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JONIEL SANTOS (PI) É ilustrador e quadrinista piauiense. Já premiado em eventos como a Feira HQ do Piauí. Atualmente publica seus trabalhos com parceria de diversos autores em revistas independentes com circulação nacional voltadas para ilustração e quadrinhos autorais. _____________________________



o acr bata literatura audiovisual e outros desequilíbrios

acrobata . nº 4 . periodicidade semestral

EDITORES

COMUNICAÇÃO / IMPRENSA CONCEPÇÃO PROJETO GRÁFICO / LAYOUTMAN TODOS OS DESENHOS DESTA EDIÇÃO CONSELHO EDITORIAL

TIRAGEM

DISTRIBUIÇÃO / CIRCULAÇÃO

ISSN

março 2015 .

aristides oliveira demetrios galvão thiago e

teresina / PI

aldenora cavalcante editores acrobatas thiago e

joniel santos

adriano lobão aragão . aristides oliveira . demetrios galvão . thiago e . 500 exemplares impresso e digital (issuu.com/revistaacrobata) 2318-3500

CONTATOS

aristideset@hotmail.com demetrios.galvao@yahoo.com.br thiago1403@hotmail.com


Chegamos a nossa 4ª edição com a certeza de que a insistência vale a pena. E com a teimosia de um besouro que carrega várias vezes seu peso sobre os ombros. A Acrobata traz, mais uma vez, sua proposta multicultural – ilustrada pelas figuras híbridas do quadrinista Joniel Santos, menino bom de desenho. Em uma visão de sobrevoo, vislumbramos os poetas Antônio Moura, Samarone Lima, Demetrios Galvão, Tere Tavares, Clarissa Macedo, Claudio Daniel, Márcio-André, Celso Borges e o cinema em ruínas de Manoel Ricardo de Lima. A revista traz um ensaio do poeta e pesquisador Adriano Lobão Aragão, sobre a aridez sertaneja do poeta piauiense H. Dobal, discutindo o tempo e suas consequências. O poeta, ensaísta e tradutor Claudio Willer bota nossos pés na estrada com a abordagem da obra de um dos ícones da Geração Beat americana, o escritor Jack Kerouac. O entrevistado desta edição é um amigo pelo qual os Acrobatas têm um carinho muito especial, por isso mesmo fomos fundo na sua literatura e em alguns elementos de sua vida. Nosso interlocutor aperreado é o escritor que quebra tudo e bate panela, Marcelino Freire. Na composição audiovisual, traçamos espaços de diálogo com temas já explorados em edições anteriores – as particularidades do cinema brasileiro contemporâneo. Para explorar o mapa do circuito de filmes que transcendem a década de 90, convidamos o crítico e professor de cinema Marcelo Ikeda para problematizar os vinte anos da retomada do cinema brasileiro. Essas reflexões entram em sintonia temática com as inquietações traçadas anteriormente. O pesquisador Jaislan Monteiro amplia os horizontes de impacto do experimentalismo superoitista piauiense, investigando as tensões estéticas entre O Guru das Sete Cidades e O Guru da Sexy Cidade. E Santiago Jr. fecha a sequência com o artigo-filme Exus, Santos e Fantasmas nas telas brasileiras. Bernardo Aurélio – historiador e articulador cultural – levanta uma discussão para buscar, junto com você, um cenário de quadrinhos (ou artes plásticas) no Piauí. E fica nossa homenagem ao querido Arnaldo Abuquerque – artista visual e quadrinista, figura de centro da cultura alternativa local – que nos deixou nos primeiros dias de 2015. Pra finalizar, agradecemos imensamente ao amigo livreiro e editor Leonardo Dias, pela continuação do apoio cultural.

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editorial




das cicatrizes da lucidez

os compassos das lâmpadas sorvem o silêncio das inclinações alucinadas dos tambores ocasionais as pálpebras dos peixes são interrogações hipnóticas brilho a brilho aos pés da água das raízes com asas de chuva

necessito dos pássaros para abrir as manhãs na pausa ondulante do corpo mitiga o esboço do vento como se culminasse numa casa de pêssegos ao tocar a ramagem das mãos

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lapida-se num regato de madrugadas na pétala rasa que toca a face dos violinos quando, e só então, desacorda.

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cantas como a água sobre o livro

TERE TAVARES (PR)

Escritora e artista plástica, radicada em Cascavel, PR. Autora de Flor Essência (poesia, 2004), Meus Outros (poesia e prosa, 2007), Entre as Águas (prosas, 2011) e A Linguagem dos Pássaros (poesia, Editora Patuá). _________________________________________________________________________

cultivas o pomar na alegria rota das aves, como se soubesses aferir os aniversários do tempo carregas as drusas da melodia nas costuras das portas, esqueces as ranhuras entre as flores a um toque irresistível de bach, trazes à mão o bailado para saciar a fome do som, e deixa somente o fragor das palavras, arrebanhando árvores de céu, de lavra, sobre o clamor da sombra feliz da tua morada, linguagem de pássaro na compulsão do verso a verdade não é nada; o que crês ser a verdade é tudo. regressas à primavera dos invernos, trazes sóis, pois te [acendem as faces, no fio luminoso que não pensa florir – é a [esfera dos arcanjos voláteis que notas, porque é no ar das [estrelas que surfas e descobres que és multidão, que és [música à dança da alma – terra que te segue.


EXUS, SA NAS TELA UM ARTIGO-FILME DE

FRANCISCO SANTIAGO JÚNIOR (PI)

É professor do curso de História e coordenador do Programa de Pós-Graduação em História da UFRN. Mestre em Multimeios pela Universidade Estadual de Campinas (2005). Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (2009). Pesquisa cinema brasileiro e cultura afrobrasileira. ____________________________________________________________

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ANTOS E FANTASMAS AS BRASILEIRAS

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Somos cercados por espectros desde que nascemos. Existe uma fímbria no mundo ao nosso redor e tal qual não podemos ver todas as cores do espectro eletromagnético a olho nu, sem filtros especiais não podemos distinguir as dimensões invisíveis e seus habitantes, os mortos, os deuses e os sonhos que também compõem a realidade humana. Partamos de uma ideia: o mundo é repleto de espectros, seres que existem como sombras que passeiam entre o imaginário, o onírico e a memória. As entidades do mundo invisível existem no lugar mais poderoso que poderia habitar, qual seja, a mente humana, e por isso podem estar tanto no sonho como no terreiro, na igreja como na rua, no culto e no cinema. O que interessa aqui são os mortos no cinema.


O cinema nasceu como uma fantasmagoria. Quando surgiu, muitos comentaristas e pessoas não sabiam como descrever aquelas estranhas imagens feitas de luz e por isso diziam que era como ver fantasmas. Estes fazem parte da vida do cinema desde o início, mas são personagens muito mais velhas. “Fantasma” é um personagem de conto ou história de terror e teve sua origem principal nas narrativas estrangeiras que chegaram a nós. As histórias de fantasmas têm muitas variações, sendo as mais conhecidas as das casas mal assombradas ou as das possessões. Os fantasmas costumeiramente são pessoas que morreram e não descansaram, tenham sido ou não sepultadas – não foram para o “outro plano”. Em muitas passagens das narrativas bíblicas a morte é como uma espécie de sono do espírito, do qual apenas um milagre poderia despertar. Não por acaso, nas narrativas ocidentais cristãs os mortos, quando não dormem, assombram. Impressiona os tantos filmes (O Iluminado, Caça-Fantasmas, O Sexto Sentido, Os Outros, Atividade Paranormal, O Chamado) e séries televisivas (Sobrenatural, Trueblood) americanos nas quais os mortos assombram e perturbam os vivos. O fantasma é o morto fora do lugar, que não está na tumba e decide aproximar-se dos vivos, viver nas casas, castelos ou hotéis, a tentar “possuir” o corpo do vivo, para viver novamente ou para buscar justiça. Nos filmes, os fantasmas sempre querem algo: eles detestam a morte violenta, ou nem sabem que morreram; querem continuar perto de quem amam e querem justiça ou vingança; se foram maus na vida, costumam continuar maus na morte. Há sempre algo errado – o fantasma é o morto errado que a sepultura e o luto não expurgaram.

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Mas é diferente no Brasil e nos filmes brasileiros. Existe o equivalente do fantasma na ideia de “alma” por aqui. A alma ou assombração são termos correntes que designam o morto fora do lugar, aquele que vem perturbar os vivos. As histórias recolhidas pelos folcloristas estão repletas deles. Curiosamente, contudo, o cinema brasileiro não produziu muitos exemplares sobre estas almas ou assombrações, embora em muitos filmes a aparição dos mortos remete também a este sentido. No cinema brasileiro, o que mais aparece é o egun, o exu, o santo e o guia espiritual. Diferente do imaginário marcadamente protestante americano, as visões dos mortos no Brasil têm forte influência de crenças e devoções mediúnicas e a “assombração” é um dos tipos de mortos que povoam as ruas, casas e lugares do Brasil. A perspectiva mediúnica tem raízes tanto no cristianismo como nos cultos de origem indígena e africanas. Os encontros das religiosidades no Brasil produziu um caldeirão amplo no qual os deuses e os mortos trafegam juntos na terra do Sol. A tradição do cinema brasileiro é repleta de eguns (espírito do morto) e exus. Aliás, ao contrário dos filmes americanos e europeus, raramente vemos Deus, Cristo ou o Espírito Santo agindo. Em inúmeras películas, Exu ou vários eguns aparecem a fazer brincadeiras com os vivos. O exu mais conhecido de nosso cinema ainda é o Vadinho de José Wilker, no clássico Dona Flor e seus Dois Maridos. Vadinho, em vida, era o homem da rua, o malandro sexual e louro que desejava e era desejado por todas as mulheres. Ele morre no carnaval e deixa Flor, sua linda e singela mulher, viúva. A saudade de Flor pelo marido é tão grande que mesmo depois de casada com outro homem, ela o traz de volta como um espírito que apenas ela vê. A célebre cena dela andando na rua com seus dois maridos, estando Vadinho nu, invisível para todos, marca a fronteira do visível com o invisível, o véu que separa os vivos dos mortos.


Quando Vadinho aparece, Flor se apavora com sua presença e pede a uma amiga filha-desanto que a ajude com a “assombração”. Vadinho, conhecido filho de exu, é então despachado de volta ao mundo das sombras por um ritual de candomblé. Mas o amor de Flor era tão grande, que quando ela percebe que seu exu iria deixá-la para sempre, num grito lancinante, o traz de volta. Vadinho, tal como os exus, é um santo de rua, uma entidade em movimento que passa o tempo a fazer traquinarias. No candomblé, Vadinho era filho de Exu, o orixá, e ele próprio vira um exu, um santo de rua. Ao contrário do fantasma, o exu não é um morto fora do lugar, mas um morto que habita os lugares de passagem, invocado e despachado conforme o desejo dos vivos e o seu próprio desejo. Exu está sempre fora da ordem, porque sem ele o mundo não se movimenta. Os mortos não precisam ir embora, pois podem ficar trafegando entre os vivos, os querem por perto. O exu e outros santos, os caboclos, os eguns, são personagens que mostram a visão de mundo “tropical”: interessa menos a morte do que os mortos e estes falam com e continuam existindo ao lado dos vivos. Na recente fita Besouro, foi o próprio orixá Exu quem consagrou o protagonista a lutar pelo povo negro contra a opressão. Exu aparece como um negro alto, espadaúdo e forte, desafia Besouro para uma luta com ele enquanto este anda desnorteado numa feira de rua em sua cidade. Para os que veem Besouro, ele fala e parece golpear o ar. Apenas uma velha senhora, uma mãe-de-santo, vê com quem de fato o herói está falando. Quando finalmente aceita Exu, Besouro fica quase invencível, até que o segredo de sua fraqueza é revelado por um ex-amigo traidor. No final do filme, Besouro aparece a pular por sobre os telhados de sua vila, exortando e dando habilidades extras a amigos e sua amada: ele próprio virara um exu, uma entidade de rua a ajudar os vivos em suas demandas. As necessidades dos vivos tornam-se assim as necessidades dos mortos e vice-versa. Tanto Exu ajuda seus filhos como seus filhos se tornam exus para defenderem os seus. Os eguns e exus não estão fora de lugar, embora possam colocar as coisas e os vivos fora de lugar. Exu, como mostra Besouro, pode ser tanto orixá como um desencarnado. Exu aparece no cinema brasileiro em todas essas formas: entidade do movimento livre, ele serve ao benefício e ao malefício. Ajuda Besouro, mas destrói seu inimigo; o que lhe pedem ele dá em troca de uma paga. Por vezes quem pede não é gente boa, ou o que se pede pode ser o infortúnio de alguém. Exu está longe do maniqueísmo cristão e assim ele aparece no cinema.


Na fita O Amuleto de Ogum, o personagem Severiano, por exemplo, era seguido por exus que o ajudavam a combater Gabriel, avatar do orixá Ogum. Esse filme de 1974 é o mais antigo antecessor de uma geração de filmes sobre os apadrinhados dos orixás que passaram a aparecer no cinema brasileiro e que desembocaram em Besouro. Desde aquele momento, os orixás, mortos e santos africanos lutam pelo povo oprimido junto dos vivos. Gabriel, o protagonista, teve o corpo fechado ainda criança quando fora consagrado ao orixá Ogum. Ele primeiro se associou a Severiano, mas logo este tentaria matá-lo. Impressionado com os poderes de Gabriel, Severiano chama Pai Erlei para conversar a respeito. Quando o Pai de santo realiza um ritual em sua casa, Severiano incorpora um exu que o próprio Erlei só expulsa quando incorpora um Preto Velho. Ocorre uma pequena guerra de santos na casa do mafioso e o Preto Velho saiu vencedor. Mas os exus brigam ao lado de Severiano até o final, quando ele e Gabriel se enfrentam e o poder de Ogum salva o protagonista. O Amuleto de Ogum foi montado baseado nas crenças da umbanda, segundo a qual orixás e santos auxiliam aos adeptos da religião. “Santo” é uma palavra de origem latina que designava os homens e mulheres que se tornaram protagonistas de piedosas histórias milagrosas de encontro com o sagrado. No Brasil, por meio do sincretismo, a palavra passou a designar várias entidades, desde os orixás que vieram da África e que foram sincretizados com os santos católicos às entidades indígenas. Com o tempo, a palavra passou a designar os mortos divinizados, ou para quem surgiram devoções, aqueles que se tornam personagens de histórias de graças e milagres. Os santos do povo têm vários nomes: almas, santos, eguns, exus, mavambos, caboclos, guias espirituais, encantados, milagreiros, etc. Esses personagens apareceram em muitos filmes nacionais: O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969), Copacabana, mon Amour (1971), O Anjo Negro (1972), O Amuleto de Ogum (1975), Dona Flor e seus Dois Maridos (1976), Cordão de Ouro (1978), A Força de Xangô (1978), Prova de Fogo (1981), Quilombo (1984), Besouro (2009), Fim da Picada (2008). Além de várias minisséries televisivas: Tenda dos Milagres (1987), Mãe de Santo (1991), Tereza Batista Cansada de Guerra (1991) e Pastores da Noite (2002).

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A marca maior desses filmes é a chamada herança e a memória afrobrasileira, que reconhece a herança dos povos africanos que estão na base da composição cultural brasileira. Quando uma película apresenta um exu, o acento maior é nessa memória afro-brasileira, mesmo quando ele é transformado em agente do infortúnio ou sinônimo de demônio, como dizem os neopentecostais. No caso das fitas nas quais exu se torna uma força pelo benefício, como Besouro ou A Força de Xangô, era evidente que ocorre uma positivação da figura e da herança afro-brasileira. Quando associado ao demônio, retomam-se estereótipos fóbicos de cunho racista, herança do passado escravocrata brasileiro que ainda aparece em fitas como Fim da Picada, mas é mais comum em programas televisivos neopentecostais como Fala que Eu Te Escuto. Observar a maneira como exu e os mortos aparecem nessas imagens permite sentir a força perturbadora dessas personagens e formas culturais: exus e caboblos perturbam o senso-comum, são explosões de energia artística, afetiva e pessoal. Permitem aos artistas fazerem poemas, filmes e imagens capazes de tirar do senso comum, renovando o arsenal de metáforas com atos capazes de colocar a alma humana em movimento. O majestoso Exu de Besouro é um espectro da memória afro e negra que atravessou o Atlântico naquele fami-gerado trato de viventes escravizados. Hoje, ele aparece como um gigante escuro renovando a força da cinematografia brasileira com a beleza e a plasticidade da herança negra. Os exus do cinema reforçam a autoimagem negra, de maneira que a memória afro-brasileira possa se expandir para além do “afro” e definir uma ampla gama de brasileiros não-africanos, não-negros. Exu é tanto o orixá transladado da África como o morto divinizado como santo da rua. Ele é tanto o seguidor de Severiano, como aquele que abre o poder de Besouro, é tanto o malandro branco Vadinho como o devastador Calunga. Tira o mundo da ordem e o coloca de cabeça para baixo, numa celebração do movimento da vida. Nada de fantasmas! Exu e caboclos nos mostram o quanto os mortos não sabem morrer no Brasil porque os vivos, gauches como são, querem que seus mortos sejam tão tortos quanto eles. Tudo está em seu lugar, porque nada está no lugar... nem na espectral imagem do cinema, projeção de luz incapturável como o invisível da herança afro que ela materializa.


QUATRO Não necessitaríamos de fios, mas há os de luz. Atrás desses me postei e soprei-os na porta do banheiro com uma luneta nas mãos e nada mais no corpo frio. Ela abraçava a escuridão e eu a desejava dentro da minha boca, para soprá-la ao alto, para que ela visse que de cima tudo parece pequeno, menos nós. Eu sim, a vejo de cima, grudada em mim, às costas um livro de partituras simples: “apenas viva, ame e deixe-se morrer”. Há beleza em desjejuns, a textura do cheiro adocicado [quanto uma mulher pode ser doce?] Mas não são apenas. Fios.

JORGEANA BRAGA (MA) É escritora, poeta e mula. Publicou Janelas que Escondem Espíritos (poesia), A Casa do Sentido Vermelho (romance) e Cemitério de Espumas (encenado no teatro) dentre outras publicações coletivas. ____________________________________________________________________


manual lowen para não ter corcovas. Preciso. É preciso. Estar aqui. Senão a língua vai arder, os dedos irão cair. O corcunda de notre dame fez casa nas minhas costas e não trouxe uma florzinha. Bem em cima do ombro (cinturão de saturno, mas quis mesmo dizer primeiro júpiter). Tudo é tão apressado.

Mini férias – imagens belas que ferem o cotidiano – raras. Alguns passarinhos sobrevoavam o jardim lá de casa. Pousando em vovó Vavá (a árvore que leva o nome da avó já morta). Parti vovó Vavá ao meio em pleno acesso de fúria, depois chorei agarrada às suas folhas até sair – do meu corpo e garganta – os primeiros soluços do mundo. É fácil a gente se plantar, difícil é nascerem as raízes.

Depois havia terra debaixo das unhas. Um sol desconfiado pousando no céu fervendo o topo das casas. Em casa não há muito sol e nos presídios homens e mulheres procuram o pátio. Dizem que quando não há argumento há gritaria. É por isso que o mundo não é silencioso. a) Pintar parede é antidepressivo b) Desço a rua São João e as casas antigas me animam, mesmo as condenadas c) Odeio trabalhar, esse instrumento de tortura contemporânea. d) Acho que vou chorar.

Observação entusiástica: de acordo com Alexander Lowen chorar faz bem. Soluçando alto e tudo mais. Não precisa se envergonhar, mesmo que você fique com queixo de imbecil e sua mãe diga que homem não chora. Mesmo que seu companheiro chame você de mulherzinha ou seu patrão diga “deixe seus problemas na porta da rua”. Mesmo que seu melhor amigo fique envergonhado no bar, ao seu lado. Berre, chore alto, esperneie. Saia de rosto inchado pelos ônibus, olhe-se no espelho. Alexander Lowen também diz que chorar deixa a gente mais bonito (eu acho que agora todas as anoréxicas vão desfilar chorando). 17


. MAIS LEITURAS DE .

JACK KEROUAC

CLAUDIO WILLER (SP) É poeta, ensaísta e tradutor. Nasceu em São Paulo (1940). Tem vínculos com a criação literária mais rebelde e transgressiva, como aquela representada pelo surrealismo e geração beat. Doutor em Letras na USP, tem diversos livros publicados de poesia, prosa, ensaios, traduções. Mantém um excelente blog: https://claudiowiller.wordpress.com/ ________________________________________________________________________________________________

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Após publicar ensaio, dá vontade de prosseguir, escrever mais. O que vem a seguir foi provocado por meu recente Os rebeldes: Geração Beat e anarquismo místico (L&PM, 2014). Jack Kerouac estimulou incontáveis seguidores a viajar, após o sucesso de On the Road, lançado no final de 1957. No entanto, conforme observei recentemente, sua obra é predominantemente memorialística. Nenhuma das alusões de Kerouac a Proust é inocente ou casual. Ele e seu parceiro Neal Cassady levavam, nas viagens relatadas em On the Road, algum volume de Em busca do tempo perdido na mochila ou no bolso, conforme, aliás, corretamente registrado na recente adaptação da narrativa pelo cineasta Walter Salles. Mencionou-o em várias passagens, inclusive no prefácio de Visões de Cody: “Minha obra encerra um livro de vastas proporções como Em busca do tempo perdido, de Proust, com a diferença que as minhas memórias são escritas na correria em vez de mais tarde doente numa cama”. Ele mentia. Escreveria Vanity of Duluoz em 1967, já prostrado, às vésperas da morte prematura provocada principalmente pelo alcoolismo. E sua memorialística de infância e juventude, parte substanciosa de sua obra, que inclui Doctor Sax, Maggie Cassidy e Visions of Gérard, evidentemente não foi escrita in loco. Em Anjos da desolação, o extenso relato no qual, ao final, anuncia sua decisão de isolar-se, retirando-se do movimento beat após a repercussão de On the Road, relata o presente, a experiência imediata. Especialmente na primeira parte, a prosa poética no diário de seu isolamento por dois meses no Desolation Peak como guarda florestal, em busca da cura de seu alcoolismo e da percepção da divindade: Quando eu chegar ao topo do Desolation Peak e todo mundo for embora de mula e eu ficar sozinho eu vou ficar cara a cara com Deus ou Tathagata e descobrir de uma vez por todas qual é o significado de toda essa existência de todo esse sofrimento e de todo esse vaivém inútil.

Ao mesmo tempo, rememora. Uma dessas rememorações já foi citada por mim em Os rebeldes, chamando a atenção para seu caráter reflexivo, a dupla relação com o tempo. Toma chá; lembra-se de um restaurante chinês no qual tomara chá:

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Então eu entro no restaurante, peço um prato do cardápio chinês e no mesmo instante eles me servem peixe defumado, curry de frango, bolinhos de pato incríveis, delicadas travessas prateadas (com suporte) inacreditavelmente deliciosas cheias de maravilhas fumegantes que você tira a tampa e olha e cheira – com um bule de chá, a xícara, ah, eu como – e como – até a meia-noite – talvez então enquanto tomo chá eu escreva uma carta para a minha amada Mãe, contando para ela – depois de pronto, ou eu vou para a cama ou para o nosso bar, o The Place, para encontrar o pessoal e encher a cara... (Kerouac 2010, p. 56)

Tomar chá e lembrar-se: com o acréscimo de um biscoito molhado no chá, compõe uma das mais famosas passagens da literatura moderna, aquela do primeiro volume de Em busca do tempo perdido, À la récherche du temps perdu de Proust, Du coté de chez Swann. O narrador e protagonista toma chá e mordisca a madeleine; experimenta um estado “desconhecido”; sente “algo se despertar”; e “de repente, a lembrança me aparece”. Ultrapassa a transitoriedade do momento: “o odor e o sabor permanecem ainda por muito tempo, como as almas a recordar, a esperar, a aguardar, sobre a ruína de tudo o que permanece”. Penetra no “edifício imenso da lembrança”. Contudo, a comparação de Kerouac com Proust mostra uma relação reflexiva, especular: tomar chá o faz lembrar de tomar chá. É como se evocasse a própria memória. A lembrança o remete a um símbolo da lembrança. Lembrança do que? Kerouac responde, em outra passagem desse livro: de outro tempo. Em contraste com o presente, que designa como “insondável horror”, em um trecho de prosa poética especialmente vigorosa, “Só o que eu lembro é que antes de eu nascer existia alegria.” Platão? Certamente: “Númemos são o que você vê de olhos fechados, a cinza dourada imaterial, Ta, o Anjo Dourado – Fenômenos são o que você vê de olhos abertos [...]” Duas realidades; esta do presente é falsa, como no mito da caverna.


O preço pago por Kerouac pelo impacto de sua obra foi o massacre pela crítica. Porém, recentemente têm saído ensaios de qualidade, observando sua complexidade. Estudiosos chamam a atenção para sua ambivalência. Ao longo de On the Road, viaja e não viaja; está e não está; chega para ir embora. Já foi observado que são viagens “erráticas e intermitentes”. Começa por um roteiro impossível: tenta seguir de carona pela Rota 6, que constava no mapa mas deixara de ser usada:

Eu tinha ficado delirando em cima de mapas dos Estados Unidos durante meses, em Paterson, e até lendo livros sobre pioneiros e saboreando nomes instigantes como Platte e Cimaron e tudo o mais, e no mapa rodoviário havia uma longa linha vermelha chamada Rota 6 que conduzia da ponta do Cabo Cod direto a Ely, Nevada, e daí mergulhava em direção a Los Angeles.

Por confundir símbolos e realidade, é obrigado a começar de novo; a retornar e seguir para Chicago de ônibus, para só então pegar caronas. Essa abandonada Rota 6 é um caso particular da rede rodoviária pela qual Kerouac circulara. Toda ela foi substituída por estradas não só modernas e funcionais, porém homogêneas, padronizadas, além de atenderem a razões estratégicas no contexto da Guerra Fria. Isso foi observado por viajantes que refizeram o trajeto de Kerouac, como Eduardo Bueno, seu tradutor brasileiro; e, mais recentemente, pelo cineasta Walter Salles, que em entrevistas apontou a substituição da rede rodoviária como dificuldade na realização da sua adaptação de On the Road. 31


Dentre os vagabundos encontrados por Kerouac em On the Road, um espécime particularmente miserável é o “fantasma de Susquehanna”, com quem percorre 11 quilômetros a pé no difícil retorno do primeiro ciclo de viagens e que “caminhava direto pela estrada no sentido contrário ao tráfego e quase foi atropelado várias vezes”. Perdeu a orientação espacial e já não sabe mais para onde vai: “Escute aqui, amigo, você está na direção do Oeste e não do Leste.” “Hein?”, disse o minúsculo fantasma. “Não venha me dizer que não conheço os caminhos daqui. Tenho andado por este país faz anos. Estou indo em direção ao ‘Canady’. “Mas esta não é a estrada para o Canadá, esta estrada vai para Pittsburgh e Chicago.” O velhinho, desgostoso conosco, pôs-se em marcha. O último vestígio que vi dele foi o balanço de sua lúgubre sacola branca dissolvendo-se na escuridão dos lúgubres Alleghanies.

Já tomei o trecho como metáfora das viagens do próprio Kerouac, de seus deslocamentos para não chegar a lugar algum. O “fantasma de Susquehanna” é um símbolo forte; segue na direção errada; viaja ao contrário, espacialmente. Kerouac também viaja ao contrário; porém no tempo, por almejar a reversão do devir. Por essa ser impossível, todas as suas viagens terminam em derrotas e fracassos. A mais evidente é aquela ao México: terra prometida, paraíso habitado por índios do qual é obrigado a retornar. Três livros de Kerouac devem ser lidos como se fossem volumes da mesma obra, etapas de uma extensa narrativa de viagens: On the Road, Vagabundos iluminados (The Dharma Bums) e Anjos da desolação. A primeira termina com um fracasso, após ser abandonado por Cassady no México e, de volta a Nova York, por sua vez abandoná-lo,: procura dar sentido à narrativa e às viagens nela relatadas: 22


[...] e você não sabe que Deus é a Ursa Maior? E a estrela do entardecer deve estar morrendo e irradiando sua pálida cintilância sobre a pradaria antes da chegada da noite completa que abençoa a terra, escurece todos os rios, recobre os picos e oculta a última praia e ninguém, ninguém sabe o que vai acontecer a qualquer pessoa, além dos desamparados andrajos da velhice, eu penso em Dean Moriarty; penso até no velho Dean Moriarty, o pai que jamais encontraremos; eu penso em Dean Moriarty.

É um trecho dualista, que expõe o pessimismo de Kerouac. Deus – o Setentrião, Ursa Maior, em oposição à Estrela da Manhã, símbolo clássico, inclusive bíblico, de Lúcifer – morreu, abandonou o mundo. O pai jamais será encontrado, em nenhuma das acepções do termo: o pai de Cassady, desaparecido; o pai do próprio Kerouac, morto; Deus, pai de todos, se foi; a origem procurada nas viagens não será recuperada. Vagabundos iluminados poderia chamar-se “O retorno do viajante”. É eufórico. Relata o momento em que a Geração Beat acontece, vem a público, através da leitura na Six Gallery em San Francisco, em 1955. Faz novas amizades: os poetas Gary Snyder e Philip Whalen. Messiânico, proclama Isso é ilustrado pelo trecho de Os vagabundos iluminados, atribuído por Kerouac a Snyder (“Japhy Rider” no livro), com sua profecia de uma revolução de jovens de mochila às costas: Pense na maravilhosa revolução mundial que vai acontecer quando o Oriente finalmente encontrar o Ocidente, e são caras como nós que podem dar início a essa coisa. Pense nos milhões de sujeitos espalhados pelo mundo com mochilas nas costas, percorrendo o interior e pedindo carona e mostrando o mundo como ele é de verdade para todas as pessoas. [...] eu quero que meus vagabundos do Darma carreguem a primavera no coração [...]


Mais tarde, criticaria repetidas vezes os hippies inspirados nos beats e não os aceitaria como seguidores, argumentando faltar-lhes substância espiritual. Mas o trecho citado é programático: os hippies foram seus “vagabundos do Darma”, tentando realizar essa “maravilhosa revolução mundial”. E o título do livro, The Dharma Bums, condensa a mística da adesão à marginalidade: sendo vagabundos, estavam conectados ao Darma, uma lei universal ou ordem cósmica. O resultado são páginas de exuberante poesia em prosa, celebrando a natureza, muito bem examinadas por Regina Weinreich no prefácio do Livro de haicais: dentro dos longos parágrafos de extensas frases, embutidos, estão os poemas tradicionais japoneses. Prepara-se para uma ascese budista: mas essa tentativa resulta em um fracasso: “A aventura no Desolation me faz encontrar no fundo de mim mesmo um nada abissal, pior que isso, nem uma ilusão – a minha mente está em frangalhos – ” Anjos da Desolação, paradoxalmente, é a narrativa em que mais viaja e aquela em que anuncia o fim das viagens para isolar-se de vez; a que traz os mais ricos registros de sua convivência com outros integrantes da geração beat e aquela na qual se desliga desse movimento; a que coincide com a publicação de On the Road após anos de espera, e a conseqüente consagração, mas na qual rejeita o título de “rei dos beats”. Despede-se: “Um pacífico pesar em casa é o melhor que sempre serei capaz de oferecer ao mundo, ao final, e assim eu disse adeus a meus Anjos da Desolação, Uma nova vida para mim.” Paisagens e lugares que em On the Road o encantavam agora o oprimem. Repete referências à desolação, tristeza, dor, às “terríveis distâncias”, à “solidão inacreditável”, ao horror. Não vê saída; a sociedade americana é totalitária, um estado policial; mas descrê de qualquer utopia; rejeita categoricamente não só o comunismo soviético, mas a politização da beat; mais tarde, se oporia às rebeliões juvenis e mobilizações pacifistas da década de 1960.

On the road - pé na estrada [tradução de eduardo bueno] (L&PM, 2004) ______________________________________


Jack Kerouac no alistamento da reserva naval - 1943

On the Road é sua obra de maior influência, e Visões de Cody a mais complexa e ousada; mas nenhuma se detém a esse ponto em sua visão de mundo. Da ascese no Desolation Peak até a epifania em companhia da mãe em uma igreja em Ciudad Juarez ao verem penitentes mexicanos, é busca religiosa, ora traduzida em termos budistas, ora católicos. Reitera que a realidade é falsa, ilusória; a verdade pode ser alcançada pela rememoração, a anamnese platônica: “Só o que eu me lembro é que antes de eu nascer existia alegria”. O arcaico, para Kerouac, sempre é superior ao presente; a pobreza de outrora vale mais que a euforia de hoje: “Porque eu ainda me lembro da América quando homens viajavam levando toda a bagagem num saco de papel, sempre amarrado com barbante”, contrastando com “a América próspera de 1957”. Kerouac não foi o único derrotado na vida e vitorioso na criação literária. Essas contradições e paradoxos não foram apenas um drama pessoal. Sua obra, por mais particular que fosse, é universal. A luta contra o tempo, a contradição entre o sujeito e seu mundo: temas que são o fermento da criação literária; que, do modo como Kerouac os enfrentou, conforme Penny Vlagopouolos, autora de um dos ensaios que acompanham a edição de On the Road: o manuscrito original, o tornaram o autor da “mais monumental das cartografias sobre o desejo humano, em toda a sua extrema imensidão e insignificância.”

Os rebeldes: Geração Beat e anarquismo místico (L&PM, 2014) ________________________________


bifurcações ao som de the doors

os animais do inverno hoje são luas. rubens zárate bifurcar-se é inventar um outro, outros... figuras derivadas de uma cosmologia sem vértebras: caçada com lança e espinhos pescaria em céu domesticado.

a escritura diz:

desvendar o alimento que as águas oferecem dominar o feitiço que existe no útero da lâmina. estranha fibra que brota das rochas e se irmana nos tendões luz da manhã amadurecida no pulmão-estufa experiência selvagem de animal paterno.

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bifurcar-se é multiplicar imagem no espelho opaco exercício em águas inéditas digestão de raízes lancinantes: o olhar semiárido vislumbrou uma nova especiaria fármaco e veneno extraídos da febre de árvores púrpuras.

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a voz aconselha: arremesse as sementes da fé no leito orbital no planeta maior mesopotâmico na imensidão garganta da serpente luminosa.

o céu fecundo reproduz pássaros límpidos o diafragma revela-se uma península de algaravias estruturas semânticas cavalgam os pontos cardeais: o verbo-candelabro cega quando pronunciado no escuro. bifurcar-se é contorcer os ossos duplicar as artérias no inconfessável estender a musculatura na dobra sonante equilibrar-se em movimentos de rotação e translação.

DEMETRIOS GALVÃO (PI)

Habitante da província de Teresina (PI) é historiador e poeta. Publicou os livros Cavalo de Troia (2001), Fractais Semióticos (FUNDAC/2005), Insólito (Ed. Corsário/ 2011) e Bifurcações (Ed. Patuá/2014). É um dos editores da revista Acrobata. ___________________________________________________________

a experiência ensina: o viveiro de moinhos potencializa o corpo oblíquo o sangue caudaloso transborda o contorno original e inunda o outro, no milagre da enchente, na abundância mar da imaginação líquida.

útero incandescente banhado em larvas a ternura amolece os pés: continente que improvisa um arquipélago na dispersão do zênite que se desfaz.

bifurcar-se é quando um filho inventa um pai.


VINTE ANOS DA “RETOMADA DO CINEMA BRASILEIRO” (1995-2015):

A “retomada” do cinema brasileiro e as leis de incentivo Neste ano de 2015, completam-se vinte anos da chamada “retomada do cinema brasileiro”. O marco inicial do período é considerado o inesperado sucesso de público de Carlota Joaquina. Parece, portanto, ser um momento oportuno para uma espécie de balanço das oportunidades enfrentadas pelo cinema brasileiro nesse período e dos desafios que surgem para os próximos vinte anos.

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Imagem do filme Cidade de Deus, 2000


UM BALANÇO E ALGUMAS ALTERNATIVAS

MARCELO IKEDA (RJ)

É preciso lembrar que, no início dos anos noventa, o cinema brasileiro passou por uma abrupta descontinuidade. O presidente Collor provocou mudanças radicais na economia do país, guiadas por um ideário de base neoliberal, com uma forte reestruturação do Estado, iniciando um agudo movimento de privatizações. No campo da cultura, o impacto foi imediato: o Ministério da Cultura foi transformado numa simples secretaria de governo. Através de um único decreto, as principais instituições públicas responsáveis pelo apoio ao cinema brasileiro foram extintas. As repercussões foram fulminantes: sem o apoio estatal, o mercado cinematográfico brasileiro foi completamente dominado pelo produto hegemônico estrangeiro. Em 1991 e em 1992, a participação do cinema brasileiro no mercado interno foi inferior a 1%.

é professor da Universidade Federal do Ceará (UFC). ____________________________________________________


Após o impeachment do presidente Collor, houve o restabelecimento de uma política estatal de promoção à atividade cinematográfica. No entanto, diferentemente do período anterior, nos anos setenta e oitenta, em que um forte órgão estatal – a Embrafilme S.A. – atuava diretamente no mercado cinematográfico, produzindo e distribuindo os filmes brasileiros, em meados dos anos noventa o modelo de intervenção estatal se baseou no fomento indireto, com uma partilha de responsabilidades entre o Estado e o mercado. Com isso, desenvolveu-se uma política de incentivos fiscais, em que os projetos audiovisuais passaram a ser realizados a partir do aporte de recursos de pessoas físicas ou jurídicas, que abatem parcial ou integralmente esses recursos em suas respectivas declarações de imposto de renda. A Lei Rouanet (Lei nº 8.313/91) e a Lei do Audiovisual (Lei nº 8.385/93), com seus diversos aprimoramentos e alguns mecanismos de incentivo complementares, tornaram-se a base do apoio público à produção cinematográfica brasileira. Os pressupostos desse modelo eram de base industrialista, prevendo a aproximação das empresas produtoras brasileiros com investidores privados, estimulando a competitividade de obras que visavam primordialmente as bilheterias. Os motivos para que essa política não alcançasse plenamente seus resultados desejados são complexos, e fogem ao alcance deste texto. O que procuro aqui apontar é que na última década do século passado, o cinema brasileiro ainda pemanecia sob o processo da “retomada”, assombrado pelos atos do Governo Collor, que continuavam a pairar pela classe cinematográfica como um verdadeiro fantasma. Era como se cada obra brasileira carregasse consigo o fardo da comprovação da necessidade de sobrevivência de todo um cinema brasileiro. Além disso, com esse modelo de financiamento, eram naturalmente privilegiadas obras que tivessem uma maior expectativa de retorno comercial, favorecendo o processo de captação de recursos, despertando o interesse dos gerentes de marketing das empresas privadas, que viam no aporte de recursos uma oportunidade de exposição de suas marcas. 30


Imagem do filme Estrada para Ythaca Direção de Guto Parente, Luiz Pretti, Pedro Diógenes, Ricardo Pretti

Dessa forma, os caminhos para que um cineasta estreante pudesse realizar seu primeiro longa-metragem eram bastante restritos. A captação de recursos para projetos com pouco apelo comercial era naturalmente lenta, e ainda mais difícil por se tratar de realizadores estreantes. Esse processo fez com que diversos realizadores extremamente talentosos demorassem mais de dez anos para que pudessem finalmente realizar seu primeiro longa-metragem, mesmo com diversos prêmios como curtametragistas no currículo. Entre outros, podemos citar nesse contexto realizadores como Gustavo Spolidoro, Paulo Halm, Eduardo Nunes, Camilo Cavalcante, Kleber Mendonça Filho. A maior parte desses realizadores apenas conseguiu realizar seu primeiro longa através de um edital específico do Ministério da Cultura, direcionado a filmes de baixo orçamento. Ou seja, através de um edital que envolvia recursos diretos do ministério, e não a captação de recursos através das leis de incentivo fiscal. Mas como esse edital premiava apenas cinco projetos por edição, que não se realizava anualmente, era enorme a demanda de projetos por esses recursos naturalmente escassos. Ou seja, de um lado as leis de incentivo fiscal foram responsáveis pelo chamado processo de “retomada do cinema brasileiro”, recobrando a produção cinematográfica nacional do “coma induzido” pelo Governo Collor. Através desse modelo de financiamento, foram produzidas obras seminais como Central do Brasil (Walter Salles), Cidade de Deus (Fernando Meirelles e Kátia Lund), Carandiru (Hector Babenco) e Tropa de Elite (José Padilha), que, entre outros filmes, projetaram o cinema brasileiro no exterior, através de sua participação em festivais internacionais de prestígio como o de Cannes ou Berlim. No entanto, por outro lado, as leis de incentivo não conseguiam viabilizar um conjunto de projetos mais radicais, que não atraíam nem o interesse de investidores privados nem se enquadravam no perfil dos editais públicos. Jovens realizadores com projetos mais arriscados não conseguiam se inserir na política oficial de financiamento.


O novo século: outros modos de produção e de difusão do audiovisual No início do novo século, esse cenário apresentou paulatinamente algumas alternativas, apontando para a possibilidade de um outro modelo de produção, alternativo ao financiamento público. Essas alternativas estão diretamente relacionadas à difusão da tecnologia digital. A ampla disseminação do digital possibilitou não somente novos paradigmas para a produção de novas obras, mas também para a difusão das mesmas. Nesse sentido, é importante observar como esse novo caminho pode ser visto numa complementaridade entre dois pontos: uma nova forma de produção e novas possibilidades de difusão. Quanto à produção, o digital permitiu a realização de obras em vídeo mais baratas e com produção mais ágil. Ou seja, além de permitir a realização de obras sem a necessidade de estruturar um projeto para participar de editais públicos, o vídeo permitiu que os filmes pudessem ser produzidos mediante um outro arranjo de produção. Tornava-se possível, por exemplo, realizar um vídeo sem funções técnicas definidas, ou ainda, que todo o processo fosse mais flexível. Com o vídeo, o financiamento público passou a ser uma possibilidade, mas não a única alternativa para a produção de filmes no país. O abismo entre o amador e o profissional havia consideravelmente se reduzido. Cada vez mais, tornava-se possível realizar um bom filme com meios praticamente amadores. No entanto, esses videos produzidos não conseguiam ser exibidos nos festivais de cinema do Brasil, que, no início deste século, ainda privilegiavam obras em 35mm. Estas, para serem produzidas, eram muito custosas, dependendo, portanto, dos editais publicos para sua realização. Isso configurava um circuito de produção e circulação: obras em 35mm que circulavam nos festivais, e que, para poderem existir, precisavam ganhar editais, ou seja, obras pré-formatadas. Não é que essa configuração também não tenha gerado grandes curtas e apontado para grandes realizadores, mas tornava mais restritas as possibilidades de expressão audiovisual. Do mesmo modo, para chegar ao seu primeiro longa-metragem, era preciso que o realizador tivesse formado um “currículo”, ganhando diversos prêmios com seu curta 35mm nos principais festivais de cinema do país, conquistado a simpatia de uma empresa produtora, para que inscrevesse seu projeto de longa nos poucos editais federais que abriam possibilidades para estreantes.


Imagem do filme Bat-Guano direção de Tavinho Pereira

Ou seja, uma transformação da tecnologia (ou da técnica) despertava novas possibilidades, mostrando um novo modo de produção, abandonando a dependência de um certo modelo de financiamento, e apontando a necessidade de uma nova forma de circulação dessas obras. O circuito fechado começava a se abrir, a se ampliar para novas perspectivas. Uma série de videos – baratos, radicais, marginais – começava a ser produzido nos cinco cantos do país, mas não conseguia circular. Não é à toa que nesse momento houve uma profusão da criação de cineclubes. Nesse período, no Rio de Janeiro, um dos mais importantes cineclubes pioneiros foi a mostra “o que neguinho tá fazendo”, realizado na Fundição Progresso, na Lapa, que começou em 1999. O cineclube era essencialmente um ponto de encontro dessa nova geração, que trocava ideias, fumaças, afetos, exibiam seus filmes e pensamentos, e conhecia outras pessoas para juntos realizarem novos projetos. Ou seja, os cineclubes geravam encontros, que geraram trocas, racionais e sentimentais, que geraram mais filmes, e mais encontros e mais trocas, de modo que esse circuito foi ganhando uma força inesperada, que crescia de forma orgânica. Surgia uma curiosidade em tocar os limites de algo que não se sabia muito bem o que era, mas surgia essencialmente de uma insatisfação diante de um embolorado rumo das coisas e de uma necessidade de colocar para fora uma nova visão de mundo: por isso, eram filmes confusos, estranhos, de descoberta, que misturavam bitolas (do Super-8 ao VHS) e referências (do pop ao punk, da vida das ruas ao “intelectualismo acadêmico”, de Debord ao sexo explícito da Boca), num grande caldo de raiva e desejo, insatisfação e maravilhamento. Essa era a forma política possível de uma geração mostrar a sua cara, uma forma política diferente dos debates da “identidade cultural de um país” lá dos anos sessenta, mas, no início deste novo século, parecia ser a forma possível de falar do mundo. Um olhar precário, confuso, difuso, entediado, mas de alguma forma era um olhar que mostrava uma pulsão diante das novas possibilidades de encontro que o audiovisual vinha possibilitando.


Nesse contexto, surgiu a Mostra do Filme Livre, no Centro Cultural Banco do Brasil, em janeiro de 2002. Foi a primeira mostra de audiovisual, com funcionamento e estrutura regulares, que deu espaço a essa produção radicalmente independente, exibindo, na mesma sessão, filmes de diferentes bitolas. A Mostra do Filme Livre ofereceu um espaço para as novas obras audiovisuais que eram produzidas nesse novo contexto e que não conseguiam abrigo nos festivais de cinema do país, ainda voltados para uma outra lógica de circulação, os “grandes e importantes curtas com uma estrutura de produção”. Esses festivais, com uma lógica mais tradicional, carregaram consigo o longínquo fardo da necessidade de corroboração de um processo de “retomada do cinema brasileiro” que, mesmo com todas as iniciativas governamentais, centradas nas leis de incentivo, continuava patinando na necessidade de ocupação de um mercado dominado pelo produto hegemônico estrangeiro. Por isso, caíam na doce ilusão de tentar mostrar que o cinema nacional era “forte” e “bem feito”. Ao longos dos anos, o circuito dos festivais foi amadurecendo, contribuindo decisivamente para um maior debate crítico, conferindo visibilidade a essa produção. Entre outros, podemos citar a Mostra de Cinema de Tiradentes (MG), o CineEsquemaNovo (RS), o Janela de Cinema (PE), a Semana dos Realizadores (RJ), o Panorama Coisa de Cinema (BA) e o Olhar de Cinema (PR). Estava se desenvolvendo um outro cinema que acreditava na precariedade como potência e via no processo, e não necessariamente no produto final, um dos pontos-chave de uma nova forma de produção, menos hierarquizada e mais flexível, dialogando com o documentário e com a videoarte, que via uma relação de cumplicidade entre o cinema e o mundo, entre a criação e a vida. Ao longo desse novo século, essa geração “tomou corpo”, fortaleceu-se, diversificou seu processo criativo, amadureceu, de modo que hoje é possível afirmar que constitui uma nova cena, ou ainda, uma nova geração. Dos primeiros curtas-metragens em vídeo, foi crescendo a certeza de que também era possível fazer longas-metragens com o mesmo espírito criativo, com o mesmo modo de produção. O tabu do “primeiro longa” foi reduzido: nos últimos anos, um conjunto de longas-metragens foi produzido ou sem nenhuma grana estatal ou com orçamentos menores que R$200 mil. 54

Imagem do filme Céu Sobre os Ombros direção de Sérgio Borges


Entre eles podemos citar: Estrada Para Ythaca (Guto Parente, Luiz e Ricardo Pretti, e Pedro Diógenes), A Fuga da Mulher Gorila (Felipe Bragança e Marina Meliande), Meu Nome é Dindi (Bruno Safadi), Sábado à Noite (Ivo Lopes Araújo), Pacific (Marcelo Pedroso), Acidente (Pablo Lobato e Cao Guimarães), Um Lugar ao Sol e Avenida Brasília Formosa (Gabriel Mascaro), A Casa de Sandro e Chantal Akerman, de Cá (Gustavo Beck), O céu sobre os ombros (Sérgio Borges), Pingo d´água (Taciano Valério), Aquilo que fizemos com as nossas desgraças (Arthur Tuoto), Batguano (Tavinho Teixeira), entre tantos outros, com grande repercussão crítica nacional e com participação em grandes festivais internacionais, como Locarno e Rotterdam. Com modos de produção mais flexíveis, com orçamentos mais baratos, fugindo dos modelos tradicionais de organização e captação típicos do “cinema da retomada”, é possível comprovar o amadurecimento de uma jovem geração do cinema brasileiro nos últimos dez anos. Filmes de todos os tipos estão sendo realizados em praticamente todos os estados do país. O hibridismo entre bitolas, formatos, gêneros é uma característica dessa geração. A exploração das fronteiras entre o documentário e a ficção, ou ainda, o entrecruzamento entre diferentes campos artísticos, como o teatro, a dança, a performance e as artes visuais comprovam o desejo de investigar, relativizar ou expandir as fronteiras e as prévias demarcações. São muitos os desafios para a expansão dessas produções. Esses filmes ainda permanecem pouco vistos, restritos muitas vezes ao circuito dos festivais. As possibilidades das redes sociais e das plataformas de vídeo na internet ainda permanecem na grande maioria do caso ainda muito pouco exploradas. No entanto, o cenário é muito mais promissor que há vinte anos, no sentido de que hoje temos um cinema brasileiro mais plural, com mais alternativas para quem deseja se iniciar numa produção audiovisual. De outro lado, a presença do filme estrangeiro em nosso mercado é cada vez mais avassaladora. Um filme como Jogos Vorazes chegou a ocupar simultaneamente mais de 1.000 salas de cinema em território nacional. Se aumentam as possibilidades para os nichos de mercado, eles permanecem sendo uma nobre exceção, trincheira de resistência, contra o progressivo avanço dos oligopólios globais, das grandes corporações midiáticas que dominam o mercado cinematográfico não apenas do Brasil, mas de boa parte dos países do mundo, inclusive de economias robustas, como a Alemanha e a Itália. É preciso, portanto, avançar em muitas outras frentes. Mas é um bom começo. Aguardemos os próximos capítulos!


Heranças Herdei demais: Agora me compete a febre do excesso. Febres sazonais palavras que não eram minhas quebra ossos, janelas arranham paredes ruínas. O relento passeia em minha alegria. Me torno o filho adotivo que cria um sangue novo próximo ao veneno. Me torno o que recebe mais do que lhe foi dado.

O esplendor, cabisbaixo, me espreita.

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A cada manhã estendo as mãos como quem pede desculpas à própria palmatória.


O coração sobre a mesa não diz uma palavra. Não pede, não cansa, não revela. Observo, como um legista o objeto alheio a pulsação antiga que mantém órgãos, intentos, entranhas, reflexos.

O coração sobre a mesa

E súbito, em suas paredes em carnosidades avermelhadas surgem desenhos, talhos, remendos. Toco o peito vazio. O coração respira, na mesa movido por um moto-perpétuo. Não há sístole ou diástole. Sou eu, com medo de dormir sozinho em alguma noite antiga.

SAMARONE LIMA (CE) É jornalista e escritor. Nasceu no Crato (CE) e vive no Recife (PE). Foi finalista do prêmio Jabuti com o livro-reportagem Viagem ao Crepúsculo, em 2010, e com A Praça Azul e Tempo de Vidro (poesia), em 2013. Em 2014 ganhou o prêmio da Biblioteca Nacional com o livro de poemas “O Aquário Desenterrado”. __________________________________________________________________

É o telegrama com a morte do tio Ademar. São as lágrimas de minha mãe na noite de Pentecostes. É o dia em que cheguei ao Recife com uma caixa de livros. Na rodoviária, sentia frio não sabia o que sentir não sabia meu nome. Meu coração ainda não era meu.


ADRIANO LOBÃO ARAGÃO Nasceu em Teresina, 1977. É mestre em Letras pela Universidade Estadual do Piauí. Professor do IFPI. Autor dos livros Uns Poemas (poesia, 1999), Entrega a Própria Lança na Rude Batalha em que Morra (poesia, 2005), Yone de Safo (poesia, 2007), as cinzas as palavras (poesia, 2009), Os Intrépidos Andarilhos e Outras Margens (romance, 2012). Editor da revista eletrônica dEsEnrEdoS (www.desenredos.com.br). _______________________________________________

o poeta H. Dobal

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fotografia de Luciano Klaus


Onde entanguidos bois pastam a poeira UMA LEITURA DE H. DOBAL RÉQUIEM Nestes verões jaz o homem sobre a terra. E a dura terra sob os pés lhe pesa. E na pele curtida in vivo arde-lhe o sol destes outubros. Arde o ar deste campo maior desta lonjura onde entanguidos bois pastam a poeira.

E se tem alma não lhe arde o desespero de ser dono de nada. Tão seco é o homem nestes verões. E tão curtida é a vida, tão revertida ao pó nesta paisagem neste campo de cinza onde se plantam em meio às obras-de-arte do DNOCS o homem e outros bichos esquecidos. O termo “réquiem”, oriundo do latim, “repouso”, refere-se à primeira palavra do intróito da missa dos mortos, ou à sua prece litúrgica. O poeta H. Dobal , entretanto, prepara um réquiem para os vivos; embora a própria terra (na qual deveriam cultivar sua condição de sobrevivência) já lhes pese “sob os pés”. Constante em seu livro de estreia, O tempo consequente, editado em 1966, o poema alude ao tema mais peculiar de sua obra: o rústico sertanejo abandonado à sua própria indigência em meio a outros bichos, talvez abaixo do nível de sobrevivência, como se, ainda


vivos, já se apresentassem mortos. Em O tempo consequente, Dobal traduz em verso uma aura de terra desolada, de abandono e de rusticidade que dela emana. Um gado que sobrevive pastando poeira e um outro gado, o homem, que rumina sua solidão. Na referida obra, a imagem de degradação da condição humana em tão árido ambiente conferiu à poesia dobalina um substrato poético que nada tem de panfletário ou estritamente documental, mas provida de pleno vínculo com a expressividade artística que se espera de qualquer literato que se queira relevante. Conforme depoimento de Manuel Bandeira, só mesmo um poeta ecumênico como Dobal podia fixar a sua província com expressão tão exata, a um tempo tão fresca e tão seca, despojada de quaisquer sentimentalidades, mas rica do sentimento profundo, visceral da terra. ( DOBAL, H. O tempo consequente. Teresina, 1986 )

A poética de Dobal é desenvolvida a partir de um lirismo conciso que permeia seus versos, como se na árida e agreste paisagem física e humana destes campos se relevasse ou se escondesse o sublime. Rilke, na primeira de suas Cartas a um jovem poeta, menciona que “para o criador não há nenhuma pobreza e nenhum ambiente pobre, insignificante”. E é com o compromisso de extrair lirismo de um árido ambiente sertanejo que Dobal revelase poeta na concepção proposta por Rilke, sem recorrer a uma estetização artificiosa, a algum preciosismo linguístico que pouco expressaria com autenticidade o rústico universo evocado. Nesse sentido, Dobal optou por uma linguagem igualmente calcada na carestia, conforme a vivência e a paisagem relacionadas a seu fazer poético. Entretanto, trata-se de uma hipotética rusticidade, obtida através da ausência de um transbordamento sentimental, conforme observou Bandeira, ao tempo em que Dobal mantém uma elaborada arquitetura baseada na economia de recursos para obter efeitos bastante precisos. Vejamos o poema Pedras, constante em O tempo consequente:

fotografia de Luciano Klaus


PEDRAS Estas pedras se gastam com o tempo. Vão lentamente se desgastando e o tempo lhes sobra para as lembranças que não conservam. Acaso haverá mais do que céu e sol mais do que pedra desta seca paragem outra memória. Aqui o céu é a lembrança mais bela. O clarazul céu do Piauí e a destroçada pedra simulação de ruínas (onde os mocós se escondem) onde somente as macambiras vingam. Aqui os bois do agreste desgarrados vêm pastar o silêncio e a calmaria das tardes vêm ariscos ruminando a lentidão dos dias o repouso dos domingos espalhados na chapada. Como outros bichos nos seus fósseis presos também de pedra num momento quedam quando a cabeça sobre as moitas param.

A paisagem de cinza devorada e ruminada pelas cabras mansas, e sobre as copas os despejados pássaros por gaviões sonhados nas muralhas, as copas onde os frutos se preparam para a farinha e a fome desses dias. E em nós a fome o perguntar calado: desembestados cavalos cujo ímpeto ou voo articulado nestas pedras na seca solidão jamais veremos. O tempo gasta estas pedras com mil artifícios repetidos. Contra a pedra e o tempo nos afiamos e em nós porfiamos estas lembranças que se vão desgastando para nunca: estas formas de pedra simulacra de bichos ou de sonhos são perguntas ao claro azul às arenosas trilhas que aceitamos aqui como os domingos sem sucessão plantados na chapada. 41


“Estas pedras se gastam com o tempo.” O poema abre com uma afirmação que explora aliteração sibilante /s/ e a oclusiva /t/: Estas pedras se gastam com o tempo. Estas pedras se gastam com o tempo.

Lembrando que T.S. Eliot foi um dos referenciais adotados por Dobal para sua construção poética, observa-se que a utilização dessas aliterações pode ser interpretada como busca de uma melopeia que simbolize o próprio desgaste que o tempo opera nessas pedras, posto que, para Eliot, em A essência da poesia (Rio de Janeiro: Artenova, 1972, p. 53), “o som de um poema é uma abstração tão grande do poema como é o sentido”. Note-se que, além do /t/, diversas outras consoantes utilizadas também são oclusivas: /p/, /d/, /g/. As mesmas aliterações, /t/ e /s/, são repetidas nos versos seguintes. Vão lentamente se desgastando Vão lentamente se desgastando

A afirmação que abre o poema merece ainda mais uma reflexão. O tempo é um elemento primordial para a construção da poética de O tempo consequente, entretanto, em caráter imediato, não é o tempo que, necessariamente, desgasta as pedras. O tempo é apenas um instrumento, utilizado pelas próprias pedras para seu autodesgaste. Tal aspecto pode ser aferido ao observarmos os versos seguintes: Vão lentamente se desgastando e o tempo lhes sobra para as lembranças que não conservam. [...]

Encontramos então o verbo “desgastar” referido tão somente às pedras, e o tempo relaciona-se a “sobrar” e “lembranças”, que as pedras não conservam. Mas que lembranças seriam, que nem o tempo nem as pedras conseguem apreender? 62


A afirmação seguinte poderia corresponder a um questionamento, mas há por parte do eu poético uma afirmação que a priori pode parecer enigmática. [...] Acaso haverá mais do que céu e sol mais do que pedra desta seca paragem outra memória. Transcrevendo a afirmação para uma possível ordem direta, propomos: “Mais do céu e sol, mais do que pedra, acaso haverá outra memória desta seca paragem”. Entretanto, a sensação de questionamento permanece. De qualquer forma, parece certo que, além do céu, do sol, representação do “tempo”, e das pedras, representação do “espaço”, não haveria nenhum outro repositório da memória acerca desta paragem seca, o sertão piauiense. Conforme a afirmação anterior, as pedras se desgastam, e o tempo não conserva a memória. Delimitadas pelo adjunto adverbial “aqui”, o restante da primeira estrofe estruturase na representação do “clarazul céu” e da “seca paragem”, bem como dos seres que ali buscam sobreviver. Aqui o céu é a lembrança mais bela.

O “clarazul céu” também foi anteriormente associado ao tempo, representação já mencionada. Observa-se um forte contraste entre céu e terra: “a destroçada pedra simulação de ruínas”. No céu, encontra-se a lembrança mais bela; na terra, simulação de ruínas, esconderijo de mocós, ambiente onde “somente as macambiras vingam”. O mocó, Kerodon rupestris, é um roedor da família dos caviídeos, encontrado em áreas pedregosas do Leste do Brasil, do Piauí até Minas Gerais, do tamanho aproximado de um preá, geralmente um pouco maior, com cauda ausente ou vestigial, e pelagem cinzenta. Especialmente no Nordeste, é usado como alimento. Isso indica que, dentre seus predadores, encontra-se o homem, rústico sobrevivente de um mundo árido onde, reafirmamos, “somente as macambiras vingam”, e o homem, “... se tem alma não lhe arde o desespero / de ser dono de nada. Tão seco é o homem / nestes verões”, segundo os versos de Réquiem.


O abandono, a calmaria da tarde e do domingo são símbolos da condição desoladora do ser humano na poesia de H. Dobal. Como outros bichos, inclusive o homem, as reses deixam de representar o movimento que caracteriza a vida animal para se fixar em pedra, transformar-se em pedra, como naturalmente a matéria orgânica se fixa em fóssil com o passar das eras. Como outros bichos nos seus fósseis presos também de pedra num momento quedam quando a cabeça sobre as moitas param.

Entretanto, aqui se caracteriza mais um símbolo, no qual o ser “torna-se pedra, fóssil”, se confunde com a paisagem, torna-se paisagem, imóvel, imutável, “quando a cabeça sobre as moitas param”. Representa uma terra desolada, um árido ambiente, onde repousar é morrer. Na paisagem de cinza onde ruminam cabras mansas – que pode ser o próprio homem –, a sobrevivência, “as copas onde os frutos se preparam”, está compreendida entre a farinha e a fome, a expressão exata do que lhe resta desses dias. A fome é caracterizada pelo silêncio, “o perguntar calado”, reforçado por referências que “jamais veremos”: cavalos desembestados – desenfreados; livres; que não mais se tornam bestas, animais de carga –, voo articulado, imagens que transmitem a ideia de movimento, de liberdade. Mas por não escapar da fome, restam as pedras, a imobilidade fóssil. O tempo gasta estas pedras com mil artifícios repetidos.

O tempo gasta estas pedras com mil artifícios repetidos.

LUCIANO KLAUS (PI) É formado em comunicação pela UFPI. Fotógrafo premiado com passagem pelo jornalismo e publicidade. Atua como documentarista. Recebeu prêmios nacionais, como o DocTV-IV. Mais em http://www.artlimited.net/luk

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Os versos iniciais da última estrofe retomam elementos observados no início do poema. Contudo, a representação do tempo enquanto agente da ação verbal é inequívoca e associada à repetição. Ambos são agentes, então, pois é contra ambos que “nos afiamos”, nos chocamos, como pedra lascada e polida, e “em nós” se depositam as marcas, lembranças, desse desgaste que nos torna “fósseis”, “formas de pedra simulacra de bichos e sonhos”. Notadamente, há um neologismo, “clarazul”, presente na primeira estrofe, formado pela aglutinação dos determinantes claro + azul. Porém, no último parágrafo, retorna à forma analítica original. Simbolizaria o desgaste, a fragmentação do homem e outros bichos em fósseis, ou melhor, representações grosseiras de si mesmos? O adjetivo “simulacra” foi composto através do substantivo “simulacro”, que possui as seguintes acepções, segundo Houaiss: Representação de pessoa ou divindade pagã; ídolo, efígie. Representação, imitação. Falso aspecto, aparência enganosa. Cópia malfeita ou grosseira; arremedo. Suposto reaparecimento de pessoa morta; espectro, sombra, fantasma. Excetuando a primeira definição, mítica, todas as outras atribuem aos versos leituras interessantes e inusitadas. Entretanto, o que resta é tão somente a aceitação de domingos sem sucessão, portanto eternos, plantados na chapada, sem que em nenhum momento transpareça uma marca de individualidade, em que nos momentos de emprego da primeira pessoal do discurso encontramos a expressão coletiva do uso do plural: “Contra a pedra e o tempo nos afiamos / e em nós porfiamos estas lembranças / que se vão desgastando para nunca.” Para Dobal, o tempo é o fazendeiro do homem. Esta a sua maior lembrança, consequentemente gravada em sua poesia, como uma recordação indelével gravada em pedra, resistindo às intempéries da vida, ainda que sem esperança e sem salvação, “neste imenso curral em que te amansas / triste e só campeador de lembranças”, conforme escreveu no poema Bestiário.

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O poeta H. Dobal nasceu em Teresina, Piauí, em 1927. Faleceu, também em Teresina, em 2008. Sua obra poética é composta pelas seguintes obras: O tempo consequente (1966); O dia sem presságios (1970); A província deserta (1974); A serra das confusões (que foi desmembrada da obra anterior e ampliada, 1978); A cidade substituída (1978); Os signos e as siglas (1986); e Ephemera (1995). A esses, acrescentam-se os livros em prosa: A viagem imperfeita (que são notas de viagem, 1973); Um homem particular (um livro de contos, 1987); Roteiro sentimental e pitoresco de Teresina (de crônicas, 1992); Grandeza e glória nos letreiros de Teresina (também de crônicas, 1997); além de antologias e edições comemorativas. Os poemas de H. Dobal aqui reproduzidos tiveram como texto-base a 3ª edição da Poesia reunida (Teresina: Plug, 2007).


Cala, ouve o mundo, há sempre uma voz em tudo – um coaxo, um sibilo, um crocitar, um zumbido, um gorjeio, um zurrar, um rumor de água, um silvo, um vento, um far fa lhar, um balido, um trino, um latido, um cicio, um grunhido, um grasnado, um sussurro, um rosnado, um ron ronar, um rugido, um bater de asa,

Ouve o mundo A Marcilio Costa

um estalo na viga da casa, um ecoar, um latejo na têmpora, um temporal, um trovão, um ranger de porta, um inaudível desabrochar, um cricrilo, uma sílaba ci ci ci ci ci ci ci cigarra, um sino, um relógio, uma badalada, um último suspiro, um novo ser a respirar, um gemido amante, o som de uma lágrima que cai no olvido, uma vida inteira a murmurar – e no fundo de todas as vozes inanimadas e animais a voz do espírito que a tudo anima. Ouve – há sempre uma voz em tudo. Fica – um instante – mudo

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No crepúsculo – lobo franzindo as fauces roxas – sinuosa, estende-se a estrada ladeada de árvores tortas e folhas ressecadas pelo ar do crime e pelos ventos soprados das nuvens que se reúnem no horizonte, som de sombras, entoando um hino, atraindo as lanças de um eterno e furioso inverno. No crepúsculo, ecoa a queda do pássaro que extraviou seu vôo pelos céus em brasa

A descida aos infernos

e, agora, com suas asas chamuscadas, claudica no chão das câmaras mortuárias No crepúsculo – rio vermelho de lágrimas dos deuses que choram sua imortalidade – o funeral do sol assinala – faraó – a sentença de morte a todos os animais apascentados que pastam nas planícies do paraíso – atira seus dardos mortais contra a ave dos vaticínios.

ANTÔNIO MOURA (PA) É poeta e tradutor. Autor de Dez, Hong Kong & outros poemas, Rio Silêncio e A sombra da ausência. __________________________________________________________________

No crepúsculo – rosa corroída por espinhos de violeta melancolia – o Castelo de Mefisto ergue-se no ar e desmorona sobre o peito que canta, para espantar os espantosos espantalhos, saídos, vivos, de suas ruínas


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Imagens de Marcelino durante a infância e a adolescência, quando fazia teatro. [arquivo pessoal]

Sertânia. Pernambuco. Marcelino tem pouca recordação de onde nasceu, em 67. Nasceu não. Escapou. De 10 crianças que nasciam, 6 sobreviviam. A mãe teve 14 gestações. 9 vingaram. Nasceu de 7 meses. Vingou. Saiu de lá com 3 anos. Ele lembra mais de Paulo Afonso, na Bahia. Família de 9 filhos. É o caçula. Na cabeça, tem mais a água da cachoeira de Paulo Afonso do que a seca de Sertânia. Marcelino e sua mãe vão passear para sempre naquelas pontes de mundaréu d’água. Sua cidade é a voz de sua mãe na memória. Você nasceu em Sertânia. Não se esqueça de Sertânia. Foi pro Recife aos 8 anos. A família toda. As coisas não estavam boas em Paulo Afonso. Neste mesmo ano, se deparou com o poema O Bicho, de Manuel Bandeira, na gramática do irmão. Imediatamente, quis ser o Manuel Bandeira. Descobriu que ele era pernambucano. Que ele era doente. Também quis ser doente. Gostou daquela vida pouco saudável. Da preguiça. Da doença. Gostou de querer morrer. Mais tarde, fez teatro. Grupo de poesia. Trabalhou em banco. Iniciou o curso de Letras. Não concluiu. Mudou-se para São Paulo em 91. Participou de muitas antologias no Brasil e no exterior. Entre os livros que escreveu, estão eraOdito (aforismos, 2002), Angu de Sangue (contos – Ateliê Editorial, 2000). Ganhou o Prêmio Jabuti 2006 com Contos Negreiros (Editora Record). Idealizou e organizou a antologia de microcontos Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século (Ateliê, 2004). Alguns de seus contos foram adaptados para teatro. Criou a Balada Literária, um evento fantástico que, desde 2006, reúne escritores, nacionais e internacionais, pelo bairro paulistano da Vila Madalena. Integra o coletivo EDITH, pelo qual lançou o livro de contos Amar É Crime (2011). Publicou seu primeiro romance, Nossos Ossos (Record, 2013) e ganhou o Prêmio Machado de Assis 2014 de Melhor Romance pela Biblioteca Nacional. Golpes curtos. Profundo. É como Marcelino escreve. A arte de escrever com uma pá. Desenterrando cidades que precisamos descobrir. Marcelino passou 5 dias em Teresina, em setembro de 2014. Para ministrar uma Oficina Literária pelo projeto QUEBRAS. Você vai conhecer a origem da aperreação desse escritorprodutor. Sua angústia para conseguir patrocínio cultural às vésperas da rea lização da Balada Literária. Seu amor-humor extraordinário! Ensolarado! E suas reverberações. Era o fim da tarde do domingo, quando a revista Acrobata passou horas conversando com o andarilho, e voarilho, Marcelino Freire. 49


Entrevista realizada por Aristides Oliveira Demetrios Galvão Thiago E Acrobata - Tu começa a escrever com que idade?

Marcelino Freire - 10, 11 anos. Com Manuel Bandeira, a partir dos poemas dele comecei a fazer uns poemas iguaizinhos. Poema de doença herdei dele, pouco progresso. Era fácil encontrar literatura?

No Recife, era muito difícil. Como é que você ia procurar livro numa casa que não tem livro? Eu fui fazer teatro muito novo também. De 9 para 10 anos de idade eu fui fazer teatro na escola. Aí fui me deparando com textos para teatro. Perguntava pro professor: “Olha, eu descobri um poeta chamado Manuel Bandeira”. A professora de português dizia: “Nossa, esse menino...” Aí começava também a me apresentar outros poetas. Esses artistas todos, na literatura, na música, em algum momento, eles nos ajudam a compreender a vida, a suportar. E, por um acaso, o primeiro que tu encontrou é um poeta pernambucano. Coincidência?

Coincidência. E um poeta que falava de ruas que minha mãe dizia: “Eu vou ali na Rua da União”, “O Rio Capibaribe encheu hoje, vamos ter problema que vai encher a rua”. Essas coisas aí, na época que tinha muita enchente no Recife. Então eu pensava, eu posso ser esse poeta e falar de coisas que eu conhecia, coisas que eu ouvia falar. “Ele é pernambucano, eu também sou, eu posso ser alguma coisa na vida, eu não sou jogador. Educação Física é uma bosta. Eu não consigo correr. Não consigo correr”. Aí com o Bandeira eu consegui ficar parado, quieto. Eu me lembro. Minha mãe batia na porta e dizia: “Meu filho, você tá vivo?”. Uma pessoa lendo não é saudável. Todo mundo bate na porta do quarto pra saber o que a pessoa tá fazendo. “O que tá fazendo esse menino no quarto?”. E eu lá, lendo Bandeira... 8


Quando tu sente que a escrita se torna, de algum modo, o teu ofício e não vai parar mais? Eu acho que o primeiro reconhecimento público que eu tive (“Nossa! Foi você que escreveu isso?”) foi com o teatro. Comecei escrevendo para teatro. Aos 14 anos, eu já tinha peça montada, se chamava “O Reino dos Palhaços”, a primeira peça de teatro que fiz. “Olha, ele que escreveu!” Saía no jornal. Eu dizia: “Nossa, isso tá bom!” Aí escrevi também algumas poesias. Grupo de poesia eu só vim participar quando tinha 16 anos. Fiz um grupo de poesia chamado “Poetas Humanos”, no Recife. Fiz jornais, zines. Eu descobri que era ali que residia minha fortaleza, meu esconderijo, minha maneira de expressão. Era ali, na literatura, não era na Mecânica. A gente pode não saber o que quer, mas o que não quer a gente sabe. Mecânica? Sai pra lá que eu não quero! Tem carro? Também detesto! Tem futebol? Zero à esquerda! Futebol só entendo de vestiário. Então, o que é que sobrou? Literatura. Ela vinha com muita força, a literatura e seus desdobramentos. Eu trabalhava com revisão de texto. Aí eu fui estudar Letras. Não completei o curso de Letras. Tudo no Recife. Fui participar do grupo de teatro, de poesia. Trabalhava em um banco como revisor de textos. No banco, comecei como office boy, escriturário e depois revisor. Faz um percurso de Recife até tu ir para São Paulo.

Aos 19 anos, eu já havia produzido algumas peças infantis lá no Recife. Quando vocês acompanham meu trabalho como agitador, fazendo a Balada Literária, eu já fazia aos 19 anos com peças de teatro. Eu nunca podia, nunca tive condições de fazer as coisas, mas eu acreditava que podia fazer e acabava fazendo. Por exemplo, eu escrevi uma peça de teatro chamada “A Menina que queria dançar”. Era uma peça que escrevi para uma atriz desconhecida à época, chamada Patrícia França. Hoje ela é conhecida. Fez novela na Globo, na Record, etc. Ela fez teatro na mesma escola que eu. Só que, quando eu estava com 19 anos, ela estava com 14. Eu montei a peça e foi a primeira peça que Patrícia fez e com a qual ela ganhou o prêmio de atriz revelação. E eu produzi essa peça com 19 anos. Eu disse: “Onde é que eu vou apresentar essa peça, eu com apenas 19 anos? Eu disse, eu vou apresentar no principal teatro dessa cidade, o teatro de Santa Isabel”. Meus amigos diziam: “Você é maluco? Onde é que o teatro Santa Isabel vai te dar uma pauta?” Eu digo: “Eu não perguntei pra eles. Vocês estão colocando um ‘não’ na boca do teatro.” Resultado: de repente, eu já estava no teatro


Marcelino Freire ao lado do jornalista O irmão, Manoel Freire, e parceiro e Marcelino, aos 10 anos, __________________________________________________________________________________________________________________________________________________ Jorge Filholini, na primeira volta a Sertânia, viajando juntos depois de ter saído de lá. pelo Brasil no projeto Quebras, iniciado em 2014.

Santa Isabel produzindo peça aos 19 anos. Nunca diga não pra mim. Você pode até dizer não. Eu não digo não pra mim. Nunca diga que uma pessoa vai dizer não. Quer dizer que eu já saio com um não sem perguntar? Sem tentar? É muito fácil. Vá lá falar com o Caetano Veloso. Imagina! O Caetano Veloso vai pra Balada Literária sem receber porra nenhuma? Perguntei por acaso pra ele isso? (risos) Como tu encara a literatura na tua vida? Teu ciclo de amizade é de escritores, artistas? Como tu vive essas experiências?

Eu acho que a gente tem que dar um peso à literatura como em qualquer atividade que a gente queira. Quando a gente fizer a seguinte pergunta: “Se tirar isso da sua vida, o que é que sobra?” Se você fizer essa pergunta, e sobrar muita coisa, vá pra essa “muita coisa”, pelo amor de Deus. O que você vai fazer com literatura? Sobrou isso, mas eu tenho isso, isso, isso, tenho um gato pra cuidar, um bicho pra levar pra passear, uma sogra pra almoçar, o marido pra cuidar, a bezerra pra mamar. Se você tem muita coisa pra fazer, por que você vai escrever? Vá fazer outras coisas, se essas coisas têm mais importância que a literatura. Agora, tirou a literatura da minha vida e virou uma merda sem fim? Não sobra nada? Ah, então vá pra literatura. Custe o que custar. Vai dar pra viver de literatura quando você fizer essa escolha? Claro que não. Mas vá fundo naquilo que você quer. Uma hora você consegue. A duras batalhas, sim, mas o que não pode é ficar naquela coisinha ali, sem dar algo de si...


Marcelino e o amigo Marcelino, Em Recife, Lourenço Mutarelli, aos 19 anos, na adolescência, autor do desenho no teatro, Marcelino na de capa do livro _________________________________________________________________________________________________________________________________________________ com o irmão época em que Nossos Ossos, Luiz Freire. fazia teatro. as “caveiras” que ilustram parte dessa matéria

Na Oficina Literária do projeto QUEBRAS, tu falou que escreve para se vingar. Explica isso. Eu sou um bundão. Eu sou um covarde. A verdade é essa. Covarde de marca maior. Tenho medo de dor, de ferimento, de pancada. Eu não consigo pegar em arma. Eu sou fraco. A única coisa que eu faço é escrever. Aí, quando eu escrevo, eu pego em arma. Eu mato, eu me vingo, eu degolo presidentes. Eu mando todo mundo pra puta que pariu! Escrever é minha arma! Porque eu sou muito covarde. Na literatura, eu sou movido por essa vingança, por esse desejo de enfrentamento constante, e não falta motivo pra me vingar. Me vingar de um governo que não vai bem, de uma injustiça. Eu escrevo movido por isso. Quando eu faço um evento, como a Balada Literária, é uma contribuição que eu dou, a partir da minha vingança, em um sentido mais prático, digamos assim. Quando eu faço uma Balada Literária, eu me sinto menos covarde. Porque não sou só aquele escritor que escreve em casa e acha que já tá resolvendo tudo, que na literatura está tudo lindo: “Olha, eu estou escrevendo um livro ‘premiado’ e agora eu posso descansar em paz.” Quando você nota, sente que muita coisa pode ser feita pela literatura, no Brasil. Por exemplo, eu me sinto mais político quando estou fazendo a Balada Literária do que quando estou escrevendo. Político no sentido de uma ação mais efetiva para as pessoas, pra São Paulo, que me deu tanta coisa. Com a Balada, eu quero retribuir um pouco o que recebi de São Paulo.


Sobre teu último livro Nossos Ossos, conta como foi o processo de criação. Eu já vinha tentando fazer um romance há muito tempo. Porque eu escrevo contos. Movido por esse meu desejo de vingança. Quero gritar logo, dizer onde tá doendo e ir embora. Nos contos, eu fazia isso, me vingava, dava vexame e ia embora. No romance, eu não podia ficar gritando. Já pensou? Cento e poucas páginas gritando no juízo do leitor? Um inferno na Terra, né? Aí eu precisava encontrar o tempo desse romance. Perdi muito romance porque eu entrava nele com esse desejo de urgência, de vingança, de grito. Não conseguia o tom, me cansava, estava muito ‘ruidoso’. Também, eu chegava muito ao romance cegamente, como eu chegava aos meus contos. Nos meus contos, a maioria eu escrevo sem saber como vai terminar, ou que história eu tô contando. E no romance, toda vez eu o perdia porque, toda vez que eu chegava na página 70... 70... 70... Não saía da 70. Emperrava sempre. Aí eu fiz um esboço da história e fiquei dizendo: “Ó, a história é essa e vou fazer esse capítulo aqui, depois o segundo, o terceiro capítulo...” Tinha que encontrar o tom do livro. E o tom do livro estava no silêncio. Era um grito um pouco mais estendido. Os meus contos se aproximam muito da fala da minha mãe. Ela era uma pessoa muito “pra fora”. Então, todos os meus personagens, eu sei que estou escrevendo esses personagens, os dos contos, como minha mãe falava: escrevendo ‘para fora’. No romance, eu me aproximei do silêncio do meu pai, tanto que é o primeiro livro dedicado a ele. E olha que coisa: quando ganhei o Prêmio Machado de Assis, era o dia do centenário de meu pai, se ele estivesse vivo. Olha que coisa curiosa! Ele agradeceu em algum lugar: “Oh, meu filho...” (risos). Pra quem dava moeda pra mim... Meu pai me dava moeda quando eu estava desempregado, quando eu abandonei o banco no Recife pra fazer oficina de literatura e pra conhecer os escritores. Aí meu pai, quando já tinha acabado o meu dinheiro, ele juntava um dinheirinho assim e me dava umas moedas para eu ir ao cinema. Eu ia assistir no Teatro do Parque a umas sessões do Pasolini. Eu disse: “Meu Deus, se o papai soubesse os filmes que eu tô assistindo, com as moedas que ele tá me dando!” (risos). Eu acho que ele agradeceu em algum momento: “Oh, meu filho, muito obrigado”. O processo foi esse. Pra não perder a história, eu me cerquei muito de cinema. Tinha que me cercar de coisas que pudessem garantir que eu não perderia esse romance. Eu me cerquei de teatro também, porque o romance é sobre um dramaturgo. Fui ler história policial porque a trama é muito trama, suspense... E, no romance, eu também aproveitei para fazer uma confusão com minha biografia. Também me cerquei sem nenhum pudor da minha biografia, de alguns aspectos da minha vida. Eu sei que quando o Heleno está chegando em São Paulo, sou eu quem está chegando com ele. Aquele olhar dele na rodoviária, aquilo eu sei. Sei bem o que foi aquilo. Ah! Eu brincava com ossos quando eu era pequeno igualzinho ao Heleno. Brincava com ossinhos, coisinha boba. Mas aí eu exagero! Coloco, no livro, os meninos brincando com ossos, vestindo armadura de osso, cavando ossos humanos. Não era assim, mas a gente exagera pra chamar a atenção. (risos) 54


[ CAPÍTULO DO ROMANCE “NOSSOS OSSOS”, DE MARCELINO FREIRE, EDITORA RECORD, 2013 ]

AS RAÍZES ____

O que você quer ser quando crescer, era o que a gente queria saber, pequenos, enquanto separávamos os achados do dia, unhas de tatus, preás, pescoços guaranis, secas nadadeiras franjadas de rosa, patas babilônicas, vai, fala, eu mesmo quero ser um astronauta, ou um fabricante de foguetes, dizia o meu irmão do meio, com os lábios supersônicos fazia um barulho, extraterrestre, e voava, aéreo, sobre nossas cabeças, com um sabugo na mão, desenhava galáxias longe daquele sertão. Em círculo, conversávamos numa língua de gente maior, superior, porque o sol deixava tudo do mesmo tamanho, deus, enguia, cotovia, formiga, moço, coruja, velho, estátuas de arquiteto, arames, andaimes, e você, Heleno, que ainda não falou nadinha, quando crescer e ficar assim, da altura de nosso pai, vai morrer aqui, é, será que não tem salvação, fala, desembucha, meu irmão, o que você fará no futuro, sei lá, pensa bem, um doutor, um cantor, sanfoneiro, acho que você leva jeito para ser artista, um palhaço, um mágico, um malabarista, e cada um, dos nove meninos, que equilibrasse um osso sobre o outro, de urubus, camelos, pré-históricas girafas, exércitos inteiros, dissecados. Eu terei um carro de corrida, falou, empolgado, meu irmão mais velho, a bacia maior foi ele quem cavou, havia uma semana que lutava pela carcaça, gigante, nela costurou alavancas e freios, buzinas fabricadas do enorme joelho, arrancado, sem jeito, mandava a gente sair da frente que lá vinha a grande máquina, serei campeão do mundo, vocês vão ver, também pilotarei avião de guerra, pá, pá, pá, comigo será matar ou morrer. Pedi ainda um tempo para pensar, eu sempre fui devagar na preparação dos instrumentos, naquele solo de rachar, eu gostava, repito, de costurar vestimentas, criar um texto qualquer, inventar uma história para ver a tarde cair, meus irmãos ficarem curiosos, presos às aventuras que eu arquitetava ali, na hora, o destino eu tinha em minhas mãos, conta mais, Heleno, conta mais, quando crescer eu quero ser várias pessoas, ir fundo, escrever para me sentir, assim, o dono do mundo, o rei dos animais.


Quando começou a escrever o romance? Eu acho que passei uns dois anos e meio escrevendo. Terminei uma primeira versão do romance, em que o personagem principal era um poeta, e não um dramaturgo. Quando fui ler o romance, eu detestei. O romance não me deu uma coceirinha. Olha, quando um romance, poema ou conto, não der uma coceirinha em algum lugar de vocês, voltem a ler esse poema, porque algo está errado, está acontecendo alguma coisa. Não tá prestando. Coceirinha em que sentido? Uma coceirinha ali no cantinho mais escondido no nosso ser. Agora, quando você termina e diz: “Nossa, deu uma coceirinha aqui na minha alma”, é aí onde o poema tá bom. Alguma coisa te emocionou no poema. Se não te emocionou, não é você que tá escrevendo, é o sistema literário que tá escrevendo por você. Essa primeira versão do “Nossos Ossos” não me emocionou. Não deu coceirinha em lugar nenhum. “Por que eu fiz isso?”, eu me perguntava, sofrendo… O que tu sente recebendo o prêmio? Dá outra coceirinha?

Dá um coceirão! (risos) O prêmio é uma consequência. Eu gostei foi do dinheiro. Gasto dinheiro pra caralho! Pra porra! Gasto dinheiro com tudo! No mínino, o dinheiro vai me ajudar. Eu gostei do dinheiro. E sabe o que eu gostei também? O Prêmio “Machado de Assis”. Eu adoro Machado de Assis. O tanto que eu falo em Machado de Assis! Muito obrigado! Pelo amor de Deus! Falo tanto dele nas oficinas. Eu merecia, só por isso, ganhar um “Prêmio Machado de Assis”. E eles darem o prêmio para o Nossos Ossos! Não é um livro fácil. Eu não fiz concessão nenhuma pra fazer um livro desses. A editora Record não queria essa capa com as caveiras. “Vai ter a porra dessas caveiras!” (risos). Eles terem dado pra essa história erótica, homoafetiva, agoniada, do jeito que é... Eu acho bom. Se vierem mais caveiras por aí, mais coisas agoniadas pra eles premiarem... Dar R$ 30 mil pra outro povo, de outro tipo de literatura, ficar contente, tá ótimo! Depois da premiação, a editora disse o quê? “Que lindas caveiras, Marcelino!” (risos)

Eles gostaram muito do desenho do Lourenço Mutarelli, mas queriam que a caveira fosse menorzinha, sem tanta caveira assim. Queriam uma coisa no canto. E eu: “De jeito nenhum!” Eu pedi pra colocar caveira na contracapa. “Marcelino, é muita caveira, não vai vender!”. “Não. Mas já não vai vender! Ninguém vai comprar Nossos Ossos, com caveirinha ou caveirão, já não vai vender”. Angu de Sangue, que é um livro meu de contos, quem é que vai dar de presente de Natal um livro desses? (risos) Amar é Crime. Alguém vai chegar: “Oh, minha mãe, hoje é Dia das Mães! Tome, minha mãe. Amar é Crime.” A velha não dorme à noite em casa. “Meu filho vai 16


me matar hoje! Amar é Crime?!” (risos) Então, já não vende por natureza. Não estou escrevendo pra vender, mas pra dizer o que eu tenho pra dizer. Entender os absurdos à nossa volta. Eu não abria mão. Não. “Nossos Ossos é essa coisa”. Depois eles aprovaram, “É isso aí mesmo, tá certo”. E agora eles estão muito contentes também, inclusive com isso: “Nossa, Marcelino, surpreendeu o prêmio ter saído com seu livro”. Eles estão acostumados a ver outros livros vencerem esse prêmio.

Sendo um prêmio da Biblioteca Nacional, tu acha que isso indica alguma mudança na percepção dessas instituições com relação à literatura? Eles estão começando a se abrir um pouco mais? Olha, eu já fui curador do Prêmio Portugal Telecom, fui jurado de Petrobras, do Prêmio São Paulo de Literatura, jurado do Jabuti algumas vezes. A luta não é fácil. É um briga danada, desigual. Difícil chegar a um consenso. E sair da mesmice também é difícil. Há autores nesses prêmios, e eu não vou citar quais, que já chegam com 5 votos de cara. O que você vai fazer contra 5 votos? Parece que “peidou, já é bom”. Você não imagina a confusão que é. Tem hora de a gente ter de bater na mesa: “É um absurdo um negócio desse aqui! Eu não vou mais votar!” Aí as pessoas: “Calma, calma...” Não é fácil. Por isso que eu digo: alguém brigou por esse meu livro aí no Machado de Assis, porque meu livro nunca será um consenso. Consenso é assim, creio: chegou um livro de Bernardo Carvalho. Já tá tudo lindo! Loteado em tudo que é canto. Parece um loteamento, caralho! Negócio frígido da porra! Frígido. Não é nada contra Bernardo Carvalho. É contra o tipo de literatura consensual que ele faz. E não é culpa dele. A culpa é da preguiça dos jurados. Isso acontece também com os livros do querido Chico Buarque. Entra de cara em qualquer lista. Aí você briga, bate o pé na mesa. Sempre tem que ter um doido aperreado nesses júris, pra poder desarranjar um pouco. Posso falar de bastidores: sinto, com o tempo, que os prêmios estão querendo desencaretar. Eles querem renovar. Você vê que tem uma briga muito sutil entre os prêmios. Se você olhar a história, o Portugal Telecom é um prêmio que chegou na cena e deu um prêmio, por exemplo, para o Amilcar Bettega Barbosa que, até então, não era conhecido. Ou mesmo ao Nuno Ramos, ou mesmo indicou a Angélica Freitas, que já esteve entre as finalistas. É um prêmio que dá uma respirada. Se você observar, o prêmio São Paulo também está indo por esse caminho, quando premia, merecidamente, uma autora como a Paula Fábrio, de uma pequena editora, a Patuá.


Que diferença existe entre o Marcelino escritor do primeiro livro e o Marcelino do Nossos Ossos? Eu acho que eu estou mais calmo. Não poderia começar calmo. Não é calmo, no sentido “entregue”, não. Eu tô mais calmo para compreender novas possibilidades do meu pensamento, das minhas inquietações. Percebi que eu posso gritar, continuar gritando, mas não tenho mais forças, inclusive físicas, para gritar do jeito que eu gritava. Nem meu oxigênio é tão grande, pra ficar gritando como eu gritava nos meus primeiros livros. Percebo que Nossos Ossos é um livro contundente. É um grito sim, mas não é a Totonha, a Muribeca, o povo todo que veio gritando antes de Nossos Ossos, lá em meus contos. Eu tô mais calmo pra gritar. Outro livro interessante é Rasif. Você falou da capa do Nossos Ossos, feita pelo Lourenço Mutarelli, e a disputa da editora em torno da imagem. E no Rasif a gente percebe um livro-diálogo que você tem com as gravuras do Manu Maltez. Isso acaba criando uma outra paisagem que dialoga com o texto, a palavra. Fala como foi o processo de criação desse livro e esse jogo imagem-texto.

Eu gosto muito de escrever sozinho. Não pode tocar música nenhuma, não pode ter gato em casa, criança chorando, cachorro latindo. Eu escrevo sozinho. Eu e a palavra ali me fazendo companhia. Quando eu vou fazer o livro, eu gosto de abrir as possibilidades desse livro. Meu primeiro livro por uma editora foi o Angu de Sangue, pela Ateliê Editorial. Eu convidei um amigo artista plástico, Jobalo, para fazer umas interferências no livro. Eu me junto a Jobalo para compor algo em parceria. No segundo livro, o BaléRalé, eu já não queria essa interferência, que era pra exatamente não ficar como se fosse uma marca constante em meus livros, sempre pedindo interferência de outro artista. Aí veio o Contos Negreiros, que também não teve interferência nenhuma. No Rasif, eu senti falta de pegar esse outro parceiro aí. Quando eu lancei Contos Negreiros, em 2005, eu conheci o Manu Maltez, que é compositor e músico. Ele me mostrou uns desenhos dele que ele estava fazendo para a capa do CD. Quando olhei os desenhos eu disse: “Olha Manu, eu acabei de publicar um livro, Contos Negreiros. Eu nem sei qual é o livro que eu vou fazer depois, mas que seus desenhos estarão lá, estarão”. Aí eu fiz o convite. 58

2 links pra conhecer trabalhos do Marcelino Fique por dentro do Projeto Quebras http://quebras.com.br/

Blog https://marcelinofreire.wordpress.com/ _______________________________________


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Quando fui encontrando os contos do livro, e tinha um bom número de contos reunidos, eu mandei pro Manu. Nesse tempo de 2005 para 2008, quando o livro estava sendo preparado, Manu já fazia outro tipo de desenho, que eram gravuras em metal e ficaram belíssimas. Ele veio com essa interferência para o Rasif. Eu não disse o que ele tinha de fazer. Ele leu os contos e me entregou as gravuras. Acompanho muito de perto a produção dos meus livros. Por qual livro tu tem um carinho especial?

Nossos Ossos. Como é o mais recente, saiu em novembro de 2013, ele ainda está tão pequenininho. Eu tenho que levar ele pra tomar banho (risos). É um bebezinho, os outros já estão na estrada. Eu olho assim pra ele: “Eita que amor, que carinho” (risos). Eu não consigo publicar livro todo ano. O que você tem a dizer todo ano? Pelo amor de Deus! Todo ano você tem alguma coisa pra dizer? Você, por acaso, é o Roberto Carlos num especial de fim de ano? Toda hora tem que dizer um negócio! Ivete Sangalo? Tem pessoas que escrevem livro todo ano e eu respeito. Tem gente que é compulsivo, tem uma produção extraordinária. Mas o que eu tenho pra dizer todo ano? Eu ainda tô, nesse momento, compreendendo o danadinho dos ossinhos. Tô agarrado nele, aí vem outro livro agora?! No meio do negócio, agora?! Menino! Um osso aqui, outro ali! (risos) Até o final de 2014, por exemplo, e durante o ano todo de 2015, eu vou estar ainda agarrado nesses Ossos. O próximo livro deve sair em 2016. Eu percebo que esse meu período de ruminação é de 3 anos. De um livro para o outro, 3 anos, 2 anos e meio. Que é quando o Nossos Ossos começa a correr pra um canto e eu começo a pensar umas coisas. A saber que inquietações eu tenho, que desejos de vingança eu quero executar.

Laerte e Marcelino na Balada Literária em 2013 [ foto de Luciana Dal Ri ] ______________________________________


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E as discussões em torno da literatura com questões de gênero, ou raciais, ou de margem, como por exemplo literatura “de preto”, “gay”, “regional”, “feminista”? Existem essas segmentações? Eu escrevi um livro chamado Contos Negreiros. Muita gente achava que eu era negro. Inclusive, o meu livro foi parar numa biblioteca de autores negros da Bahia. De autores afrobrasileiros, numa biblioteca em um quilombo. Eu recebi uma mensagem na época dizendo: “Seu livro ‘Contos Negreiros’ tá na biblioteca”. Vixe, mas eu não sou negro. Uma época, eu fui lançar o livro no Rio Grande do Sul e dei uma entrevista na rádio, convidando as pessoas para irem ao lançamento. Um senhor tava na fila me olhando muito desconfiado. Chegou pra mim e disse: “Adorei sua entrevista na rádio, mas eu pensei que você fosse negro”. Então, como que fica a questão de gênero? O meu livro Contos Negreiros é um livro, por incrível que pareça, sobre preconceito, sobre dor, exclusão. Eu, naquele livro, tanto sou opressor, como oprimido. Acho horrível quando dizem pra mim assim: “Você é um escritor que dá voz aos que não têm voz”. Que conversa é essa?! Eles têm voz! Muita voz! “Se quer ver, escuta”, com bem diz Francisco Alvim, poeta mineiro. Outra, sempre dizem: “Marcelino escreve contos homoeróticos”. Sim, eu escrevo vários contos homoeróticos. Todos os meus livros têm. O livro que tem mais predominância da temática homossexual é o BaléRalé. Mas BaléRalé é um livro sobre arte, sobre escolhas, um livro também sobre preconceito. Eu acho uma injustiça falar que o João Silvério Trevisan é um escritor de temática homossexual. Ele é um escritor! E aquela temática vai estar presente porque está presente na vida dele. É um escritor do destino humano. Por ter nascido no Nordeste, e dialogar com o eixo Rio-São Paulo, como tu enxerga o conceito de “literatura regional”?

Outra coisa chata também. Umas das coisas que ficaram muito rotuladas. Mesmo o desejo de Ariano Suassuna, de se construir algo “legítimo”, em busca de uma “cultura” muito identificada com a “arte genuína”, brasileira, pernambucana. Tudo bem. Mas aí vem Chico Science, e ele chega atravessando tudo isso com uma coisa maravilhosa, pegando todas essas referências e transformando e ruminando e jogando uma outra coisa, uma nova arte na discussão. Eu acho extraordinário! Graciliano Ramos, você pode dizer que é regional? Você pegar também Guimarães Rosa. Você pode dizer que um Dostoiévski é regional? Eu nasci em Sertânia, fui morar em Paulo Afonso, no Recife, em São Paulo.

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A bela caracterização foi feita pela Letícia de Carvalho. E as fotos foram feitas especialmente por J. R. Duran. Aqui tem algumas. Na outra página, Reinaldo Moraes Índigo Andréa Del Fuego. Nesta, Laerte Paulo Lins Marcelino Freire.

Voltando ao Contos Negreiros, tu diz que é opressor e oprimido. Em que medida isso se dá?

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Tem um conto lá, por exemplo, chamado Trabalhadores do Brasil. Olha, eu tinha medo de fazer um livro chamado Contos Negreiros e que ele fosse adotado por uma ONG. Um inferno na Terra! Se ele fosse adotado por uma ONG, viraria um discurso “em defesa de”. Em defesa de nada! Nenhum escritor vai estar num pedestal apontando o dedo dizendo: “Vocês estão errados! Olha o que estão fazendo com os pobres! Olha o que estão fazendo com a família! Olha o que estão fazendo com o mundo!” Você não está fazendo também? Você está fazendo! Você está no mesmo barco! A caminho do mesmo inferno. Você é opressor também. No conto Trabalhadores do Brasil, eu imagino o que estariam fazendo as entidades africanas... O que elas estariam fazendo hoje? Os orixás, o que eles fariam hoje? Observe. [recitando]

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Na Balada Literária de 2013, escritoras e escritores trocaram de gênero em homenagem a Laerte.

O meu corpo mudou de lugar, saiu desses lugares todos. Mas a minha alma é pernambucana. O meu corpo sofre as interferências desses lugares por onde passei, todos. Eu sei que só escrevi o que escrevo hoje porque eu fui morar em São Paulo. O meu corpo sofreu marcas desses lugares. Tanto de Sertânia, de onde eu trouxe uma pedra no calçado, em Paulo Afonso outra pedrinha e um espinho, no Recife eu trouxe um cisco aqui, outro acolá, da geografia do Recife, do chão do Recife, e de São Paulo também. Essas coisas foram marcando meu corpo, mas minha alma, na origem, é pernambucana. Quando eu escrevo, é com o corpo. Sei que os meus textos se tornaram mais poluídos por causa de São Paulo. Os meus contos ficaram cheios de semáforos. Isso foi muito de São Paulo. Uma velocidade qualquer eu ganhei lá. Mas o sotaque é pernambucano. O acento é pernambucano. Agora dizer assim: “Eu sou genuinamente pernambucano. Eu vou fazer isso, que é genuinamente pernambucano”, isso é uma chatice! Você é ‘genuinamente’ você, com suas dores, sua percepção de vida, com sua visão de mundo, com as músicas que você ouve.

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Enquanto Zumbi trabalha cortando cana na Zona da Mata Pernambucana Olorô-Quê vende carne de segunda a segunda ninguém vive aqui com a bunda preta pra cima tá me ouvindo bem? Enquanto a gente dança no bico da garrafinha Odé trabalha de segurança pega ladrão que não respeita quem ganha pão que o Tição amassou honestamente enquanto Obatalá faz serviço pra muita gente que não levanta um saco de cimento tá me ouvindo bem? Enquanto Olorum trabalha como cobrador de ônibus naquele transe infernal de trânsito Ossonhe sonha com um novo amor pra ganhar 1 passe ou 2 na praça turbulenta do Pelô fazer sexo oral anal seja lá com quem for tá me ouvindo bem? Enquanto Rainha Quelé limpa fossa de banheiro Sambongo bungo na lama e isso parece que dá grana porque o povo se junta e aplaude Sambongo na merda pulando de cima da ponte tá me ouvindo bem? Hein seu branco safado? Ninguém aqui é escravo de ninguém.

Vamos desmembrar essa frase do conto? “Ninguém aqui é escravo de ninguém”. Ninguém, que não é ninguém, escraviza também quem não é ninguém. “Ninguém aqui é escravo de ninguém!” Entendido? Nenhuma frase minha está só em um lugar, como eu não estive nunca em um só lugar durante minha trajetória inteira. Eu achava que ia ficar em Sertânia, fui pra Paulo Afonso, São Paulo, Recife, São Paulo, Recife. Esses deslocamentos estão também nos meus textos. Os deslocamentos das palavras também. Não pense que as coisas estão afirmando conceitos únicos, ou pensamentos únicos, ou objetivos únicos. As coisas estão se misturando. E nessa mistura estamos todos juntos. Outra coisa: o livro é dedicado para Chocottone. Quem é Chocottone? É alguém que eu escravizo em casa? Quem é? Eu levanto essas questões exatamente porque eu não queria fazer um livro em que eu me colocasse como ‘entendedor’, ou alguém que estivesse ali para resolver, solucionar algo, ou para explanar sobre. Eu sou só alguém que sofre e que faz sofrer. 62


Vamos para outras atividades. E a Balada Literária? Como surgiu a ideia de fazer o evento? Como a Balada se mantém a cada nova edição? Tô lascado. A Balada Literária vai para a 9ª edição nesse ano de 2014. Se agora, no dia 15 de setembro, se eu não tiver uma resposta positiva de um único patrocínio possível pra que o evento se realize, ele não será realizado. Juro. Porque, desde o começo do ano, a gente tem a Lei Rouanet, e não conseguiu captar nada. E esse ano de Copa do Mundo... Virou o álibi de todo mundo, a Copa. A única captação que tá correndo ainda, com 95% de possibilidade de sair, é a do Itaú, que vai dar o quê? 100 mil reais, creio. A captação total é de 380 mil. Ano passado, eles deram uma cota de 100 mil e devem dar uma cota de 100 mil agora. Eu sempre fiz a Balada com os parceiros, Biblioteca Alceu Amoroso Lima, Centro Cultural b_arco, SESC Pinheiros, Livraria da Vila... Qual é o meu trabalho? Eu vou costurando essas parceiras. Vocês acompanharam. Eu costuro parcerias até com os taxistas do meu bairro. Eu peço para eles levarem os autores pra cima e pra baixo e depois eu pago em suaves prestações. O que eu puder pagar com o dinheiro dos parceiros, eu pago. O ano passado foi o único ano em que a gente conseguiu a Lei Rouanet, pela primeira vez, e conseguiu captar dois apoios: a FTD, que eu fui lá pedir desesperado; e o Itaú. A Balada é feita por pessoas. Eu não falo com instituições. Eu sei que o Itaú foi via Claudiney Ferreira, que é do Itaú Cultural, que ficou lá nos recomendando junto ao banco. Eu sei que o Francis é o SESC Pinheiros. Eu sei que a Rosa é a Biblioteca. Eu sei que outra Rosa é FTD. Eu conheço todos eles. Nunca consegui apoio em lugares que eu chego e digo: “Vou homenagear Raduan Nassar.” E a pessoa diz: “Quem é?”. Aí eu fico puto com isso. (risos) Depois eu começo a dizer quem é. Me perguntou? Eu vou responder. Raduan Nassar é fulano... “Oxente, e não dá pra homenagear fulano?”. Eu digo: “Não dá não. Quer me dar o dinheiro ou não quer dar o dinheiro?”. Em 2014 a Balada Literária vai homenagear dois escritores mortos. Primeira vez que fazemos isso. Plínio Marcos e Carolina Maria de Jesus. Carolina, favelada, negra, pobre, que escreveu diretamente da favela a história da sua família. Foi considerada, na época, “vira-lata” da literatura brasileira. Olha a alcunha que deram pra Carolina Maria de Jesus! Fez o maior sucesso. Se viva, faria 100 anos. Escreveu um livro chamado “Quarto de Despejo”. Plínio Marcos: marginalizado, morreu vendendo livro dele nas ruas de São Paulo. Teatrólogo sem concessão absolutamente nenhuma em toda a sua obra. A Balada vai começar no Teatro Oficina. Uma historinha curiosa: eu chego lá no Teatro Oficina, “Marcelo [Drummond] (diretor de “O Assassinato do Anão do Caralho Grande”, peça de Plínio Marcos): vamos fazer!”. Todos nós nos articulamos.


Eu sei a importância de fazer isso no Teatro Oficina. O patrocinador não vai entender nada, sobretudo porque a peça tem um anão do caralho grande! Pense: “Unimed, eu quero o patrocínio de vocês para a peça que começa com um anão do caralho grande!” (risos) Agora virem me falar que a Balada não vai começar com o anão do caralho grande? Então eu não quero seu dinheiro! Eu prefiro o anão do caralho grande do que seu dinheiro! Só que eu chego lá no Teatro Oficina, faço uma reunião maravilhosa, mas tem custos isso. Digo: “Levante aí, Marcelo, o custo básico.” Tem gente que trabalha no teatro, tem um monte de coisa. “Me diga. Quanto?” “Olha, Marcelino, o teto, o valor, em cima, assim, chorando, dá 20 mil reais.” “Te agradeço!” 20 mil reais. Já saio daqui sabendo que é isso. Ou seja, eu já saí do Teatro Oficina devendo! Onde é que eu tenho esses 20 mil reais? Em lugar nenhum. Teu prêmio literário só pra pagar a peça! (risos)

Olha, e eu vou lhe dizer: se for necessário, este Prêmio Machado de Assis que recebi vai para o anão do caralho grande, sem dúvida nenhuma! Mas que o anão vai mostrar sua chapuleta (risos) na Balada Literária, isso vai! Aí eu saio de lá sabe como? Eu saio de lá com uma missão. Alguém vai ter que pagar. Ligo pra um, ligo pra outro, conto “Pelo amor de Deus! Vocês vão fazer isso com o Plínio Marcos?” Fica um vexame desgraçado! “Isso é um absurdo! Que o Plínio não tem a obra reunida!” Aí toca o telefone de um, de outro. Resultado: consegui já 15 mil reais! “Marcelo, fechou por 15?”. “Fechou!”. Vai ter O Anão do Caralho Grande! Enfim... Tô esperando até o dia 15, para saber se sai esse patrocínio do Itaú para que eu possa continuar a pensar no evento. A Balada está parada nesse exato instante. Eu tô esperando até dia 15 pra ter essa resposta. Eu me desespero, mas, tendo ou não tendo patrocínio, vai ter! Não teve patrocínio? Vai ter do mesmo jeito! Quando não tem, aí que eu fico puto! E é aí que eu faço. Por quê? Eu tenho que honrar os dois homenageados deste ano, Carolina e Plínio. Os dois nunca se entregaram! Fizeram tudo na maior guerrilha. Aí é que a homenagem vai ficar bonita! Na dificuldade... Como é a curadoria, a articulação com os autores?

Nessas viagens que eu vou fazendo pelo Brasil. Eu vim aqui em Teresina e conheci vocês. “Como é que as pessoas podem não conhecer esse trabalho belíssimo que está sendo feito aqui por esses meninos?” Quando conheci o poeta Allan Jonnes, em Aracaju... Agora, eu peço a cada convidado. Como eu já pedi pra vocês: “Consegui isso aqui, mas eu não tenho as passagens aéreas”. Aí vocês: “Não, a gente consegue as passagens”. Eu consigo a alimentação, cada um sabe qual é o esquema, e vai indo. Eu sou muito ajudado por todos que participam da Balada Literária também. E tenho uma equipe guerrilheira, que se articula, me socorre sempre... 24


Qual é o conceito da Balada? Misturar todo mundo! Tudo ao mesmo tempo agora. Teatro, cinema, artes plásticas, autores consagrados, autores que estão começando, travesti, drag, punk. Em 2013, o homenageado foi o Laerte. Sabe como a Balada é feita, sabe? Eu tô conversando com vocês aqui. Um dia um rapaz falou assim pra mim: “Eu faço parte de uma banda punk-gay”. (risos) “Como é essa banda punkgay?” Ele foi me explicar dizendo umas letras das músicas da banda. Eles são todos tatuadões, tudo forte, bonitão. Tem um punk que se veste de mulher. “Diz uma letra aí”. [Cantando a música:] “Pau no meu cu que eu gosto, não sei o quê! Vai! Fode meu cu, ai, ai!” (risos). “Vocês vão estar na Balada!”, eu disse logo. O homenageado é o Laerte e ele desconstruiu o gênero! Tudo a ver com o Laerte... Foram e fizeram um show! Aí vieram uns punks, na plateia, que acompanham o som deles, tudo na beira do palco: “Eu dou o cu!” (risos) Demetrios Galvão - Eles cantaram uma música para o Aristides... Marcelino Freire - Vocês estavam lá! Claro!

Demetrios - Tinha uma música lá que dizia: “Quem dá o cu anda de bicicleta! Quem anda de bike dá o cu!” Aristides Oliveira - Eu ando de bike, mas até agora... (risos)

Marcelino - Olha que ele disse: “Eu ando de bike mas ATÉ AGORA...” Aristides Oliveira - Eu tenho que escutar mais...

Thiago E - O Demetrios saiu de lá dizendo que ia comprar uma bike. (risos) Demetrios - Morro de medo de transar em cima de bicicleta!

Marcelino - Você sabe que aquele som, pra quem entendia de punk, disse que era um som bom mesmo! E ainda sobre a Balada. Eu tô aqui em Teresina, posso levar todo mundo? Não. Mas eu fiquei com uma coceirinha. O que é aquele Elio Ferreira?! O que é ele, cara?! Nunca vi nada igual! Ele e o microfone: “A cabeça! Comi tua irmã!” Eu olhava pra ele, recitando aqueles poemas de afirmação da negritude, de afirmação da raça. Descomportado, sem cagação de regra. Negro! As pessoas precisam saber desse cara! Eu saio daqui já devendo. O Prêmio Machado de Assis já está entregue. (risos)


Como esse prêmio interfere na tua figura de escritor? Como isso afeta teu trabalho? Eu já vi muitos autores falarem assim: “O meu livro está sendo traduzido para a Iugoslávia, o meu livro está sendo traduzido para a Hungria.” Sei lá que porra! Mas não falou nem do seu bairro ainda. Não falou da sua casa, não falou pro seu bairro, para a sua cidade. Tá preocupado em falar pra Iugoslávia! Caralho! Eu olho pra pessoa: Ôxe! Ninguém lê nada de nada dele! Eu ficaria muito incomodado (não estou dizendo que sou lido ao extremo) se eu fosse para o Salão do Livro de Paris, Feira de Frankfurt, etc, ou fosse traduzido para outras línguas, e eu não tivesse primeiro falado, por exemplo, pra Sertânia. Eu sei que já falei, que eu voltei várias vezes lá. Eu sei que já falei para muitos grupos de teatro de Recife. Eu sei que eu já falei, modestamente, para a periferia de São Paulo. As pessoas montam os meus textos. Elas estão sempre em contato. Sei que falei minimamente aqui em Teresina. Quando eu vou a esses lugares, fora do país, eu falo a mesma coisa que eu falo aqui. Tá me ouvindo falar aqui? É igualzinho. No Salão do Livro de Paris. Tem a tradutora? “Traduza, minha querida”. Aí reverbera! Eu reverbero! Quem tá falando lá é Sertânia comigo. É minha mãe. Eu digo: “Olha, eu escrevo porque minha mãe quando estava muito feliz cantava Luiz Gonzaga. Você conhece Luiz Gonzaga? Agora eu vou cantar a música do Luiz Gonzaga: Olê, muié rendera. Olê, muié rendá”. Aí os franceses conheciam a música. (risos) Quando ela cantava Luiz Gonzaga, ela tava feliz com dinheiro. Quando ela não tava com dinheiro, ela batia panela, fazia barulho. Eu escrevo como quem bate panela no juízo do leitor, igual minha mãe, quando tava aperreada. Ou quando tá tudo muito quietinho, quando meus personagens têm um pouquinho de respiro, eles cantam Luiz Gonzaga. É isso o que eu conto lá fora, não é outra coisa não. Então, eu fico feliz por tudo isso. Não ficaria feliz se fosse o contrário. Se eu não fosse ouvido minimamente por um pedacinho de Pernambuco. Fala um pouco sobre o projeto QUEBRAS. Como surgiu a ideia?

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Toda vez em que eu sou convidado para uma Feira, pelo SESC, ou por uma instituição, ou Bienal do Livro, quando eu vou às cidades. Por exemplo, eu vim a Teresina pela primeira vez por causa do SALIPI [Salão do Livro do Piauí]. Quando isso acontece, eu quero conhecer o máximo que eu puder de cada cidade. Eu me lembro que uma vez eu fui para Assunção, no Paraguai. Como eu era um escritor brasileiro indo para Assunção, as pessoas tinham a mania, dependendo de aonde você vai, de levar você só para os lugares distantes de quem tá produzindo, da juventude. Aí levam você pra casa de num sei quem, num jantar de boas vindas da Associação da Casa do Caralho. Você fica nesse jantar de boas vindas do Cônsul... Eu tava com o pé no saco! Gente, eu ficava rodando na Feira do Livro, desesperado, atrás de alguém que desse um pouquinho

Essa entrevista aconteceu em setembro. Em novembro, A Balada Literária acabou recebendo o patrocínio esperado do ITAÚ - de 150 mil reais e com ele foi feita a edição de 2014. Marcelino ainda teve de tirar 10 mil reais do seu bolso, do Prêmio Machado de Assis. E fez isso sorrindo.


de respiro àquela formalidade, àquele coquetel. Sabe quem fica em coquetel? Escritor que só quer ser traduzido! Vai pra porra de tudo que é coquetel! Eu saía com o Paulo Lins, feito louco, com o Mutarelli por Paris, ou Guadalajara, quando eu tive com eles, pra beber! Encontrar os botecos, as beiradinhas. Diversos outros autores iam para coquetéis: “Não, estamos fazendo negócio”, diziam eles. Fodam-se. Coquetel, chatice do caralho! (risos) Eu procuro sempre esse tipo de autor que está fora. E no SALIPI foi a mesma coisa. Fui atrás, aí encontrei vocês. Esse desejo de estar interligado. Aproveitar a grana dos outros pra fazer isso. Resposta longa para dizer que o Quebras foi com o objetivo de quê? Eu não vou esperar ser convidado para uma Feira. Eu vou até a cidade! Alguém vai ter que me patrocinar para eu poder ir, fazer uma oficina e fazer esses encontros. Aí inscrevi o projeto no Rumos Itaú Cultural. Foi aprovado. Aí convidei o querido Jorge Filholini (jornalista) para me acompanhar nas aventuras. Sem ele, eu estaria fodido. Ele faz tudo: fotografa, edita, filma, escreve também. Eita! Tive muito cuidado que o projeto não parecesse que eu estava indo para “resolver a situação artística de cada lugar”. Não. É um grande começo de conversa, de troca de ideias, pulsações, parafusos. Quebras é um projeto feito para quebrar um pouco essas distâncias, essas fronteiras. O que quebrou e reverberou no teu corpo, na noite de ontem, durante o encerramento da Oficina do Quebras em Teresina, quando tu viu aquele recital no Galpão do Dirceu?

O que é o Galpão do Dirceu! Fiquei maravilhado com aquilo ali. Uma casa aberta para as pessoas ocuparem! Eu fujo de lugares que não tenham essa filosofia... Não me venham com: “Olha, lá em Palmas, o Quebras vai ser na Associação Brasileira dos Escritores... Ou, vai ser na União...” Não! O Itaú Cultural tem parceiros singulares em cada cidade, ainda bem. Eles que nos falaram do Galpão do Dirceu: “Fica na periferia”. Eu digo: “É lá que queremos ir”. Eles tinham outros parceiros aqui. Eu disse: “Não, quero o Galpão do Dirceu”. Falaram que era um lugar um pouco distante, algum problema? “Não, não tem problema algum”. E aí a gente se depara com aquela geografia, com aquela coisa diferente, aquela resistência. Por si só o espaço já vem com essa iluminação. E aí vem a parceria com vocês, no sentido de que o Thiago E levou a gente pra cima e pra baixo. Vocês deram o suporte e, coincidentemente, a Acrobata 3 já estava sendo lançada. As pessoas foram lá mostrar seus livros, a oficina foi ótima! De manhã, às 9 horas, num dia de semana, não é fácil em qualquer lugar. E estavam lá vinte pessoas. Olhem, eu e Jorge Filholini sairemos daqui direto pra Belém e entre nós estávamos comentando: “Nossa, já começamos o projeto Quebras em grande estilo! O que vai ser de nós agora?” (risos). Obrigado, Teresina, mais uma vez obrigado, Teresina. Eu e Jorge damos viva, de coração. Para encerrar. Que mentira tu gostaria que fosse verdade?

Eita pergunta boa! [faz uma pausa] A vida. É uma mentira que eu gostaria que fosse verdade.


a poesia é, de fato, o fruto de um grito meu, teu, de todos nós voz que acende um barulho dentro da noite feroz por isso tenho que gritar, leitores surdos, ouvintes mudos com versos, línguas, punhais, absurdos

anticage

porque a poesia é, na verdade, um mito palavra que salta do papel e ousa ave que pousa no risco do atrito porque a poesia é uma bomba susto que o homem ouve quase como um avião cai no corpo de um kamikaze e o silêncio é nada argila seca, poeira disciplinada por isso o poeta tem que gritar gritar em suma porque o silêncio, porra, é porra nenhuma

CELSO BORGES (MA) É poeta e letrista maranhense. Autor de 10 livros de poesia, entre eles Pelo avesso (1986), Música (2006) e O futuro tem o coração antigo (2013). Parceiro de Zeca Baleiro, Criolina, Chico César, etc. Faz roteiros de vídeo e foi curador da Feira do Livro de São Luís, em 2013 e 2014.

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cuidado! se gravarem meus poemas em camisetas que sejam discretos, sem purpurina ou tintas de efeito a luz de meus versos fabrico no peito. não pintem carinhos que não fiz, please beijos que não dei caminhos que não pisei ei, cuidado! não mostrem assim, num banner bandido num pano qualquer simples emoções simples com pinta de enfeite que me baste ser pouco prefiro o louco que me lê e grita e blasfema ao outro, sóbrio, sério, falso sábio, cheio de fama que me olha e não me vê e me cita em teses de mestrado. coitado! prefiro a fúria hemorrágica às rimas de hemorroidas


JAISLAN MONTEIRO (PI)

Mestrando em História pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). Servidor do Instituto Federal do Piauí (IFPI). _____________________________________________________

A RUPTURA DA IM

sob o signo da in 70


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Pensar a produção de imagens na contemporaneidade, as matérias de expressão empregadas em sua composição, as nuances do seu intercâmbio dialógico com outras práticas artísticas e seu caráter marcadamente híbrido. O alcance e a importância dessas questões norteiam a problematização de filmes produzidos na ambiência dos anos 1960/70 que se apresentam a partir de uma teia de interdependência. Sob o prisma particular das artes nesse contexto, torna-se bastante válido, no caso do cinema, pensar em modelos de dramaturgia, tendo em vista que é inerente às produções realizadas nesse período a manifestação performática de muitas línguas e dialetos, todos se expressando ao mesmo tempo. Kynema Brazyleyro, escreveria Glauber Rocha para acentuar o erro, para mostrar que o errado é o certo. A desordem e a indisciplina, em princípio uma estratégia de sobrevivência, se converteram nas forças que tornaram possível a invenção de muitos cinemas num tempo em que inventar era proibido. A subversão da ‘forma filme’ clássica e seus desdobramentos podem ser utilizados como matéria para se analisar as disputas de sentido através das quais artistas, produtores e filmmakers pensaram e representaram o mundo a sua volta. A partir dessa discussão é igualmente possível vislumbrar uma melhor compreensão das relações de poder no interior do cinema brasileiro tentando responder como se comportaram os produtores culturais diante do Estado no momento em que o cinema nacional se firmava como indústria almejante à conquista do mercado interno.

MAGEM CORDIAL

ntertextualidade 71


A discussão esboçada em linhas gerais no parágrafo anterior será subsidiada a partir do enfoque das novas tecnologias como instrumentos catalisadores de uma nova relação entre arte e indivíduo. Com isso procuraremos discutir como as câmeras amadoras de Super-8 mm – artefato que se encontrava dentro de um princípio de produtividade industrial e automatização dos procedimentos – tiveram suas funções e finalidades reajustadas. Longe de se configurarem como dispositivos enunciadores neutros ou inocentes, acabaram por desencadear mutações sensoriais e intelectuais que impulsionaram grandes transformações estéticas. Os recentes estudos em comunicação e semiótica permitem concluir que qualquer arte fortemente determinada pela mediação técnica, coloca o artista diante do desafio permanente de, ao mesmo tempo em que se abre às formas de produzir do presente, contrapor-se também ao determinismo tecnológico, recusar o projeto industrial já embutido nas máquinas e aparelhos, evitando assim que sua obra resulte simplesmente num endosso dos objetivos de produtividade da sociedade tecnológica . A partir dessas premissas procuramos menos a leitura dos filmes como produto acabado e mais sua leitura como processo em seus diálogos com seu ambiente sensório, em suas apropriações por outros meios, em suas contribuições interdisciplinares. Entendemos que nenhuma produção artística está isenta dos condicionamentos sociais de sua época, o que nos levou à busca da compreensão das táticas comunicacionais utilizadas por jovens cineastas piauienses quando estes passaram a utilizar o super-8 e outras linguagens experimentais em suas obras artísticas – processo bastante disseminado na cena cultural brasileira dos anos 1960/70. Nesse sentido, foram formuladas as seguintes questões: Como os sujeitos envolvidos no cenário artístico da época pensavam e representavam o mundo à sua volta? De que modo jovens cineastas e suas produções se inseriram nas disputas culturais de seu tempo frente ao particularíssimo contexto de redefinição da arte e do papel do artista? Como se estabeleceram as relações de poder entre produtores culturais de diferentes matizes, e entre estes e o Estado? 72


Diante dos nossos interesses de pesquisa, paira como uma espécie de lugar comum a afirmação de que a contemporaneidade é uma época dominada pelas imagens. Na esteira desse discurso, alguns autores assinalam que as representações visuais devem ser entendidas como parte de um conjunto entrelaçado de práticas e discursos e que a experiência visual é enriquecida pelas memórias e imagens de vários universos de nossas vidas. Dentro desse projeto de revisão estilística que se processa sobre as artes brasileiras, um dos elementos que ganham notoriedade é “a consolidação da polaridade entre o cinemão – projeto de mercado ajustado aos protocolos de comunicação dominantes – e os estilos alternativos presentes no curta e longa-metragem.” A esse respeito, podemos dizer que “dentre aqueles que participam, direta ou indiretamente da política cultural do Estado, há os que a rejeitam e conformam-se com o mercado privado e os que, além de rejeitarem o espaço estatal, negam também o privado, propondo um circuito alternativo de produção, circulação e consumo cultural”. Na cena cultural piauiense um encontro representativo dessa querela – mas que ainda repousa em esquecimento – pode ser vislumbrado a partir da produção do filme O guru das Sete Cidades – filme vinculado aos códigos de linguagem do cinema comercial e financiado com recurso governamental – e da feitura do filme experimental O guru da sexy cidade, produzido por jovens cineastas teresinenses – filme experimental de baixo orçamento que se utiliza para sua feitura dos expedientes de colagem e experimentação. Por sua vez, o curta-metragem O Guru da Sexy Cidade se constitui como um textoparódia cuja estrutura narrativa evidencia uma violentação do ritual cinematográfico. Realizado por um grupo de jovens teresinenses também no ano de 1972, foi produzido com equipamento amador (super-8 mm) e teve como proposta central a problematização do filme homônimo financiado com recursos estatais. Com imagens trêmulas e desfocadas, apresenta forma e estética bastante peculiar, aproximando-se dos postulados da estética do lixo. A relação de proximidade/ familiaridade entre os sujeitos que fizeram parte das filmagens atesta a ruptura com o modelo clássico de representação. A utilização desses recursos estilísticos denota que para seus propositores o ato de filmar (processo) se configurava como algo mais importante que o resultado do processo (exibição).


Um paciente e gradual trajeto de investigação tem sido feito no sentido de mapear as zonas de interseção entre os dois filmes – O Guru das Sete Cidades e O Guru da sexy cidade – e o contexto de feituras que lhes deu origem. No horizonte, sempre a mesma indagação: como interrogar as nuances desse encontro a partir de uma perspectiva histórica? Para o caso específico dos filmes em apreço, a produção de sentidos encontra-se incrustada em uma zona de hibridação que requer como lastro de sustentação o tecido próprio que os constituem em narrativa e as experiências de seus consumidores quando da apropriação desses exemplares. A evidência contratual presente no jogo fônico-semântico entre os títulos das duas obras artísticas – em que a identidade fônica vem acompanhada de uma antítese semântica – reitera, de saída, a proposição da obra de arte como uma reserva indefinida de significados. Ainda que possuidoras de traços de singularidade em suas designações nominais, uma breve análise de seus suportes, da filiação artística de seus propositores e do contexto específico em que foram produzidas, aponta para a necessidade de uma investigação mais acurada acerca das idiossincrasias de cada película – quando colocado em observância o encadeamento sintagmático entre elas.

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Deslize semântico: as disputas simbólicas entre propostas estéticas antípodas

Nessa configuração, a produção derivada da junção de dois sistemas de signos que se cruzam, lança por terra a dimensão sincrônica do sistema, aludindo, por metáfora, a um sistema de espelhos deformantes em diversas direções e graus diversos. O caráter de negociação entre as produções em exame – revelador de antítese sui generis entre gêneros, estilos e procedimentos enunciativos que se opera entre elas – oferece margem para operacionalização do conceito de obra aberta de modo bastante particular. Umberto Eco, ao formular e delinear o referido conceito, defende que toda obra de arte é aberta na medida em que sobre ela pode incidir as mais diversas interpretações. Desse ponto de vista, nenhuma produção artística se encontraria de todo acabada, estando sujeita a significados e possibilidades interpretativas múltiplas. Um de nossos objetivos com o estudo foi acrescentar a essa rica proposição que uma determinada maneira de consumir (ler, interpretar) também é passível de desaguar em produção.


Nesse sentido, podemos trabalhar com a hipótese da produção do filme O guru da sexy cidade como vetor resultante do consumo que os seus propositores, a partir das possibilidades inferenciais do contexto, operaram a partir do filme-matriz O guru das Sete Cidades. Alguns dos meandros dessa complexa rede enunciativa podem ser aferidos por intermédio do conceito de apropriação, na acepção proposta por Roger Chartier. Segundo o historiador francês, o ato de ler – entendido aqui na sua conformação mais polissêmica – que se engendra no processo de recepção de um artefato cultural é “uma prática criativa que inventa significados e conteúdos singulares, não redutíveis às intenções dos autores do texto [assemelhando-se a] um ato de caça em propriedade alheia”. Para os exemplares em análise, a negociação de sentidos que advém do binômio escrita/leitura – suscitado a partir da relação entre o texto matriz e o ato que o apreende – é repertório prenhe de possibilidades interpretativas. Dessa feita, a investigação de regimes visuais díspares, presentificados na configuração sociocultural em estudo, além de deslindar aspectos de guerrilha semântica próprios de uma revolução semiológica oportunizará acesso aos modos de ver típicos dessa conjuntura e, por extensão, das relações de poder daí provenientes. *

Propor uma abordagem à luz da noção de obra aberta encontra amparo na apropriação de uma fórmula metodológica largamente empregada pela literatura e que tem sido – diga-se de passagem – cada vez mais incentivada a se expandir para outras áreas. Tal proposição, quando voltada para a análise fílmica, acaba por lhe franquear o estatuto de texto inacabado, ensejando uma análise textual que deve considerar os seus modos de endereçamento, ou seja, as expectativas e os códigos socioculturais que envolvem sua equipe produtora e seus potenciais consumidores. Em linhas gerais, para a estética da recepção – que além de Umberto Eco encontra em Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser seus grandes expoentes – o leitor (nesse caso em particular o espectador) deve figurar como parte integrante do sistema que por sua vez deve considerar em igual medida o autor, sua obra e a recepção pelo público.


“[...] as intenções do autor (isoladamente) ou a análise interna do texto (estruturas) não são mais suficientes para o estabelecimento do significado histórico de uma obra. Na verdade, o que uma obra poderia significar historicamente resulta de uma apropriação criativa da experiência proposta pela obra, já que o leitor/espectador não se coloca diante da obra de maneira passiva. Na realidade, [...] as perguntas são deslocadas de tal modo que os questionamentos do intérprete/estudioso passam a incidir sobre uma relação específica produzida pelo encontro do leitor/espectador com a obra.

Se a teoria da qual nos apropriamos eleva a primeiro plano a necessidade de análise que busca transcender a própria obra, o caráter interpretativo recai também sobre as possibilidades inferenciais de se compreender o modo como a película atuou sobre os seus receptores e como estes a assimilaram/interpretaram. Assim, no momento da leitura o leitor carrega consigo um repertório de ordem social, histórico e cultural, sendo que a interpretação de determinado texto ocorrerá por meio do diálogo entre esse repertório do leitor e o texto . Nesse sentido, é preciso reconhecer que a fruição de uma obra de arte pode oscilar de uma contemplação desinteressada a uma participação experimentadora. Essa experiência, portanto, se dá de forma diferenciada de indivíduo para indivíduo, face a recepção da mesma obra, já que cada um traz no momento da leitura – recepção – as inferências culturais que formam a sua subjetividade . Se essa premissa é válida, podemos acrescentar, por extensão, que os suportes também podem ser variáveis. Assim, a construção de um filme experimental – que se dá a partir de ‘empréstimos’ de uma narrativa-matriz que lhe antecede – denota a posição do espectador sendo orientada para uma atividade intertextual do discurso-outro, onde incorpora-se, às vezes, pedaços inteiros do original, deixando, no entanto, indícios claros da procedência.


Nos fotogramas 1 e 2 Pierre Baiano – ator do filme O Guru da Sexy Cidade – efetua reescritura de caráter contestador do filme O Guru das Sete Cidades. Nos fotogramas 3 e 4 Rejane Medeiros, Otávio Terceiro e Roberto Bustamante em cenas do filme parodiado.

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Colocando em relevo a premissa que a estrutura propriamente dita de uma obra é o que ela tem em comum com outras obras – aquilo que é posto à luz por um modelo –, podemos propor as seguintes indagações: o que a correlação intertextual entre produtos artísticos, a partir de novas estruturas de linguagem, pode nos dizer acerca do horizonte de expectativas culturais da época em estudo? No campo das artes é possível subverter a lógica cartesiana produção-consumo a partir da leitura como paradigma de uma atividade tática? Estabelecer relação de contiguidade entre produção-recepção-historicidade, pode potencializar as possibilidades interpretativas do historiador frente a(s) obra(s) em análise, podendo, inclusive, oportunizar o acesso a outros saberes, chegando à sociedade e à cultura que são imanentes a esse mundo fílmico. REFERÊNCIAS AVELLAR, José Carlos. O cinema dilacerado. Rio de Janeiro: Alhambra, 1986. MACHADO, Arlindo. Máquina e imaginário: o desafio das poéticas contemporâneas. 3. Ed. São Paulo. Editora da Universidade de São Paulo, 2001, p.11. MACHADO, Arlindo. Arte e mídia: aproximações e distinções. É-compós. São Paulo, 2004, p.6. Christine Mello. Extremidades do Vídeo. São Paulo: Ed. Senac, 2009, p. 31. DUTRA, Roger Andrade. Da historicidade da imagem à historicidade do cinema. Projeto História. São Paulo, nº 21. 2000, p. 122. KNASSUS, PAULO. O desafio de fazer história com imagens: arte e cultura visual. ArtCultura. Uberlândia, v.8, 2006, p.97-119. BARBALHO, Alexandre. Estado pós-64: intervenção planejada na cultura. In: Revista Política e Trabalho. João Pessoa, v.15, 1999, p.63 BINI, Carlos. O guru das Sete Cidades. 85 minutos, cor/som, 1972. NORONHA FILHO, Antônio. O guru da sexy cidade. 09 minutos, cor/som, 1972. Sobre o aspecto de similitude entre os títulos dos dois filmes, é iluminadora a observação de Umberto Eco acerca das proposições de função referencial quando este afirma que “a riqueza sugestiva dos fonemas [...] e a vontade de comunicar de modo ambíguo e aberto influi na organização total do discurso, determinando sua fecundidade sonora e sua capacidade de provocação imaginativa”. In: ECO, Umberto. Obra aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. São Paulo: Perspectiva, 2010, p.91. MICELLI, Sérgio. Teoria e Prática da Política Cultural oficial no Brasil. In:________. Estado e Cultura no Brasil. Difel, São Paulo, 1984. JOSEF, Bella. O espaço da paródia, o problema da intertextualidade e a carnavalização. In: Sobre a Paródia. Tempo Brasileiro. São Paulo, 1980, p. 69. CERTEAU, Michel. Fazer com: usos e táticas. In: A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis (RJ). 3 ed. 1998. CHARTIER, Roger. Textos, impressão, leituras. In: HUNT, Lynn. A nova história cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p.214. CHARTIER, Roger. Op.cit., p.221. CASTRO, Ernesto Manuel de Melo. A revolução da linguagem e a linguagem da revolução. In: Revista Vozes. Rio de Janeiro, ano 68, nº. 6, agosto de 1974, p.24. ELLSWORTH, Elizabeth. Modo de endereçamento: uma coisa de cinema; uma coisa de educação também. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Nunca fomos humanos – nos rastros do sujeito. Belo Horizonte: Autêntica, 2001 RAMOS, Alcides Freire. Terra em transe (1967, Glauber Rocha): estética da recepção e novas perspectivas de interpretação. In: Revista de História e Estudos Culturais. Vol. 3, Ano III, nº 2, 2006, p.5. ISER,
 Wolfgang.
 O
 Ato
 da
 Leitura:
uma
 teoria
 do
 efeito
 estético. Tradução de Johannes
Kreschmer
São
Paulo:
Ed.
34,
1996. SIRINO, Salete Paulino Machado; FORTES, Rita das Graças Félix. Jauss e Iser: efeitos estéticos provocados pela leitura de João Guimarães Rosa. Revista FAP, Curitiba, v. 7, jan./jun. 2011. RAMOS, Fernão. Cinema Marginal (1968/1973): A Representação em seu Limite. São Paulo, SP: Brasiliense, 1987, p. 133. ECO, Umberto. Op.cit., p. 29 SILVA, Jaison Castro. Urbes negra: melancolia e representação urbana em Noite vazia (1964), de Walter Hugo Khouri. 2007, 191 fls. Dissertação (Mestrado em História do Brasil). Teresina, 2007.


station wagon [anotações roubadas para o homem da caravan] há um homem livre dentro da caravan, ou seja, há um homem em perigo dentro da caravan uma perua de grande porte derivada do chevrolet opala eleita o carro do ano em mil novecentos e setenta e seis

– sei que assim falando pensas que esse desespero é moda – corpo mais longo do que o normal área imensa por trás dos assentos lendário motor de 6 cilindros da série especial diplomata collectors versão quatro portas para socorro com câmbio na coluna da direção

a partir de mil novecentos e noventa e dois a caravan sumiu uma narrativa? não. nada de narrativas. nunca mais

falta um dente da frente e este buraco grudado a seu corpo de lutador dá a ele o aspecto de um homem de briga e de confronto

o dente da frente que falta dá a ele o espectro de uma violência contraída que ele parece não ter

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é possível que ame é possível que ame um soim, ou no máximo, uma borboleta trazida do oriente por alguém. um amigo, se tivesse nascido em cingapura


space invader [anotações roubadas para o homem do andaime]

depois de dez dias de água um condomínio contrata um homem que arrisca sua vida para lavar as paredes do prédio, trinta e quatro andares, uma ninharia um homem livre e em perigo e o século XXI pendurados num andaime termo utilizado para estruturas temporais de acesso escora com diversas denominações modulares, tubulares e fachadeiros aplicação mais habitual na construção civil modelos de madeira, aço, alumínio, corda tudo suspenso sim, sim, é um andaime em balanço balanço e jogo enquanto vanessa c. rodrigues fotografa e desenha a circunstância e talvez use nesse instante um vestido azul com bolinhas brancas alguma fita no cabelo e sapatos mustache um andaime em balanço, uma fotografia, o século XXI, uma ninharia

MANOEL RICARDO DE LIMA (PI / RJ) É poeta e professor da Escola de Letras e do PPGMS/Uni-Rio. Entre outros livros, é autor de Jogo de varetas [poesia], As mãos [novela], Geografia aérea [poesia], A forma-formante [ensaios com Joaquim Cardozo] _________________________________________________

uma narrativa? não. nada de narrativas. nunca mais evite material infestado por fungos, cupins, nós, rachaduras, trincas e principalmente material empenado metal e madeira seca com fibras retas sem desvios helicoidais quem sabe quem sabe algum segredo sobre meias coloridas e pouco discretas, ilustrações para a série “as camisetas de que gosto” ou roteiros impressionantes para as histórias em quadrinhos de LZ


poderia ter nascido em cada cidade do mundo com uma roupa diferente em uma casa diferente e poderia ter tido os mesmos amigos com outros nomes e falar tudo outra vez em diferentes línguas para chegar a este mesmo instante vindo de distintas trajetórias: há tantos infinitos dentro do infinito e tantos nomes para a infinita possibilidade de ser quem se é que o infinito não se reduz à semântica de infinito: num café de cada cidade o mesmo grupo de gente repetindo-se em outras caras cumprindo os mesmos gestos diante das mesmas piadas: por mais distantes ou alheios os lugares permanecem lá à espera do jeito que sempre foram na nervura luminosa da noite suportando em si a mecânica de se vivê-los

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MÁRCIO-ANDRÉ

(RJ)

Nasceu no Rio de janeiro e vive atualmente em Santiago de Compostela. Publicou livros de poesia e ensaios no Brasil e Espanha, entre eles Intradoxos (2007) e Ensaios Radioativos (2008). Fundou o Coletivo, revista e editora Confraria do Vento. __________________________________________________________________

sair de casa sem o idioma e voltar ao mundo pelo caminho mais curto sair da cidade e sair do nome à espera que da ausência de antônimos surja uma qualquer semântica de afetos selvagens toda fronteira é mais verbal que física: no perímetro da língua todo um contorno de corpo e os pensamentos só existem enquanto pensados na erosão do limite da expectativa do som pelo mínimo dialeto das máquinas: serão as máquinas nossa única herança as únicas que nos rangerão versos de amor até o fim com sua devoção aos mantras tentarão compor obra maior que a vida sem entender que a única tarefa razoável do poeta é noticiar o fim do mundo


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POR UM CENÁRIO (OU ARTES PLÁST


Este texto é dedicado a Arnaldo Albuquerque, que subiu num Carcará no dia 8 de janeiro de 2015

BERNARDO AURÉLIO (PI)

É Mestre em História do Brasil com especialização em artes pela UFPI. Além disso, é autor dos livros Foices e Facões: A Batalha do Jenipapo e Por Dentro do Máscara de Ferro. É sócio da livraria Quinta Capa Quadrinhos, entre outras coisas... _________________________________________________

Quero falar sobre a produção de histórias em quadrinhos (HQs) no Piauí, sob a perspectiva de um cenário cultural. Quer dizer, isso existe por aqui? Evidente que há desenhistas, escritores, quadrinistas... Existem também eventos, desde alguns focados mais nos animês e mangás, que acontecem quase todos os meses em Teresina, e em algumas cidades do interior, em Piripiri e Parnaíba, por exemplo, como também a Feira HQ, evento “anual” desde 1999 e que teve sua 13ª edição em 2013. Talvez eu não seja a pessoa mais indicada para escrever isso, já sou intimamente ligado ao tema, entretanto, me considero intimado. Meu objetivo não é fazer um recorte ou um panorama totalizante. Afinal, é como uma lista cheia de subjetividades. Alguns nomes estão incluídos, outros esquecidos ou, simplesmente, não foram citados.

O DE QUADRINHOS TICAS) NO PIAUÍ


Para começo de conversa, entendo que pensar em “cenário” envolve uma série de elementos interligados, e um deles é a sensação de pertencimento, de entender que esse espaço é como um grande grupo do qual fazemos parte. Acredito também que sentimentos como esse são estimulados, entre outras coisas, pela construção de uma história em comum. Se entendermos as pinturas rupestres como HQs, então temos uma longa pesquisa para fazer, já que o Piauí possui alguns dos maiores sítios arqueológicos com esse tipo de inscrição no mundo. Se considerarmos que os quadrinhos modernos nasceram junto com o desenvolvimento da imprensa, com as charges no século XIX, falta-nos também uma pesquisa apurada sobre quem eram os ilustradores dos primeiros periódicos do Piauí. Houve ilustradores de jornais piauienses no século XIX ou início do século XX? Eles fizeram quadrinhos? Isso ainda é uma incógnita pra mim e desconheço pesquisas desse gênero, mas certa vez fiz uma entrevista com Albert Piauhy, reconhecido cartunista à frente do Salão de Humor do Piauí por quase 30 anos, e ele disse-me que o “Arnaldo Albuquerque é o primeiro chargista da história piauiense. De verdade, entendeu? Porque eu entrei lá pra substituir o Arnaldo (...) Na verdade, o Arnaldo fez charge no jornal ‘O Dia’, mas o primeiro chargista constante fui eu mesmo. Eu que consolidei a charge no jornalismo piauiense. Só que naquela época eu era um cara muito inquieto e o mundo era grande e eu achei de ir embora pro Rio de Janeiro. Então eu fui chargista do Jornal ‘O Dia’ várias vezes até chegar a vez do Jota A”. Se estudarmos os jornais da década de 1970 pra cá encontraremos facilmente os nomes citados acima: Albert, Arnaldo, Jota A e outros, como Dodó Macedo, e, mais recentemente, Moisés ou Izânio. Eles ilustraram nossos jornais. Eventualmente, a piadinha do cartum vinha em arte sequencial: em quadrinhos. Alguma coisa se originou com essa geração, afinal, entendemos Arnaldo Albuquerque como o autor da primeira revista em quadrinhos do Piauí, a Humor Sangrento, impressa em 1977. Humor Sangrento não é apenas pioneira, é um único exemplo de onde já se é possível visualizar o pluralismo da concepção artística de Arnaldo, afinal, como ele próprio considerava, a revista é um grande manual que apresenta ao leitor diferentes técnicas de construção do quadrinho.

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capa da revista Humor Sangrento, 1977, de Arnaldo Albuquerque. ______________________________________


Mas enfim, esses caras que ilustraram os impressos incentivaram a criação de um cenário no Piauí? Vou citar o Albert novamente, ele costuma dizer que por aqui uma geração não cria a outra. Ou seja, não parece existir essa linha contínua (que não precisa ser entendida como linear ou progressiva) traçada por sobre essas gerações, interligando-as. Não generalizaria o pensamento do Albert para todas as artes, mas acho que os artistas plásticos no Piauí sofrem sim deste problema: Qual? O de uma geração não alicerçar-se em outra, ou desconstruir a anterior intencionalmente, possibilitando um mínimo que seja de entendimento de plano, de chão, de perspectiva, se é que me faço entender... É quase crônico! E os quadrinistas não são alheios a isso. Para exemplificar melhor, vamos pensar a questão do humor gráfico. Imaginem que o Piauí possui 30 anos de experiência de um Salão de Humor bem sucedido (apesar das afirmações e evidências em contrário) e qual é a escola de humor que se criou no Piauí? Os cartunistas piauienses que estão nos jornais são os mesmos há quase 3 décadas. Qual a promessa do humor gráfico no Piauí? Quem substituiria Jota A, Moises ou Dino Alves (que ainda terão muitos anos de trabalho, queira Deus!) e que já tem algum tempo significativo de experiência no mercado? Agora entenda que, à exceção do Salão de Artes Plásticas organizado pela Fundação Municipal de Cultura Monsenhor Chaves (de Teresina), e do próprio Salão de Humor do Piauí, não temos nenhum outro evento significativo envolvendo artes plásticas no estado. Talvez a Feira HQ, que teve 13 edições, mas a modéstia e o bom senso me impedem de citar. Só para reforçar essa ideia, fiz uma entrevista com Sônia Terra - que foi presidente da Fundação Cultural do Piauí por oito anos (de 2003 a 2010) - e lhe perguntei sobre essa ausência de ações no âmbito das políticas culturais para as artes plásticas e ela disse que: Se você for olhar, nós não temos sequer no Piauí um equipamento cultural digno pra receber grandes exposições: nós não temos uma galeria de artes plásticas. Pra quê mais grave do que isso? Hoje a galeria do Clube dos Diários é mínima e insuficiente. A gente não recebe aqui grandes exposições porque nós não temos espaço. Estou falando institucionalmente. Isso significa que nós temos um déficit enorme com esse segmento, assim como temos com outros. E isso é um desafio. Nós passamos oito anos e não conseguimos, fizemos questões pontuais que não representam a demanda que está aí reprimida, nem o mínimo a gente conseguiu realmente atender. É fato. E não digo isso com alegria, digo com muita tristeza.


Preciso dizer que, durante minha entrevista, Sônia Terra colocou, reiteradamente, que a ausência de políticas públicas mais eficientes para as artes plásticas é também reflexo de uma classe mal organizada, articulada ou participativa e citou o Salão do Livro do Piauí como um sucesso exatamente por se apresentar de forma oposta à maneira como a classe dos artistas plásticos se apresentam diante do poder público. Para além disso, o que quero dizer é que somos carentes de espaços: o Estado não realiza um salão de artes plásticas, não temos uma galeria e não temos uma escola pública para artes plásticas (a não ser que você queira cursar licenciatura em artes). Isso, de certa forma, nos torna órfãos de muita coisa. É claro que, eventualmente, você descobre a obra de um Afrânio Pessoa ou Nonato Oliveira e percebe que pessoas como eles fizeram gerações de artistas por aqui. Mas quem Arnaldo Albuquerque criou? Quem o Amaral, autor do premiado quadrinho Hipocampo, fez? Não falo de “fazer escola” ou instituir um estilo. Pergunto como classe. Se Arnaldo Albuquerque é pioneiro, quem são os outros quadrinistas significativos que surgiram no cenário “aberto” por ele? Não podemos ignorar que existe um problema de mercado. Músicos piauienses, como Assis Bezerra eram também bons quadrinistas, mas que deixaram as pranchetas pela guitarra. Era necessário escolher uma arte ou mesmo tentar tirar um sustento dela. Então, o que parece existir, constantemente, são desenhistas insistentes que realizam seus quadrinhos no intervalo que o cotidiano lhes permite. Inclua nessa conta os inúmeros alunos dos cursos de Arte da UFPI, ou mesmo técnicos do extinto curso do IFPI, que queriam ser quadrinistas e saem de lá professor de “educação artística” para os fundamentais do ensino público. Para me ajudar neste texto, fiz um roteiro de seis perguntas e enviei para 6 desenhistas que considero importantes na atual produção de quadrinhos local. Disse que estava escrevendo um ensaio sobre o cenário de quadrinhos no Piauí, do qual eles devem fazer parte. Todos visualizaram as perguntas, cinco confirmaram que iriam enviar as respostas, um ignorou o aviso, não comentando nada, e apenas 2 enviaram as respostas dentro do prazo que pedi (8 dias). Não escrevo isso com tom de denúncia contra nenhum deles. Só achei um dado significativo para a discussão que estou fazendo. Afinal, os seis tinham consciência que eu havia selecionado cada um deles, mas será que se percebem como um grupo independentemente de suas ligações interpessoais? Eles poderiam se perceber como um recorte, um extrato significativo de um cenário? E será que se importam com isso?


trecho de Humor Sangrento

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Os dois artistas que responderam foram Thiago Melo e Joniel Santos, ambos quadrinistas premiados na Feira HQ. Joniel, inclusive, já tem algumas coisas publicadas por aí [como nesta edição]. A primeira pergunta que fiz foi: “Existe um cenário de quadrinhos no Piauí? Existem referências de autores ou trabalhos locais?” Joniel disse:

Creio que existe gente querendo fazer quadrinhos e alguns fazendo. Espero que assim possa existir um cenário propriamente dito como em outros estados. E quanto a referências, sim, temos referências de autores locais que estão conseguindo visibilidade nacional e internacional.

Thiago Melo citou exemplos: “Sim, mas é muito tímido - infelizmente. Algumas referências locais podem ser destacadas, como os trabalhos do Leno Carvalho, do Caio Oliveira e do Bernardo Aurélio que, em cenário local, talvez sejam os artistas de maior destaque nessa área”. Os dois não são muito otimistas com relação ao “cenário” local, apesar de existir algumas pessoas que começam a aparecer como referências nacionais, ou mesmo internacionais. Da minha parte, quais os quadrinistas profissionais que considero por aqui? Sendo otimista, citaria três: Leno Carvalho, Caio Oliveira e Will Walber Jr. Esses autores, de estilos completamente diferentes, treinados nas escolas de suas próprias subjetividades, moldados por suas leituras, vendem seu trabalho para o mercado nacional e internacional. Existem vários outros que fazem quadrinhos, claro, mas autores como esses três poderiam ser considerados referência para quaisquer quadrinista de primeira viagem que queiram tentar a sorte nesse mundo de artes sequenciais, entretanto, não são! Isso porque falta maior conhecimento sobre a obra desses artistas que conseguem algum destaque no cenário local ou nacional.


Parte dessa falta é culpa pessoal de cada um, entretanto existe uma ausência maior que deveria cumprir esse papel divulgador, de contar nossa história e apresentar os exemplos, acima disso, de lhes representar. O Núcleo de Quadrinhos do Piauí (NQ) foi criado para isso, entretanto, eu seria ingênuo se acreditasse que o NQ cumpre com seus objetivos. No começo do texto afirmei que eu não era a pessoa indicada para escrever esta reflexão e um dos motivos é porque sou um dos sócios fundadores do NQ, presidente por 4 anos e conselheiro por mais 2 anos, além da minha luta nos outros 8 anos anteriores, quando o grupo atuava antes de sua regulamentação formal. O que posso dizer é que dos cerca de 30 sócios oficialmente registrados em ata e dos mais de 1000 membros do grupo virtual no facebook, o NQ resume-se a meia dúzia de pessoas, às vezes 9 ou 10 se considerarmos o que rege o estatuto, incluindo diretoria e conselho. Deste pequeno ciclo, um ou dois são quadrinistas. Para não me alongar em uma discussão que não é a proposta, o NQ é uma instituição aberta, sem fins lucrativos e disposta a trabalhar com todos que se apresentarem. Foi assim, com a ajuda de vários amigos e assistentes que fizemos 13 edições da Feira HQ e alguns projetos de publicação de quadrinhos, como a “Revista Feira HQ” nº 1, 2 e 3, reimpressão de 30 anos de “Humor Sangrento”, “Foices e Facões”, “Cabeça de Cuia”, “O Imortal” e “Por dentro do Máscara de Ferro”. Para exemplificar melhor o papel do NQ, faço uso do que disse os artistas convidados. Para Joniel Santos: “O Núcleo e a realização da Feira durante todos esses anos foi de importância fundamental para o quadrinho no Piauí. A oportunidade dada aos iniciantes, como ocorreu comigo, a visibilidade dos trabalhos que são avaliados por profissionais e as premiações que sempre estimularam a produção no nosso Estado e em outros. Sou suspeito pra falar da Feira HQ, já que devo o início da minha carreira à exposição das minhas obras neste evento e pelos contatos que fiz através dela”.


imagens de Humor Sangrento ______________________________

Thiago Melo afirmou que “para os quadrinistas locais, a Feira é um dos poucos espaços de visibilidade e troca de experiências no nosso Estado. Acredito que se a Feira um dia acabar, leva junto boa parte disto que se constitui como um ‘cenário local de quadrinhos’”. Acredito que a opinião dos dois é bastante significativa, que falam por si mesmas, permitindo-me a ausência de comentários. Talvez, um ou outro dos quatro que não responderam minhas perguntas apresentasse opinião contrária. De fato, a Feira HQ ou o NQ não contribuíram de forma verdadeiramente efetiva para construir um cenário ou desenvolver um mercado de quadrinhos local, característica essa de vital importância quando se pensa em qualquer cenário cultural em qualquer região. Entretanto, pessimismos à parte, o NQ contribuiu para que esse cenário tivesse algum rosto, nome ou alguma história, e como já disse, esse é um dos elementos fundamentais para construirmos uma ideia de cenário. Lembro-me de conversa que tive certa vez com Chagas Vale, grande músico e ator de teatro de bonecos. Sim! Ator de teatro de bonecos. Pois não são apenas os bonecos que encenam numa peça de mamulengo, também atua o dono da mão escondido por trás do palco. E o que estou dizendo aqui não é incoerente: lembro do Chagas porque ele disse para mim que os quadrinistas são como atores de teatro de boneco: o grande público sempre nos considera uma arte menor. Teatro de Boneco < Teatro. Quadrinhos < Artes Plásticas (ou artes visuais). Cito isso, neste momento, para que você considere que, no Piauí, se os grandes artistas plásticos autores de pinturas a óleo de alto valor de mercado, ostentadas em salas e gabinetes, não possuem, sequer, uma galeria digna, fruto, eventualmente, da má organização e articulação de uma classe sem representatividade, imagine como seria a situação dos artistas plásticos de “menor escalão”. Imagine que nós, quadrinistas, fazemos “apenas teatro de boneco”, não fazemos o grande “Teatro”! Entende? Diante dessas constatações, tente imaginar como é fazer arte por aqui, como é ser quadrinista no Piauí e tenha vislumbre do nosso cenário.


NAUFRÁGIO A chuva interfere nas ilhas como quem deita de luz acesa. (Chove na ilha que troveja)

Perdidos todos os sinais, o que resta além do espelho

é um velho mapa intranquilo rubricado na dor – cartografia do invisível.

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CONCERTO PARA CAVALOS

CLARISSA MACEDO (BA) Doutoranda em Literatura e Cultura, revisora e professora. Autora de O trem vermelho que partiu das cinzas e Na pata do cavalo há sete abismos (Prêmio Nacional da Academia de Letras da Bahia), ambos de 2014. _________________________________________________

Despidos de crinas que não se reconhecem Cravados de marcas de ferro Fugidos pela palha que nega o que desejam Mortos pelas pirâmides que migraram Surdos pela sinfonia que não se nomeia Loucos de manadas de dragões que cospem estrelas Vivos pelas correntes que berram astros ...assim são os cavalos do concerto de meu coração crianças que preparam o primeiro verso, feras que não se sujeitam.


O SARAU DEBAIXO


TODO CHÃO SERÁ PALCO TODO MURO SERÁ MURAL TODA CIDADE POESIA

ALLAN JONNES (SE) Tem 24 anos, mora em Aracaju. É poeta e membro do Coletivo Sarau Debaixo. Estuda jornalismo com certo desgosto. _________________________________________________

O Sarau Debaixo é um coletivo. É preciso começar dizendo isso, um coletivo com doze cabeças. As doze pensam e trabalham. O sarau nasce dessa necessidade de pensar a cidade para além das paredes e sob as paredes. As pessoas perderam a relação com o espaço comum, do mesmo modo que perderam a identificação com o que hoje se pode chamar brutamente de natureza. É corriqueiro ouvir que a natureza vai se vingar do ser humano escrotão e poluidor. Como se o ser humano não fosse também a natureza, e os carros e os viadutos e as ruas são fossem também a natureza – transformada em tijolo e cinza e fuligem e borracha e fedor. Ocupar esses lugares e intervir taticamente transformando-os em coisa viva e em movimento é uma das opções que estão dadas no mundo inteiro, e foi a que a gente escolheu. O viaduto do D.I.A era um entre os muitos não-lugares da cidade de Aracaju. Uma cidade geométrica, calculadinha, quadradinha, perpendicular, arrumadinha, um tabuleiro. Com uma encruzilhada desocupada em cada esquina. O verdadeiro vazio da ação, a doce província, a mais modesta das capitanias hereditárias desse país – limpinha e bem comportada aos domingos, nossa Aracaju. Sendo assim, era urgente o vexame, como dizia Mário Jorge, o poeta morto mais vivo em todos os cantos da cidade. Morreu de trânsito, por ironia, noutro viaduto. O viaduto do D.I.A é outro, tem parte com a encruzilhada, o mergulhão das sete curvas de retorno, das sete voltas, sete pistas e uma multidão de pilastras pintadas de marrom da cor do mar. É ali que acontece o sarau. Todas as terças da terceira semana do mês, haja noite ou não haja. E as pessoas aparecem, devagarzinho, mas pessoas aparecem, de acordo com os nossos cálculos as edições têm em média cento e cinquenta pessoas, fosse a polícia contando eles diriam que não chegamos a trinta e oito doidos e desocupados. Mas é de coração. 97


A gente usa um som e três microfones que são alugados, a grana é toda da colaboração das pessoas. Na verdade, a gente vende cachaça, zine, bottom, camiseta. É com esse dinheiro que se paga tudo e não se pede nada pra ninguém. Alguns aparecem lá para gritar, outros cantam, outros tiram a roupa, outros aparecem pra rimar de improviso, se enterrar na areia, outros se penduram no viaduto e descem agarrados em tecidos de acrobacia, jogam bola de malabar, cospem fogo, outros recitam poema, tocam tambores, discursam, não importa. O microfone é aberto. Todos vão lá para reagir contra a cidade e pelo direito a ela. No meu ensino médio, estudei em escola pública e lembro que ainda que a quadra de esportes estivesse vazia e as bolas desocupadas e os estudantes estivessem em algum horário vago, as pessoas não podiam usar a quadra. Ninguém podia usar a quadra que ninguém estava usando. Era preciso pedir permissão, protocolar um ofício pra jogar meia horinha de bola. Não havia nada que fundamentasse essa não-permissão, só não podia. É essa a lógica que funciona, é essa a relação das pessoas com o espaço público. Estamos caminhando agora para o segundo ano do sarau e nunca enviamos nenhum oficio, estamos ocupados. É urgente esse tipo de provocação. A gente compreende a cultura como um direito básico assim como a educação, a saúde, o transporte coletivo etc. O direito a cultura é sempre dos mais sabotados, negados e protelados. É por isso também que a gente está na rua. E vocês dirão, “Mas e a literatura?”. Acreditamos que esse lugar fedorento e sujo e feio e poeirento é também o lugar dela. Há um movimento nacional de saraus que se espalha para além das instituições, que ocupa os bares, as calçadas, as estações de ônibus, etc. A literatura é também a palavra que se move em direção ao outro. As pessoas produzem, conversam, se interessam. É outro modo de fazer literatura.


O Coletivo Sarau Debaixo é Allan Jonnes, Carolina Horstmann, Clara de Noronha, Débora Arruda, Jaci Abanã, Julia Tavares, Líria Regina, Lucian Smash, Marcella Almeida, Morgan Souza, Pedro Bomba e Rafa Aragão. ________________________________________________

É comum ouvir entre escritores e curadores de eventos o discurso da inclusão, “Nossa, que bonito esse movimento das ruas, vamos chamar aqui o pessoal da poesia oral, da poesia falada”. Já quando se referem aos poemas “dos livros”, chamam só pelo nome de “poema” ou “poesia” mesmo. Estamos habituados a isso. Embora a gente saiba que, na verdade, no início era o som e a oralidade. Hoje nos parece que por um lado há uma poesia oficial, legítima, e por outro - seus subprodutos. A literatura é também um espaço comum (não um lugar comum), e ocupá-lo incomoda. É contra esse tipo de pensamento que a gente se levanta. Dizer isso não implica dizer que as pessoas da rua, os poetas que se manifestam na rua ou por meio da oralidade não precisam ter nenhuma espécie de reflexão e zelo com aquilo que estão produzindo. Há uma espécie de abandono e vazio da experiência estética que invariavelmente cede lugar tão somente a mensagem, aos textos sem esquinas, à catequização em linha reta, ao palanque. Como há também o inverso disso, tão desinteressante quanto. Não adianta empilhar tudo que se pensa em um bloco de frase, chamar de poema e achar que isso é ser subversivo, isso foi subversivo há muito tempo, hoje é mais do mesmo. Por outro lado, lançar um livro é muito fácil, quem fizer o mínimo de esforço consegue lançar o próprio livro. Há uma espécie de inflação de coisa avulsa e não refletida, um fetiche, a necessidade de uma legitimação que muitas vezes vem assim irrefletida: “Tenho um livro, agora sou escritor, podem me chamar de escritor, olhe aqui o livro que eu escrevi!” Isso é uma cilada. Isso é o espectro, a parte podre do espetáculo. O sarau que pensamos e queremos é outra coisa. E ele segue sendo detonador de sensibilidade e interesse nas pessoas para com a literatura, ocupando o exato lugar onde a escola da nossa geração falhou. Nós sabemos que isso é irreversível, no entanto, há ainda muito que se possa fazer. Avante.


Akemin é a cobraarco-íriscobra-dançaarco-íris. Akemin de olho preto é dançacobra-vento. Akemin de olho preto é dança-cobrapensamento. Bakilá rei djedje está no fim de tudo. Bakilá rei djedje está no início de tudo. Kaforidan cobra-quemordeo-próprio-rabo é o fim-início de tudo. Kaforidan cobra-quemordeo-próprio-rabo faz gira-girar tudo.

Se um dia Oxumaré cansar mundo acaba. Se um dia Oxumaré cansar céu desaba. Danjikú moça-menino tira entranha do intolerante. Danjikú macho-menina tira entranha do crente demente. Dakemin dança a dança do sol. Dakemin dança a dança do lua. Dakemin dança a dança em mim.

Arroboboi Oxumarê!

oriki de oxumaré

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oriki de oxalá

CLAUDIO DANIEL

(SP)

É poeta, professor de Literatura Portuguesa e editor da revista Zunái. Publicou, entre outros títulos, Figuras metálicas, Fera bifronte e Cores para cegos. ____________________________________________________

Oxalufon — aquele-que-caminhana-areiamestre dos corcundas Obatalá — aquele-que-comecaracolforte como touro branco Onírinjà — aquele-que-nuncase-esquecefaz o mentiroso ficar surdo Ọbaníjìta — aquele-que-nuncase-esquecefaz o mentiroso ficar mudo Olúọfin — aquele-que-gritaquando-acordalivra a filha da armadilha

Òòsàálá — aquele-que-comerato-e-peixe faz a moça estéril embarrigar Olúorogbo — aquele-que-fulminafascistafaz tucano virar farelo Ọlọbà — aquele-que-se-vestede-branco aquele-que-cantavestido-de branco aquele-que-dançavestido-de-branco aquele-que-é-donoda-xota-de-Iemanjá — Òrìşáko! Epa Bàbá!

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ACROBACIAS INDICADAS

CARTAS NO CAMINHO Distribui doses diárias de sentimentos, questionamentos e provocações pela cidade. Assinando com pseudônimos, seus remetentes desejam resgatar a magia da troca de correspondências, deixando cartas nos lugares mais inesperados. (www.facebook.com/cartasnocaminho)

ANDARILHOS

REVISTA euOnça A euOnça é uma revista de arte e poesia. Pratica a antropofagia - acredita na fome como dispositivo mobilizador e na onça pintada como a mestra visionária da artepoética. A euOnça é editada em campinas e publicada pela Ed. Medita. Ela pode ser deglutida nas versões impressa e eletrônica, e está na sua terceira edição.

Blog criado por oito jovens andarilhos, vindos de terras nenhumas. Cada dia um passo incerto, guiado pela poesia das palavras, a delicadeza da fotografia, a magia das cartas e a sutileza dos desenhos. Uma caminhada leve, sob o véu da mais pura arte da entrega. www.facebook.com/andarilhosthe

MADRE FILMES – S3TART O projeto S3TART, da produtora Madre Filmes, é uma série documental sem interlocutor. Tem como proposta compor um panorama da arte urbana que vem sendo feito nas cidades do Brasil: grafite, colagem, transfer e outras sub-culturas urbanas. A princípio, a primeira temporada contempla os estados do Piauí, Paraíba e Pernambuco. https://vimeo.com/madrefilmes


A MFL (Mostra do Filme Livre) é a maior mostra brasileira de filmes independentes. Se não pelo tempo (mais de década), exibe mais de 200 filmes por ano. O evento acontece nas cidades do Rio, São Paulo e Brasília, além do Circuito de Cineclubes. E em 2015 chegaram também a Belo Horizonte! Acesse: http://mostradofilmelivre.com/15/

POR DENTRO DO MÁSCARA DE FERRO

Conversações com R.F.Lucchetti (Editora Verve)

Máscara de Ferro é uma sátira a super-heróis e nasceu da pergunta: como seria um super-herói piauiense? Trata-se de uma obra sobre superar a si mesmo e nossos problemas rotineiros, sobre ser melhor do que costumamos ser. Uma história sobre obsessões e sonhos.

É o resultado de um esforço descomunal em oportunizar ao público, especialmente àquele interessado em cultura e em comunicação social, um apanhado de histórias e exemplos deste singular artista brasileiro.

BIFURCAÇÕES Quarto livro de poemas do poeta Demetrios Galvão, Bifurcações expõe os desdobramentos visuais e experimentais do poeta, por meio de enquadramentos lisérgicos, com a sensibilidade de quem acaricia um ninho de cactos. O livro foi editado pela Ed. Patuá e tem apresentação do poeta Afonso Henriques Neto. e-mail: demetrios.galvao@yahoo.com.br


Para que me encontrem, desfaço com um sorriso tudo que completo

Absorvo o calor natural que me industrializa Não sei mais se sou o que aprendo ou o que deixo para trás Continuo o caminho precário e remendado O estágio de pedra me domina Antes era imagem, agora apenas reflete

Um (des)caso do Quase ALDENORA CAVALCANTE (PI) Perdigueira. Tem um coração inquieto e uma alma em pedaços. Faz jornalismo. Estudante e aprendiz - sempre. _________________________________________________________________

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