seus antigos donos. Acredito que o livro ajudou para isso, já que ninguém havia escrito sobre o tema.

E qual foi o método utilizado para esses oito anos de investigação? A investigação era como um ato de loucura produtiva que me permitiu chegar ao ponto máximo, que era encontrar a obra roubada. Meu grande objetivo era encontrar o quadro, a pintura. E, para isso, tive que trabalhar com muitas hipóteses que, pouco a pouco, iam sendo descartadas até encontrar uma pista verdadeira. Após a publicação do livro, o senhor teve problemas com o governo francês e com famílias que possuíam obras de arte roubadas. Como enfrentou esses “adversários”? Revista Cásper – Setembro de 2011 – Nº 4

E por que os temas relacionados ao nazismo atraem tanto o público? A Segunda Guerra Mundial tem algo de épico, com uma decisão moral que em algum momento os países tiveram que tomar. Isso seduz as pessoas e é um tema que sempre me atraiu, apesar de não ser nascido quando a guerra aconteceu. O que me atrai são essas questões morais, éticas e também por essa face épica. Em nossos dias, não vivemos nada de épico e sempre buscamos isso. Qual o seu conselho para os futuros jornalistas culturais? Se tenho algum conselho, é de que é necessário trabalhar muito e, sobretudo, ler, ler e ler. Ler de tudo, principalmente boa literatura, porque isso irá ajudá-lo a expressar aquilo que quer. Afinal, quem não escreve bem, não sabe contar uma boa história.

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JORNALISMO

poucos um trabalho para

Em encontro na Faculdade Cásper Líbero, Jon Lee Anderson conta suas experiências na cobertura de guerra por Tiago Mota

AFP Photo/Patrick baz

Guerra, destruição, explosões, sangue, morte. Elementos que fazem parte do trabalho do americano Jon Lee Anderson, referência no jornalismo internacional e especializado em coberturas de conflitos. Jon Lee esteve no Brasil para participar do 3º Congresso Internacional de Jornalismo Cultural, realizado pela revista Cult e o SESC Vila Mariana. De quebra, veio também à Faculdade Cásper Líbero no dia 21 de maio para conversar e compartilhar suas experiências com estudantes, professores e outros jornalistas. Filho de diplomata, Jon Lee passou a juventude na América Central e conta que seu início de carreira se deu “quase por acaso”. Segundo ele, parte da vontade em ingressar na profissão nasceu com o desejo de ver com os próprios olhos o porquê de os latinos não simpatizarem com a política norteamericana. “Sempre tive um espírito aventureiro. O jornalismo apareceu como ferramenta para explorar o mundo.” O reconhecimento internacional de Jon Lee veio graças ao livro Che Guevara: Uma biografia (Objetiva), publicado em Revista Cásper – Setembro de 2011 – Nº 4

Revista Cásper – Setembro de 2011 – Nº 4

1997. Trata-se da mais completa biografia do revolucionário argentino que foi um dos protagonistas da Revolução Cubana de 1959 e tornou-se um símbolo mundial. Após a publicação da obra, Jon Lee ingressou na seleta equipe de jornalistas especiais da revista americana The New Yorker, famosa por suas longas reportagens. Recentemente, esteve na Líbia para cobrir a onda revolucionária que ficou conhecida como “Primavera Árabe”. No entanto, não foi a primeira vez que trabalhou com conflitos no Oriente Médio. Em 2004, publicou o livro A Queda de Bagdá (Objetiva), uma extensa e detalhada cobertura da Guerra do Iraque e do regime de Saddam Hussein. A seguir, confira alguns destaques da conversa que Jon Lee Anderson teve com os alunos na Faculdade Cásper Líbero.

A primeira vez A primeira vez que estive em uma guerra foi como se estivesse no filme Apocalypse Now. Eu estava em um combate real, mas minha sensação era de es-

tar em um filme. Há coisas que vimos, mas que, internamente, sabemos que não deveríamos ter visto. Isso nos faz algum dano que não sabemos ao certo quantificar. Pude perceber isso na Líbia. Vi jovens jornalistas cobrindo os conflitos e dependendo de seus iPhones. Eles estavam à frente de prédios caindo, pessoas correndo e homens morrendo, mas agiam como se estivessem vendo um filme, não percebiam o local de extremo perigo em que estavam. Não tinham experiência, vivência.

Líbia Estive na Líbia entre os meses de fevereiro e abril e passei mais três semanas escrevendo a reportagem para a The New Yorker, um trabalho que durou cerca de três meses. Tive que entrar no país pelo Egito, já que [Muammar] Kadafi não estava permitindo que estrangeiros chegassem à capital do país, Trípoli. Quando cheguei, as tropas do governo ainda não haviam contra-atacado os rebeldes. Mas, em poucos dias, a guerra estourou. Muitas crianças e estudantes

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divulgação

se converteram em soldados. E, com isso, resolvi escrever uma história que resumia em parte esse cenário. Conheci um homem que falava de seu filho de 21 anos, que era estudante de medicina e havia se alistado como guerrilheiro na revolução contra Kadafi. Tive uma conversa de pai para pai, e ele chorou, mostrando-se preocupado com seu filho na guerra. Um dia depois da conversa, nos encontramos novamente e ele me disse que havia recebido a notícia de que seu filho estava morto. E como o assassinato ocorrera em um território dominado pelas tropas do governo, não podiam recuperar o corpo. Quando a OTAN [Organização do Tratado do Atlântico Norte] passou a atacar as forças de Kadafi, o Exército retrocedeu e aquele pai pôde finalmente ir para a cidade em que seu filho havia sumido. Osama, esse era o nome do pai, ainda acredita-

va que seu filho pudesse estar vivo. Mas o corpo do jovem havia sido encontrado por seus amigos e ele foi enterrado antes que o seu pai o visse. Disseram a Osama que o corpo do filho estava inusitadamente preservado. Isso, no mundo muçulmano, é significado de santidade, de ser bendito por Deus e que você morreu por uma causa justa. Assim, o pai começou a crer que seu filho era um santo. Fui com Osama até onde encontraram o corpo do filho, além de acompanhálo ao cemitério. É uma longa história, mas para mim demonstra como a morte destroi e desestabiliza. Além disso, revela como as pessoas tendem a buscar explicações espirituais frente a atos tão crueis.

Che Guevara Percorrendo o mundo das

guerrilhas, vi que pessoas de ideologias completamente diferentes ao marxismo veneravam o Che. Ele era um ponto de referência, por exemplo, para os extremistas mulçumanos do Afeganistão. Era a encarnação de um tipo de pessoa que, por um ideal, muda sua vida completamente e vai até a clandestinidade, até a morte. Entretanto, mesmo sendo uma figura emblemática, eu pouco sabia sobre sua vida. Fiz pesquisas em livros e, os poucos que achei, não eram muito completos. Ele viveu 39 anos, a maior parte deles na atividade pública e, mesmo assim, havia muitas lacunas em sua história.

Escrevendo uma biografia Para escrever Che: uma biografia, vivi em Cuba por três anos, passei por muitos países onde ele esteve, investigando e conversando com pessoas que o Revista Cásper – Setembro de 2011 – Nº 4

Trabalho na The New Yorker

Após o lançamento de Che, voltei a atuar em uma redação jornalística na revista The New Yorker, uma publicação muito importante nos Estados Unidos, sendo a maior referência cultural e política de língua inglesa. Desde 1998, trabalho de forma exclusiva para a revista, em uma atividade que considero muito privilegiada, pois a publicação tem muitos recursos e uma audiência bastante significativa, com mais ou menos um milhão de assinantes. Escrevo crônicas, perfis políticos, apurações realmente longas. Para um perfil, por exemplo, entrevisto mais ou menos quarenta pessoas. Obviamente, todas essas fontes não entrarão no texto, mas busco submergir no mundo do perfilado, conhecendo diferentes realidades daquela pessoa. Revista Cásper – Setembro de 2011 – Nº 4

reprodução

O jornalista americano Jon Lee Anderson especializou-se na cobertura de guerra

conheceram. Foi um trabalho de investigação jornalística e histórica que durou cinco anos ao todo. Não foi fácil trabalhar em Cuba, as pessoas que viveram ao lado de Che eram desconfiadas em contar suas histórias, afinal, eu era um “ianque”. Mas tive a sorte de receber diários inéditos de guerrilha de Che e esse foi o melhor modo de pesquisa, pois não há jeito melhor de conhecer alguém do que lendo os seus próprios registros. Pouco a pouco, fui rompendo a barreira que me separava de quem realmente era Che. Entrevistando seus amigos de infância e juventude, passei a descobrir quem foi o jovem Ernesto Guevara. Ele passou a se tornar um personagem crível para mim. O trabalho demorou muito tempo para ser feito e os recursos, obviamente, não eram ilimitados. Os editores começavam a me pressionar e, no decorrer do projeto, a única coisa que não vendi foi minha alma. Mas creio que a hipotequei em algum momento...

Para escrever Che: uma biografia, Anderson pesquisou durante cinco anos a vida do revolucionário

Experiência real Quando ligamos na CNN ou na Al Jazeera, vemos apenas uma imagem. Pode morrer alguém em frente à câmera, mas é uma imagem que poderia ser exibida no cinema, por exemplo. Definitivamente não é a mesma sensação de estar presencialmente no campo de batalha. Se a tela pudesse emitir a dor da morte, seria genial. Horrível, mas genial. Quando se é um espectador passivo, só um sentido é estimulado: a visão. Falta o odor, o tato. Na guerra, há um odor de medo que as pessoas exalam. Não é um cheiro desagradável, mas muito forte. É um odor que só se sente quando se está perto da morte. Este tipo de coisa não é transmitida pela CNN.

Sri Lanka No ano passado, escrevi uma história muito longa, que me custou sete meses. Foram qua-

se treze mil palavras, não sei quantos caracteres ao certo, mas somavam vinte páginas na revista. Era uma reportagem sobre o Sri Lanka, onde uma guerrilha que já durava trinta anos foi aniquilada militarmente pelo governo. Foi um extermínio cruel, o Exército encurralou os combatentes e seus familiares. Em um dado momento, 5 mil guerrilheiros e 300 mil civis estavam cercados em um espaço equivalente a quatro estádios de futebol, recebendo artilharia pesada. Com o tempo, o governo foi expulsando os jornalistas e as ONGs. Apesar de não confirmarem, milhares de civis foram mortos durante o cerco. Quando os guerrilheiros se renderam, foram mantidos em um campo de concentração até que os lideres começaram a sumir subitamente, sendo assassinados. Quando fui para lá, me parecia inconcebível que nada estivesse sendo escrito sobre aquilo.

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divulgação cecl

presenciar a morte de crianças. É uma espécie de vergonha profunda, como adulto, porque a criança morre pela falha do mundo adulto e nada se fez para impedir.

chegar não sabe que determinado local da cidade não pode ser visitado durante a noite. Muitas vezes, esse desconhecimento causa tragédias. Estar na guerra é como estar em um mar em tormenta. Não é um trabalho para todo mundo. É para poucos.

Convivendo com a morte

O jornalista esteve na faculdade no dia 21 de maio

Experiência na guerra civil de El Salvador O exército salvadorenho era maluco. Eles tinham esquadrões da morte que cometiam massacres e odiavam a imprensa, pensavam que os jornalistas eram subversivos ou que éramos espiões dos guerrilheiros. Muitos jornalistas foram mortos, mas logo diziam que foi um acidente, um fogo cruzado. Uma vez, quase me mataram em uma emboscada em um rio. Passaram uma mensagem de que terroristas internacionais estavam cruzando o rio, quando os terroristas eram eu e mais dois fotógrafos. Mas, mesmo assim, temos que falar com essas pessoas. Devemos ir ao palácio do governo e fingir que eles não querem nos matar, que nos respeitam. “Por favor, uma entrevista?”, “Vamos tomar um cafezinho?” Às vezes temos de agir com normalidade mesmo sabendo estar ao lado de criminosos e de pessoas terríveis.

Eu tento não pensar assim, mas não seria possível. Claro que já pensei na possibilidade real da morte. Mas é como as mulheres: dar à luz é extremamente doloroso, mas ao fim sempre querem outro filho. É como se esquecessem totalmente da dor. Sou algo parecido. Mas tenho amigos que deixaram a profissão. Há momentos que são muito transformadores na história de alguns. Um amigo fotógrafo me acompanhou durante o massacre de Ruanda [1994]. Vimos pessoas agonizando em nossa frente, foi um momento muito marcante, muito impactante. Para ele, ainda mais: seu primeiro pensamento não era ajudar aquelas pessoas, mas tirar fotos. E, mesmo assim, não fez boas fotos. Pior ainda foi saber que não poderíamos publicar a notícia em nenhum lugar, já que ninguém se interessava por aquilo. Ele se traumatizou depois disso, deixou a câmera e se tornou um vendedor de imóveis.

Relação com as tropas Não devemos pensar que o Exército americano censura o trabalho dos repórteres. A questão é que o jornalista não pode divulgar certos tipos de informações de inteligência que poderão afetar a força militar. Quando os militares são do mesmo país que o seu e falam a mesma língua que a sua, são os nativos que se tornam hostis. Assim, fica mais fácil produzir uma nota que privilegie aqueles que te acompanham do que falar bem de um desconhecido que quer te decapitar. Naturalmente, você sente agradecimento por aqueles que te protegem. Às vezes, esses jornalistas descobrem coisas como soldados matando civis, mas que preferem não publicar. Por isso prefiro me manter independente. Mas, no Iraque e no Afeganistão, isso foi extremamente difícil. As pessoas de lá se tornaram muito hostis, especialmente com os americanos, e muitos não aceitavam sua companhia.

Escolhendo um lado Momentos difíceis A pior parte do trabalho é ver gente morrer sem poder ajudar, sobretudo crianças. Ou estar presente quando pais perdem seus filhos. Enfim, é muito difícil estar presente em momentos de grande dor. Acabei de perder dois amigos na Líbia. Isso é doloroso porque nos lembra do sacrifício que temos de pagar. Uma morte dessas nunca é correta, deixa uma sequela. Sempre voltamos mais tristes de cada cobertura de conflito. Mas,repito, o pior é ter que

Em uma guerra, ou se está de um lado ou de outro. Em Trípoli, o governo dava os vistos para jornalistas porque buscavam usar as notícias como propaganda. Era difícil se esquivar disso, já que agentes do Estado controlavam seu trabalho. Já no lado dos rebeldes, o maior perigo era tentar cruzar a linha e ser capturado ou morto. Amigos meus foram mortos e capturados. É preciso ter intuição e não confiar em nada. O campo de guerra é um lugar muito perigoso, sobretudo para iniciantes. Por exemplo, aquele que acabou de

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A queda de Bagdá Jon Lee Anderson, 408 pgs. Editora Objetiva

Revista Cásper – Setembro de 2011 – Nº 4


FANZINE

Produção underground elevada à condição de fetiche, o fanzine busca se reinventar na era da internet

Revista Cásper – Setembro de 2011 – Nº 4

mídia não discutia. “Isso acontecia fosse pela tentativa de combate à repressão, como durante a ditadura militar, ou simplesmente diversão. O fanzine era uma alternativa para quem queria publicar seus pensamentos, mas não tinham espaço para tal. Por isso a publicação é considerada alternativa ou underground”, explica o paraense. No entanto, JM Trevisan, publicitário e redator de fanzines, acredita que já não se pode mais dizer que falta espaço de publicação. “Hoje em dia fica difícil falar em falta de espaço na mídia com os blogs ao alcance de um clique. O fanzine é mais um fetiche, um meio de a pessoa ver sua obra impressa, já que ser publicado por uma editora de porte continua não sendo uma tarefa fácil”, opina ele, que já participou do 3ª Dimensão e do Zine Insano.

Brincadeira séria As dificuldades enfrentadas por fanzineiros como o jornalista Zé Dassilva, que fazia histórias em quadrinho (HQ) para a publicação catarinense Futio, eram várias: “Para ser independente, tive que depender de muita gente. Desde o cara que vendia anúncio, até quem botava o fanzine nas bancas e os colaboradores”. Além disso, como ressalta Sá Martino, a experiência de fanzineiro costuma ser solitária. “Às vezes,

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Nas décadas de 1980 e 1990, era comum estudantes do Ensino Médio e universitários se reunirem para manifestar suas ideias numa publicação independente chamada fanzine. A palavra aglutina os termos ingleses fan e magazine, ou seja, trata-se de uma revista feita por fãs. Com pouca ou nenhuma estrutura, os fanzineiros produziam e distribuíam cópias xerocadas em lugares muito específicos de acordo com o público-alvo almejado. “Geralmente, eles eram deixados em pontos isolados de São Paulo, como entradas de faculdades, alguns bares e botecos, porta de teatros e outros locais em que sabiam que o fanzine encontraria leitores”, comenta Luis Mauro Sá Martino, professor da Faculdade Cásper Líbero e doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Os motivos para que esses jovens resolvessem montar seu próprio veículo de comunicação variavam. Hugo Vera, formado em Publicidade e Propaganda, criou em 1992 o Tchongo Magazine porque seu sonho era ter suas próprias revistas publicadas. “Sempre gostei de fazer quadrinhos e escrever textos”, conta. Já o publicitário José Calazans Junior, autor do Camisa Nova e Offline, explica que, em sua origem, o fanzine buscava abordar assuntos que a grande

por Lidia Zuin

você tem uma equipe, mas é raro. Acaba sobrando para uma única pessoa botar a mão na massa.” O professor, que afirma nunca ter conhecido um exemplo de fanzine organizado, acredita que a proposta seja realmente anarquista. “Não há uma dinâmica de redação, nem restrições com o tamanho da página”, argumenta. Cid Vale, fanzineiro desde 1996, conta que teve de fazer tudo sozinho para montar sua própria publicação. “Quando comecei a ler fanzines, em sua

Capa do fanzine Tchongo Magazine

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acervo pessoal

Com o acesso à internet, fazer fanzines se tornou uma prática ambígua. O meio tanto

No início, o pequeno número de cópias acabava delimitando os leitores dos fanzines. No caso do publicitário Hugo Vera, a tiragem do Tchongo Magazine era de apenas 40 exemplares. Mas, como a publicação surgia a partir da união de pessoas com interesses comuns, ela acabava criando uma comunidade de leitores e escritores. “Tão legal quanto fazer seu fanzine era ler o do seu amigo”, comenta Martino. O professor recorda que, nos anos 1980, os fanzines formavam e divulgavam nichos, como a segmentação faz atualmente. “Se eu adoro literatura Steampunk, vou descobrir outras pessoas no Brasil que também gostam e eu imagino que seja um círculo bem restrito. Por meio do fanzine, era possível encontrar boa parte dos meus interesses culturais, políticos e artísticos que eu não acharia na grande mídia, mas na publicação do meu colega. É mais ou menos como acontece hoje via e-mail ou Facebook”, explica. Muitos leitores e fanzineiros acabavam trocando cartas e se comunicando, formando uma rede. “Tudo era excitante demais”, lembra Cid Vale. No início da década de 1990, Trevisan escrevia para Revista Cásper – Setembro de 2011 – Nº 4

Rico portfólio Unindo o útil ao agradável, os fanzines são capazes não só de dar voz aos fanzineiros, mas também alavancar uma carreira profissional. “Eu tinha 21 anos quando o Caderno 2 do Estadão fez uma reportagem sobre jovens quadrinistas que estavam surgindo nos fanzines. Deram um destaque legal para minha HQ, Uma Ode ao Nosso Gódi, em que um cara morre e descobre que Deus é Sílvio Santos, que seu filho é Gugu Liberato e que o Espírito Santo, que ninguém vê, é o Lombardi”, conta Zé Dassilva. E essa não foi a única boa experiência, porque o jornalista ainda conseguiu um emprego como chargista por causa de um fanzine que ele próprio lançou. O nome, 4-3-3, traduzia a linha editorial, defensora da “vida como imitação do futebol”. Para o roteirista JM Trevisan também não foi diferente. “Com o Zine Insano, eu e o Greg Tocchini, hoje desenhista da Marvel e da DC Comics, entramos no ramo editorial usando uma HQ nossa, no fanzine, como amostra de trabalho. Dá para dizer, sem erro, que minha carreira de roteirista e editor Revista Cásper – Setembro de 2011 – Nº 4

nasceu ali”, afirma. No caso de José Calazans, o fanzine não lhe deu um emprego, mas tem proporcionado convites para palestras. “Depois que criei o Camisa Nova, passei a ser reconhecido nas entrevistas de emprego, além de eventos da área. É legal ouvir as pessoas dizerem: ‘Você é do Camisa!’” Mas, no final das contas, a característica mais marcante é a experiência fanzineira. Hugo Vera relembra que Tchongo Magazine serviu como um “revide inteligente ao bullying”. Feito em dupla, o fanzine carregava a marca de autoria dos alunos. “Éramos os CDFs da sala e a ‘turma do fundão’ adorava fazer piada. Às vezes, até nos humilhavam com apelidos, bolinhas de papel. Nós ficávamos chateados e o desejo de vingança se tornava latente. Em vez de revidar na mesma moeda, pensei em algo mais glorioso, que não pudesse ser superado”, recorda. Assim, o publicitário utilizou o apelido “tchongo”, que era empregado a ele e a seu amigo, para criar o fanzine. “O reconhecimento do nosso talento foi quase imediato. Aquilo que era para ser uma brincadeira de sala acabou se espalhando pelo colégio todo.” Com 15 anos, Hugo e seu colega passaram a ser conhecidos entre os estudantes e ganharam privilégios que a maioria não desfrutava. “Ninguém tinha acesso à sala dos professores, mas nós sim. Éramos convidados para tomar café junto a eles, coisa de adolescente nerd”, brinca. Após essa reviravolta, o fanzine acabou como uma boa lembrança para Hugo. “Foi como esses filminhos adolescentes americanos, em que os nerds são passados para trás, mas depois conseguem se dar bem. Foi o que aconteceu comigo e com o meu amigo”, conclui, rindo.

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Online: o caminho possível

Poucos, mas fiéis

garotos leitores de quadrinhos americanos através dos fanzines 3ª Dimensão e Zine Insana. Já Calazans, atualmente, conversa com estudantes de comunicação por meio do Camisa Nova e com participantes de eventos sobre internet, com o zine impresso Offline. “Criei algo em que o público pudesse ter uma experiência a cada leitura, além de interagir com outras pessoas”, conta o publicitário. Com a tiragem de 50 cópias, o fanzine do paraense carrega um anúncio pedindo para que as pessoas tirem xerox de seu exemplar, de modo que outras pessoas também possam lê-lo.

O Tchongo nasceu como um revide ao bullying

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maioria voltados ao cinema e à literatura de horror, me contagiei profundamente. Só sosseguei ao lançar o meu.” Contudo, JM Trevisan lembra de seu cargo como “editor”, quando era o responsável por cobrar a entrega do trabalho de outros fanzineiros. “Eu decidia como seria a capa e tudo mais. Na época, eu não tinha muita ideia do que um editor fazia. Havia também um diagramador, o Fernando Aoki, que era mais velho, me ajudava a editar e entendia melhor a dinâmica.” Já José Calazans dá como exemplo o próprio Camisa Nova, em que há quatro pessoas que se dividem por funções e tarefas. “Todos são redatores. Escolhemos as pautas e dividimos entre os membros os afazeres, que vão desde pesquisar todas as imagens para o zine até entrar em contato com alguns colaboradores. Depois disso, vem a diagramação, que fica por minha conta e de outro integrante, o Artur Araújo.”

Assim, a rede seria uma chance única para os fanzineiros extinguirem uma das características básicas do seu produto: a pouca quantidade de leitores. “Para os nostálgicos, perde um pouco aquele romantismo de imprimir o fanzine, acompanhar a distribuição, mas, por outro lado, era um negócio muito pequeno. Você tinha uma tiragem de cem exemplares, dos quais a maioria era distribuída para amigos, namorada. Para atingir um público maior, o negócio é a internet mesmo”, argumenta Martino.

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José Calazans Júnior, autor dos zines Camisa Nova e Offline

passou a facilitar a produção e divulgação como também pode ter dissolvido o formato. Para Hugo Vera, por exemplo, “A internet matou o fanzine”. “Há anos não vejo um fanzine de papel, xerocado. A própria definição da palavra mudou”, aponta Luis Mauro Sá Martino. Cid Vale, que já havia criado o impresso Aranhas do Aquário, acabou organizando outra publicação, o Sépia Zine. “Com cerca de 60 páginas prontas para a primeira impressão, resolvi colocar tudo na internet”, conta. Já o Camisa Nova, do publicitário José Calazans Junior, nasceu totalmente digital. “Sairia caro imprimir as edições e, nas minhas pesquisas, descobri que os fanzines estavam migrando para a web por causa do custo e do aumento da distribuição”, argumenta. Há fanzines online que publicam seus conteúdos nas plataformas blog, site ou em arquivos no formato PDF – apesar de esta última opção incomodar alguns leitores. “Não vejo graça em abrir um fanzine em PDF. Se for para lê-lo com cara de antigo, então é mais fácil que o fanzineiro xeroque e ache um lugar para distribuir”, opina Luís Mauro Sá Martino. Para Trevisan, o que interessa é o conteúdo: a ausência de limites na internet dá chance aos fanzineiros de exibirem suas ideias de forma concentrada, num blog, por exemplo. “O cara que lê pode comentar na hora, indicar para amigos, espalhar via Twitter”, indica o roteirista, que acredita que o fanzine impresso já passou para a condição de fetiche. “É um produto que, mais do que nunca, precisa hoje ser certeiro e dar retorno. Há pouca abertura para o experimentalismo e essas publicações dificilmente preenchem esses pré-requisitos. E nem devem, já que essa é a vantagem de fazer fanzine.”

Página de um fanzine: produção underground

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TENDÊNCIA

Cool

Hunters No mundo da publicidade, não basta apenas obter as informações certas. É preciso estar atualizado nas últimas novidades antes mesmo que elas cheguem ao mercado

PETRUS LEE

por Louise Solla

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Revista Cásper – Setembro de 2011 – Nº 4


ACERVO PESSOAL

Andrea Bisker comanda a filial brasileira do site inglês WGSN

PETRUS LEE

O

O look que estará na moda, o produto que irá dominar as lojas, o espaço urbano que bombará nos próximos meses. Segundo Andrea Bisker, diretora da filial brasileira do site de tendências inglês WGSN, é isso que procuram as empresas que contratam o trabalho de pesquisa e análise realizada pelos profissionais chamados cool hunters. “É necessário valorização, inovação e planejamento, além de estar conectado com o mundo e captar o espírito do momento para ficar sempre à frente da concorrência.” Profissionais cada vez mais valorizados e procurados por empresas de todos os setores, os cool hunters, ou caçadores de tendência, são os especialistas treinados em prever em que o consumidor estará interessado no futuro e as tendências que se consolidarão no mercado. Eles ajudam os clientes a preparar campanhas publicitárias e elaborar produtos que atendam aos desejos de seu público alvo. “Nosso objetivo é dinamizar o processo criativo e dar a nossos clientes as ferramentas para que o desenvolvimento de produtos se torne mais efi-

ciente, barato e rápido, com um maior direcionamento”, explica Mônica Prado, diretora de contas da filial brasileira do site americano Stylesight.

Expansão mundial A profissão surgiu na década de 1980, época em que empresas de marketing procuravam novos enfoques para os estudos do mercado consumidor. “Nos anos 80, todos os instrumentos de análise de mercado e de marketing passaram a se tornar mais complexos, na tentativa de tentar entender os caminhos do consumo como um todo”, explica Rodney de Souza Nascimento, coordenador do curso de Publicidade e Propaganda da Faculdade Cásper Líbero. Na procura de um novo ponto de vista, algumas empresas de moda começaram a enviar alguns de seus funcionários mais antenados a shows e eventos badalados para rastrear o que era popular entre seu público alvo e retornar com ideias de modernização e atualização das marcas. Aos poucos, o ramo foi se consolidando e profissionais especializados na realização

desse tipo de pesquisa começaram a surgir nas metrópoles europeias e norte-americanas, pólos mundiais de consumo. No começo dos anos 2000, embora já popular no exterior, a área ainda era pouco expressiva no Brasil. No entanto, empresas estrangeiras de cool hunting já começavam a mostrar interesse pelo mercado latino-americano. Sabina Deweik, responsável pela implantação no Brasil da empresa italiana de análise de tendências Future Concept Lab, diz que entrou em contato com a profissão ao realizar um curso de mestrado em Milão. “Quando estudei na Domus Academy [faculdade italiana] tive contato com a Future Concept Lab, e eles encomendaram uma pesquisa de cool hunting. Depois fui contratada como correspondente no Brasil. A coisa foi crescendo e como eu via que tinha mercado por aqui, tive a iniciativa de abrir uma filial brasileira”, relata. Algumas das agências que estão hoje no Brasil, como a WGSN, a Future Concept Lab e a Stylesight, desembarcaram aqui a partir de um plano de expansão mundial. A WGSN, com sedes na Europa, Estados Unidos, America Latina e Ásia, já trabalha com cerca de 200 clientes apenas no Brasil. A Future Concept Lab possui funcionários em cerca de 60 cidades espalhadas pelo mundo, além da filial brasileira. Já a Stylesight, com unidades na Europa, América e Ásia, tendo implantado sua base brasileira em 2008, conta atualmente com mais de 2000 clientes ao redor do mundo. Além da ampliação de filiais de empresas estrangeiras, estão surgindo atualmente agências brasileiras. É o caso da Box1824, criada em 2004, que atua em São Paulo e Porto Alegre. “A empresa surgiu a partir da percepção de que o mercado brasileiro tinha a demanda por Revista Cásper – Setembro de 2011 – Nº 4

análise do comportamento do jovem e seu impacto no consumo”, afirma Marina Bortoluzzi, “caçadora” da agência.

Feeling para o negócio Devido a esse aumento na demanda de mercado, cresce também a procura por cursos nessa área de pesquisa de tendências, que não é restrita apenas aos formandos de Publicidade e Propaganda. Além dos cursos de formação acadêmica no exterior, há no Brasil escolas como o Instituto Europeu de Design e a Escola São Paulo, que já contemplam em sua grade aulas dedicadas ao assunto. No entanto, devido à natureza subjetiva da atividade, as aulas não são o mais importante para a formação de um profissional antenado em tendências. “Digo para os meus alunos que eu apenas os ‘pico’ com um bichinho do cool hunting, mas que depois não basta só isso”, brinca Sabina Deweik, que ministra cursos na Escola São Paulo. “É uma coisa difícil de ensinar, pois existe uma parte que é uma metodologia quase impossível de aprender sem fazer. Eu diria que é muito mais uma prática do que uma metodologia”, continua Sabina, que possui formação em Jornalismo pela Revista Cásper – Setembro de 2011 – Nº 4

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). No entanto, para aqueles que acreditam que o cool hunting é apenas um trabalho prático de observação, os profissionais deixam claro que existe também muita teoria envolvida nas atividades diárias. “Uso conhecimentos de semiótica, sociologia, dou referências bibliográficas de moda, de marketing, e de outros assuntos que gravitam em torno desses temas”, afirma a professora. A cool hunter Daniela Klaiman, que além de sócia do Super Cool Market, espaço onde acontecem bazares, shows, cursos e até exposições, trabalha para o site inglês Trendshop e para a empresa americana Look-look, concorda que existe muita pesquisa por trás de suas previsões. “O trabalho é feito estudando política, sociologia, economia... É assim que se pode determinar qual será o mood da população nos próximos meses ou anos”, explica, afirmando que seu trabalho não é apenas baseado em suposições vagas. “Temos um time de 200 colaboradores entre antropólogos, sociólogos, fotógrafos, jornalistas, pessoas formadas em arte, designers, que analisam o que está acontecendo

ao redor do mundo”, explica Andrea Bisker. A abrangência dos objetos de estudo dos pesquisadores de tendência faz com que a área empregue profissionais de diferentes formações, sendo que o principal elemento é a curiosidade e o olhar atento para reconhecer novas tendências. “Não existe uma profissão ou uma classe especial de profissional. Na verdade, é uma questão de sensibilidade para poder estar aberto e captar o que há de mais atual no mundo e perceber antes de todo mundo os novos movimentos, o que estará em alta. Deve ser um profissional com profunda dose de curiosidade em todos os assuntos, ter vontade de ler e buscar informações em várias áreas”, acrescenta Camila Toledo, diretora de tendências da agência Stylesight. “É uma área democrática. Se você gosta de novidades, é curioso por natureza, rápido com pesquisas e tem um background cultural generoso, é possível trabalhar com pesquisa de tendências”, concorda Marina Bortoluzzi, que é formada em Publicidade e Propaganda e, além de pósgraduação em Marketing de Moda, participou de um curso de cool hunting na Itália.

Os cool hunters procuram nas ruas pistas para prever as próximas tendências

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LOUISE SOLLA

De olhos bem abertos É a partir dessa preparação teórica que os cool hunters procuram em todas as formas de expressão cultural pistas de como serão as próximas tendências. “Para os sites com o qual trabalho, envio todas as semanas fotos de coisas de São Paulo como lojas, pessoas, arquitetura, projetos e eventos. O trabalho consiste em estar constantemente de olhos abertos, buscando inspiração, estando ligada em tudo que acho bacana e registrar isso com minha câmera”, detalha Daniela Klaiman sobre seu método de trabalho. Ao “estar constantemente de olhos abertos”, o cool hunter deve ficar antenado ao que é destacado pela mídia, acompanhando locais e festas que

podem tornar-se formadores de tendências. No entanto, também é necessário observar o que acontece nas ruas, além de conhecer lugares menos frequentados pelo grande público. Camilla Toledo explica que as novas tendências podem estar onde menos se espera. “Analisamos desfiles, varejo, vitrine, feiras e principalmente olhamos muito para a rua, não só para captar o que as pessoas mais influentes e lançadoras de tendência estão usando, mas para buscar novos comportamentos e entender a cabeça do consumidor”, afirma. “Tudo é fonte de pesquisa hoje em dia. Analisamos sites mais gabaritados de tecnologia e inovação, mas também blogs

Revista Cásper – Setembro de 2011 – Nº 4

Nosso trabalho é inserir as tendências dentro de uma moldura maior. Novidade e modismos não são as mesmas coisas que tendências “São empresas de moda, design, de interiores, setor automobilístico, agências de propaganda, embalagens, beleza, tudo que envolva um processo criativo”, enumera Mônica Prado, da Stylesight, sobre a diversidade de seus clientes. Na opinião de Marina Bortoluzzi, seu trabalho torna-se estratégico para empresas de diversos setores. “A pesquisa serve como bússola para essas empresas, como guia do que está sendo feito no mundo e como a marca pode e deve crescer. Trabalhamos com clientes de moda e até do mercado financeiro, o que é uma experiência rica”, diz. Atualmente, a Box1824 produz pesquisas para empresas como a Unilever, a Vivo e o Banco Itaú. Embora o ramo do cool hunting esteja crescendo no Brasil, ele ainda apresenta uma defasagem em relação ao desenvolvimento da profissão no exterior. “Lá fora existem mais agências. Aqui é tudo muito novo, e ainda existe desconhecimento por parte dos empresários”, afirma Daniela. No entanto, os cool hunters se mostram otimistas em relação ao desenvolvimento dessa atividade no Brasil. “Temos muito mercado a explorar. Cada vez mais, as empresas brasileiras investem em pesquisa e entendem a importância dessa ferramenta”, declara Mônica Prado. “É uma área que só tende a crescer, devido à vontade das empresas por remodelar os velhos padrões e inovar suas marcas”, reforça Marina. Segundo os cool hunters, é seguro apostar que a profissão é uma tendência para o futuro. Revista Cásper – Setembro de 2011 – Nº 4

Empresas brasileiras começam a investir na área de pesquisa de comportamento

PETRUS LEE

Sabina Deweik foi responsável por trazer a agência italiana Future Concept Lab para o Brasil

sem tanta expressão, que podem trazer novas abordagens. Ficamos de olho em tudo que acontece nas redes sociais e nas ruas. Também trabalhamos in loco, procurando cases inspiradores em feiras, festivais ou eventos específicos”, completa Marina Bortoluzzi, a cool hunter da agência Box1824. Sabina Deweik relata que, após a fase de pesquisa de campo, produz um dossiê composto por relatórios escritos e fotográficos, que ajudam a antecipar as tendências em até 15 anos. Mas ressalta que seu trabalho não consiste na determinação de modismos, que são apenas novidades passageiras do mercado. “Nosso trabalho é inserir as tendências dentro de uma moldura maior. Novidade e modismos não são as mesmas coisas que tendências. Por exemplo, o fato de estarem abrindo lugares nos quais são servidos brigadeiros de colher pode ser visto como um modismo, mas ao colocarmos isso em um contexto um pouco mais amplo, podemos entender esse detalhe como uma tendência de retorno ao passado, de recuperação da memória afetiva – e isso é mais duradouro.” Embora muitos acreditem que seja uma área relacionada exclusivamente à produção de moda, Sabina afirma que isso não é mais verdade. “O cool hunting não é de jeito nenhum focado na moda, é uma metodologia, uma disciplina, uma prática aberta a todos os setores, uma maneira de observação do comportamento geral”, define. Empresas de diversos setores podem se beneficiar com as pesquisa dos “caçadores de tendências”. Atualmente, a WGSN brasileira, por exemplo, possui clientes tanto da indústria da moda quanto de alimentos e até da comunicação. “Alguns de nossos principais clientes pertencem a diferentes setores como a Coca-Cola, a Abril e a Editora Globo.”

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todos querem

CAPA

HUMOR Cada vez mais presente, o humor torna-se a menina dos olhos dos meios de comunicação. Por que esse gênero empolga tanto?

por Tiago Mota

divulgação/agência na lata

Do teatro para o rádio, do rádio para a televisão, invadindo o noticiário e explodindo na internet. O humor está cada vez mais presente nos meios de comunicação. Só para ter ideia, de todos os seis seriados estreados pela Rede Globo em 2011 – Batendo o Ponto, Mulher Invisível, Tapas & Beijos, Macho Man, Divã e Lara com Z – nenhum deixa de fazer uso do apelo cômico e humorístico. Na mesma emissora, os programas Fantástico e Globo Esporte, noticiosos de berço, também não abrem mão de exibir piadas entre uma manchete e outra. “Há uma síndrome geral em todas as mídias de investir em humor. É uma doença de querer ser engraçado com o objetivo de seduzir, mas nem sempre a piada tem graça”, analisa Cristina Padiglione, jornalista e editora do suplemento TV & Lazer do jornal O Estado de S. Paulo. Para Marcelo Tas, o homem experiente à frente desta geração de humor, “A única coisa que acrescento é que essa ‘doença’ existe com o homem desde seus primórdios. Quando um filósofo grego disse ‘Só sei que nada sei’, fez uma frase de humorista. Sócrates é um cara que foi acometido dessa doença. Talvez por isso que a gente repete essa frase até hoje”. No ar desde março de 2008, o Custe o que Custar, ou CQC, Revista Cásper – Setembro de 2011 – Nº 4

Revista Cásper – Setembro de 2011 – Nº 4

liderado por Tas, mantém a média de 6 pontos de Ibope na cidade de São Paulo, ou aproximadamente 1,1 milhão de TVs ligadas na Rede Bandeirantes. Mais novo, o Legendários está na Record desde abril de 2010, com cerca de 8 pontos de audiência, ou 1,5 milhão de televisores. Já o Pânico na TV nasceu em 2003, oriundo do programa homônimo no rádio e garante a audiência da RedeTV! aos domingos com 9 pontos do Ibope, ou cerca de 1,6 milhão de aparelhos ligados. Os três programas são centrais nas discussões atuais sobre humor na televisão, cada um adotando uma maneira diferente de interagir com seu público. No entanto, guardam uma característica em comum: praticamente todos os seus integrantes são jovens humoristas oriundos do estilo de stand up comedy. Apesar de já existir há décadas, a comédia em pé se destacou desde meados dos anos 2000 no Brasil e hoje é febre no país. No entanto, ao mesmo tempo em que surgem novas formas de produção na TV, modelos antigos de humor, como Zorra Total e A Praça é Nossa sobrevivem. Para muitos, as piadas ali contadas já não fazem rir, provando que essas fórmulas estão em crise. Mas os

índices de audiência discordam. Zorra Total mantém a liderança no horário nobre aos sábados com a média de 20 pontos, na casa dos 3,7 milhões de televisores ligados, enquanto A Praça É Nossa garante ao SBT, nas quintas-feiras, 8 pontos de audiência e oscila entre o segundo e o terceiro lugar na preferência do público em seu horário. Uma coisa é certa: o riso seduz e atrai público. Anderson Bizzochi, integrante da Cia. Barbixas de Humor e formado em Rádio e TV pela Faculdade Cásper Líbero, acredita que “As pessoas estão procurando rir e o mercado está aberto para produzir isso”. Porém, em meio a tanta gargalhada, é difícil separar o joio do trigo. Afinal, a produção de humor chega ao público em quantidade ou qualidade? Como programas tão antigos sobrevivem? Vivemos de fato um novo momento no gênero? É neste contexto que a Cásper propõe um debate para entender parte desse “fenômeno” do humor.

A vocação do riso Desde Aristóteles, inúmeros foram os teóricos que descreveram a estrutura e os efeitos do humor. Conforme conta Elias Thomé Saliba, livre-docente em História pela Universidade de

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tiago mota

Hoje, segundo Elias Saliba, vive-se o momento regido pela lógica do mercado, que invade o campo cultural. A separação burguesa de público e privado, entre os que produzem e os que consomem, deu ao humor características de produção industrial. “É quando o humor vira espetáculo e o humorista tem que criar em linha de montagem. Surgem modelos prontos de piadas, assim como os que fazem humor vão cada vez mais exaurindo sua criatividade”, argumenta.

divulgação/agência na lata

Riso em pé

Importado da Argentina, o CQC busca aliar informações com humor

São Paulo (USP) e especialista em história do humor, “O humorismo é ambíguo, é o doa a quem doer. Embora distorcido, ele é um reflexo da sociedade”. Em seu livro Raízes do Riso (Cia. Das Letras), Saliba expõe as teorias de três autores sobre o assunto: Henri Bergson, em 1899; Sigmund Freud, em 1905; e Luigi Pirandello, em 1908. Para os estudiosos, o humor não possui essência, mas é uma história. É na antítese, no inesperado e na ruptura de expectativas que o gênero se compõe. “Fazer humor é jogar com o status quo, querer quebrar o que é determinado”, explica o professor. Além disso, é o humor que contém a capacidade de eliminar o distanciamento e a noção de superioridade, provocando

a reflexão. A este fenômeno, Pirandello deu o nome de “sentimento do contrário”, no qual o sorriso é, na verdade, o que nos leva a pensar. Em exemplo simples, é como rir da piada feita sobre alguém e perceber que suas próprias atitudes podem também ser vítimas da mesma risada. Para Saliba, “A força do humor é exatamente esta: eu vou lá para me divertir, mas, de repente, as cócegas são feitas no meu cérebro”. Marcelo Tas concorda: “O humor é uma linguagem de contato entre inteligências, entre consciências. A risada é o barulho de uma fixa caindo: ‘Ah, entendi o que aquele cara falou’”. Como o humorismo também é uma produção cultural, suas características mais pecu-

liares estão ligadas à sociedade em que está inserido. Sendo assim, o Brasil possui traços particulares no que diz respeito à arte de fazer rir. Saliba se dedicou ao estudo do humor e sua produção no século XX no país, começando pela Belle Époque e chegando aos primeiros anos do rádio. Embora seja gênero difícil de ser teorizado, o professor define que “A vocação do humor brasileiro é preferencialmente a da paródia. Não no sentido original de canto paralelo, mas no sentido de ter uma base, um original, e reproduzir uma espécie de cópia criativa”. Isto porque a cultura brasileira, conforme explica o estudioso, nasceu com forte influência de outras, sobretudo a europeia. Revista Cásper – Setembro de 2011 – Nº 4

O stand up comedy é o estilo mais popular de humor nos dias de hoje. Porém, um detalhe passa batido em meio à sensação de novidade e frescor que se atribui a este: ele não é tão novo assim. “Na realidade, é uma grande bobagem se falar tanto em comédia stand up agora, visto que um grande volume de humoristas fazia isso décadas atrás”, afirma Saliba. Segundo o professor, a febre atual pelo gênero é fruto de um fator geracional, e não qualitativo. “Quem consome este tipo de humor é a juventude, mesmo sendo majoritariamente da classe média. O stand up entra em um consumo de trivialidade característico de nossa época.” O estilo nasceu nos Estados Unidos no final no século XIX. As apresentações ocorriam antes de uma peça de teatro ou durante seus intervalos com o objetivo de esquentar ou segurar a atenção do público. Até então, já no século XX, os comediantes eram todos grandes artistas migrantes do rádio, como Bob Hope e Fred Allen. Nos anos 1950, os primeiros clubes destinados ao stand up começaram a surgir, para que, finalmente, na década de 1970, a produção deste tipo de humor se popularizasse entre os ameRevista Cásper – Setembro de 2011 – Nº 4

ricanos. O sucesso foi tanto que seus comediantes passaram a transitar em outros meios, como no televisivo Saturday Night Live, pela rede americana NBC, e no cinema. Entre os mais famosos, passaram pelos palcos solos Eddie Murphy, Woody Allen, Steve Martin, Billy Cristal, Robin Williams, Richard Pryor e tantos outros. Assim como nos Estados Unidos, a comédia em pé brasileira também nasceu entre os intervalos do teatro em revista e, curiosamente, com o cordão umbilical ligado ao humor de rádio. Chico Anysio – entre as décadas de 1960 e 1970 – e Jô Soares já exploraram este campo com atividades paralelas ao trabalho no rádio e televisão. Maurício Meirelles, de 27 anos, é comediante de stand up e faz parte da atual geração do estilo, além de ser redator e integrante do elenco de Legendários. Para ele, “Isto está bombando no Brasil por causa da internet e da carência de humor que nós já estávamos sentindo há algum tempo. O politicamente correto prejudicou o humor brasileiro e a nossa geração vem para transgredir isto”. Em São Paulo, por exemplo, é possível assistir a uma apresentação de stand up a cada dia de semana, a preços

na média de 40 reais. A formatação deste tipo de espetáculo já é bem conhecida: o comediante, sem figurino teatral e com seu microfone, ocupa o palco vazio. Ficando cara-a-cara com o seu público, o artista passa a comentar sobre diversos assuntos imprimindo o seu olhar cômico. As crônicas do stand up vão de temas cotidianos, como pontos de ônibus, até as principais notícias da semana. “O mundo nos alimenta em conteúdo. É isso que faz o estilo não se tornar velho”, explica Meirelles. Mas nem tudo são elogios. “O responsável pelo stand up tem que ser na verdade um humorista e um ator cômico, mas a maioria deles não consegue juntar as duas coisas”, opina Elias Thomé Saliba. O professor explica que, na comédia em pé, o comediante herdou a cultura oral do rádio, apresentando dificuldades para se expressar com o corpo conforme manda o teatro, já que as apresentações se dão neste espaço. “O que é feito hoje é muito pobre. Steve Martin queria sempre sincronizar a piada com o movimento de seu dedo. Se é ao vivo, logo tem que usar o corpo de maneira lúdica.” Apesar do sucesso nos pal-

Maurício Meirelles: do stand up para o programa Legendários

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tiago mota

Na telinha

Elias Thomé Saliba é professor de História da USP

cos, Maurício Meirelles não tem formação em teatro, mas sim em Publicidade e Propaganda pela Faculdade Cásper Líbero. Para ele, o estudo de artes cênicas pode ser essencial na apresentação, mas não garante bons resultados. “Muito ator formado que vai fazer este tipo de comédia acaba não se dando muito bem por causa da atuação mais impostada e exagerada. O stand up é mais solto, um formamuito mais para bar do que para teatro”, conta o comediante. Outro elemento do teatro ausente no stand up, segundo Saliba, é a contextualização. “Nessas apresentações, coisas aparecem muito isoladas, pois os cômicos não têm muita vocação para criar um ambiente narrativo, ou clima. Das duas uma: ou a comédia em pé aceita a sua vocação de humor verbal ou ela aceita que é de teatro e chama alguém para dirigir.” O próprio Maurício Meirelles reconhece que, apesar de ser uma “febre” nas grandes capitais brasileiras, esse tipo de

A criação de humor se adapta conforme o meio em que está inserida. Com a televisão não é diferente. Para Elias Thomé Saliba, “A TV é muito mais rápida e permite uma edição, que é uma benção e uma praga ao mesmo tempo. É uma benção porque permite selecionar o corte, enquanto é uma praga porque acomoda o humorista. O CQC, por exemplo, tem uma excelente energia de humor, mas se baseia muito na edição”. Os jovens Daniel Nascimento, 27 anos, Anderson Bizzocchi, 27, e Elidio Sanna, 26, fazem parte da Cia. Barbixas de Humor. Juntos desde 2004, seu trabalho de esquetes e improvisação foi parar na televisão graças a grande exposição que os vídeos de seus espetáculos alcançaram na internet. Os três fizeram parte do elenco fixo dos programas Quinta Categoria, entre 2009 e 2010, na MTV Brasil, e no É Tudo Improviso, na Bandeirantes, até outubro de 2010. Na transição para TV, o grupo sentiu as diferenças de um veículo para outro. “A TV tem muito aspecto técnico que às vezes atrapalha nosso trabalho”, conta Anderson. Já Elidio explica que “Na TV existe a direção do programa, a direção do núcleo, o dono da emissora e tantas outras coisas. São muitas variáveis que começam a entrar no trabalho e alteram o resultado final”. A jornalista especialista em TV, Cristina Padiglione, acredita que “O humor televisivo brasileiro é caracterizado por piadas de botequim, com a mania de dar graça à desgraça”. Para ela, o grande divisor de águas do gênero foi o TV Pirata,

transmitido pela Rede Globo entre 1988 e 1992. “Ele já é o rompimento com o humor de esquetes, apesar de ter um pouco de esquete lá. Foi algo ousado para a época, tanto é que recebeu muita resistência principalmente pelo Chico Anysio, vindo de uma escola de humor mais clássico”, explica. O CQC brasileiro é uma das jovens iniciativas de humor que têm alcançado sucesso. O modelo do programa foi importado da Argentina, onde existe desde 1996, sem alteração alguma. Hoje também possui suas versões na Itália, Portugal e Chile. Contando com diversos humoristas e comediantes, principalmente do stand up, o trunfo declarado do programa é a mistura entre jornalismo e humor. “Ele informa em partes, mas não no sentido jornalístico. É muito mais humor do que qualquer outra coisa”, expõe Padiglione. Segundo o líder dos CQCs, Marcelo Tas, o programa consegue aliar informação e riso, embora não acredite que informar e debater devam ser o objetivo principal do humor. “A nossa função é a de comentarista da realidade, mas, como vivemos em um país absolutamente surreal, tem muita gente que vê o CQC como se fosse o jornal. Eu não recomendo o programa como fonte primária de informação. O humor é uma voz de um espírito de porco. É parcial, irresponsável e impreciso, o inverso do jornalismo”, aponta Tas. Já do outro lado da balança, com uma proposta de humor completamente diferente, Pânico na TV segura a audiência da RedeTV! há sete anos apoiado em celebridades e belas mulheres com roupas mínimas. Se estivesse em outra emissora, talvez o resultado não fosse o mesmo. Para Padiglione, “Em emissoras com audiências um pouquinho mais largas, eles teriam um público Revista Cásper – Setembro de 2011 – Nº 4

mais heterogêneo e resistente ao humor deles. As piadas são para a molecada”. O humor que tende para o bizarro e com referências sexuais pode desagradar alguns, como é o caso do Pânico. Segundo o professor Elias Thomé Saliba, “Sempre houve espaço para este tipo de coisa, que fora de contexto fica apelativo e sem graça. Porém, o único mérito do Pânico na TV é desmistificar a própria televisão e criticá-la”. Maurício Meirelles faz parte da equipe de Legendários como redator e também interpretando o personagem Clóvis Clichê, repórter que entrevista anônimos como se fossem celebridades. Embora enquadrado como tal, Meirelles não acredita que se trata de um programa de humor. “É um programa de entretenimento. No começo o Marcos Mion errou um pouco em prometer um programa de humor”, explica o comediante. Mion é o idealizador e comandante da produção, que também conta com um elenco de comediantes. A proposta inicial do programa era fazer um “humor do bem”,

divulgação

humor já está ficando saturado: “Tem tanto que hoje em dia já ficamos de saco cheio. Você quer comer e tem um cara fazendo stand up. Você vai ao mecânico e tem alguém fazendo stand up”.

Equipe do Pânico na TV: humor moleque

Revista Cásper – Setembro de 2011 – Nº 4

O outro mal da indústria cultural é o de pegar um humorista e obrigá-lo a fazer um tipo de piada para uma audiência X e Y com utilidade pública. “Eu sou dessa ala que quer enfiar cada vez mais o politicamente incorreto, enquanto o Legendários está em um canal conservador onde piadas ácidas irão ferir a audiência”, comenta Meirelles. Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que se vê o sucesso de iniciativas consideradas inovadoras, exemplos antigos de humor sobrevivem. Zorra Total estreou na Rede Globo em 1999, mas faz uso de um humor de esquetes e personagens estereotipados que existe no Brasil desde os primeiros anos da televisão – para não dizer do rádio, de onde muitos deles migraram, como o Balança Mas Não Cai. A Praça É Nossa também usa da mesma fórmula de personagens e está no ar no SBT desde 1987. A Praça, original da extinta TV Paulista, foi criada por Manoel de Nóbrega em

1957, pai de Carlos Alberto de Nóbrega, de 75 anos, que é o atual apresentador. Para Elias Thomé Saliba, embora antiga, a estrutura desses programas não caracteriza necessariamente um humor ruim. “O humor sempre trabalhou com estereótipos. O problema é que eles acabam se tornando repetitivos. Por outro lado, são programas que não se importam com o mundo lá fora. É um humor alienado”, opina o professor. Segundo Padiglione, são raros os exemplos de ousadia na criação do novo. “O que se faz na televisão já foi testado em algum canto. O Pânico ficou dez anos no rádio antes de ir para a TV. Nesse sentido, quase nada muda.” No entanto, a colunista relativiza: “Não podemos tomar o nosso gosto como o de todos”. É possível dizer que este tipo de humor “tradicional” está em crise? Os humoristas Maurício Meirelles, Anderson Bizzochi e Elidio Sanna acreditam ser exagero colocar nesses termos. “Não está em crise. O Ibope diz que não. A Globo não está descontente com os resultados do Zorra Total. O povo não é burro, se assiste é porque gosta”, argumenta Anderson. Particularmente, Maurício não acha graça nesses programas, “Mas enquanto houver alguém dando risada é porque tem público. O produto vende, logo esse tipo de humor irá continuar”, garante. Já para Saliba, essas produções são os sintomas da lógica do mercado invadindo a produção cultural. “O outro mal da indústria cultural é o de pegar um humorista e obrigá-lo a fazer um tipo de piada para uma audiência X e Y.”

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divulgação

Na rede A Cia. Barbixas de Humor deve seu sucesso à internet. Elidio, Anderson e Daniel começaram a postar vídeos no site Youtube, em 2004. Hoje, o canal da companhia recebe cerca de quatro milhões de acessos por mês no site. “Somos a geração que tem a internet como veículo. Essa mudança de meio já formou uma nova geração de pessoas, não só de humoristas”, conta Elidio, complementando que “Humor é uma das coisas que mais atrai na internet, perdendo para o sexo. Infelizmente não trabalhamos com sexo, mas temos muita força de comunicação na internet”. Os primeiros materiais postados na rede pelo grupo foram curtas cenas, como O Morcego Morto e O Jornal. A princípio, a intenção era passar esses pequenos vídeos no telão do teatro durante os intervalos, enquanto trocavam de figurino. Não demorou para que tivessem a ideia de disponibilizar as esquetes pelos computadores. “Nós desenvolvemos um produto para a internet. É algo para a pessoa assistir enquanto toma um café no intervalo de trabalho – ou durante o trabalho mesmo”, diz o

comediante Anderson Bizzochi. Se for possível apontar responsáveis, a internet é um dos fatores que levou ao boom em produção e procura por humor. Maurício Meirelles possui material na rede, assim como todos os comediantes de stand up, e atribuiu parte do seu sucesso a esta exposição. Para ele, agora é mais fácil mostrar seu talento e encontrar bons comediantes: “Há muitos exemplos de gente escondida que se fez aparecer por meio da internet e hoje tem certa fama. Criou-se, inclusive, um universo de humoristas dessa nova geração que se reúne por causa da rede”. Porém, enquanto muitas iniciativas inovadoras e engraçadas alcançam o sucesso graças à internet, surge também a impressão de que qualquer um pode se tornar um humorista. “Por exemplo, os vlogueiros, como o PC Siqueira, Felipe Neto, Ronald Rios, bombaram com seus vídeos. Tem gente que acha que é só pegar a câmera e filmar a si mesmo dizendo qualquer coisa. Que nada, é tudo muito bem pensado. Hoje, como tem muita gente, o cara tem de ser certeiro para se dar bem”, expõe Maurício Meirelles.

Humor além do fazer rir Jair Bolsonaro, deputado federal pelo Partido Progressista (PP) carioca, causou polêmica em entrevista cedida ao CQC e exibida em 28 de março. Em suas declarações, o deputado afirmou ter saudades da ditadura militar no Brasil, além de deixar claras suas tendências homofóbicas e racistas. O conteúdo da entrevista repercutiu em jornais, revistas e em portais de notícia na internet, além de ter sido um dos assuntos mais comentados no Twitter. A OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) do Rio Janeiro encaminhou um pedido de cassação ao deputado por falta de decoro um dia após a exibição do programa, assim como outros 20 legisladores que entraram com representações contra ele. Episódios assim chamam a atenção para uma função do humor além do entretenimento, pautando inclusive os assuntos discutidos publicamente. Segundo Elias Thomé Saliba, “O humorista segue a vocação de mediador da Esfera Pública e sempre foi crítico. Durante a ditadura militar no Brasil, ele tinha muito mais essa força”. Em concordância, Marcelo Tas, Revista Cásper – Setembro de 2011 – Nº 4

Boa fase? No meio da euforia que a atual produção de humor provoca, fica difícil saber se a explosão é em qualidade ou em quantidade. “O humor é muito difícil de analisar. Você pode ter uma seleção de piadas das quais 60% são Revista Cásper – Setembro de 2011 – Nº 4

sem graça, mas os 40% que sobram formam um volume grande de ideias que valem à pena”, acredita a jornalista Cristina Padiglione. Para os Barbixas, há tanto qualidade quanto quantidade. “O que vai acontecer é uma seleção natural. O público irá selecionar os bons. Pode ter surgido com quantidade, mas é a qualidade que vai se manter”, afirma Bizzochi. Maurício Meirelles acredita que o humor vive uma fase de reinvenção: “O mundo mudou. A sogra não é mais chata, o argentino é gente boa, a loira não é burra, o são-paulino não é gay. As piadas estão mudando”. Mesmo assim, ele concorda que a quantidade de produção acaba ofuscando o talento de bons artistas. “Quando essa bolha estourar vamos ser obrigados a entrar em um novo período de mudança”, prevê. Por outro lado, Elias Thomé Saliba não acredita que a atual geração de humor tenha tanta qualidade. “Não são todos ruins, mas eu vejo o momento como empobrecido. O humor não é mais transgressivo como deveria ser, é a época do consumo de trivialidades”, afirma. “É uma produção bastante efêmera, provavelmente isso vai passar logo.” “Eu tenho uma visão muito otimista em relação à qualidade do humor. Acredito que aumentam as chances de aparecerem novos talentos sem que isso fique restrito a uma coisa puramente de privilégios. Não é preciso morar em uma cidade grande nem tampouco aparecer na televisão para que seu trabalho seja reconhecido”, conta Marcelo Tas. E como não poderia deixar de ser, o apresentador encerra seu pensamento com uma piada. “Vivemos em um ambiente mais propício para o talento emergir. Se alguém tem alguma dúvida disso, pense dessa maneira: ‘Se até o Danilo Gentili conseguiu, eu também consigo’.”

Fala, Tas

divulgação/agência na lata

A Cia. Barbixas de Humor ficou famosa graças ao sucesso conquistado na internet

envolvido diretamente no caso Bolsonaro, acredita que “Essa função do humorista representa um momento delicado da civilização. Se está precisando de humorista para ser mediador, é porque a coisa está feia”. Tal afirmação remonta à chamada Sociedade Humorística, termo usado por Gilles Lipovetsky em seu livro Era do Vazio, na qual a descrença subtrai a seriedade de todos os eventos. “É quando tudo na sociedade, de catástrofes à política, vira piada”, explica Saliba. E se o humorista tem sua função ampliada no espaço social, quais são suas responsabilidades? O barbixa Anderson Bizzocchi crê que há uma: “A grande responsabilidade do humorista é fazer rir, as outras coisas vêm no pacote. Isso é até meio polêmico, mas defendo que qualquer assunto pode virar piada. Cada humorista é que impõe seu limite”. Apesar de levantar esta bandeira, a cautela existe. “Daqui a pouco eu não posso fazer piada sobre ninjas porque a ‘Associação Brasileira de Ninjas’ pode me esculhambar. O humorista tem que pensar duas, três vezes antes de fazer uma piada”, ironiza Maurício Meirelles. Mas o humor tem poder? “Acredito que sim, mas não conte isso para ninguém”, opina Tas. “O humor tem que ser irresponsável. Não deve caber aos humoristas a responsabilidade de promover a educação de um povo. Cabe ao humorista às vezes apontar a falta de educação. Se os humoristas virarem juízes ou professores, aí a coisa está perdida.”

Jair Bolsonaro “Existe racismo, existe homofobia e existe alguém que representa isso: o deputado Bolsonaro, que faz isso com total transparência, é uma virtude sua e temos que reconhecê-la. Para mim, a sociedade caminha quando um lado debate com o outro, confrontando as ideias de uma maneira relativamente civilizada. Com o Bolsonaro é um pouco difícil porque, além de tudo, é autoritário e violento, mas a gente tenta conversar com ele também.” Tiririca “No dia em que o Tiririca ganhou a eleição, as pessoas começaram a criticá-lo simplesmente por ele ser comediante como se isso fosse pior do que ser um ladrão, tal qual a maioria das pessoas que estão lá são. Agora, o que esperava do Tiririca é que ele chegasse lá e, na hora de assumir o cargo, falasse no primeiro discurso: ‘Eu queria dizer pra vocês que a minha candidatura foi uma piada, eu não vou ser deputado. Tchau, vou embora’. Ele levou a sério, mas tudo bem. Não vai ser o pior deputado, mas também não creio que ele esteja preparado para aquilo, inclusive a gente já mostrou isso no programa. Não vamos ter preconceito só por que ele é palhaço, alguns colegas dele têm profissões muito menos recomendáveis para um representante do povo.”

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RÁDIO

Rádio em

novos ares petrus lee

Ele se refaz em forma e conteúdo, adaptando-se mais uma vez às mudanças tecnológicas por Jaqueline Gutierres

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Revista Cásper – Setembro de 2011 – Nº 4


thiago tanji

Elisa Marconi, coordenadora de Rádio e TV na Cásper Líbero

Essa história é mesmo antiga, mas nenhuma dessas previsões catastróficas sobre um veículo de comunicação mais moderno ocupar ou tirar o lugar de outro mais antigo se concretizou. Pelo contrário. No caso do rádio, ele se adaptou muito bem e até melhorou em qualidade com todas essas novidades. “Quando a internet surgiu, falou-se que o rádio morreria. Mas não, o rádio foi para lá e ocupou seu espaço na rede, assim como atualmente está no telefone celular. O rádio está sempre presente porque continua sendo rápido e eficaz”, afirma Fernando Solano, diretor de conteúdo da rádio MitFM e âncora da BandNews FM. O grande diferencial do rádio é que ele fala com todos

os públicos. “Quem não sabe ler irá ouvir, quem não pode enxergar, também vai ouvir”, exemplifica Solano. Além disso, em termos econômicos, um aparelho portátil de rádio simples custa em média R$ 5,00. “É por isso que não existe meio de comunicação mais democrático. Mesmo que uma emissora afirme que seu conteúdo é para a classe A, alguém da classe E pode sintonizá-lo e ouví-lo”, enfatiza. Com alto poder de adaptação às outras mídias, o rádio encontrou seu espaço na rede, nos celulares, nos tablets, e modificou sua relação com a plataforma original: o próprio aparelho receptor de rádio. “Desde que comecei a trabalhar em rádio na década de 1970, o dial passou pelo fenômeno da segmentação. Muitas emissoras ecléticas deram lugar às especializadas e outras a rádios exclusivamente de notícias. Creio que a maior mudança foi implantar o all news em FM”, declara Heródoto Barbeiro. O jornalista, atualmente trabalhando no canal de televisão Record News, se refere a emissoras com conteúdo exclusivamente noticioso em frequência modulada (FM), o que não existia até a criação da BandNews FM, em 2005. Assim, a adaptação do rádio às diferentes tecnologias muda não só a técnica, mas o conteúdo e o modo de pensar essa mídia. “Hoje, quem está em rádio produz conteúdo. Onde ele será veiculado não importa”, explica Filomena Salemme, editora-chefe da recém-criada Estadão/ESPN, e professora de Radiojornalismo na Faculdade Cásper Líbero.

AM e FM: parceria ou disputa? A Central Brasileira de Notícias, mais conhecida como Rádio CBN, além de ter sido a primeira emissora 100% informativa em AM, foi precursora na reprodução de parte desse conteúdo para a FM. Inaugurada em São Paulo em 1995, o objetivo da retransmissão era atingir o público que estava migrando de dial – da amplitude modulada para a frequência modulada. “A transmissão em FM foi um sucesso, tanto com relação à resposta dos ouvintes quanto ao interesse dos anunciantes”, relembra Mariza Tavares, diretora nacional de jornalismo da CBN. Com os bons resultados da pioneira, outras emissoras de relevância na cidade seguiram seus passos: Bandeirantes, Jovem Pan e Eldorado passaram a retransmitir seus conteúdos informativos para a FM. “A concorrência levou um bom tempo para perceber que a diferença entre FM e AM não era a programação, mas a qualidade técnica do som e o público alvo. Quando entenderam isso, também fizeram a mudança”, conta Heródoto Barbeiro, que trabalhava na CBN quando se debatia a validade de transmitir notícias em FM. Com as principais rádios da cidade operando simultaneamente em AM e FM, uma das verdades absolutas sobre o rádio foi colocada em xeque: a relação entre frequência modulada (FM) e amplitude modulada (AM) mudou. “O que sempre se falou era que a AM era uma rádio falada e a FM uma rádio tocada, e ninguém podia mexer nisso, pois era Revista Cásper – Setembro de 2011 – Nº 4

um dogma. Então, quando se muda essa ordem, há espanto”, explica Elisa Marconi, coordenadora do curso de Rádio e TV da Faculdade Cásper Líbero. Mesmo com as rádios jornalísticas reproduzindo seus conteúdos ou produzindo novas matérias para FM, a AM – até então responsável por esse serviço – não perde o sentido de existir. “A AM tem seu espaço, seu público e seu conteúdo. Além dessas grandes emissoras jornalísticas que se mantêm em AM e FM, a grande audiência vem das rádios populares, voltadas para as classes C e D”, explica André Luiz Costa, diretor de jornalismo da BandNews FM. A dificuldade da amplitude modulada é a baixa qualidade de som, que prejudica a captação de um novo público. “Como é mais agradável ouvir em FM, as pessoas procuram mais e a tornam mais atrativa comercialmente. Mas isso não quer dizer que elas não possam ser complementares”, concorda Fernando Solano. As dificuldades técnicas da amplitude modulada, segundo Heródoto Barbeiro, não devem ser empecilhos por muito tempo. “Adaptando-se à internet, a AM passa a ter a mesma qualidade de som e o mesmo alcance da FM”, comenta. Uma previsão nem tão otimista é a de Elisa Marconi: “A amplitude modulada cumpre um papel importante, já que existem lugares no Brasil onde a frequência modulada não funciona. Por isso, ela terá sobrevida, mas tende a acabar. Será um processo lento que só se encerrará quando a FM conseguir atender a todo esse público”.

Busca de novos públicos A programação mista de música e notícia em frequência modulada foi a grande novidade até 2005, quando entrou no ar a BandNews FM, a primeira emissora exclusivamente jornaRevista Cásper – Setembro de 2011 – Nº 4

petrus lee

Com a invenção do rádio, o jornal impresso morrerá. Com a chegada da televisão, o rádio tem seus dias contados. A criação da televisão acabará com o cinema. Com o ‘boom’ da internet, todas as outras mídias terão fim

lística em FM. Baseando-se em pesquisas com ouvintes e com o mercado publicitário, André Luiz Costa, diretor de jornalismo da emissora, e sua equipe perceberam que havia espaço na FM para uma rádio com notícias 24 horas por dia. “A ideia era criar uma rede jornalística de referência na FM, voltada ao público jovem”, conta o diretor. Sempre foi característica da frequência modulada ter ouvintes mais novos que os da AM, por isso a produção de conteúdo para esse público. A boa recepção e a ampliação do espaço das emissoras jornalísticas são reflexos da satisfação de um público que antes não encontrava seu lugar. “São ouvintes que não estão migrando de lugar nenhum, mas que faziam parte de uma demanda reprimida”, explica Elisa Marconi. Pessoas que, segundo Mariza Tavares, perceberam a importância de estar bem atualizadas. “Esses ouvintes entendem que, atualmente, a informação é uma ferramenta poderosa na formação dos indivíduos e na tomada de decisões”, considera a diretora de jornalismo da CBN. As mudanças bem sucedidas na FM paulistana levaram a novas apostas. Emissoras

especializadas como a SulAmérica Trânsito, criada em 2007, com conteúdo exclusivo sobre trânsito, presta serviço ao motorista que deseja saber a melhor rota para chegar a seu destino. Outra novidade foi a Mitsubishi FM, lançada em 2008, uma emissora customizada com grande parte de conteúdo musical. Apelidada de Mit FM, a emissora é uma parceria entre o Grupo Bandeirantes, a Mitsubishi Motors e a agência de publicidade África. Por isso mistura interesses das três empresas, criando uma programação voltada ao público adulto e com gosto por esportes radicais. Tem como objetivo ir contra a “setorização” que existe nas rádios musicais. “O dial é muito bem definido, há muitas rádios para jovens, outras para determinado tipo de música, como MPB, clássica, rock e sertanejo. Não havia uma rádio que agregasse o todo”, comenta Fernando Solano, diretor de conteúdo da Mit FM. O jornalista afirma que a novidade vem sendo bem aceita pelos ouvintes. “Eram pessoas que se sentiam órfãs de rádio e ouviam apenas CD, porque não tinham uma emissora musical pensada para elas.”

Emissoras FM: qualidade de som que conquista o público

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petrus lee

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pelo ouvinte bem informado, seja sobre jornalismo ou sobre esporte”, explica Salemme. Para que o conteúdo chegue até o ouvinte, sua produção reúne o maior número de jornalistas que uma rádio já teve no país. “Contamos com quase 800 jornalistas, entre a rádio, o jornal O Estado de S. Paulo e a ESPN, dispostos a entrar no ar”, ressalta Salemme. Esses profissionais estão divididos nos três estúdios da emissora, dois no prédio do Grupo Estado – um na redação da Estadão/ESPN e outro na redação do jornal – e um terceiro na ESPN, no Sumaré. “Essa divisão ajuda na montagem da grade e, dependendo do programa, ele é feito em cada estúdio ou, em alguns casos, em mais de um simultaneamente.”

O dial de São Paulo, 90 a 100

As emissoras FM passaram a investir no conteúdo jornalístico

A parceria Estadão e ESPN Há anos consagrada em AM e em FM, a Rádio Eldorado, pertencente ao Grupo Estado, passou por uma reformulação em 2011 e agora está dividida em duas sintonias na frequência modulada. A parte musical mudou de estação e foi para os 107,3, em parceria com a fundação Brasil 2000, recebendo o nome de Eldorado Brasil 3000. Já os 92,9 MHZ (megahertz) ficaram com a parte jornalística: a Estadão/ESPN, fruto da parceria entre o Grupo Estado e a ESPN, empresa de comunicação especializada em cobertura esportiva. “O Grupo decidiu deixar a plataforma de música com a marca Eldorado e a plataforma de jornalismo com a marca Estadão unida à ESPN, com quem já mantém uma parceria há três anos”, conta Filomena Salemme, editora-chefe da emissora. A união com a empresa de esportes é bem sucedida. Segundo Salemme, isso acon-

tece pelo perfil de ouvintes que ambas tentam atingir. “Tanto o Estadão quanto a ESPN têm um público das classes A e B, por isso sabíamos que daria certo.” Ainda sobre o público-alvo, a editora-chefe ressalta que em comparação com os ouvintes da antiga Eldorado, os da Estadão/ ESPN são mais jovens. “A estimativa é que tenham mais de 25 anos, com gosto por esportes ­‑ dos mais populares, como o futebol, aos mais radicais, como motociclismo. Por isso, acreditamos que seja um ouvite mais masculino também.” Para um público novo, o conteúdo da rádio também se modificou. Apenas um programa se manteve, devido a sua boa audiência: o Leitura de Domingo, transmitido nesse dia da semana, das 10h às 12h. Toda a programação foi pensada para misturar jornalismo e esporte, “É uma rádio que tem em média 70% jornalismo e 30% esporte, mas que, independentemente disso, preza

Além de líderes de audiência e com perfil parecido de público, há outro ponto comum às quatro grandes emissoras jornalísticas de São Paulo (Bandeirantes, CBN, Estadão/ESPN e Jovem Pan) que não pode ser ignorado: a proximidade de suas frequências no dial. “Não é por coincidência que essas emissoras possuem frequências próximas: elas criam uma faixa jornalística que vai dos 90,5 aos 100,9. Com isso, a FM musical é arrastada para as pontas do dial”, ressalta Elisa Marconi. Além disso, as emissoras que tradicionalmente transmitiam programação musical passaram a diversificar seu conteúdo. “Jamais acontecera isso. É algo novo que cria um público novo e muda o jornalismo de rádio em São Paulo”, enfatiza Marconi. Essas mudanças, que ocorrem primeiramente no dial paulistano, não devem ficar restritas à cidade. Segundo Marconi, a rádio de São Paulo influencia outros estados que têm contato com ela, por isso a tendência é essas modificações Revista Cásper – Setembro de 2011 – Nº 4

irem para o restante do Brasil. “Há pouco tempo, Salvador, a terceira maior cidade do país, com 3 milhões de habitantes, não tinha AM nem FM jornalística, até que chegou a BandNews já em FM.”

Tecnologia bem-vinda O conteúdo produzido para rádio não é apenas para consumo no dial. “Isso vem mudando há quinze anos com o aparecimento da internet nas redações. Atualmente, não se está fazendo rádio para o aparelho convencional de transmissão, mas para ser distribuído de diversas maneiras e em vários outros lugares além de São Paulo”, afirma André Luiz Costa, da BandNews. “Não se pode confundir rádio com a caixinha de botões por onde nós estávamos acostumados a ouví-lo. Ele é mais do que isso, o que é perceptível quando vemos a adaptação à internet”, enfatiza Heródoto Barbeiro. Revista Cásper – Setembro de 2011 – Nº 4

A tecnologia mudou não só a forma de transmissão, mas a produção do conteúdo. Um dos marcos, segundo Filomena Salemme, foi o início do uso do celular, que agiliza o trabalho do repórter durante a apuração externa. Mas não só. “Internamente hoje é tudo digitalizado. A edição é realizada com programas em que se consegue amenizar até o ruído da respiração, por isso o resultado é uma qualidade de som muito melhor”, explica. Com as modificações técnicas, muda-se também o modo de entender o rádio. “Atualmente, a tecnologia passa a ser secundária. Não se escuta mais FM ou AM: se escuta rádio jornalística, emissora musical ou se informa por meio do site da emissora. O que interessa é que se trata de um conteúdo audiovisual, tão versátil que pode até virar um vídeo se acrescentarmos imagens”, comenta Tatiana Ferraz, professora de Radiojornalismo da

Faculdade Cásper Líbero. A internet torna-se uma aliada do rádio. “A rede revolucionou porque fez com que o rádio tivesse uma extensão da sua linguagem. Ao criar um arquivo para as matérias, fez com que as informações fossem fixadas”, diz Ferraz. Além disso, a internet traz a possibilidade de expansão do formato que até então se resumia a podcasts e webrádio. “O rádio ganhará a internet e será uma plataforma de conteúdo multimídia, deixando de se basear apenas em áudio, passando a produzir textos, fotos e vídeos”, projeta Mariza Tavares, da CBN.

Filomena Salemme, editora-chefe da Estadão/ ESPN

O futuro no ar Com os avanços tecnológicos, as mudanças no dial e a abertura para o conteúdo jornalístico, o mercado de trabalho sofre reflexos positivos. “Atualmente em São Paulo, a rotatividade dos empregos em rádio é grande: se equipara à de

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petrus lee

O trabalho técnico do radialista ganha cada vez mais importância na produção do conteúdo

um jornal impresso da cidade”, exemplifica Elisa Marconi. As vagas surgem não apenas para jornalistas, mas para radialistas e todas as outras profissões ligadas à transmissão. “Será necessário ter mais agilidade e dinamismo na produção de conteúdo, o que é encargo dos jornalistas; e maior qualidade de som, por isso os radialistas serão importantes.” Além disso, as diferenças entre os meios precisam ser superadas. “O profissional tem que ser multimídia e ultrapassar as antigas fronteiras que separavam FM, AM e internet”, comenta Mariza Tavares. No caso específico do jornalismo, segundo Tatiana Ferraz, alguns cuidados devem ser tomados desde o início da aprendizagem. “No ensino, precisamos entender como passar a informação para o público nos diversos formatos. Mas o principal, em qualquer área do jornalismo, é que o bom texto não muda”, explica. A ampliação da concorrência na área de comunicação é um importante fator que faz necessário o aumento das habilidades dos profissionais de rádio. Quando estão na internet, as emissoras passam a disputar com todo o mundo, desde outras estações, até usuários que disponibilizam seus áudios na rede. Porém, isso não é de todo ruim: “Emissoras originalmente de TV estão

na rede dividindo espaço com emissoras originalmente de rádio e buscando a atenção das pessoas. Isso faz com que aumente a complementaridade entre os meios e é ai que entra o profissional multimídia”, ressalta André Luiz Costa. Com a rotina das grandes cidades, as novas tecnologias não deixarão o rádio ficar para trás. “Ele é a única mídia que pode acompanhar as pessoas no dia a dia frenético, porque é o único que não exige parar o que se está fazendo para ouvir”, aponta Filomena Salemme. A editora-chefe ressalta a importância de se conhecer a essência da rádio jornalística: prestar serviço ao ouvinte. E brinca dizendo que, com as principais emissões jornalísticas pela manhã e no final da tarde, “As emissoras levam e trazem os ouvintes para casa todo dia”. Além do conteúdo tradicional, há espaço para novos formatos. “Cabe um tipo de ‘falação’ não jornalística, como documentários, programas de variedade, ficções e projetos experimentais”, opina Elisa Marconi. A professora explica que as mudanças tecnológicas e de conteúdo no dial criam uma nova onda de rádio. “Um mundo novo se abriu e nós não podemos nos deixar dominar por quem estava pensando antes. Nós temos que inventar um novo modo de fazer rádio.”

Sintonize-se! Alguns termos da linguagem do rádio são comuns ao cotidiano dos ouvintes, mas seus significados nem tanto. Abaixo, selecionamos os mais recorrentes e explicamos o que querem dizer AM abreviação de Amplitude Modulada ou modulação de amplitude. Como o nome sugere, nesse tipo de transmissão o que varia é a amplitude (também chamada de força ou altura) da onda eletromagnética, enquanto os outros dois parâmetros de medida de uma onda (frequência e fase, fator que define a direção de propagação da onda) se mantêm constantes. FM abreviação de Frequência Modulada ou modulação da frequência. Nesse tipo de transmissão, o que varia é a frequência da onda eletromagnética enquanto os outros dois parâmetros de medida de uma onda (amplitude e fase) se mantêm constantes. Hz abreviação de hertz, unidade de medida que mede ciclos por segundo. No caso das ondas eletromagnéticas, mede as oscilações por segundo. Nas rádios, o mais comum é que se ouça falar em kHz (quilo-hertz), MHz (mega-hertz) e GHz (giga-hertz), que são medidas derivadas do Hz. Dial termo em inglês que pode ser traduzido como indicador. No caso do rádio, dial se refere à marcação de estações, tanto com relação à escala que aparece nos aparelhos quanto ao número atribuído às frequências das emissoras.

Revista Cásper – Setembro de 2011 – Nº 4


PERFIL

Castelo

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a dona do

Um dos principais nomes da produção infantil brasileira, Beth Carmona abre seu baú de ótimas histórias por Fernanda Patrocínio e Ítalo Fassin Revista Cásper – Setembro de 2011 – Nº 4

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em cortiços”, relembra Beth. A diretora afirma que sua infância foi repleta de brincadeiras clássicas de rua, como esconde -esconde e pega-pega. Mas a televisão já marcava sua vida. “Tenho uma lembrança forte de televisão, era ligada e assistia bastante. Meus programas favoritos eram Papai sabe tudo, Lassie e seriados deste estilo.” Beth é a terceira filha de uma família de quatro irmãos – duas irmãs mais velhas e um irmão mais novo. A mãe era dona de casa e cursou somente até o primário, assim como o pai da diretora. “Ele trabalhava como administrador de clubes e empresas em geral. Nossa formação foi simples, de escola pública”, conta. Estudiosa, Beth ingressou na Universidade de São Paulo, na Escola de Comunicação e Artes (ECA-USP), e se formou em duas habilitações: Jornalismo e Rádio e Televisão. “Acho que o profissional se

faz um pouco pela sua história familiar, mas muito por sua procura e interesse”, ensina. Na década de 1970, a carreira iniciada no rádio proporcionou o contato com produções populares. Em seguida, no início dos anos 1980, trabalhou como pesquisadora na área de comunicação no Centro Cultural São Paulo, que se chamava Idart (Departamento de Informação e Documentação Artística). “Nesta época, estudava a história do Rádio e da Televisão e lecionava no curso de RTV da Fundação Armando Álvares Penteado, a FAAP”, conta ela, que está sempre “procurando fazer cursos para ampliar e orientar seu repertório.”

Pensando nas crianças Em meio desta procura, o Instituto Goethe, um dos principais centros para o aprendizado da língua e cultura alemã no Brasil, ofereceu um curso cujo tema era produção infantil para TV. Beth se inscreveu. “O curso me deu mais bagagem e segurança para trabalhar com televisão. Quando este assunto apareceu na minha mão, já estava mais preparada”, afirma. O primeiro trabalho na televisão foi consequência do rádio. Com passagens pelas emissoras Mulher e Record FM, Beth foi contratada pela Rádio Cultura e de lá foi transferida para o departamento de TV, em 1986. Sua função, a princípio, era de assessora de imprensa. Contudo, dentro do departamento de programação da TV, abriu-se uma vaga de redação. Devido ao seu diploma em Jornalismo, Beth conseguiu Revista Cásper – Setembro de 2011 – Nº 4

o cargo. “Fui me encantando com todas as atividades dentro do departamento de comunicação da TV Cultura”, confessa. Logo, ela se tornou assessora do chefe do departamento. E assumiu a vaga principal. “Aconteceu uma demissão em conjunto e o antigo chefe foi um dos demitidos. Assumi o seu lugar de uma maneira quase natural, pois eu era a funcionária que mais conhecia o departamento de televisão”, conta. Foi neste momento que a produção infantil passou a fazer parte da rotina profissional de Beth. Como chefe de programação, ela era responsável por tudo o que ia ao ar no setor infantil. “Em 1991, quando a produção do seriado Mundo da Lua estava começando, houve uma pequena crise no setor de produção. Roberto Muylaert, presidente da emissora na época, me deslocou para cuidar 100% deste programa”, conta. Ela foi então promovida a diretora-geral de programação e produção da TV Cultura, cargo que ocupou por seis anos. Beth é muito grata ao ex-presidente que lhe deu Revista Cásper – Setembro de 2011 – Nº 4

oportunidades na casa e considera Roberto Muylaert “um homem muito visionário, que comandou um dos melhores momentos da TV Cultura, durou os dez anos em que ele se dedicou à emissora”. Ela se lembra que foi nesta época que os grandes programas infantis da Cultura nasceram, como Mundo da Lua, Confissões de Adolescente, Castelo Rá-tim-bum e Cocoricó, assim como a chegada de produções estrangeiras. Na gestão de Beth Carmona como diretora de programação da TV Cultura, cerca de 60% das atrações eram de produções próprias e 40% internacionais. “A compra era muito bem escolhida. Desta leva, vieram o seriado Anos Incríveis e o desenho animado Os Anjinhos.” A ex-diretora conta ainda que houve a preocupação em facilitar o nome dos programas para o telespectador: em vez de Wonder Years, adotou-se Anos Incríveis e no lugar de Rugrats, emplacou Os Anjinhos. “A ideia era mostrar um produto com qualidade, mas sem problemas com questões de estrangeirismos no nome”, explica.

Inesquecível Castelo Em 1993, após o término da produção de Mundo da Lua, Beth Carmona retornou ao departamento de programação da TV Cultura. Roberto Muylaert, o presidente da emissora na época, firmou parceria com o Sesi (Serviço Social da Indústria) e a FIESP (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) para a produção de uma série voltada aos alunos da pré-escola – crianças com até 6 anos. O cineasta brasileiro Fernando Meirelles, consagrado posteriormente com Cidade de Deus (2002), havia dirigido na época outra produção infantil bem- sucedida, o Rá-tim-bum, e foi contatado por Beth para ajudá- lo com o novo projeto, que ainda estava sendo moldado. No entanto, Meirelles estava ocupado com outros projetos e lembrou-se do trabalho do colega Cao Hamburger, que havia produzido esquetes para a emissora. “A ideia do Rá-tim-bum virar um castelo veio da equipe principal que montamos, da qual eu já fazia parte. Nas primeiras conversas, participaram também o Cao

Como diretora de programação, emplacou clássicos como Mundo da Lua, Confissões de Adolescente e Castelo Rátim-bum

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Quando criança, Beth era fã dos seriados Lassie e Papai Sabe Tudo

Elyzabeth Carmona Leite, diretora e produtora especializada em segmento infantil em televisão, é uma das mentes criativas por trás destas atrações. 55 anos, com cerca de 1,60 metro de altura, olhos verdes expressivos, Beth fala em um tom manso e baixo. A carreira em rádio, passando pela programação da TV Cultura, Discovery Kids e a consagração do Midiativa fazem parte da história desta importante personagem dos bastidores da programação infantil contemporânea. Beth Carmona nasceu na cidade de São Paulo, no dia 31 de março de 1956, e foi criada na Barra Funda, zona oeste da capital paulista. “Quando eu era criança, São Paulo já era uma cidade grande, mas dependendo do bairro, era possível brincar na rua. Morávamos próximos a uma comunidade mais pobre e tínhamos contato com as pessoas que moravam

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TV Cultura, Mundo da Lua, Castelo Rá-tim-bum, Cocoricó, Discovery Kids. Estes canais e programas infantis fazem parte da infância daqueles que hoje beiram os 25 anos

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O destaque do Castelo era a magia que permeava a identificação dos personagens Hambúrguer e o Flávio de Sousa, que era o dramaturgo”, relembra Beth. O enredo de Castelo Rátim-bum narrava a história de Nino (interpretado por Cássio Scapin), um menino de 300 anos que mora em um castelo repleto de animais e invencionices. Nele, vivem também seu tio, o feiticeiro e cientista Doutor Victor (Sérgio Mambert) e sua tia-avó, Dona Morgana (Rosi Campos), feiticeira de 6000 anos. Apesar das peculiaridades, Nino se sente muito sozinho e, com um feitiço aprendido, atrai três crianças, Biba (Cynthia Rachel), Pedro (Luciano Maral) e Zequinha (Freddy Allan), que passam a visitá-lo todos os dias após a aula para brincarem e viverem diferentes aventuras ao lado das criaturas do castelo.

“Os elementos vivos fazem parte da natureza de qualquer projeto”

Na opinião de Beth, tanto Castelo Rá-tim-bum quanto Mundo da Lua trouxeram muita felicidade. “Considero Mundo da Lua um projeto normal com a qualidade de afinação de um elenco, de coordenação e de direção – tarefas e atributos fundamentais em uma produção”, conta, orgulhosa. “Houve momentos em que o diretor afirmava ‘vou trazer um helicóptero’, mas não tinha como, pois sempre se trabalha com orçamento menor do que o desejado e ele precisava se virar com um carrinho de rolimã. Manter uma boa relação durante todo o processo é uma habilidade, pois problemas, brigas e desastres acontecem.” Dentre esses “problemas e desastres”, duas histórias merecem destaque. Durante Revista Cásper – Setembro de 2011 – Nº 4

Novos planos O ano de 1997 marcou a saída de Beth Carmona da TV CultuRevista Cásper – Setembro de 2011 – Nº 4

ra. Houve um desalinhamento do pensamento da diretora com os caminhos que a televisão estava trilhando. “Eu saí da emissora muito triste. O trabalho que eu fazia poderia ter continuidade, mas eu tinha de seguir outros caminhos.” No ano de 2002, reconhecendo que a TV comercial dificilmente dá atenção aos programas educacionais infantis e juntando seu envolvimento com órgãos como o Fundo das Nações Unidas para a Infância-Unicef, Carmona criou a sua própria ONG, o Midiativa, Centro Brasileiro de Mídia para Crianças e Adolescentes. “Inspirado nesses grupos que já existiam e através da união das pessoas que trabalharam comigo e que foram demitidas da TV Cultura, nasceu o Midiativa.” A organização promove a crítica construtiva sobre mídia destinada a crianças e adolescentes, visando a estimular a realização de produções de qualidade e sua difusão nos meios de comunicação. Mas o que Beth Carmona considera mídia de qualidade? “Qualidade requer oferecer, no mínimo, diversidade. Entender que a produção infantil pode utilizar várias linguagens. Ou seja, pode ser animação, animação em 3D, stopmotion, animação clássica em aquarela, live action, que são crianças reais em drama ou documentário, dentro de suas casas ou na rua, no Brasil ou na África.” Depois de ter trabalhado quase doze anos na TV Cultura, Carmona recebeu um convite para trabalhar em um canal pan-regional em Miami, para dirigir produções voltadas para a América Latina. Lá, trabalhou

para os canais Discovery Kids e Animal Planet, o que explica o fato do escritório dela, localizado no bairro paulistano de Itaim Bibi, ter uma estante com ursinhos de pelúcia dos desenhos do canal infantil. Na volta do exterior, Carmona assumiu a presidência da TVE, onde se concentrou por cinco anos no trabalho de reconstrução da emissora do Rio Grande do Sul, durante os anos de 2003 a 2007. Dessa fase, dois projetos podem ser destacados: o Curta Criança, que reúne hoje mais de 60 histórias brasileiras para crianças elaboradas pela equipe de Beth Carmona, e o Menino Maluquinho – A Série, feito na TVE, nomeado ao Emmy, maior prêmio da televisão, na categoria Série Internacional. Hoje, Beth não tem mais nenhuma criança em sua casa. “Tenho dois filhos, um de 29 anos e o outro 27. Infelizmente, eles ainda não me deram netos”, conta a diretora. Quando pequenos, eles assistiam aos programas que a mãe ajudava a produzir e, inevitavelmente, ela os usava como termômetro. “É claro que, quando os filhos são menores, a relação com educação é mais intrínseca”, afirma. Apesar da prole crescida, Carmona ainda hoje se interessa bastante por projetos educacionais e pedagógicos. Atualmente, a ex-diretora da TV Cultura tem a sua própria empresa, a Singular Arquitetura de Mídia. “Quando se tem filhos, esta questão da educação é mais sensível. Mas isto não quer dizer que aquele que não tem filho não possa ser um bom produtor e diretor infantil.”

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Boas histórias

as filmagens de Mundo da Lua nasceu um bebê, literalmente. No elenco principal, a atriz Mira Haar, intérprete da personagem Carolina, ficou grávida. Como ela era a mãe do protagonista Lucas Silva e Silva (Luciano Amaral), a inesperada gravidez foi incorporada ao enredo. “Ninguém contava que isso fosse acontecer. Então, estes elementos vivos fazem parte da natureza de qualquer projeto”, conta a diretora. O outro fato é triste: em agosto de 1994, o ator Wagner Bello, que interpretava Etevaldo em Castelo Rá-tim-bum, faleceu em decorrência de complicações com a AIDS. Durante o processo de produção, Beth afirma que não há como ter noção do tamanho do sucesso de um programa. “Sabemos somente depois. Temos a consciência de que damos o sangue para executar um bom trabalho.” Mundo da Lua, por exemplo, foi o programa que conseguiu maior audiência em horário nobre na TV Cultura, com picos de 12 pontos às 19h30. Já Castelo Rá-tim-bum não teve uma audiência tão alta no horário nobre, mas ficou marcado no imaginário das crianças que viveram a década de 1990. “O destaque no Castelo foi a magia que permeava a identificação dos personagens. Terminamos de produzi-lo em 1997 e ele está no ar até hoje; não envelheceu. Já o Mundo da Lua, posso considerar que envelheceu, mas a televisão continua usando a receita.”


VOZ

DUBLAGEM CHAPÉU

o mercado da

Apoiada na televisão, dublagem brasileira ganha popularidade e chega aos cinquenta anos buscando se reestruturar por Paulo Pacheco

REPRODUÇÃO/HENRIQUE KOLLER

“Versão brasileira”. São essas duas palavras que acompanham a exibição de filmes, desenhos animados, séries, documentários, entre outras produções audiovisuais estrangeiras que chegam ao Brasil para serem dubladas. O mercado da dublagem, que começou há cinquenta anos com a série Rin Tin Tin, encontrou seu auge na década de 1990 e hoje reúne estúdios grandes e pequenos. Quando a televisão estreou no Brasil, em 1950, os programas importados eram exibidos no idioma original ou recebiam legendas. O desenho Pica-Pau começou assim, na TV Tupi. Entretanto, as letras ficavam ilegíveis por causa da imagem em preto-e-branco e do tamanho das telas. Somente em 1961 a dublagem virou lei, quando o então presidente Jânio Quadros decretou que todos os filmes levados ao ar pela televisão deveriam ser exibidos em português. Mesmo com a lei, as empresas não levaram a sério a decisão do presidente. “No mesmo ano em que ele lançou o decreto da dublagem, proibiu Revista Cásper – Setembro de 2011 – Nº 4

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a briga de galo e o uso de biquíni na praia”, recorda o dublador Nelson Machado. Gradativamente, atendendo à escolha do público, as emissoras e os distribuidores se acostumaram a trabalhar com dublagem. Para que uma produção estrangeira seja dublada, o cliente consulta estúdios que ofereçam o preço mais baixo. Antigamente, pagava-se por anéis. “Anel” equivale ao tempo que o rolo da fita gasta para dar uma volta completa – cerca de vinte segundos. Hoje, os dubladores recebem por hora, mas o modo de cobrança continua igual. “Se um dublador ganha por hora, não é por 60 minutos, mas por cada vinte anéis que ele produz, que é o mínimo”, explica Machado. O estúdio selecionado chama um dublador para definir as vozes, escolhidas a pedido do cliente. “Não são todos os filmes que o distribuidor pede teste, mas a maioria faz isso para os personagens principais, sobretudo no caso das séries”, comenta a dubladora Marli Bortoletto. Em alguns trabalhos, o

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PAULO PACHECO

diretor de dublagem não escolhe as vozes por meio de testes, mas por assimilação. “Em desenhos, como é caricato, lembro-me de algum personagem que o profissional fez, testo e geralmente fica bom. Em séries, é mais difícil, porque não têm esses tipos, tem de ser coerente com o som original. Faço a escalação pelo talento”, esclarece Jussara Marques, enquanto dirigia a dublagem da série animada Kick Buttowski na Álamo. A máxima “O cliente sempre tem razão” também vale para o mercado de dublagem. Waldyr Sant’anna foi escalado para dirigir a versão de Os Simpsons, mas o distribuidor decidiu que ele daria voz ao protagonista. “Não fiz teste para o Homer Simpson. Eu dirigia os testes e, quando fui explicar para um dos candidatos como deveria fazer, a produtora americana que estava no estúdio disse que eu iria dublar o personagem”, conta. Para preservar o “instrumento de trabalho”, os du-

bladores contam sobretudo com o talento. “Acho que fui abençoado pela natureza, porque sempre tomei gelado, gritei muito e raramente fiquei afônico, somente umas duas ou três vezes. Antes de ser ator, era radialista, vivia em ar condicionado, acho que criei resistência”, garante, aos risos, o dublador Luiz Laffey.

Versão carioca versus versão paulista Seguindo os passos da televisão, a dublagem também se concentrou no eixo Rio–São Paulo. A Herbert Richers, no Rio de Janeiro, e a A.I.C. (Arte Industrial Cinematográfica), em São Paulo, dividiam o posto de líderes do mercado. Não por coincidência, eram os mais aptos para receber os filmes no formato da época. Antes de dublar, a Herbert Richers produzia filmes; a A.I.C. tinha salas de projeção que simulavam um cinema. Os estúdios recebiam os filmes em película de

16 mm, com o som original em um dos lados, dentro de latas redondas – daí surgiu o termo “enlatado” para as produções audiovisuais importadas. Os “donos” das vozes dos personagens de um filme eram atores de teatro e de televisão que encontraram na dublagem um novo mercado de trabalho. Na década de 1960, como as principais emissoras – Tupi, Record, Excelsior, Bandeirantes e TV Paulista – estavam em São Paulo, os dubladores trabalhavam na cidade. O surgimento da TV Globo, em 1965, atraiu grande parte dos profissionais para o Rio de Janeiro e modificou inclusive o modo de dublar. “Pode colocar no filme ‘aê, rapá’, ‘ô, mermão’, mas não pode falar ‘ô, meu’, porque é paulista”, exemplifica Machado. Com o fechamento da Excelsior, em 1970, e da Tupi, em 1980, parte do elenco destas emissoras migrou para a Globo; a outra permaneceu em São Paulo, atuando em dublagem. É o caso da atriz e dubladora Revista Cásper – Setembro de 2011 – Nº 4

norte-americanas e as novelas mexicanas adquiridas por Silvio Santos. “Dublar dentro da emissora era uma novidade. Não trabalhávamos para o Silvio, mas para o Marcelo Gastaldi, dono da Maga”, esclarece Nelson Machado, que na empresa realizou seu trabalho mais famoso: o personagem Kiko, do seriado Chaves. Embora o dono da emissora se mantivesse distante, suas ordens atingiam diretamente o trabalho dos dubladores. Por exemplo, o “abrasileiramento” dos roteiros. Tradutor de mais da metade dos episódios do Chaves, Nelson Machado teve de ir ao consulado mexicano para trazer as aulas de História do Professor Girafales à realidade brasileira. Na tradução da novela Os Ricos Também Choram, o resultado não foi satisfatório. “A Cidade do México virou São Paulo, Acapulco virou Rio de Janeiro e Guadalajara virou Araraquara, mas os personagens ricos viajavam muito, e aparecia Aeropuerto Internacio-

Tenho que absorver a interpretação da atriz e realizá-la. A arte está nesse transplante

PAULO PACHECO

Nelson Machado, dublador do personagem Kiko, do seriado Chaves

Zodja Pereira. “Acredito que minha primeira dublagem foi a série I Love Lucy. Foi desafiador, pois estava acostumada a atuar, não a trabalhar atrás da atuação de outro. Eu tenho que absorver a interpretação da atriz e realizá-la. Não é um trabalho meu, é dela. A arte está nesse transplante”, explica. Sem a presença de emissoras de televisão de peso, os estúdios paulistas enfrentaram apuros na década de 1970. A A.I.C. fechou em 1975, sendo reaberta anos depois com o nome de BKS. No Rio, a Herbert Richers estava no auge em virtude da parceria com a Globo. Em São Paulo, os trabalhos restantes eram absorvidos pelos estúdios remanescentes, como a Álamo, fundada em 1972. O mercado de dublagem em São Paulo ganhou sobrevida nos anos 1980, graças novamente à televisão. O SBT, na época TVS, montou três estúdios em sua sede e contratou empresas, como a Maga e a Elenco, para dublarem as séries

Hermes Baroli na Álamo, onde começou a dublar em 1986

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nal de la Ciudad de México. Ficou ridículo, e o Silvio desistiu disso”, recorda Machado. A dublagem feita nos estúdios do SBT repercutiu negativamente na imprensa, mas a qualidade discutível se justifica por um período de adaptação. “A mídia disse que a dublagem era horrorosa, porque estávamos mudando de filme para vídeo. Antigamente se dublava em filme, e vinha a fita perfurada que depois ia para a moviola e juntava tudo. No vídeo era um canal só, quando colocávamos a fala do dublador sumia tudo atrás. Tínhamos que refazer tudo, barulho de porta, avião, passo, música”, relembra Mário Lúcio de Freitas, na época responsável pela criação e adaptação musical da emissora. Com o fim do núcleo de dublagem, nos anos 90, o último lote de episódios de Chaves e Chapolín foi mandado para a Marshmallow, do qual Mário Lúcio era sócio,

e as novelas mexicanas ficaram com a Herbert Richers. Outro grande momento da dublagem paulista aconteceu no final dos anos 1980, quando as séries japonesas se popularizaram entre os jovens. Os tokusatus, como são chamados no Japão, eram exibidos pela extinta TV Manchete e dublados na Álamo, tendo como expoentes Jaspion e Changeman. “Em Flashman foi a primeira vez que ‘abri minha boca’. O Líbero Miguel, diretor artístico da Álamo na época, me deu uma chance e fui bem, viu que eu levava jeito. Depois fiz Kamen Rider, Sharivan e pontas em outras séries”, conta o dublador Élcio Sodré.

Vozes reveladas O boom da dublagem no Brasil aconteceu em 1994. A partir daquele ano, os dubladores saíram do anonimato e ganharam popularidade que dura até hoje.

A fama se deve à série animada Os Cavaleiros do Zodíaco, exibida pela Manchete e dublada na extinta Gota Mágica, de Mário Lúcio de Freitas. “Um empresário espanhol me ligou pedindo orçamento para dublar o desenho. Era o presidente da Samtoy, licenciadora dos brinquedos de Os Cavaleiros do Zodíaco. Ele me mandou o dinheiro adiantado da série inteira para que pudesse montar um estúdio”, relembra Mário Lúcio. Os primeiros episódios de Os Cavaleiros do Zodíaco foram dublados na Marshmallow, mas com o crédito para a Gota Mágica, que só pôde receber o restante da série com suas instalações finalizadas. Dirigida por Gilberto Baroli, teve um elenco jovem. “Os Cavaleiros do Zodíaco foi a causa de muita gente entrar na dublagem”, comenta Hermes Baroli, que fez o personagem Seiya de Pégaso quando tinha 18 anos. Revista Cásper – Setembro de 2011 – Nº 4

Convivendo com uma nova realidade A dublagem brasileira está hoje em processo de reestruturação. O mercado aquecido estimulou a criação de pequenos estúdios, que atuam em outras áreas e cobram mais barato. A nova concorrência tem levado as dubladoras tradicionais ao fim. A Herbert Richers, que começou em 1950 produzindo filmes, decretou falência no começo de 2010. A baixa mais recente ocorreu com a Álamo. Revista Cásper – Setembro de 2011 – Nº 4

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Sede da Álamo, tradicional estúdio que fechou em julho de 2011

Dentro do estúdio, os dubladores tinham a companhia dos fãs e da imprensa especializada – na época, Cavaleiros impulsionou a criação de revistas sobre animação japonesa que dedicavam muitas páginas para mostrar quem estava por trás das vozes dos personagens. Nove anos depois, Cavaleiros foi redublado na Álamo. “As vozes dos personagens seriam mudadas, mas os fãs impediram que isso acontecesse, o que mostra o poder que o telespectador tem sobre um produto”, ressalta Ulisses Bezerra – a voz do personagem Shun de Andrômeda. Estes fãs criaram, em 2003, o Oscar da Dublagem, um prêmio para os melhores trabalhos realizados pelos profissionais que emprestam sua voz para as produções estrangeiras. Uma banca qualificadora escolhe os indicados para o voto popular e os vencedores recebem o troféu no Anime Friends, evento anual de cultura pop que acontece em São Paulo. “Ser indicada já é bem legal, ser bem votada e ir para a final já é uma recompensa, e ganhar é o reconhecimento documentado”, comemora Miriam Ficher, vencedora da nona edição da premiação na categoria “melhor dubladora de anime” pelo trabalho em Os Cavaleiros do Zodíaco – The Lost Canvas, na Dubrasil, dando voz à personagem Pandora.

O anúncio do encerramento das atividades da Álamo veio pela internet. No dia 11 de maio deste ano, Hermes Baroli escreveu em seu perfil no Twitter a seguinte mensagem: “Notícia triste do dia: o estúdio Álamo, com 40 anos de bons serviços prestados à dublagem, fechará as portas até o fim deste mês. Lamentável!” Assim que teve certeza do fim, o dublador publicou a informação. “O mercado vem caindo há algum tempo e ganhou fôlego, mas a retomada não foi suficiente”, afirma Baroli. Após terminar suas últimas encomendas, a empresa de dublagem fechou em julho. Aos prantos, Marli Bortoletto voltou à Álamo para se despedir e lamentou o encerramento da dubladora, que prezava pela qualidade do produto final. “A diferença entre o preço que a Álamo cobrava e o que essas novas produtoras estão pedindo era muito grande. Hoje, a qualidade deixou de ser um quesito, o distribuidor prefere o preço mais atrativo”, diz ela. O fim da Álamo e da Herbert Richers tem um motivo

em comum: grande estrutura para pouco trabalho. Ambas tinham diversos estúdios para as diferentes etapas da dublagem, o que era necessário na época em que foram criadas. Pela mesma razão, Mário Lúcio de Freitas fechou a Gota Mágica no início dos anos 2000. “Montamos o estúdio para três firmas. A primeira fechou logo. A segunda também fechou. A Gota Mágica ficou com uma estrutura grande demais só para ela”, esclarece. Em entrevista a Nelson Machado em seu programa na internet, o dono da Álamo, Alan Stoll, previu que “O mercado vai ficar cada vez mais competitivo”, em virtude do maior volume de trabalhos que virá das TVs por assinatura. E a perspectiva é que, cada vez mais, pequenas empresas entrem no ramo da dublagem. Para Machado, “Está cada vez mais fácil e barato montar uma dubladora: basta ter um bom computador, uma mesa de som razoável, um microfone legal e um software específico para esse trabalho”.

Miriam Ficher com seu prêmio no “Oscar da Dublagem”

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ENTREVISTA

temos de formar gestores de

comunicação Ícone dos estudos acadêmicos de Relações Públicas, Margarida Kunsch acredita que a Comunicação deve trabalhar de modo integrado por Thiago Tanji e Tiago Mota

thiago tanji

A personalidade serena de Margarida Kunsch pode até enganar aquele que não conhece o seu trabalho. Mas basta uma rápida conversa para descobrir que se está falando com um ícone acadêmico da Comunicação, principalmente no que diz respeito ao estudo em Relações Públicas e Comunicação Organizacional. Nascida na cidade de Domingo Martins, no Espírito Santo, veio para São Paulo em 1970, aos 23 anos. Formou-se em Relações Públicas em 1977, na Faculdade de Comunicação Social Anhembi, atual Universidade Anhembi Morumbi, passando a lecionar no mesmo ano. É mestre e doutora em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), onde obteve o título de livre-docência em Teorias e Processos de Comunicação Institucional. Além disso, a professora também presidiu importantes entidades e organizações de pesquisa, como a Associação Brasil de Pesquisadores de Comunicação Organizacional e de Relações Públicas (Abrapcorp), Revista Cásper – Setembro de 2011 – Nº 4

Revista Cásper – Setembro de 2011 – Nº 4

Asociación Latinoamericana de Investigadores de la Comunicación (Alaic) e a Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom). Atualmente, Margarida Kunsch, além de docente titular da USP, é chefe do departamento de Relações Públicas, Propaganda e Turismo da ECA. A professora também já passou pela Faculdade Cásper Líbero, onde lecionou de 1984 a 1988. Além de pesquisadora, é também autora e organizadora de diversos livros de grande contribuição para os estudos comunicacionais, entre eles Relações públicas e modernidade: novos paradigmas na comunicação organizacional e Planejamento de relações públicas na comunicação integrada. Em conversa para a revista Cásper, Kunsch conta um pouco sobre sua trajetória e principais influências teóricas. A pesquisadora também discute sobre a profissão de Relações Públicas e a expansão deste campo acadêmico, defendendo um ensino integrado e dinâmico da Comunicação para superar os desafios de nosso tempo.

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da Comunicação, que por sua vez integra as Ciências Sociais Aplicadas. Trata-se de um campo em que a vertente de aplicação é direta. Não dá para separar teoria de prática. Uma boa teoria, na verdade, ajuda muito em uma boa prática. Aliás, é o que temos buscado fazer nas universidades: buscar uma interlocução com o mercado e trazer pessoas do mercado para estudar e refletir sobre essas práticas.

thiago tanji

Então é grande a demanda pelo estudo acadêmico? É, sim. Não só aqui, mas no Brasil todo. Eu tenho dado cursos em outras cidades do Sul, Norte, Centro Oeste, e a gente percebe muito isso. Por quê? Porque as organizações sofrem todas as consequências das transformações sociais, econômicas e políticas da era digital. E a comunicação que é realizada nas empresas, nas organizações, nos órgãos públicos, não pode ser improvisada. Ela tem de ser uma comunicação pensada estrategicamente. E para isso precisa de uma base conceitual. Daí a demanda dos profissionais em se qualificar. Às vezes, só a graduação não dá conta.

“Hoje a área de Relações Públicas não é só uma prática, mas um campo de estudos”

Há não muito tempo, poucas pessoas conheciam o trabalho de um Relações Públicas. Esse cenário mudou? Sim. O grande problema da área de Relações Públicas é que este termo é polissêmico, principalmente para o leigo. Ainda é difícil entender o que um profissional de Relações Públicas faz e diferenciar essa atividade com a de um jornalista ou de um publicitário. Por que isso? Primeiro, a área trabalha com o intangível. Quando se lida com comportamento de público e opinião pública, o trabalho se torna muito mais complexo. O RRPP deve gerenciar a comunicação das organizações com os públicos, e ele precisará da comunicação para isso. Ainda falando para quem não é da área, qual a influência e importância das RRPP para a sociedade? Na medida em que se desenvolve uma ação social ligada à questão da sustentabilidade, por exemplo, contribui-se para o desenvolvimento de uma comunidade e, enfim, com a sociedade. Quando um diretor de comunicação com formação em Relações Públicas alerta a direção da empresa que uma determinada ação pode trazer malefícios, ou não respeita a sociedade, ele também exerce um papel importante. O profissional

deve ter a visão de que pode contribuir. Eu não venho com a ideia de que as RRPP promoverão as transformações da sociedade, acho isso presunçoso. Temos de pensar o que podemos fazer para melhorar, e isso deve ser feito também pelo Jornalismo e pela Publicidade. Como a senhora analisa o desenvolvimento do campo acadêmico de RRPP, uma disciplina jovem e muito ligada à prática? Houve um salto qualitativo muito grande nas duas últimas décadas em relação aos estudos de Relações Públicas, não só pelo número de teses produzidas nos centros de pós-graduação do país, mas também pelo número de livros e coletâneas que tem sido publicado. Hoje, a área de Relações Públicas não é só uma prática, mas um campo de estudos. Temos já uma produção científica significativa. Há, inclusive, uma associação de pesquisadores de Comunicação Organizacional e Relações Públicas, o que expressa também a existência de uma comunidade de estudiosos preocupados na formação de uma teoria. Qual a preocupação dos profissionais da área em conciliar o estudo acadêmico com o cotidiano do trabalho? A área de Relações Públicas faz parte das Ciências Revista Cásper – Setembro de 2011 – Nº 4

Quais são os grandes teóricos que temos na área de Relações Públicas? Em termos de pioneirismo, temos o professor Cândido Teobaldo de Souza Andrade, falecido em 2003 e primeiro doutor em Relações Públicas. Também posso citar o professor Roberto Porto Simões, que se preocupou em trabalhar as questões teóricas de RRPP. E nós temos agora toda uma nova geração, que está produzindo. Costumo dizer que, felizmente, hoje existem vários autores que estão trabalhando diferentes enfoques. A senhora se considera uma pioneira nos estudos de Relações Públicas? Eu não sou pioneira. Me preocupei muito em sistematizar, abrir o estudo das RRPP para mais pessoas e formar um contingente de pesquisadores. Formamos no Brasil uma comunidade acadêmica muito forte. Isto começou quando fui presidente da Intercom e liderei o primeiro Grupo de Relações Públicas. O que considero importante no meu trabalho é o papel de articuladora. É chato falar da gente mesmo, mas o exemplo mais concreto é a criação da Abrapcorp, a Associação Brasileira de Pesquisadores de Comunicação Organizacional e Relações Públicas. Nós já realizamos cinco congressos anuais e temos conseguido reunir cerca de 500 pessoas só da nossa área. Acho isso importante. A senhora citou as mudanças de paradigmas na área da Comunicação. Como vê essa mudança dentro das RRPP? Revista Cásper – Setembro de 2011 – Nº 4

É preciso trabalhar dentro de uma perspectiva integrada de comunicação Em 1985, quando defendi meu mestrado sobre planejamento de relações na comunicação integrada, percebi que estávamos vivendo sob novos paradigmas. Ou seja, não dá mais para ver a área de RRPP como sendo isolada dos demais campos da Comunicação. Ela deve ser entendida como uma função estratégica que irá analisar cenários e fazer leituras dos ambientes, trazendo subsídios para pensarmos a comunicação de modo estratégico. E esse é o grande desafio para a área? É o grande desafio, sem dúvida. Tradicionalmente, as RRPP se limitavam muito entre relações com a imprensa e relações com o governo. Mas, atualmente, outros segmentos ganham força, como as organizações do terceiro setor ou as relações com investidores. Não dá mais para você ficar vendo as Relações Públicas sob o paradigma das técnicas de organizar eventos, de cuidar bem. Isso tudo faz parte, mas não é só. O curso de RRPP deveria ser mais dinâmico? Com certeza. O curso teria de se modernizar constantemente para atender a essas demandas da comunicação. Nós ainda temos um formato de curso muito segmentado. As “caixinhas”: Publicidade, Relações Públicas e Jornalismo, quando, na prática, é preciso trabalhar dentro de uma perspectiva integrada da comunicação. As disciplinas precisariam dialogar mais entre si, por meio da realização de projetos conjuntos. Como isso seria possível na prática? Na prática isso dá muito trabalho porque exigirá uma ruptura com os padrões tradicionais. Então, por exemplo, se você pode promover uma ação de Relações Públicas dentro da própria escola em termos de buscar uma interlocução com outros cursos, isso vai depender de uma série de providências de ordem operacional. Há o pensamento de “isso não é com a gente, isso é para Relações Públicas”. É uma visão pequena. O curso precisa ter uma formação geral e humanística muito sólida e boa, falando especificamente de RRPP. Depois, é preciso também conhecer muito bem a área de Comunicação, dominar as linguagens de todos meios e suportes. Precisamos formar gestores de comunicação, não um profissional técnico centrado em um único produto.

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Mais do que nunca as organizações precisam planejar sua comunicação de uma rede social como o Facebook, por exemplo, um assessor pode ter um relacionamento com um jornalista de uma maneira muito mais instantânea do que nos modos tradicionais. Em contrapartida, qualquer um pode lançar uma notícia que poderá ser desastrosa para uma empresa. Como monitorar ou lidar com isso? A maneira de trabalhar muda radicalmente.

malmente os recursos são escassos por serem muito bem controlados dentro de uma realidade econômica. Hoje, tudo é muito medido. A avaliação e mensuração vêm da racionalidade econômica. As empresas só investem se tiverem a certeza de que isso trará resultados. Por isso que digo que a área de RRPP deve mostrar que uma ação de comunicação trará bons resultados, e este é o grande desafio.

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Já se aprendeu a trabalhar melhor com isso?

“Quem trabalha com comunicação deve conhecer bem as suas práticas”

Os empresários já perceberam a importância das RRPP? Com as mudanças do mundo de alguns anos para cá, as organizações não podem ser vistas apenas como unidades econômicas, elas não estão aí apenas para obter lucros. Inclusive, o conceito real de sustentabilidade é alcançar o desenvolvimento econômico, social e ambiental. Na medida em que a sociedade cobra mais as empresas e os públicos são mais exigentes ao que tange, por exemplo, a defesa do consumidor e a questão ambiental, as organizações irão precisar cada vez mais de um trabalho integrado no ponto de vista de comunicação. As empresas não podem fazer apenas publicidade mercadológica, mas desenvolver seu relacionamento com os públicos. É neste ponto que entra a importância estratégica da área de RRPP, inclusive do ponto de vista social. As organizações precisam se posicionar institucionalmente, e a área mais capacitada para realizar este trabalho é a de Relações Públicas. Eu não defendo aqui uma visão corporativista, mas sim a formação dos profissionais. Hoje, quem trabalha com comunicação deve conhecer bem todas as suas áreas. Sintetizando, podemos afirmar que o RRPP entra como mediador entre empresa e sociedade e é exatamente aí que se encontra sua relevância social? Sim, o termo é justamente mediação. As organizações são microssociedades, mas que fazem parte

da sociedade como todo. Na medida em que se faz essa mediação, ocorre uma interferência social. Afinal, o trabalho de assessoria de imprensa cabe a jornalistas, relações públicas ou, como a senhora indicou em sua fala, deve ser integrado? A assessoria de imprensa é um trabalho originalmente de relações públicas. No Brasil, houve um desenvolvimento peculiar. Na época da ditadura, muitos jornalistas saíram dos jornais, rádios e emissoras de televisão por pressão da censura, o que causou uma corrida muito grande para este trabalho de assessoria. Mas acredito que é uma função que deve ser feita de maneira integrada. É preciso acabar com as fronteiras. Na Academia, especificamente em São Paulo, este assunto já está superado. O importante é realizar um trabalho que irá somar. A assessoria de imprensa no Brasil cresceu muito e as grandes empresas estão bem estruturadas O desafio das assessorias não é nem mais essa briga entre jornalistas e relações públicas, mas sim as redes sociais – um cenário em que todos passam a ser emissores e, na prática, as empresas não precisam depender tanto do trabalho de assessoria. Puxando esta linha, o advento das redes sociais muda o jeito de trabalhar. No entanto, esta tecnologia auxilia no desenvolvimento de uma comunicação de fato integrada? Com certeza. Ela agiliza, ela provoca. Por meio Revista Cásper – Setembro de 2011 – Nº 4

Sim. As grandes assessorias têm uma frente de atuação muito forte no mercado digital, porque se não fizerem isso, não sobrevivem. Não é mais só fazer um blog, mas como sustentar esse blog. Não é simplesmente usar redes sociais sem ter um planejamento em termos de monitoramento e direcionamento. Tudo é muito novo ainda. Algumas empresas já fazem esse trabalho enquanto outras ainda estão testando. Se um consumidor não ficou satisfeito e posta alguma reclamação na internet, aquilo pode gerar uma frente de seguidores que depois se tornará incontrolável. Às vezes, se a empresa não der rapidamente uma resposta naquele momento, a reclamação pode gerar um problema muito maior e até grandes prejuízos financeiros. E é possível identificar esse tipo de problema antes que se torne tão grande? Depende da prontidão. Se a empresa estiver acompanhando e monitorando para logo responder ou esclarecer a reclamação, acredito que conseguirá amenizar. Mas, uma vez que está na rede, é quase impossível manter um controle. Vai depender muito da capacidade de reação e pró-atividade de quem está à frente da comunicação da empresa. Quais as condições que atualmente prejudicam o trabalho? Por exemplo, se houver uma empresa completamente fechada, com uma direção sem consciência dessas novas realidades, fica difícil desenvolver algum projeto por mais que se queira inovar. É preciso infraestrutura e recursos também. Há empresas que veem a comunicação como estratégica, e essas devem investir em gente capacitada, além de contar com assessorias externas. Mas nem todas as companhias têm essas condições. Os recursos são escassos? Isso é relativo, depende de cada realidade. NorRevista Cásper – Setembro de 2011 – Nº 4

A senhora é otimista? A profissão segue um bom caminho? Mais do que nunca as organizações precisam planejar a sua comunicação, por isso penso que estamos vivendo um momento promissor. Principalmente em relação às redes sociais, em que a comunicação e o relacionamento das organizações com os públicos mudam radicalmente. Aquele modelo em que a empresa era a grande emissora da informação, mandando os releases, mudou. Hoje o consumidor também é um produtor de conteúdo. Isso dificulta o trabalho e exigirá mais profissionalismo. E penso que isso aumenta as possibilidades de emprego para um profissional preparado. Na Faculdade Cásper Líbero, no espaço de Relações Públicas, há uma placa com os dizeres de sua autoria “O verdadeiro trabalho do relações públicas é aquele que, além de informar, propicia o dialogo”. Isso sintetiza a profissão? Para fazer um bom trabalho de relações públicas é preciso que o público entenda e apóie. Isso em qualquer hora. Pode-se desenvolver um trabalho para uma comunidade com a melhor das intenções, mas é preciso aproximação com esta comunidade e seus líderes locais, atender às suas expectativas. Como será possível fazer isso sem o diálogo? Na medida em que se usa o diálogo, busca-se um consenso. É difícil para uma empresa buscar esse equilíbrio, que poderíamos tirar da teoria dos jogos. Entender até onde se pode ir e o que o público quer. É o diálogo que permitirá essa ação. Para fechar, a senhora tem um conselho para os estudantes de RRPP? Estude muito e invista na sua carreira. Esteja muito sintonizado para o que acontece no mundo e saia dos muros da faculdade, vá além. Persiga seus sonhos. Em qualquer profissão, se você não acredita e não gosta, não adianta.

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Os loucos das telonas

psiquiátricas. “Há um interesse de controle e apaziguamento social. Além disso, quando se identifica o usuário de drogas com a figura de um doente, a ideia básica é a de que um drogado é uma pessoa amoral”, declarou a professora. O encontro seguiu tratando das internações e se debateu sobre esquizofrenia, enfatizando a contradição que existe quando se fala sobre as drogas, divididas em ilegais e

medicinais. O professor Irineu Guerrini, doutor em Ciências da Comunicação, ressaltou que “O mundo da sociedade industrial não pode parar, por isso a droga é a primeira opção para curar esse tipo de transtorno”. Guerrini acredita na psicoterapia ou em tratamentos que incluam interação social como alternativa, mas afirma que eles não são recorrentes devido ao preço e à demora do tratamento. Coisa de louco!

Depois da exibição dos filmes, professores e alunos tiveram um debate sobre o tema

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ainda não traduzidos para o português: Marketing, Essentials of Marketing, e MKTG 4 (todos publicados em 2011 nos EUA pela Editora Cengage). Em seu encontro com os estudantes da Cásper Líbero, o professor falou sobre o impacto da mídia social no trabalho de marketing, as dificuldades da área nos dias de hoje e como os profissionais devem lidar com os novos desafios. “O foco da minha palestra foi sobre o momento em que empresas falham em atingir a expectativa dos clientes e como é importante superar essas falhas”, explicou Lamb.

Charles Lamb, professor de Marketing da Universidade Cristã do Texas

Internet sob os holofotes As novas mídias na cobertura de conflitos armados e catástrofes naturais foram tema da aula magna de Jornalismo com Bernardo Kucinski

divulgação/cecl

Celebrando a sétima arte, a Coordenadoria de Cultura Geral realizou o 8º Ciclo de Cinema, com debates integrando professores e alunos das graduações de Jornalismo e de Rádio e TV. Com o tema “Cinema e Loucura”, a amostra aconteceu na sala Aloysio Biondi e contou com a exibição de cinco obras sobre o assunto: Bicho de Sete Cabeças (Laís Bodansky, 2000), Uma Mente Brilhante (Ron Howard, 2001), Este Mundo é dos Loucos (Philippe de Broca, 1966), Dodes’ka-den (Akira Kurosawa, 1970) e Um Estranho no Ninho (Milos Forman, 1975). Entre os temas debatidos, a polêmica sobre a internação psiquiátrica, a posterior ressocialização do indivíduo e a tolerância das famílias com relação às drogas. A professora Sandra Goulart, doutora em Ciências Sociais e autora do livro Drogas e Cultura: Novas Perspectivas, lançado em 2008 pela editora Edufba, foi uma das debatedoras do encontro e falou sobre a dificuldade da sociedade atual em lidar com comportamentos diferentes, o que fica explícito nos tratamentos em clínicas

JORNALISMO

8º Ciclo de Cinema reuniu alunos e professores para debater o modo como a loucura é retratada nas telas

Charles Lamb, professor do curso de Marketing da Universidade Cristã do Texas, onde também atua como membro do Departamento de Sistemas de Informação e Administração de Cadeias de Abastecimento, veio à Cásper para a realização de uma palestra com os alunos da faculdade. Em 1997, Lamb recebeu o prêmio de maior importância da Universidade Cristã do Texas, o Chancellor´s Award por Pesquisa Distinta e Criatividade. Com cerca de 100 artigos publicados em revistas especializadas de Marketing, o professor é co-autor dos livros

divulgação/cecL

CULTURA GERAL

A seguir, um giro pelas principais atividades das Coordenadorias da Faculdade Cásper Líbero no 1º semestre de 2011

O professor americano Charles Lamb esteve na Faculdade para conversar com os alunos de Publicidade e Propaganda sobre as novas dificuldades na área de Marketing

divulgação/cecl

Cásper

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COORDENADORIAS

aconteceu na

Marketing: do cliente perdido à sua satisfação

Para Kucinski, as novas mídas foram essenciais na “Primavera Árabe”

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Em meio ao tsunami que devastou o Japão e ao conturbado contexto político no Oriente Médio, a Aula Magna do curso de Jornalismo não poderia ter convidado melhor. Bernardo Kucinski, professor titular de Jornalismo na Universidade de São Paulo, atualmente aposentado, tratou do papel das novas mídias nesse tipo de cobertura jornalística, em evento realizado no dia 16 de março. Graduado em Física e Doutor em Ciências da Comunicação, Kucinski defende que as novas mídias têm poder de articulação e mobilização social. No caso do Egito, a renúncia do ditador Hosni Mubarak sofreu influência da internet – com o vazamento de documentos confidenciais no site WikiLeaks

e a manifestação de cidadãos nas redes sociais. “Os meios para combater a força governamental durante a resistência dos egípcios foram divulgados pelo Facebook e Twitter. A mobilidade dos celulares e contatos por e-mail também ajudaram nesse processo”, afirmou o professor. Porém as novas mídias ainda não conseguem estar presentes em todos os casos por entraves criados justamente pelas antigas mídias. Kucinski citou o episódio do tsunami e dos terremotos no Japão, em que a rede de televisão NHK monopolizou a cobertura. “O papel das novas mídias, neste caso, é mínimo e o que vemos é uma cobertura sensacionalista, com repetição de cenas que levam à exaustão.”

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Criador de bonecos, dublador e diretor de atrações infanto-juvenis, Fernando Gomes ministrou aula magna aos alunos de Rádio e TV

Chegando à sua 9ª edição, o Fórum de Pesquisa apresentou os trabalhos científicos dos alunos da Faculdade

Cocoricó, Rá-Tim-Bum, Castelo Rá-Tim-Bum, X-Tudo e Agente G são programas que fizeram parte da infância de grande parte dos jovens que hoje têm mais de 20 anos [leia mais sobre isso na página 43]. Mas o que muitos não sabem é que por trás de todas essas historinhas há um nome em comum: Fernando Gomes. Além de dirigir atrações, o ator e artista plástico manipulou e dublou alguns dos bonecos mais conhecidos da programação infantil brasileira, como o menino Júlio de Cocoricó, e o pássaro Garibaldo, na versão brasileira de Vila Sésamo, ambos exibidos pela TV Cultura. “Eu participo da infância de muitas crianças, mas a maioria não conhece o meu rosto. É um trabalho de Super-Homem, de identidade secreta.” E para dar fisionomia àquela voz já conhecida, Fernando Gomes ministrou aula magna na Faculdade para os estudantes de Rádio e TV. Com risos e palmas da

Pelo 9º ano consecutivo, a Faculdade Cásper Líbero promoveu o seu Fórum de Pesquisa, em que estudantes da graduação, da pós-graduação e mestrandos puderam apresentar suas pesquisas realizadas ao longo de 2010. O Centro Interdisciplinar de Pesquisas (CIP), coordenado pela professora Maria Goreti Juvêncio Sobrinho, esteve mais uma vez por trás da realização do evento. É no CIP que os estudantes da Faculdade podem desenvolver seus trabalhos de iniciação científica. “O Fórum é funda-

Fernando Gomes, dublador de sucessos infantis da TV Cultura

RELAÇÕES PÚBLICAS

mais aula na TV”, ressaltou. “Porém, acredito que dá para fazer diversão com conteúdo.” Na aula, o ator também falou sobre a arte de confeccionar bonecos, o trabalho como diretor e a triste situação da programação infanto-juvenil atual. Sobre essa atual realidade, Fernando apontou a escassez de conteúdo nacional nas TVs. “As emissoras dão espaço a atrações estrangeiras, que rendem maior audiência e faturamento”, afirmou.

Workshop com Paulo Morelli O diretor e roteirista de Cidade dos Homens realizou workshop com os alunos de Rádio e TV da Cásper Líbero, apresentando seu novo software de roteiro, o Story Touch Escrever o roteiro para um filme parece bastante complicado, não? Paulo Morelli, diretor e roteirista dos longas-metragens Preço da Paz, Viva Voz e Cidade dos Homens e co-fundador da produtora O2 Filmes, em sociedade com Fernando Meirelles, passou pela Cásper Líbero para mostrar aos alunos do curso de Rádio e TV que a tarefa não é tão difícil quanto se imagina. O roteirista realizou um workshop na Faculdade no dia 2 de junho para apresentar aos

alunos o software Story Touch, ferramenta desenvolvida por ele para ajudar os escritores na produção de roteiros cinematográficos. Segundo Paulo Morelli, a divulgação de seu projeto entre estudantes desse ramo é importante para mostrar as possibilidades dentro da profissão de roteirista, ainda pouco explorada no país. “Esse tipo de workshop traz consciência desse universo. O roteiro é uma parte um pouco deficiente do ‘fazer cinema’ no

Brasil. Meu objetivo é ajudar a melhorar esse tipo de produção em nosso país” No encontro, além de explicar como funciona a construção de um roteiro e mostrar como o Story Touch pode auxiliar no processo criativo, Paulo organizou uma dinâmica de produção criativa com os participantes do workshop, ensinando como pequenas histórias podem ser desenvolvidas em roteiros cinematográficos. Uma dica de ouro para os estudantes! Revista Cásper – Setembro de 2011 – Nº 4

mental, pois com ele divulgamos que a Faculdade financia o desenvolvimento das pesquisas. É importante também para o estudante ter essa experiência acadêmica”, destacou Goreti. No que abrange o campo acadêmico da comunicação, uma diversidade de temas foi abordada, como redes sociais, videoclipes, marketing empresarial, cinema e rádio. O Fórum novamente deu espaço para os pesquisadores mostrarem sua competência e os resultados de suas pesquisas. Entre os destaques, Márcio Ha-

rada, que realizou a pós-graduação na Faculdade em Comunicação Jornalística, trouxe ao público presente uma análise da influência dos principais meios de comunicação em Ruanda, na época do genocídio que ocorreu no país, no ano de 1994.

Estudantes da graduação e pós-graduação apresentaram seus trabalhos de pesquisa

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plateia, Fernando conduziu um bate-papo rico em vídeos de seus programas, como o “clipe do cocô”, um pequeno episódio musical com os personagens de Cocoricó, explicando às crianças a função das fezes. O ator defendeu que a programação infanto-juvenil deve aliar responsabilidade, educação e entretenimento. “Eu brigo muito para que os programas de TV do gênero tenham, acima de tudo, diversão. A criança não pode chegar da escola para ter

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RÁDIO E TV

Fórum de Pesquisa

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O encanto dos programas infantis

Lidando com a crise O diretor e o coordenador da empresa aérea Gol debateram sobre a comunicação de risco no 2º Observatório de Relações Públicas “O risco faz parte do nosso negócio.” Foi dessa maneira que Hélio Muniz, diretor de Comunicação Corporativa da Gol, sintetizou o tema da 2º edição do Observatório de Relações Públicas, que tratou sobre a comunicação de risco. Além de Muniz, Daniel Leb Sazaki, coordenador de Comunicação Externa da empresa aérea,

também esteve presente na Faculdade para contar aos alunos do curso de Relações Públicas como a companhia lida com situações de crise. Os profissionais de comunicação da empresa explicaram que devem esclarecer imediatamente ao público qualquer problema relacionado com a companhia. E eles não são pou-

cos. Afinal, com cerca de 900 decolagens diárias e participação de 37,13% no setor aéreo nacional, situações como atrasos de voos ou problemas de relacionamento com os clientes fazem parte do dia a dia da empresa “Devemos defender a reputação da Gol, agindo sempre com transparência e simpatia”, esclareceu Muniz.

Publicidade, Propaganda e stand up Maurício Meirelles, comediante de stand up e ex-aluno da Cásper Líbero, foi o convidado da aula magna do curso de Publicidade e Propaganda Quem disse que aula tem de ser sem graça? Maurício Meirelles, comediante e ex-aluno da Cásper Líbero, mesclou piadas com dicas para os estudantes de Publicidade e Propaganda, curso em que se formou em 2005. Com 27 anos, o humorista também es-

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creve roteiros para o programa Legendários, da TV Record. Para ele, voltar à Avenida Paulista nº 900 depois de seis anos é uma maneira de reviver os tempos de faculdade. “A aula magna foi ótima. Principalmente por ter ido lá para fazer as mesmas piadas que contava quando era

estudante”, brincou. Criatividade, rapidez de raciocínio e bom humor são características essenciais no mercado publicitário. E tais qualidades, adquiridas na faculdade, ainda acompanham Meirelles em seu trabalho, entretendo o público com boas piadas.

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RESENHA

Agostini

na feliz leitura de Maringoni

Uma das funções do trabalho acadêmico é lançar luzes sobre fatos e feitos do passado, que a corrida do tempo coloca muitas vezes nos porões do esquecimento. Um exemplo concreto dessa atividade da academia é a redescoberta de Angelo Agostini. Na segunda metade dos anos 1970, quando fiz a graduação em jornalismo aqui na Cásper, o professor de História da Comunicação, Antonio Costella, em suas entusiasmadas aulas jamais mencionou esse grande revisteiro italiano, como também não se deteve na obra de outro grande personagem de nossa imprensa, Francisco de Paula Brito. Talvez a obra de Paula Brito ainda esteja por ser resgatada, mas Angelo Agostini vive hoje um reconhecimento que havia se esfumado ainda antes de sua morte, em 23 de janeiro de 1910. E esse é um dos méritos da pesquisa acadêmica, como prova o recém-lançado livro de Gilberto Maringoni, Angelo Agostini, a imprensa ilustrada da Corte à Capital Federal, 1864-1910 (Devir Livraria), resultado de sua tese de doutorado em História Social, defendida na Faculdade de Filo-

sofia, Letras e Ciências Humanas da USP, em 2006. O próprio Maringoni conta como se deu seu contato com o mestre italiano: “Em 1984, alguns membros da Academia Brasileira de Letras quiseram prestar uma homenagem a Adolfo Aizen (1907-1991), então principal editor de quadrinhos no Brasil e proprietário da Ebal (Editora Brasil-América). Meio século antes, em 14 de março de 1934, Aizen lançara, com grande sucesso, o Suplemento Juvenil, um tablóide semanal de 16 páginas e tiragem inicial de 200 mil exemplares. No miolo, as histórias norte-americanas de sucesso na época: Flash Gordon, Fantasma, Mandrake, Jim das Selvas, Dick Tracy e um time de heróis mascarados”. “Os acadêmicos propuseram ao Congresso Nacional instituir o 14 de março como Dia das Histórias em Quadrinhos”, prossegue Maringoni. “Em São Paulo, um grupo de cartunistas, embalados pelos ventos democratizantes das Diretas Já, resolveu criar uma entidade, a Associação dos Quadrinhistas e Caricaturistas (AQC). A meta era lutar pela expansão do mercado

para artistas nacionais. Entre outros, faziam parte da associação Paulo Caruso, Fortuna, JAL [José Alberto Lovetro], Laerte e eu. “ “Naqueles tempos, a Ebal era ao mesmo tempo objeto de admiração e vilã da história: suas revistas quase só publicavam material estrangeiro e pouco espaço dava aos talentos brasileiros. Achávamos que sagrar o 14 de março seria um equívoco. Passamos a pesquisar uma data alternativa para a comemoração. Um colega carioca – Ofeliano de Almeida – levantou a lebre. Resolveu investigar uma informação dada por Herman Lima, em seu clássico História da Caricatura no Brasil. Lá, ele dizia que Angelo Agostini publicara histórias em quadrinhos na segunda metade do século XIX, no jornalzinho Vida Fluminense. Ofeliano foi até a Biblioteca Nacional e achou um tesouro. Ele me deu o toque e fui ao Rio. Fiquei pasmo. As sequências desenhadas pelo italiano eram de alta qualidade. Esteticamente, não tinham paralelo no mundo. “A data de publicação era 31 de janeiro de 1869. A partir daí, batalhamos para que esta Revista Cásper – Setembro de 2011 – Nº 4

data fosse estabelecida como Dia do Quadrinho Nacional. E assim ficou. A ABL acabou não levando sua proposta adiante. Outro pesquisador fez o mesmo trabalho e na mesma época. Era Antonio Luiz Cagnin, professor da ECA-USP. Por meio de seus estudos, vários detalhes dos trabalhos de Agostini passaram a vir à luz. A partir daí, comecei bissextamente a pesquisar o trabalho de Agostini, até decidir a fazer dele meu tema de pesquisa no doutorado”, conclui Maringoni. Mas o trabalho de Gilberto Maringoni, primoroso pela qualidade do texto e por sua visão atenta de arquiteto, jornalista, ilustrador e pesquisador, vai muito além da faceta do Agostini quadrinista.

A trajetória de Agostini O livro de Maringoni, dividido em cinco capítulos, precedidos de uma apresentação imperdível, mapeia a trajetória e as peripécias de Agostini em seus quase cinquenta anos de atividade criativa. A introdução (“O traço e a troça”) é uma bela mostra da escrita de Maringoni: a análise que faz de uma lâmina do livro Viagem pitoresca através do Brasil, de Rugendas (1802-1852) insere o leitor no mundo da leitura das imagens e ao universo em que atuará o personagem de sua pesquisa. O primeiro capítulo “O Diabo na província” aborda os inícios do jovem Angelo na capital paulista, onde criou as primeiras publicações semanais ilustradas daqui (O Diabo Coxo e o Cabrião, entre os anos de 1864 e 1867). “Impressões de uma viagem à Corte”, o capitulo 2, analisa as primeiras publicações do grande italiano no Rio de Janeiro (Arlequim, Vida Fluminense e O Mosquito). O grande feito de Agostini, a Revista Illustrada, recordista Revista Cásper – Setembro de 2011 – Nº 4

de vendas na América Latina naquela época (entre 4 mil e 6 mil exemplares semanais), é esmiuçado no capítulo 3, “Império ilustrado”. O capítulo 4, “A República da especulação”, trata da Revista Illustrada sem Agostini (que fugira em setembro de 1888 para a França, após o escândalo familiar de engravidar uma aluna, e ali vive seis anos de que pouco se sabe), sua volta em 1894 e o lançamento da revista Don Quixote, sua obra de maturidade artística e de decadência: sintomaticamente, como o herói de Cervantes, Agostini, que na Revista Illustrada fora o grande batalhador da abolição da escravatura e da República, agora que a primeira se concretizara com a Lei Áurea e a segunda se instaurara, trazendo no seu rastro a repressão e censura à imprensa, é um herói sem causa. O capítulo 5, “Os últimos anos”, mostra o Agostini assalariado, colaborando com as novas publicações do século que iniciava, como O Malho e a infantil Tico-Tico (nesta, saudosista, ele conta para as crianças as histórias do tempo da escravidão, nos quadrinhos de “História de Pai João”).

O repórter da abolição Muito mais do que retratar o quadrinhista, Maringoni mostra o grande repórter que foi Angelo Agostini. Nascido em 1843 em Vercelli, no Piemonte, norte da Itália, criado pela avó em Paris, Angelo veio com 17 anos para o Brasil acompanhando a mãe, cantora lírica, e o padrasto, fazendeiro português com negócios aqui. Se em sua passagem por São Paulo ele despertou fortes emoções, tendo a redação de seu periódico apedrejada e sofrendo processo por suas charges ferinas revelando a mediocridade dos políticos locais e a hipocrisia

eclesiástica, no Rio de Janeiro ele não passará despercebido. Agostini retrata o Rio de uma maneira especial, atento às miudezas do cotidiano. Das sujeiras das ruas à prostituição à luz do dia, das enchentes aos excessos do carnaval, tudo passa pelo crivo desse repórter ímpar. A grande comemoração que sua revista faz da Lei Áurea, assinada pela princesa regente em maio de 1888; a revolta do vintém; a guerra de Canudos... Maringoni guia o leitor numa aventura única. Os exemplos são muitos, mas para fechar, uma mostra: a Revista Illustrada, nº 485, de 18 fevereiro de 1888, dá dimensão social a um crime provinciano, envolvendo um delegado protetor de negros fugitivos, dois escravocratas norte-americanos, centenas de fazendeiros e um advogado abolicionista. Duas edições depois, Agostini publica uma reconstituição dos acontecimentos, traduzindo em imagens fatos e feitos que até a população analfabeta sabia ler. Como escreveu Joaquim Nabuco no jornal O Paiz, em 30 de agosto de 1888, a obra antiescravista do repórter Agostini foi “A Bíblia abolicionista do povo, o que não sabe ler”. Desnecessário afirmar que o livro de Gilberto Maringoni é imperdível. Maringoni revela a biografia do quadrinista Angelo Agostini

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CRÔNICA

e

De aves

de gentes

Por Maria Ivoneti Busnardo Ramadan Pegou o cachorro-do-mato com uma choca na boca e blasfemou o animal com todos os nomes que conhecia. “Ara, o Neco não tampô direito os buraco da cerca, o bicho entrô e comeu inté os pintinho!” Ninguém melhor que Zica para cuidar do galináceo. Acompanhava cada ninhada de pata, de galinha, de marreca. Só de olhar os ovos, sabia qual ia gorar, qual ia vingar. Arrumava o ninho com zelo: cama de palha, sabugo de milho, comidinha farta, bebedouro por perto. As mamães-aves poderiam sentir fome e sede e não teriam de ciscar pelo chão à cata de alimento. Nada deveria atrapalhar a chocação dos ovos. Que alegria ver os pintinhos rompendo a casca. Dava gosto de ver. Zica regia a orquestração de vozes no terreiro: galos que cocoricavam, galinhas que cacarejavam, patos e marrecos que grasnavam, pintinhos que pipilavam, o dia inteiro, sem parar. As galinhas d’angola eram as mais barulhentas: “tô fraca, tô fraca”, mas limpavam o quintal acabando com lagartas, carrapatos e formiguinhas. Um dia nasceu uma galinha d’angola albina. Só penas brancas, sem pintinhas. Zica, que nunca tinha visto nada igual, ficou triste, taciturna. Encafifou. Só podia ter instinto-ave e as aves, instinto-gente, de tanto que se entendiam. Neco era solidário. Depois de chegar da roça, ainda varria o chão. Juntava as lascas, os gravetos. Assuntava o vento, atiçava

o fogo, com cuidado, para não deixar que as labaredas se espalhassem. E se elas queimassem a plantação, se atingissem os animais? Quem se aproximava da fazenda, de longe, podia sentir o cheiro das folhas queimadas de eucalipto recendendo pelos carreadores. Os patrões costumavam aparecer de supetão e... como gostavam de sentir esse cheirinho, ruminava Neco. Naquela geografia rural, Dona Zica e seu Neco tinham um passatempo danado: adoravam espiar o macho galar a fêmea. O galo cortejava as galinhas, elas corriam, em ciranda, esperançosas, suspirantes. Sempre uma era mais perseguida que as outras. As franguinhas novas levavam vantagem. E aí, arrastando as asas feito um pavão, ele iniciava o namoro. Deliciavam-se todos. Quando as luzes do dia começavam a se apagar e o silêncio da noite aquietava os corações, Zica e Neco punham-se a cismar. O galo-rei alcançava o degrau mais alto do galinheiro, as galinhas, de asas mais curtas, se ajeitavam mais abaixo. Os galhos das árvores serviam de pouso. Nunca se soube se a família-patroa um dia reconheceu a dedicação do casal. Contam que deixaram para eles uma casinha na cidade. Foi acordar, hoje, com o canto do galo, aqui por estas cercanias e a memória, essa guardiã do tempo, jorrar como água de cachoeira. Essas pessoas que vão ficando pelos cantos, esses idos e vividos que

supúnhamos adormecidos, de repente, nos devolvem uma eloquência singular: a que vem de nossa carne mais tenra, sem as pelancas do convívio social, as aponevroses, como se diz nos açougues. Nestes tempos esgarços de temporalidade, tanta coisa acontece com tantos, em todos os lugares, num frenesi ensandecido de discursividade. Nomes e pronomes vãos, personas sem rosto, cifras a ser contabilizadas em nossa caixa postal: conexão acirrada de desafetos. Sintaxe sem estilo, metáfora sem reverberação. Nestes tempos de desencontro entre o sentir e o dizer, tudo acontece para ser esquecido. Banida dos corações, a lembrança – o ato de re-cordar, de viver de novo pela via dos afetos – não passa de um exercício de neurônios, logo abandonado, substituído por novos estímulos externos. Mas, de onde menos se espera, surge uma pista de nosso ser. E nós, que a julgávamos perdida. Como aquela gente, aquelas coisas puderam dizer tanto de nós mesmos? Sendas e atalhos nos espreitam. Há uma ciência modelar, a que vem de “uma razão generosa e de uma alma rigorosa”, lição tão antiga, reeditada pelo mestre filosofante. Só precisamos de paciência para a colheita promissora. Sobram Zicas e Necos na prodigalidade dadivosa dos gestos. Quem haverá de dizer que não?

Fazenda Mazzaropi, São João de 2011 Revista Cásper – Setembro de 2011 – Nº 4


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